Você está na página 1de 15

Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura.

Belo Horizonte, Faculdade de


Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

1 Conceituando texto

Atividade 1:
Antes de discutir a leitura, precisamos falar um pouco sobre textos, afinal, lemos
textos, não é mesmo?
Procurem conceitos de textos para discutir com os colegas em sala de aula.
Nessa discussão, vocês devem verificar o que há de comum nesses conceitos.
Vocês devem procurar contextualizar um pouco cada um dos conceitos (informações
como área, época, vertente teórica, que podem ser relevantes) e fazer uma apreciação
deles, ou seja, se é um bom conceito, se é abrangente o suficiente, se traz elementos que
realmente nos ajudam a identificar textos e a caracterizar essa noção a contento.
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

Comentário da atividade 1:

Podemos abraçar um conceito amplo, lato, de texto. Neste caso, incluiremos como
texto, produções nas mais diversas linguagens. Seriam tratadas como textos as
produções feitas com as linguagens das artes plásticas, da música, da arquitetura, do
cinema, do teatro, entre outras.
Nesse sentido podemos entender a “leitura do mundo” de que fala Paulo Freire. É
preciso ler o mundo, compreender as diversas manifestações das muitas linguagens com
as quais temos contato o tempo todo.
Esse conceito lato de texto, apesar de aceito por muitos teóricos e de ser
interessante por se tratar de uma abordagem geral da compreensão (uma vez que essa
depende da conjugação de várias linguagens) é adequado a algumas situações, e
ineficiente em outros casos. Se considerarmos um conceito amplo de letramento,
queremos que os sujeitos sejam capazes de “ler” os mais diversos “textos” nas mais
diversas linguagens. Aqui, vale a pena adotar um conceito amplo de texto.
No entanto, para se fazer um estudo da leitura e da escrita, por exemplo, é preciso
delimitar um pouco esse conceito. Se tudo é texto, lemos o quê? Tudo? Estudaremos o
quê? Tudo? O professor que vai alfabetizar tem de ensinar tudo?
O que é texto? Tudo? Então, caímos no nada.
Eu sou um texto? Uma janela é um texto? Um barulho é um texto? Ver então é
ler? Ouvir é ler? Pensar é ler? Qual é o limite entre ler e pensar?
Se buscamos um objeto de estudo para fazer ciência, a ampliação do conceito é
extremamente perigosa e indesejada. Se tudo que vemos e ouvimos pode ser um texto,
tudo pode ser texto, e o conceito se transforma em nada, pois é intratável, indefinível e,
portanto, não nos serve. Para fazer ou tentar fazer ciência na área dos estudos
linguísticos e literários, que é o nosso caso, precisamos distinguir os conceitos de
leitura, escrita e de texto. Lemos textos, escrevemos textos.
Para início de conversar, vou defender que textos são sempre verbais. Na busca de
uma definição para texto, acho melhor, pelo menos, por hora, e para esse exercício de
conceituação do texto, ficarmos apenas no verbal, lembrando que elementos não-verbais
podem e normalmente se associam ao verbal. Explico: não podemos lidar com um
conceito que cai no vazio por ser amplo demais. Precisamos fazer um recorte e, para
isso, opto por incluir no conceito de texto aquilo que se inclui também no ato de ler e de
escrever que é o verbal.
Num conceito stricto, então, ler é ler textos verbais e escrever é produzir textos
verbais.
Mas sabemos que há inúmeros textos que são compostos também por elementos
não verbais. É difícil pensar, sobretudo quanto consideramos os ambientes digitais e
midiáticos, em textos em que aspectos não-verbais não sejam parte importante de um
texto. A cor e o tamanho da fonte são elementos precisam ser considerados, assim como
a cor do fundo do texto, as ilustrações, as fotografias, as animações, o layout, entre
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

outros elementos não-verbais que costumam ser uma parte muito importante desses
textos.
É preciso considerar que o texto normalmente vem acompanhado de elementos
não-verbais que devem ser uma preocupação do autor e devem ser levados em conta no
momento da leitura. Quem vai lidar com quadrinhos, por exemplo, precisa usar um
conceito de texto que inclua a imagem. Quem vai lidar com música popular (não
instrumental) precisa lidar também com a música e, nesse caso, deve incluir no seu
objeto de estudo a música. O estudo de propagandas e de outros textos publicitários da
TV, revistas e jornais, inclui necessariamente a análise de imagens. Podemos dizer, no
entanto, que considerar o texto como sendo prioritariamente verbal não implica excluir
desse conceito a presença de outras linguagens. Nesse sentido stricto, são textos aquelas
produções que se utilizam da linguagem verbal associada ou não a outras linguagens.
Produções em outras linguagens sem o verbal não seriam, nessa abordagem, entendidos
como textos, nesse sentido estrito.
É comum o sentido ser apontado como característica do texto:
“Texto é aquilo que faz sentido”
“é uma unidade de sentido”
“é qualquer coisa que a gente entende”
“é necessário que tenha interpretações variadas”
“é aquilo que cria sentido.”
“Texto é dotado de unidade de sentido”. Qual a noção de sentido aqui? Como essa
frase deve ser entendida? Ter unidade de sentido é ter sentido? O sentido está no texto?
Ter unidade de sentido é girar em torno de um tema principal (recuperável pelo leitor)
ou ser dotado de sentido intrínseco?
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

2 Refletindo sobre a textualidade

Atividade 2
1. O que faz um texto ser um texto?
2. O que é um bom texto?
3. Veja as sequências abaixo e diga se são textos e, nos casos de
resposta afirmativa, explique por quê.

a)

Segunda - Francisca avança com o cavalo para cima do casal. Maurício


impede que a mãe dê uma surra de chicote na irmã. Madalena implica por Nina
estar envolvida com um português pobre. Beatriz confirma para Francisca que
já não é mais virgem. Francisca decide mandar os filhos de volta para a
Europa. Maurício insiste em conversar com Caterina, mas Gaetano interfere.
Francisca avisa Vincenzo que vai tomar posse de sua parte na fazenda.

b)
hoje...
Trabalhar hoje pode ser bem produtivo. Aproveite para organizar as ações
e cumprir os afazeres com energia e disposição renovadas. Compartilhe os
apoios oferecidos.
na semana...
previsões para o trabalho
Dias importantes para a vida profissional. Uma oportunidade nova pode
aparecer, mas ainda como especulação ou possibilidade futura. Há algo de
muito bom nessa oportunidade. Não perca.

c)
AUDI CABRIOLET 95 UNO EP 96 2PT
R$48. 700. vermelho, ú. dono,
Troco/ fin nunca bateu,
4192-1712 Estado de Novo.
GOL G III 4P 00 (11) 5541-7236
Verm. , dh
R$16. 800.
F:4192-1712

d)
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

i) ii)
a noite pinga uma tem cautela;
estrela no meu olho ajuda o sol
e passa com uma vela

e) f)
Cultura Samba do approach
O girino é o peixinho do sapo Venha provar meu brunch
O silêncio é o começo do papo Saiba que eu tenho approach
O bigode é a antena do gato Na hora do lunch
O cavalo é pasto de carrapato Eu ando de ferryboat
Na hora do lunch
O cabrito é o cordeiro da cabra
O pescoço é a barriga da cobra Eu tenho savoir-faire
O leitão é um porquinho mais novo Meu temperamento é light
O galinha é um pouquinho do ovo Minha casa é hi-tech
Toda hora rola um insight
O desejo é o começo do corpo Já fui fã do Jethro Tull
Engordar é a tarefa do porco Hoje me amarro no Slash
A cegonha é a girafa do ganso Minha vida agora é cool
O cachorro é um lobo mais manso Meu passado é que foi trash

O escuro é a metade da zebra Fica ligada no link


As raízes são as veias da seiva Que eu vou confessar my love
O camelo é um cavalo sem sede Depois do décimo drink
Tartaruga por dentro é parede Só um bom e velho engov
Eu tirei o meu green card
E fui pra Miami beach
O potrinho é o bezerro da égua
Posso não ser pop star
A batalha é o começo da trégua
Mas já sou um noveau riche
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura
Eu tenho sex appeal
Saca só meu background
Veloz como Damon Hill
Tenaz como Fittipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia macho man
E de noite drag queen

4. Todos são textos? Discuta com os colegas sua resposta e sua


justificativa para cada caso.
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

Comentários da atividade 2

Concordo com Halliday e Hasan (1976)1 que o texto “é uma unidade de língua em
uso” (p. 1), no entanto, acredito que o restante da definição de texto dada por esses
autores – “é melhor compreendido como uma unidade semântica, uma unidade não de
forma, mas de significado” (p. 2) – se refere ao processo de compreensão do texto e não
ao texto propriamente dito. Um texto ainda não transformado em significado não deixa
de ser texto. Um texto que não faz sentido para algumas pessoas, mas faz sentido para
outras, não deixa de ser texto.
Por serem unidades linguísticas que têm como propósito a comunicação entre
falantes, podemos dizer que todas as ocorrências linguísticas apresentadas acima são
textos. Para isso, devemos recuperar alguns aspectos como o suporte e o portador em
que circularam, recuperando assim seu contexto de produção o que vai facilitar a
compreensão deles. Devemos considerar também o público a que eles se destinam e o
propósito com que foram escritos, tendo como uma boa dica para isso a identificação do
gênero textual a que pertencem.
Os sete princípios constitutivos da textualidade postulados por Beaugrande e
Dressler (1981)2 — coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade,
situacionalidade, informatividade, intertextualidade — não são características do texto,
mas condições para a sua produção e compreensão. Esses autores, ao proporem esses
princípios não tinham a intenção de definir texto. O que interessava para eles naquele
momento era compreender “como os textos funcionam na interação humana” (p. 4).
As meta-regras de Charroles: progressão, articulação, continuidade e não-
contradição – também dependem da percepção de quem está lendo o texto. Esse autor
condiciona o funcionamento do texto à situação de interlocução. “Para ele, a coerência e
o sentido do texto são dependentes da situação, o texto não é nem deixa de ser coerente
em si mesmo, mas é coerente ou não para alguém em determinada situação.” (Costa
Val, 2001)3. Sendo assim, um texto pode ter progressão para alguns leitores e ser
considerado por outros leitores como sendo um texto que “não sai do lugar”, não diz
nada de novo. A articulação de um texto, por sua vez, não precisa estar explicitada no
texto por meio do uso de elementos linguísticos, pois costuma ser papel do leitor inferir
ou reconstruir as relações entre as partes do texto. E, da mesma forma que a articulação,
a continuidade, ou seja, a retomada dos elementos do texto, pode não ser marcada pelo
uso de pronomes, repetições, substituições, entre outros. A continuidade pode estar
implícita (se é que isso existe), ou melhor, pode não estar sinalizada muito claramente
no texto, devendo o leitor recuperar as referências. Em relação à não-contradição,
também podemos dizer que o leitor é quem vai ou não perceber a presença de
contradições. As contradições externas (entre o texto e o que o leitor sabe do mundo),

1
HALLIDAY, M.A.K. e HASAN, Ruqaiya. Cohesion in English. London, Longman, 1976.
2
BEAUGRANDE, R.A. de e DRESSLER, W. U. Introduction to Text Linguistics. London, Longman,
1981.
3
COSTA VAL, Maria da Graça. Repensando a textualidade. In: AZEVEDO, José Carlos (org.).
Língua Portuguesa em Debate: conhecimento e ensino. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 34-51.
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

por exemplo, podem não ser percebidas caso o leitor não conheça o fato ou ideia que
ativa essa contradição. No caso de a contradição ser interna, ou seja, de elementos
marcados no texto se contradizerem, cabe ao leitor perceber a oposição entre as ideias,
mas diferentemente das externas, existe uma indicação no texto (mais ou menos direta)
de que há uma contradição.
Para entender esses textos precisamos saber em que suporte e portador
apareceram, reconhecer o gênero a que pertencem e, em alguns casos, saber quem é o
autor e quais características dele podem ajudar na sua compreensão, restringindo
algumas possibilidades de interpretação e sugerindo outras.
Vejamos cada um dos textos apresentados acima:

a)
Resumo de novelas S u p l e m e n t o s
V a l e T V
ESPERANÇA, Globo, 20:30
Segunda - Francisca avança com o cavalo
para cima do casal. Maurício impede que a mãe
dê uma surra de chicote na irmã. Madalena
implica por Nina estar envolvida com um
português pobre. Beatriz confirma para Francisca
que já não é mais virgem. Francisca decide
mandar os filhos de volta para a Europa. Maurício
insiste em conversar com Caterina, mas Gaetano
interfere. Francisca avisa Vincenzo que vai tomar
posse de sua parte na fazenda. Antônio, o pai de
José Manuel, chega na pensão.

Resumo da novela Esperança (Rede Globo) -


http://jornal.valeparaibano.com.br/2002/07/27/valetv/novelas.html

Para entender esse texto, é preciso identificar que ele é um resumo de novela. Essa
identificação seria mais fácil se esse texto tivesse sido apresentado no seu lugar
original, ou seja, na página ou site de um jornal, no caderno de TV ou link sobre
programas de televisão, juntamente com resumos e outras informações sobre essa e
outras novelas. Retirado do suporte original, essa pode ser uma tarefa muito fácil para
aqueles que acompanham esse tipo de programa, mas pode dificultar a compreensão de
quem não assiste a novela ou não se interessa por esse assunto (quem são essas pessoas?
Qual a relação entre elas? Quem é o casal para cima de quem Francisca avança com o
cavalo? Por que ela faz isso? Beatriz é filha de Francisca?)
À primeira vista, esse texto pode ser percebido como um conjunto de frases sem
relação, no entanto, numa leitura mais atenta podemos ver que a maioria das frases é
construída seguindo uma sintaxe básica “X faz (sempre no presente) Y”, que algumas
personagens são mencionadas mais de uma vez (ex.: Francisca), que alguns elementos
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

do mesmo campo semântico fazem parte do texto (ex. cavalo, fazenda; mãe, irmã,
filhos), o que pode nos levar a começar a construir algumas relações entre essas partes e
identificar o texto como sendo flashes de uma história.
As relações entre as frases não precisam ser explicitadas e mais dados não
precisam ser mencionados uma vez que, para o público-alvo desse texto — que são
pessoas que acompanham a novela — essas informações são suficientes para
compreender o que aconteceu durante aquele episódio da novela.

b)

hoje...
Trabalhar hoje pode ser bem
produtivo. Aproveite para organizar as
ações e cumprir os afazeres com
energia e disposição renovadas.
Compartilhe os apoios oferecidos.
na semana...
previsões para o trabalho
Dias importantes para a vida
profissional. Uma oportunidade nova
pode aparecer, mas ainda como
especulação ou possibilidade futura.
Há algo de muito bom nessa
oportunidade. Não perca.

::: por Gregório Pereira de


Queiroz

Gregório Pereira de Queiroz http://www.estadao.com.br/ext/horoscopo/libra.htm


(acessado em 26/10/2007)

Uma condição importante para compreender esse texto é identificá-lo como um


horóscopo e, portanto, como um texto que traz conselhos, e que não tem a intenção de
ser objetivo, direto e específico, muito pelo contrário, é característica desse texto ser
ainda mais vago e impreciso do que normalmente os usos da linguagem são. É fácil
identificar esse gênero no suporte original, uma vez que normalmente vem
acompanhado do nome dos signos e de alguma imagem representando esse signo.
A recepção desse texto pode variar muito, dependendo da aceitabilidade do leitor
em relação a esse gênero. Quem acredita nessas previsões vai ler para obter conselhos
para o dia, ao contrário daqueles céticos em relação a esse tipo de informação, que
podem pular essa parte do jornal ou da revista, ler para se divertir ou mesmo para
debochar desse material.
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

A progressão desse texto pode ser questionada pelos céticos, mas para quem
acredita em horóscopo, muita informação pode ser construída a partir dele.

c)

3414 Anúncios

AUDI
CABRIOLET 95
R$48.700.
Troco/fin.
6666-1722

GOL G III
4P 00
Verm., dh R$
16.800.
F: 6666-
1722

UNO EP 96
2PT
vermelho,
ú.dono, nunca
bateu, Estado de
Novo.
(11)5555-
7233

Anúncio de carros - http://www.classificados.estadao.com.br/ (acessado em 26/10/2007)

Considerando um conceito bem tradicional de texto — de acordo como qual texto


tem de ter frase completa, começo meio e fim, não ter erros de gramática — poderíamos
dizer que “isso” não é um texto. Mas considerando que são classificados de jornal e
como tal devem ser escritos de forma sucinta para não ficarem caros e conter
informações básicas como marca e ano do carro e telefone de contato, são textos. Por
que não seriam?
A recepção desse texto pode variar dependendo do que o leitor procura ali e do
quanto ele tem intimidade com esse gênero textual. A abreviatura “dh”, por exemplo,
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

pode ser entendida como direção hidráulica, mas um leitor iniciante nesse tipo de texto
pode inferir que é dinheiro, pagamento a vista. Mas ninguém vai dizer que os autores
não sabem escrever porque não terminam as palavras, não sabem construir frases
completas nem usar maiúsculas adequadamente.
Para compreender esse texto é preciso que o leitor perceba e reconstrua a relação
entre os elementos que fazem parte dele. Ele precisa perceber que alguém está vendendo
um Audi Cabriolet e que esse carro é do ano 95 e que o vendedor quer
aproximadamente (uma vez que o leitor sabe que o preço de carros usados é sempre
negociável) R$48.700,00 pelo Audi, que esse carro poderá ser trocado ou financiado e
que o interessado pelo carro deve telefonar para 6666-1722 a fim de saber mais sobre o
Audi e, se for o caso, fechar o negócio. Repetimos propositalmente a palavra carro e o
nome do carro para que ficasse claro que todos os elementos do texto se relacionam ao
carro anunciado e, consequentemente, à negociação desse bem.
Nos anúncios classificados de carros no jornal, normalmente o nome do carro é
topicalizado e outras informações extras são escolhidas pelos anunciantes para seduzir o
leitor (“Estado de Novo”) ou dar a ele mais detalhes sobre o carro (“Verm.”) ou sobre a
negociação (“Troco/ fin”). Além do nome do carro, não pode faltar no anúncio a forma
de contato com o vendedor, que normalmente é um número de telefone.
Um leitor atento ou mais avisado vai perceber que o número do telefone de quem
vende o Audi e o Gol é o mesmo e que, portanto, muito provavelmente, esses carros
estão sendo vendidos por uma agência. Essa e muitas outras inferências podem ser
feitas pelo leitor, construindo assim a coesão, a articulação, a continuidade, e o(s)
sentido(s) desse texto. Quanto à progressão podemos dizer que esse texto traz em cada
elemento informações novas, sendo informativo o suficiente para dar início ou não à
negociação do carro.

d) Hai-kai

a noite pinga uma tem cautela;


estrela no meu olho ajuda o sol
e passa com uma vela
( Paulo Leminski4) ( Millôr Fernandes5)

Saber que esses dois textos são Hai-kais pode tornar menos árduo o trabalho do
leitor, uma vez que vai procurar algum sentido filosófico para eles. Para compreendê-
los, o leitor precisa pelo menos identificar que são textos poéticos e que, por isso,
exigem um trabalho de busca de sentidos nas entrelinhas (mais metafóricos, figurados

4
Leminski, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo, Brasiliense, 1983.
5
Fernandes, Millôr. Hai-Kais. São Paulo, Editora Senzala, 1968.
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

ou indiretos). Os Hai-kais pedem que o leitor aposte na subjetividade, trazendo algum


aspecto da sua vida para construir o sentido do texto, nesse caso, buscando construir
com ele reflexões seja para melhorar sua vida, resolver algum problema, tranquilizar-se
ou simplesmente pelo prazer estético e filosófico desses versos.
Saber quem são os autores desses Hai-kais também pode ser uma informação que
vai orientar ainda mais a leitura deles. A informação de que o primeiro foi escrito por
Paulo Leminski (poeta) e de que o segundo tem a autoria de Millôr Fernandes
(jornalista e humorista) pode convidar o leitor a ver mais poesia, beleza e estética no
primeiro e a sentir o toque de humor no outro.
Não faz sentido esperar desses textos mais dados, maior contextualização, mais
explicitação das ideias, uma vez que, assim como o horóscopo, precisam ser vagos e
para que o leitor consiga transformá-los num “exercício de zen6”.
Note-se que os hai-kais têm uma forma bem determinada. É um poema originário
do Japão e consta originalmente de 17 sílabas em três versos: o primeiro de cinco, o
segundo de sete e o terceiro de cinco.
De acordo com Paulo Leminski, para fazer um hai-kai
▪ “ Escolha temas simples: natureza, primavera, verão, outono, inverno;
▪ O primeiro verso expressa algo permanente, eterno
▪ O segundo, introduz uma novidade, um fenômeno;
▪ O terceiro e último, é a síntese.”
(http://www.terravista.pt/Meco/1911/haikai.htm acessado em 22/12/2007)

São normalmente, compostos por justaposição, isto é, estruturas verbais sem


nexos sintáticos explícitos entre si são colocadas lado a lado de modo que o leitor tenha
de descobrir a relação entre elas. No entanto, seguir essas instruções não garante que um
texto possa ser considerado um bom hai-kai, como explica Franchetti (2002)

“Mas a especificidade do haikai não está apenas na


justaposição, pura e simples. Essa é a forma, por assim dizer,
externa da articulação do haikai. O que o define, pelo menos de
meu ponto de vista, é a atitude que embasa a escolha e a
apresentação dos termos justapostos. Essa atitude consiste na
busca de uma percepção muito ampla ou intensa por meio de uma
sensação. (...)
Parece muito claro que é do contraste entre a fugacidade da
sensação e o seu ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da
memória que nasce boa parte do que é mais característico na
poesia de haikai. Na minha opinião, como leitor de haikai há
vários anos, os melhores poemas desse gênero são aqueles em
que uma sensação muito concreta -- visual, tátil ou auditiva

6
“O haikai, para muitos, é um exercício de zen.”
Franchetti, Paulo. Palpite sobre a questao do zen e do haikai
http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm#zen
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

funciona como disparadora de associações, sentimentos e dados


da memória. (...)
Na concretude do poema, a técnica de manipulação do kigo
é vital para gerar a atitude de espírito que caracteriza o haikai: ele
permite o reconhecimento, através de uma sensação objetiva, de
um conjunto mais amplo em que essa sensação se encaixa e atua
significativamente. E é esse o sabor mais característico da poesia
de haikai.”

Franchetti, Paulo. Haikai e sensação.


http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm#sensacao acessado em 22/12/2002

A aceitação de um texto como um bom hai-kai vai variar como acontece com
muitos outros textos literários. A qualidade de um texto, assim como outros aspectos
como a progressão, articulação, continuidade, não-contradição, etc., vão depender do
julgamento do leitor e não de uma característica do texto propriamente dito. Isso vale
também para os próximos dois textos: Cultura e Samba do Approach.
e)
Cultura
Arnaldo Antunes

O girino é o peixinho do sapo


O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto de carrapato

O cabrito é o cordeiro da cabra


O pescoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
O galinha é um pouquinho do ovo

O desejo é o começo do corpo


Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso

O escuro é a metade da zebra


As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede

O potrinho é o bezerro da égua


A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura

[Antunes, Arnaldo. Cultura. In: Nome. São Paulo, BMG Ariola Discos,1993.]
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

Será que podemos dizer que temos aqui um conjunto de frases sem nexo? Embora
não encontremos os elementos coesivos tradicionais explicitando as relações entre as
frases (pronomes, conjunções, advérbios, etc.), espera-se que o leitor as recupere. Há,
no entanto, nesse texto, muitas indicações do trabalho que o leitor deve fazer, ou seja, as
escolhas lexicais e gramaticais feitas pelo autor apontam para um trabalho inferencial
que deve ser feito. Entre essas indicações podemos citar:
- a estrutura da maioria das frases é: X é/são Y de Z;
- o uso de artigos definidos;
- palavras do mesmo campo semântico – animais (seres vivos, natureza);
- o mesmo tempo verbal em todos os versos – presente do indicativo;
- relações entre X, Y e Z ao mesmo tempo inesperadas e recuperáveis, (“lógicas”,
possíveis, compreensíveis);
- o título e o último verso.
Podemos considerar uma boa compreensão desse texto aquela em que o leitor
conseguir perceber essas indicações e for capaz de construir sentidos que justifiquem
essas escolhas do autor, percebendo que o uso delas tem uma razão de ser, tem um
propósito. Esse texto pode se tornar inaceitável caso o leitor não seja capaz de realizar
esse trabalho, não passando, nesse caso, de frases desconectadas e absurdas.
O título e o último verso parecem dar a chave para a construção de um dos
sentidos possíveis e prováveis desse texto: a constatação de que há sempre uma forma
diferente de perceber o mundo e de que ser bom ou ruim depende do contexto. Nada é
intrinsecamente bom ou ruim. As relações e os valores se estabelecem nas situações. O
autor mostra que isso acontece inclusive com as palavras. O título, Cultura, pode
acionar informações sobre valores artísticos de um povo, expectativa que já no primeiro
verso é destruída e que vai sendo reconstruída ao longo do texto. Essa reconstrução
encontra suporte, sobretudo, no último verso, que volta a nos convidar a retomar essa
palavra em vários sentidos, incluindo esse das manifestações artísticas, uma vez que
elas derivam da criatividade, de uma forma diferente de perceber o mundo, da
subversão da ordem, pelo fato de que elas nem sempre são vistas como positivas,
produtivas e enriquecedoras, etc.
Conhecer um pouco do percurso profissional desse autor também pode ajudar o
leitor a buscar outros sentidos além dos sugeridos nas linhas do texto. Saber que
Arnaldo Antunes é um autor engajado, que já em 1987, junto com os companheiros dos
Titãs alertava para a relevância da cultura (“A gente não quer só comida / A gente quer
comida, diversão e arte”), pode incentivar o leitor a fazer uma leitura das entrelinhas, a
perceber que por traz de uma aparente inocente brincadeira com os bichos há uma outra
intenção, outros sentidos que precisam ser construídos.
O leitor saber da ironia e do tom debochado de Zeca Baleiro, autor do Samba do
Approach, texto do qual passaremos a tratar agora, também pode ser de grande valia
para a compreensão desse texto.

f)
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

SAMBA DO APPROACH
Zeca Baleiro (1999)
Venha provar meu brunch
Saiba que eu tenho approach
Na hora do lunch
Eu ando de ferryboat

Eu tenho savoir-faire
Meu temperamento é light
Minha casa é hi-tech
Toda hora rola um insight
Já fui fã do Jethro Tull
Hoje me amarro no Slash
Minha vida agora é cool
Meu passado é que foi trash

Fica ligada no link


Que eu vou confessar my love
Depois do décimo drink
Só um bom e velho engov
Eu tirei o meu green card
E fui pra Miami beach
Posso não ser pop star
Mas já sou um noveau riche

Eu tenho sex appeal


Saca só meu background
Veloz como Damon Hill
Tenaz como Fittipaldi
Não dispenso um happy end
Quero jogar no dream team
De dia macho man
E de noite drag queen

Baleiro, Zeca. Samba do approach. In: Vô Imbolá. MZA-PolyGram, 1999.

Nesse texto, encontramos mais elementos normalmente apontados como coesivos,


que nos anúncios de carros e em “cultura” como pronomes, conjunções, preposições e
advérbios, mas isso não garante a construção de sentidos. Como nos demais textos
analisados, as conexões ou articulações entre os elementos do texto precisam ser
construídas pelo leitor, inferindo as relações entre eles e buscando recuperar as
intenções das escolhas do autor.
O leitor precisa aceitar esse texto como portador de uma intenção comunicativa e
entender as escolhas linguísticas do autor como marcas dessa intenção. Não se espera
que o leitor pense que o autor não sabe escrever português ou está contaminado pelos
estrangeirismos e por isso usa expressões de outras línguas. Essa pode ser considerada
uma leitura não adequada para esse texto. É preciso que o leitor recupere o contexto em
Coscarelli, Carla Viana. Fundamentos da Leitura. Belo Horizonte, Faculdade de
Letras da UFMG, 2012 (Coleção Próleitura, v.4) p.9-26

que esse texto foi produzido e identifique a quem ele está tecendo críticas, percebendo
assim também a sua continuidade. Ou seja, espera-se que o leitor perceba a crítica feita
ao novo rico (“Mas já sou um noveau riche”), incluindo nessa crítica a necessidade
desse emergente de usar palavras estrangeiras para demonstrar sua “erudição”, riqueza e
poder.
Espera-se que o leitor perceba que “Samba do Approach” parodia a invasão de
estrangeiros (principalmente norte-americanos) ao modo de vida brasileiro e também na
língua, que já se pode notar no título. Alguns termos fazem alusão à malandragem, pelo
estilo informal e ocorrência de gírias, como “me amarro”, “saca só”, “rola”.
A presença de imperativos (“venha”, “saiba”, “fique ligada”, “saca”) e as
referências na primeira pessoa (“eu tenho”, “meu brunch”, “meu temperamento”,
“minha casa”, “minha vida”, “meu passado”, entre outros) expressam a necessidade da
personagem de se valorizar, de “contar vantagem”, de ocultar suas fraquezas exaltando
suas qualidades e posses. O uso excessivo de estrangeirismos é uma forma de
manifestar o exagero e o ridículo a que se expõem muitas vezes os novos ricos.
O encantamento com a modernidade e com o poder econômico, bem como a
realização do desejo de conhecer e morar no exterior também são satirizados nesse texto
com o uso de expressões como ir para “Miami beach”, tirar o “green card”, ter uma casa
“hi-tech”, entre outros. A ironia e o tom hilariante do texto são reforçados pela
declaração, no final do texto, que não sugere a homossexualidade da personagem, mas
sim revela seu deslumbramento.
As palavras em língua estrangeira com “brunch”, “light”, “ferry boat”, “cool”,
“trash”, ativam informações sobre o modo de vida da personagem revelando
contradições que ainda fazem parte de sua vida de quem tem dinheiro, mas ainda não
tem “classe” ou requinte. A personagem toma “brunch7”o que parece ser chique, mas
anda de ferry boat, o que revela seu lado ainda popular; a vida é “cool”, tranquila, doce,
mas já foi “trash”, um lixo. Esse texto mostra assim, que muitos outros “textos”, fazem
parte e precisam ser ativados na construção dos sentidos desse texto8.
Muito ainda poderia ser dito sobre esse e os demais textos, mas isso parece
suficiente para o intuito dessa seção, que é o de mostrar que os sete princípios
constitutivos da textualidade postulados por Beaugrande e Dressler (1981) — coesão,
coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade,
intertextualidade — e as quatro meta-regras apresentadas por Charroles — progressão,
articulação, continuidade e não-contradição – são fatores importantes no processamento
de qualquer texto que dependem da atuação do leitor do texto.

7
brunch = breakfast + lunch.
8
Segundo Beaugrande e Dressler (1981), apud Costa Val (1999) “compreender e aceitar uma
ocorrência linguística como texto (...) envolve os conhecimentos, crenças e ações explícitos e
implícitos no material verbal e a interpretação que o recebedor faz deles a partir de seus
modelos prévios de mundo, de texto e de comunicação. Se se considerar que esses modelos
prévios foram interiorizados pelo recebedor a partir de outros textos com os quais interagiu,
então se compreenderá que o processamento de um texto é basicamente o trabalho de
relacioná-lo com outros textos, ou seja, é uma questão de intertextualidade.”

Você também pode gostar