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HORIZONTES DA NARRATIVA
Inês Assunção de Castro Teixeira
Karla Cunha Pádua
Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs.)
PESQUISAR E CONTAR:
HORIZONTES DA NARRATIVA
1ª Edição
São Carlos / S P
Editora De Castro
2022
Copyright © 2022 dos autores.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5854-9O5-5
CDD23: 37O.71
Todos os direitos desta edição foram reservados aos autores. Editora De Castro
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em contato@editoradecastro.com.br
parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610). editoradecastro.com.br
UM VIVA A INÊS!
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 9
CAPÍTULO 1
CONDIÇÃO DOCENTE DOS PROFESSORES DA REDE ESTADUAL DO RIO GRANDE
DO SUL SOB O OLHAR DO IMAGINÁRIO SOCIAL
Adriele Machado Rodrigues (UFSM)
Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) ........................................................................................ 23
CAPÍTULO 2
DESPERTAR HISTÓRIAS ADORMECIDAS: NARRATIVAS DE GEO-GRAFIAS
DOCENTES
Álida Angélica Alves Leal (FaE - UFMG)
Inês Assunção de Castro Teixeira (FaE - UFMG) .............................................................. 39
CAPÍTULO 3
PARA ALÉM DA REMUNERAÇÃO: PROFESSORAS NOS CONTAM
COMO SE SENTEM VALORIZADAS
Valdete Aparecida Fernandes Moutinho Gomes (UFOP)
Célia Maria Fernandes Nunes (UFOP) .................................................................................. 59
CAPÍTULO 4
IMAGENS DOCENTES: NARRATIVAS SOBRE A FORMAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA DE
PROFESSORES DE CRIANÇAS E SUAS PRÁTICAS EDUCATIVAS
Glaucimary Nascimento Teodósio
José de Sousa Miguel Lopes ................................................................................................... 83
CAPÍTULO 5
RODA DE NARRATIVAS: ENTRE A PEDAGOGIA DA RODA E
A DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA
Fábio Júnio Mesquita (UEMG)
Karla Cunha Pádua (UEMG) ................................................................................................... 113
CAPÍTULO 6
“UMA PERSPECTIVA A PARTIR DAS MARCAS QUE EU CARREGO NA VIDA”:
NARRATIVAS DE DOCENTES SOBRE OS PROCESSOS FORMATIVOS DOS SABERES
QUE ENVOLVEM A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Paulo Henrique Maia Melgaço (UEMG)
José Eustáquio de Brito (UEMG)
Santuza Amorim da Silva (UEMG) ........................................................................................ 131
CAPÍTULO 7
A TRAJETÓRIA FORMATIVA DE UMA PEDAGOGA: A REFLEXÃO DO PROCESSO
DE CONSTRUÇÃO DE PROFISSIONALIDADE DOCENTE
Marilene do Carmo Silva (UFOP)
Regina Magna Bonifácio de Araújo (UFOP) ....................................................................... 163
CAPÍTULO 8
NARRATIVAS-OTRAS Y EXPERIENCIAS SEXUADAS: PROFESORAS
SINDICALISTAS ARGENTINAS
Zulma Viviana Lenarduzzi (Facultad de Ciencias de la Educación - Universidad Nacional
de Entre Ríos – Argentina) ..................................................................................................... 181
CAPÍTULO 9
NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS JUVENIS NO MOVIMENTO CULTURAL SLAM
INTERESCOLAR
Priscila Lima e Silva (UEMG)
Cirlene Cristina de Sousa (UEMG) ...................................................................................... 205
CAPÍTULO 10
TRAJETÓRIAS EM PERSPECTIVA: UMA REFLEXÃO SOBRE NOVOS PERFIS
DISCENTES E ACADÊMICOS NO BRASIL A PARTIR DE DUAS HISTÓRIAS DE VIDA
Elis de Aquino (Freie Universität Berlin)
Renata Melo (UFRJ) ................................................................................................................ 229
CAPÍTULO 11
NARRATIVA(S), IMAGINAÇÃO E CONHECIMENTO EM DUAS EXPERIÊNCIAS DE
REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL
Clarisse Maria Castro de Alvarenga (UFMG)
Ana Paula Soares da Silva Gomes (UFMG) ........................................................................ 251
CAPÍTULO 12
UM COTIDIANO INSTÁVEL QUE SE ALIMENTA DE ESPERANÇA: NARRATIVA DA
DIRETORA DA ESCOLA MUNICIPAL DE BENTO RODRIGUES
Marco Antonio Torres (UFOP) ............................................................................................. 271
CAPÍTULO 13
SESSÃO DE ENTREVISTA
INVESTIGAÇÃO NARRATIVA: APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA DE DANIEL
SUAREZ
Inês A. Castro Teixeira
Karla Cunha Pádua
Glaucimary Nascimento ......................................................................................................... 285
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3 Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica, organizado pela Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)
Biográfica. Disponível em: https://biograph.org.br/
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Inês Teixeira
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6 As referências dos dois livros que resultaram dessa pesquisa estão na nota n. 2 dessa Introdução.
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Karla Pádua
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cinco anos de idade. Meu pai me proibia de brincar na rua, então minha
principal diversão era ler.
Desde pequena, tomei contato com diferentes narrativas literárias,
sendo a aventura a minha preferida. Mainha nos levava, a mim e meus
quatro irmãos, à biblioteca municipal, todas as terças-feiras à tarde, em
Pirapora, no interior de Minas Gerais. A biblioteca funcionava numa esta-
ção antiga de trem. Era um espaço simples que ofertava pequenas peças de
teatro, alguns vídeos e uma coleção modesta de livros. Íamos com Mainha,
ficávamos lá por algum tempo, líamos livros menores e levávamos outros
para devolver na semana seguinte. Os livros foram me acompanhando pela
vida, juntamente com as leituras acadêmicas.
No curso de Pedagogia, no trabalho de conclusão de curso, ouvi ado-
lescentes trabalhadores contando de suas vidas e de como o trabalho acres-
centava outra dimensão tão diversa da vivida em suas comunidades. Anos
depois, quando escrevi o projeto para o processo seletivo para o mestrado
na Universidade do Estado de Minas Gerais, escolhi a investigação biográ-
fica como metodologia. Estava interessada em conhecer as experiências
estéticas de professores das escolas municipais de Belo Horizonte e como
essas experiências repercutiam em suas identidades e na prática educativa.
Entrei para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
e ali tive a imensa alegria de conhecer a professora Karla, que abriu para
mim o universo das narrativas. Eu me apaixonei intensamente pelo tema e
suas diversas possibilidades. Foi muito significativo para mim. Lá também
conheci a professora Inês Teixeira e algumas referências que passaram a
fazer parte da minha trajetória.
No mesmo ano de defesa do mestrado, publiquei uma coletânea de
contos e poesias juntamente com outras mulheres, em Belo Horizonte. Tive
a alegria de escrever a dissertação e fazer parte de uma publicação literária.
O contato com as narrativas em suas diferentes dimensões contribuiu para
ampliar a escuta de meus sujeitos na pesquisa e para a escuta de mim mes-
ma, com a possibilidade de disseminar minhas próprias narrativas.
No mesmo ano me candidatei para o doutorado na Universidade de
Lisboa, em Portugal, para dar continuidade à mesma metodologia, dessa vez
na companhia da professora Carmen Cavaco. A partir dessa experiência, tive
a oportunidade de conhecer outros autores e pesquisadores envolvidos com
a investigação biográfico-narrativa. A partir da elaboração da oficina bio-
gráfica para ouvir a narrativa dos sujeitos de minha investigação de mestra-
do, me inspirei e passei a realizar diferentes oficinas, dessa vez virtualmente.
Cada vez mais percebo como a partilha de experiências por meio de
narrativas orais e escritas possibilita a escuta de vozes muitas vezes invisi-
bilizadas e faz conhecer nuances e especificidades que as pesquisas quan-
titativas não acolhem. Continuo narrando, ouvindo narrativas e escreven-
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Glau Nascimento
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As Organizadoras
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CAPÍTULO 1
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Os protagonistas
Quem são os parceiros desta investigação? Professores e professoras
que atuam na rede estadual do RS no Ensino Médio, que compreendem
os personagens principais desta pesquisa. Afinal, sem esses professores/
coautores da pesquisa não haveria sentido a aproximação aos seus imagi-
nários. Sem suas falas, seus desabafos, relatos de encantos e desencantos
com a profissão estaria distante de seus contextos e não teria elementos
suficientes para compreender a condição docente que permeia os profes-
sores desta rede de ensino. No decorrer do texto a autoria das narrativas
apresenta nomes fictícios, tendo vista que assumimos o compromisso de
não mencionar as identidades e nem as escolas que atuam2.
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3 Este complexo quadro onde se mesclam situações objetivas e subjetivas, materiais e culturais, pode provocar
reações do tipo defensiva (e que combinam com doses variáveis de decepção, passividade, ceticismo e imobilismo) até
as condutas mais ativas e agressivas de mobilização e luta social e política.
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Afinal, quem “não pode dizer que a gente não faz um trabalho dife-
renciado”? A sociedade, a família, a academia? Sabemos que existe uma
pressão social, pois o professor se torna, muitas vezes, objeto de críticas
pelas suas práticas, pelos péssimos resultados dos alunos nos sistemas
avaliativos e pela própria condição precária da educação em nosso país.
Observemos o depoimento do professor A, que indignado com a falta de
compreensão da sociedade, nos contou sobre uma situação que vivenciou
em um evento ao trocar um diálogo com um senhor desconhecido.
As pessoas realmente não fazem noção do que a gente passa. Estava con-
versando com um senhor ele me disse: “Os professores vivem reclamando.
Não tem condição de passarem num concurso melhor e ficam reclamando.
Eles não têm que reclamar e sim trabalhar e pronto.” Quando estamos fra-
gilizados é muito fácil aquele discurso raso de que estamos reclamando,
quando na verdade deveríamos fazer nosso trabalho. Uma vez me pergun-
taram tu trabalha ou só da aula? Talvez esse olhar sobre nós seja porque
aparece esses altos índices de reprovação nestas avaliações do governo que
colocam a culpa em nós sem saber do contexto - (Professor A).
4 A Escola da Ponte é uma instituição pública de ensino localizada em Portugal, no distrito do Porto, e dirigida pelo
educador, especialista em música e em leitura e escrita, José Pacheco. Lá, os alunos não são divididos em classes
nem em anos de escolaridade. Portadores de necessidades especiais dividem o espaço com os outros alunos, sendo
a biblioteca o local central da escola. Cada aluno e a maioria dos orientadores educativos são responsáveis por
algum aspecto do funcionamento da escola e estes últimos acompanham todos os educandos e trabalham para que
conquistem sua autonomia, compreendendo o porquê e o para quê estudar.
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Falando em sobrecarga de tarefas, tem uma que acho absurda que é a ela-
boração dos pareceres, pelo número de alunos que dou aula. Só imagina. Eu
tinha 370 alunos, isto é, tinha que escrever 370 páginas de pareceres. Que
segundo o ideal, deveria descrever as especificidades de cada aluno. Para
isso eu tinha que ter a capacidade intelectual e rapidez de um acadêmico
de doutorado. Ninguém escreve 300 páginas em três meses - (Professor B).
Tudo isso passa pela valorização. Não somos valorizados por passar
até altas horas fazendo pareceres - (Professora I).
A nossa profissão exige muito. Temos apenas 4h de hora atividade a cada
20h. Isso para preparar semanalmente as aulas para seis ou oito turmas
dependendo da escola que trabalha - (Professora C).
Pensando bem por baixo nessa questão de carga horária. Até o salário
poderia ser o mesmo 1200 para as 20h. Mas se o governo permitisse
um maior tempo para organizar uma aula melhor. Poderia até mesmo
ser esse salário. Até para ter uma qualidade de vida - (Professor A).
É verdade, tão bom quando a gente consegue separar algum material
para os alunos. Mas é raro. A gente acaba sempre fazendo as mesmas coi-
sas pela falta de tempo - (Professora H).
Ainda mais porque a gente precisa desses 1200 de 20h, mais os 1200 de
outras 20h. A gente precisa até das 60h para poder sobreviver e conse-
guir um salário melhor - (Professora I).
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Referências
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CAPÍTULO 2
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Nesta pesquisa, por entender que docentes dos anos finais do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio possuem mais acesso aos “produtos cultu-
rais situados” na cidade (FANFANI, 2005), investigamos professores/as do
Terceiro Ciclo do Ensino Fundamental que lecionam em escolas da Rede
Pública Municipal de Contagem, cidade pertencente à Região Metropoli-
tana de Belo Horizonte (RMBH), Minas Gerais, entre fevereiro e agosto de
2010. Por meio da aplicação de questionários, cujos dados de identificação
pessoal e profissional possibilitaram traçar o perfil destes sujeitos, e por
meio de entrevistas semiestruturadas, individuais, gravadas, realizadas
mediante os princípios teórico metodológicos da História Oral, escutamos
suas narrativas1. As entrevistas foram compostas por 03 (três) blocos de
questões: a) Bloco 1 – Locais frequentados na cidade durante a semana/ aos
finais de semana/ em recessos e feriados; b) Bloco 2 – Cidade e escola, com
questões sobre deslocamentos (meios de transporte utilizados, horários),
atividades realizadas nas escolas aos sábados; localização das escolas onde
trabalha; e c) Bloco 3 – Outros espaços frequentados pelos/as entrevistados/
as, como casa de parentes/familiares, amigos/colegas e vizinhos/as; espa-
ços de consumo cultural e lazer, entre outros.
Os/as docentes participantes da pesquisa formaram um grupo de
23 entrevistados2, com traços socioculturais e histórias particulares e co-
muns, seja nos âmbitos pessoais, profissionais e/ou concernente às suas
práticas espaciais. Neste conjunto, composto por 10 residentes em Belo
Horizonte e 13 em Contagem, estavam 13 mulheres e 10 homens, sendo 03
de 30 anos de idade; 07 com 31 e 40 anos; 07 tinham entre 41 e 50 anos e os
06 demais estavam na faixa acima de 50 anos de idade. Do total de entre-
vistados/as, 08 se autodeclararam brancos, 08 declararam-se pardos, 02 se
consideravam pretos e outros 05 não responderam a esse quesito. Quanto
ao estado civil, 10 eram casados/as e/ou viviam com companheiros/as; 08
eram solteiros/as, mas tinham namorado/a e/ou noivo/a; 01 era casado, mas
não vivia com a companheira, 02 eram solteiros e 02 eram separados. Do
total, 11 possuíam filhos, sendo as quantidades e idades as mais variadas.
Todos os docentes possuíam formação mínima em graduação, em
diferentes áreas do conhecimento. Quanto ao tempo de magistério, 02 pro-
1 Nas entrevistas semiestruturadas realizadas para esta pesquisa, a primeira pergunta apresentada aos/às professores/
as, referente aos locais frequentados na cidade durante a semana/aos finais de semana/em recessos e feriados
quando não estavam no trabalho, assemelhou-se ao que compreendemos ser uma “questão geradora” de uma
entrevista narrativa (FLICK, 2004). A partir da questão supramencionada, a maior parte dos docentes participantes
construíu longas narrativas, que contemplavam diferentes aspectos contidos nas demais perguntas do roteiro de
entrevista. A partir disso, coube à entrevistadora “explorar” suas narrativas, seja a partir do roteiro, seja a partir de
questões apresentadas pelo/a próprio/a entrevistado/a. Neste sentido, consideramos que os trechos de entrevistas
trazidos neste estudo correspondem a narrativas, relatos produzidos pelos participantes não totalmente marcados pela
diretividade e caráter previamente delimitado pela entrevistadora; mas pela disponibilidade dos sujeitos descreverem
suas experiências e tecerem reflexões e significações sobre o que estavam relatando.
2 Esta é uma pesquisa exploratória, sem pretensão de generalização e representatividade estatística.
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3 Paráfrase de passagem da obra Sertão Veredas, de Guimarães Rosa: “O Sertão é dentro de nós”.
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4 Além destes, um dos principais motivos para os docentes levarem para suas casas suas tarefas docentes está
associado às suas condições laborais precárias, regimes e contratos de trabalho que envolvem longas jornadas e
intensos ritmos de trabalho e pífios níveis salariais.
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A maioria dos meus amigos particulares são professores. (...) É mais cos-
tume deles irem à minha casa. E como eu sou uma pessoa extremamente
caseira, é mais um costume assim. Eles: “Ah, vamos sair?”. Eles gostam
muito de sair, a grande maioria dos meus amigos. E eu: “Ah não! Estou te
esperando aqui em casa! Vem cá que vamos fazer alguma coisa aqui em
casa”. Então eu tenho este título já, este rótulo de gostar de ficar em casa.
“Ah, a Renata, programa com ela é em casa!”. Então tudo assim, a gente
tenta melhorar as coisas em casa para que a gente possa estar recebendo as
pessoas, eu acho que a gente fica mais à vontade, não tem tanto barulho. A
escola é muito barulhenta! Então assim, final de semana, que você descan-
sa sua cabeça e você vai pra um lugar barulhento, você não dá conta! Então
você precisa realmente de um lugar assim. Eu moro num lugar no alto, que
é silencioso, você escuta os passarinhos, como se fosse roça mesmo! E aí
eu sinto que minha cabeça, graças a Deus, ela está bem, sabe? Porque eu
estava assim, num período que eu pegava a Via Expressa, eu ia pra casa, eu
estava muito cansada, muito mesmo. E assim, a qualidade de vida minha
melhorou sensivelmente a partir do momento que mudei de casa. Então,
se você vai num bar ou num shopping, você tem que tolerar barulho. Olha
o barulho que a gente tolera a semana inteira... (Renata apontou o dedo
para a janela da sala de aula em que estávamos realizando a entrevista,
indicando o barulho feito por alguns estudantes que estavam no primeiro
pavimento, brincando, conversando alto e gritando). Então a televisão tem
que ser bem baixinha, as pessoas, a gente procura conversar baixo, porque
na escola a gente já fala num tom mais alto. Então o ambiente te ajuda!
Então se é uma casa tranquila, se é um lugar silencioso, vai te ajudar e até
te desestressar, te acalmar, porque a sua semana inteira é um batidão.
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versar! Eles só gritam! Aí eu, assim, finais de semana eu prefiro assim uma
coisa mais light, mais tranquila, sabe? Com pouco barulho! (risos) Então
são programas assim, mais tranquilos, mais calmos - (Joana).
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pé, para irem e/ou voltarem da/s escola/s em que trabalha/m, conversando,
contando as novidades e/ou fofocas sobre assuntos variados, os pedaços-
-trajeto; 3) quando estão nos “bares da vida” com colegas de trabalho e 4)
quando estão juntos em movimentos de resistência como os “palcos de
greve” (TEIXEIRA, 1998), constituídos em espaços públicos, como praças,
ruas e avenidas.
Destacamos, neste estudo, o pedaço dos bares, presente nos relatos
de alguns/mas entrevistados/as. Tais locais costumam funcionar como um
palco de uma transição com três aspectos peculiares, conforme Pajak e
Blase (1984 apud VIEIRA; RELVAS, 2003). Tratando-se de professores/as, o
primeiro é que o bar pode ser uma oportunidade de discutirem problemas
vividos na escola, reduzindo o impacto dos mesmos sobre sua vida privada.
A passagem do ambiente da escola para o bar refere-se à transição de uma
dinâmica extrafamiliar para uma dinâmica intrafamiliar de maneira não-
-abrupta, mas gradual e paulatina. Tal significado está intimamente ligado
à oposição entre a casa e a rua, uma vez que o pedaço, espaço de transição,
pode amenizar impactos que um dia de trabalho cansativo de trabalho te-
ria sobre a família, por exemplo. Fábio relatou:
Sempre que a gente passava por uma situação difícil, situação de trabalho,
e isto virou um código de relacionamento entre a gente, [...] a gente passou
por muitas situações difíceis, um olhava pro outro e falava: “Vamos tomar
uma?”. (risos) [...] Porque a gente trabalhava, dava aula à tarde e todo mun-
do tinha este perfil, dava aula à tarde e à noite [...] Então a gente resolvia as
nossas questões e até às vezes de relacionamento interpessoal no trabalho a
gente resolvia ali. [...] Aí não sei se é o álcool (risos) - (Fábio).
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construção, mas a ideia, muitas vezes, é na mesa de bar. [...] Então eu acho
que é um espaço importante. O bar tem o seu veio democrático (risos), que
é melhor do que o formal - (Jairo).
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Por fim, salienta-se que, nos relatos dos/as docentes, a própria casa
e o pedaço docente se mostraram, por vezes, impactados negativamente
pelo tipo de trabalho que realizam. Alguns/mas professores/as relataram
seus esforços, em maior ou menor grau, para não misturarem o “lá fora”
(o universo da própria casa e do pedaço) e o “aqui dentro” (universo da
escola)5. Observou-se que tal questão está diretamente associada às “dife-
rentes posições na carreira docente” (HUBERMAN, 1992): quanto maior a
experiência profissional, maior o empenho em separar as referidas esferas
da vida. Tal dualidade é apontada por Gilberto, que estava prestes a se
aposentar. Quando questionado sobre o que conversava com seu irmão,
professor, e sua namorada, pedagoga, quando se encontravam, disse:
Nunca de professor. Nunca assunto de escola. A gente evita, é lógico que
aparece, aparece de vez em quando porque não tem como. Mas a gente tem
um lema nosso: jamais, fora da escola, conversar sobre a escola. Lugar ne-
nhum, nem com a minha família, nem com ninguém. [...] É uma decisão
nossa. [...] Porque não vale a pena. Trabalho você tem ele quando você está
dentro e só nele. Fora dele, se você começar a envolver seu ambiente social no
seu trabalho, você não tem vida social. Você passa a ter vida só de trabalho.
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6 Termo utilizado por Certeau e Giard (1997, p. 201), conforme indicado na epígrafe deste artigo.
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substituível e de único, marcada pelo espontâneo, pela festa, pelo lúdico, pela
possibilidade do porvir, está pouco presente em suas vidas. No entanto, nem
por isto deixa de ser mencionada nos relatos dos/as docentes. Espera-se que
a cidade-obra possa estar mais presente, visível e constante nas vidas dos/as
professores/as, pelo que essa experiência da cidade pode oferecer-lhes.
Nas geo-grafias docentes, ainda deve-se reiterar que, constituindo
parte de sua singularidade, entre outros de seus traços e trançados, as
entrevistas trouxeram-nos a casa, preponderantemente. E nela, as famí-
lias, que também circulam com estes sujeitos por outros cantos da cidade.
As ligações com as famílias, ao lado do trabalho, são centrais, sendo alvo
maior de atenção, de cuidado, de preocupação e de dispêndio de tempo no
cotidiano dos/as professores/as. Os espaços habitados são, principalmente,
os da casa – territórios da vida familiar -, assim como os da escola – terri-
tórios do mundo do trabalho –, pouco sobrando para outras experiências.
Ademais, salienta-se que, na casa, a escola e o trabalho se fazem presentes,
assim como nos pedaços dos bares e outros mais.
Por fim, à procura das vidas cotidianas de sujeitos-docentes impres-
sas em suas relações com os espaços da metrópole, foco deste estudo, bus-
camos a palavra Geografia. O termo, inicialmente tomado como metáfo-
ra, foi transportado e transfigurado em um construto teórico-conceitual,
as geo-grafias, analisadas a partir de seus termos fundadores: o espaço e a
escrita, a cidade e a escritura, os lugares, os territórios, as paisagens, os
sujeitos e suas caligrafias espaciais. Grafias sobre o espaço, sobre o chão,
geografias que falam e contém a vida, demarcando histórias individuais e
coletivas situadas espacial e temporalmente nas teias da metrópole. Vidas
de professores/as, por isso geo-grafias docentes. Grafismos de experiências
que se edificam e expressam em percursos e histórias, em sentimentos,
sentidos e significados relatados pelos sujeitos ao narrarem suas idas e
vindas, seus movimentos e paradas nos espaços-tempos metropolitanos,
desvelando suas marcas, sinais e inscrições. Revelando nos trançados dos
traços, a trama dos enredos de suas vidas e percursos com a cidade, sobre a
cidade, ora se referindo aos fatos, ora falando de sonhos, projetos, quimeras.
Algo dessas grafias foi aqui despertado em pequenos traçados. Em
sua forma mais completa, geo-grafias docentes (ou de quem seja), não cabe-
riam em um artigo. Elas ultrapassam qualquer tamanho, qualquer medida,
qualquer intenção, pelo que contém víveres e histórias. Serão sempre res-
taurações parciais, “narratividades” inacabadas...
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Referências
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CAPÍTULO 3
Introdução
Nos últimos anos, os debates em torno da valorização docente têm
sido cada vez mais frequentes entre os profissionais da área, representan-
tes da categoria, pesquisadores e sociedade civil, de modo geral. Essa in-
tensificação das discussões em torno da temática se deve à sua indiscutível
importância para a qualidade do ensino e para a satisfação profissional
dos/das professores/as.
No Brasil, o conceito de valorização docente emergiu na Constituição
Federal de 1988 (CIRILO, 2012), vinculado à garantia dos planos de carreira
para o magistério público, piso salarial profissional e ingresso na carreira
por meio de concurso público de provas e títulos. A partir de então, outras
determinações legais se sucederam para consubstanciar, do ponto de vista
legal, o conceito de valorização docente, entre elas: a Lei do Piso Salarial
Profissional Nacional (PSPN), as Diretrizes Nacionais para os Planos de
Carreira e Remuneração dos Profissionais da Educação Escolar Pública
Básica, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamen-
tal e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação (FUNDEB) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Nessas
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
delas nos disse: “Temos que ser valorizadas não só financeiramente, mas
também do ponto de vista humano”.
Os achados dessa pesquisa estão expostos da seguinte maneira: na
primeira seção, apresentamos as professoras participantes da pesquisa,
destacando os aspectos principais de seu perfil individual e coletivo. Ca-
racterizamos ainda, brevemente, o município onde lecionam.
Na segunda seção, analisamos os aspectos objetivos da valorização
docente que emergiram das narrativas das professoras, sobretudo, no que
se refere às condições de trabalho, cujo aspecto envolve uma complexidade
de fatores que não se limitam à dimensão salarial. Embora o salário seja
um elemento central nos debates sobre a valorização docente, constata-
mos que a remuneração, por si só, não é capaz de proporcionar a valori-
zação docente, uma vez que outros fatores como as condições de trabalho
interferem, diretamente, na realização do trabalho do professor.
Na terceira seção, investigamos a relevância das interações humanas
vivenciadas na profissão. Compreendemos que o reconhecimento pelo tra-
balho que o/a professor desenvolve cotidianamente representa um tipo de
valorização importante para o/a docente. Em outras palavras, o reconhe-
cimento subjetivo atravessa as relações que o/a professor/a estabelece na
profissão, ao passo que o reconhecimento objetivo envolve as políticas de
valorização docente.
2 No Brasil o termo “cor amarela” refere-se à população de origem japonesa, coreana e chinesa.
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Eu espero que mais cursos possam acontecer pra gente, né? E que o profes-
sor seja muito mais valorizado. Financeiramente, se você olhar em Minas
Gerais, o salário do professor de Mariana é um dos melhores salários de
Minas Gerais. Claro que a gente necessita mais? Necessitamos sim. Temos
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que ser valorizados sim! Mas, não só financeiramente, mas também do pon-
to de vista humano. Valorizar o professor, o ser humano em si. Dar a ele
condições de desenvolver um bom trabalho, né? Não só financeiramente,
mas também dentro de sala de aula, recursos materiais que a gente necessi-
ta também - (Professora Raimunda3).
3 De acordo com o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto,
utilizamos de pseudônimos para preservar a identidade das professoras.
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papel. Não vejo necessidade de tanto registro. Eu acho que, sabe? Que a
gente tem que ficar todo o tempo registrando. Registra o que que você tá
fazendo no momento de AC. É... muito papel, muito detalhar tudo e isso,
eu não vejo necessidade - (Professora Edinalva).
4 Conforme determina a Lei 11.738/2008, conhecida como Lei do Piso, o valor do mesmo corresponde a uma jornada
de, no máximo, 40h semanais para professores com formação de nível médio.
5 Observa-se um significativo aumento salarial ocorrido em 2014, ano de implantação do plano de carreira no município.
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aula é como se fosse um teatro. E no teatro, você tem que sair aplaudido, né?
(risos) [...] É o retorno diário que eles que me dão que me “incentivam”. As-
sim, que mais me incentivam. Saber que, realmente, tô conseguindo influen-
ciar coisas boas. Que, realmente, esse otimismo por acreditar que amanhã
vai ser melhor, que de certa maneira, eles acabam recebendo e também se
transformando. Isso não tem preço, né? - (Professora Cristina).
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Tudo que você propunha fazer a família tava disposta a participar [...] Teve
até uma reunião de pais que eu falei isso. A escola sozinha não faz nada
pelo aluno, né? É, uma participação da família que tem que ter. E nem a
família faz sozinha. Então, eu falava que o sucesso que eu tava tendo com
os meninos é porque as famílias participavam muito, muito mesmo - (Pro-
fessora Ângela).
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ção com eles, pergunta se veio algum pai. Vieram uns 4 pais. Vieram uns
4 pais só! Então assim, você fica sem ter o que fazer. Eu acho que isso aí, a
gente está sendo desvalorizada, porque se a família não quer ajudar, a fa-
mília não tá apoiando o professor, nem nada, então assim, você está sendo
desvalorizado - (Professora Ângela).
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[...] eu trabalho em uma outra escola com a mesma série e a atividade que
eu dou lá, eu não consigo aplicar aqui. E é a mesma série. Por que que tem
essa diferença? Por que que tem essa diferença entre o ensino? Por que lá é
particular? É, mas, não só porque lá é particular... As crianças são as mes-
mas. A atividade é a mesma. Não deveria ter essa diferença de ensino. Aí, a
gente fica ainda mais desmotivada... - (Professora Ângela).
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muito unida. E isso contribui muito pra que a gente permaneça no lugar,
né? E a maioria que aqui estão, é dez, quinze, vinte [anos]. Toda a vida
trabalhou aqui e continua, não têm vontade de sair daqui, né? Principal-
mente, nós de 1ª a 4ª, por causa da questão da equipe mesmo. Por causa
da questão de estarmos sempre juntas, contribuindo, né? Pra tentar, pelo
menos, sanar um pouco das dificuldades que essa comunidade enfrenta
- (Professora Raimunda).
Considerações finais
Partimos do princípio de que é necessário investigar, sob a perspec-
tiva dos/as professores/as, a percepção de valorização docente. Ainda que
outros estudos tenham contemplado a temática, acreditamos na riqueza
de uma escuta atenta e cuidadosa da voz dos/as professores/as como um
recurso auspicioso para as pesquisas em educação e, mais especificamen-
te, para as investigações relacionadas às questões docentes. Parafraseando
Lima, Geraldi e Geraldi (2015, p. 18): ao invés de apenas falarmos sobre
os/as professores/as, optamos por falar com eles e a partir deles, uma vez
que são os próprios/as docentes que têm maior propriedade para dizer dos
aspectos que lhes proporcionam a percepção de sentirem-se valorizados
profissionalmente.
A opção teórico-metodológica que embasou, por meio das entrevis-
tas narrativas, uma aproximação com os participantes da pesquisa, pos-
sibilitou-nos uma imersão na realidade da profissão docente nas escolas
onde atuam. Realidade esta que demonstra o atual contexto sócio-históri-
co em que se situa a docência.
Constatamos, a partir das narrativas das professoras, que algumas
conquistas que foram objeto de luta do movimento docente se concretiza-
ram no município, tais como a implantação do plano de carreira, a forma-
ção em nível superior e a elevação salarial.
Embora a remuneração tenha sido a dimensão mais ressaltada nos
discursos políticos e nos debates promovidos pela mídia, verificamos que
o salário, por si só, é insuficiente para assegurar a valorização docente,
tendo em vista que outros fatores incidem sobre a realização do trabalho
do professor. As condições de trabalho caracterizadas, muitas vezes, pela
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Referências
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CAPÍTULO 4
Figura 1 – Roda
Fonte: Papelícula.
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vemos como os sujeitos têm noção de que sua conduta na escola também
é alvo de observação e imitação por parte dos estudantes. E essa noção os
leva a refletir suas ações e querer conduzir sua prática da melhor maneira
possível. Dessa maneira, como aponta Oliveira (2012, p. 308),
nossas histórias são recriadas, revisitadas no sentido das refe-
rências construídas: temos recursos experienciais e também
representações sobre escolhas, influências, modelos, formação
de gostos e estilos, o que é significativo para a reflexão sobre o
que somos hoje e como nos constituímos no que somos, bem
como para as possibilidades autopoiéticas que nos singulari-
zam (ou não) como pessoas e professores.
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escola, da prefeitura, do sistema. Aí é uma outra história, que você tem que
aprender a lidar. Como todo mundo, no primeiro mês eu tive vontade de ir
embora pra casa e nunca mais voltar, justamente porque dão pra gente [que
está no início da docência] as turmas mais difíceis. Eu acho que eles fazem
um teste, pra gente desistir - (grifos nossos).
Nos questionamos se, ao dizer “como todo mundo”, Flávio deixa pis-
tas de que é uma constante o fato do professor no início da docência passar
por essas situações. Mariana relatou que busca apoio nos colegas da facul-
dade, que trocam experiências sobre suas realidades: “a gente encontra
muito, sabe? E a gente gosta muito de trocar experiência. Às vezes a gente
tá: o que eu faço agora? Aí uma vai lá e fala: ah, isso já aconteceu comigo,
eu fiz isso isso e isso...”
Os quatro sujeitos relataram situações em que tiveram que dar aulas
sobre conhecimentos que não detinham, que não tiveram formação espe-
cífica, dando indícios de que isso se configura como mais um desafio na
docência, como observou Flávio: “eu acho um peso muito grande um pro-
fessor só ficar com todos os conteúdos”. O pedagogo atua como regente de
classe e tem que ministrar aulas de todas as disciplinas nas séries iniciais.
Mariana relatou que tem dificuldades no ensino de arte, pois as colegas
ainda utilizam práticas como entregar desenhos aos estudantes para colo-
rir. “Eu percebi o quanto a Arte na escola é dada de forma muito superfi-
cial”. Ela ressaltou ainda que entende que os alunos deveriam ter contato
com outras expressões artísticas.
A arte é bem esquecida. E eu tô pegando meninos lá de baixo, lá do pri-
meiro ano. Se isso não for ativado agora, quando eles chegarem no oitavo
ano, eles não vão ter conhecido outros tipos de arte. Existe pintura, existe
colagem, existem muitas coisas, sabe? Existe a arte brasileira, a arte afri-
cana, a arte americana. E isso não é ensinado e nem vai ser por enquanto,
pelo que eu tô vendo.
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Nessa fala, Zenira indicou sua relação com a Literatura, tanto como
uma preferência pessoal, como para abordagem em sala de aula. Nes-
se sentido, a Literatura se configura como uma possibilidade tanto de
experiência estética como de uma expressão mais concreta de Arte e mais
acessível, mais possível de ser trabalhada em sala de aula, para que eles
também possam fruir a experiência estética dessa forma de Arte.
Eu trabalho demais com eles a questão da leitura, que é bom ler, que é gos-
toso ler e que você tem que ler o que você tá com vontade. Mas ler por ler,
pelo prazer de ler é diferente, é uma coisa muito gostosa. Uma coisa muito
bacana que tem na minha escola é que a gente vai semanalmente à biblio-
teca com os meninos, troveja o que trovejar. A gente vai com os meninos
pra eles lerem um pouquinho, escutar uma história e escolher um livro pra
ler em casa. Aí chega dentro da sala e a gente tem que degustar um tiquinho
daquele livro. Não tem graça se você chegar dentro da sala e enfiar o livro
dentro da mochila. Você tem que começar, pelo menos um pouquinho. Pra
mim não é perda de tempo. Nós chegamos da biblioteca e eu deixo pelo
menos uns vinte minutos, meia hora, para folhear o livro que pegou. Meu
aluno vai ler o que ele tá com vontade de ler. É claro que se ele for uma
criança, eu não vou deixar ele pegar um livro que induza à pornografia, à
violência. Não vou deixar. Vou induzi-lo a pegar outras coisas. Aí, ele che-
ga dentro da sala, ele precisa folhear aquele livro pra chegar em casa com
mais vontade de ler. Isso eu faço com meus alunos dentro da sala e com
todo aluno que eu trabalho, mesmo se eu não estiver dando aula de Língua
Portuguesa, de Literatura. Às vezes acontece de eu pegar outras matérias
e eles descobrem o prazer da leitura comigo. Descobrem, porque eu faço
questão. E eu tenho uma estratégia com turma de meninos muito levados
e difíceis, de sempre ter no meu armário, na minha bolsa de escola, revista,
livro, essas coisas, sabe. Então, eu deixo ele ler - (Zenira, grifos nossos).
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com suas diferenças. Nossos sujeitos deram indícios de que buscam atuar
priorizando o diálogo e a escuta, reservando parte de suas aulas para ouvir
os relatos de seus estudantes sobre suas realidades. Os quatro docentes ou-
vidos pela pesquisa deram indícios de que atuam de maneira diferenciada
dos pares, com uma postura mais crítica, sensível e horizontal, acolhendo
as diferenças que seus estudantes trazem. Flávio enfatizou: “não pretendo
aposentar como professor, mas, por enquanto, o que eu puder fazer pela
educação eu vou fazer. Eu tenho que entrar pra fazer a diferença na vida da
criança, não tenho só que ensinar português e matemática”.
Outro ponto comum nas narrativas dos sujeitos foi a realidade desa-
fiadora que seus estudantes enfrentam. Pela fala dos sujeitos, ficou eviden-
te que tal realidade interfere na aquisição dos conhecimentos dos alunos.
Para lidar com essa situação, eles têm que passar boa parte de suas au-
las conversando com eles, dando atenção às suas queixas, às suas dúvidas.
Além disso, os docentes ressaltaram a importância da escuta para a ação
pedagógica. Flávio reforçou a necessidade de um ensino que sirva para a
vida do estudante, no sentido de instrumentalizar para o mundo, nos as-
pectos sociais. Quando ele abordou essa questão, pareceu remeter ao fato
de que foi criado sozinho, por ser filho único e crescer ao lado da mãe,
apenas, e ter que enfrentar atividades domésticas desde pequeno, já que a
mãe trabalhava fora. “E ela sempre me falava, eu tô te criando pro mundo,
eu não vou estar aqui pra vida toda”. Nesse sentido, percebemos a história
de vida do sujeito atuando para a aproximação aos seus estudantes, numa
realidade comum, com a qual se identifica.
Para os docentes, as condições de seus alunos revelam a carência de
referências em seus contextos familiares, o que implica na valorização dos
professores, que assumem esse papel. Quanto a isso, chama nossa atenção
a fala de nossos sujeitos, que reconhece que suas atitudes são tidas como
exemplares para seus estudantes, refletindo na capacidade de aprendiza-
gem. Concordamos com Mariana quando ressaltou que “nosso papel como
professora é muito importante nisso, sabe? Porque os meninos passam
muito tempo na escola”.
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da! A mãe tá alisando o cabelo dela. Alisando assim, com aqueles alisantes
mais terríveis que você pode imaginar. Aí vem a família toda é negra e alisa o
cabelo, então uma coisa que é tradição na família. Mas, em compensação, já
tem muitas que soltam o cabelinho, desde novinha e tá aquele girassolzinho
assim, sabe? Ou cogumelo, como elas falam assim: professora, tô parecendo
um cogumelo. Então, tem muito preconceito - (Zenira, grifos nossos).
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muito pra isso, né, eu acho que a minha briga maior com a escola hoje é
por causa disso, é o fechar de olhos pra isso e fazer com que outras crianças,
outros adolescentes sofram aquilo que muitas vezes nós que estamos ali, os
adultos, tivemos que sofrer e estamos lutando pra não sofrer mais (Flávio,
grifos nossos).
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Lídia, por sua vez, narrou que os estudantes “são muito pobres, eles
não têm uma família estruturada, às vezes é uma mãe que bate demais,
um pai alcoólatra, ou não tem mãe nem pai, alguns vivem só com a avó.
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A maioria é assim, tem um ou outro que tem lá a família padrão, mas não
é a regra”. Quanto à atuação dos homens na escola, Zenira indicou que
trata-se de uma figura masculina positiva, muitas vezes ausente na vida
das crianças. “Porque não é só uma presença masculina, é uma presença
positiva. Ele tem presença masculina às vezes em casa, mas não é positiva.
É uma pessoa agressiva, alcoólatra. Ou não tem nenhum homem”.
Porém, essa presença masculina evoca também preconceitos, em
face do medo da violência contra a criança, como aponta Flávio, que, desde
o período de estágio docente, encontrava dificuldades, tendo que exercê-
-lo em empresas, já que as escolas não o recebiam. “O período de estágio
foi um sacrifício para mim. Mesmo hoje, para conseguir dobras, é difícil,
já fui recusado várias vezes”. Monteiro e Altmann (2014, p. 730) indicam
que o estranhamento “refere-se não só à presença do homem na função
de professor, à sua escolha profissional, mas também aos procedimentos
adotados em momentos de cuidados corporais e à orientação sexual de
crianças”. Flávio narrou um pouco como foi o início de seu trabalho.
Aí foi uma nova etapa, um novo desafio de minha vida, entendeu, homem,
homossexual, ter que encarar a escola, ter que chegar nas escolas e ver os
olhares de preconceito contra mim. Perceber o medo não das crianças, mas
dos pais, dos diretores, dos adultos, entendeu? O medo de que eu chegasse
próximo das crianças. Eu tive que lidar com isso tudo.
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Ainda que ninguém possa de fato emancipar outro sujeito, pode ser
tocado pelo diálogo com alguém que já passou pela experiência. Flávio dá
indícios de uma postura reflexiva e atenta às necessidades dos estudan-
tes que possam estar lidando com as mesmas dificuldades que ele passou.
Suas narrativas podem contribuir para a reflexividade dos alunos, a partir
de sua representatividade. Porém, Flávio apontou que não se autodecla-
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la, imagina fora? Quando a gente consegue, intervém, porque são meninos
maiores que a gente. E aí isso é tão enraizado que às vezes a gente vai xin-
gar os meninos e as meninas defendem os meninos. Porque isso é o costume
deles. Eles tão ali na casa deles, acontece a mesma coisa, isso é uma coisa
natural pra eles, infelizmente! Mas assim, sempre que a gente pode, a gente
intervém. Mas isso é uma das piores coisas que eu vejo na educação, a falta
de respeito com o próximo - (Mariana).
Eu valorizo essa autoestima dos meus alunos, eu mostro pra ela que, en-
quanto menina, enquanto mulher e tal, ela tem o direito de ser respeitada e
ser o que ela quiser. Falo demais com os meninos essa questão do respeito a
elas. De que tudo tem o seu limite, né? De brincar junto, mas brincar junto
é respeitar... - (Zenira).
Elas têm que aprender a se achar bonita, sabe? Eu acho que mulher... Ho-
mens também, mas as mulheres principalmente, têm que se achar bonita, a
gente tem que ser feliz com a gente mesma, com o nosso corpo, com a nossa
aparência, porque já inventaram tantos padrões pra gente, pra nos oprimir,
que agora é hora de se libertar e se achar bonita do jeito que você é - (Lídia).
Algumas reflexões
Neste trabalho, não tivemos intenção de aprofundar sobre as ques-
tões trazidas pela prática docente, mas abordar as condições que atuam nos
processos de identificações dos sujeitos pesquisados. Por ser a docência a
identidade que mais aparece nas narrativas, percebemos que é uma face que
toma conta de boa parte da vida dos sujeitos. Além disso, pudemos perceber
que a formação ético-estética pode contribuir para uma prática mais sen-
sível, que seja capaz de acolher as particularidades que a vivência escolar
aciona. E ainda, defendemos a ideia de que uma formação sensível amplia
as possibilidades de deslocamento do saber, do olhar, da atenção, abrindo
outros horizontes, outras maneiras de compreender o mundo, de compre-
ender o outro. O outro estudante, o outro colega, o outro pertencente à co-
munidade escolar age, dessa maneira, como um outro provocador que pode
mobilizar o aprendizado de si e a compreensão de mundo.
Notamos, todavia, que é imprescindível conhecer formas para lidar
com os desafios como os que os sujeitos trouxeram como cotidianos de sua
prática educativa. Diante de uma realidade cada vez mais complexa, não
cabem mais noções congeladas sobre as manifestações da vida, sobre as
diversas formas de viver existentes.
Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só
poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em con-
junto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma
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Referências
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CAPÍTULO 5
Introdução
Este texto resulta da dissertação de Mestrado em Educação, desen-
volvida na Universidade do Estado de Minas Gerais1, com origem no inte-
resse em ter as narrativas das experiências de jovens contadas e recontadas
por eles/as próprios/as.
A proposta nasceu ao longo do ano de 2018, quando iniciamos os estu-
dos sobre as possíveis aproximações entre a “Pedagogia da Roda”, praticada
pelo Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, o CPCD, na cidade de
Araçuaí, no nordeste mineiro, e a “Documentação Narrativa de Experiên-
cias Pedagógicas”, experienciada por Daniel Suárez e outros/as professores/
as pesquisadores/as. No trabalho, a Pedagogia da Roda foi investigada por
meio da articulação entre a Documentação Narrativa de Experiências Peda-
gógicas e a roda de narrativa como a metodologia resultante do mergulho
em todas essas teorias, práticas e experiências. Por meio desse recorte, en-
trevistamos oito jovens que participam de projetos do CPCD, sendo quatro
de cada sexo, com idades entre 16 e 27 anos de idades.
Neste entendimento, para estabelecer as possíveis relações e dese-
nhar o que veio a ser as “rodas de narrativas”, foi primordial compreender,
separadamente, as entrevistas narrativas, a Pedagogia da Roda e a Docu-
mentação Narrativa de Experiências Pedagógicas. Diante disso, expomos
sucintamente cada um destes tópicos com vistas a ampliar o conhecimento
1 Com o título: O espaço onde a conversa rola”: Pedagogia da Roda e narrativas juvenis em Araçuaí-MG, a pesquisa
investigou como a Pedagogia da Roda e a cultura popular cooperam com as práticas não formais de aprendizado
propiciando possíveis transformações e participação social dos jovens de Araçuaí – MG através dos projetos sociais do
CPCD. Esta pesquisa contou com bolsa da Capes.
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2 As questões exmanentes são as questões da pesquisa ou de interesse do/a pesquisador/a que surgem a partir da
sua aproximação com o tema a ser pesquisado. As questões imanentes são temas e tópicos trazidos pelo informante.
Parte do trabalho do/as pesquisador/a é transformar as questões exmanentes em imanentes, sempre utilizando a
linguagem do/a entrevistado/a.
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ciprocidade” (ROCHA, 2000, p. 27). Caso não exista esta troca de saberes,
Tião Rocha entende que os interlocutores estão trocando “seis por meia
dúzia”, como já ensinava o ditado. É o mesmo que dizer que não houve uma
troca verdadeira, não existiu uma relação de educação entre os/as envolvi-
dos/as. Apenas uma das duas partes aprendeu, ou talvez nenhuma tenha
aprendido, visto que o que lhe fora ensinado não encontrou boa recepção
no outro, e acabou sendo descartado, como em uma conversa qualquer.
Conscientes de não falar para o outro, mas falar com o outro (FREI-
RE, 1989), os jovens se reúnem. Atividade que requer alguns cuidados por
parte do educador que irá mediar a roda para não correr o risco de “conver-
ter-se num bate-papo desobrigado que marcha ao gosto do acaso” (FREI-
RE, 1992, p 118). Sendo só um dos desafios diante da Pedagogia da Roda,
que se bem executada promove avanços nas trajetórias dos jovens que a
integram. É nas rodas que:
[...] o ouvir o outro ajuda educandos e educador a perceber que
as experiências, as vivências, as opiniões e modos de ser são
diferentes para cada pessoa. O outro se torna um espelho com-
posto por muitos outros espelhos a refletir as individualidades
que estão em constante formação. A valorização e o respeito
a opinião do outro vão sendo então construídos por meio de
trocas que se estabelecem entre educandos e educadores. Nas
trocas de olhares, percepções, gestos, falas, curiosidades, me-
dos, inseguranças, risadas... É que cada um vai significando
sua identidade, percebendo-se integrante e integrador de um
grupo. São também, esses momentos que possibilitam o reco-
nhecimento da existência do eu e do outro. (ZANINI; LEITE
apud KONRATH, 2013, p. 28).
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3 De acordo com o próprio site institucional, “As fabriquetas são núcleos de produção de tecnologias populares,
com características e funções comunitárias, que visam o fortalecimento da renda familiar. São autossuficientes, e
encontram-se no estágio de expansão de produção e comercialização regionalizada, caminhando gradativamente para
sua autonomia administrativo-financeira, gerando renda e trabalho regular para os seus participantes” (CPCD, 200-?c).
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que eu não visitei. Assim participaram das Rodas de Narrativas, oito jovens,
quatro de cada gênero, com idades entre 16 e 27 anos de idade. Sendo, 16, 17,
20 e 23 anos as idades das jovens; e 22, 22, 22 e 23 dos jovens que se volun-
tariaram para escreverem suas histórias. Além destes, um casal de jovens se
voluntariou para participar, vindo a desistir ao longo do processo, alegando
falta de tempo para desenvolver a escrita das narrativas, ambos trabalham
oito horas por dia e frequentam instituições de ensino noturno. Dois ou-
tros jovens que foram convidados para compor as Rodas de Narrativa não
aceitaram o convite, pois disseram estar sobrecarregados com os trabalhos
pendentes naquela semana, pois são cooperados e trabalham com registro
de microempreendedores individuais, recebendo por produção.
Com vistas a conhece mais essas duas fabriquetas, mais voltadas à
tecnologia digital, recorremos mais esta vez ao site institucional da ONG,
onde lemos:
A Fabriqueta de Softwares nasceu de um desafio: se a gente
faz artesanato, por que não pode fazer softwares no Vale do
Jequitinhonha? E assim foi.
Partimos do nada, lá em 2008, e hoje, a partir de formações
e muita pesquisa, aprendemos a fazer sites, blogs, bancos de
dados, jogos eletrônicos e gestão de redes sociais.
Com eles a gente tenta aproximar o TICs – Tecnologias de In-
formação e Comunicação dos TACs – Tecnologias de Acolhi-
mento e Convivência todo dia, nunca abandonando o processo
coletivo de criação e a perspectiva libertadora que a tecnologia
pode nos trazer (CPCD, 200-?b).
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mais como uma prática circular, mas como exercício de respeito entre ela e o
outro. Neste momento ela acessou palavras e o entendimento que anterior-
mente, sozinha, não seria possível. As duas conseguiram realizar a reescrita
das narrativas e me entregaram antes que eu voltasse para Belo Horizonte,
também optando pelo e-book, como meio de publicização dos relatos.
Referências
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CAPÍTULO 6
Introdução
O presente artigo apresenta um recorte de uma pesquisa de mestra-
do desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação e Formação
Humana pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), entre os
anos 2017 e 20191, que teve o objetivo de investigar processos formativos
em relação à temática da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e
suas repercussões na prática pedagógica de professores(as) da rede muni-
cipal de ensino da cidade de Juatuba-MG, no período abrangendo os anos
de 2005 e 2010.
Dentre as várias considerações resultantes dessa pesquisa, destaca-
ram-se a importância dos papéis dos(as) docentes protagonistas no que
se refere ao processo de implantação e implementação2 da ERER. Nessa
trajetória, esses(as) professores(as), apoiados por um coletivo docente, re-
alizaram uma demarcação curricular que resultou em mudanças significa-
tivas no processo formativo e consequentemente nas práticas pedagógicas
pela diversidade na rede de ensino em que atuaram. Nas análises possíveis
1 A pesquisa intitula-se A formação continuada para a educação das relações étnico-raciais: um estudo de caso
sobre um Curso de Aperfeiçoamento em História da África e das Culturas Afro-Brasileiras. Disponível em: http://
mestrados.uemg.br/ppgeduc-producao/dissertacoes-ppgeduc/file/442-a-formacao-continuada-para-a-educacao-das-
relacoes-etnico-raciais-um-estudo-de-caso-sobre-um-curso-de-aperfeicoamento-em-historia-da-africa-e-das-culturas-
afro-brasileiras.
2 A exemplo da pesquisa de Gomes (2012), o termo “implantação” é destinado à apresentação e ações inaugurais da
política pública, enquanto o termo “implementação” se refere a práticas de execução, ou seja, a efetivação da ERER
que se projeta após a implantação.
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3 A Lei 10639/2003 altera os artigos 26-A1 e 79-B da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB), que, juntamente com a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP) 01/2004, que
define a Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCN-ERER) e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), fundamentada no Parecer CNE/CP 03/2004,
integram o corpo de dispositivos legais, identificados como indutores de uma política educacional voltada para a
afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) nas escolas.
Posteriormente o Art. 26-A foi alterado pela Lei n. 11.645/2008, que acrescenta a obrigatoriedade do Ensino e Cultura
dos Povos Indígenas Brasileiros.
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proposta por Flick (2002) seria a melhor estratégia para ouvir e analisar
os relatos autobiográficos. Trata-se de uma metodologia que possibilita
analisar o conhecimento mediante entrevistas na forma de uma narrati-
va de pequena escala, baseada em fatos e acontecimentos do cotidiano.
O entrevistador é autorizado a intervir no decurso da fala, estabelecendo
uma relação que se aproxima de um diálogo investigativo. Tal modalidade
de entrevista possui a prerrogativa de utilizar diferentes formas de dados,
sejam eles conhecimento episódico ou semântico.4 Ao confluir essas in-
formações, é possível a produção de diferentes níveis de dados, alterando
entre “episódios específicos recordados em diferentes níveis; narrativas
de situações que ocorrem regularmente sem prévia definição espaço-tem-
poral, (...) e conceitos e abstrações sobre suas experiências” (RESSURREI-
ÇÃO, 2015, p. 155).
O elemento central da entrevista é o direcionamento provocado pelo
pesquisador para que o entrevistado relate acontecimentos ou uma série de
situações correlacionadas ao tema em destaque: “abre espaço às subjetivida-
des e interpretações do entrevistado no contexto das narrativas situacionais;
ela não as reduz e classifica imediatamente, mas ao invés disso descobre o
contexto de sentido em que ela é narrada” (FLICK, 2002, p. 128). Para Souza
(2006, p. 27), o método de pesquisa como “modelo interativo ou dialógico”
objetiva uma nova relação entre o sujeito e o pesquisador, “tendo em vista
uma co-construção de sentido, porque não é redutível à consciência que tem
dela o sujeito e também à análise construída pelo pesquisador”.
Para Delory-Momberger, as pesquisas que possuem como método
investigativo as entrevistas direcionadas e suas dinâmicas tradicionais
aguardam, como resultados destes processos, respostas que no mínimo
justifiquem ou mesmo ilustrem as “(hipó)teses” previamente estabelecidas
como objetivos. Nas palavras da autora:
toda a habilidade do perguntador consiste então, de fato, em
fazer aquele que responde (e é isso que ele é, propriamente,
um in-formante) ir na direção da tese que ele quer produzir.
Também, nesse caso, somente será retido pelo entrevistador
(e, sem dúvida, só será audível para ele) aquilo que contribuir
para ilustrar ou defender sua tese. Todo o resto será rejeita-
do (ou sequer será ouvido) como algo lateral, não pertinente
(DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527).
4 Por episódico, entendem-se os conhecimentos inerentes ao cenário da situação vivenciada, ou seja, onde ocorreu,
o que e quando aconteceu, quanto tempo durou, quem estava envolvido e em quais situações, dentre outros. Por
conhecimento semântico, compreendem-se as leituras possíveis realizadas sobre o ocorrido, de caráter mais abstrato,
envolvendo os motivos, as relações entre causas e efeitos, os argumentos e teorias interpretativas.
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5 Para maiores informações sobre os sujeitos da pesquisa, sugerimos a leitura da dissertação de título A formação
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continuada para a educação das relações étnico-raciais: um estudo de caso sobre um Curso de Aperfeiçoamento
em História da África e das culturas Afro-Brasileiras, mais precisamente o capítulo 03, que discorre sobre o percurso
metodológico da pesquisa. Importante também citar que os sujeitos autorizaram a utilização e a divulgação de seus
nomes verdadeiros.
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independente, forte, solidária! Não dependa de quem quer que seja, in-
clusive de seu futuro marido! (...). Demandará de força de vontade porque
não estamos no mesmo ponto de partida das pessoas que têm mais posses,
contudo, não devemos retroceder”. Tais palavras demonstram indícios de
uma forte raiz ideológica que talvez conduziu a docente a representar na
atualidade uma forte liderança feminina nos espaços que ocupa.
A professora continua seu relato, dizendo sobre seu universo de for-
mação acadêmica:
Meu pai sonhava comigo formada advogada. Apesar de sentir orgulho da
filha professora, ele não escondia o desgosto por eu não ter seguido uma
carreira mais glamourosa e que exalasse poder. Ele sempre me achando
super inteligente, não considerava justo eu perder meu tempo na escola
ensinando para quem não queria aprender. Minha graduação é em história
e estou nessa maratona há 28 anos completos. Ávida por estudar, fiz muitas
especializações, nas mais variadas áreas do conhecimento em humanas,
mestrado, doutorado e provável candidata ao pós-doc, pois é uma ideia que
tenho alimentado. Sigo um pouco o pensamento de Adilson Moreira6, nós
negros temos que tratar de temas não correlacionados à temática racial.
Temos que ser capazes de discursar, debater e refletir assuntos para além da
nossa militância. Assim, tive uma formação pós-graduada bem eclética que
vai da arqueologia à psicanálise - (Professora Sônia, 2018).
6 Doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (2013). Autor
da obra: Racismo Recreativo (2019).
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O relato inicial do professor José Luiz, por sua vez, utiliza da pala-
vra demarcação como primeira característica ao se referir a sua trajetória,
seguida dos termos violência e falta de condição. Hoje, empoderado de
saberes diversos, o professor rompe o véu da invisibilidade que paira sobre
esses assuntos e possui as habilidades para interpretar que tais análises
estão intimamente relacionadas às questões raciais e sociais, sendo estes
os principais fundamentos para diversos problemas enfrentados por ele e
sua família, inclusive o insucesso econômico de muitos irmãos. Tais carac-
terísticas aparecem em outros importantes momentos de sua narrativa e
trazem, portanto, a necessidade de um destaque em nosso texto.
Demarcação é sinônimo de definição, limite, pertencimento. Trata-
-se de estabelecer de onde vim e onde estou, no sentido de lugar social, e
também compreender a definição de quem sou. É um processo, ora indi-
vidual, ora coletivo, sobre a trajetória de uma formação identitária. Cons-
titui-se como uma categoria analítica codificada em outras partes de sua
fala, quando ele afirma, por exemplo, que não conseguia viajar a turismo
porque “aquele não era seu lugar social”, ou mesmo no momento em que
lhe disseram que “um filho de um carroceiro preto não vai conseguir con-
cluir este curso”.
Reafirmando os estudos realizados por Pereira e Silva (2013), é per-
ceptível os reflexos da ideologia do embranquecimento na história de vida
do sujeito em questão. Os autores afirmam que as históricas convicções ra-
cialistas, presentes e naturalizadas na sociedade brasileira, por intermédio
da citada ideologia, prejudicam a formação de qualquer identidade que se
afaste do padrão europeu e branco, em detrimento a quaisquer outros tra-
ços identitários, sejam eles em seus aspectos físicos, culturais e/ou sociais.
O relato do professor José Luiz demonstra uma trajetória de ex-
clusão, mas também de uma luta constante por libertação deste estigma,
representada, entre outros momentos, pela fala: “eu consegui sair deste
espaço”. O referido “espaço”, para o qual historicamente a população ne-
gra é relegada, é o local da margem, da fronteira, da periferia, ou seja, do
não-espaço. Sair deste lugar socialmente instaurado para o(a) negro(a) é,
portanto, demarcar outra realidade social. Assim o professor José Luiz sin-
tetiza suas principais bandeiras de luta.
Como um dos objetivos deste artigo é escutar as histórias de vida
e compreender como aconteceram as trajetórias formativas e seus refle-
xos nas práticas pedagógicas e ações sociais dos sujeitos, trazemos um
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Por sua vez, o professor José Luiz narra uma caminhada formativa
marcada inicialmente por um ensino médio técnico na área industrial que
o conduz a um emprego no mesmo local em que seu pai havia trabalha-
do. Nesse ambiente, José Luiz vivencia o racismo institucional em uma de
suas mais duras faces, pois, além de reviver questões familiares infelizes à
sua memória, ele é induzido a enfrentar seus pares a favor de uma empresa,
presenciando inclusive cenas de discriminação e assédio moral. A deci-
são de romper com tal círculo demonstra um alvorecer de sua consciência
atrelado a um entendimento sobre as questões sociorraciais, pois, ainda
que necessitasse trabalhar por razões financeiras, outras questões de sin-
gular importância para sua ética pessoal eram colocadas em jogo. É possí-
vel dizer que, neste momento, inicia-se uma caminhada militante que será
permeada por conflitos de diversas ordens. O referido contexto encaminha
José Luiz para a formação inicial em educação e, consequentemente, para
o espaço escolar no papel de professor e sindicalista.
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Neste processo todo, foi solidificando pra mim, em meu interior, a questão
racial. Porque o mais difícil é quando você começa a ter consciência de que
você é aquele sujeito. E é neste processo que eu comecei a perceber que,
por mais que eu não quisesse enxergá-las, eu não conseguia fugir delas. (...)
Então, eu costumo dizer o seguinte, a luta sobre as questões étnico-raciais,
eu não fiz uma escolha, tipo acordei de manhã e falei: vou fazer esta traje-
tória. Esta trajetória me alcança, por mais que tivesse tido um momento de
negação, de negar a própria trajetória da sua família, os próprios lugares
que você ocupou, em algum momento, como aconteceu comigo, se encon-
trou este lugar. Neste encontro, cada um escolhe o que vai fazer. Tem gente
que escolhe fazer uma ruptura. Eu quero negar, ou eu quero entrar neste
terreno para poder debater. E foi isto que eu fiz, debater estas questões
e trazê-las, não a partir de uma experiência acadêmica, mas a partir de
minha própria vida. Da minha própria vida, de criança, adolescente, de
professor, e dos espaços que passei e das coisas que vi nestes espaços - (Pro-
fessor José Luiz, 2018).
Com esta narrativa, o professor José Luiz resume, de uma forma sin-
gular, como aconteceu seu processo de formação identitária perante as
questões sociais e étnico-raciais. Definições e demarcações, negações, en-
frentamentos, abandonos e escolhas são características presentes em sua
fala. Para Passegi; Nascimento; Oliveira, (2016, p. 123), a análise de nar-
rativas autobiográficas permite adentrar o universo mais subjetivo de do-
centes, o que “possibilita-lhes uma melhor compreensão do que os move
como indivíduos nos processos de sua constituição como pessoa e como
cidadã nos mais diversos contextos educacionais” Nosso sujeito docente
revela que sua trajetória formativa é atravessada por importantes e com-
plexas questões, às quais ele busca respostas, tendo como base suas múlti-
plas vivências experienciais.
Como afirmado, as narrativas de nossos sujeitos demonstram, entre
outras análises, que toda formação é também um ato político, pois envolve
intenções, ideologias e relações interpessoais. A escolha pelos cursos rea-
lizados pela professora Sônia, assim como as decisões profissionais toma-
das pelo professor José Luiz marcam suas posições e ideais. Como afirma
Delory-Momberger (2012, p. 529), “O que o relato enreda é o mundo da
intencionalidade, que é próprio do agir humano e nunca redutível a uma
pura causalidade antecedente”.
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7 As tradições citadas pela professora Sônia, Congado, Capoeira, Folia de Reis, assim como o ato de benzer, realizado
por/pelas benzedores/benzedeiras, fazem parte da cultura afro-brasileira, presente em várias regiões do país.
8 Na rede estadual de ensino do Estado de Minas Gerais existia a possibilidade de estudantes em formação inicial
assumirem turmas. A Secretaria de Educação concedia uma licença e o(a) professor(a) em formação recebia a
nomenclatura de professor.
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religiosos e preciso destacar que não são somente religiosos de matriz afri-
cana, mas também dentro da igreja católica, dentro da igreja evangélica,
eu conheci negros e negras que ao longo de sua jornada fizeram esta luta
e esta demarcação de espaço. Ao longo deste processo, eu enfrentei e tive
que demarcar a questão racial, de forma coletiva, com os alunos e colegas.
Neste processo, eu acabei entrando pra luta sindical. Por uma questão de
sobrevivência, de direito, de justiça social. Eu não nasci com uma consciên-
cia sindical e política, eu aprendi esta consciência porque tive direitos que me
foram negados. Direitos sociais e individuais - (Professor José Luiz, 2018).
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é necessário enquanto cautela, mas viver com medo é morrer aos poucos. É
preciso saber viver... falar... ouvir... respeitar... E um dia, quando nenhum
de nós mais existir, ficará o que chamamos de legado e é este legado que
fará com que as pessoas se lembrem que a alma é imortal. Se hoje falamos
destes temas, lá atrás, alguém venceu o medo e lutou. Então, devemos isso
aos nossos ancestrais - (Professora Sônia,2018).
Eu até costumo dizer pras pessoas que discutir e discorrer sobre as questões
raciais, do ponto de vista teórico, é muito fácil. Mas, falar de uma pers-
pectiva, a partir das marcas que eu carrego e trago na vida, dá um outro
significado, porque você é o sujeito daquele processo. As marcas ficam, elas
não desaparecem, são como cicatrizes que eu carrego na alma. Elas não
desapareceram, mas eu consigo hoje passar a mão sobre elas e ver que elas
estão ali, com muita tranquilidade. Vou continuar caminhando, mas não
vou ser mais tão afetado por aquela situação - (Professor José Luiz, 2018).
Referências
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CAPÍTULO 7
A TRAJETÓRIA FORMATIVA
DE UMA PEDAGOGA: A REFLEXÃO
DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE
PROFISSIONALIDADE DOCENTE
Introdução
Este texto é fruto de pesquisa realizada para a disciplina eletiva Nar-
rativas Docentes: aspectos metodológicos e formativos, do Programa de
Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Ouro Preto.
Com ele, pretendemos refletir sobre a entrevista narrativa como instru-
mento importante nas pesquisas de abordagem qualitativa e compreender,
por meio dos relatos de educadores(as), os desafios presentes na formação
docente. Neste trabalho apresentamos a narrativa de uma pedagoga que
atua na rede municipal da cidade de Ouro Preto, graduada em Pedagogia e
Mestre em Educação pela UFOP. Aos 27 anos de idade ela se encontra no
primeiro ano de atuação profissional e traz em sua narrativa as marcas das
experiências vividas.
Acolher narrativas docentes nos permite compreender a constitui-
ção da identidade desses profissionais enquanto processo dinâmico que
se reconstitui imerso numa rede de socializações (GIDDENS, 2001), bem
como, conhecer suas trajetórias formativas marcadas por expectativas,
frustrações, medos, alegrias e vitórias. As narrativas, na dicotomia entre o
singular e o plural, são histórias de vida ao mesmo tempo em que são his-
tórias vividas no coletivo, recebendo influências do entorno, do momento
social e político, mas também influenciando outros ao seu redor.
Este texto parte da conceituação das narrativas inseridas na con-
cepção de uma pesquisa de abordagem qualitativa no campo da educação,
destacando suas possibilidades e limitações e, na sequência, busca estabe-
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pode ser feito em “qualquer lugar” e no tempo oportuno para aquele que
vai narrar, ao contrário da entrevista oral em que depende das duas partes
(narrador e entrevistador) a definição de espaço e tempo da narrativa.
Em contrapartida, nas entrevistas que se utilizam das narrativas escri-
tas os colaboradores podem demorar mais na devolutiva. O narrador, neste
caso, também poderá ver e rever o que foi narrado/escrito, o que possibilita
acrescentar e/ou retirar detalhes já mencionados, questões que o pesquisa-
dor não terá acesso. Outro ponto é que se houver alguma questão de interes-
se ou dúvida do pesquisador após a leitura da narrativa, pode ser mais difícil
esclarecer já que o narrador não está presencialmente ao seu alcance.
Trabalhar com narrativas não é um processo fácil, o pesquisador pre-
cisa receber as palavras do narrador, abraçá-las e nelas mergulhar tentan-
do apreender e compreender o dito e o não dito, indo além de uma simples
interpretação. Entretanto pode resultar em trabalhos muito ricos conside-
rando as potencialidades de uma narrativa, os detalhes e riquezas presen-
tes na fala do outro, assim como as especificidades de cada narrador. Uma
narrativa jamais é repetível, pois representa as singularidades daquele que
fala, daquele que escuta, do momento, do ambiente e de todo o contexto
que envolve o ato de narrar.
Considerando que as narrativas trazem singularidades dos entrevis-
tados e a proposta de conhecer a formação e atuação de pedagogos(as) da
nossa região, o necessário exercício de ouvi-los(as) era imperativo. E essa
experiência será relatada parcialmente a seguir, na voz de uma pedagoga
em início de carreira, desvelando as belezas e contradições da formação e
da profissão.
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tempo e que hoje levo muitas experiências para o meu trabalho enquanto peda-
goga, em que me deparo com equipes heterogêneas de professores e gestores.
A experiência que se deu na pesquisa, mencionada no trecho an-
terior, foi registrada na obra Pesquisa em Rede: Diálogos de formação
em contextos coletivos de conhecimento, dos autores Farias; Jardilino;
Silvestre e Araújo, publicada em 2018. Os autores relatam como se deu a
experiência de uma investigação interinstitucional e falam especificamen-
te sobre a pesquisa em rede:
Finalmente, pesquisa em rede é definida por nós como aque-
la desenvolvida em torno de um único objeto de investigação,
mas que conta com o trabalho e a colaboração de um coletivo
formado por pesquisadores de diferentes contextos institucio-
nais, a exemplo de programas de pós-graduação stricto sensu.
Seu objetivo, além de produzir conhecimento científico e ino-
vação, é dedicar-se à formação dos pesquisadores nela envol-
vidos (FARIAS et al., 2018, p. 32).
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Considerações finais
O objetivo central desse texto era compartilhar a narrativa de uma
pedagoga, em início de carreira, e os desafios enfrentados por ela no seu
trabalho. À medida que a narrativa foi se constituindo na escrita deste
memorial de formação, em que ela foi contando sua história, sua trajetória
acadêmica e profissional embora recente mas com diversas interpretações
e significações, se apresentaram diante do nosso olhar de pesquisadoras.
A esse exercício de refletir, analisar e dar ao texto o destaque que lhe é de-
vido, nos lançamos com respeito e preocupação.
A narrativa abriu espaço para a reflexão, num tempo em que a velo-
cidade nos consome a cada dia. Mas, era preciso. Um espaço/tempo que
restitui ao professor(a)/educador(a) as oportunidades roubadas, um tempo
de pensar e falar, de ponderar e definir, um tempo de caminhar juntas.
A escrita, como forma de narrar a vida e os acontecimentos foi um im-
portante instrumento nesta apropriação e valorização da voz da pedagoga,
trazendo-a de volta às práticas realizadas, colocando-a frente a si mesma e
à sua escolha profissional.
O início da carreira docente nem sempre é fácil e, no caso da peda-
goga entrevistada, sua primeira atuação ocorreu junto à secretaria de edu-
cação realizando trabalho em mais de uma escola. Fica nítida a influência
da formação inicial na prática, quando ela aponta a participação no PIBID
como a primeira experiência enquanto desenvolvia práticas no contexto
escolar, em meio a docentes da Educação Básica. Outra influência foram
as pesquisas em que participou durante a graduação, o que a motivou a
investigar mais sobre formação docente e a auxiliou no trabalho com os
professores, devido a experiência na pesquisa.
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Referências
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CAPÍTULO 8
NARRATIVAS-OTRAS Y EXPERIENCIAS
SEXUADAS: PROFESORAS
SINDICALISTAS ARGENTINAS
(…) te repartís, te partís más que te repartís (…) uno tiene que
buscar los tiempos…a mí el hecho de estar también en la escuela
me posibilita el que vaya fragmentando los tiempos”.
Fabiana (profesora sindicalista entrevistada)
Introducción
Los relatos de las profesoras sindicalistas del epígrafe inauguran la
temática de este capítulo: las experiencias de las mujeres sindicalistas do-
centes. Las mismas han sido insuficientemente indagadas, dado que los
estudios sobre sindicalismo otorgan preeminencia a los trabajadores, sus
formas organizativas y sus luchas reivindicativas. Bajo el manto de la mar-
ca de un sujeto universal, las profesoras sindicalistas han permanecido
bajo un cono de sombras, siendo excepcionalmente nombradas y visibili-
zadas. Alienaciones y subyugaciones colisionan con disputas y conquistas
que se forjan al calor de luchas y resistencias no siempre visibles desde
las figuras hegemónicas de los militantes sindicalistas. De ahí que resulte
relevante adentrarse en sus experiencias, habilitando narrativas-otras que
cierta historiografía androcéntrica ha silenciado.
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me inicio como afiliada…era como que yo no sabía nada del mundo sindi-
cal…uno por ahí es naive en todas estas cuestiones. Será que los simples
afiliados tendremos que saber o es todo para delegados…”, se interrogaba.
Su experiencia había transitado en una escuela privada a la que no llegaba
información quedando centralizada en manos de la delegada. Es así que
Mónica decide aproximarse al sindicato: “…vi la realidad y vi que hay un
montón de cosas que se hacen en el sindicato…yo fui rompiendo un poco
el hielo y llevando y cumpliendo el rol que no estaba todavía ejerciendo”.
Si bien consideraba los beneficios como afiliada al igual que Fabiana, Mó-
nica desde su “no saber” se pregunta por la representación del sindicato,
y asume la función sustantiva de delegada escolar sin el reconocimiento
formal que la sustenta, ya que, según sus palabras, “…la institución donde
yo trabajaba tenía delegada, pero no era una delegada comprometida…”.
El acercamiento al sindicato pareciera consistir más en una cuestión
de inquietudes individuales que de expresas estrategias sindicales, desde
el mundo de escuelas de enseñanza privada en las que la experiencia sindi-
cal debe mantenerse a distancia, o bien concentrarse en la figura de dele-
gadas/os escolares alejadas/os de las/os profesoras/es. Es así que el estatuto
de afiliada sindical se construye desde la condición docente, base sobre la
cual se asienta la posibilidad de una primigenia participación que se va
expandiendo, a medida que se conoce el sindicato, sus finalidades y sus
funciones. Sin embargo, tales inicios no constituyen desafíos existenciales,
aunque ponen de manifiesto los incipientes zócalos que sostienen poste-
riores involucramientos de las mujeres sindicalistas entrevistadas.
Si bien en una primera aproximación se vislumbra que la afiliación
constituye la faceta formal de la iniciación gremial, posteriormente los re-
latos se retrotraen a las figuras parentales, como si las aperturas sindicales
fueran más lejanas en el tiempo. La evocación de un padre sindicalista de
un frigorífico se asoma en la narrativa de Fabiana. La presencia de una
madre con participación político-partidaria adquiere pregnancia en el re-
lato de Mónica. La construcción identitaria sindical parece conformarse
en las respectivas filiaciones parentales, aun cuando dolores, sufrimientos
y temores hayan atravesado sus infancias y adolescencias.
Fabiana alude a los padecimientos vividos siendo niña, debido al “re-
corte que se hace a la familia…yo sabía que él ingresaba al sindicato y no
sabíamos a qué hora salía”, poniendo de manifiesto el afecto infantil por su
padre: “…yo con mi papá era muy pegada…era ese dolor viste, que vos decís
por ahí no está a la tarde…pero bueno…los fines de semana sí lo tenía para
mí…”. Las ausencias paternas habitan su memoria en momentos significa-
tivos como el acto de colación de séptimo grado en que “…mi papá no estu-
vo…porque tenía un Congreso en ese momento en Buenos Aires…y bueno
primero estaba el compromiso y la familia sabía por ahí que lo podíamos
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venir nunca, creo, cada vez empecé a venir más…”, dice Mónica, refirién-
dose a sus primeros vínculos con el sindicato de profesoras/es privadas/os.
Su itinerario se conforma desde la condición de afiliada, pasando por el
ejercicio de la función de delegada escolar, aunque ésta última no haya conta-
do con el reconocimiento formal del rol. Esta actuación, le permite a Mónica
ser elegida delegada escolar en representación de sus compañeras/os docentes
durante tres mandatos, manifestando que iba al sindicato “…a escuchar más
que nada. Yo soy una persona más callada…”. En ese momento recuerda que
estaba embarazada de su segunda hija y tenía la concepción de que el sindi-
cato exigía mucho tiempo de permanencia. De ahí que pensaba: “…no puedo
estar las veinticuatro horas como delegada metida en el sindicato”.
A medida que se va interiorizando, rompe con una visión a su enten-
der estereotipada de la función de delegada escolar, y se anima a participar.
Mónica supone, no sin razones, que la demanda de tiempo que requieren
las actividades sindicales es demasiado exigida. Su condición de madre de
su primer hijo, la actividad docente que realiza, su trabajo en un Mac Do-
nald, y el rol de delegada sindical escolar que ocupa, hacen que ella se plan-
tee y dude acerca de las posibilidades de desempeño de la función gremial.
Pero también su contacto directo con el sindicato, le permite entender y
precisar mejor las funciones como delegada, su carácter de nexo entre el
sindicato y la escuela, la importancia de socializar la información sobre los
derechos laborales con las/os docentes de instituciones privadas. Y a pesar
de los condicionamientos que atraviesan su vida cotidiana, Mónica decide
participar del sindicato.
Los primeros acercamientos tenían por objetivo “…lograr una mejor
relación y vínculo con nuestro empleador…la gente que estaba a la cabe-
za no tenía formación docente y tenían más una formación gerencial y a
la escuela no la querían conducir de manera más próspera…sino a nivel
económico como un negocio…”. Por cierto, Mónica se enfrentaba a las ló-
gicas economicistas en la escuela privada en la que trabajaba, de ahí que
la vinculación con el sindicato ofrecía un respaldo que permitía una inter-
mediación institucional, ante una concepción empresarial de la educación
que Mónica no compartía. A los treinta ocho años asume la Secretaría de
Relaciones Institucionales, en el marco de una lista que compite con otra,
y en la que milita no sin conflictos. En cuanto a Fabiana, ella rememora
que empezó “sin querer queriendo…me empecé a meter…con esa función
de que uno lleva información…empecé a estar más acá…”.
Atraviesa un recorrido similar al de Mónica. Comienza siendo afi-
liada, luego referente, después delegada escolar por dos períodos, poste-
riormente Pro-secretaria de Educación durante dos años, para finalmente
a sus cuarenta y dos años, ser Secretaria de Comunicación y Prensa. Com-
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pite por la misma lista con Mónica y, para ambas participantes, consti-
tuye la primera elección sindical en la que se involucran. Esta elección es
significada como una dificultad, dado que según la opinión de Mónica “…
no teníamos…espalda sindical”. Trabajar para ganar una interna sindical,
viniendo de funciones de delegadas de escuelas en las que prevalecen las
racionalidades de la esfera social, ha constituido un aprendizaje. Afrontar
las agresiones de la oposición no fue sencillo dado que las enfrentó “a la
parte que uno no quisiera conocer del sindicalismo…del tener que sentarte
con compañeros tuyos…que apoyan otra lista…sentarte a negociar mesas-
…y…ése no era el espíritu que me trajo…”, observa Fabiana. Tener que salir
a ganar los votos, manejar información, recorrer mesas, controlar los pa-
drones de afiliadas/os, solucionar problemas a distancia, tomar decisiones,
eran algunas de las tareas que aprendieron “en un tiempo record”, tal como
lo define Fabiana.
En esa elección parecen jugarse otros intereses además de regir al-
gunas reglas poco transparentes, de ahí que Mónica y Fabiana hacen ex-
plícitas sus convicciones en el sindicato: trabajar en beneficio de las/os
compañeras/os docentes que están en el aula, y a quienes representan. Sin
embargo, para poder defenderlas/os, han tenido que conocer a los adver-
sarios, confrontar y salir de una posición ingenua para mirar el sindicato
en los juegos de poder que las implican. Los desmerecimientos y despres-
tigios, las acusaciones de corruptas, las publicaciones acusatorias, eran
parte de ese juego que, en más de una ocasión, las hizo llorar. Los códigos
de las elecciones, provenientes del ámbito político, desestabilizan sus ar-
raigadas concepciones de servicio al prójimo.
Se aprecia que ambas han tenido un recorrido sindical ininterrumpi-
do, ascendente y de creciente asunción de responsabilidades político-sin-
dicales, que aparece vertebrado con aquellas transmisiones de sus proge-
nitores que, aunque parcialmente ausentes en sus infancias, se encuentran
muy presentes en sus trayectorias sindicales. En el caso de Fabiana en par-
ticular, la transmisión de su padre sindicalista ha dejado huellas profundas
en su vida, y hasta el presente el significado de la injusticia y la solidaridad
la conmociona.
Al respecto, Fabiana pone de relieve el haber sufrido la injusticia en
carne propia. Un episodio invade su memoria: después de varios años de
trabajar en el ámbito de una escuela privada religiosa de nivel primario,
recibía presiones de sus empleadores, dado que, si se afiliaba al sindicato
docente, la dejarían en el último lugar de ascenso en los cargos docentes.
El hartazgo y el enojo condujeron a Fabiana a afiliarse, bajo la proclama
de que “no me van a seguir coartando mis derechos”. La defensa de los
derechos laborales, ya perfilada por su padre, se introduce en su recorrido
sindical. Fabiana necesitaba un crédito bancario para poder ampliar su
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Fabiana comenta que había viajado una semana para pasar la navidad en
su pueblo natal, aunque “esos días allá estuve generando beneficios, o sea,
no me la pasé sentada en mi casa, me iba a recorrer”. En esas coordenadas,
Fabiana y Mónica admiten que “vamos a descansar un poquito” [dado que]
el cuerpo lo necesita [y] ahora el cansancio se nota”. Empero, la tradición
vocacionista parece sostener la constante tarea gremial: “cosas que uno
hace sin darse cuenta…vos no medís…es algo que está adentro tuyo…”, dice
Fabiana. “…no es que se lo propone”, asiente Mónica.
Ese tiempo ininterrumpido es connotado por Fabiana en relación
con sus funciones de la secretaría sindical: “…por ahí uno no corta…si hay
que emitir un comunicado a las once de la noche, prendés la computado-
ra, hacés el comunicado…”. Ese tiempo de servicio al otro adquiere otras
connotaciones, específicamente, no tiene medida. Pareciera tratarse de
un tiempo incondicional, sin límites, para dar sin recibir. El aumento del
tiempo de las mujeres en el empleo y en el sindicato, parece afectar el tiem-
po de ocio, dado que no hablan de un tiempo propio o de un tiempo de des-
canso que dedican a sí mismas. El tiempo adquiere importancia en la joven
generación de mujeres debido a la articulación temporal de las diferentes
esferas en la vida contemporánea, en términos de un desequilibrio estruc-
tural de dominios como resultado de la combinación de políticas públicas,
luchas sociales, transformaciones culturales y aspiraciones individuales,
tal como lo plantean. (ARAUJO; MARTUCELLI, 2012a). En ese sentido,
se trata de una experiencia marcada por fuertes desequilibrios temporales
que se despliegan en el marco de un contexto de trabajo-sin-fin, y de un
déficit de legitimidad en ciertos ámbitos y sus implicancias en la existen-
cia escasa de soportes institucionales. (ARAUJO; MARTUCELLI, 2012a).
Para las mujeres, ese trabajo-sin-fin se profundiza en términos de la ar-
ticulación de ámbito de trabajo productivo y trabajo doméstico, con sus
respectivas repercusiones en los modos en que enfrentan temporalmen-
te dicha articulación, lo que repercute en la posibilidad de contar con un
tiempo liberado para sí.
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Referencias
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CAPÍTULO 9
Introdução
Redemocratizada pelas novas tecnologias nos últimos anos, a lin-
guagem – seus usos e formas – tem acentuado seu processo evolutivo ade-
quando-se às necessidades de tempos e contextos comunicativos. Ainda
que de maneiras diferentes ao longo do tempo e na qualidade de sofis-
ticado instrumento de interação, a linguagem pode atuar para as meta-
morfoses sociais, emancipar construções culturais, protagonizar disputas
políticas, educar, alienar, permitir a experimentação de novas estéticas e
dentre tantas outras possibilidades de uso, movimentar vidas, criar mun-
dos e ressignificar histórias.
Assim, a arte das palavras, em especial nas últimas décadas, tem anco-
rado inúmeras práticas culturais de participação juvenil. Os saraus, os slams
poéticos e as batalhas de poesia destacam-se como movimentos literários
que se firmaram enquanto espaços de criação, socialização e representação
de visões de mundo. Nesse ínterim, estudos acerca das culturas juvenis ad-
quirem eminente importância, no sentido de perceber o que os/as jovens
constroem a partir de suas práticas culturais e compreender as habilidades,
sensibilidades e saberes que estes têm tramado para forjar seus percursos,
desenvolver subjetividades e intensificar seus vínculos de pertencimento e
sociabilidade (SPOSITO, 2000) por intermédio da linguagem.
Reconhecendo esse cenário, as perspectivas inscritas neste artigo
estão atreladas à pesquisa de mestrado, realizada entre 2017 e 2019, no
Programa de pós-graduação em Educação e Formação Humana da Uni-
versidade do Estado de Minas Gerais, que buscou compreender a maneira
como jovens poetas participantes do slam interescolar - um projeto literário
cultural organizado em escolas de Belo Horizonte, Minas Gerais - utilizam
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sensível e que, por meio da poesia falada, passeia por ruas, praças, teatros,
bares, esquinas e escolas, resgatando experiências culturais que permeiam
e singularizam modos de ver e refletir sobre a organização social e cultural.
Essas narrativas literárias se desenvolvem intrinsecamente ligadas às vivên-
cias dos poetas. O poetry slam, uma competição de poesia falada, chegou ao
Brasil pelas mãos de Roberta Estrela D’alva. A poeta, atriz e slammer o define
como “uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão
poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo
mais uma forma de entretenimento” (D’ALVA, 2014, p. 110).
Nesse contexto, entre versos e rimas, o slam interescolar foi o marco
desencadeador de inquietações, descobertas e suposições. Em conversas
com Lucas Oliver, o educador e idealizador do projeto, compreendeu-se
que além de proporcionar a partilha, a troca e a escuta de poesias entre os/
as alunos/as, o slam na modalidade escolar incentivava, a partir de oficinas
criativas, o desenvolvimento da escrita. Com duração total de quinze horas
em cada instituição escolar, o projeto aconteceu em 10 escolas públicas de
BH, entre agosto e dezembro de 2017. Na dinâmica, os/as alunos/as se dedi-
cavam em discutir temáticas contemporâneas, além de escrever e escutar
textos poéticos. Ao adentrar os muros da escola e criar oportunidades de
fala, escrita e escuta entre os atores sociais, vislumbrou-se no slam interes-
colar uma oportunidade de revelar o/a jovem estudante como um sujeito
social que sonha, emite opiniões, pontos de vista, questiona, sugere e com-
partilha sentimentos, sentidos e significados sobre si, sobre o outro, sobre
a escola, sobre o mundo, sobre o ser e o viver.
Por isso, a dinâmica poética do slam está conectada à perspectiva de
pensadores que se interessam em compreender as juventudes e seus modos
de construir sociabilidades, suas formas de expressão e de articulação cul-
tural, tais como Juarez Dayrell (1996). Em seus escritos, o autor coloca que
as experiências da juvenis não podem ser ignoradas, ao contrário, precisam
ser abordadas e incorporadas no processo de ensino e aprendizagem dos/as
jovens, sugerindo que “é necessário levar em conta o aluno como um sujeito
sociocultural, quando sua cultura, seus sentimentos, seu corpo, são media-
dores no processo de ensino e aprendizagem” (DAYRELL, 1996, p. 157).
Dessa forma, de acordo com Nonato, Sposito e Dayrell (2016), são
nesses momentos que acontecem as relações sociais mais significativas
para os/as jovens, oportunidade em que podem refletir, problematizar e
interpretar suas experiências de vida e ir se formando como sujeito, uma
vez que os/as jovens
amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito de suas con-
dições e de suas experiências de vida, posicionam-se diante
dela, possuem desejos e propostas de melhoria de vida. É nes-
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Contextualizando o slam
O poetry slam no Brasil tem seu surgimento atrelado à ascensão da
literatura periférica/marginal surgida nos anos 90. Essa vertente literária
criou raízes em meio à intensificação de uma consciência sociocultural,
que valoriza as subjetividades e problematiza os conhecimentos e vivên-
cias tidos como hegemônicos. Todas essas questões revelam aspectos de
modos de ser e viver que antes eram silenciados em detrimento da manu-
tenção das relações de poder. Contudo, foi nesse ínterim que começaram
a ecoar - em especial por meio da arte literária - as narrativas de grupos
sociais colocados à margem, momento em que nascia um celeiro de jovens
artistas que mergulharam na semântica das palavras para questionar, exal-
tar e registrar os sentidos produzidos por sua vida e cultura:
trata-se, em geral, de uma literatura de auto-representação
com uma dimensão política e social importante, a enunciação
de realidades invisibilizadas por parte de setores sociais que
historicamente têm tido um acesso mínimo à palavra escrita,
em um contexto no qual a língua, sobretudo escrita, tem servi-
do como mecanismo de dominação desde os tempos coloniais
(ARIAS, 2011, p. iii).
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por base três orientações básicas: as poesias devem ser autorais, declama-
das em até 3 minutos e não podem ter acompanhamento musical ou de
figurino. A dinâmica da prática cultural geralmente se divide em três eta-
pas por encontro. Cerca de quinze poetas começam a disputa. Na primei-
ra rodada todos os inscritos participam, passando para a segunda os oito
melhores e para a terceira os três melhores, elegendo-se daí o vencedor ou
a vencedora. Quem julga as apresentações dos slammers? Pois bem, o slam
é construído na inter-relação e interação entre poeta, público e poesia,
uma vez que os cinco jurados de cada batalha são escolhidos em meio ao
público presente, os/as quais atribuem notas que podem ir de 0 a 10, ou
seja, sem espectadores não há como acontecer o movimento performático
e poético dos versos.
O resultado desse processo de imersão da poetisa na cultura do poe-
try slam mostrou-se tão logo ela voltou ao Brasil: D’alva criou o slam Zona
Autônoma da Palavra, ou simplesmente ZAP! Slam, que acontece mensal-
mente nas noites paulistanas desde dezembro de 2008, especificamente em
toda segunda quinta-feira do mês, em ocupações, casas culturais ou em
espaços públicos no centro da cidade de São Paulo. A disseminação da
prática deu margem para que em 2012 o slammer e ator Emerson Alcalde
criasse o slam da Guilhermina, na Zona Leste de São Paulo. No contexto
mineiro o campeonato foi inaugurado em 2014 pelo Slam Clube da Luta,
idealizado por Rogério Coelho. O evento ocorre toda última quinta-feira
do mês, no teatro espanca!, região central de Belo Horizonte. A celebração
literária consolidou-se quebrando regras e padrões e passados quase 10
anos da chegada dos slams ao país, segundo Estrela D’alva, a prática poéti-
ca já mobiliza aproximadamente 80 slams espalhados pelo Brasil.
Com essa expansão, os slammers foram encontrando maneiras para
que a troca de experiência e o encontro entre os praticantes acontecesse.
Sendo assim, além das já conhecidas disputas mensais, campeonatos esta-
duais, nacionais e internacionais começaram a surgir e a expandir a cena
do poetry slam. A mais importante competição da prática é a Copa do Mun-
do de slam, que ocorre anualmente em solo francês, desde 2011, na cidade
de Paris. Para chegar à disputa mundial, o/a poeta-competidor/a precisa
vencer a competição estadual e a competição nacional do slam de seu país.
Contudo, ainda que venha ganhando cada vez mais visibilidade e
formatos no cenário artístico literário, Emerson Alcalde, representante
brasileiro na Copa do Mundo de slam em 2014, conta, em entrevista à pes-
quisadora e professora da Unicamp Cynthia Neves (2017), que se surpre-
endeu com a disseminação, incentivo e envolvimento da mídia e da popu-
lação francesa com o slam. Diferentemente do Brasil, em que os recursos
institucionais são poucos e a divulgação é ainda tímida, ele relata que a
divulgação a que assistiu na Copa do Mundo, em Paris, mostrou-se estron-
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1 O CICALT - Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias é um Núcleo Valores de Minas, que
através do Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias (CICALT), oferece aulas de arte em cinco
áreas: Artes Visuais, Circo, Dança, Música (Canto, Harmonia e Percussão) e Teatro.
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poesias “de autoria própria dos alunos, de até três minutos de duração, e
utiliza a performance como ferramenta de expressão dos textos. Os po-
etas são avaliados por cinco jurados escolhidos no local, entre os alunos
participantes do projeto. A soma das notas das poesias define o campeão”
(OLIVEIRA, 2017, Documento “Projeto Slam Interescolar”).
Entre agosto e novembro, o professor Oliver percorreu 10 escolas,
passando quatro dias em cada uma delas. Ele conta que o projeto está vin-
culado ao Valores de Minas- Plug Minas, um núcleo educacional e artístico
que oferece aulas de arte para jovens de Belo Horizonte. Refletindo sobre
a dinâmica das oficinas, Lucas conta que atuava como professor e ator, na
intenção de mobilizar e chamar a atenção dos/as alunos/as e incentivá-los/
as a falar e escrever sobre como viam o mundo. A proposta era que nos três
primeiros dias os alunos e alunas escrevessem poesias para a participação
no slam, que ocorria no quarto e último dia. Em meio à competição, o poeta
e slammer conta que foi surpreendido positivamente pela criação de um
espaço de diálogo e convívio com a diferença e com o outro: “na verdade
eu não tô fazendo uma oficina de poesia, eu tô criando um espaço de diálogo”2.
Assim, mobilizados pelo educador, os/as jovens alunos e alunas iam
aprendendo uns com os outros, uma vez que escreviam sobre temáticas que
tocavam nas vivências da juventude. Diante disso, podemos pensar que a
dimensão educativa do slam acontece devido ao seu formato de intensa
interação e espaços de fala, escuta e conflito. Os/as alunos/as discutem,
escrevem, reescrevem e partilham seus textos uns com os outros. Nessa
mediação o/a jovem tem a possibilidade de pensar sobre si e é estimulado a
refletir e questionar, em um movimento de educação pela arte.
O pensamento crítico foi outra perspectiva trabalhada no projeto,
uma vez que o educador coloca o slam como um lugar em que os/as jovens
discutiam sobre temas contemporâneos e de relevância social: “é uma coisa
bem legal assim que eu acho, é porque eu só descobri a palavra feminismo há uns 5
anos atrás, eu já tinha formado, nem existia... e as meninas de 15 e 16 anos já estão
falando disso... questão de gênero foi muito abordado também”.
Diante desse contexto, podemos pensar o espaço do movimento po-
ético como uma oportunidade para que os atores escolares se conheçam e
reconheçam as visões de mundo e os distintos posicionamentos que per-
meiam as experiências dos/as participantes: “pensando nesse espaço de diá-
logo, foi uma forma das profissionais da educação terem contato com o que os
jovens estão aprendendo, com o que eles pensam”. Por isso, o slam interescolar é
uma oportunidade para um encontro entre escola, arte e cultura, literatura
e escrita criativa e além disso, um lugar para se conhecer os/as alunos/as
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Considerações finais
A linguagem, artefato milenar que engendra as ações e tensões no
social, permite às relações, enseja a criatividade artística, mantém os vín-
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Referências
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CAPÍTULO 10
Introdução
A expansão do ensino superior no Brasil data sobretudo dos anos
2000, processo que resulta de uma série de políticas públicas voltadas para
ampliação do acesso à universidade, contribuindo para uma importante
mudança dos perfis discentes (RISTOFF, 2014), compostos atualmente por
mais pessoas não-brancas e de origem pobre. Com isso, vimos emergir
também uma geração de novos pesquisadores e pesquisadoras com inte-
resse em produzir conhecimento a partir de questões sociais que atraves-
sam suas biografias (MEDEIROS, 2018).
Muitas pesquisas já vêm há algum tempo apontando para as transfor-
mações sociais provocadas por esse fenômeno no país1, que para ser com-
preendido em seus meandros demanda um olhar aprofundado para questões
não capturáveis apenas por números e dados estatísticos. Como entender
os impactos da expansão do acesso ao ensino na construção de identidades,
na ampliação da circulação pela cidade, nas mudanças em relações com a
família, na formação e inserção profissional, nos desafios, medos, desejos e
muitas outras subjetividades que compõem o processo formativo?
Tais questões demandam um olhar minucioso para os percursos aca-
dêmicos e afetivos em suas singularidades, limites, potencialidades, repro-
1 Para uma visão geral sobre o ensino superior brasileiro e de alguns dos temas de pesquisas na atualidade, consultar:
DINIZ, Rosa Virgínia; GOERGEN, Pedro L. Educação Superior no Brasil: panorama da contemporaneidade. Avaliação
(Campinas), Sorocaba, v. 24, n. 3, p. 573-593, dez. 2019.
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Caminhos de um encontro
Aquelas eram tardes quentes de 2009 em salas apinhadas de jovens
ingressantes na universidade. O sistema de cotas só passaria a ser adotado
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano seguinte, mas
desde 2007 o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais, conhecido como Reuni, já vinha sendo uma
das políticas responsáveis por um expressivo aumento do número de vagas
nas instituições de ensino públicas. Não era, então, mera casualidade que
aquela fosse uma turma bastante cheia, com mais de 40 alunos.
Mas a quantidade não era necessariamente sinônimo de diversidade.
Falamos de uma turma de comunicação social, um dos cursos mais concor-
ridos daquele ano e, portanto, estudantes vindos de famílias com melhores
condições de investimento em educação eram maioria dentre os que con-
seguiam tirar notas suficientes para atravessar o estreito funil do vestibu-
lar. Essa informação se confirmou em uma de nossas primeiras aulas, cuja
proposta era que cada pessoa falasse brevemente de si, das expectativas
com relação ao curso e um pouco de sua história até ali. Os depoimentos
evidenciaram que uma grande parte dos discentes vinha de escolas e cur-
sos preparatórios privados, inclusive de fora do estado do Rio de Janeiro,
frequentados por pessoas de origem social mais abastada.
Além do fator socioeconômico das famílias, as pesquisas sobre as
desigualdades educacionais no Brasil e em diferentes países do mundo
mostram que a origem étnico-racial, o gênero, além de características in-
dividuais dos e das estudantes, têm forte correlação com a escolha do curso
e da instituição de ensino (CARVALHAES; RIBEIRO, 2019). Grosso modo,
nas instituições e carreiras de mais prestígio e com maior rendimento
salarial ainda predominam estudantes do sexo masculino, brancos e de
maior renda, enquanto que os cursos de menor rendimento no mercado de
trabalho têm estudantes, em sua maioria, não-brancos, do sexo feminino e
de classes sociais menos favorecidas2.
Essas disparidades também eram visíveis na população discente dos
outros cursos ofertados no campus localizado em um dos cartões postais
do Rio de Janeiro, a Urca, na Praia Vermelha, onde estudávamos. Enquanto
as áreas de administração, economia, psicologia, relações internacionais
eram compostas de maioria branca e de origem mais favorecida economi-
2 Portanto, “a estratificação horizontal entre cursos universitários em termos de classe, sexo e raça são fruto de
escolhas individuais que dependem tanto de preferências quanto de avaliações relativamente objetivas das reais
chances de entrar ou não em cursos mais seletivos.” (CARVALHAES; RIBEIRO, Ibidem, p. 221).
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3 Nesta breve descrição, não incluímos a dimensão do gênero - também visível na composição discente dos cursos do
campus da Praia Vermelha - para não alongar um debate que foge do escopo deste artigo. Para mais detalhes sobre
as desigualdades de gênero no acesso às diferentes carreiras oferecidas pelas universidades brasileiras, sugerimos
consultar o mesmo artigo de Carvalhaes e Ribeiro supracitado.
4 O campus da Praia Vermelha só passou a ter restaurante universitário ou “bandejão” em 2017, fruto da luta do
Movimento Estudantil da UFRJ. Até então, as opções de alimentação se restringiam ao pequeno comércio dentro
do campus e à praça de alimentação do Shopping Rio Sul, localizado há poucos metros dali. No entanto, ambos
eram caros sobretudo por estarem em uma área nobre da cidade. Comprar comida diariamente era impraticável para
estudantes de menor poder aquisitivo. À época, ambas usávamos as copas destinadas aos trabalhadores da limpeza e
manutenção da universidade, que dispunham de pequenos espaços dotados de geladeiras, onde conservávamos as
marmitas durante as aulas para depois esquentá-las e comer ali mesmo, às vezes na companhia desses funcionários.
O uso desses espaços pelos estudantes era feito de maneira informal. Em algumas ocasiões, quando o microondas
da copa quebrava, por exemplo, precisávamos buscar soluções nos outros departamentos (e o mesmo acontecia
com estudantes dos demais cursos; e isso nem sempre se dava de maneira pacífica pois a chegada de mais pessoas
aumentava significativamente a fila do microondas), tornando a hora do almoço uma longa peregrinação.
5 Como há muitas nuances e heterogeneidades quando falamos de territorialidades, é importante especificar que o
mapa oficial da Baixada considera 13 municípios e morávamos em Duque de Caxias e Nova Iguaçu, consideradas as
duas principais cidades da região em termos de atividades comerciais, geração de renda e circulação de pessoas.
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
6 Sair pela cidade, sobretudo à noite, era muitas vezes tido como perigoso pelas nossas famílias. De fato, a depender
dos horários e caminhos, o trajeto vinha acompanhado de riscos e medos da violência urbana e, enquanto mulheres,
o temor do assédio sexual. Muitas vezes, fazíamos companhia uma à outra, passando a madrugada na rua depois de
um passeio no boêmio bairro da Lapa. Além dos ônibus pararem de circular após um determinado horário da noite,
esperar os primeiros raios de sol significava também poder retornar à casa com certa segurança que a luz do dia
parecia nos trazer.
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
11 Cito de maneira crítica a ideia por trás da obra de Stefan Zweig intitulada Brasil, o país do futuro (1941).
12 A Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos instituiu o Novo Regime Fiscal que alterou a Constituição
de 1998, limitando as despesas do governo durante 20 anos. Para uma análise sobre os possíveis efeitos da lei na
educação, indicamos o artigo: ROSSI, Pedro; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de; ARANTES, Flávio; DWECK, Esther.
Austeridade fiscal e o financiamento da educação no Brasil. Educ. Soc., Campinas, v. 40, 2019.
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
13 Para Nilma Lino Gomes (2017) os movimentos sociais são educadores. Partindo de uma análise sobre o movimento
negro brasileiro, a autora defende que nas lutas antirracistas constroem-se saberes emancipatórios, e que estes
últimos, quando sistematizados, educam a universidade e a sociedade de maneira ampla.
14 Além disso, hooks conta que na universidade encontrou pares com os quais dialogar (e ela destaca o papel
fundamental de Paulo Freire na sua formação), e teve apoio de uma comunidade de aprendizado. Esta última é
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
definida como “o lugar onde a diferença poderia ser reconhecida, e onde finalmente entenderíamos, aceitaríamos, e
afirmaríamos que nossas formas de saber foram forjadas na história e em relações de poder” (Idem). Tradução própria.
15 No meu caso, as fronteiras de classe se misturam às de “raça”. Apesar da pele clara, e das possíveis vantagens que
isso me traz dentro de um sistema social racista, trago nos traços, e na raiz dos cabelos as evidências da mestiçagem. No
Brasil, como sabemos, pessoas brancas têm pelo menos o dobro do rendimento das não-brancas (GUIMARÃES, 2006).
Na graduação, sentia que meu fenótipo era mais uma camada reveladora da minha origem social, periférica e, portanto,
subalterna. Possivelmente, esse sentimento foi forjado ao ouvir histórias de família. Em uma delas, minha mãe conta
que a irmã de uma de suas patroas teria dito uma vez: “Nunca vi tanta gente feia. Parece que um ônibus veio direto
da Baixada, e parou na praia”. Para essa mulher, beleza deve ter a ver com branquitude e renda, já que as praias ficam
na zona nobre Rio, onde a maioria dos moradores (à exceção das favelas) é branca (COSTA, 2015). O documentário
brasileiro Os pobres vão à praia, produzido no final da década de 1980, traz comentários semelhantes ao que minha mãe
relata ter escutado. Disponivel em: https://www.dailymotion.com/video/x2p7wi7 Acesso em: 8 mar. 2021
16 Segundo a pesquisa dos autores, houve um aumento dos estudos sobre relações étnico-raciais nos últimos
anos. Resta saber se “são negros que estão estudando sobre relações raciais, ou a temática está para além da
autoclassificação dos estudantes de pós-graduação” (Ibidem, p. 1236)
17 Neste trabalho, as pesquisadoras associam a política de cotas na pós-graduação da Universidade Federal da Bahia
como importante fator do aumento de pesquisas sobre feminismos baseados na perspectiva decolonial.
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
18 A ideia de ponte sobre as diferenças vem de Audre Lorde. A autora usa o termo “bridging the differences”, que
seria melhor traduzida enquanto “vencer”, “superar” ou mesmo “contornar” as diferenças. Mas eu gostei da ideia
mais subversiva que a palavra bridging pode ter, já que ela deriva da palavra “ponte” em inglês. Me pareceu curiosa, e
profícua a ideia de que nossas diferenças também podem nos unir.
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19 A pesquisa ainda está em curso e mais informações sobre ela podem ser encontradas em artigo meu publicado pela
revista Critical Reviews on Latin American Research (MELO, 2021).
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
por minha trajetória me fez revisitar cenários que hoje compõem uma pes-
quisa inegavelmente motivada pela minha busca por compreender melhor
territorialidades que atravessam minha história. Refletir sobre essa ques-
tão, em termos teóricos e metodológicos, já vem há algum tempo se colo-
cando como relevante para mim a partir da minha vinculação ao campo da
antropologia. A disciplina acumula ao longo de sua história diversos de-
bates que partem da premissa de um envolvimento inevitável com o objeto
de estudo, sem que isso represente necessariamente um problema. E mais:
aponta para a necessidade de fazer desse envolvimento objeto de reflexão e
para a importância de explicitá-lo, o que pode abrir chaves importantes para
a compreensão das relações entre pesquisadores e seu universo de estudo.
Quando a proposta é “observar o familiar” (VELHO, 1980), como tem
sido em minhas pesquisas, o desafio de pensar o binômio distância/proximi-
dade, tão caro aos estudos antropológicos, ganha outras dimensões. Gilber-
to Velho trouxe contribuições significativas para esse tema a partir do estu-
do do que foi descrito por ele como “camadas médias superiores na fronteira
com as elites” (VELHO, 2003, p. 14), tendo como base a análise de grupos dos
quais ele fazia parte e com os quais tinha vínculos pessoais e afetivos.
Pensar relações com as quais se tem proximidade traz como desafio a
busca por uma postura de constante auto-vigilância para a desnaturalização
e compreensão de dinâmicas sociais nas quais estamos diretamente implica-
dos. Nessa empreitada, me somei a diversas outras pessoas que têm feito do
acesso à universidade espaço para o aprofundamento de reflexões e para a
produção de conhecimento sobre questões que atravessam suas próprias ter-
ritorialidades, gênero, identidades, classe social, entre outros temas (DA SIL-
VA; ARAUJO, op.cit; GOMES, 2020) que afetam a sociedade como um todo.
O estudo do familiar certamente não é uma novidade, mas é relati-
vamente recente que indivíduos vindos de grupos subalternizados, como
Elis e eu, também possam hoje, em maior quantidade, produzir conheci-
mentos sobre e a partir de suas experiências e origens particulares. Diante
disso, é interessante observar que têm ganhado espaço perspectivas que
buscam romper de modo mais radical com a dualidade sujeito e objeto a
fim de pensar relações entre experiência pessoal e processos sociais e po-
líticos. São expressão disso pesquisas que envolvem o uso da metodologia
da auto-história e da autoetnografia, por exemplo, nas quais o objetivo não
é apenas refletir criticamente sobre o lugar do pesquisador em relação ao
seu universo de pesquisa, como sugerido por estudos mais clássicos da
antropologia, mas de trazer elementos biográficos para o centro de suas
análises, fazendo deles matéria-prima para reflexão.
Neste artigo me dispus a fazer esse tipo de exercício a partir da me-
todologia da pesquisa- formação com base na história de vida, o que não
foi fácil para uma antropóloga que, embora busque sempre pensar seu
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
lugar em campo e suas relações com ele, tem como enfoque de pesquisa
trajetórias de outras pessoas e não a sua. Deslocar o foco para mim foi
um exercício extremamente rico para uma reflexão mais aprofundada não
apenas sobre meu lugar em minha pesquisa atual, mas também sobre meu
processo de formação de modo mais amplo e suas conexões com fenôme-
nos sociais e políticos.
Foram três os principais marcos que selecionei para narrar como
formadores em minha trajetória: a relação com a leitura construída na in-
fância, a preparação para o vestibular na adolescência e as questões so-
bre identidade e território provocadas pela faculdade na vida adulta. São
memórias vasculhadas, sentimentos desengavetados, projetos revisitados,
enfim, narrativas que devem ser pensadas a partir da perspectiva de que
“toda história contada é, por definição, interpretativa e que uma grande
parte de nosso trabalho de análise consistirá em desvelar as pré-interpre-
tações contidas nas suas ‘descrições dos fatos’ da vida” (JOSSO, op.cit., p.
428). Por isso penso nos relatos que escolhi trazer como mitos fundadores
do meu processo de formação em seus diferentes momentos. Há muitos ou-
tros nas entrelinhas, mas se esses vieram com cores mais fortes nesse auto-
-retrato que busquei pintar certamente não foi por acaso. Foi preciso, então,
acolhê-los, abraçando certas emoções que já não me vestem mais, ao mesmo
tempo em que são constitutivas da pessoa e da pesquisadora que sou hoje.
Como se revelou no texto, por muito tempo precisei acreditar em
lógicas meritocráticas para ter motivação para seguir em um caminho em
que tudo ao redor indicava não ser para mim. Me convenci e fui conven-
cida de que era preciso sofrer, me sacrificar, me isolar para conquistar um
objetivo. Estive constantemente lembrando à menina da Garganta do Dia-
bo que era preciso sonhar, mas sem nunca tirar os pés do chão, pois a vida
era dura, pesada, sempre. O quanto disso ainda não me veste como a roupa
mais íntima? Sutiã desses de aro apertado, difícil de tirar… Mas narrar minha
história é também uma oportunidade de refletir sobre o que está para além
de mim, religando os pontos para a compreensão de que “nossas existencia-
lidades em movimento são em certos períodos históricos mais fortemente
atingidas pelos efeitos desestruturadores de mudanças sociais, econômicas
e/ou políticas” (JOSSO, Ibidem, p. 416). Nesse sentido, pensar sobre minha
trajetória é pensar também sobre um momento histórico no Brasil em que
certos campos de possibilidades (VELHO, 1994) se alargaram.
Não é possível compreender as tramas do meu processo de forma-
ção ao longo da vida sem reconhecer que elas foram diretamente afetadas
por políticas públicas. Desde da minha entrada em um pré-vestibular co-
munitário e gratuito, a minha passagem como cotista pela universidade,
meu ir e vir pela cidade a partir do recebimento de bolsas - de auxílio ao
estudante, iniciação científica, extensão, mestrado e doutorado - sem es-
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
Considerações finais
Com o objetivo de contribuir para a reflexão em torno das transfor-
mações provocadas pela expansão do ensino superior no Brasil, revisitamos
neste artigo nossas histórias de vida, tendo como inspiração o método da
pesquisa formação e o diálogo com perspectivas teóricas e metodológicas
dos campos das ciências sociais e dos estudos decoloniais. Esse processo
evidenciou algumas questões para as quais gostaríamos de chamar atenção.
A primeira delas é que o acesso à universidade deve ser pensado para
além da simples entrada de novos perfis de estudantes e que estes devem
ser compreendidos em sua heterogeneidade, não apenas em termos so-
cioeconômicos, mas também em suas dimensões simbólicas e subjetivas.
Como revelam nossas trajetórias, houve um encontro entre momentos
biográficos marcantes e nossos repertórios de vida acumulados com no-
vos contextos e experiências provocados durante a formação universitária.
Isso se revelou na centralidade dos nossos locais de moradia e das nossas
origens familiares para a construção de relações com pessoas e espaços e,
consequentemente, para a criação de vínculos e de novas formas de viver a
cidade e a universidade. Trata-se de uma via de mão dupla na qual o fluxo
entre territorialidades e identidades foi fundamental, o que, inclusive, me-
receria ser mais discutido em outras reflexões, já que neste artigo não nos
aprofundamos no debate sobre identidades.
Esse processo foi provocador também de interesses em temas de pes-
quisa que atravessam nossas histórias de vida e, com eles, de reflexões so-
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
20 A pesquisadora trata especificamente dos efeitos da entrada de mais pessoas negras no ensino superior na
produção do conhecimento. Aqui, nos baseamos neste trabalho para ampliar o escopo da análise de Medeiros e lançar
a hipótese de que as experiências relacionadas à origem social e ao gênero também podem impactar as escolhas e
posicionamentos teóricos e epistemológicos de pesquisadores e pesquisadoras, como de estudantes.
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
caso científica, não serve apenas para validação do trabalho diante dos pa-
res; ela é também uma importante aliada ao fornecer repertórios que ajudam
a articular o complexo processo de produção do conhecimento. Ademais, ela
pode abrir a possibilidade para outras leituras da realidade social.
Referências
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
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CAPÍTULO 11
NARRATIVA(S), IMAGINAÇÃO
E CONHECIMENTO EM DUAS
EXPERIÊNCIAS DE REALIZAÇÃO
AUDIOVISUAL
Introdução
A proposta deste trabalho é aproximar as experiências de realização
de dois filmes dirigidos pelas autoras, ambas educadoras. Primeiramente
vamos tratar do filme Homem-peixe, de Clarisse Maria Castro de Alva-
renga (HOMEM-PEIXE, 2017) e, em seguida, de Um desenho, várias emo-
ções, de Ana Paula Soares da Silva Gomes (UM DESENHO..., 2020). Não
se trata de subsumir as diferenças entre eles, mas de promover um diálogo
entre os saberes produzidos em seus processos de criação.
Nas duas experiências, cada uma ao seu modo, o cinema e a educação
são fundamentais. Nesse sentido, o aspecto que associa os dois trabalhos é a
busca por criar espaços e tempos de escuta e observação das narrativas dos
sujeitos envolvidos nos processos (BENJAMIN, 1994). As autoras se colocam
a escutar e observar no ato da filmagem a maneira como os próprios sujeitos
escutam e observam eles(as) próprios(as) o mundo, assegurando um espaço
de comunicação em que a experiência estética é fundante e constitutiva das
relações e do conhecimento que se produz por meio dos filmes.
Homem-peixe (HOMEM-PEIXE, 2017) acompanha a maneira sin-
gular como o agricultor Juscelino acessa um conhecimento baseado nas
qualidades sensíveis de sua percepção sobre o mundo e na escuta das pes-
soas com quem se relaciona. No ano de 2009, fizemos uma viagem em que
ele, prestes a completar 50 anos de idade, aceitou o nosso convite de, pela
primeira vez, deixar a família e o espaço da comunidade onde vive no Nor-
te de Minas Gerais e ir até o litoral da Bahia para ir ao encontro de um
novo espaço então desconhecido: o litoral da Bahia.
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
Narrativa e imagem
Em Narradores – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov,
Walter Benjamin faz uma defesa acerca das potencialidades da narrativa.
Logo na abertura do artigo, sentencia-se que a figura do narrador não es-
taria mais presente entre nós. “A arte de narrar está em vias de extinção
[...] São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”
(BENJAMIN, 1994, p. 197), afirma. “É como se estivéssemos privados de
uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de inter-
cambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Depois de lamentar o fim da narração, Benjamin opõe a arte de narrar
a duas outras estilísticas que interferem na trajetória da narração ao longo
dos tempos, a saber, o “romance” e a “informação”. Em relação ao romance,
demonstra que ele se estabelece a partir de um estatuto vernacular e se ba-
seia na necessidade de isolamento de um sujeito, que parece não poder falar
sobre suas próprias experiências, estando impossibilitado de dar ou receber
conselhos. Diferentemente, a narrativa reitera a aposta na possibilidade de
comunicação da experiência entre os que narram e os que o escutam. Ape-
sar de representar pouco do ponto de vista da historiografia da literatura,
na qual o romance tem lugar destacado, o fim das narrativas é bastante sig-
nificativo, na concepção benjaminiana, pois está identificado com o fim da
possibilidade de ouvir e o desmanche das comunidades de ouvintes.
Sobre a informação, Benjamin diz que ela nos chega sempre acom-
panhada de explicações e de uma necessidade de verificação e compreen-
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Não pretendemos sugerir aqui que a narrativa seja uma forma pura
ou genuína de relato pois sabemos que os narradores desenvolvem artifí-
cios para manter a atenção dos ouvintes sempre alerta. As narrativas nos
interessam inclusive por esse seu caráter mestiço, híbrido e hipertextual.
Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1966), já havia dito da
necessidade de verificarmos a riqueza das figuras de linguagem usadas
fora do contexto e do tempo onde a língua está devidamente constituída.
As figuras de linguagem não são o efeito de um refinamento
de estilo; traem, pelo contrário, a mobilidade própria de toda a
linguagem, que é espontânea: ‘empregam-se mais figuras num
dia de mercado nas Halles do que em vários dias de assem-
bléias acadêmicas’. É muito provável que esta mobilidade seja
mesmo muito maior na origem do que presentemente: hoje,
a análise é tão fina, o reticulado tão cerrado, as relações de
coordenação e de subordinação tão bem estabelecidas que as
palavras quase não têm oportunidade de sair do seu lugar”
(FOUCAULT, 1966, p. 160).
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A experiência de homem-peixe
Figura 1 - Homem-peixe
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quisador, por outro, desvelar novas nuances desse local e desses sujeitos,
requer mais do que ouvir. Requer despir-se de ideias pré-concebidas e em
certa medida abrir-se para o outro. Educadores precisam também escutar.
Não apenas os pares, responsáveis ou as vozes oriundas de posições hie-
rárquicas superiores. É preciso escutar quem tradicionalmente é pensado
para ocupar a posição de apenas escutar, crianças e adolescentes sentados
em bancos escolares. E é preciso uma escuta outra, atenta e sensível, isto
é, disposta a saber de histórias de vidas, cosmovisões, dificuldades, dores,
alegrias, sonhos e conhecimentos. Escuta que aproxima, cria comunida-
des, constrói pontes e auxilia nas travessias.
É preciso mais que o reconhecimento das normas, das leis do
pensamento, das prescrições metodológicas, das estratégias
de controle do tempo e do espaço para entrar e sair das re-
lações de produção dos saberes em campo. É preciso o reco-
nhecimento dos saberes que atravessam nossos corpos e dese-
nham sob a nossa pele a memória sublime das sensibilidades
que aprendemos a cultivar, vivendo as diferentes situações de
estar com os outros . É preciso ler e reler as lições que nos
indicam a pesquisa como uma forma de proximidade conos-
co. Um processo de proximidade com os outros. Proximidades
que nos alteram conosco e com os outros. Através da experi-
ência em pesquisa constituímos, às vezes sem saber, saberes
estéticos expressivos que introduzem neste espaço (cheio de
restrições, repetições e configurações do mesmo) vivências do
extraordinário (PIMENTEL; ÁLAMO, 2016, p. 8).
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Agradeço de coração
A Deus e a quem quer que seja
Que me deu essa riqueza
O contato com a natureza
Só faz bem à minha cabeça
E é o que me dá inspiração.
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mais simples que seja, mas é com muito carinho, com muito amor que eu
faço e me sinto feliz cada vez que eu faço, eu sinto uma alegria assim por
dentro, eu sinto qualquer coisa - (Selma, artista e serviços gerais, 2019).
Assim como Selma, Graça, uma das professoras mais antigas da es-
cola, também traz à tona memórias de afeto e as adversidades de trabalhar
em uma comunidade e instituição ainda nos primeiros passos. A dimensão
da organização comunitária, bem como a incansável luta dos moradores
do bairro e dos profissionais da educação por melhoramentos na escola e
na comunidade aparecem em seu relato. Em certo ponto da conversa, Gra-
ça olha para a quadra representada no desenho sem o telhado que a cobre
hoje em dia e se recorda:
(...) sou apaixonada por essa escola, muito apaixonada e foi uma luta pra
conseguir, é, fazer essa quadra. Você vê que hoje ela já é coberta, né, na
época ela não era coberta. Era uma luta, né, no sol quente, com chuva não
podia, né, porque com chuva molhava tudo. É, não tinha arquibancada, né,
tão vendo aí que era grama, não tinha arquibancada, hoje é arquibancada,
né, mais o que? Ah, eu sei que dá uma lembrança, muito, muito gostosa,
porque foi uma luta pra gente conseguir o que está aqui - (Graça, profes-
sora alfabetizadora, 2019).
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do lugar onde visita coloca em questão sua percepção como se ele estives-
se a tatear esse espaço para conhecê-lo na tentativa sempre em processo
de traduzi-lo. Trata-se de um conhecimento que surge do tato e enfatiza
o caráter táctil dessa elaboração. No caso de Um desenho, várias emo-
ções (UM DESENHO..., 2020) também está em evidência uma maneira de
conhecer e construir um território que tem a ver com o caráter sensível
dessa experiência na escola. Não se trata de um conhecimento adquirido
nos livros, mas de um conhecimento que se produz no contato direto dos
sentidos com o mundo.
Usar a confissão e a memória como meios para nomear a reali-
dade permite que mulheres e homens conversem sobre experi-
ências pessoais como parte de um processo de politização que
posiciona tal conversa num contexto dialético. Isso nos permi-
te discutir sobre a experiência pessoal de uma forma diferente,
de uma maneira diferente, de uma maneira que politiza não só
a narração, mas também a narrativa. Ao teorizar a experiência
enquanto contamos narrativas pessoais, teremos um sentido
mais afiado e aguçado do objetivo que é desejado pela narra-
ção (HOOKS, 2019, p. 227).
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Referências
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Referências fílmicas
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CAPÍTULO 12
Introdução
No presente capítulo, apresento uma narrativa sobre a tragédia que
se abateu sobre localidades do estado de Minas Gerais e do Espírito Santo,
devido ao rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana/MG, no dia
05 de novembro de 2015. Esta barragem estava sob a responsabilidade da
mineradora Samarco, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton. Em
2021, quando escrevo este texto, muitos (as) atingidos (as) ainda sofrem as
consequências do ocorrido, experimentam incertezas jurídicas que pro-
duzem esperanças precárias. Existem disputas sobre a responsabilidade
do acontecido, porém, junto com muitos (as), compreendo aquela tragédia
como resultado da irresponsabilidade de um sistema que privilegia o lucro
em detrimento da vida humana.
A narradora é Eliene Geralda Santos, que era diretora da Escola Mu-
nicipal de Bento Rodrigues, no distrito de mesmo nome, uma localidade
centenária da cidade de Mariana que foi devastada pela lama da barragem.
A entrevista narrativa se deu em 30 de março de 2017, quando Eliene esta-
va com 33 anos de idade. Sua narrativa se mescla a muitas outras que nos
dizem sobre aquele dia e seus desdobramentos. O relato oral é a materia-
lização de um conjunto de pensamentos, emoções, posições existenciais
do viver que localizam o sujeito dentro de um determinado universo de
significados (DUTRA, 2002). Todavia, pela entrevista narrativa, partindo
de uma questão gerativa, localizamos um acontecimento, para que quem
narra situe sua história e direcione todo relato, sem interrupções por parte
de quem escuta (MUYLAERT et al., 2014).
Na voz de Eliene muitas vozes se misturam e nos relatam sobre a lama
que atingiu grandes áreas daquela região, também invadiu rios, córregos e
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Bom, gente, assim, é até difícil… É muito difícil descrever esses desafios que
a escola tem enfrentado, esses dois anos. Eu acho que assim, novembro…
Eu lembro de novembro [de 2015] logo quando a gente voltou com as ativi-
dades com os alunos, nosso desespero era não ter nada. Assim, era não ter
nenhum arquivo mais, acho que isso pesa demais. Porque enquanto mora-
dores, cada um de nós conseguiu refazer documentos, a identidade, o CPF,
uma carteira de motorista. Isso tudo a gente consegue fazer uma segunda
via. Mas a questão da documentação da escola pesou muito, você não tem
mais nada. Você não tem livro de atas, você não tem livro de matrícula,
você não tem o resultado dos alunos mais, um diário ao que se basear.
Então isso foi muito! Por mais que estava na lembrança da gente, a gente
precisa disso no concreto. Pegar, comparar…
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
Então foi muito difícil para a gente essa questão do material, não ter mais
esses documentos. Então… Isso foi pesado demais. Hoje, a gente já está
acostumado com isso, mas aquele mês de novembro e dezembro dava von-
tade de desistir, porque você não tem mais nada… Nenhum documento
mais que prove as questões do menino, as dificuldades dele… Ele está lá
no 5° ano, mas lá na educação infantil já apresentava aquela defasagem.
Estava ali, estava registrado, tinha como provar e não ter isso mais foi pe-
sado. Foi duro. Até mesmo para você iniciar uma ata você tinha que puxar
lá da memória como que eu inicio, qual que é a primeira frase que a gente
faz lá no livro de ata. Então tudo foi questão de memória mesmo… Então,
isso pesou muito.
O que facilitou o nosso trabalho foi a questão da referência da escola, a
gente saber o quanto que a escola é importante para o distrito… Isso veio de
contra partida, a gente tinha vários desafios, mas ao mesmo tempo saber o
quanto que a escola era importante e é importante para a comunidade é o
que deu essa energia para a gente.
Porque eu não esqueço até hoje do dia que a secretária de educação, até
então era Bete Cota, ela entrou pelo Hotel Providência, eu estava no Hotel
Providência, e ela me perguntou: “O que que você acha, a gente volta com
as aulas com os meninos? Isso vai ser bom ou ruim para eles?” E eu via
os meninos morrendo de medo o tempo inteiro, eles não podiam escutar
barulho, eles não podia… toda hora grudado com o pai, com a mãe… E eu
falei “Eu, pelo que eu tenho visto aqui no Hotel, vai ser difícil. Mas, eu
acho válido tentar.” E aí, só que eu expliquei a minha situação, que não
tinha condições de voltar naquela semana que meu menino tinha quebrado
a perna… Aí eu falei que não poderia voltar, que ele estava com um ano e
dez meses só, é difícil deixar. E aí eu fui, conversei com ela e disse, vamos
tentar! A equipe é boa, os professores estão preparados, vamos tentar. E no
primeiro dia de aula, naquele dia, na segunda-feira, todos os alunos foram.
Todos! Não faltou um aluno! Eu fui também, junto com meu menino, para
ver como seria esse início. E aí eu fiquei muito satisfeita de ver o quanto a
escola é muito importante e o quanto ela é valorizada. Então isso deu um
pouco de energia para a gente.
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Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)
complicado, mas a equipe ela é forte, ela é uma equipe unida. A questão
do resultado do aluno até hoje é muito difícil, assim emitir um histórico.
Hoje em dia a gente pega um menino lá do 9° ano e válida o histórico dele
todinho e coloca só a nota de 2015 para frente. É triste! A gente sabe que é
difícil. Tem algumas escolas aqui que mostram até resistência para receber
esses documentos. Mas assim, são coisas que a gente vai adaptando, vai
acostumando. Eu lembro também do ano passado de ter sido muito penoso
para mim também correr atrás da documentação da escola. Registrar tudo
de novo né, essas questões de ir atrás de cartório, de ir na receita federal, e
comprova daqui, comprova dali, isso foi muito penoso, porque ao mesmo
tempo eu sentia que a escola precisava da minha presença lá. Mas, ao mes-
mo tempo eu ficava muito tempo fora da escola resolvendo essas questões.
Então eu achei muito complicado. Eu lembro que eu consegui legalizar a si-
tuação da escola já estava encerrando o primeiro semestre. Porque até então
não estava legal a nossa situação, a gente estava funcionando, mas ainda
não é legal, não tem um lugar fixo, a escola não tinha mais seu registro. E
aí nós conseguimos, graças a Deus, corremos atrás, conseguimos. Então, são
muitos detalhes, muita coisa, assim, que a gente resolve um problema aqui,
e tem outro, tem outro… Fora essas questões administrativas, de registro, é o
perfil dos alunos que muda demais, até então eram alunos de distrito, com
poucas referências, com um leque menor de oportunidades, então eu tenho
muitas crianças que estão aproveitando a vida na cidade para fazer coisas
boas, eu tenho muitos adolescentes aproveitando a vida na cidade para fa-
zer coisas ruins. Então assim, está bem confuso, está bem complicado.
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
litar. Ter que ir na delegacia fazer boletim. Isso com meninos de 12 anos,
13 anos, que não davam trabalho, andavam a cavalo, que nadavam, que
pulavam o muro para ir nadar, que pulavam o muro para ir andar a cava-
lo. Mas, são umas questões assim, mais fáceis e compreensíveis e a gente
consegue resolver. Agora eu estou achando um pouco mais complicado, a
família perdeu um pouco do domínio com eles morando aqui [na sede do
município de Mariana].
E fora isso, essas questões de raiz mesmo, essa questão de um habitar tam-
bém. Oh gente! Nossa, morar na casa do outro não é fácil! É só você que
cede o tempo inteiro. Você escuta coisas que o tempo inteiro que desagrada,
que desmotiva, que coloca você para baixo. A escola não é sua, você vai
tirar xerox na hora que sobrar. “Aqui vai funcionar assim, assado...”. Então
esse tempo inteiro quem cede é aquele que chegou por último. E a gente lida
com isso o tempo inteiro, e é complicado, por mais que você tenha cabeça
aberta, é... que você tenta mediar esse tipo de conflito, não é todo mundo que
é assim, tem pessoas que revidam, tem pessoas que adoecem com isso. Então
é de cada um. Eu acho que essa operação é de cada um mesmo. E a gente
viveu muito com isso. Essa questão da comunicação era muito complicada.
É difícil de resolver. Porque, por mais que pegue um cantinho lá na escola,
só para a Escola de Bento, a gente não consegue manter a nossa identidade.
Não é mais a mesma coisa que era antes. É... a gente tinha um trabalho
assim... nossa escola era reconhecida como a escola dos painéis. Todas as
atividades que eram desenvolvidas, todos os trabalhos que eram desenvol-
vidos, a gente montava um painel do lado de fora e colocava, e expunha
os trabalhos lá no muro e eles gostavam. Aqui nós já tentamos umas qui-
nhentas vezes. Não foi uma tentativa, duas, três... A gente já tentou várias
vezes expor o material dos meninos. Essa exposição poderia estar lá no
Dom Luciano [a exposição que estava sendo exibida no prédio do ICHS, em
Mariana]. Mas, se a gente coloca lá, some tudo, estragam tudo. E aí a gente
fica preocupado com essas questões, que a nossa identidade com a escola,
ela ainda não conseguiu trazer de volta. Espero que a gente consiga agora,
mudando para o Catete [bairro da cidade de Mariana]. Eles estão alugando
uma casa para funcionar como escola lá. Mas, são muitas coisas pequenas,
que dificultam de fato nosso trabalho.
E essa questão com os meninos mesmo, eu estou achando muito complica-
do essa questão com os alunos. Porque antes as advertências, as ocorrên-
cias com eles eram mais tranquilas do que está sendo agora. Acho que os
pais estão meio que perdendo a linha mesmo. Que isso é papel da família,
não é da escola. E eu acho que as famílias estão meio que desequilibradas,
não estão conseguindo achar uma saída para isso não, apesar de ter todo
o acompanhamento, e eles não estão conseguindo. E aí sobra tudo para a
escola... Porque a escola é tudo! A escola é que dá conselho, a escola que vai
lá e ajuda, é a escola que conversa, é a escola que tem que chamar a mãe e
falar “olha não é assim que fala com seu filho”... E aí fica pesado. Porque,
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As dificuldades em recomeçar
Após esta primeira parte, certificando que não haveria algo mais
para acrescentar por parte de Eliene, foram propostas algumas questões à
narradora, contudo apenas retomando temas por ela já relatados, evitando
quaisquer questões estranhas à sua fala, dentro do escopo daquilo que se
propõe como entrevista narrativa (MUYLAERT et al, 2014). A partir do
recorte deste artigo, privilegiamos o relato que diz mais especificamente
da escola, assim, não apresentamos outros trechos também importantes,
como o relato específico do dia da tragédia. Uma das questões que reto-
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mamos foi em relação à vida escolar dos (as) estudantes. Foi proposta uma
questão sobre como os (as) estudantes foram realocados nas escolas. Eliene
informou que aqueles (as) estudantes que foram para o ensino médio fica-
ram distribuídos em outras escolas, porém o restante permaneceu numa
mesma escola. Vejamos o relato de Eliene colocado que diz sobre a convi-
vência no mesmo prédio com uma outra escola.
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DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS
eu por exemplo, não queria fazer... separado. Sou obrigada a fazer porque os
pais dos meus alunos não aceitam. Então você, você fica preso, a gente quer
que os meninos socializem, que os meninos se encontrem e brinquem juntos.
Mas não conseguem, porque os pais dos meus não aceitam, os pais dos meni-
nos do Rosário não aceitam, e aí é complicado, então nunca vai ter um bom
relacionamento se a gente não consegue fazer com que eles fiquem juntos.
Mas a questão da nova casa é isso, é por causa da questão da identidade,
cada escola tem uma forma de funcionar. Nossa escola prioriza umas coisa,
outras ela deixa para lá, assim é no Dom Luciano, assim é a outra escola.
Então cada um tem uma forma de trabalhar e eu acho que um cantinho é
essencial, cada um ter seu cantinho. Nós vamos deixar de estar trabalhan-
do numa escola, tem uma estrutura boa, grande, a sala é ampla, é arejada,
para ir para uma casa alugada. Que a casa que a gente está indo, é uma
casa, não é uma escola, só está sendo adaptada, é pequena. Banheiro, por
exemplo, é um vaso só, cada banheiro, um vaso no banheiro masculino,
um vaso no banheiro feminino. Se entra num banheiro de uma escola, se
entrou ali tem três, quatro, cinco vasos, tem toda uma facilidade, que é
uma estrutura para funcionar uma escola. Mas a gente optou por isso, por
essa questão de ter o nosso canto, de ter o nosso cantinho, se não ter mais
que ficar dividindo nada, de saber que aquilo ali é meu, que eu vou colar,
vai ficar, vai ficar colado ali, não vai gerar muito atrito, muita confusão,
muito conflito, então é importante. Eu sempre falo com todo mundo, às
vezes uma sogra, você vai morar com sua sogra, coitada, quer te ensinar,
quer te ajudar, ela abre as portas da casa dela, mas mesmo assim você não
se sente à vontade, não é a sua casa. Então, assim é complicado mesmo,
cada um quer ter seu canto. Por mais que seja inferior ou sinta acostumado,
mas quer seu canto. Eu acho que é isso que a equipe está precisando. Mas
a nossa perspectiva, nossa, nós estamos bombando, contando os minutos
pra ir para lá, (risos) doida pra ir, eu já arrumei até caixa de papelão, tudo,
ó! Quando vocês falarem que é para ir, já tem até a caixa de papelão para
colocar os pertences de todo mundo (risos).
Considerações finais
Nos trechos da narrativa, aqui apresentados, a narradora trouxe
alguns temas que destacamos como organizadores da narrativa. Inicial-
mente ela apresenta a desolação provocada pela tragédia e a importância
do reconhecimento da escola pela comunidade. Logo após o rompimento
da barragem, emergem duas urgências: a sobrevivência diante da lama
que invadiu e destruiu o distrito e a escola, bem como a necessidade de
se alojar e se alimentar. O prédio da Escola de Bento estava soterrado sob
a lama, mas a comunidade escolar estava viva e buscando se reencontrar.
Era uma catástrofe inédita e não havia caminhos pré-definidos sobre o
que fazer. Nesse momento de desolação, Eliene percebe o valor que a es-
cola tinha diante do distrito. Comunidade e escola possuíam fortes laços,
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Porém, muito ainda estava por vir. Com o reinício das atividades
havia todo um cotidiano para ser reorganizado. Houve colaborações que
emergiram de diretores (as) de outras escolas, de agentes públicos e ges-
tores (as). Porém o histórico escolar dos alunos emerge como motivo de
grande preocupação para Eliene, o aluno que chora diante de um histórico
que parecia incompleto comovia nossa narradora. Existia uma sensação
de impossibilidade em continuar, algo que ao longo da entrevista Eliene
nomeia. Ela relata sobre alguns momentos em que pensou em desistir, e
desistiu, todavia, logo retornava. A sua relação com a comunidade não era
apenas como diretora daquela escola, mas como moradora daquela locali-
dade, onde cresceu e partilhou o seu cotidiano com tantas pessoas. Bento
Rodrigues também era o lugar de residência de sua família. Com o deslo-
camento para Mariana, Bento Rodrigues já não era mais sustentada pelos
limites geográficos da localidade destruída. Bento passou a ser uma comu-
nidade que se sustentava por outros vínculos, pois aqueles da proximidade
física já não eram possíveis como antes.
Arrisco dizer que tanto a escola como a comunidade de Bento Rodri-
gues se tornaram nômades, ocupantes provisórios de um espaço que por
vezes demonstrava hostilidades. Sustentar os vínculos afetivos e sociais
entre Eliene, a comunidade e a escola tornou-se um grande desafio. Nes-
sa provisoriedade a escola e a comunidade se deparam com problemas de
uma outra sociabilidade, principalmente com os casos de polícia envolven-
do os adolescentes. O problema com o alunado já não era a fuga para nadar
no rio ou andar a cavalo, mas problemas com a polícia de Mariana. O des-
locamento produziu esgarçamentos do tecido social daquela comunidade,
colocando pais, mães e professores (as) em estado de alerta com problemas
antes não imaginados na antiga Bento. Todavia, ainda assim, existe uma
enorme resistência que opera junto às dificuldades em recomeçar.
Está todo mundo ainda bem focado no velho Bento, bem focado no que
aconteceu. E esse recomeçar, tem que começar mesmo, porque se não a
gente vai perder vínculo, vai ficar uma cicatriz difícil de apagar depois -
(ELIENE, 2017).
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Referências
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CAPÍTULO 13
SESSÃO DE ENTREVISTA
Toda narrativa contém histórias. Toda narrativa tem sua própria his-
tória. Assim foi: em uma tarde de março de 2021, dia 08, estando Daniel
em Buenos Aires; Karla e Inês em Belo Horizonte e Glaucimary em Ber-
lim, atravessamos continentes para um encontro remoto. Nosso convite
para uma entrevista foi aceito com solicitude por Daniel, uma de nossas
maiores referências internacionais em trabalhos com narrativas, sobretu-
do com professores (as). Durante um período, fizemos os entendimentos
relativos aos propósitos da entrevista. Por fim, optamos por um caminho
misto em que, de um lado, apresentamos previamente a Daniel um rotei-
ro de pontos sobre os quais gostaríamos de escutá-lo e, de outro, fizemos
também uma pergunta/formulação aberta, como uma questão geradora.
Ele escolheu este caminho, tendo falado mais livremente e, aos poucos,
enquanto entrevistadoras, fomos colocando tópicos sobre os quais ainda
não havia desenvolvido.
O clima geral da entrevista foi de descontração, confiança, amabili-
dade e, sobretudo, de reflexividade. Daniel nos ofereceu ideias muito sig-
nificativas, vigorosas, por vezes surpreendentes e originais. Aprendemos
muito junto com Daniel neste belo momento de encontro, trocamos ideias
vigorosas, plenas de possibilidades e de fértil imaginação para nossos tra-
balhos com narrativas e similares.
Antes de iniciarmos a entrevista, após os cumprimentos, agradeci-
mentos, apresentações e comentários sobre o contexto político dos dois
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1 Agradecemos a transcrição da entrevista em espanhol feita por Maria Regina Brandão Lins Veas.
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2 MEIRIEU, Philippe. Recuperar la pedagogía. De lugares comunes a conceptos claves. 1. ed. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Paidós, 2016.
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Palavras finais
Assim, concluímos esta nossa edição da entrevista com Daniel Suarez,
agradecendo sua disponibilidade e sua abertura para o diálogo conosco, di-
zendo que sentimos profundamente renovadas e inspiradas por sua narrati-
va, ainda que levantando novas questões para novas conversas. Ao que Da-
niel nos responde: “quando queiras, como quieras”, “me encanta conversar”!
5 Trata-se da tese intitulada O naufrágio, o baile e a narrativa de uma pesquisa: experiências de formação de sujeitos
em imersão docente, defendida em 2018, que contou com período sanduíche na Universidade de Buenos Aires, sob a
orientação Daniel Hugo Suárez, que se tornou co-orientador do trabalho, em parceria com Júlio Emílio Diniz Pereira
(Orientador). O estudo está disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BA8PTQ/1/faria_2018_
tese_finalcompleta.pdf. Acesso em: 02 maio 2022
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SOBRE AS AUTORAS E AUTORES
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Elis de Aquino
Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2013), e em Sociologia pela Université Paris Diderot
(2014). Conclui mestrado em Sociologia pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris (2017), e atualmente sou doutoranda em Sociologia
na Freie Universität Berlin e Research Fellow do Colégio Internacional
de Graduados “Temporalidades do Futuro na América Latina”, financiado
pela agência de pesquisa alemã DFG. Ao lado da vida acadêmica, pratico
escalada, sou obcecada em descobrir novas músicas, com especial interes-
se por ritmos não-ocidentais. Também ando aprendendo violão e alemão
pelo Youtube.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0430539112854814
E-mail: elis.deaquino@fu-berlin.de
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