Você está na página 1de 312

PESQUISAR E CONTAR:

HORIZONTES DA NARRATIVA
Inês Assunção de Castro Teixeira
Karla Cunha Pádua
Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs.)

PESQUISAR E CONTAR:
HORIZONTES DA NARRATIVA

1ª Edição

São Carlos / S P

Editora De Castro

2022
Copyright © 2022 dos autores.

Conselho Editorial: Profª Drª Jucelia Linhares Granemann


Profª Drª Adriana Garcia Gonçalves Universidade Federal de Mato Grosso do
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS
Prof. Dr Alonso Bezerra de Carvalho Profª Drª Juliane Aparecida P. P. Campos
Universidade Estadual Paulista – Unesp Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Prof. Dr Antenor Antonio Gonçalves Filho Profª Drª Layanna Giordana Bernardo Lima
Universidade Estadual Paulista – Unesp Universidade Federal do Tocantins - UFT
Profª Drª Bruna Pinotti Garcia Oliveira Prof. Dr Lucas Farinelli Pantaleão
Universidade Federal de Goiás – UFG Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Profª Drª Célia Regina Delácio Fernandes Prof. Dr Luis Carlos Paschoarelli
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD Universidade Estadual Paulista – Unesp / Faac
Prof. Dr Felipe Ferreira Vander Velden Profª Drª Luzia Sigoli Fernandes Costa
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Prof. Dr Fernando de Brito Alves
Profª Drª Marcia Machado de Lima
Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP
Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Prof. Dr. Flávio Leonel Abreu da Silveira
Prof. Dr Marcio Augusto Tamashiro
Universidade Federal do Pará – UFPA
Profª Drª Heloisa Helena Siqueira Correia Instituto Federal de Educação, Ciência e
Universidade Federal de Rondônia – UNIR Tecnologia do Tocantins – IFTO
Prof Dr Hugo Leonardo Pereira Rufino Prof. Dr Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Campus Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Uberaba, Campus Avançado Uberaba Parque Tecnológico Prof. Dr Mauro Machado Vieira
Profª Drª Jáima Pinheiro de Oliveira Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Universidade Federal de Minas Gerais, Prof. Dr Osvaldo Copertino Duarte
Faculdade de Educação – UFMG / FAE Universidade Federal de Rondônia – UNIR

Editor da Editora De Castro: Carlos Henrique C. Gonçalves


Projeto gráfico e capa: Carlos Henrique C. Gonçalves
Imagem para capa: artesanato peruano cedido pela família de Inês Teixeira
Revisão de textos/normalizações (ABNT): Francisco Antonio Soria Martins / franciscosoriamartins@outlook.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Lumos Assessoria Editorial
Bibliotecária: Priscila Pena Machado CRB-7/6971

P474 Pesquisar e contar : horizontes da narrativa [recurso


eletrônico] / organizadoras Inês Assunção de Castro
Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento
Teodósio. — 1. ed. — São Carlos : De Castro, 2O22.
Dados eletrônicos (pdf).

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5854-9O5-5

1. Educação - Brasil. 2. Professores - Formação.


3. Prática de ensino. 4. Educação - Métodos biográficos.
I. Teixeira, Inês Assunção de Castro. II. Pádua, Karla
Cunha. III. Teodósio, Glaucimary Nascimento. IV. Título.

CDD23: 37O.71

Todos os direitos desta edição foram reservados aos autores. Editora De Castro
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em contato@editoradecastro.com.br
parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610). editoradecastro.com.br
UM VIVA A INÊS!

Devemos nosso agradecimento especial à querida


professora Inês Teixeira, que nos deixou antes que este livro
tivesse sido publicado.
Como uma das organizadoras, ela participou de toda
a concepção do livro, desde os convites aos participantes,
o seu belo texto de Introdução até os seus contatos para a
realização da entrevista com o professor Daniel Suarez, que
tanto enriqueceu nossa obra.
Além disso, com sua sensibilidade pessoal e acadêmica,
a professora Inês foi sempre nossa inspiração no trabalho
com narrativas.
Esperamos que o livro seja mais uma importante
contribuição para deixar sua marca na formação de novas
gerações de pesquisadores e buscadores de histórias narradas.
E que ela continue sempre INÊSquecivel a iluminar nossas
trilhas e caminhos com as narrativas.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 9

CAPÍTULO 1
CONDIÇÃO DOCENTE DOS PROFESSORES DA REDE ESTADUAL DO RIO GRANDE
DO SUL SOB O OLHAR DO IMAGINÁRIO SOCIAL
Adriele Machado Rodrigues (UFSM)
Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) ........................................................................................ 23

CAPÍTULO 2
DESPERTAR HISTÓRIAS ADORMECIDAS: NARRATIVAS DE GEO-GRAFIAS
DOCENTES
Álida Angélica Alves Leal (FaE - UFMG)
Inês Assunção de Castro Teixeira (FaE - UFMG) .............................................................. 39

CAPÍTULO 3
PARA ALÉM DA REMUNERAÇÃO: PROFESSORAS NOS CONTAM
COMO SE SENTEM VALORIZADAS
Valdete Aparecida Fernandes Moutinho Gomes (UFOP)
Célia Maria Fernandes Nunes (UFOP) .................................................................................. 59

CAPÍTULO 4
IMAGENS DOCENTES: NARRATIVAS SOBRE A FORMAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA DE
PROFESSORES DE CRIANÇAS E SUAS PRÁTICAS EDUCATIVAS
Glaucimary Nascimento Teodósio
José de Sousa Miguel Lopes ................................................................................................... 83

CAPÍTULO 5
RODA DE NARRATIVAS: ENTRE A PEDAGOGIA DA RODA E
A DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA
Fábio Júnio Mesquita (UEMG)
Karla Cunha Pádua (UEMG) ................................................................................................... 113

CAPÍTULO 6
“UMA PERSPECTIVA A PARTIR DAS MARCAS QUE EU CARREGO NA VIDA”:
NARRATIVAS DE DOCENTES SOBRE OS PROCESSOS FORMATIVOS DOS SABERES
QUE ENVOLVEM A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Paulo Henrique Maia Melgaço (UEMG)
José Eustáquio de Brito (UEMG)
Santuza Amorim da Silva (UEMG) ........................................................................................ 131

CAPÍTULO 7
A TRAJETÓRIA FORMATIVA DE UMA PEDAGOGA: A REFLEXÃO DO PROCESSO
DE CONSTRUÇÃO DE PROFISSIONALIDADE DOCENTE
Marilene do Carmo Silva (UFOP)
Regina Magna Bonifácio de Araújo (UFOP) ....................................................................... 163
CAPÍTULO 8
NARRATIVAS-OTRAS Y EXPERIENCIAS SEXUADAS: PROFESORAS
SINDICALISTAS ARGENTINAS
Zulma Viviana Lenarduzzi (Facultad de Ciencias de la Educación - Universidad Nacional
de Entre Ríos – Argentina) ..................................................................................................... 181

CAPÍTULO 9
NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS JUVENIS NO MOVIMENTO CULTURAL SLAM
INTERESCOLAR
Priscila Lima e Silva (UEMG)
Cirlene Cristina de Sousa (UEMG) ...................................................................................... 205

CAPÍTULO 10
TRAJETÓRIAS EM PERSPECTIVA: UMA REFLEXÃO SOBRE NOVOS PERFIS
DISCENTES E ACADÊMICOS NO BRASIL A PARTIR DE DUAS HISTÓRIAS DE VIDA
Elis de Aquino (Freie Universität Berlin)
Renata Melo (UFRJ) ................................................................................................................ 229

CAPÍTULO 11
NARRATIVA(S), IMAGINAÇÃO E CONHECIMENTO EM DUAS EXPERIÊNCIAS DE
REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL
Clarisse Maria Castro de Alvarenga (UFMG)
Ana Paula Soares da Silva Gomes (UFMG) ........................................................................ 251

CAPÍTULO 12
UM COTIDIANO INSTÁVEL QUE SE ALIMENTA DE ESPERANÇA: NARRATIVA DA
DIRETORA DA ESCOLA MUNICIPAL DE BENTO RODRIGUES
Marco Antonio Torres (UFOP) ............................................................................................. 271

CAPÍTULO 13
SESSÃO DE ENTREVISTA
INVESTIGAÇÃO NARRATIVA: APRENDENDO COM A EXPERIÊNCIA DE DANIEL
SUAREZ
Inês A. Castro Teixeira
Karla Cunha Pádua
Glaucimary Nascimento ......................................................................................................... 285

SOBRE AS AUTORAS E AUTORES .................................................................................... 303


INTRODUÇÃO

O livro Pesquisar e contar: horizontes da narrativa reúne capítulos


que resultam de trabalhos acadêmicos no campo da Educação e áreas afins
que têm como eixo norteador as narrativas em suas dimensões epistemo-
lógica e metodológica, em variados formatos de apresentação das mesmas
em trabalhos de investigação e de formação dos sujeitos da Educação. Os
textos oferecem contribuições relevantes do ponto de vista teórico-meto-
dológico para pesquisadores interessados no entrecruzamento do campo
biográfico-narrativo e da Educação e apontam potencialidades do uso de
narrativas para a reflexão de temas contemporâneos, tais como: condição
docente, valorização do trabalho docente, temporalidade e formação, for-
mação estética do professor, experiências formativas, pedagogias alterna-
tivas, escrita poética de jovens, diálogos entre saberes populares e científi-
cos, formação para as relações étnico-raciais, experiências de sindicalistas
docentes, entre outras possibilidades. Destina-se a diversos públicos,
principalmente, estudantes de graduação e pós-graduação em educação
e de outras áreas, professores das redes públicas e privadas, que desejam
conhecer e se aprofundar na pesquisa e na formação numa perspectiva
biográfico-narrativa.
A ideia de organizar uma coletânea com essa temática nasceu de di-
álogos estabelecidos por uma rede de pesquisadores(as) que optaram pela
utilização de narrativas como metodologia principal de investigação na
área da Educação. Essa rede começou no Programa de Pós-Graduação
em Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde
muitas de nós nos formamos e aprendemos a desfrutar de resultados das
nossas primeiras pesquisas com narrativas. Essa rede, aos poucos, foi se
espalhando e encontrando solo fértil nos Programas de Pós-Graduação
em Educação, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e, assim, foi abrindo novas
trilhas, primeiro na região sul, no Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e no Instituto Federal
Farroupilha (IFFAR). Por meio de tais trilhas, pudemos incorporar a essa
proposta novas contribuições internacionais, que resultam de nossos diá-
logos com o Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (ULisboa),
em Portugal; com a Universidad de Buenos Aires (UBA); com a Universi-
dad Nacional de Entre Rios (UNER), na Argentina e com Freie Universität
Berlin (FU), na Alemanha. A vitalidade dessa rede vem se expressando nos

9
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

frutos gerados pelas novas gerações de pesquisadores que abraçaram as


narrativas como parte de suas pesquisas, mostrando a grande fecundida-
de e pertinência da investigação biográfico-narrativa. Esse livro apresenta
contribuições teórico-metodológicas para aqueles que desejam investigar
nesse campo, mostrando a riqueza de possibilidades e de variações que a
pesquisa com narrativas oferece, conforme os contextos e os sujeitos que
os/as pesquisadores/as vão encontrando pelo caminho.
O livro compõe-se de 13 capítulos resultantes de pesquisas acadê-
micas, realizadas em nove diferentes instituições de ensino superior, sen-
do quatro delas internacionais (Universidade de Lisboa, Universidad de
Buenos Aires (UBA), Freie Universität Berlin (FU) e Facultad de Ciencias
de la Educación - Universidad Nacional de Entre Ríos (UNER) e outras
cinco brasileiras: Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Uni-
versidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Universidade de Santa Maria
(UFSM), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Instituto Fe-
deral Farroupilha (IFFAR). Todos os capítulos contam com pelo menos um
dos autores/as vinculados/as a Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu,
localizados em três países estrangeiros (Portugal, Argentina e Alemanha)
e nas regiões Sul e Sudeste.
Antes de apresentar um breve resumo dos capítulos que compõem
esta Coletânea, cada uma das organizadoras fará uma breve narrativa da
sua história de amor pelas narrativas.

Como uma história de amor, nem tanto à primeira vista...


Minha história com as narrativas não é nova, mas também não é tão
longa. Data dos idos da escrita da tese de doutorado, na qual, sem mesmo ha-
ver teorizado a respeito, depois do trabalho escrito e defendido, me dei con-
ta de que andava pelos caminhos da HISTÓRIA ORAL. As discussões e os
estudos com os colegas do Programa de História Oral do Centro de Estudos
Mineiros, da FAFICH/UFMG, me fizeram ver isso. Ali iniciava uma história
de amor, o amor intelectual, na expressão de Bourdieu sobre as entrevistas,
mas como não separamos a razão e as paixões, essa história vai muito além
do intelectual, porque envolve afetos. É uma história afetiva, tanto quanto
o são muitas de nossas memórias, discussão tão presente na História Oral.
Me encantou na História Oral poder tentar alcançar a subjetividade
humana, com cuidado, zelo, rigor e delicadeza, tal como fui aprendendo
com meus colegas do Programa de História Oral. Foi uma experiência ím-
par poder me aproximar da História Oral, sabendo que ela é ao mesmo
tempo método, fonte e movimento.

10
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Aqui não poderia deixar de mencionar e saudar o professor Michel


Le Ven, com quem não apenas aprendi a pensar teoricamente, mas sobre-
tudo, um professor com quem pude constatar que eu precisava aprender a
fazer o que ele faz: uma escuta sensível e uma teorização densa, cuidadosa,
significativa, sem nunca fugir à consciência histórica frente ao mundo em
que vivemos e ao mundo que desejamos inventar, outro mundo, possível
e necessário, conforme as expressões do Fórum Social Mundial. Salve Mi-
chel Le Ven!
Nos domínios da História Oral, nos grupos de pesquisa tanto quanto
na Associação Brasileira de História Oral1, diferentemente de outros gru-
pos, algo era diferente. Seja porque falávamos de subjetividades, de iden-
tidades, de psicossociologia e de sociologia clínica, no caso de Michel Le
Ven e outros, tanto quanto de estruturas sociais e de processos históricos,
de culturas, dos “de baixo” e de uma história do tempo presente, na ex-
pressão de Paul Thompson, tanto quanto conversávamos com colegas cuja
formação e atuação percorria vários campos disciplinares.
Michel Le Ven sempre pontuava: não sendo historiadores, trabalha-
mos com a oralidade, e assim deveríamos denominar a História Oral. Tudo
isso me fascinava, tudo isso me cativou, lembrando aquela linda palavra do
principezinho.
Adiante, outros trabalhos, grupos e encontros: a pesquisa sobre me-
mórias de gerações de professores e estudantes negros do Ações Afirmati-
vas da UFMG, que coordenei junto com Karla Pádua e Wanda Praxedes2;
outras pesquisas com professores desta feita, já começando a trabalhar com
as entrevistas narrativas; a escritura de artigos e trabalhos teóricos nestes
domínios; e, finalmente, as narrativas trazidas em uma Disciplina curricular.
Na escrita e publicações, mais recentemente, ensaiava também ou-
tras possibilidades, em artigos feitos sob a forma de um conjunto de cartas
e, também, algo de que não passamos impune, a redação do memorial para
seleção de professor titular.
À medida em que expandia e consolidava meu feliz encontro com a
História Oral, outros horizontes se abriam em minha aproximação com o
cinema, qual seja, a procura pelo cinema como possibilidade de formação
estética dos professores. A busca pela aproximação fecunda e necessária
da educação com as artes, do cinema com a docência. Sempre me valera
do pressuposto de que sem a formação ética e sem a formação estética não

1 Disponível em: https://www.historiaoral.org.br/


2 Essa pesquisa resultou na publicação de dois livros:
• TEIXEIRA, I. A. C.; PRAXEDES, Vanda Lúcia; PÁDUA, K. C. (orgs.). Memórias e percursos de estudantes negros
e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
• TEIXEIRA, I. A. C.; PRAXEDES, V. L. (orgs.). Memórias e percursos de professores/as negros/as na UFMG. Belo
Horizonte: Autêntica, 2009.

11
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

haveria formação de professores para o ofício da humana docência, como


aprendera com Freire e com Arroyo. E o cinema, seria também uma nar-
rativa? Há narrativas de sujeitos no cinema? O que dizer, por exemplo, de
belíssimos documentários brasileiros com as obras de Eduardo Coutinho,
de João Moreira Sales, que nos deram memoráveis documentários basea-
dos em depoimentos, obras biográficas, memórias de nossa história social.
As possibilidades se encontravam: o cinema brasileiro, e outros tantos,
fazem História Oral. A História Oral deve estar presente não somente na
pesquisa, mas na formação de professores, assim como está presente, lin-
damente, em parte.
Nessa direção, foi também marcante a experiência da equipe que
coordenei quando pela primeira vez fizemos, juntos, inclusive com a pre-
sença de um professor cineasta – Cristiano Rodrigues, da UFJF, a história
de vida da professora Maria Teresa Freitas com entrevistas filmadas, que
geraram artigos e um documentário: Além das montanhas, frases com as
quais ela nos presenteou ao dizer as razões pelas quais saiu de São João Del
Rei para morar em Juiz de Fora.
Nessa altura, nos idos de 2015 e 2016, vivia também não propriamen-
te um encontro, como havia sido com a História Oral, mas uma aproxima-
ção, digamos, com as chamadas Pesquisas (Auto)biográficas. Participei e
sigo participando dos CIPAs, de seu comitê científico e suas publicações.
Por certo que essa possibilidade aprimorou meus conhecimentos, estudos,
sensibilidade e fazeres nos domínios dos trabalhos com narrativas. O que
se passou? Essa aproximação renovou, ao mesmo tempo que ampliou e
não somente meus trabalhos com narrativas como estava conhecendo nos
CIPAs3, mas trouxe novas perspectivas e possibilidades para a minha for-
mação e minha feliz e afetuosa, rica e venturosa, com a História Oral, cuja
perspectiva nunca abandonarei. Muito pelo contrário.
Mais recentemente, novas experiências foram vividas. A aproxima-
ção com o cinema abriu novos horizontes e a continuidade da docência,
agora atenta às narrativas e à escuta sensível, me reinventaram tanto quan-
to meus trabalhos. A escrita de cartas para desenvolver temáticas acadê-
micas, a escrita do memorial para a seleção de professora titular e duas
produções fílmicas expandiram minhas pequenas obras e reflexões.
Nessas cenas e cenários foi muito significativo para mim e para toda
a nossa equipe, a criação do documentário sobre os 45 dias de ocupação da
FaE/UFMG, que intitulamos “Flor do sol: ocupa FaE/UFMG”, sob a dire-
ção de Alexandre Pimenta e produção do Mutum e da Pimenta Filmes, no
qual, através de depoimentos e imagens, tentamos registrar, minimamente

3 Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica, organizado pela Associação Brasileira de Pesquisa (Auto)
Biográfica. Disponível em: https://biograph.org.br/

12
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

o cotidiano e o que esse movimento de ocupação representou na história


da FAE e da UFMG, em especial.
Também não foi algo menor, trazer para a docência, para a sala de
aula, a proposta de que os estudantes escrevessem narrativas sobre os seus
estágios, sobre as nossas aulas, registrando o que aprenderam e desaprende-
ram com elas, tentando fazer com que as disciplinas que ministramos fosse
algo mais do que uma exigência burocrática curricular. Esses trabalhos re-
sultaram no livro “Aulas contadas: narrativa da experiência de estudantes”.4
Foram muitos, foram desafiantes, são mobilizadores do pensamento
e da sensibilidade, ao mesmo tempo que foi e segue sendo uma enorme
alegria esses encontros com a História Oral e com a Pesquisa (auto)biográ-
fica, na pesquisa e na docência. Quantos aprenderes, quantos horizontes,
quantas possibilidades, quantas responsabilidades, quantas questões!!!!
Passo, então, às responsabilidades sociais e às questões teórico me-
todológicas que emergem, que retornam, que me inquietam nesses tra-
balhos: desafios da prática sociológica com narrativas, desafios teórico
epistemológicos que devemos discutir e considerar, permanentemente. A
organização deste livro é uma forma de apresentar aos nossos leitores al-
gumas dessas inquietações.

Inês Teixeira

Do interesse pela narrativa na pesquisa ao desejo de contar minhas


próprias histórias
Minha história de amor pelas narrativas começou em parceria com a
professora Inês Teixeira, que foi orientadora de minha pesquisa de douto-
rado, na qual pretendia pesquisar as repercussões do multiculturalismo na
Educação. Ainda na fase de reelaboração do projeto, no qual eu menciona-
va a intenção de ouvir narrativas docentes, o professor Luiz Alberto Oli-
veira Gonçalves, que nos orientava informalmente sobre o tema, indicou o
capítulo As Narrativas como dados, de Uwe Flick5. Lembro-me bem dele
nos dizendo que, se quiséssemos trabalhar com narrativas seria preciso
aprofundar o conhecimento acerca dessa ferramenta metodológica.
Nessa época, trabalhava como voluntária em uma pesquisa do pro-
jeto Ações Afirmativas, coordenado pela Inês, sobre professores e estu-

4 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1HDKZvgAwzNPwNfcZoQicrgj8h_scTE-9/view


5 FLICK, Uwe. As narrativas como dados. In: Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2004.

13
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

dantes negros(as) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)6. Nes-


ta pesquisa, tivemos a oportunidade de estudar e praticar a realização de
entrevistas narrativas, segundo a concepção de Flick, atendendo à indi-
cação do professor Luiz Alberto. Em um trabalho realizado em equipe,
com vários bolsistas, fizemos oficinas de elaboração conjunta da questão
gerativa que funcionou como um importante processo de formação de
pesquisadores(as).
Após a realização de um estágio de Doutorado Sanduíche no Institu-
to de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, na área de Antropologia,
o meu projeto de doutorado foi ganhando outros contornos. Decidi entre-
vistar professores e professoras indígenas que cursaram o FIEI - Formação
Intercultural de Educadores Indígenas, um curso especial (e que depois
veio a se tornar regular) de graduação que acontecia na Faculdade de Edu-
cação da UFMG. Costumo contar que este curso, que acontecia no mesmo
espaço em que cursava meu doutorado, coloriu a Universidade com mais
de 100 indígenas de várias etnias de Minas Gerais. Constituía um exemplo
vivo do multiculturalismo na educação.
Usei a entrevista narrativa, conforme Flick (2004), para entrevistas
mais de 10 professores indígenas de várias etnias, estudantes do curso e
também professoras da UFMG que coordenavam o curso e algumas moni-
toras. Desde então nunca mais trabalhei com outros tipos de entrevistas.
Hoje, mais de dez anos após a conclusão do doutorado, continuo pra-
ticando a entrevista narrativa, em novas pesquisas com meus orientandos,
cada vez buscando aperfeiçoar especialmente o modo de trazê-las para os
nossos textos acadêmicos. Para isso, os estudos realizados em disciplinas
ministradas sobre as narrativas na pesquisa, primeiro no PPGE-UFOP, e
depois no PPGE-UEMG, vieram trazer importantes subsídios para o apro-
fundamento dessa metodologia.
Em um momento de grande crise profissional devido à declaração
de inconstitucionalidade da Lei 100, que ameaçou interromper quase 20
anos de carreira docente na UEMG, fui levada pelos “encantados” para
o ICHS, da Universidade Federal de Ouro Preto. Que alegria significou
para mim, receber a orientação de minha supervisora de Pós-doutorado
em Educação, a querida professora Regina Magna Bonifácio Araújo, para
ministrar para os alunos do mestrado a disciplina chamada Narrativas do-
centes: aspectos metodológicos e formativos. Ao longo de dois semestres
pude ministrar essa disciplina optativa, o que favoreceu o meu reencontro
com as narrativas. Foram momentos de muito estudo e entusiasmo com a
formação de novas gerações que também se encantaram com as narrativas.

6 As referências dos dois livros que resultaram dessa pesquisa estão na nota n. 2 dessa Introdução.

14
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

No PPGE-UEMG ministrei uma adaptação dessa proposta, intitula-


da Seminários de temas contemporâneos: narrativas docentes, e em 2018,
em parceria com a professora Inês Teixeira, ministramos uma disciplina
interinstitucional entre o PPGE-UEMG e o PPGE-UFMG, intitulada Nar-
rativas na Pesquisa em Educação. Esta experiência coroou todo o trabalho
iniciado lá no PPGE-UFOP, resultando na publicação de um e-book intitu-
lado “Aulas contadas: narrativas da experiência de estudantes”, contendo
narrativas da experiência dos(as) alunos(as)7. Foi nessa disciplina interins-
titucional que tivemos o prazer de conhecer Daniel Suarez, que nos brinda
neste livro com uma bela entrevista. A vinda dele para uma palestra na
Quarta na Pós, da FAE-UFMG, fez parte da programação da disciplina,
assim como o encontro dele com os pesquisadores do Prodoc - grupo de
pesquisas sobre Profissão Docente, do qual participamos.
Com essas disciplinas, pude aprofundar minhas leituras de autores
como Walter Benjamin, Olgária Matos, Jorge Larrosa, Connelly y Clandi-
nin, Antônio Bolívar, Marie-Christine Josso, Antônio Nóvoa, Paul Ricouer,
Paul Tompson, Alessandro Portelli e descobrir outras referências como
Marco Antonio Gonçalves e Luciana Hartmann, nos estudos sobre a et-
nobiografia. Tudo isso renovou o meu interesse pelas narrativas, trazendo
um alento para aqueles tempos difíceis vividos por mim.
Hoje, nesses tempos de pandemia e após viver novos desafios de
vida, não profissionais, porém relacionados ao enfrentamento de um cân-
cer de mama, me deparo com um desejo intenso de escrever minhas pró-
prias narrativas. Entretanto, ainda não para este livro, que resulta de pro-
cessos formativos permeados pelas narrativas, no qual trazemos toda uma
rede de relações e de pesquisas que resultaram desses processos. Eu que há
muitos anos venho ouvindo, registrando e analisando narrativas de outras
pessoas, especialmente de moradores(as) da periferia e professores(as) in-
dígenas, preciso aprender agora a contar minhas próprias histórias.

Karla Pádua

Ouvir e contar histórias


Quando começa uma relação que temos com algo? Fui investigar mi-
nha relação com a narrativa e lembrei de Mainha, que nos colocava para
dormir à tarde, quando éramos bem pequenos e nos contava histórias.
Mainha foi minha primeira professora, me ensinou a ler quando eu tinha

7 Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1HDKZvgAwzNPwNfcZoQicrgj8h_scTE-9/view.

15
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

cinco anos de idade. Meu pai me proibia de brincar na rua, então minha
principal diversão era ler.
Desde pequena, tomei contato com diferentes narrativas literárias,
sendo a aventura a minha preferida. Mainha nos levava, a mim e meus
quatro irmãos, à biblioteca municipal, todas as terças-feiras à tarde, em
Pirapora, no interior de Minas Gerais. A biblioteca funcionava numa esta-
ção antiga de trem. Era um espaço simples que ofertava pequenas peças de
teatro, alguns vídeos e uma coleção modesta de livros. Íamos com Mainha,
ficávamos lá por algum tempo, líamos livros menores e levávamos outros
para devolver na semana seguinte. Os livros foram me acompanhando pela
vida, juntamente com as leituras acadêmicas.
No curso de Pedagogia, no trabalho de conclusão de curso, ouvi ado-
lescentes trabalhadores contando de suas vidas e de como o trabalho acres-
centava outra dimensão tão diversa da vivida em suas comunidades. Anos
depois, quando escrevi o projeto para o processo seletivo para o mestrado
na Universidade do Estado de Minas Gerais, escolhi a investigação biográ-
fica como metodologia. Estava interessada em conhecer as experiências
estéticas de professores das escolas municipais de Belo Horizonte e como
essas experiências repercutiam em suas identidades e na prática educativa.
Entrei para o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
e ali tive a imensa alegria de conhecer a professora Karla, que abriu para
mim o universo das narrativas. Eu me apaixonei intensamente pelo tema e
suas diversas possibilidades. Foi muito significativo para mim. Lá também
conheci a professora Inês Teixeira e algumas referências que passaram a
fazer parte da minha trajetória.
No mesmo ano de defesa do mestrado, publiquei uma coletânea de
contos e poesias juntamente com outras mulheres, em Belo Horizonte. Tive
a alegria de escrever a dissertação e fazer parte de uma publicação literária.
O contato com as narrativas em suas diferentes dimensões contribuiu para
ampliar a escuta de meus sujeitos na pesquisa e para a escuta de mim mes-
ma, com a possibilidade de disseminar minhas próprias narrativas.
No mesmo ano me candidatei para o doutorado na Universidade de
Lisboa, em Portugal, para dar continuidade à mesma metodologia, dessa vez
na companhia da professora Carmen Cavaco. A partir dessa experiência, tive
a oportunidade de conhecer outros autores e pesquisadores envolvidos com
a investigação biográfico-narrativa. A partir da elaboração da oficina bio-
gráfica para ouvir a narrativa dos sujeitos de minha investigação de mestra-
do, me inspirei e passei a realizar diferentes oficinas, dessa vez virtualmente.
Cada vez mais percebo como a partilha de experiências por meio de
narrativas orais e escritas possibilita a escuta de vozes muitas vezes invisi-
bilizadas e faz conhecer nuances e especificidades que as pesquisas quan-
titativas não acolhem. Continuo narrando, ouvindo narrativas e escreven-

16
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

do. Assim, as narrativas permanecem em minha vida, como um dispositivo


que aciona a escuta sensível do outro, de mim mesma e fomenta a escrita,
tanto a acadêmica quanto a literária.

Glau Nascimento

A seguir, apresentamos os capítulos desta Coletânea.


O capítulo 1, Condição docente dos professores da rede estadual do
Rio Grande do Sul sob o olhar do imaginário social, de Adriele Machado
Rodrigues e Valeska Fortes de Oliveira, origina-se da pesquisa intitulada
“Significações imaginárias sobre a condição docente no ensino médio: um
estudo na rede estadual do município de Alegrete-RS”, realizada no Pro-
grama de Pós‐Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). O estudo teve como objetivo conhecer e problematizar as
significações imaginárias de professores da rede estadual do município
de Alegrete acerca da condição docente no Ensino Médio. A metodolo-
gia utilizada deu-se em dois momentos: a pesquisa bibliográfica sobre a
temática; e a produção de narrativas autobiográficas de nove professores
da rede estadual. Com o desenvolvimento da pesquisa, constatou-se que
os professores se veem abalados no status da sua profissão em decorrência
dos baixos salários e parcelamentos. A investigação apontou, também, que
apesar dos professores vivenciarem esse mal-estar docente, eles buscam
ressignificar esse espaço-tempo vividos.
O capítulo 2, Entre a casa e o “pedaço”: narrativas de professores/as
sobre geo-grafias docentes na metrópole, de Álida Angélica Alves Leal e
Inês Assunção de Castro Teixeira, da FaE – UFMG, parte do pressuposto
de que vidas de sujeitos socioculturais professores/as devem ser apreendidas
em outros espaços e tempos da vida social além das escolas, investiga-
mos geo-grafias docentes na metrópole, construto teórico-conceitual que
designa práticas espaciais de sujeitos-professores/as vividas na metrópole
durante seus tempos cotidianos. A pesquisa exploratória buscou compre-
ender sentimentos, sentidos e significados associados e atribuídos a estas
práticas por meio de análise bibliográfica, aplicação de questionários e
realização de 23 (vinte e três) entrevistas semiestruturadas com docentes
do Terceiro Ciclo do Ensino Fundamental que lecionavam na Rede Pública
Municipal de Contagem/MG (primeiro semestre/2010). Neste texto, apre-
sentamos alguns aspectos/dimensões que singularizam estas geo-grafias
docentes na metrópole, quais sejam: a relação destes sujeitos com a casa e
a constituição de “pedaços” docentes.

17
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

O capítulo 3, Para além da remuneração: professoras nos contam


como se sentem valorizadas, de autoria de Valdete Aparecida Fernandes
Moutinho Gomes e Célia Maria Fernandes Nunes, do PPGE-UFOP, tra-
zem o tema da valorização docente, recorrente nos estudos sobre os/as pro-
fessores/as. As autoras realizaram uma investigação, na qual procuraram
conhecer a percepção de valorização docente em narrativas de cinco pro-
fessoras atuantes no Ensino Fundamental I em distintas escolas da zona
urbana na rede municipal da cidade de Mariana, MG. Como recursos meto-
dológicos, desenvolveram, após um levantamento bibliográfico, entrevis-
tas narrativas, as quais foram acompanhadas da aplicação de questionário
de perfil socioeconômico e cultural e diário de campo. A análises seguiram
uma interpretação hermenêutica ou análise compreensiva-interpretativa
procurando, dessa forma, apreender o sentido das narrativas no contexto
em que se situam. Entre os aspectos objetivos (formação, remuneração,
condições de trabalho e carreira) que compõem a valorização docente,
constataram que a remuneração tem sido a mais enfatizada pelos discursos
políticos e pela mídia. Entretanto, conforme as professoras demonstraram
nas narrativas, o salário por si só, não assegura a percepção de valorização
docente, dada à complexidade de fatores que interferem no trabalho dos/
das professores/as. A importância que as professoras atribuem às intera-
ções humanas vivenciadas no exercício da profissão, expressas na relação
com os/as alunos/as, suas famílias e os/as pares, evidencia a relevância da
dimensão subjetiva no que se refere à valorização docente.
O capítulo 4, Imagens docentes: a formação estética do professor de
crianças, de Glaucimary Nascimento Teodósio (ULisboa) e José de Sousa
Miguel Lopes (UEMG) enfoca as exigências para os professores das séries
iniciais, formadores de crianças, que têm sido cada vez maiores no contex-
to em que vivemos. Esses profissionais lidam com uma variedade de de-
mandas em sua realidade pessoal e profissional que os colocam diante da
dificuldade de buscar uma formação permanente, principalmente voltada
para a estética – enquanto ética. O outro é parte indissociável da consti-
tuição identitária. O confronto com o outro, com seu imaginário e suas
interpretações interpela reflexões. Nessa conversação, o sujeito reflete e
ressignifica seus processos identitários. Trazemos, nesse artigo, algumas
imagens e narrativas docentes, despertadas por um dispositivo de forma-
ção. Entendemos que a experiência estética atua como provocadora dos
sentidos, possibilitando rupturas nas convicções e certezas, operando no
agir. Dessa maneira, possibilita novas interpretações da realidade, contri-
buindo para uma abertura ao mundo, o que permite imaginar novas ma-
neiras de tratamento ético.
O capítulo 5, Roda de narrativas: entre a Pedagogia da Roda e a
Documentação Narrativa, de Fábio Júnio Mesquita e Karla Cunha Pádua,

18
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

do PPGE-UEMG, se propõe a pensar a Pedagogia da roda, tão ancestral


quanto os grupos se reunirem em círculos, a tradição oral de trocar expe-
riências, costumes e ensinamentos em rodas de conversa. O texto procura
relacionar as práticas da Pedagogia da Roda com as experiências da “Do-
cumentação Narrativa de Experiências Pedagógicas”, inicialmente, por
pesquisa bibliográfica e documental, com análise de artigos, livros, sites
institucionais do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) e
da Biblioteca Nacional de Maestros e vídeos disponíveis no YouTube. Tais
análises deram embasamento para a  formulação da Roda de Narrativas,
uma metodologia utilizada em nossa pesquisa com oito jovens que parti-
cipam de projetos do CPCD, sendo quatro de cada sexo, com idades entre
16 e 27 anos de idades. Deste modo, buscou articular os princípios e fun-
damentos da Pedagogia da Roda com a práxis da escrita, um processo de
reescrever-ler-indagar-comentar e reescrever, proposto nas experiências
de documentação narrativa, utilizando espaços circulares de produção de
conhecimentos, de formação, co-formação e de autoformação. Assim, do
desenvolvimento à sua primeira aplicação, foi possível aproximar a prá-
xis da escrita e a práxis pedagógica, o processo ação-reflexão-ação, bem
como aproximar a espiral hermenêutica das rodas de diálogo com vistas
em aprofundar a discussão e coletar informações.
O capítulo 6, Narrativas e experiências juvenis no Movimento Cul-
tural Slam Interescolar, de Priscila Lima e Silva e Cirlene Cristina de Sou-
sa, do PPGE-UEMG, é fruto de interlocuções com jovens poetas partici-
pantes do movimento cultural slam interescolar – um projeto educacional
que envolveu a realização de oficinas de escrita criativa e competições de
poesias faladas, entre estudantes da rede pública de ensino da cidade de
Belo Horizonte, com o objetivo de incentivar a escrita e a partilha de tex-
tos poéticos, apresentando suas experiências com a linguagem. O estu-
do evidenciou campos de possibilidade entre a arte literária, os processos
de letramento sociais e as culturas juvenis, sendo vinculado à Pesquisa
de Mestrado desenvolvida na Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) nos anos de 2017 e 2019. A análise revelou distintos percursos
pela linguagem, forjados nos encontros e nas dinâmicas socializadoras, em
diversos espaços e instituições, as quais foram trazendo inúmeras experi-
ências e processos formativos de letramento aos/as jovens. Nesse cenário,
notou-se que a perspectiva dos letramentos é recriada quando ligada a ati-
vidades culturais, ideológicas ou políticas, na medida em que os/as jovens
narraram uma ampliação da relação com a linguagem por meio da arte, da
escrita criativa e dos movimentos culturais.
O capítulo 7, “Uma perspectiva a partir das marcas que eu carrego
e trago na vida”: narrativas de docentes sobre os processos formativos
dos saberes que envolvem a Educação das Relações Étnico Raciais, de

19
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Paulo Henrique Maia Melgaço, José Eustáquio de Brito e Santuza Amo-


rim da Silva, do PPGE-UEMG, resulta de uma pesquisa de mestrado que
possuiu como objetivo principal analisar as formações e os saberes docen-
tes em torno da Educação das Relações Étnico-raciais e seus reflexos nas
práticas pedagógicas em uma rede de ensino municipal da cidade de Jua-
tuba-MG. Dentre várias considerações, ressaltou-se a importância dos(as)
professores(as), protagonistas no que se refere ao processo de efetivação da
lei 10639/2003. O presente texto propõe reanalisar as entrevistas concedi-
das por esses docentes, direcionando nossos olhares para uma escuta sen-
sível e analítica sobre suas histórias de vida e seus processos formativos,
desenvolvendo um diálogo com referências teóricas. Seus relatos foram
compartilhados por meio do recurso de entrevistas narrativas, objetivan-
do compreender com maiores detalhes suas vivências e trajetórias, assim
como assimilar os reflexos desses saberes em suas vidas, dentro e fora do
contexto escolar. Dentre várias reflexões, foi possível constatar as potên-
cias investigativas pertencentes ao método de narrativas autobiográficas,
verificável pela diversidade qualitativa das informações socializadas pelos
sujeitos dessa pesquisa. As narrativas evidenciam trajetórias distintas e sin-
gulares, afirmando os desafios apresentados à pesquisa acadêmica que se
configuram em conceber cada percurso formativo em suas individualidades.
É possível também afirmar que o processo de formação é contínuo e parte de
decisões individuais, mediatizadas pelo contexto sociopolítico vivenciado.
O capítulo 8, A trajetória formativa de uma pedagoga: a reflexão
como revelação do processo de construção da profissionalidade docente,
de Regina Magna Bonifácio de Araújo e Marilene do Carmo Silva, é fruto
da disciplina eletiva, Narrativas docentes: aspectos metodológicos e for-
mativos, do curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal de
Ouro Preto (PPGE- UFOP). Pretendemos refletir sobre a narrativa como
um instrumento nas pesquisas qualitativas e compreender os desafios pre-
sentes na formação docente. Neste trabalho apresentamos a narrativa de
uma pedagoga que atua na rede municipal da cidade de Ouro Preto, gra-
duada em Pedagogia e Mestra em Educação pela UFOP. Possui 27 anos de
idade e se encontra no primeiro ano de atuação profissional. A abordagem
utilizada nesta investigação foi qualitativa, utilizamos a narrativa escrita
como instrumento e optamos pela análise de conteúdo como técnica de
interpretação dos dados. A narrativa evidenciou a influência da trajetória
formativa inicial, na prática profissional. Revelou, também, alguns desa-
fios no início de carreira, o choque de realidade, frustração e solidão, além
das precárias condições de trabalho.
O capítulo 9, Narrativas-otras y experiencias sexuadas: profesoras
sindicalistas argentinas, de Zulma Viviana Lenarduzzi, da Facultad de
Ciencias de la Educación, da Universidad Nacional de Entre Ríos – Ar-

20
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

gentina, trata de experiências de docentes sindicalistas, insuficientemente


indagadas nos estudos sobre sindicalismo, que outorgam proeminência
aos trabalhadores, suas formas organizativas e suas lutas reivindicativas.
Debaixo da marca de um sujeito universal, as professoras sindicalistas têm
permanecido nas sombras, sendo excepcionalmente nomeadas e visibili-
zadas. Alienações e subjugações colidem com disputas e conquistas que
se forjam ao calor de lutas e resistências nem sempre visíveis para as figu-
ras hegemônicas dos militantes sindicalistas. Daí a relevância de adentrar
suas experiências, habilitando narrativas-outras que certa historiografía
androcêntrica tem silenciado. A investigação utilizou perspectivas teóri-
cas provenientes do Feminismo Acadêmico, da História das Mulheres e da
Sociologia do Indivíduo, que concedem potência teórica às experiências
de atrizes e atores, outorgam um lugar central à historização em termos de
um vínculo biográfico-histórico, e reconhecem múltiplas desigualdades e
dominações. Por conseguinte, adota um enfoque metodológico interpre-
tativo, a partir do qual atribui relevância à perspectiva das participantes,
dando prioridade a seus sentidos, significações, experiências e relatos. En-
tre os anos 2014 e 2015 foram realizadas entrevistas narrativas individuais
gravadas com seis mulheres professoras argentinas, sindicalistas, de três
gerações distintas. A entrevista narrativa constituiu uma ferramenta cen-
tral, entendida como um encontro sócio-antropológico e uma forma dis-
cursiva privilegiada para compreender as interpretações das sujeitas sobre
si mesmas, numa possível invenção de si. De modo que neste texto se exi-
bem algumas aproximações às experiências de duas professoras sindica-
listas da geração jovem, contemplando o entrecruzamento das dimensões
familiares, laborais e sindicais. A articulação entre o trabalho sindical, o
trabalho docente e o trabalho de cuidados constituem uma das principais
expressões de suas experiências sexuadas, em tempos generalizados que
incidem na possibilidade de dispor de um tempo liberado para si. Este ca-
pítulo resulta da tese intitulada “Generaciones de profesoras sindicalistas
argentinas: fragmentos de história (1984-2016)”, desenvolvida no Doutora-
do Latinoamericano em Educação: Políticas Públicas e Profissão Docente,
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.
O capítulo 10, Trajetórias em perspectiva: uma reflexão sobre no-
vos perfis discentes e acadêmicos no Brasil a partir de duas histórias
de vida, de Elis de Aquino (FU-Berlim/Alemanha) e Renata Melo (UFRJ),
narra o encontro de duas pesquisadoras brasileiras, ambas oriundas do
Rio de Janeiro, mulheres periféricas que buscam ampliar a formação com
oportunidades de viver e estudar no estrangeiro. É um diálogo narrativo,
que mostra alguns encontros biográficos entre as duas. Além disso, as pes-
quisadoras trazem reflexões e indagações decoloniais como maneira de
refletir e agir no mundo.

21
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

O Capítulo 11, Narrativa(s), imaginação e conhecimento em duas


experiências de realização audiovisual, de Clarisse Maria Castro de Al-
varenga e Ana Paula Soares da Silva Gomes, Promestre-UFMG, tem como
proposta aproximar as experiências de realização de dois filmes dirigidos
pelas autoras, ambas educadoras: Homem-peixe, de Clarisse Alvarenga
(2017) e Um desenho, várias emoções, de Ana Paula Soares da Silva Gomes
(2020). As autoras apontam aspectos em cada um dos processos de feitura
dos filmes que nos dizem sobre a importância da escuta e da observação de
narradores na construção e partilha entre diferentes saberes tradicionais
e científicos. A partir dessa discussão, abordam o potencial que o cinema
pode vir a ter no sentido da comunicação das experiências sensíveis nos
espaços da educação, da arte e da cultura contribuindo para criar um co-
nhecimento pela imaginação.
No capítulo 12, intitulado Um cotidiano instável que se alimenta
de esperança: narrativa da diretora da Escola Municipal de Bento Ro-
drigues, Marco Antonio Torres, do PPGE-UFOP, tece algumas considera-
ções sobre a entrevista narrativa pública realizada em março de 2017 com
Eliene Geralda dos Santos, diretora da Escola Municipal Bento Rodrigues,
localizada em Mariana, no distrito onde ocorreu o desastre ambiental. A
entrevista foi promovida e mediada pelo autor juntamente com uma das
organizadoras desta obra, Karla Pádua, com a participação de discentes da
disciplina optativa Narrativas docentes: aspectos metodológicos e forma-
tivos, oferecida no Programa de Pós-graduação em Educação da UFOP e
aberta a outras pessoas interessadas. Em diálogo com a narradora, o autor
traz acontecimentos daquele dia 5 de novembro de 2015 em que a lama
da barragem devorou violentamente o cotidiano de tantas pessoas, o luto
pelas perdas irreparáveis e futuro que ainda acenava de forma incerta, ao
mesmo tempo bordados de alegrias vividas na escola.
Por fim, temos uma belíssima sessão de entrevista, na qual trazemos
uma entrevista realizada pelas organizadoras deste livro com Daniel Sua-
rez, da Universidade de Buenos Aires. Esta preciosa entrevista foi realiza-
da em 08 de março de 2021 e é apresentada no capítulo 13, intitulado Inves-
tigação narrativa: aprendendo com a experiência de Daniel Suarez. Neste
capítulo, após a apresentação do contexto da narrativa, as entrevistadoras
passam a palavra ao entrevistado, que se expressa em sua língua materna,
o espanhol. Na entrevista, o pesquisador argentino nos fala como se deu
o seu encontro com as narrativas e que potência esse encontro revelou na
sua condição de professor e pesquisador na Universidade.

Desejamos a todos (as) uma excelente leitura!

As Organizadoras

22
CAPÍTULO 1

CONDIÇÃO DOCENTE DOS PROFESSORES


DA REDE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL
SOB O OLHAR DO IMAGINÁRIO SOCIAL

Adriele Machado Rodrigues (UFSM)


Valeska Fortes de Oliveira (UFSM)

Para início de conversa


O presente artigo origina-se da dissertação de mestrado intitulada
Significações imaginárias sobre a condição docente no ensino médio: um
estudo na rede estadual do município de Alegrete-RS, apresentada à Li-
nha de Formação, Saberes e Desenvolvimento Profissional do Programa
de Pós‐Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria.
Buscamos conhecer e problematizar as significações imaginárias dos pro-
fessores acerca da condição docente no Ensino Médio, a partir das narrati-
vas de professores que atuam em escolas da rede do Estado do Rio Grande
do Sul do município de Alegrete-RS.
O que motivou essa investigação foi o desejo de um olhar mais atento
aos professores que atuam na rede estadual do Rio Grande do Sul, conside-
rando as situações de parcelamentos, atrasos, congelamentos dos salários,
perdas salariais, paralisações e greves que esse grupo de docentes viven-
ciam há seis anos. Um olhar atento e sensível com a lente do imaginário e
o campo do simbólico na pesquisa em educação.
Ainda que a desvalorização do professor seja uma discussão recor-
rente no meio acadêmico e em outros setores, acreditamos que esse assun-
to não deve ser esgotado. Não podemos fechar os olhos para esses sujeitos
que são vítimas da desigualdade social e compõem o cenário da desvalori-
zação da educação neste país. Pelo contrário, ainda há muito que discutir
e (re)pensar sobre a docência em tempos sombrios. Pensamos que ao pro-
blematizar essas vivências propomos uma reflexão sobre as condições de
trabalho que lhes são impostas.

23
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Assim, utilizamos como aporte teórico Oliveira (2017), Teixeira


(2011) e Emílio Tanti Fanfani, professor argentino e pesquisador em educa-
ção, autor da obra La Condicion Docente: análisis comparado de Argentina,
Brasil, Perú y Uruguay (2005). Além disso, sob a luz da teoria do imaginário
social de Cornelius Castoriadis (1982), buscamos os imaginários e signifi-
cações que vem sendo produzidos acerca da condição docente dos profes-
sores que atuam na rede estadual do RS.

Caminhos metodológicos trilhados para o desenvolvimento da pesquisa


Pesquisar a condição docente no Ensino Médio na rede pública e os
imaginários acerca do que os constituem como professores neste nível de
ensino sem considerar as vozes daqueles que estão cotidianamente imbri-
cados nessa realidade não teria o mesmo sentido. Assim, desenvolvemos
nossa pesquisa utilizando, além dos estudos bibliográficos nas temáticas
envolvidas, as narrativas orais de nove professores que atuam na rede esta-
dual obtidas por meio de dois encontros, que foram denominados rodas de
conversa, e após realizou-se análise hermenêutica. Dessa forma, compre-
endemos os professores coautores da pesquisa como corpos biográficos,
ou seja, “a matéria onde ficam impressas memórias do ser humano decor-
rente das suas experiências vividas” (SILVA; OLIVEIRA, 2016, p. 44).
Essa escolha se deve às aprendizagens e vivências com o GEPEIS,
Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social, um grupo
que contempla, em suas atividades, formações, encontros e investigações da
história oral, a história contada pelas vozes que reconstroem o vivido, acio-
nando nos professores um protagonismo na história da formação docente.
Além disso, pensando na potência desses encontros, acreditamos que a pro-
dução de conhecimento também acontece por meio da afetividade, ou seja,
a reflexão sobre os afetos, sobre o que nos afeta e o que os afetam.
Neste contexto, para a realização das rodas de conversa, propomos
no primeiro encontro a exibição do documentário Nunca me Sonharam,
direção de documentário de Cacau Rhoden (2017) que registra depoimentos
de alunos e professores de escolas públicas das cinco regiões do Brasil. A
seleção desse documentário teve como critério inserir a temática do Ensi-
no Médio nas possíveis discussões da roda de conversa. Neste sentido nos
associamos ao cinema por compreender que o significado que os sujeitos
elaboram após assistirem um filme são provocadores para novos questio-
namentos e diferentes leituras da mesma história (OLIVEIRA, 2004, s/p),
tendo a potência do roteiro cinematográfico como deslocamento, como
desassossego que nos leva para outros territórios, outras emoções.
No segundo encontro, optamos por utilizar as fotografias como um
suporte para despertar as narrativas dos coautores da pesquisa. Para isso,

24
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

com autorização da direção da escola, foram selecionadas do acervo de


fotografias do Facebook1 da escola mais de 40 fotografias que registravam
as atividades e projetos da escola. As fotografias foram reveladas e ficaram
expostas no dia do encontro.
Neste sentido, apostamos na fotografia como mais um instrumento
provocativo, a fim de apreender visões de mundo, sonhos, expectativas, de-
sejos e comportamentos e identidades. Assim, corroborando com Oliveira
(2003, p. 153), também acreditamos que:
Falar de si, como uma intenção proposta por um pesquisador,
de pesquisar em si, auxiliado por imagens fotográficas, trans-
porta-nos a outros tempos, a outros espaços (muitas vezes mi-
tificados no nosso imaginário) e, a outras práticas discursivas
permitindo que se compreenda o deslocamento de sentidos in-
dividuais e coletivos na sociedade e de um grupo social espe-
cífico, no nosso caso, os professores (OLIVEIRA, 2003, p. 153).

Além disso, vale ressaltar que a proposta destes dois movimentos


implicou-se na escuta sensível da narrativa do outro, buscando desfazer-se
de julgamentos, porém com uma atenção redobrada ao que os coautores da
pesquisa desejaram comunicar naquele momento.

Os protagonistas
Quem são os parceiros desta investigação? Professores e professoras
que atuam na rede estadual do RS no Ensino Médio, que compreendem
os personagens principais desta pesquisa. Afinal, sem esses professores/
coautores da pesquisa não haveria sentido a aproximação aos seus imagi-
nários. Sem suas falas, seus desabafos, relatos de encantos e desencantos
com a profissão estaria distante de seus contextos e não teria elementos
suficientes para compreender a condição docente que permeia os profes-
sores desta rede de ensino. No decorrer do texto a autoria das narrativas
apresenta nomes fictícios, tendo vista que assumimos o compromisso de
não mencionar as identidades e nem as escolas que atuam2.

Apresentando contextos: enredos do magistério estadual do RS


Apresentamos aqui alguns recortes de questões que compreende-
mos fundamentais para a compreensão do cenário em que estão inseridos
os sujeitos pesquisados, ou seja, no âmbito da carreira de professores que
atuam na rede estadual do Rio Grande do Sul.

1 Facebook é uma mídia social e rede social virtual.


2 Na UFSM, de acordo com o Comitê de Ética e Pesquisa, todas as pesquisas que envolvem seres humanos, os
pesquisadores devem se comprometer em não divulgar a identidade dos colaboradores.

25
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Para Fanfani (2010), “condição docente” é útil para denominar um


estado do processo de construção social do ofício docente. No entanto,
para uma análise da condição docente, torna-se prudente considerar o
contexto, as peculiaridades, fatos históricos e sociais de cada grupo. Por
isso, observamos que a condição docente não é homogênea e pode se di-
ferir de acordo com a de ensino na qual estão inseridos, seja municipal,
estadual ou federal. Assim, podemos dizer que nem todas as redes desva-
lorizam seus professores, seja no sentido objetivo, de salários e planos de
carreira, quanto subjetivo, em que o professor é referência e possui lugar
de destaque e representatividade na comunidade. Além disso, o autor aler-
ta para a importância de incluir nesses estudos as dimensões subjetivas,
representações, valorações, opiniões, expectativas dos professores. Por
isso, apresentamos aqui algumas circunstâncias que ocorrem no magisté-
rio estadual do RS.
A situação dos professores que atuam na rede estadual do Rio Gran-
de do Sul é problemática. Ao acompanharmos os noticiários percebemos
que eles passam por uma grave crise de valorização: durante cinco anos
os professores tiveram os pagamentos atrasados e parcelados e há 6 anos
que a categoria não tem reajuste salarial. Além disso, até o ano de 2019, o
Rio Grande do Sul era um dos três estados brasileiros que não considerava
a pós-graduação nos níveis de Mestrado e Doutorado para progressão na
carreira, o que acarretou durante muitos anos desestímulo dos profissio-
nais em buscarem formação.
Aliada a essas questões há outras tantas, como o cumprimento de
cargas horárias exaustivas, pouco tempo para planejamento das aulas, fal-
ta de estruturas nas escolas e adoecimento dos professores tornaram-se
cotidiano na docência da rede estadual do RS. Esses episódios convergem
com o que Fanfani (2005) constatou há mais de uma década em relação à
categoria dos professores, o seu empobrecimento e a perda de posição na
estrutura social.
Neste sentido, fazendo um entrelaçamento com o simbólico a partir
de Castoriadis (1982), o salário, o contracheque ou o Plano de Carreira do
Magistério, por exemplo, tornam-se símbolos, ou seja, símbolo de direitos
dos trabalhadores. Assim, nesses fatores tão reais e objetivos compostos
por números e normas instauram-se o simbolismo. A relação simbólica
pode estar presente através do sentimento de reconhecimento ou não que
os professores atribuem estar sendo dado ao seu trabalho, à sua dedicação
e ao seu esforço. Para Castoriadis (1982, p. 142):
Tudo o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico. Não que se
esgote nele. Os atos reais, individuais ou coletivos- o trabalho, o

26
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

consumo, a guerra, o amor à natalidade- os inumeráveis produ-


tos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um
só momento, não são (nem sempre, não diretamente) símbolos.
Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica.

Neste contexto, percebe-se também uma estigmatização dos profes-


sores da rede estadual, em relação às outras, simbolizando que possuem os
menores salários e passam mais trabalho. Tais sentimentos se refletem nas
mais diversas formas, segundo Fanfani (2005, p. 17)3:
Este complejo cuadro donde se mezclan situaciones objetivas y sub-
jetivas, materiales y culturales, puede provocar reacciones de tipo
defensivo (y que combinan dosis variables de decepción, pasividad,
escepticismo e inmovilismo) hasta las conductas más activas y agre-
sivas de movilización y lucha social y política.

Esse retrato se aproxima da realidade dos professores da rede esta-


dual do RS na contemporaneidade. De um lado, os professores ativos rea-
lizam paralisações, greves e outras manifestações, e de outro, os passivos
desmobilizados, que desacreditam da mudança.
A passividade pode ter origem na falta de reflexão e de autonomia de
sujeitos herdeiros de uma educação acrítica. Assim sendo, se o sujeito teve
uma educação que não lhe instigou a pensar com autonomia e agir a partir
de suas necessidades e projetos de vida individual e coletivos, dificilmente
será protagonista de um processo histórico. Para Silva e Oliveira (2016),
pesquisadoras do Imaginário Social nas produções de Cornelius Casto-
riadis, observaram que na maioria das escolas houve uma degeneração do
imaginário instituinte da sociedade. Apontam ainda que a repressão do
imaginário radical (instituinte) de nossos gestores e docentes resultaram
na desmobilização dos professores “a ponto de nem greves mais serem
mobilizadas com força” (SILVA; OLIVEIRA, 2016, p. 59). Neste sentido, o
imaginário instituinte é a ruptura com a realidade já instituída, ou seja, a
capacidade humana de criar, inventar e instituir novas formas e institui-
ções sociais (CASTORIADIS,1982, p. 414).
Por isso, acreditamos na importância do exercício da autonomia no
contexto educacional. Através dele possibilitamos que os sujeitos sejam
participativos nas transformações sociais. E corroboro com o pensamento
de Castoriadis que também muito preza a autonomia, pois ela aparece com
frequência nos seus estudos. Rieffel (2016, p. 42), ao elucidar o conceito de
autonomia de Castoriadis, assevera:

3 Este complexo quadro onde se mesclam situações objetivas e subjetivas, materiais e culturais, pode provocar
reações do tipo defensiva (e que combinam com doses variáveis de decepção, passividade, ceticismo e imobilismo) até
as condutas mais ativas e agressivas de mobilização e luta social e política.

27
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

O exercício desta autonomia está diretamente atrelado ao


potencial imaginário do sujeito, que ao possuir subsídios e
exercitar livremente suas reflexões de mundo e de si mesmo,
constrói representações imaginárias que transformam tan-
to o próprio sujeito quanto à sociedade em que vive. A essas
questões Castoriadis dedica a maior parte de suas produções,
afirmando que absolutamente tudo que temos, vemos, conhe-
cemos e consideramos como real, são fruto das representações
que construímos imaginariamente. Que as instituições que or-
ganizam e regem o funcionamento da sociedade são criações
imaginárias dos sujeitos que as constituem e ao participarem
ativamente dessas instituições, as transformam, criando e re-
criando, sempre e constantemente, as formas de estruturá-las.

Dessa forma, ressaltamos a importância de uma constante reflexão,


principalmente por parte dos educadores, assim como a compreensão da
dimensão simbólica que a sua profissão vem concebendo perante a socie-
dade. Ainda, o que não se pode negar é que as questões objetivas que en-
volvem o trabalho docente, como as levantadas acima, afetam diretamente
o plano subjetivo. Assim, o professor estando à margem dessa condição
docente convive com o baixo status da sua profissão.
Antes de prosseguir essa prosa alertamos que, embora tenhamos dis-
corrido sobre a condição docente, no que concerne a desvalorização do
professor, isso não quer dizer que acreditamos que somente a valorização
dos docentes será a salvadora da pátria e resolverá os problemas acerca da
qualidade em educação. São diversos fatores que compõem o cenário de-
sastroso da educação pública neste país. Mas ressaltamos que os professo-
res no envolvimento ético com o cotidiano escolar têm papel fundamental
para que os investimentos e as reestruturações no ensino possam produzir
sentidos e significados na vida dos estudantes e da comunidade.
Neste sentido, Inês Teixeira (2007), ao referir-se a uma outra acepção do
termo condição docente, em que lhe confere estar pautada na relação entre
professor e aluno, ressalta a relevância dessa profissão. Conforme a autora:
Tentando compreender a condição docente em sua fundação
e origem, como o que funda ou como a matéria de que são
feitos a docência e o docente e, ainda, como o estado que
constitui a docência em sua historicidade, em sua realização,
encontramos uma relação. A docência se instaura na relação
social entre docente e discente. Um não existe sem o outro
(TEIXEIRA, 2007, p. 427).

Nessa relação implica o encargo dos professores de acolher crianças,


adolescentes e jovens, apresentando-lhes e interrogando o mundo, o que
é uma profunda responsabilidade. Compreendendo esses fatores, podería-

28
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

mos assegurar o lugar de destaque do professor na sociedade. No entanto,


isso nem sempre acontece, conforme foi relatado no acima e confirmado
pela pesquisa realizada pela integrante do GEPEIS, Indiara Rech (2016),
com professores das redes municipal, estadual e privada. Segundo os pro-
fessores, sujeitos da pesquisa, a rede estadual oferece as piores condições
de trabalho, tendo em vista os parcelamentos dos salários e o grande nú-
mero de alunos nas salas de aula. Neste sentido, a pesquisa também reve-
lou que “a imagem que a sociedade institui para representar o professor é
a de ocupar o lugar que ninguém quer ter, ou melhor, é ser o que ninguém
quer” (RECH, 2016, p. 84). Esses são os efeitos da crise que vive a educação
do Estado do Rio Grande do Sul, que se reflete nesse imaginário social
acerca do que é ser professor.

Retratos da docência: um encontro com velhos e novos desafios


A docência é repleta de desafios, e cada docente, na sua individu-
alidade, os vivencia da sua forma, assim como um grupo de professores
enfrenta desafios comuns. Através das rodas de conversas pudemos ouvir
as vozes que nos comunicaram as mais diversas situações cotidianas que
compõem a suas trajetórias.
Neste sentido, apresentamos um recorte das principais discussões
que suscitaram a partir da revisitação de alguns momentos vividos nas
suas docências por meio da exposição fotográfica.
Assim, a Professora D foi quem iniciou a prosa:
Olhando as fotos percebi que a gente não para. Quantas coisas diferentes já
realizamos na escola. Passeios, atividades fora da sala de aula. O trabalho
sobre a conscientização do lixo que é jogado de qualquer jeito nos terrenos
baldios. Como os alunos se envolveram conversando com os moradores e na
limpeza. Não podem dizer que a gente não faz um trabalho diferenciado.

A partir desse relato, à primeira vista percebe-se que há uma busca


por inovação das práticas escolares e também de incorporar o contexto da
escola no seu currículo. Porém, o que chamou atenção foi a finalização da
fala que inclusive grifamos. Constata-se que a professora, ao revisitar o vi-
vido, além de fazer uma reflexão sobre o seu trabalho e dos colegas, busca o
reconhecimento da sua profissão, do seu labor e se reconhece como sujeito
da sua própria história. Neste sentido, nota-se que:
A atividade biográfica realiza assim uma operação dupla e
complementar de subjetivação do mundo histórico e social
e de socialização da experiência individual: ela é, ao mesmo
tempo e indissociavelmente, aquilo por meio do qual os indi-
víduos se constroem como seres singulares e aquilo mediante

29
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

o que eles se produzem como seres sociais. A atividade biográ-


fica aparece, consequentemente, como um processo essencial
da constituição do indivíduo em sociedade (DELORY-MOM-
BERGER, 2006, p. 369).

Afinal, quem “não pode dizer que a gente não faz um trabalho dife-
renciado”? A sociedade, a família, a academia? Sabemos que existe uma
pressão social, pois o professor se torna, muitas vezes, objeto de críticas
pelas suas práticas, pelos péssimos resultados dos alunos nos sistemas
avaliativos e pela própria condição precária da educação em nosso país.
Observemos o depoimento do professor A, que indignado com a falta de
compreensão da sociedade, nos contou sobre uma situação que vivenciou
em um evento ao trocar um diálogo com um senhor desconhecido.
As pessoas realmente não fazem noção do que a gente passa. Estava con-
versando com um senhor ele me disse: “Os professores vivem reclamando.
Não tem condição de passarem num concurso melhor e ficam reclamando.
Eles não têm que reclamar e sim trabalhar e pronto.” Quando estamos fra-
gilizados é muito fácil aquele discurso raso de que estamos reclamando,
quando na verdade deveríamos fazer nosso trabalho. Uma vez me pergun-
taram tu trabalha ou só da aula? Talvez esse olhar sobre nós seja porque
aparece esses altos índices de reprovação nestas avaliações do governo que
colocam a culpa em nós sem saber do contexto - (Professor A).

Já para o professor B, a sociedade atribui muitas funções à escola


que não são dela. Segundo ele, ao refletir sobre o seu compromisso com os
alunos do Ensino Médio nos apresenta a seguinte reflexão:
Falando das perspectivas do aluno. Para mim ela está condicionada a fato-
res extraescolares. Não é só a escola que vai dar perspectiva para o jovem.
Sendo que a gente não tem poder para resolver isso. Vejo que o professor
tem que fazer o que a família não faz. Uma distorção muito grande das
incumbências do professor. O professor acabou aglutinando para si respon-
sabilidades que não era dele. Não é fácil trabalhar valores com eles em um
período de Filosofia ou dois de Geografia.

Parte disso se deve à presença de uma construção simbólica do pro-


fessor-herói. Aquele que mesmo sendo um profissional mal pago e vivendo
situações esgotantes pode realizar um bom trabalho se assim desejar. Afi-
nal, temos exemplos como a Escola da Ponte4, de Portugal, e tantos outros
professores que com o mínimo fazem muito. Neste sentido o professor vai

4 A Escola da Ponte é uma instituição pública de ensino localizada em Portugal, no distrito do Porto, e dirigida pelo
educador, especialista em música e em leitura e escrita, José Pacheco. Lá, os alunos não são divididos em classes
nem em anos de escolaridade. Portadores de necessidades especiais dividem o espaço com os outros alunos, sendo
a biblioteca o local central da escola. Cada aluno e a maioria dos orientadores educativos são responsáveis por
algum aspecto do funcionamento da escola e estes últimos acompanham todos os educandos e trabalham para que
conquistem sua autonomia, compreendendo o porquê e o para quê estudar.

30
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

sendo simbolizado pela figura de um herói, de um santo ou de militante


em prol da educação.
Além disso, vale ressaltar que, para Fanfani (2005), a docência é uma
categoria social que está em constantes transformações. Dessa forma, “seu
significado e sua função social vão variando ao compasso das grandes
transformações que caracterizam o desenvolvimento da sociedade” (p. 17).
Assim, o professor B, ao referir-se à aglutinação de responsabilidades
e as dificuldades de trabalhar valores com os alunos, demonstra o reflexo
das transformações e exigências da nossa sociedade contemporânea. Neste
sentido, o aumento da violência, dos casos de assédio, homofobia, bullying,
do tráfico de drogas multiplicam o apelo aos professores para que retomem
a autoridade, estimulem a afetividade e que eduque os jovens para a cidada-
nia. Assim, por mais que os professores sejam conscientes dessa injunção
heróica, eles sentem-se culpados por não darem conta dessas atribuições.
Ah! Por mais que a gente diga: eu dou para o gasto, eu mesmo passo dizen-
do. Ah nem recebi meu salário ainda! Por mais que tenhamos essa realida-
de essa condição. A gente entra para sala de aula e tenta dar o máximo,
tenta um diálogo com os alunos. Tenta fazer que os deem valor para o
estudo e que entendam que a gente valoriza eles - (Professor A).
Como a gente se frustra, ano passado a Aluna X cursou até quase o final
do ano e acabou desistindo. Ela poderia ter ido adiante. O que houve que a
perdemos? - (Professor C).
Olhando para as fotos, fico pensando nesses alunos que passaram por nós e
hoje vejo o nome deles no noticiário como “apenados” que tristeza. Nomes
que utilizamos tantas vezes nos nossos cadernos de chamada, nos parece-
res”. Onde falhamos enquanto escola, enquanto professores que não conse-
guimos manter eles na escola? - (Professora H).

Desse modo, é possível observar na enunciação do professor A que


essa atribuição de heroísmo se enquadrada cada vez mais aos professores
da rede estadual do Rio Grande do Sul, que além de receberem salários
muito baixos não recebem em dia. Situação que se agrega a todas essas
cobranças e culpabilização mencionadas pelos professores acima.
Além disso, a partir de uma leitura mais atenta das narrativas acima,
é possível perceber as significações imaginárias que os professores têm
acerca do aluno. Significações imaginárias, aqui entendidas como a apre-
ensão dos simbolismos e significações construídos por uma sociedade que
compõem as ideias dos indivíduos de maneira singular e coletiva (CASTO-
RIADIS,1982, p. 166).
Para os professores os alunos são muito mais que um número de ma-
trícula, que um nome no caderno de chamada, como menciona a professo-
ra H, mas são aqueles que possuem uma história, que carregam as marcas

31
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

de suas experiências sociais. Haja vista a preocupação dos professores com


questões extraclasse, e por mais que muitos deles afirmem não ser de sua
alçada dar conta das mazelas sociais que chegam até a sala de aula, não
conseguem ficar indiferentes a essas questões.
Neste sentido, percebeu-se que a visão dos professores sobre a re-
lação professor-aluno teve mais destaque para questões sociais e afeti-
vas, que transparece na preocupação deles com os alunos em situação de
vulnerabilidade social, porém com poucas referências sobre o ensino e a
aprendizagem. Para os professores essa questão varia de acordo com o pú-
blico, ou seja, alunos da periferia têm maiores dificuldades de aprendi-
zagem e são menos participativos em relação aos alunos das escolas do
centro, como veremos a seguir no depoimento da professora G. No cerne
dessas questões sobre dar conta dos desafios que lhes são impostos, seus
sentimentos e preocupações com os alunos, o depoimento do professor B
chamou minha atenção,
Teve uma época em que eu viajava direto para Santa Maria para fazer
o mestrado e chegava demolido. Acredito que minhas aulas nesta época
foram muito ruins. A gente se sente culpado por isso, mas eu estava sem
condições - (Professor B).

O professor A também relatou que teve muitas dificuldades para


realizar o mestrado em Porto Alegre, pois não contou com nenhuma li-
cença ou dispensa. Segundo ele: “Saía da escola direto para a rodoviária
e quando voltava de Porto Alegre. Foram muitas idas e vindas e muito
cansaço também”. Os professores da rede estadual do Rio Grande do Sul
têm direito a frequentar cursos de formação, especialização assegurados
no seu Plano de Carreira, conforme segue: “Artigo 62 - São direitos do pes-
soal do Magistério Público Estadual: VI - ter assegurada oportunidade de
frequentar cursos de formação, atualização e especialização profissional”
(RIO GRANDE DO SUL, p. 17).
Porém, na prática, isso não acontece. Segundo a Professora I, dire-
tora de uma escola, é muito difícil a secretaria de educação liberar, “nunca
soube de nenhum colega que tenha conseguido liberação para especiali-
zação ou mestrado” e muito poucos solicitam. Ademais, como já vimos,
o Plano de Carreira do Magistério do Estado do Rio Grande do Sul não
considera Mestrado ou Doutorado para fins de progressão na carreira, o
que demonstra a falta de incentivo para a formação dos professores, e con-
sequentemente a desvalorização deste profissional.
Além da falta de incentivo para a formação de professores, outras
questões foram mencionadas pelos professores; as excessivas jornadas de
trabalho e as dificuldades de ministrar aulas em mais de uma escola.

32
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Falando em sobrecarga de tarefas, tem uma que acho absurda que é a ela-
boração dos pareceres, pelo número de alunos que dou aula. Só imagina. Eu
tinha 370 alunos, isto é, tinha que escrever 370 páginas de pareceres. Que
segundo o ideal, deveria descrever as especificidades de cada aluno. Para
isso eu tinha que ter a capacidade intelectual e rapidez de um acadêmico
de doutorado. Ninguém escreve 300 páginas em três meses - (Professor B).
Tudo isso passa pela valorização. Não somos valorizados por passar
até altas horas fazendo pareceres - (Professora I).
A nossa profissão exige muito. Temos apenas 4h de hora atividade a cada
20h. Isso para preparar semanalmente as aulas para seis ou oito turmas
dependendo da escola que trabalha - (Professora C).
Pensando bem por baixo nessa questão de carga horária. Até o salário
poderia ser o mesmo 1200 para as 20h. Mas se o governo permitisse
um maior tempo para organizar uma aula melhor. Poderia até mesmo
ser esse salário. Até para ter uma qualidade de vida - (Professor A).
É verdade, tão bom quando a gente consegue separar algum material
para os alunos. Mas é raro. A gente acaba sempre fazendo as mesmas coi-
sas pela falta de tempo - (Professora H).
Ainda mais porque a gente precisa desses 1200 de 20h, mais os 1200 de
outras 20h. A gente precisa até das 60h para poder sobreviver e conse-
guir um salário melhor - (Professora I).

Como já vimos na apresentação dos colaboradores da pesquisa a


maioria dos professores trabalham mais de quarenta horas, e muitos ale-
gam que necessitam trabalhar até três turnos, por uma questão de sobrevi-
vência, considerando que a rede estadual do Rio Grande do Sul é uma das
que paga o salário mais baixo do magistério no país. Além disso, como vi-
mos, as atividades não se restringem a essa carga horária, pois ela é extra-
polada havendo necessidade de os professores levarem serviço para casa.
Uma das atividades realizadas a cada trimestre é a elaboração de pa-
receres descritivos, considerando que a avaliação no Estado, desde 2012
passou a ser expressa por meio de conceitos. É um documento que exige a
descrição de:
quais conhecimentos, atitudes ou aptidões que os educandos
adquiriram, ou seja, quais habilidades do ensino já atingiram
num determinado ponto do percurso e quais dificuldades es-
tão a revelar relativamente a outros (RIO GRANDE DO SUL,
2016, p. 12).

Não pretendemos entrar no mérito da avaliação escolar, porém res-


saltar o quanto tal atividade é complexa, exige reflexão, um olhar minucioso
do professor perante o aluno. Mediante isso, a interrogação que surge é

33
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

como desenvolver um trabalho coerente e significativo, como acompanhar


processos? Conforme pressupõe o documento norteador da Reestruturação
Curricular do Ensino Fundamental e Médio da SEDUC (Secretaria Estadu-
al de Educação do Rio Grande Sul) a avaliação torna-se um meio pelo qual o:
[...] educando toma consciência de seu desenvolvimento in-
telectual, social e afetivo e ao professor é oportunizada uma
análise reflexiva dos avanços e dificuldades do EDUCAN-
DO, permitindo rever e redefinir sua prática pedagógica (RIO
GRANDE DO SUL, 2016, p. 12).

Porém, com 370 alunos em um trimestre, como descrever esse pro-


cesso de ensino-aprendizagem em um parecer descritivo de uma ou duas
páginas no máximo, trabalhando até altas horas? Como acompanhar cada
aluno nas suas especificidades? Os relatos acima demonstram que há mui-
tas contradições entre a realidade e as normativas e regulamentações que
norteiam o trabalho do professor do Ensino Médio na rede estadual, ainda
mais com professores que trabalham em várias escolas tendo que se adap-
tar a diferentes realidades, conforme o relato abaixo das professoras F e G:
Olhando para as fotos percebo quantas atividades eu não pude participar,
trabalhando em quatro escolas. De manhã trabalho com adolescentes de
tarde fundamental e currículo a noite Ensino Médio EJA e o regular.
Além da clientela que tenho que me adaptar convivo com 5 sistemas di-
ferentes de trabalho. O governo não quer nem saber se tu em uma escola ou
5, tu tem que se adaptar. A cada momento que tu chega num lugar, a gente
entra num sistema diferente do outro, cada ambiente tem as suas manias.
Eu saio de um lugar entro noutro tem que estar sempre me adaptando. O
professor tem que se entregar de corpo e alma. Eu mesma perdi o brilho,
não tenho como me doar totalmente para uma escola. Sábados letivos te-
nho que fazer um rodízio de dois por ano para cada escola - (Professora F).
Uma coisa que me chocou bastante no magistério foi a heterogeneidade
das turmas. Porque na escola do centro as turmas são lotadas a maioria
adolescentes e exigem muito da gente, são questionadores. Já na zona leste,
no turno da noite, os alunos são muito quietos, eles não questionam e ficam
só esperando alguma coisa de ti - (Professora G).

Observar essas situações nos levou a refletir sobre como o Estado


vem estabelecendo uma relação apenas operacional, funcional, diríamos
no campo do imaginário, com relação à educação. Assim, os professores
devem cumprir sua carga horária, encaixá-la de qualquer jeito em quantas
escolas forem, não importa a distância entre elas, as diferentes realidades
que o professor vai ter que considerar no planejamento de suas aulas. Alu-
nos matriculados versus professores ministrando aula e ponto. A satisfa-
ção e bem-estar dos sujeitos envolvidos nesse processo fica à margem.

34
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Percebemos que, infelizmente, as políticas de valorização dos pro-


fessores ficam sempre em segundo plano e ainda são vistas por muitos
como privilégios e não como investimento na educação e na própria so-
ciedade. Um exemplo disso são as matérias importantes que não prosse-
guem no Senado por não haver pressão social e vontade do poder político.
Tais matérias, que são projetos de leis, poderiam garantir um pouco mais
de dignidade e qualidade para os professores da educação básica, princi-
palmente das redes estaduais e municipais.5 Projetos de lei como a PLS
397/2008, atualmente arquivado, que asseguraria aos profissionais de edu-
cação, quando em exercício da docência em regime de tempo integral, me-
tade de sua carga horária em atividades de estudo, planejamento, avaliação
e outras não incluídas no trabalho de interação com os alunos previsto em
seu plano curricular.
Também a PLS 04/2008, que tramita há dez anos no Senado, entre ar-
quivamentos e desarquivamentos, estando há três anos com a relatoria. Esse
PLS tem o propósito de criar incentivos para professores dedicarem-se ex-
clusivamente ao ensino, assim garantindo salários equivalente a pelo menos
70% da remuneração de docentes das universidades federais para professo-
res da educação básica com dedicação exclusiva e com a mesma qualificação.
Considerando esse cenário, não há dúvida da necessidade de haver
movimentos instituintes para que se desfaça essa lógica que vem sendo
instituída nas dinâmicas da docência e que vem afetando a relação entre
professores e alunos e a condição docente. Porém, acredito que esses mo-
vimentos partem do exercício da autonomia. A autonomia aqui é entendi-
da “como agir reflexivo de uma razão, que se cria num movimento sem fim,
como ao mesmo tempo individual e social” (CASTORIADIS, 2006, p. 140).

Apontamentos para pensar e não finalizar


Ao realizar esta pesquisa, percebemos que os professores têm cons-
ciência da sua condição docente, na vida diária, no cotidiano das escolas
sobra pouco tempo para refletir e para problematizar sobre tal condição.
Pois, a vida continua, de aula em aula, de escola em escola, às vezes, o que
resta é apenas a satisfação de ter sobrevivido a mais um dia de trabalho.
Porém, as rodas de conversa instigadas pelo documentário e as foto-
grafias lhes oportunizaram uma parada no tempo para pensarem um pou-
co mais sobre suas docências. Além disso, através da experiência de uns
ouvirem os outros, compartilhando suas vivências, abriu-se espaço para
refletir sobre a importância da coletividade e da consciência de classe,
da dimensão política da vida. Tal sentimento é cada vez mais necessário

5 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias.

35
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ao observarmos a inexpressiva participação dos professores nas manifes-


tações e movimentos em defesa de sua categoria profissional. Conforme
Brancher e Oliveira (2017, p. 33):
Nos movimentos contemporâneos, ainda pensando nesse
como um tempo dentro de nós, temos vivido e visto mani-
festações de todas as ordens, por parte dos estudantes, para
os quais muitos professores não têm se movimentado juntos,
compartilhando a necessidade de (re)visitar os sentidos e sig-
nificados de práticas que vêm sendo desenvolvidas por lógicas
que não foram, muitas vezes, instituídas pelos professores.

Neste sentido, a presente pesquisa trouxe a voz daqueles que são os


protagonistas da história que compõem o exercício do magistério no Ensi-
no Médio do Estado do Rio Grande do Sul. Nessa escuta, constatou-se que
os sentidos e significados que os professores atribuem a condição docente
não são estanques.
A condição docente não é um dado fixo e acabado, assim como
não resulta somente das vontades. Ela vai ganhando conteúdo
e forma na complexa relação entre as estruturas e os agencia-
mentos humanos que compõem a vida social, tal como se vê
nos territórios da escola. Nela interferem os sujeitos sócio-
-culturais implicados na relação, sujeitos múltiplos e diversos,
tanto quanto as condições materiais e simbólicas em que suas
interações e trocas se realizam, assim como os parâmetros de
sua institucionalidade (TEIXEIRA, 2007, p. 374).

Assim, também foi possível perceber que o imaginário dos professo-


res acerca da relação professor-aluno é permeado pelas questões sociais,
em que os professores, através de ações na escola e na sala de aula, buscam
principalmente auxiliar aos menos favorecidos e oportunizar projetos de
integração social e cultural. Além disso, as histórias de vida e suas narra-
tivas foram imprescindíveis para que nos aproximasse das experiências te-
cidas nos fios da docência. As narrativas vieram acompanhadas de gestos,
olhares e entonações de vozes que se alteravam com o aflorar das emoções.
Foi possível perceber que mesmo vivenciando um mal-estar docente, eles
buscam ressignificar esse espaço-tempo vividos.
Também vale ressaltar que no exercício de um caminhar para si, os
professores ao narrarem seus próprios desafios, viam-se como sujeitos he-
roicos ao contar suas façanhas em sala de aula com atividades diferencia-
das que proporcionavam aos alunos. Ora, o heroísmo narrado era de um
sujeito que apesar das adversidades e do seu lugar simbólico como profes-
sor estar abalado socialmente, continuava a dedicar-se à profissão. Porém,
fato que também pode ser observado como uma justificativa dos professo-

36
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

res mediante a pressão social que, muitas vezes, culpabiliza os professores


pelo fracasso escolar.
Além disso, corroboramos Teixeira (2007), quando este salienta que
não há como enquadrar a condição docente com dados fixos, pois ela é
tecida no cotidiano dos professores de acordo com seus contextos sócio-
-culturais. Dessa forma, as rodas de conversa trouxeram as experiências
dos professores que foram traduzidas por seus relatos de memória, basea-
dos na oralidade e demonstraram a força viva que circunscreve as singula-
ridades na tessitura de construção do coletivo.
Dessa forma, acreditamos que falar também é resistir, e, como resis-
tência, essas vozes de professores e professoras anunciaram uma realidade
de embates, de lutas, de impasses, travados no árduo, e, muitas vezes, in-
compreendido cotidiano. Anunciaram e denunciaram precárias condições
de trabalho, dificuldades inerentes ao próprio ato de sobreviver, relações
desiguais comparada a outras profissões, esperanças e frustrações em re-
lação ao cenário da educação brasileira. A pesquisa narrativa pressupõe
esse acolhimento.

Referências

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CPERS, Sineta. Perdas Salariais dos(as) professores(as) e funcionários(as)
de escola. Porto Alegre: CEPRS, 2018.
FANFANI, E. T. Condição docente. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M.
C.; VIEIRA, L. M. F. Dicionário: trabalho, profissão e condição docente.
Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. Não paginado.
FANFANI, E. T. La condición docente: análisis comparado de la Argentina,
Brasil, Perú y Uruguay. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005.
OLIVEIRA, V. M. F. As xícaras amarelas: imaginários e memória de uma
rede de pesquisas. In: PERES, L. M. V. (org.). Imaginário: o “entre-saberes”
do arcaico e do cotidiano. 1. ed. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária,
2004. v. 1. p. 91-103.
RECH, I. Eu sou professora e agora? – As significações imaginárias de
professoras de educação básica sobre a docência. 2016. 110 p. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa
Maria, 2016.
RHODEN, C. Nunca Me Sonharam. [Documentário-vídeo]. Produção.
Marinha Faria Filmes. Direção, roteiro e montagem: Cacau Rhoden, Estela
Renner, Juliana Borges, Luana Lobo. Brasil, 2017. Duração de 90 minutos.
Som e imagem.

37
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

RIFFEL, A.C. Autonomia e Imaginário na Educação: o pensamento de


Castoriadis e a relação com o tema da Criação.2017. 110 p. Dissertação (
Mestrado em Educação nas Ciências). Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, 2017.
RIO GRANDE DO SUL. Governo Estadual. Lei 6672 - 22 de abril de 1974.
Disponível em: http://servicos.educacao.rs.gov.br/dados/lei_06672_20130311.
pdf. Acesso em: 10 jun. 2017. (CASTORIADIS, 2006, p. 140).
SILVA, M.; OLIVEIRA, V. F. A Escola como instituição imaginária social:
desafios da educação contemporânea. Revista de Educação Educere Et
Educare, v. II, n. 21, p. 55-69, jan./jul. 2016.
TEIXEIRA, I. A. C. Da condição docente: primeiras aproximações teóricas.
Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 99, p. 426-443, maio/ago. 2007.

38
CAPÍTULO 2

DESPERTAR HISTÓRIAS ADORMECIDAS:


NARRATIVAS DE GEO-GRAFIAS DOCENTES

Álida Angélica Alves Leal (FaE - UFMG)


Inês Assunção de Castro Teixeira (FaE – UFMG)

Habitar é narrativizar. Fomentar ou restaurar esta narratividade é,


portanto, também uma tarefa de restauração. É preciso despertar
as histórias que dormem nas ruas...

Certeau e Giard (1997, p. 201)

Despertar histórias adormecidas em narrativas de professores e pro-


fessoras, nelas observando seus lugares e viveres, suas grafias nos espa-
ços da metrópole. Este foi o intento deste estudo, no qual investigamos
as geo-grafias docentes na metrópole, construto teórico-conceitual que de-
signa práticas espaciais de sujeitos-professores/as na metrópole durante
seus tempos cotidianos (LEFEBVRE, 1974; HARGREAVES, 1999; HAR-
VEY, 2003). Buscamos compreender sentimentos, sentidos e significados
atribuídos a espaços frequentados, percorridos e vividos por docentes na
metrópole, revelados e reconstituídos nas narrativas que nos confiaram.
Ainda que os tempos vividos por docentes nas escolas e salas de aula
sejam mais longos e preponderantes do que outros espaços frequentados
no seu dia a dia, partimos do pressuposto de que professores são sujeitos
socioculturais (TEIXEIRA, 1999) que vivem nas teias das interações, das es-
pacialidades e temporalidades humanas, construídas não apenas nas esco-
las, mas também com suas famílias, seus amigos e conhecidos em redes de
sociabilidade, presenciais e à distância. Concordamos com Arroyo (2008,
p. 199) quando afirma que os professores “agem, pensam, sentem, vivem, e
isso, no interior e no exterior do trabalho, na totalidade dos seus espaços,
dos seus tempos e das suas relações sociais”.

39
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Nesta pesquisa, por entender que docentes dos anos finais do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio possuem mais acesso aos “produtos cultu-
rais situados” na cidade (FANFANI, 2005), investigamos professores/as do
Terceiro Ciclo do Ensino Fundamental que lecionam em escolas da Rede
Pública Municipal de Contagem, cidade pertencente à Região Metropoli-
tana de Belo Horizonte (RMBH), Minas Gerais, entre fevereiro e agosto de
2010. Por meio da aplicação de questionários, cujos dados de identificação
pessoal e profissional possibilitaram traçar o perfil destes sujeitos, e por
meio de entrevistas semiestruturadas, individuais, gravadas, realizadas
mediante os princípios teórico metodológicos da História Oral, escutamos
suas narrativas1. As entrevistas foram compostas por 03 (três) blocos de
questões: a) Bloco 1 – Locais frequentados na cidade durante a semana/ aos
finais de semana/ em recessos e feriados; b) Bloco 2 – Cidade e escola, com
questões sobre deslocamentos (meios de transporte utilizados, horários),
atividades realizadas nas escolas aos sábados; localização das escolas onde
trabalha; e c) Bloco 3 – Outros espaços frequentados pelos/as entrevistados/
as, como casa de parentes/familiares, amigos/colegas e vizinhos/as; espa-
ços de consumo cultural e lazer, entre outros.
Os/as docentes participantes da pesquisa formaram um grupo de
23 entrevistados2, com traços socioculturais e histórias particulares e co-
muns, seja nos âmbitos pessoais, profissionais e/ou concernente às suas
práticas espaciais. Neste conjunto, composto por 10 residentes em Belo
Horizonte e 13 em Contagem, estavam 13 mulheres e 10 homens, sendo 03
de 30 anos de idade; 07 com 31 e 40 anos; 07 tinham entre 41 e 50 anos e os
06 demais estavam na faixa acima de 50 anos de idade. Do total de entre-
vistados/as, 08 se autodeclararam brancos, 08 declararam-se pardos, 02 se
consideravam pretos e outros 05 não responderam a esse quesito. Quanto
ao estado civil, 10 eram casados/as e/ou viviam com companheiros/as; 08
eram solteiros/as, mas tinham namorado/a e/ou noivo/a; 01 era casado, mas
não vivia com a companheira, 02 eram solteiros e 02 eram separados. Do
total, 11 possuíam filhos, sendo as quantidades e idades as mais variadas.
Todos os docentes possuíam formação mínima em graduação, em
diferentes áreas do conhecimento. Quanto ao tempo de magistério, 02 pro-

1 Nas entrevistas semiestruturadas realizadas para esta pesquisa, a primeira pergunta apresentada aos/às professores/
as, referente aos locais frequentados na cidade durante a semana/aos finais de semana/em recessos e feriados
quando não estavam no trabalho, assemelhou-se ao que compreendemos ser uma “questão geradora” de uma
entrevista narrativa (FLICK, 2004). A partir da questão supramencionada, a maior parte dos docentes participantes
construíu longas narrativas, que contemplavam diferentes aspectos contidos nas demais perguntas do roteiro de
entrevista. A partir disso, coube à entrevistadora “explorar” suas narrativas, seja a partir do roteiro, seja a partir de
questões apresentadas pelo/a próprio/a entrevistado/a. Neste sentido, consideramos que os trechos de entrevistas
trazidos neste estudo correspondem a narrativas, relatos produzidos pelos participantes não totalmente marcados pela
diretividade e caráter previamente delimitado pela entrevistadora; mas pela disponibilidade dos sujeitos descreverem
suas experiências e tecerem reflexões e significações sobre o que estavam relatando.
2 Esta é uma pesquisa exploratória, sem pretensão de generalização e representatividade estatística.

40
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

fessores/as possuíam de 02 a 03 anos de docência; 02 professores possuíam


entre 04 a 05 anos; 04 professores possuíam de 06 a 10 anos; 03 possuíam de
11 a 15 anos; 04 tinham entre 16 e 20 anos de profissão, 03 lecionavam há
21 a 25 anos, 02 tinham 26 a 30 anos no magistério e 03 possuíam mais de
30 anos de docência. A maior parte dos/as docentes possuía renda familiar
na faixa dos 07 a 10 salários mínimos.
Quanto aos turnos de trabalho, não entrevistamos nenhum/a docen-
te que trabalhasse em apenas um turno. Do total, 16 professores/as tra-
balhavam nos turnos da manhã e da tarde, 02 trabalhavam no turno da
manhã e da noite; 02 trabalhavam no turno da tarde e da noite. Ao todo, 20
professores/as realizavam dupla jornada de trabalho em escolas. Destes, 04
possuíam atividade remunerada para além do magistério. Havia, ainda, 03
docentes com tripla jornada de trabalho no ambiente escolar. Por semana,
cada docente trabalhava com 150 a 750 estudantes. Um terço do grupo
lecionava na mesma cidade onde morava, sendo que os demais moravam
em uma das três maiores cidades da RMBH (Belo Horizonte, Contagem e
Betim) e trabalhava em outra delas.
Das geo-grafias narradas por estes sujeitos, focalizamos, neste artigo,
as dimensões analíticas da casa e do pedaço, que ganharam destaque em
suas narrativas.

A casa é dentro da gente3

Todo tempo que eu tenho disponível, eu fico em casa mesmo! E eu só saio


de casa para resolver alguma coisa mesmo! Ou pra [...] fazer um passeio,
fazer uma coisa diferente e tal. Fora isto, eu fico mais em casa mesmo. Eu
acho assim, eu descanso melhor, resolvo melhor as minhas coisas na minha
casa mesmo - (Professora Margareth).

Nos relatos do grupo de professores sobre os espaços que percorrem


e frequentam nas cidades onde vivem e trabalham, a remissão às suas ca-
sas, aos lugares onde moram, foi recorrente, predominando sobre os de-
mais, como evidenciado na narrativa em epígrafe. Nos territórios urbanos,
a casa é um dos “fixos” citadinos (SANTOS, 1994).
Nas sociedades modernas, a casa pode ser comercializada, vendida,
comprada, especulada, arrendada, alugada, emprestada, demolida, desa-
propriada. A casa é, muitas vezes, objeto-mercadoria de desejos, conforme
relataram alguns/mas professores/as. Enquanto alguns/mas entrevistados/
as destinam parte de seus salários ao pagamento do aluguel ou de parcelas
da chamada “casa própria”, outros/as expressam orgulho pela conquista
da posse de seus imóveis. Quanto à situação da residência, 10 professores

3 Paráfrase de passagem da obra Sertão Veredas, de Guimarães Rosa: “O Sertão é dentro de nós”.

41
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

possuíam casa própria financiada; 09 possuíam casa própria quitada e 04


moravam em imóveis alugados.
A casa foi mencionada pela maioria dos docentes, sobretudo, como
o território da família. A chamada “família de coabitação” dos docentes
pesquisados (Vieira e Relvas, 2003) possuía diferentes arranjos. Entre os/as
entrevistados/as, 08 professores/as indicaram morar com cônjuge e filho/s;
02 moravam com esposo/a ou companheiro/a; 02 moravam com uma irmã;
02 moravam com a mãe e um irmão; 03 moravam sozinhos/as; 02 moravam
com um/a filho/a; 01 morava com a mãe; 01 morava com os pais e uma irmã
e 01 morava com os pais, uma irmã e 02 sobrinhos.
Para alguns sujeitos, a casa e a família são colocadas como priori-
dade em suas vidas, além de estarem intimamente relacionados. Estar em
casa significa estar em família, seja com filhos e marido/esposa, seja com
amigos/as, parentes, seja com famílias-amigas, seja com iguais, os pares,
significando afeto, amizade, familiaridade, festa, tradição, encontro, ba-
gunça, alegria. Pode-se considerar que as ligações com as famílias, ao lado
do trabalho, são aquelas às quais os/as docentes pesquisados/as dedicam
maior atenção, cuidado e preocupação. Vieira e Relvas (2003) pontuam que
as vidas de professores/as estão situadas prioritariamente por entre a es-
cola e a família.
Para alguns/mas docentes entrevistados/as, é preciso ficar em casa
para cumprir o papel de “dona de casa”, não sendo esta uma condição ape-
nas feminina, mas também de alguns dos professores, embora eles assu-
mam tarefas domésticas em menor número e frequência. Sabe-se que as
questões de gênero são muito fortes quando se trata da casa. A divisão
sexual do trabalho está presente, uma vez que algumas entrevistadas, mais
do que os professores homens, precisam dividir seus tempos diários entre
as duas escolas em que trabalham e os serviços domésticos, como narra a
professora Vânia: “E o sábado é pequeno pro tanto de coisa que tem pra
fazer! A gente trabalha a semana inteira e nos dois horários! Então, tem
uma série de coisas dentro da casa da gente que você tem que organizar!”.
A permanência de alguns/mas docentes no espaço da casa em detri-
mento de outros locais da cidade tem ainda outra motivação peculiar: mes-
mo em suas casas, destituídos dos papéis exercidos nas escolas, os docentes
continuam desenvolvendo parte de seu ofício. Essa tarefa, ao lado da ela-
boração de atividades e avaliações variadas, do planejamento e de algum
estudo, é assim realizada por motivos vários: a possibilidade de acesso a ma-
teriais diferenciados, impressos e/ou digitais; acesso a computadores e/ou
internet, por vezes inacessíveis nas escolas; maior tranquilidade e/ou silên-
cio, se comparado ao espaço escolar; menor possibilidade de interferências

42
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

de outras pessoas; disponibilidade de tempos mais longos para se dedicar à


elaboração dos materiais, entre outras razões4. Sandra e Vânia relatam:
[...] Depois que eu entrei pra Educação, eu não venho lendo como eu lia
antes porque eu não tenho tempo! Que às vezes você encontra coisas e você
leva pra casa. Por mais que eu tente me programar, tem muita coisa que eu
levo pra casa. Ou corrigir prova que às vezes não dá tempo, ou então porque
eu tenho, em sala de aula, eu estou olhando até caderno, mas eu tenho que
parar de corrigir alguma coisa pra dar tempo pro aluno. Então eu acabo
levando coisas pra casa, eu tenho que planejar projetos em casa, eu tenho
que fazer várias coisas em casa. Tento cortar, diminuir, mas não tem como
você tirar tudo! Então em casa eu vou pro computador, mas eu estou lendo
coisas que vão me ajudar em sala de aula, não é? Atualidade, em Geografia
é o que mais tem, não é? Como é que você não está sabendo o que aconte-
ceu lá, não é? Em todos os sentidos! Então tenho que estar lendo, eu tenho
que ter internet, eu tenho que ter material da minha área, eu tenho que
viajar, eu tenho um monte de coisa! - (Sandra)
Geralmente professor tem que elaborar prova, elaborar exercício, corrigir.
Então eu não posso te falar que eu tenho um final de semana
todo meu! (...) Não é todo meu, porque eu ainda tenho prova, por exemplo,
eu tenho 4 dias de português, vamos supor que eu tenha avaliação de pro-
dução de texto. São 4 turmas com produção de texto. Na escola, é difícil.
Aí vou ter que levar para casa! Mas eu administro de forma a evitar, cada
dia mais levar menos. A única coisa que eu ainda faço questão de fazer em
casa é elaborar prova. (...) Outra coisa: eu uso muita charge, eu tiro muito
material da internet. Eu assinei [um jornal] para poder pegar as charges
diretamente, porque lá tem o arquivo [...]. Então, assim, eu pesquiso muito
pra fazer as minhas provas! Eu trabalho muito com tirinhas, aí eu gosto de
ficar na minha casa! Isto eu gosto de fazer lá! - (Vânia)

A casa representa uma extensão do espaço da escola e do tempo de


trabalho docente. Contudo, ela não se reduz a isso, uma vez que tem várias
significações e sentimentos nela inscritos, atribuídos pelos professores:
lugar de descanso; lazer-prazer; motivo de saudade; local do aconchego,
da individualidade, do silêncio, em oposição a outros espaços da cidade. A
casa pode ser compreendida como um lugar valorizado emocional e sim-
bolicamente para muitos/as docentes pesquisados, uma expressão de afe-
tos, numa clara relação de amor, como num romance vívido e vivido, visível
no cuidado renovado com esse espaço. Joana, por exemplo, enfatizou: “É
porque eu gosto mesmo de ficar em casa. Não é falta de opção, é opção! Eu
gosto de ficar em casa por opção!”. Vânia, por sua vez, relatou:

4 Além destes, um dos principais motivos para os docentes levarem para suas casas suas tarefas docentes está
associado às suas condições laborais precárias, regimes e contratos de trabalho que envolvem longas jornadas e
intensos ritmos de trabalho e pífios níveis salariais.

43
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Quando vou ao Shopping, pego o carro ou o ônibus e vou especificamente


para ver aquele filme. Entro, compro o ingresso, assisto o filme e vou embora!
Extremamente objetiva! Nada de lojas, não fazem o meu gênero, não gosto.
Eu saio pra fazer uma determinada coisa, bem objetiva! Qualquer pessoa que
você sai vai querer sentar, vai demorar, olhar não sei o quê na loja, aí entra,
estragou meu programa! Mas não é, como é que eu vou te falar, não é não
querer contato não, não é nada disso! É realmente descansar, querer ficar em
casa! Bem, não é que eu não goste, mas a cada ano você vai ficando mais
cansada! E cada ano você valoriza mais a sua casa! Você quer ficar em casa!
(...) Ah, é uma saudade de casa... Quanto mais tempo eu posso ficar na minha
casa, mais eu quero ficar! Às vezes fazendo coisas que eu nunca, nunca tive
tempo de fazer, como ficar assistindo televisão, entendeu? Eu valorizo muito
ficar na minha casa! Porque eu realmente estou muito cansada! Foram anos
e anos estudando e trabalhando, estudando e trabalhando! Se eu puder ficar
lá, eu prefiro! Agora, geralmente a gente está estudando. É muito difícil ficar
em casa e não estar estudando, não estar lendo, não estar pesquisando na
internet, elaborando uma prova, corrigindo prova.

Nessas considerações, Vânia salienta que, antes de entrar para a pro-


fissão docente, há cerca de seis anos, trabalhava em uma empresa de trans-
porte e fazia muitas viagens. Neste sentido, a escolha da profissão docente,
além de ser um desejo antigo, foi motivada pela vontade de “ficar quieta”.
O “permanecer em casa”, se comparado às exigências de sua outra ativi-
dade, foi facilitado com a nova profissão. Como professora, seria possível
deslocar-se por distâncias menores, uma vez que poderia escolher a escola
em que iria lecionar e, inclusive, os turnos nos quais trabalharia.
Na cidade vimos surgir, ainda, as casas dos parentes como outra for-
ma em que a casa aparece nas geo-grafias docentes. São um lugar espe-
cial pelos laços que mantêm com seus moradores – enlaces parentais, em
sua maior parte. Pode significar comodidade, aconchego, afeto, saudade
e, também, desconforto e obrigação, quando nelas é preciso ir para fazer
visitas, nem sempre desejáveis.
Além disto, alguns/mas docentes, quando se reportavam a espaços
como a casa de alguns parentes, do namorado, o bar ou o bairro, também
os denominaram de casa: “minha segunda casa”. A noção de casa ultrapas-
sa as vertentes físico-geográficas, tornando-se uma ideia mais ampla, que
se pluraliza, tal como o professor Fábio relata:
Quando tem um recesso, eu costumo ficar em casa. Até porque quando eu
falo que é ficar em casa, não é ficar literalmente dentro de casa. É ficar em
casa, nas redondezas, não é ficar lá enfurnado dentro de casa. (...) É dar
um pulo na praça da Glória, é correr, academia, tomar uma cerveja num
boteco. Pra mim, isto que é ficar em casa.

44
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

DaMatta (1997) salienta que o espaço percebido e imaginado da casa


pode ser reduzido ou ampliado, conforme a unidade que surge como foco
de contraste. A casa pode tanto definir o espaço privado e íntimo de uma
pessoa, como o quarto de dormir, quanto pode designar um espaço maior
e de caráter público. Desfaz-se, pois, uma oposição rígida e simplificada
entre a casa e a rua. Para Bachelard (2008, p. 53), “todo o espaço realmen-
te habitado traz em sua essência a noção de casa [...] A casa é todo um
mundo”. Ainda conforme o autor, “os espaços amados nem sempre querem
ficar fechados! Eles se desdobram. Parece que se transportam facilmente
para outros lugares, para outros tempos, para planos diferentes de sonhos
e lembranças”.
E, além desses, quais outros aspectos podemos considerar para se
compreender o que a casa representa, para aqueles/as e outros/as tantos
professores e professoras? Entendendo que a casa não é apenas espaço
físico mensurável, DaMatta (1997, p. 08) nos convida a contrapor casa e
rua, destacando que tais categorias sociológicas só fazem sentido se colo-
cadas em oposição, em contextos de contrastes e complementaridade. Em
suas palavras, ambas designam “entidades morais, esferas de ação social,
províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucio-
nalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis,
orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.”
Casa e rua simbolizam uma “oposição básica na gramática social” de
um país, relembra DaMatta (1997). Se utilizadas como metáforas, servem
para dizer que a casa pertence ao domínio das relações pessoais, enquanto
a rua fica no eixo das leis impessoais. O ângulo da casa ressalta a pessoa,
possui intensidade emocional alta, expressa laços de familiaridade. Já o
ângulo da rua tem maior rigidez, referindo-se ao que tem força de lei, de
emoção disciplinada, anonimato, impessoalidade, desprendimento, o que
permite a exclusão e a condenação. Entendidas como categorias sociológi-
cas, casa e rua são esferas de sentido que constituem realidades e permitem
regular o comportamento por meio de perspectivas particulares.
Para alguns entrevistados, estar em casa pode ser sinônimo de des-
contentamento, uma vez que enclausurar-se neste espaço pode significar
não propriamente uma opção, mas uma reação ao medo da cidade, receio
de estar na rua e daquilo que ela contém de negativo, de temor e teme-
ridade, na visão de alguns docentes. Para outros/as, como a professora
Renata, ficar em casa em detrimento de deslocar-se para outros espa-
ços da cidade como shoppings, por exemplo, especialmente aos finais
de semana, contrapõem-se ao “batidão” semanal na escola, sinônimo de
agitação e barulho:

45
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A maioria dos meus amigos particulares são professores. (...) É mais cos-
tume deles irem à minha casa. E como eu sou uma pessoa extremamente
caseira, é mais um costume assim. Eles: “Ah, vamos sair?”. Eles gostam
muito de sair, a grande maioria dos meus amigos. E eu: “Ah não! Estou te
esperando aqui em casa! Vem cá que vamos fazer alguma coisa aqui em
casa”. Então eu tenho este título já, este rótulo de gostar de ficar em casa.
“Ah, a Renata, programa com ela é em casa!”. Então tudo assim, a gente
tenta melhorar as coisas em casa para que a gente possa estar recebendo as
pessoas, eu acho que a gente fica mais à vontade, não tem tanto barulho. A
escola é muito barulhenta! Então assim, final de semana, que você descan-
sa sua cabeça e você vai pra um lugar barulhento, você não dá conta! Então
você precisa realmente de um lugar assim. Eu moro num lugar no alto, que
é silencioso, você escuta os passarinhos, como se fosse roça mesmo! E aí
eu sinto que minha cabeça, graças a Deus, ela está bem, sabe? Porque eu
estava assim, num período que eu pegava a Via Expressa, eu ia pra casa, eu
estava muito cansada, muito mesmo. E assim, a qualidade de vida minha
melhorou sensivelmente a partir do momento que mudei de casa. Então,
se você vai num bar ou num shopping, você tem que tolerar barulho. Olha
o barulho que a gente tolera a semana inteira... (Renata apontou o dedo
para a janela da sala de aula em que estávamos realizando a entrevista,
indicando o barulho feito por alguns estudantes que estavam no primeiro
pavimento, brincando, conversando alto e gritando). Então a televisão tem
que ser bem baixinha, as pessoas, a gente procura conversar baixo, porque
na escola a gente já fala num tom mais alto. Então o ambiente te ajuda!
Então se é uma casa tranquila, se é um lugar silencioso, vai te ajudar e até
te desestressar, te acalmar, porque a sua semana inteira é um batidão.

O relato de Renata aponta elementos analisados por Certeau e Giard


(2008, p.205), no sentido de que a casa e, em seguida, o bairro, cada um com
seus limites, são locais onde a possibilidade do controle pessoal é maior.
Ambos têm como singularidade o fato de o sujeito poder ali fazer aquilo que
quiser, conforme seus desejos. Os autores explicam que o espaço doméstico
é o “lugar próprio” que, por definição, não é o lugar do outro. Para alguns, é
um espaço onde tudo se faz para nele permanecer e dele não se retirar, uma
vez que significa paz, refúgio e descanso. Neste território privado:
o corpo dispõe de um abrigo fechado onde pode estirar-se, dor-
mir, fugir do barulho, dos olhares, da presença de outras pes-
soas, garantir suas funções e seu entretenimento mais íntimo.
Morar à parte, fora dos lugares coletivos, é dispor de um lugar
protegido, onde a pressão do corpo social sobre o corpo indivi-
dual é descartada, onde o plural dos estímulos é filtrado ou, em
todo caso, devia sê-lo, teoricamente. Daí a intolerância crescen-
te, na cidade contemporânea, com o barulho dos vizinhos e com
o cheiro de sua cozinha (CERTEAU; GIARD, 2008, p. 205).

46
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

No caso dos/as professores/as pesquisados/as, o principal barulho do


qual alguns deles e delas se escondem e apresentam intolerância é aquele
emitido na escola que, por sua vez, assemelha-se à agitação nas ruas e al-
guns espaços da cidade. Pesquisas realizadas na cidade de São Paulo sob
a supervisão da fonoaudióloga Claudia Taccolini Manzoni, por exemplo,
mostram que, se os índices encontrados em algumas escolas forem com-
parados com o nível recomendado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) para uma sala de aula (de 35 a 45 decibéis) a diferença é mais que o
dobro: de 78 a 92 decibéis. Destaca-se que, durante os intervalos das au-
las, os ruídos alcançam 110 decibéis, medida que, após meia hora, pode
começar a oferecer riscos à saúde. Levantamentos realizados na sala dos
professores também indicam os mesmos níveis apresentados em sala de
aula, nos momentos em que a maioria dos docentes está reunida, como nos
intervalos e recreios (UOL, 2005).
A este respeito, Júlia e Joana também tecem observações:
Eu fico cansada desse vai e vem durante a semana, então fico doida pra ficar
quietinha. Aí geralmente eu coloco um filme, vou assistir filme, essas coisas,
deitada, entendeu? Uma coisa assim bem calma, tranquila mesmo! Sem mui-
to barulho no meu ouvido, que também perturba. Ultimamente, barulho de
aluno vai e está cansando de ficar ouvindo, cansa barulho de aluno! - (Júlia).
Durante a semana eu não frequento nenhum lugar. Porque aí a gente che-
ga, sai tão exausta, tão cansada que não dá ânimo de fazer nada, nem ir ao
shopping comprar uma blusa e voltar dá ânimo. Eu me sinto muito cansa-
da, muito sobrecarregada, sabe? Esta escola aqui é bem mais tranquila que
a outra escola, a escola é bem mais pesada com relação a disciplina, sabe?
Os meninos têm muita dificuldade de aprendizagem e então suga toda a
energia da gente, eu fico muito cansada quando eu saio daqui. Eu chego em
casa, tomo um banho e quando dá umas nove horas, eu: “Cama!” Eu não
aguento mais nada, sabe? Muito cansada! Então é muito cansativo! Finais
de semana, eu sou muito caseira. Nos finais de semana, eu vou aos progra-
mas mais light assim, um cinema, uma sorveteria ou então ficar com o na-
morado, coisa bem, bem light. Nada de movimento, zueira, melhor! (risos)
(...) Eu estava até pensando em comprar aquele protetor de orelha! Eu estou
pensando seriamente em comprar! Não é que você não escuta, mas você
escuta num tom mais baixo, mais abafado. Então seria até bom, porque às
vezes eu chego lá em casa e minha mãe começa a falar, falar, falar, falar.
E eu: “Ô mãe, desde sete horas que eu estou escutando menino na minha
orelha. Pelo amor de Deus, me dá um tempo!” [...] Qualquer barulhinho,
até televisão lá em casa é num volume mínimo. Meu pai liga a televisão
um pouquinho mais alto e entro pra dentro do quarto e fico lá dentro do
quarto. Porque já me incomoda, porque eu já fico o dia inteiro escutando
barulho, barulho, barulho, barulho, barulho. Os meninos não sabem con-

47
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

versar! Eles só gritam! Aí eu, assim, finais de semana eu prefiro assim uma
coisa mais light, mais tranquila, sabe? Com pouco barulho! (risos) Então
são programas assim, mais tranquilos, mais calmos - (Joana).

Neste ponto, entendemos que, mais do que a oposição entre a casa e


a rua, a contraposição entre a casa, a rua e a escola, especialmente no que
diz respeito aos sons característicos de cada um destes espaços, singu-
lariza a relação do/a professor/a com a cidade, ganhando importância na
compreensão das vidas dos docentes. A casa aparece como sinônimo do
silêncio, se opondo aos espaços da rua, do shopping, dos bares, da escola,
sinônimos de barulho, agitação, movimento.
Neste sentido, o descanso, que também tem abrigo na casa de alguns
docentes entrevistados, é um importante elemento edificado na arquite-
tura material e simbólica da casa, outro motivo pelo qual nela permane-
cem quando é possível. A casa é singular e especial, remetendo à noção
de privacidade, de intimidade, de vida cotidiana. É um lugar de morada de
pessoas conhecidas com seus respectivos universos biográficos e culturais,
com quem os professores compartilham alegrias, sofrimentos, lembranças
e enredos que carregam víveres e histórias individuais e comuns. Outros
espaços da cidade são trocados pela casa, na qual muitos dos docentes des-
frutam longas horas de sono que revigoram o corpo. A casa simboliza fuga
de tantas horas expostas ao trabalho, à escola, à docência com suas tantas
exigências e desgastes.
Para melhor entender os significados da casa, deve-se lembrar, ain-
da, que ela é o lugar no qual a habitabilidade está associada ao bem-estar,
conforme Brandão (2009, p. 1). Conforme o autor, a habitabilidade plena
integra o real, o simbólico e o imaginário numa totalidade que envolve
nossas dimensões existenciais, transformando em um cosmo, com sentido
e ordem, o caos de nossos corpos individuais e coletivos.
A habitação, que não se resume apenas à casa, constitui-se no
lugar que nos devolve a nós mesmos, às nossas certezas, atra-
vés dos usos, estímulos, espaços e objetos que escolhemos ter
ao nosso redor. Dessa forma, o bem-estar constitui-se quando
a habitação nos salva, cuida de nós, cultiva-nos e devolve-nos
a nós mesmos, à nossa história, à nossa tradição e às nossas
possibilidades, ancora-nos, dá-nos o assentimento do eu e a
segurança requerida [...] para o bem-estar. [...] O bem-estar é o
próprio exercício da “habitabilidade”, ou seja, da assunção do
meu lugar para mim, para o mundo e para o absoluto.

De modo geral, conforme os/as investigados/as, a casa possui múlti-


plas significações em suas vidas cotidianas. No entanto, cabe destacar: as
relações que estes sujeitos estabelecem com este espaço demonstram que

48
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

vida pública e privada de professores ora se misturam, ora se confundem,


ora se contrapõem, sendo marcadas, em maior ou menor profundidade,
por contornos e traçados da profissão e da condição docente.
Antes de seguir com os/as professore/as para outros lugares, talvez
possamos reafirmar, nas trilhas de Brandão (2009), que “a casa é o lugar
que nos devolve a nós mesmos”, ao mesmo tempo em que podemos dizer
que “a casa é dentro da gente”, formulação vem de uma das expressões de
Guimarães Rosa (1986) sobre o sertão, pois o que nela vivemos, levamos
para onde for.

O “pedaço”: um outro lugar para habitar


Para os/as professores/as, seja do grupo investigado, seja quais forem
eles e elas, a cidade e o mundo não surgem de repente quando avançam os
limites da “soleira da casa”. Entre a casa e a rua existe o pedaço, entendido
por Magnani (1998, p. 116-117) como “um espaço de mediação cujos sím-
bolos, normas e vivências permitem reconhecer as pessoas diferenciando-
-as, o que permite atribuir-lhes uma identidade que pouco tem a ver com a
produzida pela interpelação da sociedade mais ampla e suas instituições”.
Pedaços são, pois, um ou mais espaços demarcados, que se tornam pon-
tos de referência que distinguem determinados grupos de frequentadores
como pertencentes a uma rede de relações sociais marcadas pela proximi-
dade, pelo conhecimento e reconhecimento.
A principal referência do pedaço é a articulação de vínculos pré-
-existentes como os de vizinhança e procedência, que geram uma forma de
sociabilidade típica em determinados limites espaciais. O pedaço abarca
locais de encontro e lazer cuja proximidade da casa ou as relações inter-
pessoais podem fazer com que haja sujeição dos frequentadores a determi-
nadas formas de controle, especialmente aquelas exercidas pelos “conhe-
cidos”. Nestes locais, as redes de sociabilidade são tecidas por conversas
informais e trocas cotidianas de favores, gentilezas, olhares, comentários.
Assim, são dois os elementos básicos do pedaço: um componente de ordem
espacial que, por sua vez, corresponde a uma determinada rede de relações
sociais que ali é costurada.
Nas entrevistas com os/as professores/as, encontramos quatro ti-
pos de pedaços mais significativos em suas vidas cotidianas, que evocam
elementos típicos de seu trabalho. Esses “pedaços docentes” são usados
e apropriados em várias situações, entre as quais destacamos: 1) quando
saem juntos ou se encontram durante os entre-turnos escolares, em mo-
mentos destinados à alimentação, especialmente ao almoço, em shoppin-
gs, restaurantes, lanchonetes, etc, ocasiões em que estão entre companhei-
ros de trabalho; 2) quando se deslocam juntos em carros, ônibus e/ou à

49
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

pé, para irem e/ou voltarem da/s escola/s em que trabalha/m, conversando,
contando as novidades e/ou fofocas sobre assuntos variados, os pedaços-
-trajeto; 3) quando estão nos “bares da vida” com colegas de trabalho e 4)
quando estão juntos em movimentos de resistência como os “palcos de
greve” (TEIXEIRA, 1998), constituídos em espaços públicos, como praças,
ruas e avenidas.
Destacamos, neste estudo, o pedaço dos bares, presente nos relatos
de alguns/mas entrevistados/as. Tais locais costumam funcionar como um
palco de uma transição com três aspectos peculiares, conforme Pajak e
Blase (1984 apud VIEIRA; RELVAS, 2003). Tratando-se de professores/as, o
primeiro é que o bar pode ser uma oportunidade de discutirem problemas
vividos na escola, reduzindo o impacto dos mesmos sobre sua vida privada.
A passagem do ambiente da escola para o bar refere-se à transição de uma
dinâmica extrafamiliar para uma dinâmica intrafamiliar de maneira não-
-abrupta, mas gradual e paulatina. Tal significado está intimamente ligado
à oposição entre a casa e a rua, uma vez que o pedaço, espaço de transição,
pode amenizar impactos que um dia de trabalho cansativo de trabalho te-
ria sobre a família, por exemplo. Fábio relatou:
Sempre que a gente passava por uma situação difícil, situação de trabalho,
e isto virou um código de relacionamento entre a gente, [...] a gente passou
por muitas situações difíceis, um olhava pro outro e falava: “Vamos tomar
uma?”. (risos) [...] Porque a gente trabalhava, dava aula à tarde e todo mun-
do tinha este perfil, dava aula à tarde e à noite [...] Então a gente resolvia as
nossas questões e até às vezes de relacionamento interpessoal no trabalho a
gente resolvia ali. [...] Aí não sei se é o álcool (risos) - (Fábio).

O segundo aspecto refere-se ao fato de o bar funcionar na vida dos/as


docentes como um modo de compensação do “caráter impessoal” e, sobre-
tudo, formalizado, ritualizado, programado e administrado das escolas. Em-
bora territórios escolares sejam palco de ações instituintes e informalida-
des, são reduzidas as oportunidades para que os/as docentes expressem sua
personalidade, seu modo de ser e estar no mundo como pessoa e não apenas
como profissional, de modo mais livre e espontâneo, como relatou Jairo:
Até a discussão do bar também eu acho que é um processo de formação
importante! [...] Porque eu acho que no estado etílico as pessoas se soltam
mais. Não irresponsavelmente, lógico! Acho que a gente, que essa informa-
lidade do espaço te dá mais possibilidades, te dá mais espaço mesmo pra
você falar, entendeu? Espaço político pra você falar, pra você emitir suas
opiniões, a tal da informalidade. Eu acho que até na política brasileira,
muitas decisões que são tomadas ali, elas começaram na discussão de bote-
co. [...] Então as pessoas, eu acho que elas ficam mais à vontade pra opinar
e depois ver que aquilo ali pode ser uma boa construção, formaliza essa

50
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

construção, mas a ideia, muitas vezes, é na mesa de bar. [...] Então eu acho
que é um espaço importante. O bar tem o seu veio democrático (risos), que
é melhor do que o formal - (Jairo).

Em seu “veio democrático”, espontâneo, flexível, divertido e infor-


mal, o pedaço-bar docente, também considerado um espaço político, per-
mite que a impessoalidade da rua e a pessoalidade da casa sejam mediadas
e superadas pelo exercício da liberdade, pela existência de outros laços
relacionais. Conforme Fábio, os bares são também espaços oníricos, que
propiciam “sonhar” com outra escola possível:
Inclusive tem uma grande amiga minha que é professora na rede [...] que
ela falou assim: “Os melhores PROJETOS que a gente pensou pro CEASA,
as melhores IDEIAS, os melhores projetos nasceram numa mesa de bote-
co!”. E era verdade! [...] E aí a gente tomava uma decisão ali na mesa de bo-
teco. Lógico que a gente tomava 700 decisões e cumpria 250, é lógico, não
é? Em dado momento, a gente começava a sonhar! Não era mais planejar,
era sonhar! - (Fábio).

O terceiro significado assumido pelo bar na vida daqueles/as profes-


sores/as, ainda conforme os autores antes mencionados, é a permissão da
passagem de um restrito papel profissional para uma expressão mais livre
e espontânea do eu pessoal. Os bares mais se assemelham aos tempos da
festa, da transgressão, do prazer, das escolhas do que aos tempos do traba-
lho assalariado, como contam Rafaela e Gilberto:
Às vezes virava um desabafo [...] uma oportunidade de estreitar a amizade,
[...] de conhecer melhor a pessoa, sabe? De conviver com a pessoa e não só
com o profissional, de conhecer mais da vida daquela pessoa, então era
muito bom! - (Rafaela).
Quando sai, o grupo fica mais unido. Com certeza. Isso eu acho que faz
parte do grupo, essa convivência fora da escola. Não é você frequentar a
casa de ninguém, mas eu acho que essa convivência que você tem fora da
escola, num ambiente que não é da escola pra uma coisa que não é da
escola. Porque você falar assim: “Uma festinha dentro da escola de ani-
versário”. È dentro da escola! Mas quando você faz uma coisa que não tem
nada a ver com esse ambiente da escola como: “Ah vamos encontrar pra
tomar uma cerveja?”, eu acho que o grupo fica mais forte como grupo. [...]
Então essa convivência lá fora leva isso pra dentro da escola justamente
nesse sentido, desse vínculo maior entre as duas relações. [...] Você não tem
essa convivência dentro da escola, então estas saídas fortalecem quando
está dentro da escola [...] Ela melhora muito porque você sai de dentro do
espaço escolar então você começa a conhecer a pessoa fora do espaço esco-
lar, o que ela é fora do espaço escolar, como ela vive fora do espaço escolar.
Então isso é importante, e como é! - (Gilberto).

51
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Ao observar os três aspectos apontados pelos autores, alguns elemen-


tos transversais caracterizam a saída dos professores entrevistados para os
pedaços dos bares, nelas incidindo um recorte de gênero, entre outras ques-
tões a observar nesses tempos/espaços docentes. Sabe-se que, historicamen-
te, a divisão sexual dos papéis refletiu-se, também, na separação entre as
esferas públicas e privadas, estando os homens localizados na primeira e as
mulheres confinadas à segunda. Talvez este seja um dos motivos pelos quais
os espaços dos bares tenham sido mencionados mais vezes e com maiores
detalhes pelos professores em detrimento das professoras. Ao saírem das
escolas, especialmente se casadas, com filhos e/ou com poder aquisitivo me-
nor, as docentes têm maior preocupação com os afazeres da casa, que geral-
mente recaem sobre elas. Isto faz com que elas se dirijam para casa e não
compartilhem os espaços de bares com os colegas, especialmente nos traje-
tos entre a escola e a casa. Isto não significa que as mulheres professoras não
frequentem estes espaços físicos, mas isto acontece com mais frequência na
companhia de outros amigos, que não os colegas de trabalho, além de mem-
bros de suas famílias, geralmente aos finais de semana.
Destaca-se, ainda, no grupo entrevistado, que para alguns/mas docen-
tes há outros fatores diversos que levam à inexistência dos pedaços docentes
nos bares em suas vidas cotidianas. Dentre estes, torna-se difícil sair para os
bares, junto com os colegas, devido aos tempos de trabalho engessados, sub-
sumidos à rítmica societária, por entre as grades dos calendários e horários
escolares. Os ritmos de trabalho na escola – o “batidão” –, também dificul-
tam essas saídas, dado o cansaço ao final de um dia ou semana de trabalho.
A baixa existência dos pedaços nas geo-grafias do grupo de profes-
sores aparece, também, associada à sensação de insegurança e violência
comum nos habitantes de grandes centros urbanos, além das distâncias a
serem percorridas para se deslocarem de um ponto a outro da metrópole.
Em suma, seja por questões financeiras, seja por questões como cansaço,
preguiça, desânimo, distância, por falta de tempo ou outros fatores, é a vida
urbana que adentra a casa. Vê-se televisão, escuta-se rádio, conversa-se ao
telefone e navega-se na internet, utiliza-se serviços “delivery” sem sair de
casa. É a “aniquilação do espaço pelo tempo”, realizada por meio da “revo-
lução técnico-científico-informacional” (HARVEY, 2008; SANTOS, 1994).
Ademais, práticas mais livres e de entretenimento, seja na casa, no
pedaço e/ou outros locais, segundo alguns entrevistados/as, embora praze-
rosas, são realizadas em períodos demasiadamente curtos. Isto ocorre devi-
do às longas jornadas de trabalho e aos afazeres domésticos, especialmente
para mulheres-professoras. Muitas vezes, estes períodos a serem desfruta-
dos junto aos filhos, às avós e às mães, por exemplo, são apertados, estreitos,
escassos, pois é preciso ir embora cedo, como disse o professor Júlio: “Ama-
nhã começo a dar aulas às 07:00 da manhã. Para isto, acordo às 5h!”.

52
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Por fim, salienta-se que, nos relatos dos/as docentes, a própria casa
e o pedaço docente se mostraram, por vezes, impactados negativamente
pelo tipo de trabalho que realizam. Alguns/mas professores/as relataram
seus esforços, em maior ou menor grau, para não misturarem o “lá fora”
(o universo da própria casa e do pedaço) e o “aqui dentro” (universo da
escola)5. Observou-se que tal questão está diretamente associada às “dife-
rentes posições na carreira docente” (HUBERMAN, 1992): quanto maior a
experiência profissional, maior o empenho em separar as referidas esferas
da vida. Tal dualidade é apontada por Gilberto, que estava prestes a se
aposentar. Quando questionado sobre o que conversava com seu irmão,
professor, e sua namorada, pedagoga, quando se encontravam, disse:
Nunca de professor. Nunca assunto de escola. A gente evita, é lógico que
aparece, aparece de vez em quando porque não tem como. Mas a gente tem
um lema nosso: jamais, fora da escola, conversar sobre a escola. Lugar ne-
nhum, nem com a minha família, nem com ninguém. [...] É uma decisão
nossa. [...] Porque não vale a pena. Trabalho você tem ele quando você está
dentro e só nele. Fora dele, se você começar a envolver seu ambiente social no
seu trabalho, você não tem vida social. Você passa a ter vida só de trabalho.

O esforço e a negativa visando à preservação do espaço da própria


casa como um tempo/lugar alheio ao trabalho escolar também são enfati-
zados por Fábio:
Olha só! Não me peça pra corrigir uma prova em casa, que eu não levo tra-
balho pra casa. Que eu não faço isto! E isto eu já fiz, mas eu não levo tra-
balho pra casa. [...] Eu não me desligo do fato de ser professor, de situações
de aprendizado, porque eu acho que aprender é muito gostoso! [...] Agora,
juntar 700 provas, botar no carro, nem morto! (risos). Minha companheira
faz! E isto me irrita profundamente!

Há, contudo, situações em que os relatos sobre o trabalho são aceitos


em espaços de lazer ou descanso: trata-se de algo positivo, prazeroso, leve,
descontraído, porque fala-se das alegrias sentidas junto aos alunos, con-
forme relata a professora Mariana:
Quando saem professores juntos, o que mais tem é assunto. [...] Procuro
muito não falar escola! Procuro muito assim, sabe? Se for um caso mais
emotivo, alguma coisa sobre um aluno, aí eu vou comentar. Eu faço o im-
possível, nem possível, o impossível pra não levar, eu já passei por esta ar-
madilha. [...] Mas eu era assim. Eu não dormia, eu sonhava. [...] Mas hoje,
dizer que eu levo este problema pra casa, pra cama, (risos), graças a Deus,
me libertei.

5 Os docentes foram entrevistados no espaço da escola. “Dentro” se refere ao espaço da escola.

53
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Em suma, as táticas para separar a escola da díade casa-pedaço giram


em torno de várias iniciativas. Entre elas, os acordos com colegas, familia-
res e/ou amigos/as para que não conversem sobre o assunto; a realização de
tarefas docentes apenas na escola; além do rompimento parcial de vínculos
com colegas que, fora da escola, como aponta a professora Sandra, estão
em constante “conselho de classe”.

Restaurando “narratividades”6 inacabadas...


Nas narrativas do grupo de professores/as pesquisados/as, geo-grafias
docentes são restauradas porque revistas, porque refeitas de perto ou à
distância, sobre a cidade, com a cidade, na cidade...
Para analisá-las, cabe destacar a cidade como categoria que envol-
ve vasto conjunto de proposições conceituais. Dentre distintas formula-
ções, trazemos a cidade enquanto uma invenção, uma criação humana,
uma “obra de arte” (LEFEBVRE, 2008, p. 82). Nela, o espaço não é somente
organizado e instituído, mas também modelado e apropriado por vários
grupos sociais, conforme suas exigências, sua ética, sua estética, sua ide-
ologia. Tal noção remete à criação, à inspiração, à engenhosidade, deven-
do ser considerados dois aspectos a respeito: o da monumentalidade e do
emprego do tempo pelos citadinos e cidadãos, membros da coletividade.
Entendida como “obra de arte”, a cidade encontra seu par dialético
na noção de cidade-produto. Enquanto a obra tem algo de insubstituível
e de único, o produto pode ser reproduzido, resultado de gestos e atos re-
petitivos. Em determinadas circunstâncias, os espaços sociais assumem o
caráter de desprendimento, de apropriação, de prazer e desejo. Em outras,
assumem o aspecto de coisa, de mercadoria a ser trocada, comercializada.
Na cidade-produto, o artificial e o sofisticado preponderam sobre o espon-
tâneo e o apropriado. Enquanto a cidade-obra remete ao valor de uso, a
cidade-produto refere-se ao valor de troca. Cidade-obra e cidade-produto,
no entanto, não podem ser separados. Entre ambas existem relações com-
plexas, mediações. (LEFEBVRE, 1974, 2008).
A cidade pode também ser entendida como o lugar em que o mundo
e os homens se movem e se constroem como sujeitos históricos (SANTOS,
1994). Transfiguradas em metrópoles, as grandes cidades, sob o signo do
capitalismo, implodem e explodem criando formas inéditas de viver o tem-
po e o espaço. Passam por um processo de atualização capitalista de prepa-
ração das cidades para uma vida voltada para o consumo.
Destaca-se que as relações de sociabilidade são mediadas pelo mun-
do da mercadoria e do trabalho. Daí as várias cenas que se pode ver daque-

6 Termo utilizado por Certeau e Giard (1997, p. 201), conforme indicado na epígrafe deste artigo.

54
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

les professores nos shoppings, por exemplo. Nesta perspectiva, entende-se


que a metrópole tem a capacidade de reunir, fragmentando a tudo e a to-
dos. Isto decorre da ampliação e extensão das relações mercantis e quanti-
tativas a todas as dimensões da vida. Com a metropolização, a cidade passa
da condição de obra a produto.
No cerne do urbano e da cidade como fragmentação está o que Lefe-
bvre (2008) chama de cotidianeidade. A repetição incessante, característi-
ca do mundo moderno, faz com que as coisas percam o sentido, trazendo
consigo certa banalização. Trata-se de algo que é não apenas recorrente,
repetitivo, mas também corrosivo, reduzindo a possibilidade de irrupção
do novo, do espontâneo. O uso e distribuição do tempo e do espaço torna-
-se dividido entre momentos e locais determinados para o desempenho de
atividades prescritas. Da casa para o trabalho, do trabalho para casa, como
disseram muitos/as professores/as entrevistados/as.
Embora os atuais ordenamentos capitalistas continuem avançando de
variadas formas sobre a vida cotidiana, nela continua presente a possibilida-
de da não-fragmentação, através dos agenciamentos humanos. Ações huma-
nas individuais e coletivas (re)constroem sentidos e possibilidades outras,
que não impostos pelo modo de ser e estar no sistema de produção, extrapo-
lando as configurações dos lugares e formas de sociabilidade erigidas sob o
paradigma do capitalismo. Para Certeau (2008, p. 171-172), através de suas
táticas cotidianas, os praticantes urbanos subvertem a cidade-conceito ra-
cionalizada e normativa para construir e instaurar novas apropriações, que
devem ser apreendidas e analisadas em seu contexto de produção.
Observando os/as docentes de um modo geral, e os sujeitos desta
pesquisa, em particular, que práticas sociais singulares e plurais eles/as
constroem, exercitam ou realizam sobre a cidade, com a cidade, na cidade?
Que enredos e textos escrevem na cidade, com a cidade, sobre a cidade,
grafias e histórias marcadas nos territórios citadinos que habitam – suas
geo-grafias? Percorremos algo dessas questões neste estudo, sem qualquer
pretensão de esgotá-las, trazendo alguns desses traçados.
Nesse trajeto, uma das descobertas é a de que os/as docentes en-
trevistados, tal como seus contemporâneos, têm variadas relações com a
cidade, sendo algumas delas divergentes entre si, enquanto outras con-
vergem. Tais relações vão variando, sendo mais ou menos facilitadas ou
dificultadas, mais ou menos cerceadas ou possibilitadas, conforme as
configurações do trabalho, as condições de deslocamento, as composições
e dinâmicas familiares, as possibilidades de consumo de cada docente.
Nestas relações entre docentes e metrópole observa-se a dicotomia
entre a cidade-obra e a cidade-produto, havendo predominância da segun-
da sobre a primeira. A cidade-produto, muitas vezes, é aquela que vive com
mais intensidade em suas labutas diárias. A cidade-obra, que tem algo de in-

55
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

substituível e de único, marcada pelo espontâneo, pela festa, pelo lúdico, pela
possibilidade do porvir, está pouco presente em suas vidas. No entanto, nem
por isto deixa de ser mencionada nos relatos dos/as docentes. Espera-se que
a cidade-obra possa estar mais presente, visível e constante nas vidas dos/as
professores/as, pelo que essa experiência da cidade pode oferecer-lhes.
Nas geo-grafias docentes, ainda deve-se reiterar que, constituindo
parte de sua singularidade, entre outros de seus traços e trançados, as
entrevistas trouxeram-nos a casa, preponderantemente. E nela, as famí-
lias, que também circulam com estes sujeitos por outros cantos da cidade.
As ligações com as famílias, ao lado do trabalho, são centrais, sendo alvo
maior de atenção, de cuidado, de preocupação e de dispêndio de tempo no
cotidiano dos/as professores/as. Os espaços habitados são, principalmente,
os da casa – territórios da vida familiar -, assim como os da escola – terri-
tórios do mundo do trabalho –, pouco sobrando para outras experiências.
Ademais, salienta-se que, na casa, a escola e o trabalho se fazem presentes,
assim como nos pedaços dos bares e outros mais.
Por fim, à procura das vidas cotidianas de sujeitos-docentes impres-
sas em suas relações com os espaços da metrópole, foco deste estudo, bus-
camos a palavra Geografia. O termo, inicialmente tomado como metáfo-
ra, foi transportado e transfigurado em um construto teórico-conceitual,
as geo-grafias, analisadas a partir de seus termos fundadores: o espaço e a
escrita, a cidade e a escritura, os lugares, os territórios, as paisagens, os
sujeitos e suas caligrafias espaciais. Grafias sobre o espaço, sobre o chão,
geografias que falam e contém a vida, demarcando histórias individuais e
coletivas situadas espacial e temporalmente nas teias da metrópole. Vidas
de professores/as, por isso geo-grafias docentes. Grafismos de experiências
que se edificam e expressam em percursos e histórias, em sentimentos,
sentidos e significados relatados pelos sujeitos ao narrarem suas idas e
vindas, seus movimentos e paradas nos espaços-tempos metropolitanos,
desvelando suas marcas, sinais e inscrições. Revelando nos trançados dos
traços, a trama dos enredos de suas vidas e percursos com a cidade, sobre a
cidade, ora se referindo aos fatos, ora falando de sonhos, projetos, quimeras.
Algo dessas grafias foi aqui despertado em pequenos traçados. Em
sua forma mais completa, geo-grafias docentes (ou de quem seja), não cabe-
riam em um artigo. Elas ultrapassam qualquer tamanho, qualquer medida,
qualquer intenção, pelo que contém víveres e histórias. Serão sempre res-
taurações parciais, “narratividades” inacabadas...

56
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Referências

ARROYO, M. G. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. 10. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
BRANDÃO, C. A. L. Habitabilidade e Bem-Estar. 2005. Disponível em:
encurtador.com.br/acyCH. Acesso em: 14 jul. 2021
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2008. v. 1.
DAMATTA, R. A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no
Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro, 1997.
FANFANI, E.T. La condición docente: análisis comparado de la Brasil, Perú
y Uruguay. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005.
FLICK, U. Uma introdução à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre:
Bookman, 2004.
GIARD, L.; MAYOL, P. O bairro. In: CERTEAU, M., GIARD, L. MAYOL, P.
A invenção do cotidiano: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997. v. 2.
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986
HARGREAVES, A. Hacia una geografía de la formación docente. In:
PÉREZ GÓMEZ, A.; BARQUÍN RUIZ, J.; ANGULO RASCO, J. F. (Ed.):
Desarrollo profesional del docente: política, investigación y prática,
Madrid: Akal, 1999. p.119-145.
HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da
mudança cultural. 17. ed. São Paulo, Ed. Loyola, 2008.
HUBERMAN, M. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA,
Antonio (org). Vida de professores. 2. ed. Porto, Portugal: Porto Ed, 2000.
p. 31-61.
LEFEBVRE, H. Espaço e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. 190 p.
LEFEBVRE, H. O direito à Cidade. São Paulo: Editora Documentos, 1974.
MAGNANI, J. G. C. Festa no pedaço. São Paulo: Hucitec, 1998.
SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: Ed. Nobel, 1994.
TEIXEIRA, I. A. C; ARROYO, M.; BARBOSA, L. M. Tempos enredados:
teias da condição de professor. Tese (doutorado) - Universidade Federal de
Minas Gerais, 1998.
TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. Os professores como sujeitos sócio-
culturais. In: DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre educação e
cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

57
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

UNIVERSO ONLINE (UOL). Ruídos em escolas deixam especialista em


alerta. 2005. Disponível em: encurtador.com.br/wAU59. Acesso em: 13 jul. 2021
VIEIRA, C. R; RELVAS, A. P. P. R. F. A(s) vida(s) do professor: Escola e
família. 1. ed. Coimbra: Quarteto Editora, 2003.

58
CAPÍTULO 3

PARA ALÉM DA REMUNERAÇÃO:


PROFESSORAS NOS CONTAM
COMO SE SENTEM VALORIZADAS
1

Valdete Aparecida Fernandes Moutinho Gomes


(Universidade Federal de Ouro Preto)
Célia Maria Fernandes Nunes
(Universidade Federal de Ouro Preto)

Introdução
Nos últimos anos, os debates em torno da valorização docente têm
sido cada vez mais frequentes entre os profissionais da área, representan-
tes da categoria, pesquisadores e sociedade civil, de modo geral. Essa in-
tensificação das discussões em torno da temática se deve à sua indiscutível
importância para a qualidade do ensino e para a satisfação profissional
dos/das professores/as.
No Brasil, o conceito de valorização docente emergiu na Constituição
Federal de 1988 (CIRILO, 2012), vinculado à garantia dos planos de carreira
para o magistério público, piso salarial profissional e ingresso na carreira
por meio de concurso público de provas e títulos. A partir de então, outras
determinações legais se sucederam para consubstanciar, do ponto de vista
legal, o conceito de valorização docente, entre elas: a Lei do Piso Salarial
Profissional Nacional (PSPN), as Diretrizes Nacionais para os Planos de
Carreira e Remuneração dos Profissionais da Educação Escolar Pública
Básica, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamen-
tal e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação (FUNDEB) e o Plano Nacional de Educação (PNE). Nessas

1 Agradecemos à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pelo apoio ao


desenvolvimento das atividades da pesquisa.

59
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

determinações, percebe-se a indissociabilidade entre formação, remune-


ração, condições de trabalho e carreira para que a valorização da categoria
se concretize, efetivamente, como uma realidade da profissão. O conjun-
to dessas regulamentações ficou conhecido como políticas de valorização
docente, as quais têm orientado, de modo dominante, os estudos sobre a
temática no país (CIRILO, 2012).
No entanto, a despeito da importância das políticas de valorização
docente, verificamos que há uma lacuna nos estudos do campo referente à
escuta dos/as professores/as sobre o conceito de valorização. Acreditamos
que é necessário investigar, na perspectiva dos/das docentes, quais são os
fatores que contribuem para que eles/as se sintam valorizados/as.
Com o intuito de compreender e analisar a percepção desses pro-
fissionais sobre a valorização docente, desenvolvemos uma pesquisa de
cunho qualitativo a partir da realização de entrevistas narrativas com
cinco professoras atuantes no Ensino Fundamental I na zona urbana do
município de Mariana, Minas Gerais. Elaboramos a questão gerativa de
forma a coletar as informações de nossa investigação. Trata-se de uma úni-
ca questão, centrada no tema da investigação, cujo objetivo é privilegiar
as histórias contadas pelos/as entrevistados/as. Os questionamentos do/a
pesquisador/a são realizados após a conclusão da “narrativa principal”,
quando se iniciam as “investigações narrativas” (FLICK, 2004; TEIXEI-
RA; PÁDUA; 2006; SILVA; PÁDUA, 2010). Nesse momento, o pesquisador
pode propor questionamentos que emergiram da própria narrativa do en-
trevistado. Utilizamos ainda um diário de campo para registro das impres-
sões ao longo das entrevistas e aplicação de um questionário para mapear
o perfil socioeconômico e cultural das participantes.
De posse das entrevistas, as mesmas foram transcritas conforme as
orientações de Hartmann (2012), autora que sugere a utilização de uma maior
proximidade com a linguagem oral. Em seguida, procedemos às análises
que se desenvolveram segundo uma interpretação hermenêutica ou análise
compreensiva-interpretativa proposta por Souza (2006), procurando, dessa
forma, apreender o sentido das narrativas no contexto em que se situam.
A aplicação das entrevistas narrativas possibilitou que as professoras
pesquisadas manifestassem a importância de fatores e percepções ainda
pouco investigados nos estudos sobre a valorização docente. Verificamos
que, para além dos aspectos de natureza objetiva contemplados pela legis-
lação (formação, remuneração, condições de trabalho e carreira), a valori-
zação envolve também uma dimensão subjetiva, que se refere à satisfação
profissional e ao reconhecimento social no exercício da docência (LEHER,
2010). Nessa direção, as docentes enfatizaram a centralidade das relações
humanas vivenciadas na profissão, entre as quais: a relação com os/as alu-
nos/as e as famílias e as trocas estabelecidas com os/as pares, como uma

60
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

delas nos disse: “Temos que ser valorizadas não só financeiramente, mas
também do ponto de vista humano”.
Os achados dessa pesquisa estão expostos da seguinte maneira: na
primeira seção, apresentamos as professoras participantes da pesquisa,
destacando os aspectos principais de seu perfil individual e coletivo. Ca-
racterizamos ainda, brevemente, o município onde lecionam.
Na segunda seção, analisamos os aspectos objetivos da valorização
docente que emergiram das narrativas das professoras, sobretudo, no que
se refere às condições de trabalho, cujo aspecto envolve uma complexidade
de fatores que não se limitam à dimensão salarial. Embora o salário seja
um elemento central nos debates sobre a valorização docente, constata-
mos que a remuneração, por si só, não é capaz de proporcionar a valori-
zação docente, uma vez que outros fatores como as condições de trabalho
interferem, diretamente, na realização do trabalho do professor.
Na terceira seção, investigamos a relevância das interações humanas
vivenciadas na profissão. Compreendemos que o reconhecimento pelo tra-
balho que o/a professor desenvolve cotidianamente representa um tipo de
valorização importante para o/a docente. Em outras palavras, o reconhe-
cimento subjetivo atravessa as relações que o/a professor/a estabelece na
profissão, ao passo que o reconhecimento objetivo envolve as políticas de
valorização docente.

Breve apresentação das participantes da pesquisa e do município onde lecionam


Cinco docentes, cinco trajetórias de vida, de formação e de profis-
são. O grupo, todo composto por mulheres, reflete o predomínio do gênero
feminino no exercício da docência. (LOUZANO et al., 2010). Suas idades
variam entre 32 e 45 anos. Duas delas se declaram pardas, outras duas,
brancas e uma amarela2.
Originam-se das camadas populares, confirmando os pressupostos
de Diniz-Pereira (2011) e Louzano et al. (2010) quando afirmam que a maio-
ria dos (as) docentes no Brasil provém das camadas menos privilegiadas
socioeconomicamente. Suas histórias familiares são marcadas, predomi-
nantemente, por curtas trajetórias escolares. Três delas são casadas e duas
são divorciadas. Duas professoras (uma casada e uma divorciada) são as
principais responsáveis pelas despesas da família. Nesse contexto, ainda
que o exercício da profissão docente seja permeado por muitos desafios,
a docência representa certa ascensão sociocultural para as famílias e para
as professoras.

2 No Brasil o termo “cor amarela” refere-se à população de origem japonesa, coreana e chinesa.

61
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Quanto à formação, quatro professoras fizeram a graduação no curso


Normal Superior sendo que duas delas também cursaram Pedagogia. Uma
professora possui graduação em Letras. Três professoras foram graduadas
em cursos presenciais de universidades privadas e duas delas em instituições
públicas federais por meio do CEAD (Centro de Educação Aberta e a Distân-
cia), promovido através da parceria entre a UFOP e a Prefeitura Municipal
de Mariana. Dois dos cursos de graduação foram realizados na modalidade
semipresencial e três na forma presencial. Todas possuem curso de especia-
lização em áreas ligadas ao ensino, os quais foram realizados em institui-
ções privadas. Podemos verificar aqui, conforme apontado por Louzano et al.
(2010) e por Diniz-Pereira (2011), o predomínio das instituições privadas nos
cursos de formação docente realizados pelas professoras pesquisadas.
O tempo de exercício da docência entre as professoras pesquisadas
varia entre 10 e 20 anos. De acordo com os estudos de Huberman (1992)
referentes às fases da carreira, denominados pelo autor de “ciclos de vida
profissional do docente”, as professoras encontram-se no período conhe-
cido como diversificação ou questionamento, período que ocorre entre os
sete a vinte e cinco anos de profissão e caracteriza-se por um momento de
experimentação e reflexão sobre a carreira.
As cinco professoras lecionam em distintas escolas da rede municipal
de Mariana, MG. A cidade nasceu em 1696 em decorrência das expedições
dos bandeirantes paulistas que adentraram as Minas Gerais à procura de
ouro no Estado. Atualmente, a mineração de ferro é a principal atividade
econômica do município. Em 2015, aconteceu o rompimento da Barragem
de Fundão, de responsabilidade da mineradora Samarco, que causou gra-
ves perdas humanas, materiais e ambientais ao município. A tragédia/cri-
me impactou, profundamente, a vida dos marianenses, especialmente, dos
atingidos diretos pelo rompimento. As comunidades de Bento Rodrigues e
Paracatu de Baixo, localizadas na área rural, foram completamente devasta-
das. Outras comunidades localizadas às margens do Rio Gualaxo do Norte
e do Rio Doce, ambos nascidos em Minas Gerais, também foram afetadas.
Desde então, o município vem buscando outras alternativas para o
seu desenvolvimento socioeconômico, como o turismo, que tem desponta-
do como uma atividade promissora.

O salário dos/das professores/as dos anos iniciais no município: um dos


elementos objetivos da valorização docente

Eu espero que mais cursos possam acontecer pra gente, né? E que o profes-
sor seja muito mais valorizado. Financeiramente, se você olhar em Minas
Gerais, o salário do professor de Mariana é um dos melhores salários de
Minas Gerais. Claro que a gente necessita mais? Necessitamos sim. Temos

62
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

que ser valorizados sim! Mas, não só financeiramente, mas também do pon-
to de vista humano. Valorizar o professor, o ser humano em si. Dar a ele
condições de desenvolver um bom trabalho, né? Não só financeiramente,
mas também dentro de sala de aula, recursos materiais que a gente necessi-
ta também - (Professora Raimunda3).

Entre os aspectos objetivos (formação, remuneração, condições de


trabalho e carreira) que compreendem a valorização docente, a dimensão
econômica é a mais ressaltada pela mídia e pelos discursos políticos, uma
vez que está diretamente relacionada à imagem social da docência (AR-
ROYO, 2011). Embora a oferta de uma remuneração digna seja fundamen-
tal, ela por si só não assegura a valorização docente, como destaca a pro-
fessora na narrativa a seguir:
Eu acho que você vê que não é tão valorizada pelo governo por [ele] não
te dar suporte pra você tá trabalhando. Não adianta você ser valorizado
só com essas questões de salário! Eu acho que tem que ter toda uma es-
trutura, né? Material didático e a estrutura física do ambiente também
- (Professora Edinalva).

Segundo Oliveira e Assunção (2010, s/página), o conceito de condi-


ções de trabalho envolve o conjunto de recursos necessários para a rea-
lização da atividade profissional. Compreende as instalações físicas, os
materiais, insumos, equipamentos e outros tipos de apoio necessários
conforme a natureza do trabalho realizado. Diz respeito, ainda, às relações
de emprego, formas de contratação, remuneração, carreira e estabilidade.
Nesse contexto, destaca-se o plano de carreira dos profissionais do
magistério, dispositivo que privilegia alguns aspectos referentes às con-
dições de trabalho como a inserção na profissão por meio de concurso
público de provas e títulos, a relação entre remuneração e o piso salarial
profissional, a definição da jornada de trabalho. No entendimento de Gatti
(2012), os planos de carreira refletem o reconhecimento social e político
da docência. No município estudado, o plano de carreira promoveu, signi-
ficativamente, o aumento da remuneração dos/as professores/as, mas, em
contrapartida, aumentou as exigências sobre o trabalho da categoria:
Financeiramente, a gente foi valorizada quando veio o plano de carreira.
Mas, em cima dele, veio um monte de outras coisas que eu acho que acabou
sobrecarregando a gente demais da conta - (Professora Ângela).
Eu acho assim, em questões de salário, o plano de carreira valorizou os
professores porque eu não acho que a gente tá ganhando mal, não. Agora,
eu vejo muita cobrança com relação a papel, sabe? A gente preenche muito

3 De acordo com o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto,
utilizamos de pseudônimos para preservar a identidade das professoras.

63
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

papel. Não vejo necessidade de tanto registro. Eu acho que, sabe? Que a
gente tem que ficar todo o tempo registrando. Registra o que que você tá
fazendo no momento de AC. É... muito papel, muito detalhar tudo e isso,
eu não vejo necessidade - (Professora Edinalva).

Corroborando as narrativas supracitadas, Gatti (2012) afirma que os


planos de carreira podem aumentar as exigências sobre o trabalho docen-
te. Essas exigências se evidenciam no controle do trabalho docente por
meio do excesso de registros e da necessidade de os/as professores/as aten-
derem à avaliação de desempenho. No caso específico do plano de carrei-
ra do município marianense, seu maior mérito, segundo as narrativas das
docentes pesquisadas, reside na elevação salarial dos/das professores/as de
Ensino Fundamental I, como demonstra a tabela a seguir:

Tabela 1 - Comparativo do valor do piso docente do município estudado com o


piso nacional
Ano de vigência Piso de Mariana Piso Nacional4
2013 R$ 1.717,00 R$ 1.467,00
2014 5
R$ 2.750,00 R$ 1.697,39
2015 R$ 2.942,50 R$ 1.917,78
2016 R$ 3,089,62 R$ 2.135,64
2017 R$3,089,62 R$ 2.298,80
2018 R$ 3,089,62 R$ 2.455,00
2019 R$3.213,20 R$ 2.557,74
2020 R$ 3.213,20 R$ 2.886,24
Fonte: elaborado pelas autoras.

Em relação à remuneração no município, as cinco docentes pesqui-


sadas ressaltaram que estão satisfeitas com o salário, o qual se refere a uma
jornada semanal de 27h para professores/as com formação superior. Essa
satisfação deve ser compreendida a partir do contexto mais amplo em que
se situa a profissão docente no país. Em outras palavras, as professoras
percebem o salário de forma positiva também porque o comparam com
outras realidades no exercício da profissão, como é o caso do valor do piso
nacional. Além disso, conforme vimos anteriormente, diante da origem so-
cioeconômica das professoras e das ocupações destinadas às mulheres nos
grupos a que pertencem, o salário docente configura-se como uma remu-
neração diferenciada.

4 Conforme determina a Lei 11.738/2008, conhecida como Lei do Piso, o valor do mesmo corresponde a uma jornada
de, no máximo, 40h semanais para professores com formação de nível médio.
5 Observa-se um significativo aumento salarial ocorrido em 2014, ano de implantação do plano de carreira no município.

64
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

A oferta de uma remuneração digna, além de contribuir para a satisfa-


ção profissional e a valorização docente, pode contribuir para a qualidade do
ensino, tendo em vista uma maior disponibilidade de tempo para a realiza-
ção de formação continuada e a possibilidade de aquisição de bens culturais:
Depois do plano de carreira, algumas realizações pessoais ficaram mais
fáceis de se ter. Por exemplo, você ter condição de comprar um livro, coisa
que se você não tem um salário adequado, você vai dar prioridade pra ou-
tras coisas. A questão de você fazer curso só que são disponibilizados pelo
município ou por outras instituições. É você fazer outros cursos particulares
que é do seu interesse. Isso te possibilita quando se tem uma remuneração
melhor, né? - (Professora Cristina).

Conforme mencionamos anteriormente, a remuneração é um ele-


mento indispensável dos aspectos objetivos que compõem a valorização
docente. No entanto, o exercício da profissão pressupõe a oferta de ou-
tros elementos igualmente importantes para a satisfação do/da professor/a
como é o caso das condições de trabalho.
Além de complexas, as condições de trabalho são determinantes na
forma como o/a professor/a percebe a docência, como nos apontou a pro-
fessora Raimunda, ao ressaltar que essa dimensão da valorização docente
promove também a valorização humana do/da professor/a. No entendimen-
to de Arroyo (2011), a ausência de estrutura física e material e de salários
influencia as relações sociais, humanas e culturais no interior da escola.
“Nessas condições, nos desumanizamos todos” (ARROYO, 2011, p. 64).
Nessa direção, constatamos que há uma relação de interdependên-
cia entre os aspectos objetivos e subjetivos da docência. A subjetividade
docente é construída mediante as condições concretas de exercício da pro-
fissão (MANCEBO, 2010, s. p.), o que inclui a estrutura física e os recur-
sos materiais disponíveis. Ou seja, as condições de trabalho interferem no
modo de ser e estar na docência, tendo em vista que a ausência de recursos
materiais incide, diretamente, na realização do trabalho do/da professor/a:
Aí, o quadro é branco. Não é giz mais [...]. Essa semana eu tive que pedir a
carga do pincel e não tinha. Aí, tive que pegar uma outra cor porque não
tem mais da cor que tinha. Material que vem pra gente pra sala de aula,
lápis e borracha vem contado e aí, a gente tem que ir se desdobrando pra ele
durar o tempo que você for precisando, porque vem pouco material. Cola
também é pouco. Então, é bem complicado pra gente poder desenvolver
essas atividades. Aí, acaba e o que acontece? Professor tira do bolso, pra
poder conseguir dar uma atividade ou fazer alguma coisa que dê pra você fa-
zer, igual por exemplo, a gente tá trabalhando em português, os gêneros que é
fábula, piada e carta. O que a gente conseguiu ali pra fazer é tudo que a gente
vai imprimindo em casa, compra folha, aquele cartaz lá [aponta o cartaz], por

65
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

exemplo, da carta, fui eu que desembolsei o dinheiro e pra outra professora


trabalhar e não é barato. Então, acaba que pra gente conseguir fazer um tra-
balho bom, a gente acaba tirando do nosso bolso - (Professora Francisca).

A narrativa supracitada demonstra que a remuneração, apontada


como um fator de satisfação profissional no município estudado, acaba
sendo subtraído para a aquisição de insumos e materiais necessários para
a realização do trabalho docente. Contudo, as condições de trabalho com-
preendem ainda a estrutura física dos estabelecimentos escolares, que
pode interferir, inclusive, na saúde das professoras:
E as condições de trabalho quando elas são salubres, porque infelizmente,
infelizmente, é muito comum no setor público, nós temos péssimas condi-
ções de trabalho, né? De ambiente mesmo, de risco pra aluno, de risco pra
gente, né? E isso, eu cito pra você um exemplo de todos os dias. Todos os
dias, quando eu chego, esse ano e os anos anteriores também, nós limpamos
as carteiras antes de iniciarmos, porque como eu leciono próximo à rua, a
poeira ali é uma coisa louca, além do ruído, né? Em função dos veículos. Se
você não limpar a carteira quando você chega, porque à noite... De manhã,
elas limpam, elas passam a vassoura, mas não dá tempo, porque tem aula à
noite. Então, nós chegamos e, realmente, o ambiente tá assim, em condição
péssima. Às vezes, o próprio banheiro... - (Professora Cristina).

Nos últimos anos, as pesquisas educacionais têm enfatizado a rela-


ção entre as condições de trabalho e o adoecimento docente. Os problemas
de saúde mais frequentes na categoria referem-se ao uso intenso da voz,
a problemas osteomusculares (lesões em tendões, músculos e articulações
por movimentos repetitivos ou postura inadequada) e a doenças mentais
(insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentra-
ção, entre outros) (ARAÚJO; CARVALHO, 2009). Essas evidências do ado-
ecimento docente foram enfatizadas nas narrativas:
Eu comentei com você, por exemplo, a questão do ruído. Essas salas, a ven-
tilação é péssima. Além da ventilação, a gente tem a questão do ruído e
da poeira. Então, automaticamente, eu vou fechar as janelas. Eu vou ficar
numa sala com 25 alunos, sem ventilação. [...] Isso vai me trazendo con-
sequências, porque a tendência é de vírus, né? Aí, tem o ventilador, mas
o ventilador não funciona. O município tem um setor de obras que tem
equipes de elétrica. Mas, porque não disponibiliza então, um número x pra
passar de determinado tempo e ir fazendo vistoria, fazendo manutenção? -
(Professora Cristina).
O professor tá num estresse danado... Como é que ele consegue? É só papel,
papel, papel. Imagina eu, então, que estou nos 2 horários? Eu não tenho
vida depois do trabalho! Trabalho de manhã, trabalho à tarde, chego à
noite, tenho coisa de escola pra fazer, porque professor é assim. Trabalha

66
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

como se fosse 3 horários. Não trabalho só aqui na escola! Levo um monte


de coisa de escola pra casa pra fazer. Tem que pesquisar, tem que fazer um
monte de coisa, tem filho, tem marido, tem coisas da casa pra fazer. Então,
eu praticamente, final de semana, eu tô fazendo planejamento, pesquisan-
do coisas pros alunos [...]. - (Professora Francisca)

Como não percebem a existência de uma política de cuidado da saú-


de docente, alguns relatos das professoras pesquisadas denotam a possi-
bilidade de abandono da profissão, como é o caso da professora Cristina,
que atualmente, cursa uma graduação em outra área e pretende deixar a
docência no Ensino Fundamental:
Em função das condições que eu percebo que você tem como professor do
Ensino Fundamental, eu não desejo isso pra minha vida! Eu não desejo isso
pra grande parte das pessoas que eu tenho contato, porque é muito triste
você perceber que um profissional chega aos vinte e três anos de magistério
e ele não consegue lecionar mais, porque ele, ao longo dos anos, não teve
uma atenção com relação a cuidado com a voz. O município não ofere-
ceu, por exemplo, condições tão básicas de pensar um pouco na questão
da acústica do ambiente, né? De se ter um curso. Olha pra você ver: você
sentar com um grupo de professores em uma AC durante duas horas e ofe-
recer pra ele pontos ou situações que ele pode tá fazendo no dia-a-dia dele
pra melhorar as condições de trabalho, quer seja de postura... Depois, você
pode observar ali, é muito grande também casos de professor que precisa,
às vezes, fazer cirurgia de varizes. Por quê? Porque ele fica muito tempo em
pé, na mesma postura, porque muitas das vezes, ele não tem possibilidade
de se sentar, por alguns minutos, de fazer essa mudança de postura, ora sen-
tado, ora em pé. Então, como eu gosto muito de mim, eu não quero passar
os meus dias tendo que pontuar pra gestão escolar que há salas no prédio
que poderiam ser ocupadas pelos alunos do 5º, que é uma faixa etária que
fala muito, é uma faixa etária que vai exigir do professor ter quer falar mais
alto. Então, ele se esforça muito mais... - (Professora Cristina).

De modo semelhante, manifesta-se a professora Francisca que, em-


bora seja a mais recente na carreira (10 anos) entre as docentes pesquisa-
das, já demonstra preocupação em relação ao seu futuro na profissão:
Olha, em relação ao futuro eu fico preocupada, porque eu não sei se eu vou
dar conta, porque assim tô recente na carreira e com essas mudanças agora
da aposentadoria, dessas coisas que eles tão querendo mudar... Eu falo as-
sim: Ai, meu Deus, será que eu consigo chegar até lá? Acho que eu vou ficar
bem velhinha quase que arrastando pra eu ir pra escola e eu vou trabalhar,
ainda mais com 2 horários... - (Professora Francisca).
Verifica-se que, de modo geral, o adoecimento é vivenciado como
um processo individual. Seu caráter coletivo relacionado às condições de
trabalho ainda é um aspecto a ser debatido e construído pela categoria

67
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

docente. A permanência de situações prejudiciais ao bem-estar físico, psí-


quico e emocional dos/das professores/as tende a aumentar os processos
de adoecimento e abandono da profissão (ARAÚJO; CARVALHO, 2009).
Considerando as implicações das condições de trabalho sobre a
docência e a própria saúde docente, pensamos que a existência de uma
política de cuidado da saúde dos/das professores/as deve ser considerada
também como uma política de valorização docente. A preocupação com a
temática, que já faz parte do cotidiano de muitos/as professores/as e tam-
bém tem sido contemplada pela pesquisa educacional, deve, portanto, se
estender para o poder público e os sistemas de ensino. Essa não deve ser
uma questão periférica na pesquisa educacional, uma vez que explica, ain-
da que parcialmente, o fracasso do trabalho docente na escola, como des-
taca Diniz-Pereira (2011). Segundo Arroyo (1985), citado por Diniz-Pereira
(2011), alguns contextos profissionais acabam “deformando”, “desqualifi-
cando” os profissionais do ensino, reduzindo-se ou anulando as possíveis
contribuições da formação inicial e continuada.
No que tange à formação inicial e continuada, percebe-se, no Brasil,
uma intensificação dos debates em torno da temática a partir dos anos de 1980.
Naquele momento, o/a professor/a passou a ser visto como um agente central
para a qualidade da educação e para a democratização da sociedade brasileira.
A formação em nível superior, entre outros aspectos, favorece a profissionali-
zação docente (WEBER, 2003) e contribui para a valorização do/da professor/a
porque tende a estimular o aumento da sua remuneração (CIRILO, 2012). Na
percepção das professoras pesquisadas, o acesso aos cursos de formação ini-
cial e continuada constitui-se como um fator de incentivo profissional:
Ao longo desses 20 anos, lecionando pra Prefeitura, pro município, tive-
ram sim os momentos que contribuíram, que me incentivaram, que foram
os cursos, que foram as palestras.... Nós tivemos uns anos que era muito
comum você ter essa possibilidade de mais cursos, né? Teve, inclusive, a
licenciatura, que na época eu fiz. Eu fiz o Normal Superior. Foi a primeira
graduação que eu fiz e fiz pelo convênio que o município fez com a UFOP
e, ao longo de muitos anos [...] nós tínhamos uma série de possibilidades.
Alguns profissionais chegaram a fazer até uma Especialização que o mu-
nicípio ofereceu. Eu não fiz, porque eu já tinha. Então, o município deu
prioridade pra quem não tinha na época, né? (Professora Cristina).
Traz o conhecimento, né? Cada vez que você vai num curso, você traz um
conhecimento, uma bagagem que você pode utilizar dentro de sala de aula
ou até mesmo pra você... Às vezes, tem alguma palestra que fala de algum
aluno, de alguma ... [necessidade de aprendizagem] Você: Pô! Eu tenho esse
aluno. É desse jeito. Eu posso trabalhar desse jeito com ele. Quem sabe dá
certo? Então, eu acho que os cursos [nos] valorizam, ajudam a gente a nos
enriquecer cada vez mais dentro da sala de aula - (Professora Raimunda).

68
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Ah, eu me sinto valorizada [com os cursos]. Eu aprendo bastante! En-


tão, eles acrescentam sim e em algumas partes dos cursos, dependendo
da oficina, servem pra você aplicar na sua sala de aula e aí ele te ajuda,
em algum momento, dependendo da oficina ou do curso que você faz
- (Professora Francisca).
É uma troca de ideias com o outro. Você tem novas experiências, né? E,
a partir do momento que a Prefeitura investe nisso, ela tá te valorizando
- (Professora Ângela).

No município estudado, o nível de formação do quadro de professo-


res/as é um aspecto positivo para a promoção da valorização. Como eviden-
cia o perfil coletivo das participantes da investigação, atualmente, todos/
as docentes da rede municipal possuem formação superior. (MARIANA,
2015). No entanto, essas professoras ressaltaram a dificuldade realizarem
os cursos de formação continuada por conta da necessidade de se ausentar
da sala de aula e o quadro de professores/as da escola não contar com ou-
tros colegas que poderiam substituí-las:
Então, eu tento ao máximo fazer [...] Queria participar mais e [me] apro-
fundar [...] só que a Prefeitura não está liberando. Ela mesma está cortando
a gente de tá participando porque diz que a renda desse ano tá pouca, não
tem profissionais pra ficar, imagina se todos quisessem participar do curso
e sair, como é que ia fazer com a escola? - (Professora Francisca).
É raro eu não participar [dos cursos]. Eu só não vou mais, porque não tem
jeito. Infelizmente, não tem jeito [...] porque nem sempre você consegue ter
disponibilidade. Essa é a nossa realidade lá. É uma escola muito grande,
onde o número de professores que se ausenta também é grande, né? Em
função do fluxo - (Professora Cristina).

Além da necessidade de disponibilidade de maiores oportunidades


de formação continuada, as narrativas apontam que é preciso que sejam
garantidas as condições de participação. A responsabilidade pela realiza-
ção dos momentos de formação continuada não pode ficar apenas ao en-
cargo dos/das professores/as. Deve, portanto, constituir-se como uma polí-
tica docente com vistas a contribuir para a valorização de professores/as e
para a melhoria da qualidade do ensino.

A centralidade das interações humanas para a valorização docente: as relações


com os/as alunos/as, as famílias e os/as pares

A gente vê uma valorização, independente de todas as dificuldades, na


hora que você vê um aluno lendo, um aluno fazendo uma atividade que não
tava conseguindo, mas que você viu: Nossa! Agora sim. É aí que eu me sinto
valorizada - (Professora Francisca).

69
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Ao longo da pesquisa, as professoras enfatizaram a centralidade das


interações vivenciadas no exercício da docência, o que a configura como
uma profissão de interações humanas (ARROYO, 2004; TARDIF; LES-
SARD, 2005; TEIXEIRA, 2007). Dentre essas interações, destaca-se a rela-
ção professor-aluno, a qual, segundo Teixeira (2007), é aquilo que funda a
docência e denota o compromisso ético e amorosidade dos/das professo-
res/as em relação aos/às alunos/as. Nessa direção, Hargreaves (1994) acres-
centa que as alegrias e satisfações proporcionadas pelo trabalho com as
crianças constituem-se como recompensas psíquicas do ensino. As afir-
mações desses autores são corroboradas nas narrativas docentes:
Eu me sinto valorizada é pelo retorno das crianças, pelo carinho [que rece-
bo delas] - (Professora Edinalva).
Eu não vejo eles como meus alunos. Eu vejo eles como meus meninos!
- (Professora Raimunda).

Dessa forma, evidencia-se o caráter emocional e afetivo presente


na relação professor-aluno (TARDIF, 2012; TARDIF; LESSARD, 2005). O
desempenho dos/das alunos/as proporciona um sentimento de satisfação
profissional que atenua as dificuldades da profissão e, ao mesmo tempo,
motiva as docentes a buscarem novas estratégias pedagógicas:
Então, a gente vem tentando essas estratégias pra buscar esses meninos
mais pra participar da atividade. Aí, quando eu vejo: deu, certo. Os meni-
nos gostaram, ficaram empolgados. Aí, eu falo: nossa! Que maravilha. Eu
tô me sentindo valorizada como professora, é uma realização profissional,
porque aí, eu vejo: Nossa, que bom! Eu tô conseguindo atingir o meu obje-
tivo. Agora, tem dia que dá vontade de chutar o balde. Nossa! Não quero
isso mais. Eu não tô aguentando mais essa vida! É dois horários. Aí, você
vê que tá muito sacrifício. Aí, depois no outro dia, você fala: parece que te
passa um branco, sei lá, alguma coisa. Aí você tá lá de novo: Ai, gente, eu
adoro o que eu faço. Então, só de eu me sentir profissional e gostar do que
eu faço, então, eu me sinto valorizada nisso. Eu gosto de ser professora,
dessa profissão, porque eu me sinto valorizada nessa parte aí. E o carinho
também de alguns alunos. Nossa, sem comparação! [...] Aí, você vê: Oh tia,
eu trouxe isso pra você. Olha só tia, eu consegui fazer isso. As cartinhas que
eu guardo dos meus alunos... Todas na pasta. Todo dia: Oh, tia eu te amo
e não sei o quê. Então, não tem coisa melhor do que isso não. Então, eu
me sinto valorizada, até fico emocionada, arrepiada [risos] - (Professora
Francisca).
Então, [o que] me faz sentir valorizada é o retorno diário dos alunos e que
depende deles. Eles é que vão aceitar, eles é que vão receber. É o retorno
diário é... porque você vai pra casa, pensando assim: amanhã, eu tenho que
ser melhor, né? Eu tenho um amigo que é professor que ele fala que cada

70
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

aula é como se fosse um teatro. E no teatro, você tem que sair aplaudido, né?
(risos) [...] É o retorno diário que eles que me dão que me “incentivam”. As-
sim, que mais me incentivam. Saber que, realmente, tô conseguindo influen-
ciar coisas boas. Que, realmente, esse otimismo por acreditar que amanhã
vai ser melhor, que de certa maneira, eles acabam recebendo e também se
transformando. Isso não tem preço, né? - (Professora Cristina).

Contudo, a relação entre professores/as e alunos/as têm se modifica-


do ao longo dos anos (ARROYO, 2004; NÓVOA et al., 1995), especificamen-
te, a partir das últimas décadas do século XX, quando o sistema escolar, a
família e a própria sociedade também passaram por profundas transfor-
mações. Entre essas, destaca-se o advento das tecnologias da informação
e da comunicação, as quais oferecem outras possibilidades de informação,
conhecimento e cultura para além do universo escolar. A partir de então,
emerge-se um novo perfil de aluno que exige dos/das professores/as a cons-
trução de novas competências para o ensino (TEDESCO; FANFANI, 2004).
Estimular a participação dos/das alunos/as durante as aulas em meio a tan-
tas possibilidades de informação disponíveis nos dias atuais tem sido um
desafio e, ao mesmo tempo, uma frustração:
Eu me sinto muitas das vezes, muito desmotivada, sem interesse pra vir,
porque tudo que você propõe, nada os meninos têm interesse, entendeu?
Nada sente interesse [...] Se você entrar na minha sala, você vai ver que
não tem o que fazer. É triste, é triste, mas os meninos não querem nada, a
família não está nem aí. [...] Eu posso ir pelada para a minha sala... Ah,
minha filha, pros meninos, tanto faz. Você pode levar um filme, você pode
levar o que for. Os meninos não têm interesse. Não tem. É a minoria... é a
minoria... A maioria dos meus alunos, minha filha, estão em outro lugar.
De menos aqui, na sala de aula - (Professora Ângela).

O desinteresse e a indisciplina dos/das alunos/as fazem com que


muitos/as professores/as se sintam infelizes no exercício da profissão (GA-
DOTTI, 2011). Diante disso, Gadotti (2011), considera que é necessário que
docentes e alunos/as compreendam o sentido do ensinar e do aprender e
dessa forma, possam mobilizar o desejo pelo aprendizado, o que suscita a
necessidade de compreensão da realidade sociocultural do aluno.
Muitas vezes, essa compreensão se limita à relação que os/as pro-
fessores/as têm com as famílias, a qual, frequentemente, tem ocorrido de
forma tensa e conflituosa:
Hoje a educação é como se fosse um depósito! A escola é como se fosse um
depósito de menino. E antes [...] eu acho que a gente tinha mais valor pros
pais, pra família do que nos dias de hoje. Os pais procuravam mais.... Reu-
niões de pais eram mais cheias, tinha mais participação... A família con-
tribuía com tudo que eu pedisse... Eu sentia prazer em ir trabalhar, sabe?

71
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Tudo que você propunha fazer a família tava disposta a participar [...] Teve
até uma reunião de pais que eu falei isso. A escola sozinha não faz nada
pelo aluno, né? É, uma participação da família que tem que ter. E nem a
família faz sozinha. Então, eu falava que o sucesso que eu tava tendo com
os meninos é porque as famílias participavam muito, muito mesmo - (Pro-
fessora Ângela).

Há no senso comum escolar, certo “lamento nostálgico em relação


a uma escola perdida que não voltará mais” (BURGOS, 2014, p. 64). Esse
lamento decorre do fato de as professoras perceberem as implicações do
envolvimento familiar no desempenho dos/das alunos/as. É nesse sentido
que se expressa a relação entre participação familiar e valorização docente:
Ah, se a família participasse, eu me sentiria mais valorizada tanto que eu
acho que o trabalho seria melhor, porque a gente precisa dessa parceria
família e escola e como tem umas mães que não apoiam seus filhos e não
assim, acompanham a sua vida escolar, então, eu acho que atrapalha um
pouco e impede de algumas coisas que a gente poderia tá conseguindo mais
- (Professora Francisca).

Na percepção das professoras, há uma responsabilização exclusiva


da escola em muitas questões que as docentes não conseguem solucionar
apenas na esfera do trabalho escolar, o que exigiria a participação efetiva
das famílias:
Mando bilhete, a escola entra em contato, a mãe não vem. Aí, tem o caso
da família que a família hoje,... não sei se a gente pode dizer que não é
estruturada. Mas, não tem aquela estrutura. Tem coisas que tá assim que
tá delegando muito pra gente professor tá resolvendo. Então, a família tá
deixando assim: é a escola. A escola educa, é a escola que vai cuidar e que
vai preparar o meu filho pro mundo. Que esquece que tem filho e deixa
tudo por nossa conta - (Professora Francisca).

Embora seja necessária uma reflexão acerca dessa concepção docen-


te em torno das famílias populares vistas como desestruturadas por não se
adequarem ao modelo nuclear considerado o mais adequado pelas profes-
soras, é necessário ressaltar que o meio familiar é um espaço privilegiado
para a primeira socialização, tendo um papel mediador importante entre
a criança e o meio social, assim como entre a criança e a escola, conforme
ressaltou Bolívar (2006). Algumas atribuições referentes à socialização pri-
mária das crianças têm sido delegadas à escola, acarretando uma dilatação
das suas responsabilidades. Assim, a escola tem assumido a formação in-
tegral do aluno (BOLÍVAR, 2006).
De 23 alunos, na reunião que a gente fez pra poder pedir o reforço [...] para
os meninos que precisam aprender a ler e eu taria trabalhando alfabetiza-

72
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

ção com eles, pergunta se veio algum pai. Vieram uns 4 pais. Vieram uns
4 pais só! Então assim, você fica sem ter o que fazer. Eu acho que isso aí, a
gente está sendo desvalorizada, porque se a família não quer ajudar, a fa-
mília não tá apoiando o professor, nem nada, então assim, você está sendo
desvalorizado - (Professora Ângela).

Quando não percebem o envolvimento da família, as professoras têm


a impressão de exercerem um trabalho solitário e desvalorizado. A escola
não pode atender a todas as necessidades de formação dos/das alunos/as.
Delegar toda a responsabilidade educativa para os/as professores/as pode
aumentar a insatisfação e frustração dos docentes. (BOLÍVAR, 2006). O
não atendimento das famílias aos chamados da escola é percebido pelas
professoras como um fator de desgaste profissional. Para as docentes, as-
sumir isoladamente a tarefa educativa é fator de tensão e desmoralização
(ACUÑA-COLLADO, 2016).
Por outro lado, as exigências da escola baseiam-se em um modelo de
família do tipo nuclear ideal (ACUÑA-COLLADO, 2016; BOLÍVAR, 2006),
desconhecendo-se assim, as imposições que a pobreza, a ausência de um
dos pais, os problemas cotidianos e a insuficiência de recursos cognitivos,
materiais e sociais impõem a muitas famílias:
A gente sabe que a mãe não [vai] fazer o acompanhamento do dever de
casa, porque tem algumas mães aqui, no caso, também, que não sabem nem
ler - (Professora Francisca).
Eu tenho aluno de todos os tipos dentro de sala. Eu tenho que ter um jogo
de cintura muito grande com eles, porque tem alunos com pais drogados,
tem aluno que pai faz já fez isso.. Tem alunos com pai preso. Então, as-
sim, quando eu vim pra cá, eu tinha muita dificuldade nisso, porque, às
vezes, eu falava: eu vou mandar chamar seu pai! Aí, vinha [algum aluno]
e falava: Ah, ô tia, o pai dele tá na cadeia. Roubou não sei o “quê” - (Pro-
fessora Raimunda).

Corroborando as narrativas supracitadas, Silva (2014) destaca que a


distância entre as famílias populares e a escola justifica-se por barreiras de
natureza sociocultural, incluindo, a linguística. Segundo esse mesmo au-
tor, as famílias populares valorizam a escola, mas as suas estratégias diante
da escolarização não são percebidas pelos/as professores/as. Trata-se de
um tipo de “envolvimento invisível”, que, por ocorrer no espaço doméstico,
não é perceptível aos olhos dos/as professores/as.
Em alguns relatos, percebemos certo desconhecimento das condi-
ções sociais e culturais vivenciadas pelos/as alunos/as e suas famílias, as
quais podem influenciar essa participação e o desempenho da criança:

73
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

[...] eu trabalho em uma outra escola com a mesma série e a atividade que
eu dou lá, eu não consigo aplicar aqui. E é a mesma série. Por que que tem
essa diferença? Por que que tem essa diferença entre o ensino? Por que lá é
particular? É, mas, não só porque lá é particular... As crianças são as mes-
mas. A atividade é a mesma. Não deveria ter essa diferença de ensino. Aí, a
gente fica ainda mais desmotivada... - (Professora Ângela).

Nesse sentido, é necessário que os/as professores/as conheçam a re-


alidade na qual o aluno se insere (ACUÑA-COLLADO, 2016, BURGOS,
2014). Conforme Acuña-Collado (2016) ressalta, emerge-se uma nova exi-
gência sobre o trabalho docente por meio de uma necessidade imperiosa
de os/as professores/as prepararem-se para as relações de convivência pro-
fissional e resolução de conflitos, o que suscita a importância da formação
inicial e continuada.
Nos contextos menos privilegiados socioeconomicamente, a atuação
da escola junto à comunidade escolar pode contribuir para o fortalecimen-
to de ambos os espaços sociais. (ACUÑA-COLLADO, 2016, BOLÍVAR,
2006). Em uma das narrativas, percebemos uma tentativa da direção da
escola em ampliar a oferta dos serviços educativos para a comunidade:
Eu gosto muito daqui, o pessoal é muito gente boa, só que, a realidade
aqui... Aqui é um bairro tão perto [da cidade], mas assim, é tão sem cultu-
ra, sabe? E [a diretora], eu acho que percebeu isso e ela tá querendo, sabe?
Ela tá querendo ajudar. Igual ela tá trazendo um monte de coisa pra cá.
E eu acho que assim a comunidade vai sentir uma valorizada e eu espero
que eles acordem e comecem a dar mais valor pra isso aqui, entendeu? [...]
Igual amanhã, o pessoal do CRIA [O Centro de Referência à Criança e ao
Adolescente] vai vir, né? Aí, eu acredito que muitos pais vão colocar os me-
ninos no CRIA. Aí, eles vão ter outras coisas pra tá fazendo [...] Vai ter balé,
karatê, essas coisas... Eu acho que deve dar uma melhorada nesses meninos,
sabe? E aí, a família começar a enxergar que precisa da escola, que precisa
do professor, que o professor tá aqui é pra ensinar, não é pra poder tomar
conta do filho deles - (Professora Ângela).

Segundo Bolívar (2006), a utilização dos espaços escolares para o de-


senvolvimento da comunidade é um caminho possível para o estreitamento
da relação família e escola e, consequentemente, para o desenvolvimento
do trabalho docente. Isso pressupõe o apoio do poder público e o fortaleci-
mento da instituição escolar por meio de um projeto de trabalho coletivo.
Um projeto que, efetivamente, envolva toda a comunidade escolar.
Em meio a tantos desafios no exercício da profissão nos dias atuais, a
socialização entre os pares emergiu nas narrativas como um espaço importan-
te de aprendizado, apoio e incentivo. Nessa direção, as trocas estabelecidas no
ambiente escolar também contribuem para a percepção de valorização:

74
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Essa valorização entre a gente, a pedagoga, é a questão assim: um tenta


ajudar o outro, né? Eu tenho uma atividade que não é pra mim, mas serve
pra outra [professora]. Então, a gente sempre tenta um ajudar o outro. [...]
A gente preocupa muito com isso, com essa valorização mesmo da gente, da
equipe mesmo - (Professora Raimunda).

As trocas de ideias e a discussão estão entre as contribuições mais


valorizadas por muitos/as professores/as no que se refere ao trabalho cola-
borativo (HARGREAVES, 1994). Segundo Hargreaves (1994) as trocas entre
os pares promovem a transmissão das “culturas do ensino”, as quais podem
ser definidas como um conjunto de práticas, crenças e costumes que per-
passam a profissão docente e que, para muitos professores/as, começa a se
desenvolver antes mesmo da formação inicial.
A presença de familiares próximos atuantes na educação pode ser
ainda mais decisiva para a escolha da docência do que a trajetória escolar
(TARDIF; LESSARD, 2005), como aponta a narrativa da professora Edinalva:
Eu tinha uma tia que era vizinha, né? Morava do lado da casa da minha
mãe e eu sempre ia na casa dela, via ela corrigindo provas, fazendo plane-
jamento. Às vezes, ela me punha pra ajudá-la... Aí, eu falei assim: Ah, eu
vou querer ser professora, quando eu crescer. Aí, eu vim pra Mariana [...],
fiz o Magistério e durante o Magistério também gostava, né, porque a gente
tem muitas oficinas no Magistério... Aquelas coisinhas de fazer joguinhos,
isso tudo eu sempre gostei - (Professora Edinalva).

Assim, percebe-se que a formação da identidade docente envolve a


participação de outros sujeitos que ultrapassam o ambiente escolar e que
contribuem para a postura profissional do professor e para seu conhecimen-
to prático (TARDIF, 2012). Nos primeiros anos de exercício da profissão,
muitas vezes permeados por sentimentos de insegurança e incerteza, o apoio
de outros profissionais seria ainda mais determinante para as professoras:
Quando eu vim pra [Escola Municipal Emília Ferreiro], aí eu trabalhei o
primeiro ano, eu vi uma valorização e assim um aprendizado muito bom da
parte da pedagoga [...] Eu já senti um apoio da parte pedagógica. Ela [a pe-
dagoga] me apoiou bastante em algumas coisas, me ensinou algumas coisas
que eu não estava sabendo. Outras coisas também que não estavam dando
certo, ela falava assim: Olha, Francisca, esse não é o melhor caminho, va-
mos seguir por esse. E tipo assim, ela te falava que não estava certo, mas ela
te mostrava como fazer. Não é igual umas que: “Ah, isso aqui não tá certo.
Se vira e pronto”. Não é assim. Ela te dava o recurso, o meio onde que você
poderia procurar, vamos colocar desse e desse jeito. O que você acha? En-
tão, eu acho que houve diálogo e, com isso, eu fui aprendendo a trabalhar
[grifo nosso] e procurar mais coisas, entendeu? - (Professora Francisca).

75
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A despeito da importância da formação inicial, aprende-se também


com o outro e no exercício diário da docência, uma vez que a experiência é
fonte de saberes profissionais ou de saberes experienciais (TARDIF, 2012).
As trocas entre os pares figuram como um espaço de formação permanen-
te, como ressalta Arroyo (2011).
De modo geral, a cooperação entre os/as professores/as tende a ser
mais intensa entre os/as docentes que atuam no mesmo segmento ou ní-
vel de ensino. “Às vezes, professores colaboram entre si instaurando entre
suas duas classes um sistema de divisão de tarefas” (TARDIF; LESSARD,
2005, p. 185-186), conforme argumenta a professora Francisca:
O que me ajuda também no meu trabalho é porque eu tenho uma colega
que... como aqui a gente tem dois 3ºs anos, a gente troca muita experiên-
cia. Então, ela me passa algumas atividades, eu passo atividades pra ela.
Isso que vai ajudando e a gente faz a divisão. Uma semana uma faz uma
atividade, na outra, a outra faz. Então, essa troca que tenho com a minha
colega é bem enriquecedora.

Portanto, as trocas entre os pares dizem respeito ao material didá-


tico, metodologias, informações sobre os/as alunos/as, entre outros. De
acordo com Tardif (2012), embora essa colaboração não seja considerada
como uma responsabilidade profissional, ela é vista como necessária pela
maioria dos/das professores/as. O compartilhamento de conhecimentos e
trocas entre os/as professores/as ocorre em espaços comuns, os quais não
incluem a sala de aula onde a docência permanece como um fazer indivi-
dual (TARDIF; LESSARD, 2005), como ilustra a narrativa a seguir:
Sou eu que elaboro as atividades de produção de texto. E eu elaborei um
recadinho pros alunos e um recado também pros professores afixarem na
sala. E foi bem aceito. Elas gostaram. Só que, com isso, conversando com a
pedagoga, ela levou um material que falava um pouco mais sobre produção
de texto pra gente ler e discutir, porque eu elaboro, mas eu não vou corrigir
dos outros professores. Eu não posso intervir lá dentro da sala de aula, vou
fazer intervenção com a minha turma - (Professora Cristina).

A atuação docente se desenvolve de modo individualizado no âmbi-


to do espaço da sala de aula (HARGREAVES, 1994; TARDIF; LESSARD,
2005), mas comporta uma dimensão coletiva, a começar pelos próprios ob-
jetivos da tarefa educativa, os quais pressupõem a ação integrada de vários
sujeitos. Assim, o trabalho colaborativo contribui para o fortalecimento da
equipe de trabalho e para a construção do vínculo com a escola e a comu-
nidade, como ressalta a professora Raimunda:
Meu pai brinca assim: que eu sou presa... que meu umbigo tá enterrado
nessa escola [risos] devido ao fato de os professores, a equipe de trabalho é

76
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

muito unida. E isso contribui muito pra que a gente permaneça no lugar,
né? E a maioria que aqui estão, é dez, quinze, vinte [anos]. Toda a vida
trabalhou aqui e continua, não têm vontade de sair daqui, né? Principal-
mente, nós de 1ª a 4ª, por causa da questão da equipe mesmo. Por causa
da questão de estarmos sempre juntas, contribuindo, né? Pra tentar, pelo
menos, sanar um pouco das dificuldades que essa comunidade enfrenta
- (Professora Raimunda).

Segundo Gadotti (2011), o professor deve formar-se para a colabora-


ção e para a construção de um paradigma colaborativo entre os pares. O
autor ressalta a necessidade do companheirismo docente, inclusive para a
superação das atuais condições em que se encontra o magistério. Assim,
a socialização entre pares pode ampliar a sua importância para além do
desenvolvimento da identidade docente, do compartilhamento de ideias e
saberes práticos em direção a uma reflexão e uma discussão sobre o lugar
da educação e da profissão docente.

Considerações finais
Partimos do princípio de que é necessário investigar, sob a perspec-
tiva dos/as professores/as, a percepção de valorização docente. Ainda que
outros estudos tenham contemplado a temática, acreditamos na riqueza
de uma escuta atenta e cuidadosa da voz dos/as professores/as como um
recurso auspicioso para as pesquisas em educação e, mais especificamen-
te, para as investigações relacionadas às questões docentes. Parafraseando
Lima, Geraldi e Geraldi (2015, p. 18): ao invés de apenas falarmos sobre
os/as professores/as, optamos por falar com eles e a partir deles, uma vez
que são os próprios/as docentes que têm maior propriedade para dizer dos
aspectos que lhes proporcionam a percepção de sentirem-se valorizados
profissionalmente.
A opção teórico-metodológica que embasou, por meio das entrevis-
tas narrativas, uma aproximação com os participantes da pesquisa, pos-
sibilitou-nos uma imersão na realidade da profissão docente nas escolas
onde atuam. Realidade esta que demonstra o atual contexto sócio-históri-
co em que se situa a docência.
Constatamos, a partir das narrativas das professoras, que algumas
conquistas que foram objeto de luta do movimento docente se concretiza-
ram no município, tais como a implantação do plano de carreira, a forma-
ção em nível superior e a elevação salarial.
Embora a remuneração tenha sido a dimensão mais ressaltada nos
discursos políticos e nos debates promovidos pela mídia, verificamos que
o salário, por si só, é insuficiente para assegurar a valorização docente,
tendo em vista que outros fatores incidem sobre a realização do trabalho
do professor. As condições de trabalho caracterizadas, muitas vezes, pela

77
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

precariedade da estrutura física e material das escolas é algo que frustra


as professoras e, em alguns casos, tem impelido-as ao abandono progressi-
vo da profissão e, até mesmo, ao adoecimento. Nessa direção, impõe-se a
necessidade de um novo olhar das políticas públicas e da própria categoria
profissional sobre as condições de trabalho considerando as suas implica-
ções sobre a saúde docente. Desponta-se, portanto, a díade condições de
trabalho e saúde docente como uma temática que deve ultrapassar o campo
da pesquisa educacional, a qual já vem se debruçando sobre essa relação.
Apesar das dificuldades no exercício da profissão, os/as professores/
as sentem-se valorizados quando as interações humanas que estabelecem
na docência são bem-sucedidas. Trata-se de uma realização subjetiva im-
portante para o docente, especialmente, porque a dimensão humana é algo
que caracteriza a própria profissão.
A relação professor-aluno configura-se como aspecto central do tra-
balho docente, a qual orienta a relação com as famílias e com os pares. É
também essa relação que comporta grande parte das alegrias e desafios da
docência. Para os/as professores/as, a percepção de contribuírem para o
aprendizado dos/das alunos/as atua como um incentivo e demonstra o re-
torno do trabalho desenvolvido. Por essa razão, a parceria com as famílias
foi ressaltada pelas professoras pesquisadas. Segundo as docentes, o en-
volvimento efetivo das famílias na vida escolar dos/as alunos/as, favorece
o desempenho dos mesmos e, consequentemente, contribui para a valori-
zação do trabalho docente. Entretanto, verificamos que há uma tensão na
relação família-escola muito por conta de barreiras de natureza sociocul-
tural, o que sugere a necessidade de aproximação entre o mundo da escola
e o mundo do aluno.
Em meio a tantos desafios para o exercício da docência nos dias atu-
ais, a socialização entre os pares emergiu nas narrativas como um espaço
de aprendizado, de incentivo e de apoio. Entretanto, as trocas estabeleci-
das entre os colegas de profissão podem ir além do compartilhamento de
saberes práticos e estender-se para um espaço de debate e reflexão acerca
da profissão e da importância da valorização docente para a satisfação pro-
fissional e para a qualidade da educação. Como afirma Gadotti (2011), será
necessário um profundo sentimento de companheirismo para a superação
das atuais condições em que se encontra o magistério.

78
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Referências

ACUÑA-COLLADO, Violeta. Familia y escuela: crisis de participación en


contextos de vulnerabilidade. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,
Brasília, v. 97, n. 246, p. 255-272, maio/ago. 2016.
ARAÚJO, Tânia Maria de; CARVALHO, Fernando Martins. Condições
de trabalho docente e saúde na Bahia: estudos epidemiológicos. Revista
Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 107, p. 427-449, maio/ago. 2009.
ARROYO, Miguel G. Quem de-forma o profissional do ensino? Revista de
Educação AEC, Brasília, v. 14, n. 58, p. 7-15, out./dez. 1985.
ARROYO, Miguel. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e
mestres. Petrópolis: Vozes, 2004.
ARROYO, Miguel. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. Petrópolis:
Vozes, 2011.
BOLÍVAR, Antonio. Familia y escuela: dos mundos llamados a trabajar en
común. Revista de Educación, v. 339, n. 2006, p. 119-146, 2006.
BURGOS, Marcelo Baumann (Coord.). A escola e o mundo do aluno:
estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola.
Rio de Janeiro: Garamont, 2014.
CIRILO, Pauliane Romano. As políticas de valorização docente no
Estado de Minas Gerais. 2012. 154 f. Dissertação (Mestrado em Educação).
Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2012.
DINIZ-PEREIRA, Júlio Emílio. O ovo ou a galinha: a crise da profissão
docente e a aparente falta de perspectiva para a educação brasileira. R.
Bras. Est. Pedag., Brasília, v. 92, n. 230, p. 34-51, jan./abr. 2011.
FLICK, Uwe. As narrativas como dados. In: FLICK, Uwe. Uma introdução
à pesquisa qualitativa. 2. ed. Porto Alegre, Bookman, 2004.
GADOTTI, Moacir. A boniteza de um sonho. São Paulo: Editora e Livraria
Instituto Paulo Freire, 2011.
GATTI, Bernardete. Reconhecimento social e as políticas de carreira na
Educação Básica. Cadernos de Pesquisa, v. 42, n. 145, p. 88-111, jan./abr. 2012.
HARGREAVES, Andy. Os professores em tempos de mudança: o trabalho
e a cultura dos professores na idade pós-moderna. Portugal: Editora
McGraw-Hill, 1994.
HARTMANN, Luciana. Tomazito, eu e as narrativas: “Por que estoy
hablando de mi vida”. In: GONÇALVES, Marco Antônio; MARQUES,
Roberto; CARDOSO, Vânia Z. (orgs.). Etnobiografia: subjetivação e
etnografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012.

79
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

HUBERMAN, Michael. O ciclo da vida profissional dos professores. In:


NÓVOA, A. (org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992. p.31-61.
LEHER, Roberto. Valorização do magistério. In: OLIVEIRA, Dalila
Andrade; DUARTE, Adriana Maria Cancella; VIEIRA, Lívia Fraga.
DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte:
UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM.
LIMA, Maria Emília Caixeta de Castro; GERALDI, Corinta Maria Grisolia;
GERALDI, João Wanderley. O trabalho com narrativas na investigação em
educação. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, p. 17-44, jan./
mar. 2015.
LOUZANO, Paula; ROCHA, Valéria; MORICONI, Gabriela Miranda;
OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Quem quer ser professor? Atratividade,
seleção e formação docente no Brasil. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 21,
n. 47, p. 543-568, set./dez. 2010.
MANCEBO, Deise. Subjetividade docente. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade;
DUARTE, Adriana Maria Cancella; VIEIRA, Lívia Fraga. DICIONÁRIO:
trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade
de Educação, 2010. CDROM.
MARIANA. Prefeitura Municipal. Lei nº 139 de 29 de abril de 2014. Dispõe
sobre o plano de carreira do pessoal do magistério, de secretaria escolar e
de inspeção de alunos, do pessoal de monitoria de creche e de monitoria
de ensino especial da Secretaria de Educação do Município de Mariana
e dá outras providências. O Monumento – Diário oficial. Disponível em:
http://camarademariana.mg.gov.br/uploads/camara_mariana_2014/camara/
legislacao/lei-complementar-139-29-04-14-plano-de-cargos-e-salarios.pdf
Acesso: 20/05/2017.
NÓVOA, Antônio Sampaio da (org.). Profissão professor. Porto, Portugal:
Porto Editora, 1995. 191 p.
OLIVEIRA, Dalila Andrade; ASSUNÇÃO, Ada Ávila. Condições de
trabalho docente. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade; DUARTE, Adriana
Maria Cancella; VIEIRA, Lívia Fraga. DICIONÁRIO: trabalho, profissão
e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010.
CDROM.
SILVA, Pedro. Escolas, meios populares e mediação sociocultural. In:
BURGOS, Marcelo Baumann (Coord.). A escola e o mundo do aluno:
estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola.
Rio de Janeiro: Garamont, 2014. p. 403-450.
SILVA, Santuza Amorim da; PÁDUA, Karla Cunha. Explorando narrativas:
algumas reflexões sobre suas possibilidades na pesquisa. In: CAMPOS,

80
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Regina Célia Passos Ribeiro de. (org.). Pesquisa, Educação e Formação


Humana: nos trilhos da História. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
SOUZA, Elizeu Clementino. O Conhecimento de si: estágio e narrativa de
formação e professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: para uma teoria
da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis: Vozes, 2005.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis:
Vozes, 2012.
TEDESCO, Juan Carlos; FANFANI, Emilio Tenti. Novos docentes e novos
alunos. In: Oficio de professor na América Latina e Caribe. Brasília:
Fundação Víctor Civita/UNESCO, 2004. p. 67-80.
TEIXEIRA, Inês A. de Castro; PÁDUA, Karla Cunha. Virtualidades e
Alcances da Entrevista Narrativa. In: Congresso Internacional sobre
pesquisa (auto) biográfica, 2006, Salvador. Anais ... Salvador: UNEB, 2006. 1
CD-ROM.
TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro Teixeira. Da condição docente:
primeiras aproximações teóricas. Educ. Soc., Campinas, v. 28, n. 99, p. 426-
443, maio/ago. 2007. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br Acesso
em: 03 out. 2017.
WEBER, Silke. Profissionalização docente e políticas públicas no Brasil.
Educ. Soc., Campinas, v. 24, n. 85, p. 1125-1154, dez. 2003.

81
CAPÍTULO 4

IMAGENS DOCENTES: NARRATIVAS


SOBRE A FORMAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA
DE PROFESSORES DE CRIANÇAS E SUAS
PRÁTICAS EDUCATIVAS

Glaucimary Nascimento Teodósio


José de Sousa Miguel Lopes

Encontro: uma introdução

Figura 1 – Roda

Fonte: Papelícula.

83
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A imagem apresenta a espera de professores para o ateliê biográfico


que aconteceu como parte da metodologia da investigação de mestrado
em Educação na Universidade do Estado de Minas Gerais, que teve como
objetivo compreender a relação das experiências estéticas na constituição
das identidades docentes e suas reverberações na prática educativa, tendo
como sujeitos os professores das séries iniciais da rede municipal de Belo
Horizonte – MG. O convite à participação esteve presente em todos os
momentos, assim como a roda, a horizontalidade, a escuta atenta. A meto-
dologia da pesquisa foi realizada em dois momentos: a criação de um ateliê
que proporcionou um encontro coletivo; e uma entrevista narrativa indi-
vidual, que aprofundou a abordagem do encontro inicial. Com o foco nas
identidades, nos inspiramos nos estudos de Hall e Bauman, além de Her-
mann para abordar a formação ético-estética. Trouxemos ainda reflexões
de teóricos do campo da pesquisa biográfico-narrativa, com ênfase em
Delory-Momberger e Josso; e a interpretação das narrativas foi inspirada
nos princípios da hermenêutica, objetivando a aproximação aos sentidos e
significados atribuídos pelos sujeitos às experiências estéticas. Os sujeitos
deram indícios de que as experiências estéticas contribuíram nos seus pro-
cessos de identificação e provocaram uma prática docente sensível, com es-
cuta ativa, mas que ainda carecem de uma formação mais apurada para lidar
com os desafios trazidos pelos estudantes, principalmente os relacionados à
dimensão das identidades. As análises sugeriram a relevância da formação
ético-estética continuada, para ampliar o sensível nos sujeitos e aprimorar
a prática docente, uma vez que contribui para lidar com contextos que acio-
nam a escuta, potencializando uma postura sensível para a alteridade.
Esse texto traz narrativas de quatro professores de crianças. São
imagens partilhadas de experiências vividas dentro e fora das escolas, que
dão pistas sobre a formação ético-estética desses sujeitos e de como essa
formação interfere em suas práticas educativas. A formação mencionada
é a que aconteceu no decorrer de suas vidas, nas relações estabelecidas
com outros sujeitos e no contexto histórico vivido pelos docentes, como se
pode perceber por meio de suas próprias palavras. No texto, apresentamos
algumas reflexões que os docentes trouxeram tanto no encontro coletivo
quanto nas entrevistas narrativas individuais.

84
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Caminhos das entrevistas narrativas: identidades em construção, afetos


cotidianos

Somos efetivamente o que narramos, na medida em que as dimen-


sões formadoras dos acontecimentos vividos e lembrados e das ex-
periências deixam marcas e imprimem reflexões sobre o vivido

Souza (2018, p. 122)

Ao elaborarmos a análise, percebemos pontos de encontro, regulari-


dades e descontinuidades, fazendo um recorte do que trazer para a análise,
numa dupla hermenêutica: primeiro o sujeito elegeu momentos da vida
para narrar, depois aconteceu a seleção da pesquisadora. Temos ciência de
que as narrativas geradas coletivamente têm dinâmicas específicas, dife-
rentes da entrevista individual. No coletivo, as falas são contestadas pelo
outro, na medida em que estão acontecendo. Há um jogo de construção
dos diálogos, que leva a uma recriação no ato de narrar, influenciando o
que vai ser dito e alterando o curso da narrativa. É um encontro de corpos,
onde cada um pode fabular novas narrativas a partir das objetivações do
outro, ressignificando a própria compreensão.
No encontro, cada um tenta assimilar a figura do outro cap-
tando-a por meio daquilo que ele vê ou ouve para, em seguida,
fazer-se uma representação por um processo criativo. Essa fi-
guração se realiza um duplo movimento de semelhança e de
diferença e numa interpretação do outro, hermenêutica agin-
do a partir de si e na qual, obrigatoriamente, “se mesclam os
dois universos: uma figuração do entre-dois” (DELORY-MOM-
BERGER, 2014, p. 343).

Sabemos também que o contexto interfere na narrativa, alterando a


natureza do que é partilhado e que o repertório da pesquisadora está inves-
tido no processo. O ateliê, enquanto dispositivo, funcionou como ponto de
partida para as narrativas posteriores, feitas individualmente, já que cada
encontro tem seu universo de circunstâncias e de singularidades. Algumas
conversas iniciadas no ateliê foram retomadas, ampliadas e conectadas com
outras partes da vida do sujeito. Dessa maneira, os dois momentos, o cole-
tivo e o individual, trouxeram temas análogos, em diferentes profundidades
ou abordagens. Destacamos, como exemplo, a docência, identificação que
aparece muito na fala dos sujeitos, condição que os unia naquele momento.
Nossos sujeitos formaram um grupo diverso: Mariana, com 27 anos
e dois meses de docência; Flávio, com 32 anos de idade e cinco de docên-
cia; Lídia com 38 anos de idade e 12 de docência; e Zenira, com 51 anos de
idade e 31 de docência. Todos indicaram estar trabalhando em dois turnos,

85
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

com exceção de Lídia, que estava cursando o mestrado no período da tarde.


Percebemos que, em suas narrativas,
fluía a vida daqueles e daquelas docentes em seus sabores e dis-
sabores, em suas realizações e frustrações, em suas tensões, mui-
to raramente, em calmaria. Ali estavam revelações a indicarem
que os traçados e tramas da experiência do tempo para aqueles
professores era, de uma só vez, alegria e dor; excesso e escassez;
obediência e recusa (TEIXEIRA; PÁDUA, 2018, p. 261).

Em todos os encontros, ficamos refletindo sobre os pontos em co-


mum dos sujeitos. Mariana e Flávio, por exemplo, ressaltaram que, na in-
fância, não gostavam dos brinquedos comumente atribuídos ao gênero que
nasceram. Flávio, Zenira e Lídia mudaram de cidade ainda na infância,
trazendo marcas de recomeço. Lídia e Zenira ressaltaram a importância da
maternidade como fundadora de outras identidades e dialogam também
com as imagens de suas mães, o que Flávio faz também com muita frequ-
ência. Josso (2008, p. 27) indica que
abordar o conhecimento de si pela perspectiva das transforma-
ções do ser-sujeito vivo e cognoscente, no tempo de uma vida,
mediante as atividades, os contextos de vida, os encontros, os
acontecimentos de sua vida pessoal e social e as situações que
ele considera como formadoras e, com frequência, fundadoras,
é conceber a construção identitária, ponta do iceberg da exis-
tencialidade, como um conjunto complexo de componentes.

Zenira, Lídia e Flávio narraram os processos de trânsito entre esta-


dos e cidades. Essa errância, ao passo que foi deixando rastros pelo cami-
nho, evidenciou abertura de horizontes, na medida em que possibilitou o
contato com outras realidades. Colocou os sujeitos pertencentes a outros
contextos, revelando ainda reflexões acerca de suas origens. Uma coisa
em comum que os quatro docentes trouxeram foi o fato de não gostar da
escola quando eram pequenos. Lídia, Zenira e Mariana ainda tinham em
comum o relato de que aos seis anos, primeiro ano de escolarização, cho-
ravam, não gostavam das professoras, queriam voltar para casa, ficar perto
da família. Chama atenção para a responsabilização de si nesse processo,
especialmente nos relatos de Zenira e Mariana, dando a entender que não
se sentiam boas estudantes.
Também houve coincidência nas falas de Zenira, Lídia e Flávio quan-
do narraram a importância de suas mães e pais na constituição de suas
identidades, das escolhas que fizeram em seus caminhos. Porém, quem
trouxe essa relação de forma mais intensa foi Flávio. Nos casos de Zenira
e Lídia, o exemplo da maternidade é levado também para a maneira que
educaram seus filhos. Ao pensar nessas pessoas como figuras exemplares,

86
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

vemos como os sujeitos têm noção de que sua conduta na escola também
é alvo de observação e imitação por parte dos estudantes. E essa noção os
leva a refletir suas ações e querer conduzir sua prática da melhor maneira
possível. Dessa maneira, como aponta Oliveira (2012, p. 308),
nossas histórias são recriadas, revisitadas no sentido das refe-
rências construídas: temos recursos experienciais e também
representações sobre escolhas, influências, modelos, formação
de gostos e estilos, o que é significativo para a reflexão sobre o
que somos hoje e como nos constituímos no que somos, bem
como para as possibilidades autopoiéticas que nos singulari-
zam (ou não) como pessoas e professores.

Os sujeitos da pesquisa deram vários indícios de se relacionarem


com distintas manifestações artísticas, dando ênfase para a Literatura, que
apareceu especialmente nos contextos pessoais e profissionais de Lídia e
Zenira. Flávio e Mariana indicaram que não gostam muito de ler, mas gos-
tam de escrever. A relação do gosto pela escrita também ficou evidente
nos relatos de Lídia. Outra expressão que se destacou nas narrativas foi a
Música. Também a cidade com suas manifestações culturais se destacou
como uma presença forte nos quatro sujeitos. Um laço entre eles é o gosto
por shows, danças, peças de teatro, filmes; a vivência do Carnaval de rua e
o conhecimento acerca dos equipamentos culturais da cidade. São elemen-
tos que levam também para o cotidiano escolar, servindo como instrumen-
to para facilitar a aquisição de algum conhecimento, mas também para a
apreciação estética, como aponta Josso quando diz que
Essas considerações, sobre as diferentes formas do sensível,
em nossa formação permitem fazer emergir dimensões ocultas
de si que redinamizam um projeto de si, porque recompõem os
recursos e uma coerência pessoal. Pode-se, assim, projetar-se,
identificar-se e introjetar aspectos do que o sensível nos ofe-
rece para ver, sentir, pensar, fazer etc. Ainda há uma dinami-
zação e uma invenção de si em novas perspectivas e em novas
formas: a arte torna-se, portanto, uma das vias de conhecimen-
to (JOSSO, 2008, p. 45).

Dessa maneira, os sujeitos parecem encontrar formas de se sensibi-


lizarem, de buscar estéticas que fortalecem seus sentidos éticos-afetivos
do viver. O contato com manifestações artísticas se configura como uma
aproximação ao outro que tensiona e provoca reflexões, o que se traduz em
conhecimento, numa abertura que pode mobilizar olhares e ressignificar a
prática educativa a partir de experiências estéticas. Optamos por trazer al-
guns pontos da biografização que cada sujeito fez de si, alguns elementos
que possam fornecer uma imagem sobre esses sujeitos. Na sequência, apre-

87
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

sentaremos indícios de suas práticas docentes, dando ênfase aos desafios


que foram narrados. Notamos que os estudantes acionam os professores de
diversas maneiras e que dão pistas de negociações, afirmações e contesta-
ções de suas identidades, provocando os professores a refletirem estratégias
de lidar com assuntos delicados, sem uma formação específica para isso.

Tornar-se professor: caminhos, interpretações e estratégias da docência


A docência foi a identificação que mais apareceu nos sujeitos identi-
ficados, indicando tomar um tempo significativo da vida, inclusive atuan-
do em alguns momentos de fruição, que são substituídos por oportunidade
de conhecimento. Nenhum dos quatro docentes entrevistados tinha a do-
cência como um sonho, um desejo. A oportunidade de um trabalho foi o
que levou Zenira e Lídia para a licenciatura.
Como eu comecei a trabalhar muito com empresa, eu não queria educação.
Queria trabalhar com gestão ou projeto, ensinando outras coisas, discu-
tindo outras coisas, não dentro de uma sala de aula, com currículo formal,
tendo que ensinar conteúdos formais. Aí me jogaram esse desafio, porque
viram em mim um professor, sabe, não sei onde enxergaram isso, mas viram
isso em mim. As pessoas insistiram pra que eu montasse esse perfil de pro-
fessor. Então meu perfil de hoje foi montado - (Flávio).

A mediação do outro atuou na escolha do curso de Pedagogia para


Lídia, Flávio e Mariana. Pais, mães ou amigos deram estímulo para o cur-
so, que possibilitou a inserção na docência. Dessa maneira, foram ficando,
se conformando no campo profissional e ressignificando sua relação, tra-
zendo, em suas narrativas, indícios de que gostam do que fazem, encon-
tram sentido, como indicou Flávio “É, se tornar docente, e eu aprendo
muito com minhas crianças. Acho que eu passo muitas coisas pra eles, mas
eu aprendo muito mais com eles. E assim eu vou me construindo e hoje
eu me encontrei sendo professor” (grifos nossos). Um tornar-se docente,
um processo que parece contínuo, num aprendizado com os desafios do
caminho, encontrando significados na profissão.
Dificuldades do início da docência foram percebidas nas narrativas
de Mariana – que se diz “chocada com a realidade” que viu, ao chegar; e de
Flávio. No caso dele, mesmo depois de passados mais de cinco anos como
docente, ainda foram mostrados ecos da chegada. As condições de chega-
da, a receptividade, os desafios de controlar uma turma, os conhecimentos
necessários; tudo isso parece exercer uma pressão tal que permanece la-
tente no decorrer de muitos anos.
Fui pra prefeitura encarar um desafio novo. Foi difícil, viu! No começo eu
tremia... Nossa! Foi difícil! Mas, depois, com o tempo você vai pegando o
ritmo das coisas. Você tinha que aprender a trabalhar com as dinâmicas da

88
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

escola, da prefeitura, do sistema. Aí é uma outra história, que você tem que
aprender a lidar. Como todo mundo, no primeiro mês eu tive vontade de ir
embora pra casa e nunca mais voltar, justamente porque dão pra gente [que
está no início da docência] as turmas mais difíceis. Eu acho que eles fazem
um teste, pra gente desistir - (grifos nossos).

Nos questionamos se, ao dizer “como todo mundo”, Flávio deixa pis-
tas de que é uma constante o fato do professor no início da docência passar
por essas situações. Mariana relatou que busca apoio nos colegas da facul-
dade, que trocam experiências sobre suas realidades: “a gente encontra
muito, sabe? E a gente gosta muito de trocar experiência. Às vezes a gente
tá: o que eu faço agora? Aí uma vai lá e fala: ah, isso já aconteceu comigo,
eu fiz isso isso e isso...”
Os quatro sujeitos relataram situações em que tiveram que dar aulas
sobre conhecimentos que não detinham, que não tiveram formação espe-
cífica, dando indícios de que isso se configura como mais um desafio na
docência, como observou Flávio: “eu acho um peso muito grande um pro-
fessor só ficar com todos os conteúdos”. O pedagogo atua como regente de
classe e tem que ministrar aulas de todas as disciplinas nas séries iniciais.
Mariana relatou que tem dificuldades no ensino de arte, pois as colegas
ainda utilizam práticas como entregar desenhos aos estudantes para colo-
rir. “Eu percebi o quanto a Arte na escola é dada de forma muito superfi-
cial”. Ela ressaltou ainda que entende que os alunos deveriam ter contato
com outras expressões artísticas.
A arte é bem esquecida. E eu tô pegando meninos lá de baixo, lá do pri-
meiro ano. Se isso não for ativado agora, quando eles chegarem no oitavo
ano, eles não vão ter conhecido outros tipos de arte. Existe pintura, existe
colagem, existem muitas coisas, sabe? Existe a arte brasileira, a arte afri-
cana, a arte americana. E isso não é ensinado e nem vai ser por enquanto,
pelo que eu tô vendo.

Lídia destacou que ‘nem todas as escolas têm professores de Arte,


porque não é obrigatório, daí a Prefeitura coloca os pedagogos para dar
essa aula. Esse profissional faz muita falta”. Quanto a isso, Zenira su-
geriu que poderia haver uma formação para as pedagogas, mas que, em
sua realidade, nem sempre consegue elaborar atividades voltadas para
a sensibilidade.
A gente sofre uma pressão explícita pra que o menino aprenda a ler e escre-
ver, que cumpra o planejamento. Aí a parte pedagógica, o desempenho do
aluno integralmente, do ser humano, na sala de aula, para esses setores
é a última coisa que interessa. Logo, nós enquanto professores, entramos
nessa leva também. Se você tá trabalhando bem, feliz, realizada e produzin-
do muito com seus alunos, não interessa. Infelizmente.

89
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Com essas narrativas, podemos inferir que as professoras indicam


um sentimento de impotência para desenvolver atividades voltadas para a
formação humana dos estudantes, o que causa um mal-estar. Deram indí-
cios de que, em sua realidade, há prioridade para a aquisição de conheci-
mentos voltados principalmente para a alfabetização. São indícios de que
existe um conjunto de condições psicossociais de trabalho
docente na América Latina que são significativas, tanto por
seu peso na explicação de fenômenos de mal-estar e doença,
como pelo condicionamento que exercem sobre a constituição
de novas subjetividades docentes emergentes. Essas condições
são a excessiva demanda laboral (intensificação dos tempos de
trabalho, exigências derivadas do trabalho com estudantes),
a falta de apoio social para o trabalho docente (fundamental-
mente de quadros de direção e autoridades), o sentido (possibi-
lidade de vincular o trabalho docente com valores e objetivos
não instrumentais em escolas públicas, em crise) e a gestão das
relações da escola com entornos comunitários problemáticos
(que muitas vezes implica em alta exposição ao risco de violên-
cia) (CHAVES; GARRIDO, 2010).

Além de causar um mal-estar, essas condições podem afetar os sen-


tidos e a identidade coletiva dos docentes, como aponta Fanfani (2010). O
autor chama a atenção para
a crise do modelo burocrático que estruturou em seus princípios a organi-
zação dos sistemas educativos e do trabalho dos docentes. A introdução
do “novo espírito” do capitalismo no sistema e nas instituições educativas
modifica profundamente as condições de trabalho nas instituições e nas
salas. A introdução de critérios de concorrência (entre instituições, agentes,
etc.), produtividade (em termos de rendimento das aprendizagens), avalia-
ção, competências, autonomia das instituições, tensões entre desregulação
e pressão por resultados, etc. Conformam um cenário que coloca novas con-
dições ao processo de construção da identidade do coletivo docente. (…) O
salário do docente não dependerá só de sua antiguidade ou qualificação,
mas de sua capacidade de lograr certos resultados de aprendizagem mensu-
ráveis em seus alunos. Os resultados serão muito mais importantes do que
os processos ou os efeitos de seu trabalho sobre outras dimensões de seus
alunos (capacidade de mobilizar seu interesse e/ou curiosidade, criativida-
de, atitudes solidárias, etc.) (Grifos nossos).

Os sujeitos deram indícios de que a cobrança pelo cumprimento dos


planejamentos escolares, dando ênfase a conteúdos de disciplinas como
Matemática e Português, estaria retirando, de certa maneira, a mobiliza-
ção do professor para buscar experiências estéticas como formação.

90
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

E dentro da escola é difícil colocar a arte né, é complicado, porque a gente


sofre uma pressão muito grande pra conteúdo na sala de aula, principal-
mente Português e Matemática. É um pouco frustrante, sabe, mas a gente
escapa através da Literatura. A gente vai pra biblioteca, a gente viaja com
os meninos. Eu já fui coordenadora pedagógica da escola e pra mim é frus-
trante, sabe, ter que cumprir o currículo*, aquele calendário, aquele plane-
jamento... Engessa muito a gente. Acho que é por isso que no meu momento
de folga eu quero escapar, sabe, eu quero escapar. Eu passo em frente ao
Inimá de Paula e eu penso, nossa, eu podia vir aqui com meus alunos. A
gente vai ali no parque e pensa: nossa, aqui cabe bem uma aula...

Nessa fala, Zenira indicou sua relação com a Literatura, tanto como
uma preferência pessoal, como para abordagem em sala de aula. Nes-
se sentido, a Literatura se configura como uma possibilidade tanto de
experiência estética como de uma expressão mais concreta de Arte e mais
acessível, mais possível de ser trabalhada em sala de aula, para que eles
também possam fruir a experiência estética dessa forma de Arte.
Eu trabalho demais com eles a questão da leitura, que é bom ler, que é gos-
toso ler e que você tem que ler o que você tá com vontade. Mas ler por ler,
pelo prazer de ler é diferente, é uma coisa muito gostosa. Uma coisa muito
bacana que tem na minha escola é que a gente vai semanalmente à biblio-
teca com os meninos, troveja o que trovejar. A gente vai com os meninos
pra eles lerem um pouquinho, escutar uma história e escolher um livro pra
ler em casa. Aí chega dentro da sala e a gente tem que degustar um tiquinho
daquele livro. Não tem graça se você chegar dentro da sala e enfiar o livro
dentro da mochila. Você tem que começar, pelo menos um pouquinho. Pra
mim não é perda de tempo. Nós chegamos da biblioteca e eu deixo pelo
menos uns vinte minutos, meia hora, para folhear o livro que pegou. Meu
aluno vai ler o que ele tá com vontade de ler. É claro que se ele for uma
criança, eu não vou deixar ele pegar um livro que induza à pornografia, à
violência. Não vou deixar. Vou induzi-lo a pegar outras coisas. Aí, ele che-
ga dentro da sala, ele precisa folhear aquele livro pra chegar em casa com
mais vontade de ler. Isso eu faço com meus alunos dentro da sala e com
todo aluno que eu trabalho, mesmo se eu não estiver dando aula de Língua
Portuguesa, de Literatura. Às vezes acontece de eu pegar outras matérias
e eles descobrem o prazer da leitura comigo. Descobrem, porque eu faço
questão. E eu tenho uma estratégia com turma de meninos muito levados
e difíceis, de sempre ter no meu armário, na minha bolsa de escola, revista,
livro, essas coisas, sabe. Então, eu deixo ele ler - (Zenira, grifos nossos).

Assim, a Arte pode ser um escape para o possível, para o sensível,


diante da impossibilidade do tempo, marcado por inúmeras demandas e
pela quantidade de horas de dedicação ao trabalho. A Literatura também
representa alternativa possível de contato dos estudantes com um universo

91
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

artístico, em face da precariedade de recursos e das cobranças pela aquisi-


ção de conteúdos tidos como mais essenciais.
Eu acho que cada coisinha que a gente consegue preencher de leveza, de
beleza e de criticidade também, porque Arte não é só beleza. Tem a questão
de formar eles enquanto cidadãos críticos. Levar eles a pensar sobre o que é
abuso sexual, que eles estão sofrendo, que a maioria nem sabe, entendeu? E
através da Literatura a gente chegou nisso. E eu acho que cada momento que
a gente usar a Literatura, as artes em geral pra fazer eles pensarem alguma
coisa sobre a realidade deles, ou só pra viver um momento de leveza e de
beleza também, vale a pena. Amo de paixão. É isso que dá sentido ao meu
trabalho, geralmente, no dia-a-dia, é muito bom - (Lídia, grifos nossos).
Conhecer os repertórios que estão sendo evidenciados na prática
docente nos leva a refletir sobre a condição desses sujeitos, e sobre sua
capacidade de reflexão dos processos constitutivos de si. A educação para
a sensibilidade parece exigir uma postura outra, que pode ser estimulada
pela formação ético-estética. Nesse sentido, concordamos com Hermann
(2010, p. 17) quando diz que
a experiência estética – na medida em que abala nossas convicções co-
muns e suspende a normalidade das certezas justificadas – é reivindicada
para uma ampliação da compreensão ética da educação, um modo de tra-
zer novos elementos para o juízo moral, como alternativa à reflexão ética
exclusivamente racional. Tais experiências de liberação da subjetividade
cumprem um papel formativo do eu.
Em suas narrativas, os sujeitos trouxeram indicativos de que buscam
ampliar os conhecimentos para melhorar sua prática cotidiana, até pelo
“valor da nossa profissão e o valor dos nossos conhecimentos pra gente
poder estimular o outro a também querer saber”, como destacou Mariana.
Considerando a fragmentação dos tempos e as exigências diversas, pode-
mos inferir que tais conhecimentos estão mais restritos aos conteúdos pe-
los quais são cobrados. Lopes (2006, p. 176) chama atenção para
outro aspecto relevante relativo ao trabalho dos educadores é o que se re-
fere à sensibilidade. A necessidade fundamental de saber ouvir os alunos.
E dar-lhes atenção, procurando compreender seus problemas. É claro que,
como educadores, não se pode e nem se deve abrir mão das responsabilida-
des. É crucial continuar a trabalhar a História, a Literatura, a Matemática,
as Ciências e todo conhecimento que cabe proporcionar aos alunos. Torna-
-se necessário adicionar a isso a educação das emoções, garantida pela
presença, pelo estímulo constante, pela crença na capacidade do aluno.

Fica evidente que um trabalho sensível é imprescindível, o que im-


plica, por sua vez, a necessidade de uma formação ético-estética, que am-
plie as possibilidades de interpretação do mundo e compreensão do outro

92
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

com suas diferenças. Nossos sujeitos deram indícios de que buscam atuar
priorizando o diálogo e a escuta, reservando parte de suas aulas para ouvir
os relatos de seus estudantes sobre suas realidades. Os quatro docentes ou-
vidos pela pesquisa deram indícios de que atuam de maneira diferenciada
dos pares, com uma postura mais crítica, sensível e horizontal, acolhendo
as diferenças que seus estudantes trazem. Flávio enfatizou: “não pretendo
aposentar como professor, mas, por enquanto, o que eu puder fazer pela
educação eu vou fazer. Eu tenho que entrar pra fazer a diferença na vida da
criança, não tenho só que ensinar português e matemática”.
Outro ponto comum nas narrativas dos sujeitos foi a realidade desa-
fiadora que seus estudantes enfrentam. Pela fala dos sujeitos, ficou eviden-
te que tal realidade interfere na aquisição dos conhecimentos dos alunos.
Para lidar com essa situação, eles têm que passar boa parte de suas au-
las conversando com eles, dando atenção às suas queixas, às suas dúvidas.
Além disso, os docentes ressaltaram a importância da escuta para a ação
pedagógica. Flávio reforçou a necessidade de um ensino que sirva para a
vida do estudante, no sentido de instrumentalizar para o mundo, nos as-
pectos sociais. Quando ele abordou essa questão, pareceu remeter ao fato
de que foi criado sozinho, por ser filho único e crescer ao lado da mãe,
apenas, e ter que enfrentar atividades domésticas desde pequeno, já que a
mãe trabalhava fora. “E ela sempre me falava, eu tô te criando pro mundo,
eu não vou estar aqui pra vida toda”. Nesse sentido, percebemos a história
de vida do sujeito atuando para a aproximação aos seus estudantes, numa
realidade comum, com a qual se identifica.
Para os docentes, as condições de seus alunos revelam a carência de
referências em seus contextos familiares, o que implica na valorização dos
professores, que assumem esse papel. Quanto a isso, chama nossa atenção
a fala de nossos sujeitos, que reconhece que suas atitudes são tidas como
exemplares para seus estudantes, refletindo na capacidade de aprendiza-
gem. Concordamos com Mariana quando ressaltou que “nosso papel como
professora é muito importante nisso, sabe? Porque os meninos passam
muito tempo na escola”.

Entre lacunas de formação: dá um tanto de reticência na vida da gente...

Escola, currículos, educadoras e educadores (…) mostram-se quase


sempre perplexos, desafiados por questões para as quais pareciam
ter, até pouco tempo atrás, respostas seguras e estáveis. Agora as
certezas escapam, os modelos mostram-se inúteis, as fórmulas são
inoperantes. Mas é impossível estancar as questões. Não há como
ignorar as “novas” práticas, os “novos” sujeitos, suas contestações ao

93
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

estabelecido. (...) A aparente urgência das questões não permite que


se antecipe qualquer resposta; antes, é preciso conhecer as condi-
ções que antecipam a emergência desses sujeitos e dessas práticas

Louro (2001, p. 542)

Apesar de indicar posturas sensíveis com seus estudantes, os pro-


fessores também demonstram dificuldades para lidar com assuntos deli-
cados. Podemos inferir que um dos fatores que atua nessa questão seja
as lacunas de formação. Notamos, porém, que em alguns casos, o próprio
preconceito pode atuar na prática, reduzindo a possibilidade de diálogo,
colocando o outro em uma posição rígida, mesmo que isso aconteça sem
que o docente tenha consciência. Entre suas falas, identificamos que a la-
cuna de formação pode ser um dos motivos para que os docentes não se
sintam preparados para lidar com situações complexas. Os docentes dão
indícios, inclusive, de se responsabilizar por não saber lidar com algumas
questões. Porém, indagamos se isso não é uma questão sistêmica, que care-
ce de atuação em todos os âmbitos sociais. Mas a busca do professor para
uma formação ético-estética configura-se também como muito relevante,
como aponta Mariana em sua fala:
dentro da Prefeitura, a gente também tem muito pouca formação sobre
isso, sabe? Mas assim, eu busco porque se algum dia alguém fizer alguma
coisa com um menino na minha frente eu ficar sem saber o que eu tenho
que fazer, eu vou me sentir péssima. Se isso acontecer, sabe?

Notamos que os professores sentem mais facilidade de lidar com


questões de preconceitos étnico-raciais. Podemos inferir que as legisla-
ções1 que tratam do assunto, obrigando a abordagem na escola conheci-
mentos de culturas afro-brasileiras e indígenas, podem estar surtindo um
efeito. Há uma naturalização da abordagem que as leis parecem ter incen-
tivado, o que indica uma necessidade de inserir essa possibilidade para
os outros assuntos ainda não englobados. Pudemos perceber que algumas
vezes o docente considera que está abordando da maneira correta, mas
suas estratégias indicam termos diferentes dos indicados para incidência
nos assuntos tratados. E que os próprios repertórios dos sujeitos podem
interferir na atuação, pois ainda existem muitos preconceitos internos que
podem dificultar o tratamento dos episódios na escola. Ainda assim, nos-
sos sujeitos indicaram uma sensibilidade e uma preocupação ao lidar com
as situações vividas com seus estudantes.

1 Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/2008.

94
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Mas e quando eu não tô lá pra fazer a intervenção? Quando é minha co-


lega, que não liga pra isso? Que não tem sensibilidade pra isso? Quando
eles estão brincando sem nenhum adulto por perto pra fazer qualquer tipo
de intervenção? Então, assim, isso, dentro da escola, vai virando uma bola
de neve na vida do aluno. E a gente, como professor, a gente não tem for-
mação pra lidar, vai muito da intuição, da sensibilidade da gente, sabe?
De lidar com esses assuntos... A questão étnico-racial, né, é mais fácil. A
questão da obesidade, do homossexualismo é muito difícil, porque muitas
vezes eu tô assim, dez quilos acima do peso lá na frente do meu aluno e falo
pra ele, e sou firme com ele, sou dura com ele, pra ele não ser... Não fazer
bullying com a minha colega, com o colega que tá obeso... Ou, oriento,
educo o meu aluno com relação à obesidade... Então isso é muito difícil pra
gente. E aí vem também a questão da homossexualidade, né. Muitas vezes
você não sabe o que falar na hora que deve falar. Como intervir, sem ser
também preconceituoso com o aluno? Isso é muito difícil em sala de aula.
Porque é uma questão de foro muito íntimo né. A opção sexual do outro. E
aquele menino, na idade que ele tá, ele ainda não tem opção. Ele tá viven-
do a vida dele como uma criança. O outro está fazendo esse bullying, esses
preconceitos, porque, no meu entendimento, eu posso estar enganada, ele
esta é repetindo o que ele escuta dentro de casa, de outro adulto. Difícil,
né? Dá um tanto de reticências na vida da gente essa questão, enquanto
educador. Como trabalhar... Como realmente fazer a diferença? Como não
levar também para a vida, para a sala de aula, as limitações da gente
na educação, ao educar um aluno? Como respeitar, como não passar do
limite, né, e daquilo que ele traz de família? Eu trabalho em uma realidade
em que é muito forte também a questão das opções das religiões evangé-
licas, de segmento religioso muito tradicional, muito alienado. Então, do
mesmo lado que tem aquele extremo de que não tem formação, conduta,
moral nenhuma, tem essas formações religiosas... E aí esses meninos, eles
repetem coisas na sala de aula, sobre demônio, opção sexual, de religião,
afrodescendente, de diabo, que você vê que é coisa que é doutrinação, sabe?
De livro que não se pode ler, o menino não pode estudar folclore que ele tá
estudando, que tá estudando bruxa, bruxa é coisa de demônio, demônio é
coisa de candomblé, de macumba... A gente escuta muito tudo isso dentro
de sala. Você ao mesmo tempo que tem o aluno, tem seu colega de trabalho,
que também tá dentro desses segmentos religiosos - (Zenira, grifos nossos).
Lá na escola de vez em quando tem umas orações e eu acho assim, o fim
da picada. Eu sou católica, eu vou à missa, sabe, mas eu acho que isso,
dentro da escola, não tem nada a ver. Eu vejo lá, até profissionais mesmo
da escola ficam incomodados quando você vai fazer uma oração e às vezes
a pessoa vai lá e emenda uma Ave Maria. E aí o fulano, cicrano, beltrano
é evangélico. Então, Ave Maria pra eles não faz o menor sentido. Aí, talvez
uma pessoa espírita quer fazer uma prece, aí quem é crente já sai correndo,
sabe? Eu acho que são coisas que não deveriam ser misturadas - (Mariana).

95
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Valores dogmáticos foram citados ao se referirem à religião. As pro-


fessoras apontaram que têm percebido uma crescente participação de uma
postura rígida dos alunos evangélicos, que são os menos abertos para o
debate. Eles trazem de suas vivências familiares as certezas que anunciam,
agindo com preconceito com diferentes manifestações religiosas.
Eu vejo que algumas crianças evangélicas, não todas, já têm algum blo-
queio para discutir certas coisas, sabe? Eu acho isso um pecado. Eu acho
que criança devia ser livre pra discutir. Todas as pessoas, mas principal-
mente crianças. Eu vejo que têm crianças que não dão conta, tão pequenas
e já estão condicionadas por um tipo de posição dogmática, religiosa. Eu já
tive problemas seríssimos com aluno que fazia bullying na escola com um
outro que era mais afeminado, dizendo coisas religiosas o tempo inteiro,
que ele era de Satanás, que ele ia pro inferno… Eu tentava conversar com
ele o tempo inteiro, que as coisas não são assim. Ele não aceitava. Era
muito difícil. E eu tenho uma relação muito afetiva com meus alunos, de
abraçar, de beijar… E eu acabo criando uma resistência com esses meninos
que eu não gostaria de ter, mas é físico, eu não consigo. Eu começo a resistir
à criança, entendeu? Aí eu já não consigo mais me envolver tanto com ela,
como com os outros. Aí, pra mim, já é um menino que tá perdido, digamos
assim… Eu espero que não, eu espero sinceramente que tenha um momento
da vida dele que ele possa questionar tudo isso e ver que as coisas não são
assim tão preto no branco, que a vida é muito mais complexa do que como
ele aprendeu. Mas, eu tenho dificuldade sim, de lidar com isso, quando se
apresenta nos meus alunos. É complicado. Já tive problema com pais por
causa disso também, de ir lá na escola reclamar que eu tava falando na sala
sobre homossexualismo ou sobre outras coisas também. Mas eu faço ques-
tão, eu acho que as crianças têm que começar desde cedo a pensar de forma
não preconceituosa. E a religião traz tantos preconceitos com relação a
sexualidade, com relação a cor também… Uma das coisas que lembro que
aprendi na igreja era que a pessoa negra era amaldiçoada, sabe? Que não
sei quem lá na Bíblia cometeu um pecado e deus amaldiçoou ele, mandou
ele pra África, aí ele ficou preto. Então eu sei que tem muitos preconceitos
que são formados na cabeça das pessoas através da religião e eu acho isso
muito bizarro, eu acho muito problemático. E eu fico muito triste quan-
do eu percebo que as crianças já estão com essa mentalidade. Faço muita
questão de debater essas coisas dentro de sala e tentar passar uma visão
diferente pra eles. De que não é bem assim, que isso é só uma religião, que
existem milhares de outras explicações, entendeu? Que isso não é a verdade
absoluta, que existem outras verdades - (Lídia).

Certezas que precisam ser desconstruídas no contexto escolar, ou


seja, “questionar ou analisar e (…) desestabilizar binarismos linguísticos
e conceituais”, como aponta Louro (2001, p. 548), ao propor um estranha-
mento do que está posto como norma. Ao se dispor para o debate e a dis-

96
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

cussão de assuntos dessa natureza, a escola está rompendo com padrões


estabelecidos, possibilitando o conhecimento para a comunidade escolar
sobre temas tão importantes. Mariana destacou que “é muito difícil falar
isso dentro das escolas, mas eu acho que a nova formação de família deve-
ria ser bem mais tratada, a questão do racismo, a questão da homofobia, a
questão do feminicídio, do preconceito com a mulher, sabe?”. Não parece
ser uma coisa simples de colocar em prática, mas, em face de um quadro de
violência que vulnerabiliza ainda mais a infância, parece ser imprescindí-
vel. Flávio deu a entender que os preconceitos sobre sua religião de matriz
africana interferem inclusive em suas escolhas.
Ainda escondo muito a questão da minha religião por causa da sociedade,
entendeu, pelo preconceito. Porque não é todo mundo que aceita que eu
sou do candomblé. Eu sou de Omolú, que dentro da religião católica, o
sincronismo seria com São Lázaro, né porque ele é orixá que rege sobre a
vida, sobre a morte, sobre as doenças, ele usa uma palha porque ele é todo
cheio de feridas por baixo dela, né, então ele é o orixá da cura, ele traz tanto
a doença quanto a cura.

Percebemos que os sujeitos envolvidos sofrem mas também perpetu-


am preconceitos, muitas vezes sem se dar conta disso. Na tentativa de lidar
com a autoestima das crianças, os professores muitas vezes utilizam estra-
tégias que abordam a estética dos sujeitos, valorizando suas imagens e mos-
trando algumas referências positivas, objetivando reforçar sua autoestima.
Esses meninos, além de todo o sofrimento social, têm também esse proble-
ma com aparência, com autoestima. Muitos são negros. Eu procuro muito
influenciar eles de forma positiva, tanto afirmando a mim mesma como
a eles. Tem uma aluna minha, que ela tem o cabelo muito crespo e aí ela
chegou um dia elogiando meu cabelo: professora, seu cabelo é bonito, é liso.
Eu falei: o seu cabelo é bonito, é crespo. Ela falou: não, meu cabelo não é
bonito. Eu falei: é sim, é muito bonito, tem uma beleza muito especial no
seu cabelo. E aí ela falou: mas eu não vejo nenhuma mulher bonita com o
cabelo assim. Eu falei: então eu vou te mostrar. E comecei a puxar no meu
celular fotos de atrizes negras. Eu faço muita questão, sabe, de ensinar isso
pra eles, porque esse povo já sofre demais! - (Lídia).
Entre meus alunos, com relação a preconceito de raça tem demais. Fulano
é macaco. Às vezes a pessoa é negra e tá chamando o outro de macaco. Aí
eu entro de sola, vamos todo mundo olhar no espelho. Você já se olhou,
fulano? E aí não tem macaco porque não estamos no zoológico. Aqui só tem
gente, somos todos seres humanos. Aí eu sou muito firme, muito dura com
eles nesse sentido. As meninas negras têm mais dificuldade de ter amigas,
de ter colegas pra brincar. A gente tem que intervir. As meninas negras,
com seis, sete anos, têm uma necessidade de ir de cabelo pranchado, alisa-
do. É doloroso. Eu tenho uma aluninha de seis anos, uma bonequinha, lin-

97
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

da! A mãe tá alisando o cabelo dela. Alisando assim, com aqueles alisantes
mais terríveis que você pode imaginar. Aí vem a família toda é negra e alisa o
cabelo, então uma coisa que é tradição na família. Mas, em compensação, já
tem muitas que soltam o cabelinho, desde novinha e tá aquele girassolzinho
assim, sabe? Ou cogumelo, como elas falam assim: professora, tô parecendo
um cogumelo. Então, tem muito preconceito - (Zenira, grifos nossos).

Apesar de ser uma estratégia importante, que reforça a autoestima e


apresenta representatividades que já são consideradas belas em seus con-
textos, abordar essa questão apenas com elogios pode não surtir efeitos
duradouros. Consideramos uma alternativa relevante, mas que, sem uma
continuidade, pode perder lastros e se dissolver, caso a realidade da crian-
ça apresente quantidade significativa de preconceitos. No livro Quando
me descobri negra, Bianca Santana (2015) aborda um trecho de sua infân-
cia, na relação com a escola.
Agora, o cabelo… Eu não gostava nada dele. E esse sentimento
nunca consegui mandar embora. Ou era o espelho, ou era o
pente da minha avó, ou eram os meninos que me chamavam de
vassoura. Sempre alguém me lembrava de que meu cabelo era
ruim. Eu sonhava com o dia em que ele ficaria liso. Planejava
ir toda semana ao salão de beleza, fazer escova como a minha
mãe, quando eu ganhasse meu próprio dinheiro. De cabelo
liso, eu sempre poderia dizer que estava voltando da praia, e
nenhum sentimento esquisito voltaria (p. 73).
“Cabelo crespo é lindo, minha filha”, sempre dizia a mãe. A
menina sorria, não queria magoar a mãe, que ficava mesmo
bonita com o cabelo crescendo pra cima. Mas ela queria por-
que queria um cabelo escorrendo pra baixo. Na escola, a pro-
fessora era como a mãe. Mesmo tendo um cabelão liso e bem
comprido, vivia dizendo que o cabelo da Nati era lindo. Mas
as amigas eram mais como a menina. Não gostavam daquele
cabelo curto, cheio de molinhas com fios espetados. Algumas
eram gentis e não falavam nada, só olhavam com pena. Outras
soltavam pequenas maldades, perguntando se Nati não queria
ter o cabelo liso e comprido como os delas. E tinha ainda as
que faziam piada pra todo mundo ouvir, apontando que cha-
mavam de cabelo ruim (p. 90).

Os professores apontaram duas questões importantes: a primeira,


quanto ao trabalho que ainda é realizado de maneira eventual em relação
a alguns temas, como as relações étnico-raciais. Acaba sendo uma manei-
ra pontual de abordagem, apenas em momentos específicos e com cele-
brações artísticas que, embora sejam uma boa maneira de introduzir ou
exemplificar culturas, não é suficiente para lidar com questões mais sérias,

98
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

como o preconceito. Outra questão mencionada foi a falta de apoio institu-


cional, o que tornou o trabalho ainda mais episódico e fugaz. As situações
de racismo, de preconceito, pelas quais passam os estudantes e docentes
demonstra a necessidade de que a formação e a prática docente sejam per-
meadas pela discussão de assuntos fundamentais aos direitos humanos.
Carece de ser um programa voltado para toda a comunidade escolar, que
esteja tanto nos documentos de diretriz, quanto no planejamento de ativi-
dades e nos currículos.
Ano passado na semana de artes nós ensaiamos músicas e danças afri-
canas no terceiro ano. Eles tiveram que aprender o iorubá, ensinamos pra
eles. Eu vi mais uma vez, que o grupo de professores de coordenação não
gostou. Tanto que a coordenação e a direção não desceram na quadra na
hora da apresentação. Fomos só nós, professores que concordamos com o
projeto, além dos alunos que estavam lá assistindo. E essa situação que a
gente tá tentando mudar na escola - (Flávio; grifos nossos).

As situações cotidianas que os professores trouxeram em suas narra-


tivas e os desafios para os quais não se sentiram aptos a trabalhar reforçam
que a falta do debate e da abordagem dessas questões na escola só contribui
para o aumento do preconceito. Todos os sujeitos envolvidos na educação
podem se beneficiar desse debate, dessa formação. Não ser preconceituo-
so não é suficiente; é preciso se colocar numa luta consciente e constante
para eliminar o preconceito. Ousamos esperançar que a formação de uma
comunidade escolar pode ser fecunda, criando raízes e gerando frutos que
possam ser compartilhados em outras instâncias da vida dos sujeitos.
A educação escolar, as organizações culturais, a vida sexual
e em família, os padrões e modos de associação civil, as igre-
jas e religiões, as formas comunitárias e organizacionais, as
instituições etnicamente específicas, e muitos outros locais
desse tipo exercem uma função vital na produção, sustentação
e reprodução racialmente estruturada das sociedades (HALL,
2003, p. 283).

Mariana trouxe em sua narrativa o caso de uma bibliotecária que faz


meditação com os estudantes, e que alguns deles não querem participar
por se tratar de “coisa do diabo”. Porém, isso não se restringe apenas aos
alunos. Flávio comenta como os professores “olham com olhares tortos”
quando ele usa alguma roupa feita com tecidos de origem africana. Os fun-
cionários da escola também são indicados como de maioria evangélica.
Tem alunos nossos que são de matriz africana também que sofrem muito,
que não podem se expor, né, dentro de uma escola que seria o espaço que
ele deveria se expor, que ele deveria encontrar ali, né, um abrigo, uma for-
ma dele poder expor o que ele sente. Então a escola ainda fecha os olhos

99
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

muito pra isso, né, eu acho que a minha briga maior com a escola hoje é
por causa disso, é o fechar de olhos pra isso e fazer com que outras crianças,
outros adolescentes sofram aquilo que muitas vezes nós que estamos ali, os
adultos, tivemos que sofrer e estamos lutando pra não sofrer mais (Flávio,
grifos nossos).

Nenhum dos docentes afirmou que todos os evangélicos seriam into-


lerantes, pelo contrário, ressaltaram que há muitos que são abertos ao diálo-
go. Porém, ao indicar essa existência na escola, vinculada principalmente a
uma postura dogmática, deram pistas de que essa situação está inserida em
vários locais da escola, percorrendo toda a sua constituição. A partir desse
indício, podemos concluir que a abertura ao diálogo pode acontecer também
para outras questões com idealizações fixas, como o gênero.
Não temos condições de reivindicar nossas diferentes identi-
dades, se formos todos iguais, e tampouco conseguiremos pro-
curar a diferença por nós escolhida, se alguém tiver poder para
nos impingir uma igualdade forçada (assimilação) ou uma dife-
rença imposta (racismo e sexismo). Na busca pela diferença, não
podemos nos esquecer de que também acalentamos um sonho
de compartilhar, de participar, de comunicarmo-nos e de dia-
logar. (…) É preciso que sempre exista uma linha de diferenças
que, depois de transposta, torne-se plena de significado, mas é
necessário que exista também uma “linha”, segundo a qual pos-
samos comunicar desejo de encontrar um terreno e uma lingua-
gem comuns, que possibilitem a troca (PORTELLI, 2012, p. 18).

Questões de gênero: talha meu sangue!


Flávio denunciou em vários momentos de sua narrativa a questão
das dificuldades que encontrou para trabalhar, tanto no período de forma-
ção inicial, para fazer estágio, quanto nas tentativas de dobras, pelo fato
de ser homem. Ainda existe um imaginário social forte de que o cuidado,
atitude muito requerida na educação da infância, deve ser realizado por
mulheres, como apontam Monteiro e Altamnn (2014, p. 722): “a educação de
crianças pequenas é associada ao âmbito do trabalho doméstico e à esfera
reprodutiva, sendo, dessa forma, naturalizada como área de atuação femi-
nina”. A procura pela função docente no ensino infantil e nas séries iniciais
ainda é predominantemente feita por mulheres. Dessa maneira, o “professor
homem torna-se um corpo estranho nas séries iniciais do ensino fundamen-
tal", como destaca Rabelo (2010, p. 909). Porém, tanto a presença masculina,
quanto a feminina, são importantes no desenvolvimento da criança.
A presença de um homem é vista pelos docentes como uma posi-
ção de prestígio já que “em nossa sociedade, a norma que se estabelece,

100
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média


urbana e cristão” (LOURO, 2010, p. 15-16). A autora ressalta ainda que as
identidades sociais e culturais são políticas, pois, “as formas como elas se
representam ou são representadas, os significados que atribuem às suas
experiências e práticas, sempre, atravessados e marcados por relações de
poder”. Flávio ressaltou que a recepção dos estudantes é calorosa: “você
vê que o respeito é diferente das professoras mulheres. E é tudo novo pra
eles. Quando eu entro na sala eles falam: ``ó que legal, um professor ho-
mem!”. Essa fala de Flávio dá indícios de que o respeito a que faz menção
é o mesmo atribuído pela sociedade aos homens, com mais poder, numa
relação desigual em relação às mulheres. Dessa maneira, a escola reproduz
o imaginário social de que o homem tem mais valor, assim, “a integração
do homem em trabalhos de mulher não muda as hierarquias baseadas em
gênero, principalmente porque muitas vezes os homens continuam apro-
veitando as vantagens de representarem o sexo dominante em nossa socie-
dade” (RABELO, 2013, p. 921).
O contexto das crianças atendidas pelos docentes da pesquisa, que
lecionam em escolas inseridas em espaços de vulnerabilidade social, se
apresenta com famílias construídas pelas mães ou avós como principais
mantenedoras, ausência dos pais e, muitas vezes, presença de estranhos
no cuidado das crianças. “Primeiro que, pra eles, eu sou a referência de pai
que eles não têm em casa. A maioria não tem pais em casa. Então, eu me
torno essa referência. É uma coisa assim, extraordinária para os pequenos,
ter um professor homem”, aponta Flávio. Essa situação é percebida por Ze-
nira como uma vantagem para os homens docentes. “A gente fica em des-
vantagem atrás de vocês. Até os monitores têm um trânsito muito melhor
entre os meninos do que a gente”. A professora aponta ainda perceber que
as relações das mães com seus estudantes são, muitas vezes, desgastadas.
Nos questionamos se isso acontece em função das condições de vida, a
situação de trabalho, que muitas vezes obriga essas mães a sair muito cedo
e chegar em casa já mais tarde.
Os meus alunos, eles vêm assim, de condição familiar muito complicada. A
mãe, que é muito nova, e que não tem, às vezes, juízo pra cuidar... É criado
por vó, por tia, tio... Meninos que são vítimas de violência doméstica, de
violência sexual, inclusive... São meninos que o pai e a mãe, por causa da
condição financeira, precisam trabalhar muito pra dar um pouquinho mais
de dignidade à família... Eles ficam sozinhos, eles são criados sozinhos ou
com pessoas diferentes - (Zenira).

Lídia, por sua vez, narrou que os estudantes “são muito pobres, eles
não têm uma família estruturada, às vezes é uma mãe que bate demais,
um pai alcoólatra, ou não tem mãe nem pai, alguns vivem só com a avó.

101
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A maioria é assim, tem um ou outro que tem lá a família padrão, mas não
é a regra”. Quanto à atuação dos homens na escola, Zenira indicou que
trata-se de uma figura masculina positiva, muitas vezes ausente na vida
das crianças. “Porque não é só uma presença masculina, é uma presença
positiva. Ele tem presença masculina às vezes em casa, mas não é positiva.
É uma pessoa agressiva, alcoólatra. Ou não tem nenhum homem”.
Porém, essa presença masculina evoca também preconceitos, em
face do medo da violência contra a criança, como aponta Flávio, que, desde
o período de estágio docente, encontrava dificuldades, tendo que exercê-
-lo em empresas, já que as escolas não o recebiam. “O período de estágio
foi um sacrifício para mim. Mesmo hoje, para conseguir dobras, é difícil,
já fui recusado várias vezes”. Monteiro e Altmann (2014, p. 730) indicam
que o estranhamento “refere-se não só à presença do homem na função
de professor, à sua escolha profissional, mas também aos procedimentos
adotados em momentos de cuidados corporais e à orientação sexual de
crianças”. Flávio narrou um pouco como foi o início de seu trabalho.
Aí foi uma nova etapa, um novo desafio de minha vida, entendeu, homem,
homossexual, ter que encarar a escola, ter que chegar nas escolas e ver os
olhares de preconceito contra mim. Perceber o medo não das crianças, mas
dos pais, dos diretores, dos adultos, entendeu? O medo de que eu chegasse
próximo das crianças. Eu tive que lidar com isso tudo.

Essa suspeita está baseada numa visão de masculinidade que pode


atrofiar a docência dos homens, alterando a qualidade das interações.
Sayão (2005, p. 141) ressalta que, “embora os homens geralmente acredi-
tem na importância de demonstrar calor e empatia para com as crianças,
eles são frequentemente impedidos de ter contato físico pela desconfiança
endêmica quanto aos seus motivos”. Em virtude disso, os professores do
sexo masculino são direcionados a turmas mais velhas, especialmente no
início das carreiras, até “provarem” que são capazes de lidar com crianças,
acima de quaisquer suspeitas, situação que Flávio conta que passou, uma
espécie de período probatório. Ele contou que após cinco anos de docência
já se provou como docente e tem menos medo de mostrar sua representação
pessoal, se sente mais livre. Porém, aponta que não fica livre de suspeitas,
principalmente em virtude de um imaginário de que o contato com alguém
homossexual, por exemplo, dá margem para a criança “querer” ser também.
Se eu tenho que usar uma roupa x, eu vou usar uma roupa x. Eu não tenho
tanto medo mais, mas querendo ou não, a gente tem aquela preocupação, né?
Eu não posso ir dessa forma pro ambiente de trabalho, porque senão vão co-
meçar a falar que eu estou influenciando alguma coisa. E a sociedade ainda
é muito hipócrita nesse ponto. Então a gente acaba tendo que se podar em al-
guma situação, mas na grande maioria delas hoje eu sou muito mais liberto.

102
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

A presença de homens da escola é uma excelente oportunidade para


debater e discutir as noções de gênero hegemônicas, o que contribui com
a possibilidade de imaginar novas formas de representação mais plurais,
mais inclusivas. Rabelo (2013, p. 921) ressalta, porém, que “apesar do pre-
conceito que sofrem, eles comumente se aproveitam das vantagens da mas-
culinidade na sociedade, de modo que suas estratégias para manter a mas-
culinidade acabam apoiando a masculinidade hegemônica”. A escola, como
lugar cuja centralidade é o aprendizado, tem oportunidade de agir no sen-
tido de desconstruir imagens congeladas acerca de gênero, abrindo novos
horizontes de compreensão. Sayão (2005, p. 225) acredita que é preciso cons-
truir diálogos com as famílias, e, quando isso não ocorre, seria pelo “desco-
nhecimento que, de um modo geral, os/as profissionais possuem sobre como
justificar a importância que tais vivências implicam para as crianças”.
Esse quadro demonstra uma necessidade de formação docente sobre
temas considerados polêmicos, a fim de desestabilizar fronteiras deter-
ministas sobre tais assuntos, uma vez que “o silêncio e as representações
preconceituosas de gênero têm estado muito mais presentes nas escolas”
(RABELO, p. 922).
Mas juntamente com a análise de porque a sexualidade é tão
difícil de ser discutida no conteúdo escolar, deve também ha-
ver uma disposição de parte das professoras para desenvolver
sua própria coragem política, numa época em que pode não
ser tão popular levantar questões sobre o cambiante conhe-
cimento da sexualidade. Isso significa que a sexualidade tem
muito a ver com a capacidade para a liberdade e com os direi-
tos civis e que o direito a uma informação adequada é parte
daquilo que vincula a sexualidade tanto com o domínio imagi-
nário quanto com o domínio público. (...) O ponto de partida é
uma conversa e uma produção generosa de uma sociabilidade
que se recusa a se justificar através do consolo da fixação de
um lugar próprio. A sexualidade é qualquer lugar” (BRITZ-
MAN, 2010, p. 109, grifos nossos)

A importância da presença do debate sobre questões de gênero fica


evidenciada a partir de dados que os sujeitos trouxeram na pesquisa. Duas
professoras apontaram abusos sexuais cometidos por familiares de suas
estudantes, situação que só foi reconhecida como abusiva pelas crianças
a partir do contato sobre noções de corpo e reprodução em sala de aula.
Lídia inclusive narra que, na primeira vez que isso aconteceu em sua sala,
ela ficou noites sem dormir, já que a denúncia que fez ao Conselho Tutelar
só foi apurada depois de alguns dias. Violências dessa natureza causam
forte impacto na vida das crianças, conforme ressaltam Martins e Jorge
(2010, p. 253):

103
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

o grande impacto que a agressão sexual exerce na saúde física


e mental das vítimas, deixando marcas profundas e causan-
do danos irreparáveis em seu desenvolvimento, com impacto
na vida reprodutiva e sexual. Em curto prazo, a experiência
do abuso sexual pode ocasionar em suas vítimas distúrbios de
alimentação e de sono, descontrole esfincteriano, problemas
escolares, interesse sexual e atividades provocativas precoces,
depressão, fuga de casa, tentativa de suicídio, uso de drogas,
ansiedade e agressividade (…).

Destacamos que as professoras, ao narrarem os episódios de abusos


sofridos pelos alunos, o fazem acentuando de que foram procuradas para
esses relatos por serem mais abertas ao diálogo com os estudantes e se
colocarem à disposição para conversas de vida, não somente para ensino
de atividades curriculares. Entendemos, porém, que a formação é neces-
sária para que a escuta não dependa de um professor em particular, que o
cuidado para essas questões possa ser uma postura de toda a instituição
escolar. Para os profissionais, os quais precisam lidar com as consequên-
cias, o abuso sexual pode se configurar como um campo repleto de comple-
xidade e confusão, tanto pessoal como profissionalmente, como Lídia dá
sinais, quando teve reincidência dessa situação em sua sala: “por que eu?
De novo!”. Sua angústia em relação ao assunto, assim como o de Zenira,
quando aborda essa questão, dão uma noção do desafio que é estar diante
de uma criança que sofreu abusos. Porém, ressalta Lídia:
Aí acontecem coisas assim, estranhíssimas, na minha aula, sabe? Mas eu
gosto de ter essa abertura. Ainda sofrendo esses baques, eu prefiro que seja
assim, que eles tenham uma pessoa com quem falar, mesmo que eu tenha que
sofrer isso, entendeu? Prefiro que eles falem comigo do que com ninguém.

As próprias crianças, quando vítimas de uma situação dessa nature-


za, podem não denunciar por sentir culpa. Além disso, o autor da violência
pode ser uma pessoa reconhecidamente violenta, envolvida com ações ilí-
citas em seu contexto, o que pode constranger os profissionais da escola a
fazer a denúncia, por sentirem que estão colocando sua vida em risco. Sou-
sa (2017, p. 10) evidencia que “no afã de punir o estuprador, quando este é
publicamente declarado culpado, pouco ou nunca se observa a construção
de um debate mais aprofundado acerca dos meios dos quais esses cenários
são instalados”. A afirmação pode ser comprovada, de certa maneira, com
a ausência, nos relatos das professoras de alguma ação feita pela e para a
escola como um todo, diante dos casos citados. A denúncia foi feita e as
providências foram tomadas pelos órgãos responsáveis, mas, pelos indí-
cios que tivemos, não foi feito nenhum debate nas escolas, que pudesse
dar subsídio para outras crianças, que poderiam estar vivendo a mesma

104
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

situação, saírem do contexto de violência. “Para que essas conversas se


tornem pensáveis até relação à educação é preciso que as educadoras e
os educadores se tornem curiosos sobre suas próprias conceptualizações
sobre o sexo, e ao fazê-lo, se tornem abertos também para as explorações e
as curiosidades”, sugere Britzman (2010, p. 109).
Podemos intuir que o conhecimento de si, a investigação sobre os
próprios desejos e a compreensão sobre as próprias maneiras de sentir
podem colaborar para a abertura ao outro. Flávio, ao narrar sobre sua vida,
conta do processo de contar para a família sobre sua sexualidade. “Eu che-
guei a ver amigos meus tentando suicídio, porque a família não aceitava,
todos criticavam. Eu vi o sofrimento deles e falei: não posso ser assim, te-
nho que me libertar. Demorei um bom tempo pra isso, foi uma construção
que eu fiz”. Apesar de ter sido um momento difícil, deu a ele um sentido
de liberdade, de poder viver sua vida a partir da forma como se reconhecia:
um homem homossexual. Nesse sentido, o autoconhecimento operou na
constituição de sua identidade e também na prática educativa.
A partir do momento que eu conheço a me conhecer, a partir do momento
que eu descubro quem eu sou, começo a aceitar quem eu sou, as minhas
limitações, até onde eu posso ir, até onde eu posso explorar, eu consigo pas-
sar isso para os meus alunos, eu começo a entender quem são eles, enten-
deu? Eu vou sabendo até onde eu consigo passar pra eles essa experiência e
eles poderem também se soltar. E não começar a se prender cada vez mais,
como acontece com muitos alunos. Porque num dado momento de nossa
vida a gente precisa ter essa libertação. Precisa saber quem é, pra onde
quer ir, para o que quer lutar. Eu acho que todo ser humano precisa disso,
necessita dessas perguntas, e respostas, então eu acho que me respondendo,
eu consigo ajudá-los a responder a eles mesmos. Nem é responder pra mim,
é responder pra eles mesmos, entendeu. Muitos professores entram em sala
e não conseguem entender quem são os seus alunos, que história que eles
trazem. Muitas vezes podem ser histórias parecidas com as minhas, sabe,
e eles não tiveram o momento de ser ouvidos. Então, eu tento fazer essa
discussão. Acho que eu posso auxiliá-los nessa construção deles também,
para que eles busquem isso, a construção deles, porque muitos alunos estão
lá e eles não sabem nem quem eles são, muitas vezes eles não se aceitam
por algum motivo, porque falaram que eles não podiam ser assim. Então eu
acho que preciso trabalhar isso com eles.

Ainda que ninguém possa de fato emancipar outro sujeito, pode ser
tocado pelo diálogo com alguém que já passou pela experiência. Flávio dá
indícios de uma postura reflexiva e atenta às necessidades dos estudan-
tes que possam estar lidando com as mesmas dificuldades que ele passou.
Suas narrativas podem contribuir para a reflexividade dos alunos, a partir
de sua representatividade. Porém, Flávio apontou que não se autodecla-

105
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ra como homossexual para os alunos. Nos interrogamos se essa limitação


tem a ver com processos dolorosos que já enfrentou e ainda enfrenta, que
fazem com que ele viva sua identidade, sem afirmação, de forma mais “na-
tural”. Em outros momentos ele dá a entender que os diálogos com os es-
tudantes são mais casuais, envolvendo, principalmente, questões estéticas.
A estética pessoal pode ser vista também como uma forma de luta política.
Poder se afirmar como entende que deve ser é uma maneira de mostrar
ao mundo os ideais que defende. No caso de Flávio, há indícios de que a
afirmação pela estética seja uma estratégia frágil, que não leva a uma dis-
cussão efetiva sobre questões como preconceito.
Eles veem em mim algumas atitudes que alguns têm vontade de perguntar,
mas não perguntam, apesar de eu dar muita abertura. Às vezes um aluno
tenta me criticar: o professor hoje tá parecendo mulher. Aí o outro vira
e fala: mas ele pode se vestir assim. Eles entram em minha defesa, mas
dizendo assim: ah, não, o professor gosta de mulher. Por mais que eles já
entendam a situação, eles ainda criam esse tipo de defesa, porque eles não
aceitam que aquela pessoa que eles têm como referência seja assim [homos-
sexual]. Isso é uma cultura criada em casa. Eles aceitam muito mais entre
eles, os alunos, mas não aceitam a gente, professor.

Flávio conta que chamou a atenção da coordenação da escola para


o fato de que existem muitos estudantes que sofrem homofobia. “Vários
alunos sofrem com isso também e eles precisam sentir que aqui eles têm
amparo”. Na percepção de Flávio, a existência de funcionários homosse-
xuais na escola levou a uma tentativa de abordar o assunto, ainda que seja
com a confecção de um painel, iniciativa da coordenadora. Ele também
aponta várias questões:
muitas vezes tento colocar esse assunto na escola e é uma situação muito
difícil. Muitas vezes eu sou mal interpretado pelos meus colegas de traba-
lho, por aquelas pessoas que são da família tradicional brasileira, é difícil
trabalhar com eles. Mas eu tento fazer da minha forma. Não tenho mais
tanto medo de falar, de como chegar, de como me comportar, de como me
vestir. Tô dentro de um espaço que é um de conhecimento, de exposição
e de aprendizado. Se muitas vezes eu vou na escola dessa forma é porque
eu quero levantar ali alguma discussão. E a reclamação dos alunos é justa-
mente essa: eles não têm espaço na escola pra discutir sobre isso dentro do
ambiente escolar. A gente não tem que ter medo de mostrar isso pros nossos
alunos. Eu vejo que muitos colegas de trabalho ainda têm dificuldade pra
trabalhar essas questões com os alunos. Muitas vezes eu tenho receio de fa-
lar, porque a agressão que vem pra cima é muito forte na sociedade. Muitas
vezes não é uma agressão física, mas é uma agressão verbal, é uma agressão
psicológica. E é onde eu viro e repito: dentro da educação, dentro da escola,
ainda se tem esse grande problema, a escola fecha os olhos (grifos nossos).

106
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Situações de homofobia foram relatadas também pelas outras pro-


fessoras. Quando concepções fixas sobre o comportamento de gênero são
rompidas pela atitude de uma criança mais sensível, ficou evidente que há
uma reação preconceituosa. Os professores relataram que nem todos os
colegas intervêm nessas situações.
Outro tipo de preconceito, que é muito doloroso, é com os meninos afemi-
nados. Ô viado, sai pra lá viadinho. É esse o termo. Bichinha, viadinho.
Esse é terrível, esse é doloroso! A gente observa assim, gente que cruelda-
de com o colega! E, às vezes, não é nada disso, porque a gente observa os
meninos crescendo, se desenvolvendo... Não tem nada de homossexuali-
dade. Mas eles já sofrem com os colegas, porque ele é mais sensível, ele
é mais carinhoso, ele gosta da brincadeira das meninas... Ele anda muito
com as meninas, ele é mais gentil, ele é mais sensível, então ele é viadinho.
Isso é forte no dia-a-dia da escola e é um pouco triste porque eu me sinto
um pouco sem como saber muito como lidar, sabe? Eu vejo muitos colegas
omissos, também... A gente conversa com os meninos, a gente conversa com
os agressores e tal, mas você vê que o que a gente faz é um grão de areia no
oceano. Que aquilo ali vai virar uma bola de neve na vida daquela criança
que tá sofrendo preconceito - (Zenira).

Mariana indicou a necessidade de diferentes tipos de constituição


familiar serem abordadas na escola, o que ela sentiu falta nos materiais
didáticos que teve contato, ainda que tais constituições estejam presentes
no universo dos estudantes. “Por razões históricas e culturais, diferentes
formas de vida familiar têm se desenvolvido, e o termo ‘família’ é utilizado
para descrever amplos arranjos domésticos que são bastante diferentes do
que era, num dado momento, a ‘norma’ (WEEKS, 2010, p. 78)”. Não obstan-
te a necessidade apontada pela professora, e do reconhecimento da exis-
tência de uma diversidade social e sexual,
até o momento, entretanto tem sido apenas num grau limi-
tado que esse reconhecimento tem se transformado numa
aceitação positiva da diversidade e do pluralismo moral. Ao
contrário, como temos visto, a diversidade e a sempre cres-
cente complexidade social que lhe dá origem provocam agu-
das ansiedades, as quais fornecem a base de sustentação para
grupos ligados ao surgimento renovado de valores mais abso-
lutistas (WEEKS, 2010, p. 79).

O questionamento acerca de brincadeiras de infância, fazendo rup-


turas com as concepções historicamente atribuídas aos gêneros esteve
presente nas narrativas dos quatro sujeitos. Mariana e Flávio disseram
que, quando crianças, não gostavam de brincar com coisas normalmente
atribuídas aos seus gêneros, mas que sofriam, algumas vezes, pressões em

107
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

virtude disso. Os quatro sujeitos trouxeram narrativas que apontam que,


em seu cotidiano docente, essas questões também estão presentes, deman-
dando uma intervenção com os estudantes. Chama nossa atenção, porém,
o fato de que os docentes ainda separam os alunos entre meninos e meni-
nas, quando, por exemplo, têm que fazer fila para se dirigir a alguma ativi-
dade fora de sala. Apesar de demonstrarem sensibilidade e disposição para
intervir e reclamar o direito da criança brincar com o que quiser, ainda
fazem a divisão da turma de forma binária. Ponderamos que nem sempre a
reflexão sozinha é suficiente para uma ação mais qualificada, uma vez que
alguns preconceitos estão muito institucionalizados na sociedade.
A prática docente evoca a importância de uma vigilância, no senti-
do de uma reflexão crítica sobre suas ações. Porém, ressaltamos que não
pretendemos responsabilizar o sujeito docente em sua individualidade.
Reconhecemos que as ações devem ser sistêmicas e contínuas, pois esta-
mos inseridos num contexto social em constante mudança, que acionam
muitos conhecimentos sobre assuntos que nem sempre estamos dispostos
a enfrentar. Algumas questões tocam em feridas muito profundas, daí é
preciso cuidado para abordá-las.
Do ponto de vista educacional, sem dúvida temos muito o que
aprender, pois o tema da violência requer atenção redobrada:
não só no seu aprofundamento, com vistas a buscar outras ca-
tegorias conceituais para iluminar a questão, como, sobretu-
do, são urgentes ações efetivas, uma vez que já sabemos que
a violência contra a infância – só para ficar num exemplo de
violência – traz prejuízos gravíssimos, a ponto de comprome-
ter a saúde física e psíquica e a própria capacidade de apren-
dizagem (2016, p. 25)

A necessidade de formação para lidar com a temática de gênero fica


evidente também quando os sujeitos trazem a violência com a qual as meninas
são tratadas. Um fato interessante é que as três docentes mulheres trouxeram
essa questão, de forma bastante contundente, dando indícios de se incomoda-
rem bastante com o fato. Nos questionamos se isso acontece em função dessa
realidade ser vivida por elas também, em seu cotidiano. Uma das estratégias
para lidar com a situação é fortalecer a autoestima das crianças.
O desrespeito com a mulher começa tão cedo que eu acho que eles nem se
lembram, sabe? Eu não vejo muito preconceito com os meninos que não se
assumiram [homossexuais], sabe? Quem não se assumiu, não se assumiu,
então ele não é viado, que é assim que os meninos conversam, né? En-
tão, assim, eu vejo um respeito grande por parte dos meninos, agora, com
as meninas…! Zero! Claro que as palavras duras são muito ruins, mas eles
usam de força com as meninas, sabe? Batem nas meninas dentro da esco-

108
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

la, imagina fora? Quando a gente consegue, intervém, porque são meninos
maiores que a gente. E aí isso é tão enraizado que às vezes a gente vai xin-
gar os meninos e as meninas defendem os meninos. Porque isso é o costume
deles. Eles tão ali na casa deles, acontece a mesma coisa, isso é uma coisa
natural pra eles, infelizmente! Mas assim, sempre que a gente pode, a gente
intervém. Mas isso é uma das piores coisas que eu vejo na educação, a falta
de respeito com o próximo - (Mariana).
Eu valorizo essa autoestima dos meus alunos, eu mostro pra ela que, en-
quanto menina, enquanto mulher e tal, ela tem o direito de ser respeitada e
ser o que ela quiser. Falo demais com os meninos essa questão do respeito a
elas. De que tudo tem o seu limite, né? De brincar junto, mas brincar junto
é respeitar... - (Zenira).
Elas têm que aprender a se achar bonita, sabe? Eu acho que mulher... Ho-
mens também, mas as mulheres principalmente, têm que se achar bonita, a
gente tem que ser feliz com a gente mesma, com o nosso corpo, com a nossa
aparência, porque já inventaram tantos padrões pra gente, pra nos oprimir,
que agora é hora de se libertar e se achar bonita do jeito que você é - (Lídia).

Algumas reflexões
Neste trabalho, não tivemos intenção de aprofundar sobre as ques-
tões trazidas pela prática docente, mas abordar as condições que atuam nos
processos de identificações dos sujeitos pesquisados. Por ser a docência a
identidade que mais aparece nas narrativas, percebemos que é uma face que
toma conta de boa parte da vida dos sujeitos. Além disso, pudemos perceber
que a formação ético-estética pode contribuir para uma prática mais sen-
sível, que seja capaz de acolher as particularidades que a vivência escolar
aciona. E ainda, defendemos a ideia de que uma formação sensível amplia
as possibilidades de deslocamento do saber, do olhar, da atenção, abrindo
outros horizontes, outras maneiras de compreender o mundo, de compre-
ender o outro. O outro estudante, o outro colega, o outro pertencente à co-
munidade escolar age, dessa maneira, como um outro provocador que pode
mobilizar o aprendizado de si e a compreensão de mundo.
Notamos, todavia, que é imprescindível conhecer formas para lidar
com os desafios como os que os sujeitos trouxeram como cotidianos de sua
prática educativa. Diante de uma realidade cada vez mais complexa, não
cabem mais noções congeladas sobre as manifestações da vida, sobre as
diversas formas de viver existentes.
Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só
poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em con-
junto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma

109
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos


direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agir-
mos em função desses direitos (BAUMAN, 2003, p. 134).

A escola é local fecundo para que uma variedade de identificações se


manifeste e seja acolhida integralmente, garantindo os direitos dos sujei-
tos que nela transitam. Dessa maneira, pode existir como uma comunida-
de, que reforça os laços e protege os indivíduos a ela pertencentes.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual.


Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 141p.
BRITZMAN, Deborah. Curiosidade, sexualidade e currículo. In: LOURO,
Guacira (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 176p.
CHAVES, Rodrigo Cornejo; GARRIDO, Manuel Parra. Condições
psicossociais do trabalho. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.;
VIEIRA, L. M. F. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente.
Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e Educação - Figuras do
indivíduo-projeto. 2. ed. Natal – RN: EDUFRN, 2014.
FANFANI, Emilio Tenti. Condição docente. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE,
A. M. C.; VIEIRA, L. M. F. DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição
docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. CDROM.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003. 434p.
HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum. Ensaios sobre
educação ético-estética. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. 176p.
JOSSO, Marie-Christine. As histórias de vida como territórios simbólicos
nos quais se exploram e se descobrem formas e sentidos múltiplos de
uma existencialidade evolutiva singular-plural. In: PASSEGI, Maria da
Conceição (org.). Tendências da pesquisa (auto)biográfica. São Paulo:
Paulus, 2008. p.23-50.
LOPES, José de Sousa Miguel. A língua das mariposas: a infância perdida.
In: TEIXEIRA, I.; LARROSA, J; LOPES, J. S. (orgs.). A infância vai ao
cinema. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 256p.
LOURO, Guacira. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, Guacira (org.).
O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010. 176p.

110
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

MONTEIRO; Mariana K.; ALTMANN, Helena. Homens na educação


infantil: olhares de suspeita e tentativas de segregação. Cadernos de
Pesquisa, v. 44, n.153, p. 70-741, jul./set. 2014.
OLIVEIRA, Valeska Maria F. de. Sobre “O Cuidado de Si”, Formação e
Experimentações Autobiográficas. In: DIAS, Cleuza M. S.; PERES, Lúcia M.
Vaz (orgs.). Pesquisa (Auto)Biográfica: Temas Transversais. Porto Alegre:
EDIPUCRS; Natal: EDUFRN; Salvador: EDUNEB, 2012. p. 301-321.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas
reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História: Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados de História, [S.1], v. 15, set. 2012.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/11215/8223.
Acesso em: 02 mar. 2019.
RABELO, Amanda O. Professores discriminados: um estudo sobre os
docentes do sexo masculino nas séries do ensino fundamental. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 4, p.907-925, out./dez. 2013.
SANTANA, Bianca. Quando me descobri negra. São Paulo: SESI-SP
Editora, 2015. 96p.
SAYÃO, Deborah Tomé. Relações de gênero e trabalho docente na
educação infantil: um estudo de professores em creche. Tese (doutorado).
Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2005.
SOUSA, Renata Floriano. Cultura do estupro: prática e incitação à violência
sexual contra mulheres. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p.
9-29, jan./abr. 2017.
SOUZA, Elizeu C. Autobiografia como acontecimento: vida, pesquisa e
formação. In: ABRAHÃO, M. H. M. B; FRISON, L. M. B.; MAFFIOLETTI,
L. A.; BASSO, F. P. (orgs.) A nova aventura autobiográfica. Tomo III. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2018. 462p.
TEIXEIRA, Inês A. C.; PÁDUA, Karla C. “Despertar o vivido e a sua
intensidade imaginativa”: o trabalho com narrativas em pesquisa. In:
ABRAHÃO, M. H. M. B.; CUNHA, J. L.; BÔAS, L. V. Pesquisa (Auto)
biográfica: diálogos epistêmico-metodológicos. Curitiba: CRV, 2018.
p.257-270.
WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira (Org.). O
corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2010. 176p.

111
CAPÍTULO 5

RODA DE NARRATIVAS: ENTRE A PEDAGOGIA


DA RODA E A DOCUMENTAÇÃO NARRATIVA

Fábio Júnio Mesquita (UEMG)


Karla Cunha Pádua (UEMG)

Introdução
Este texto resulta da dissertação de Mestrado em Educação, desen-
volvida na Universidade do Estado de Minas Gerais1, com origem no inte-
resse em ter as narrativas das experiências de jovens contadas e recontadas
por eles/as próprios/as.
A proposta nasceu ao longo do ano de 2018, quando iniciamos os estu-
dos sobre as possíveis aproximações entre a “Pedagogia da Roda”, praticada
pelo Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, o CPCD, na cidade de
Araçuaí, no nordeste mineiro, e a “Documentação Narrativa de Experiên-
cias Pedagógicas”, experienciada por Daniel Suárez e outros/as professores/
as pesquisadores/as. No trabalho, a Pedagogia da Roda foi investigada por
meio da articulação entre a Documentação Narrativa de Experiências Peda-
gógicas e a roda de narrativa como a metodologia resultante do mergulho
em todas essas teorias, práticas e experiências. Por meio desse recorte, en-
trevistamos oito jovens que participam de projetos do CPCD, sendo quatro
de cada sexo, com idades entre 16 e 27 anos de idades.
Neste entendimento, para estabelecer as possíveis relações e dese-
nhar o que veio a ser as “rodas de narrativas”, foi primordial compreender,
separadamente, as entrevistas narrativas, a Pedagogia da Roda e a Docu-
mentação Narrativa de Experiências Pedagógicas. Diante disso, expomos
sucintamente cada um destes tópicos com vistas a ampliar o conhecimento

1 Com o título: O espaço onde a conversa rola”: Pedagogia da Roda e narrativas juvenis em Araçuaí-MG, a pesquisa
investigou como a Pedagogia da Roda e a cultura popular cooperam com as práticas não formais de aprendizado
propiciando possíveis transformações e participação social dos jovens de Araçuaí – MG através dos projetos sociais do
CPCD. Esta pesquisa contou com bolsa da Capes.

113
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

sobre os mesmos e facilitar a compreensão de como foram empregados


para a construção das rodas de narrativas.
De várias formas, é pulsante neste escrito o desejo de tornar público
parte do que colhemos ao longo desses anos de aproximações e distan-
ciamentos com essas metodologias. Escrever este texto de forma corrida
poderia parecer confuso ou, ainda pior, vago, superficial demais por ter
muito a dizer e não se aprofundar em nada. Portanto, uma escrita norteada
por perguntas pode dar conta de condensar todas essas informações em ni-
chos e contemplar o maior número de indagações neste trabalho. Questões
essas, que motivaram e ainda estimulam nossas pesquisas. Ao longo deste
texto buscamos responder perguntas como: Por que a escolha pelas entrevis-
tas narrativas? Como acontece a Pedagogia da Roda? O que é a Documentação
Narrativa de Experiências Pedagógicas? Quais as principais relações estabeleci-
das na construção das Rodas de Narrativas? Como foi a nossa experiência com
as Rodas de Narrativas?

Por que a escolha pelas entrevistas narrativas?


De modo geral, buscamos investigar as relações de jovens com a Pe-
dagogia da Roda, no sentido de entender como as suas vivências se entrela-
çavam. Além de outros métodos, identificamos que ouvir dos/as próprios/
as pesquisados/as sobre as suas experiências, seria de grande valor para a
pesquisa. Nesse contexto, as entrevistas surgem como uma possibilidade
viável para o andamento da investigação.
Ao escolhermos as entrevistas como um instrumento para coletar
informações, as pensamos a partir de Lakatos e Marconi (2003), entenden-
do esse processo como o encontro entre pessoas, a fim de que uma delas
obtenha informações a respeito de um assunto, mediante uma conversação
de natureza profissional.
Os/as jovens que integram a Pedagogia da Roda possuem diferentes
interpretações do mundo, o mesmo também ocorre com o/a pesquisador/a,
como observou Geertz (1998, p. 89), “o que ele [o pesquisador] percebe, e
mesmo assim com bastante insegurança, é o ‘com que’, ou ‘por meios de
que’, ou ‘através de que’ (ou seja, lá qual for a expressão) os outros perce-
bem”. Considerando que os/as entrevistados/as são sujeitos portadores de
várias possibilidades e desejos, um ser multifacetado, vale lembrar que:
Comunidades, grupos sociais e subculturas contam histórias
com palavras e sentidos que são específicos à sua experiência
e ao seu modo de vida. O léxico do grupo social constitui sua
perspectiva de mundo, e assume-se que as narrativas preser-
vam perspectivas particulares de uma forma mais autêntica
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2003, p. 91).

114
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Cientes disso, nesta pesquisa, nós trabalhamos com o ponto de vista


dos/as jovens que vivenciam a Pedagogia da Roda, extraindo da “experiên-
cia-próxima” de cada sujeito a “experiência-distante”, como ensina Geertz
(1998). As histórias desses/as jovens se tornaram a principal matéria de
análises, possibilitando os desdobramentos da pesquisa. Por experiências
entendemos, aqui, na perspectiva de Larrosa como aquilo “[...] que nos
passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca” (BONDÍA, 2002, p. 21), algo que se entrelaça na
história de vida, onde os narradores são os atores dela e não espectadores.
Nesta direção, partimos para a definição da tipologia das entrevistas,
ou seja, por qual motivo escolhemos as entrevistas narrativas? Diante das
muitas possibilidades de entrevista e sem nenhuma relação hierárquica
entre elas, tornou-se necessário selecionar qual delas melhor atenderia a
nossa pesquisa. Para tanto, a justificativa apresentada a seguir foi deter-
minante para a escolha:
Vem se destacando, recentemente, nos domínios da pesquisa
qualitativa, uma vertente metodológica que se discute a utili-
zação não somente de narrativas (de um modo geral e em suas
variadas formas), mas a entrevista narrativa, especificamente,
para a abordagem de mundos individuais de experiência ou
experiências subjetivas, como alternativa às outras modalida-
des de entrevista, tal como a semi-estruturada. Visto que nem
sempre estão claras e evidentes as particularidades, diferen-
ças e condições de realização de uma ou outra modalidade de
entrevista, e considerando o conhecimento incipiente sobre a
entrevista narrativa [...] (TEIXEIRA; PÁDUA, 2006, p. 05).

Neste entendimento, optamos definitivamente pela entrevista narra-


tiva. Justamente por compreender que mais oferece meios para responder
o nosso problema de pesquisa. Além de Teixeira e Pádua (2006) também
conversamos com Silva e Pádua (2010) que, em consonância, desenvolve-
ram sobre essa metodologia, entendendo-a como uma forma discursiva
que melhor recupera as interpretações dos sujeitos entrevistados sobre
eles próprios, os outros e o mundo. Diferentemente de outros tipos de en-
trevista, na narrativa conta-se apenas com uma pergunta, conhecida como
“pergunta gerativa”, que tem a missão de estimular um relato do entre-
vistado, com começo-meio-fim ou situação-transformação-situação, como
Silva e Pádua (2010) nos ensinam.
Lendo outros materiais, encontramos o trabalho de Sandra Jovche-
lovitch e Martin W. Bauer (2003), no qual, após terem duas experiências
satisfatórias com as entrevistas narrativas, decidiram tornar público as
suas recomendações pelo uso da técnica, juntamente com a tradução e a
sistematização de Schütze com algumas elaborações próprias dos tradu-

115
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

tores. Nesta perspectiva, Jovchelovitch e Bauer (2003, p. 97) construíram


e expuseram uma tabela em que elencam as quatro “fases principais da
entrevista narrativa”. Além da Preparação, são elas; Iniciação; Narração
Central; Fase de Perguntas; e Fala conclusiva. Em cada uma destas fases,
um conjunto de regras precisa ser respeitado para garantir a efetividade
da técnica empregada e melhor coleta de informações acerca da pergunta
lançada ao entrevistado.
Os olhos atentos aos escritos de Jovchelovitch e Bauer (2003) aco-
lhiam o conhecimento apresentado para cada etapa. Primeiramente, a en-
trevista narrativa exige um estudo antecipado acerca do campo de estudo
em que o pesquisador se propõe a investigar, por meio da “exploração do
campo”. Somente após esta sondagem, ocorrerá a formulação de questões
exmanentes2; aqui, “o ponto crucial da tarefa é traduzir questões exmanen-
tes em questões imanentes, ancorando questões exmanentes na narração, e
fazendo uso exclusivamente da própria linguagem do entrevistado” (JO-
VCHELOVITCH; BAUER, 2003, p. 97). Estas duas etapas compõem a pre-
paração da entrevista.
Na fase da Iniciação, a formulação do tópico inicial para a narração é
o ponto central da fase. Para que possibilite a narração do/a entrevistado/a,
Jovchelovitch e Bauer (2003) sugerem que, inclusive, auxílios visuais sejam
empregados, porém indicam o problema de segmentar a narração com co-
meços e fins esperados pelo pesquisador. Nesse sentido, outra orientação
parece mais sensata, tendo como chave a “[...] elaboração de uma boa ques-
tão gerativa capaz de provocar uma narração do sujeito, cujos aspectos
relevantes podem representar para os/as narradores/as algo muito além do
que representará para a pesquisa e o conhecimento da vida social” (TEI-
XEIRA; PÁDUA, 2006, p. 03).
Na segunda fase, continuam Jovchelovitch e Bauer (2003), a “narra-
ção central”, deve-se deixar o/a entrevistado/a a vontade para contar sua
história. Ao/À pesquisador/a cabe apenas o encorajamento não verbal para
que o sujeito continue a narração, não o interrompendo em hipótese algu-
ma, até que finalize sua fala.
Após a escuta atenta, chega a “fase de questionamento”. Neste
momento, “as questões exmanentes do entrevistador são traduzidas em
questões imanentes, com o emprego da linguagem do informante, para
completar as lacunas da história” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2003, p.
99). Embora nesta etapa sejam permitidos os questionamentos, as pergun-
tas do tipo “por quê?” devem ser evitadas; assim como as perguntas que

2 As questões exmanentes são as questões da pesquisa ou de interesse do/a pesquisador/a que surgem a partir da
sua aproximação com o tema a ser pesquisado. As questões imanentes são temas e tópicos trazidos pelo informante.
Parte do trabalho do/as pesquisador/a é transformar as questões exmanentes em imanentes, sempre utilizando a
linguagem do/a entrevistado/a.

116
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

lembrem um interrogatório ou questionário. Também não é espaço para


discutir contradições, dar opiniões ou fazer perguntas sobre atitudes do
narrador diante de alguma situação.
Na última fase, “a fala conclusiva” após desligar os equipamentos de
gravação, outras informações podem ser trazidas à luz pelo/a entrevistado/a.
Elas devem ser anotadas em um diário de campo ou um formulário espe-
cial para sintetizar as informações, a fim de não perder nada que foi conta-
do (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2003). São permitidas perguntas do tipo
“por quê?” para elucidar pontos que não foram aprofundados mesmo após
as outras tentativas.

Como acontece a Pedagogia da Roda?


Antes de contar como essa pedagogia é praticada atualmente, é vá-
lido tratar de seu início, das contribuições inspiradas em Paulo Freire,
tanto pelos Círculos de Cultura como pelas Pedagogias do Oprimido e da
Autonomia. As práticas do CPCD trazem em seu contexto este educador
em especial, que é conjugado como o verbo “paulofreirear”, cunhado e
aplicado na ONG, orientando a práxis dos/as envolvidos/as na instituição.
Acreditando que discutir protagonismo do jovem, junto ao próprio jovem,
é um processo de conscientização; é trazer ao oprimido a consciência de
que ele pode mais (FREIRE, 2015). Essa relação do CPCD com Freire surge
em uma conversa com algumas professoras que estavam experimentando
outros modos de fazer a educação – a saber, aulas na rua, embaixo de uma
árvore – na ocasião, uma comentou:
– “Engraçado, eu pensei que os meninos fossem virar uma fumaça,
lá debaixo da árvore, pois na sala eles só ficam falando “tia, posso ir no
banheiro”, “tia, posso ir lá fora”, “tia...”; eu pensei ‘lá fora, eles vão sumir’.
Aconteceu, porém, um negócio engraçado: eles ficaram mais atentos do
que normalmente. Eu não precisei chamar a atenção, nem gritar. Eles esta-
vam mais disciplinados do que quando estão na sala. Parece que havia uma
disciplina assim... na cabeça deles...”
– Disciplina como, professora? Provocamos nós.
– “Disciplina... assim... disciplina... intelectual”, ela conseguiu sinte-
tizar depois de algum tempo. Foi a oportunidade que queríamos. Tomamos
um livro, abrimos e entregamos para esta professora ler. Ao ler, comentou:
– “Hum, cansei de ler este cara e nunca entendi nada... hum! Paulo
Freire...” E então leu o seguinte: “... só há aprendizagem quando há disci-
plina intelectual, vontade, interesse...” - Pronto! Professora, pode devolver
o livro! Dissemos-lhe.
– “Ah, então é isso?! Não sabia!”, concluiu ela.

117
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Naquele momento, “descobrimos a pólvora”: Paulo Freire não é para


ser lido, mas sim para ser praticado. E foi dessa experiência que brotaram,
como que naturalmente, os princípios metodológicos de nossa proposta:
– Como praticar Paulo Freire?
– Como transformar seus conceitos em atividades?
– E o mais elementar de seus conceitos, a coluna vertebral de sua
metodologia: ação - reflexão - ação. Como fazer isso?
Pronto! Acabamos de descobrir (ou reinventar) a roda. A roda seria
o início e o fim de nossos trabalhos. Seria o nosso jeito de praticar “ação-
-reflexão-ação” (ROCHA, 2000, p. 26).
Tião Rocha, um dos fundadores dessa ONG, narra assim o surgimen-
to do interesse pela roda e a consolidação da prática freireana no cotidiano
do CPCD. A partir de então, começava a florescer a Pedagogia da Roda.
Proposta que é realizada por intermédio do círculo, “[...] a figura geométri-
ca que melhor sintetiza uma relação de equilíbrio e harmonia” (ROCHA,
2000, p. 27), para isto é necessário que a roda não apresente irregularida-
des: todos/as precisam estar acomodados/as e confortáveis; todos/as devem
conseguir ver os demais participantes da Roda; Não existe alguém que não
tenha algo a aprender com os demais. Enfim, trata-se de um espaço de
colaboração de saberes entre pessoas com diferentes culturas, mas em re-
lações de igualdade, e que guarda proximidades claras com os Círculos de
Cultura, de Paulo Freire (1992).
Nesse girar, a roda torna-se lugar de fazer educação, “assim não cabe
ao professor apenas transmitir o que ele sabe ou o que já se encontra sis-
tematizado, e sim compreender conceitos e vivências reveladas pelos alu-
nos a partir de seu universo sociocultural” (BREGUNCI, 1996, p. 47). Ela
é o espaço de compartilhamentos e aprendizagens múltiplas por parte de
todos os envolvidos. Nesse entendimento, Tião Rocha (2000, p. 28) afir-
ma que na Pedagogia da Roda, “[...] todos os que participam da roda são
educadores, independentes da idade, altura, sexo, etc.” percebendo nesse
espaço, a abertura para contribuírem de forma coletiva e permanente. Nas
palavras de Paulo Freire, a roda é o lugar que oportuniza ao educando “[...]
participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do sa-
ber de pura experiência, que leve em conta as suas necessidades e o torne
instrumento de luta possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua
própria história” (FREIRE, 1991, p. 16).
A roda impulsiona a educação, “algo que só acontece no plural”
como bem dito por Tião Rocha, para quem “não há educação no singular,
pode haver ensino, mas não educação. Esta só acontece quando o ‘eu’ e o
‘ele’ estabelecem processos e relações de troca. Ela só acontece, portanto,
quando o ‘nós’ ou o ‘eles’ constroem laços de parceria, conluio, troca, re-

118
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

ciprocidade” (ROCHA, 2000, p. 27). Caso não exista esta troca de saberes,
Tião Rocha entende que os interlocutores estão trocando “seis por meia
dúzia”, como já ensinava o ditado. É o mesmo que dizer que não houve uma
troca verdadeira, não existiu uma relação de educação entre os/as envolvi-
dos/as. Apenas uma das duas partes aprendeu, ou talvez nenhuma tenha
aprendido, visto que o que lhe fora ensinado não encontrou boa recepção
no outro, e acabou sendo descartado, como em uma conversa qualquer.
Conscientes de não falar para o outro, mas falar com o outro (FREI-
RE, 1989), os jovens se reúnem. Atividade que requer alguns cuidados por
parte do educador que irá mediar a roda para não correr o risco de “conver-
ter-se num bate-papo desobrigado que marcha ao gosto do acaso” (FREI-
RE, 1992, p 118). Sendo só um dos desafios diante da Pedagogia da Roda,
que se bem executada promove avanços nas trajetórias dos jovens que a
integram. É nas rodas que:
[...] o ouvir o outro ajuda educandos e educador a perceber que
as experiências, as vivências, as opiniões e modos de ser são
diferentes para cada pessoa. O outro se torna um espelho com-
posto por muitos outros espelhos a refletir as individualidades
que estão em constante formação. A valorização e o respeito
a opinião do outro vão sendo então construídos por meio de
trocas que se estabelecem entre educandos e educadores. Nas
trocas de olhares, percepções, gestos, falas, curiosidades, me-
dos, inseguranças, risadas... É que cada um vai significando
sua identidade, percebendo-se integrante e integrador de um
grupo. São também, esses momentos que possibilitam o reco-
nhecimento da existência do eu e do outro. (ZANINI; LEITE
apud KONRATH, 2013, p. 28).

Esta sensação de pertencimento ao grupo é vital aos jovens, um es-


paço onde se pode afirmar e expressar sua identidade. E “é o nível do grupo
social, no qual os indivíduos se identificam pelas formas próprias de viven-
ciar e interpretar as relações e contradições, entre si e com a sociedade, o
que produz uma cultura própria” (DAYRELL, 2003, p. 43). E essa cultura
própria não só é de extrema importância, como também é um fator motiva-
dor para a transformação política e cultural, ao entender que ele reconhece
suas origens e conscientiza-se daquilo que teve que enfrentar até o presen-
te momento (FREIRE, 1979), de forma a corroborar para mais tantas outras
realizações da Pedagogia da Roda.
Para além de todas estas contribuições à sociabilidade juvenil, no
CPCD, é também na roda que se planeja a pauta de trabalho seja ela diária,
semanal ou quinzenal dependendo de cada atividade e grupo. A pauta é
planejada na roda para conter a contribuição de todos/as os/as participan-
tes. A roda não exclui. Todas as opiniões e sugestões são valorizadas, sem

119
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

a existência de exclusões, seleção ou votação, cabendo ao grupo o consen-


timento das propostas a partir da definição de prioridades (ROCHA, 2000).
Após a pauta ser realizada, parte-se para a sua efetivação, seja estu-
dar algo, construir alguma coisa, se estimular com um jogo, etc. Após esta
fase, ocorre a avaliação das atividades que foram anteriormente pautadas,
seguido do registro da memória. É assim que finda no CPCD o processo
“ação-reflexão-ação” (ROCHA, 2000) até que um novo se inicie conside-
rando as construções que emergiram dos processos anteriores.
São estas “[...] rodas de avaliação [que] possibilitam medir os graus
de envolvimento, prazer, participação, os ritmos e os tempos do apren-
dizado, bem-estar e crescimento do grupo” (ROCHA, 2000, p. 28). Estas
avaliações ocorrem por intermédio de diferentes registros, seja ele escri-
to, falado, cantado, contado, desenhado, pintado, medido ou de qualquer
outra forma. O registro possibilita ter a memória e a história do projeto,
paralelamente. Atividade que permitiu ao longo dos anos a gradativa sis-
tematização de técnicas, instrumentos e indicadores de impactos, resulta-
dos, fracassos e êxitos, foi o aperfeiçoamento da Pedagogia da Roda que
permitiu a inclusão “[...] no repertório metodológico dos nossos projetos os
planos de trabalho e avaliação (PTA) e os sofisticados indicadores de qua-
lidade de projetos sociais (IQPS), [...]” (ROCHA, 2000, p. 28). Desta forma,
a Pedagogia da Roda demonstra potencial a ser explorado além de uma
atividade isolada em sala de aula.
Seja dentro do galpão, ao ar livre, nas casas ou na rua, a Pedagogia da
Roda se materializa no círculo, reunindo pessoas de diferentes idades, se-
xos, etnias, extratos sociais e níveis de escolaridade com um único propó-
sito: aprender permanentemente, enquanto fortalecem os laços culturais
que identificam aquele grupo, reconectando-os aos seus antecessores, seja
pelo resgate de uma dança, uma cantiga, uma receita... Na roda, o diálogo
e a não-exclusão são os meios para se resolver os problemas que surgem,
para propor atividades e sugerir mudanças. Em roda, cada sujeito possui
uma maneira diferente de ver a realidade que o cerca daquele lugar em que
está posicionado, e por meio da horizontalidade que é construída, todos/
as sabem que seu ponto de vista importa, sua fala interessa para que ações
sejam pensadas e transformadas (CPCD, 200-?c).
Assim a Pedagogia da Roda se transformou no ponto de partida
do CPCD para toda ação a ser desenvolvida, conciliando a resolução de
problemas e inovações criativas, ao passo que permite ao/à educando/a e
educador/a participarem coletivamente das construções de saberes. Tam-
bém é utilizada para refletir e avaliar o processo, a fim de aperfeiçoar o
projeto para fazer futuras aplicações com maior eficácia e menor custo.

120
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

O que é a Documentação Narrativa de Experiências Pedagógicas?


Além de tudo aquilo que foi absorvido sobre a Pedagogia da Roda no
CPCD e as experiências de Jovchelovitch e Bauer (2003), encontramos ou-
tras propostas pedagógicas, de um professor e pesquisador vindo do outro
lado da fronteira, na Argentina. Sob a coordenação do professor Daniel Su-
árez, embaladas por textos do patrono da educação brasileira, Paulo Frei-
re, e outros pensadores, como Freud (SUÁREZ; OCHOA; DÁVILA, 2003),
Freinet, Rousseau, Makarenko e Pestalozzi (SUÁREZ; OCHOA, 2005), co-
nhecemos o trabalho desenvolvido por ele com docentes da América latina.
Tomamos conhecimento da Documentação Narrativa de Experiên-
cias Pedagógicas, o nome dado aos círculos promovidos por Suárez e ou-
tros/as professores/as pesquisadores/as, uma experiência que vai além da
simples escrita ou diálogo. Os participantes são convidados e estimulados
a escrever, revisar, discutir, indagar, comentar e reescrever as palavras que
usam e as que não foram pronunciadas para dar conta do mundo em que
habitam e para dar sentido a suas práticas (FUENTE; SUÁREZ, 2007). Esta
proposta almeja a Autoformação; ao passo que produz a Co-formação, or-
ganizando a produção do saber para além do campo acadêmico e influen-
ciando diretamente a prática docente. Gera, ainda, relações de horizonta-
lidade, levando os integrantes da atividade a assumirem o protagonismo;
com intuito de possibilitar outras formas de produção de conhecimento
acadêmico, que, ao contrário da proposta, é um espaço mais hierarquizado.
De modo sucinto, a documentação começa pela seleção de experi-
ências a documentar e a construção de narrativas pelo/a professor/a sobre
problemáticas do que se pretende indagar. Em um segundo momento, bus-
ca a mediação desses escritos por meio dos comentários dos outros par-
ticipantes do coletivo de narradores que lêem e interpretam os sucessivos
relatos. Nesse processo contínuo de reescrita, os/as escritores/as tornam-
-se cada vez menos ingênuos/as com o processo. O resultado é uma descri-
ção densa da experiência.
Assim, com as conversas sobre as narrativas produzidas, surge a “espi-
ral hermenêutica” cada vez mais complexa, fruto desse processo de recons-
trução narrativa da experiência. Na medida em que se reescreve-lê-indaga-
-comenta-reescreve – a práxis da escrita – se atinge a última versão do relato.
Contudo, antes que os relatos possam vir a público, o grupo os acompanha e
protege até que sejam discutidos os termos da sua publicização.
Após os termos serem discutidos, o relato privado ou coletivo se tor-
na público, e intervém no debate pedagógico sobre a educação. O/a docen-
te é visto e se vê como sujeito autoral da pesquisa narrativa, como prota-
gonista. Por fim, as documentações são disponibilizadas em circuitos de
leitura e são os/as próprios/as autores/as que decidem o que vão fazer e
onde divulgar o material produzido: se em programas de rádio, congressos

121
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ou outros formatos. Esta etapa é muito importante porque completa o ci-


clo de desenvolvimento profissional, além de extrapolar o espaço da escola
e se conectar a outras redes de pesquisadores/as e educadores/as.
Fomos apresentados à experiência de documentação narrativa em
duas palestras de Daniel Suarez, nos dias 11 e 13 de abril de 2018, eventos
que fizeram parte da programação da disciplina interinstitucional entre
a UEMG e UFMG: Narrativas na Pesquisa em Educação. Faremos aqui
uma síntese dos temas desses encontros que mais nos marcaram, a ponto
de incluí-lo na metodologia da pesquisa.
O primeiro diz respeito ao fato de que esta estratégia de trabalho
com narrativas pedagógicas e autobiográficas constitui um dispositivo
metodológico de pesquisa, de formação e de intervenção. Ao favorecer a
escrita e a escuta de narrativas sobre o que se faz na escola ou em outros
espaços educativos, permite a expressão de outros dizeres e sentidos, pos-
sibilitando o diálogo, a conversação e o compartilhamento de experiências
que geram horizontes comuns.
Dessa forma, o processo de autoformação e de co-formação por meio
de narrativas, torna possível construir outras histórias, ditas e escritas com
outras palavras e perspectivas. Além de produzir conhecimentos, gera re-
lações de horizontalidade e devolve o protagonismo aos sujeitos que nar-
ram e compartilham suas narrativas. Nesse sentido, o trabalho com nar-
rativas, seja com jovens, seja com professoras, participa do movimento de
virada hermenêutica que desafia a Universidade a incorporar os sujeitos e
os sentidos que dão ao que vivem.
Um segundo tema que gostaríamos de destacar é acerca da produti-
vidade das narrativas escritas e reescritas. Na documentação narrativa, os
relatos vão se elaborando ao longo de um processo mediado pela indagação
e pela leitura interpretativa dos colegas. Nesse sentido, acontece em um
círculo espiral hermenêutico no qual a narrativa escrita é lida para o gru-
po, o grupo tece comentários, o que desencadeia novas reescritas, em um
movimento que permite o aprofundamento da interpretação. Todo o pro-
cesso tem início com a seleção de experiências a indagar e a documentar.
Aqueles que participam do coletivo de narradores que leem e in-
terpretam os sucessivos relatos uns dos outros, vão se tornando cada vez
menos ingênuos e a espiral hermenêutica vai se tornando cada vez mais
complexa, assim como a descrição cada vez mais densa das experiências.
Tais processos tornam-se ricos, porque incluem aspectos da vida
ainda não documentados, construindo para a produção de formas inéditas
de saber inéditas. Assim, além de reconhecer a capacidade de narração e
de habilitar a palavra legítima dos sujeitos pesquisados, o processo acaba
por implicá-los no processo de transformação de si mesmos e do mundo.

122
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Outro tema incluído nesse debate é sobre a publicação dos traba-


lhos, nos quais os/as próprios narradores/as se encarregam de escolher o
formato e de divulgá-los. Antes de chegar a essa etapa, entretanto, o grupo
acompanha e protege o relato até que ele possa vir a público e discutir
os termos da sua publicidade. Essa etapa é considerada muito importante
porque completa o ciclo de desenvolvimento profissional, podendo alcan-
çar outras redes, para além do grupo e da localidade.
Dessa forma, no processo de reconstruir narrativas da experiência,
os/as narradores/as vão se descobrindo sujeitos autores/as da pesquisa nar-
rativa e a pesquisa se transforma em formação e em ação/intervenção. Ao
contribuir para a superação de relações de subordinação e retirar os/as
narradores/as do anonimato, o processo de documentação narrativa acaba
por constituir uma alternativa contra-hegemônica e de reconhecer outras
formas produtivas de saber e de nomear o mundo.

Quais as principais relações estabelecidas na construção das Rodas de


Narrativas?
Uma vez entendido o que são as narrativas, a Pedagogia da Roda e
as Documentações Narrativas de Experiências Pedagógicas, iniciamos o
processo de planejamento do que veio a se tornar as Rodas de Narrativas.
Nesse processo, algumas relações foram se estabelecendo organicamente,
outras a partir de nossas insistências.
No primeiro momento, foi notável as aproximações das entrevistas
narrativas com as Documentações Narrativas de Experiências Pedagógi-
cas. Os nomes já nos dizem o suficiente, ambas se propõem a acessar as
narrativas de determinados indivíduos. Enquanto as entrevistas narrati-
vas aceitam qualquer sujeito e quaisquer que sejam as suas experiências,
as “documentações das narrativas” foram desenhadas especialmente para
colher as “experiências pedagógicas”. Com foco em experiências pedagó-
gicas, vivenciadas por jovens estudantes, e não por docentes, iniciou-se a
nossa primeira insistência.
Basicamente, precisávamos pensar nas possibilidades de incenti-
var esses/as jovens a documentar as suas experiências com a Pedagogia
da Roda. Ao passo que praticamos tal exercício, emergimos em uma nova
aproximação: à Pedagogia da Roda e as Documentações Narrativas de Ex-
periências Pedagógicas. Comecemos pela teoria ou, se preferir, pelo te-
órico. Como já dito, ambas as metodologias partem da leitura e prática
comum de Paulo Freire, obviamente acrescidas de tantas outras referên-
cias. Ao nos determos um pouco mais nessa informação, observamos outra
relação estabelecida entre elas: o uso do círculo, das rodas como espaço
para formação, coformação e autoformação.

123
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Neste sentido, ao buscarmos uma estratégia que estimulasse os/as


jovens a compartilhar as suas experiências, de modo co-formativo e auto-
formativo, vimos nas rodas uma alternativa real a ser tentada. Uma roda
que incentiva as narrativas juvenis tendo por princípio a horizontalidade,
presente tanto na Pedagogia da Roda, como nas Documentações Narra-
tivas de Experiências Pedagógicas, através das contribuições do próprio
Freire, de Freinet, Makarenko e Pestalozzi. Assim como essa Pedagogia
incentiva os participantes da roda a falarem, compreendemos que as Ro-
das de Narrativa seriam um ótimo espaço para que os/as entrevistados/as
pudessem partilhar as suas experiências. Também através deste método
as narrativas poderiam ser aprofundadas pelos/as próprios/as jovens, uma
vez que as vivências compartilhadas seriam comentadas pelas várias visões
percebidas de diferentes olhares.
De modo geral, esses foram os principais aspectos cruzados por nós,
tanto os de natureza teórica, como os de técnica, buscando em cada uma
das metodologias a possibilidade de incentivar os/as jovens a narrarem as
suas experiências com a Pedagogia da Roda. Nesse movimento de aproxi-
mação do conhecimento acadêmico e o empírico, buscamos ampliar as en-
trevistas narrativas para o coletivo, propondo o que chamamos de “rodas
de narrativas”. Ou seja, reunindo os/as jovens em roda, buscando estimular
suas narrativas e documentar tais experiências, refletindo sobre elas e ao
fim buscando formas de torná-las públicas. Nessa perspectiva, acredita-
mos que os/as jovens do CPCD poderiam utilizar as narrativas para des-
creverem suas experiências pedagógicas com a Pedagogia da Roda e, num
processo de reflexão coletiva, encontrar novas palavras para dizer sobre o
seu mundo e a sua vida no contexto em que vivem.
Todo este apanhado deu origem a nossa proposta de como seria a
Roda de Narrativas. A princípio, pensamos em convidar jovens que tives-
sem entre 16 e 22 anos de idade (pois acreditávamos que com o recorte
de 15 a 29 anos de idade teríamos muito mais jovens do que a pesquisa se
propunha a alcançar); fosse ativo/a no projeto do CPCD, ao menos há um
ano; e que se voluntariassem para nos oferecer suas histórias biográficas,
integrando as Rodas de Narrativas. Entretanto o intervalo de idades teve
que ser alargado chegando aos 27 anos de idade para contemplar o público
do CPCD, pois com a redução de orçamento da ONG, muitas vagas oferta-
das aos/às jovens de Araçuaí tiveram que ser fechadas.
De acordo com o planejamento, escolhidos os sujeitos da pesquisa,
iniciaríamos o processo. Reunidos em roda, os/as jovens poderão narrar
suas respectivas histórias, interpelados/as pela seguinte pergunta gerativa:
Cada um e cada uma de vocês, um por vez, claro, podem contar como a Pe-
dagogia da Roda está presente na sua vida, desde o seu ingresso no CPCD,

124
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

em outras atividades, em casa, na escola, enfim, em todos os espaços e


momentos que você se percebe reunido em círculo com outras pessoas para
praticar a Pedagogia da Roda?

Com o auxílio de gravadores e câmeras, autorizados pelo grupo, as


Rodas de narrativas seriam registradas, para compor o material de docu-
mentação das Rodas de Narrativa.
Em uma segunda etapa, os/as jovens seriam convidados/as a regis-
trar suas experiências e trajetórias de vida para analisarmos o potencial
educativo e transformador ou não da Pedagogia da Roda e de participação
nos projetos do CPCD na perspectiva de cada um dos participantes. Dessa
forma, teriam oportunidades de narrarem suas experiências, construírem
textos sobre suas vidas, lerem e discutirem coletivamente essas produções
e, por fim, reescreverem suas narrativas. Ao fim destes processos seria re-
alizada a discussão sobre publicização das narrativas.

Como foi a nossa experiência com as Rodas de Narrativas?


Para adentrarmos a essa resposta, cabe contextualizar o cenário en-
contrado à época da pesquisa. Ao chegar em Araçuaí, para dar início à
pesquisa, encontramos uma situação inusitada: a pesquisa que havia sido
pensada para ocorrer em três semanas no CPCD, 15 dias úteis, teve que
acontecer em apenas 9 dias, visto que os/as educadores/as haviam ficado
uma semana em viagem para outra cidade desenvolvendo novas técnicas
e naquela semana, eles/as estavam regularizando os trabalhos que haviam
ficado paralisados. Também haviam poucos/as jovens nas fabriquetas3,
posto que com a ausência de recursos financeiros, oriundos de parcerias
com grandes empresas e com o Estado, fez-se necessário a redução das
ocupações. Junta-se a isto, a necessidade de gerar renda através do próprio
trabalho, o que afastou os/as jovens da proposta da pesquisa, inclusive uma
das fabriquetas esteve funcionando durante todo o final de semana para
que fosse possível a entrega dos produtos encomendados. Ao visitar cada
projeto, a proposta era apresentada e o convite era feito aos/às presentes.
Das três fabriquetas em funcionamento em Araçuaí, foi possível vi-
sitar e convidar os jovens de duas: O Cinema Meninos de Araçuaí, três
jovens; e a Fabriqueta de Software, três jovens e uma jovem. Outras duas
jovens e um jovem foram convidados no Projeto Ser Criança. Também fo-
ram convidadas duas jovens da Loja Dedo de Gente, o espaço em que são
vendidos os artesanatos produzidos, sobretudo, pela terceira fabriqueta, a

3 De acordo com o próprio site institucional, “As fabriquetas são núcleos de produção de tecnologias populares,
com características e funções comunitárias, que visam o fortalecimento da renda familiar. São autossuficientes, e
encontram-se no estágio de expansão de produção e comercialização regionalizada, caminhando gradativamente para
sua autonomia administrativo-financeira, gerando renda e trabalho regular para os seus participantes” (CPCD, 200-?c).

125
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

que eu não visitei. Assim participaram das Rodas de Narrativas, oito jovens,
quatro de cada gênero, com idades entre 16 e 27 anos de idade. Sendo, 16, 17,
20 e 23 anos as idades das jovens; e 22, 22, 22 e 23 dos jovens que se volun-
tariaram para escreverem suas histórias. Além destes, um casal de jovens se
voluntariou para participar, vindo a desistir ao longo do processo, alegando
falta de tempo para desenvolver a escrita das narrativas, ambos trabalham
oito horas por dia e frequentam instituições de ensino noturno. Dois ou-
tros jovens que foram convidados para compor as Rodas de Narrativa não
aceitaram o convite, pois disseram estar sobrecarregados com os trabalhos
pendentes naquela semana, pois são cooperados e trabalham com registro
de microempreendedores individuais, recebendo por produção.
Com vistas a conhece mais essas duas fabriquetas, mais voltadas à
tecnologia digital, recorremos mais esta vez ao site institucional da ONG,
onde lemos:
A Fabriqueta de Softwares nasceu de um desafio: se a gente
faz artesanato, por que não pode fazer softwares no Vale do
Jequitinhonha? E assim foi.
Partimos do nada, lá em 2008, e hoje, a partir de formações
e muita pesquisa, aprendemos a fazer sites, blogs, bancos de
dados, jogos eletrônicos e gestão de redes sociais.
Com eles a gente tenta aproximar o TICs – Tecnologias de In-
formação e Comunicação dos TACs – Tecnologias de Acolhi-
mento e Convivência todo dia, nunca abandonando o processo
coletivo de criação e a perspectiva libertadora que a tecnologia
pode nos trazer (CPCD, 200-?b).

No mesmo site, há também, um breve histórico sobre o Cinema Me-


ninos de Araçuaí e a Fabriqueta de Produção Audiovisual:
Em 2007, foi criado o Cinema dos Meninos de Araçuaí – re-
sultado de um sonho dos moradores da cidade, realizado pelo
Coral Meninos de Araçuaí, em parceria com o Grupo Ponto de
Partida. O Cinema é também um Ponto de Cultura no estado
de Minas Gerais.
Decidimos então, que não íamos apenas exibir filmes e vídeos,
íamos também produzir! A ousadia deu origem à Fabriqueta
de Produção Audiovisual, que hoje faz documentários, curtas,
vídeos institucionais e até programas de TV: o Canal Sempre
(www.youtube.com/canalsempre)!
A produção audiovisual é um exercício diário de criação, de
linguagem e de difusão de valores e temas que são importantes
pra contar – e pra tornar melhor – a nossa história e a do lugar
onde vivemos.

126
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Em 2011, com curtas-metragens que contam a história de per-


sonagens de Araçuaí, ganharam os 1º e 2º prêmios na campa-
nha ”Histórias que Mudam o Mundo”, do Museu da Pessoa!
(CPCD, 200-?a).

Sucintamente apresentadas as fabriquetas e já sendo de nosso co-


nhecimento os/as jovens que participariam da pesquisa (como relatado an-
teriormente), partimos para a realização das Rodas de Narrativas.
Desta forma, foram realizadas três Rodas de Narrativas, uma na Fa-
briqueta de Software e na Loja Dedo de Gente (com adesão de um jovem,
desistência posterior de uma jovem e recusa de dois jovens; na loja a ade-
são foi das duas jovens), uma no Cinema (com adesão dos três jovens) e
uma no Ser Criança (com adesão de duas jovens e desistência posterior de
um jovem), respectivamente.
A proposta continuou sendo realizada na Fabriqueta de Software, na
Loja, no Cinema e no projeto Ser Criança, porém, diante da demanda de
serviços e estudos, um jovem e uma jovem não deram continuidade com
as escritas; o dia de reencontro com as jovens do Ser Criança teve que ser
alterado devido à problemas familiares, tendo que ser reagendado; o mesmo
ocorreu com os jovens do Cinema, não sendo possível realizar com eles/as o
segundo momento, pois além das filmagens contratadas pelo próprio CPCD,
também estavam prestando serviço para um grande supermercados da cida-
de. Desta forma, as Rodas de Narrativas só tiveram um segundo momento
com as jovens do CPCD, da Loja e com o jovem da Fabriqueta de software.
A primeira roda de narrativas foi realizada com as duas jovens da
Loja e com o jovem da Fabriqueta de software. Com muita vergonha, ape-
nas o jovem aceitou que o áudio da sua leitura fosse gravada, as meninas
pediram para que a câmera estivesse desligada durante a leitura e comen-
tários dos textos delas. A cada leitura os textos foram comentados e ques-
tionados, estando a cargo de quem escreveu decidir se era cabível realizar
ou não alguma alteração em sua produção. Ao término das discussões, a
câmera voltou a ser utilizada para registrar como pretendem publicizar
os trabalhos, ficou decidido que o primeiro passo é a confecção de um e-
-book, ficando para um próximo momento a decisão de como levar adiante
estas produções, se por rádio, vídeo, seminário... Destes, apenas o jovem
realizou as alterações e me repassou o texto, as meninas fizeram a primeira
versão, e ficaram de me enviar as duas posteriormente por e-mail.
No projeto Ser Criança, as jovens sugeriram ler os dois registros pri-
meiro e realizar a o processo de comentar e indagar depois. Assim foi feito.
Estas jovens não tiveram problemas em ser gravadas, menos ainda com a
captação do áudio. Uma das jovens durante os comentários e indagações, ao
pensar a Pedagogia da Roda, disse que pode enxergá-la de outra forma, não

127
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

mais como uma prática circular, mas como exercício de respeito entre ela e o
outro. Neste momento ela acessou palavras e o entendimento que anterior-
mente, sozinha, não seria possível. As duas conseguiram realizar a reescrita
das narrativas e me entregaram antes que eu voltasse para Belo Horizonte,
também optando pelo e-book, como meio de publicização dos relatos.

O que diferencia o sucesso das experiências de Daniel Suárez com as nossas?


Além de sua experiência com a metodologia, outro ponto que ficou
claro, está nas demandas dos/as jovens de Araçuaí. Se com Daniel os en-
contros com os/a docentes ocorrem aos sábados, tendo remuneração pelo
dia; as Rodas de Narrativas aconteceram em concomitância com o traba-
lho, projeto e escola. Talvez por isto as duas jovens que ainda não estão
inseridas no mercado de trabalho conseguiram concluir todo o processo
previsto, o mesmo se repetiu com o único jovem da fabriqueta de Software
que aceitou participar; diferentemente dos demais participantes.
Nessa perspectiva, é preciso considerar as condições institucionais
e políticas para que todo esse processo aconteça. No caso do trabalho de
campo em Araçuaí, com os jovens do CPCD, vimos que faltaram essas con-
dições de realização, o que quase inviabilizou o processo.
De toda forma, na adaptação dessa experiência com os jovens do
CPCD, com todos os problemas relatados, favoreceu a pesquisa mais co-
laborativa, realizada com os jovens e não sobre eles, estimulou a reflexivi-
dade de todos que dela participaram. Isso foi possível porque foi feita em
conversação, o que, como na pedagogia da roda, já implica em uma dispo-
sição de inquietar a própria posição.

Referências

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de


experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acesso em:
06 mar. 2021.
BREGUNCI, M. das Graças C. Construtivismo: grandes e pequenas dúvidas.
Belo Horizonte: CEALE/Formato, (Cadernos Intermédio) v. 1. Ano I. 1996.
CPCD. Cinema Meninos de Araçuaí (Fabriqueta de Produção Audiovisual).
200-?a. Disponível em: https://www.cpcd.org.br/cinema-meninos-de-
aracuai/. Acesso em: 25 jun. 2021.
CPCD. Fabriqueta de Softwares. 200-?b. Disponível em: https://www.cpcd.
org.br/fabriqueta-de-softwares/. Acesso em: 25 jun. 2021.
CPCD. Fabriquetas. 200-?c. Disponível em: https://www.cpcd.org.br/
fabriquetas/. Acesso em 25 jun. 2021.

128
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

DAYRELL, Juarez. O Jovem como sujeito social. Revista Brasileira de


Educação, n 24, p. 40-52. Set./Dez. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
rbedu/a/zsHS7SvbPxKYmvcX9gwSDty/?format=pdf. Acesso em: 06 mar. 2021.
FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se
completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Tradução de Moacir Gadotti e Lilian
Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
FUENTE; Lili Ochoa De la; SUÁREZ, Daniel Hugo. ¿Cómo documentar
narrativamente experiencias pedagógicas? Buenos Aires: Siglo XXII, 2007.
GEERTZ, Clifford. “Do ponto de vista dos nativos”: a natureza do
entendimento antropológico. In: GEERTZ, Clifford. O saber local: novos
ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1998.
JOVCHELOVITCH, S.; BAUER, M. W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M.
W.; GASKELL, G. (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
manual prático. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
KONRATH, Raquel Dilly (org). Roda de Conversa na e da Educação
Infantil. São Leopoldo: Oikos, 2013.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia
científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
ROCHA, Sebastião. A pedagogia da roda. Boletim Espacio para la infância
(Haia, Holanda: Bernard van Leer Foundation - BLF), n. 13, p. 24-29, 2000.
SILVA, Santuza Amorim; PÁDUA, Karla Cunha. Explorando narrativas:
algumas refl exões sobre suas possibilidades na pesquisa. In: CAMPOS,
Regina Celia Passos Ribeiro de. Pesquisa, educação e formação humana:
nos trilhos da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 105-135.
SUÁREZ, Daniel; OCHOA, Liliana; DÁVILA, Paula. Narrativa docente,
prácticas escolares y reconstrucción de la memoria pedagógica
[MODULO 1]. Buenos Aires: Ministerio de Educación, Ciencia y
Tecnología, 2003.
SUÁREZ, Daniel; OCHOA, Liliana. La documentación narrativa de
experiencias pedagógicas: una estrategia para la formación de docentes.
Buenos Aires: Ministerio de Educación, Ciencia y Tecnología, 2005.
TEIXEIRA, Inês A. de Castro; PÁDUA, Karla Cunha. Virtualidades e
Alcances da Entrevista Narrativa. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
SOBRE PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, II, 2006, Salvador. Anais ...
Salvador: UNEB, 2006. 1 CD-ROM.

129
CAPÍTULO 6

“UMA PERSPECTIVA A PARTIR DAS MARCAS


QUE EU CARREGO NA VIDA”:NARRATIVAS
DE DOCENTES SOBRE OS PROCESSOS
FORMATIVOS DOS SABERES QUE ENVOLVEM
A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Paulo Henrique Maia Melgaço (UEMG)


José Eustáquio de Brito (UEMG)
Santuza Amorim da Silva (UEMG)

Introdução
O presente artigo apresenta um recorte de uma pesquisa de mestra-
do desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação e Formação
Humana pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), entre os
anos 2017 e 20191, que teve o objetivo de investigar processos formativos
em relação à temática da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e
suas repercussões na prática pedagógica de professores(as) da rede muni-
cipal de ensino da cidade de Juatuba-MG, no período abrangendo os anos
de 2005 e 2010.
Dentre as várias considerações resultantes dessa pesquisa, destaca-
ram-se a importância dos papéis dos(as) docentes protagonistas no que
se refere ao processo de implantação e implementação2 da ERER. Nessa
trajetória, esses(as) professores(as), apoiados por um coletivo docente, re-
alizaram uma demarcação curricular que resultou em mudanças significa-
tivas no processo formativo e consequentemente nas práticas pedagógicas
pela diversidade na rede de ensino em que atuaram. Nas análises possíveis

1 A pesquisa intitula-se A formação continuada para a educação das relações étnico-raciais: um estudo de caso
sobre um Curso de Aperfeiçoamento em História da África e das Culturas Afro-Brasileiras. Disponível em: http://
mestrados.uemg.br/ppgeduc-producao/dissertacoes-ppgeduc/file/442-a-formacao-continuada-para-a-educacao-das-
relacoes-etnico-raciais-um-estudo-de-caso-sobre-um-curso-de-aperfeicoamento-em-historia-da-africa-e-das-culturas-
afro-brasileiras.
2 A exemplo da pesquisa de Gomes (2012), o termo “implantação” é destinado à apresentação e ações inaugurais da
política pública, enquanto o termo “implementação” se refere a práticas de execução, ou seja, a efetivação da ERER
que se projeta após a implantação.

131
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

sobre esse percurso, houve significativas considerações em que se destaca-


ram os vários enfrentamentos às concepções conservadoras como a ideolo-
gia da democracia racial e da branquitude normativa, o rompimento com
os princípios da visibilidade permitida, entre outros desafios, demonstran-
do o quanto tem sido complexa a discussão das questões raciais no univer-
so educacional de nosso país.
A pesquisa apresentou, ainda que de forma panorâmica, o universo
particular destes professores, na intenção de conhecer suas trajetórias for-
mativas pessoais. Foi possível afirmar em um primeiro momento, que, em
suas diversas caminhadas, os referidos sujeitos vivenciaram significativas
experiências no que se refere à formação identitária racial, além de opta-
rem por experimentar, no decurso de suas vidas, um processo de formação
que envolve o tema diversidades, o que permitiu sustentar coletivamente
uma política de ações afirmativas em suas práticas pedagógicas e sociais.
Neste artigo objetiva-se reanalisar as entrevistas concedidas e deslo-
car nossas atenções para uma escuta sensível e analítica sobre a história de
vida desses(as) docentes, realizando um diálogo com referências teóricas,
na intenção de conhecer mais profundamente aspectos de suas vivências
e trajetórias formativas compartilhadas mediante o recurso de entrevistas
narrativas de modo a compreender também as reverberações desses sabe-
res em suas vidas, dentro e fora do contexto escolar.

Um breve diálogo sobre a educação das relações étnico-raciais


No ano de 2003, no Brasil, é sancionada a Lei n. 10.639/2003 que, alte-
rando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, instituiu a obriga-
toriedade do ensino da História da África e das culturas afro-brasileiras no
currículo escolar do ensino fundamental e médio3. Entre suas várias pro-
posições, essa lei objetiva modificar positivamente a realidade vivenciada
pela população negra e “trilhar rumo a uma sociedade democrática, justa
e igualitária, revertendo os perversos efeitos de séculos de preconceito,
discriminação e racismo” (BRASIL, 2004, p. 08).
De acordo com a pesquisadora Nilma Lino Gomes, a lei 10639/2003
possibilita:
uma educação voltada para a produção do conhecimento, as-
sim como para a formação de atitudes, posturas e valores que

3 A Lei 10639/2003 altera os artigos 26-A1 e 79-B da Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB), que, juntamente com a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP) 01/2004, que
define a Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCN-ERER) e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), fundamentada no Parecer CNE/CP 03/2004,
integram o corpo de dispositivos legais, identificados como indutores de uma política educacional voltada para a
afirmação da diversidade cultural e da concretização de uma Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) nas escolas.
Posteriormente o Art. 26-A foi alterado pela Lei n. 11.645/2008, que acrescenta a obrigatoriedade do Ensino e Cultura
dos Povos Indígenas Brasileiros.

132
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

eduquem cidadãos para (e na) diversidade étnico-racial; signi-


fica a compreensão e a ampliação do direito à diferença como
um dos pilares dos direitos sociais. Implica também a formação
de subjetividades inconformistas diante das práticas racistas e
com conhecimento teórico-conceitual mais aprofundado sobre
a África e as questões afro-brasileiras (GOMES, 2012, p. 22).

Conhecedores deste fato, diversos pesquisadores da área da educa-


ção dedicam esforços no sentido de produzir conhecimento sobre a Lei
n. 10.639/2003 e seus procedimentos de efetivação. Dentre as análises,
constata-se a existência, em nível nacional, de um cenário educativo com
formações iniciais e continuadas que ainda não enfatizam as relações ra-
ciais em seus currículos, coexistindo portanto com um desconhecimento
docente sobre a temática (SANTOS, 2016). Verifica-se a predominância de
um não diálogo sobre as variadas indagações que envolvem a ERER, bem
como a negação do debate racial, resultando na predominância de ações
superficiais que envolvem o cumprimento e o enraizamento da lei (SAN-
TOMÉ, 2009); Luiz (2014); Jesus e Miranda, (2012). Tais fatores, aliados a
outras questões como a homogeneização cultural (GOMES, 2010; SAN-
TOS, 2016), formações precárias (SANTOS, 2016) e a manutenção do ra-
cismo institucional, reforçam a preservação de princípios conservadores,
como a ideologia da visibilidade permitida e da branquitude normativa.
Uma conjuntura corroborando com a importância de estudos que permi-
tam análises múltiplas e contínuas no que tange à ERER na intenção de
compreender os múltiplos movimentos de avanços e recuos no processo de
efetivação da lei 10639/2003 (GOMES, 2012).
Cavalleiro (2005) e Munanga (1996, 2004) mostram que uma das prin-
cipais causas para a existência do cenário exposto está na prevalência do
silenciamento da história e da cultura afrodescendente, somada à negação
do racismo e da ideologia da democracia racial que consistem em entender
que, no país, as diversas ramificações étnico-culturais coexistem nortea-
das pelo respeito e tolerância pelas diferenças, vivenciando a igualdade
de direito e deveres. Tal pensamento apresenta uma proposta de leitura
da realidade social em que não há uma problematização da questão racial
como uma das principais causas da desigualdade e das mazelas sociais que
vivenciamos. Essa ideologia causa, entre vários outros enganos, a disse-
minação do ideal da meritocracia, perpetuado no raciocínio de que “os
negros não atingem os mesmos patamares que os não negros por falta de
competência ou de interesse”, desconsiderando as desigualdades seculares
que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros (BRA-
SIL, 2004, p. 11). A ideologia da democracia racial atinge o imaginário po-
pular, afetando os setores da sociedade como um todo – educação, política,
cultura, religião, economia – tornando cada vez mais difícil a consciência

133
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

em torno dos esforços necessários à constituição de uma sociedade demo-


crática. Os efeitos da ideologia da democracia racial adentram o universo
escolar, desvirtuando as discussões de cunho racial e consequentemente
dificultando a efetivação da Lei n. 10.639/2003.
Retornando às primeiras décadas do século XX, temos a predomi-
nância no pensamento coletivo do ideal do embranquecimento, sustentado
na teoria que as principais causas do atraso socioeconômico do país são
consequências da inserção e expansão da presença de pessoas negras em
nosso território. Para combater tal “mazela”, era necessário povoar o país
com pessoas e ideais europeus, embranquecendo-o fisicamente e ideolo-
gicamente. Com o passar dos anos, essa ideologia racialista permanece no
inconsciente coletivo da população brasileira e, como afirma Pereira e Sil-
va (2013, p. 3), “prejudica qualquer busca de identidade baseada na negri-
tude e na mestiçagem, já que todos sonham ingressar um dia na identidade
branca, por julgarem superior”. As instituições escolares, que no decorrer
do século XX passam a incorporar lentamente o atendimento à população
remanescente do período escravista, vão construir suas bases curricula-
res inspiradas no citado ideário racialmente evolucionista. “A educação
formal não era só eurocentrista e de ostentação dos Estados Unidos da
América, como também desqualificava o continente africano e inferiori-
zava racialmente os negros” (SANTOS, 2005, p. 22). Esse pensamento se
naturaliza como norma social, pois é repetido e alimentado cotidianamen-
te por meio de práticas e materiais didáticos que valorizam a Europa em
sua íntegra, em detrimento da história e cultura afrodescendente. A ide-
ologia da democracia racial, assim como as reminiscências da teoria do
embranquecimento, reconceituada nos estudos atuais como branquitude
normativa, dificultam as discussões sobre as relações raciais e entravam a
formulação e execução de uma educação pela igualdade, pois sobrevivem e
reformulam-se nas vivências e consciências sociais.
Ainda nos dias atuais, a ideologia da democracia racial, assim como
a branquitude normativa, sobrevivem em inúmeras atitudes e comporta-
mentos. Segundo Rita Fazzi (2004, p. 109), a escola ainda “é transmissora e
reprodutora do preconceito racial entre os alunos. Omissões, declarações
racistas ou desconsideração da questão, tratando-a como um problema
menor ou inexistente, são práticas encontradas entre os professores”.
Nesse sentido, a ideologia da democracia racial, o silenciamento e
a branquitude normativa agem ora como causa, ora como consequência
dos desgastantes entraves no complexo caminho percorrido na efetivação
da Lei n. 10.639/2003 na educação brasileira. Esse movimento naturaliza a
homogeneidade cultural da escola, dificultando o debate que problematiza
as diferenças e repudia os estereótipos de modo a promover os diálogos ne-
cessários à interação e à promoção de uma educação diversa. Ao caminho de

134
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

imposição cultural, negação do racismo e suas consequências, silenciamen-


to das problematizações das relações étnico-raciais e censura às demandas
advindas dos movimentos sociais, denominamos visibilidade permitida.
Diante do cenário apresentado, em que a escola tem sido palco de
ações discriminatórias e segregacionistas, Gomes (2005, p. 146) afirma que
muitos(as) educadores(as) pensam que discutir sobre as questões raciais
não é tarefa da educação. “É um dever dos militantes políticos, dos soció-
logos e antropólogos.” Em muitos casos, quando a discussão racial adentra
o espaço escolar é devido a iniciativas de educadores(as) sensíveis à temáti-
ca. Tais profissionais possuem um papel de protagonismo no que se refere
à inserção e enraizamento da Lei n. 10.639/2003, no processo educativo,
por serem deles(as) as ações que retiram da inércia as discussões sobre a
diversidade étnico-racial nas escolas. Pesquisadores, a exemplo de Luiz
(2014) e Silva (2010), relatam que essa preocupação está presente na cons-
ciência de poucos profissionais, sendo a maioria pertencente ao grupo de
professores(as) das disciplinas de história, geografia e ensino religioso. Os
referidos autores reconhecem a existência de uma naturalização em torno
do argumento de que as responsabilidades sobre a implementação da Lei
n. 10.639/2003 são específicas dos(as) profissionais que lecionam as disci-
plinas citadas. Tal fato possui inclinações teóricas advindas da ideologia
da democracia racial, em que se defende que o debate sobre as questões
raciais é algo não necessário em uma escola, ainda mais se realizado por
disciplinas das áreas de ciências naturais e exatas, como matemática e fí-
sica, entre outras.
A questão que se apresenta como objeto de análise no momento é
referente à existência de um(a) ou mais profissionais educadores(as) que,
mesmo diante de um cenário de conservadorismo, agem como protagonis-
tas no trabalho de inserção da Lei n.10.639/2003 nas escolas. Consideran-
do os(as) professores(as) como referência do processo, emerge no universo
acadêmico variados estudos que problematizam o papel deste(a) profissio-
nal na efetivação da lei. De tais pesquisas, destacam-se dois importantes
eixos: as formações dos(as) educadores(as), no que tange à temática racial, e
a análise de suas práticas pedagógicas sob o olhar das deliberações legais.
Grande parcela dessas pesquisas focaliza, como objeto de estudo, o
universo institucional das formações docentes, sejam elas formações ini-
ciais e/ou continuadas, assim como miram as instituições educacionais de
ensino básico como unidade de estudo de suas práticas pedagógicas. Tais
investigações são determinantes no que tange ao amplo desafio de com-
preender como é o atual cenário em que se encontra a ERER no Brasil
(GOMES; JESUS, 2013). Nesse sentido, interpretamos , como uma lacu-
na a ser preenchida, o pequeno número de pesquisas que referenciam os
sujeitos docentes que atuam como protagonistas no processo em análi-

135
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

se, interpelando fatores como suas vivências, reflexões e enfrentamentos,


experienciados no decurso de uma vida; sua formação identitária, esco-
lhas, reflexões, mediatizadas pelo contexto sócio-político que o(a) envol-
ve; assim como a formação de seus saberes docentes em espaços não aca-
dêmicos, assimilando as repercussões destes em suas múltiplas práticas
pedagógicas e sociais. Santos (2010) realiza um delineamento de nosso
caminho investigativo quando enfatiza que um dos maiores desafios dos
pesquisadores(as) é compreender como e de quais formas os saberes do-
centes, adquiridos nas múltiplas experiências formativas, incidem em suas
concepções e ações enquanto trabalhadores(as) da educação.

Uma conceituação acerca dos saberes docentes


Utilizamos os estudos realizados por Tardif (2005, p. 60) para con-
ceituar os termos ‘saberes docentes’ e as possíveis relações deste concei-
to com a temática da ERER. Para este autor, saberes docentes podem ser
definidos como o acervo de conhecimentos adquiridos ao longo de uma
vida, em situações e locais diversos, sejam elas experiências individuais
ou coletivas e que, de alguma forma, em um determinado momento, são
utilizados nas práticas pedagógicas de um(a) professor(a). Para o autor em
questão, os saberes docentes englobam “os conhecimentos, as competên-
cias, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes, ou seja, aquilo
que foi, muitas vezes, chamado de saber, de saber-fazer e de saber ser”
(TARDIF, 2005, p. 60).
É real a multiplicidade de fontes e situações das quais o conheci-
mento docente é provido. É fato também que seu surgimento no universo
da pesquisa implica graus de dificuldade sobre as muitas possibilidades de
análise. Em uma tentativa de classificá-los, Tardif (2005) elabora um mode-
lo tipológico que valoriza o pluralismo inerente a esse saber. Dessa forma,
o autor denomina os saberes docentes em 5 dimensões, sendo elas: 1) os
saberes pessoais: considerando as experiências vivenciadas de uma forma
geral, como o aprendizado no contexto familiar, a participação em movi-
mentos políticos e religiosos, a militância social, organizações trabalhis-
tas, entre outras várias formas de estruturas organizacionais; 2) os saberes
adquiridos na formação escolar anterior: como a escola infantil e básica e
os estudos não especializados; 3) os saberes da formação profissional para
a docência: como os cursos de formação de professores(as), os estágios e
cursos de capacitação; 4) os saberes provenientes do material didático:
como os programas, livros e demais ferramentas pedagógicas utilizadas na
prática; e 5) por fim, mas não menos importante, os saberes advindos de sua
própria experiência na profissão, adquiridos na vivência em sala e na escola,
por meio das relações com a comunidade escolar. Trata-se de uma classifica-

136
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

ção que se contrapõe a uma concepção em que a formação do conhecimento


acontece quase que exclusivamente por intermédio da instrução que decorre
do estudo das disciplinas e produções advindas da universidade.
Para Tardif (2005), os saberes docentes encontram-se vinculados à
condição identitária da profissão e, devido à diversidade presente nesta
categoria, podem ser muitas vezes conhecimentos confluentes ou mesmo
incompatíveis, assim como podem ser não sistemáticos, intuitivos, tem-
porais, experimentais, pragmáticos e experienciais, ligados intimamente à
realidade da prática docente. Como afirma Pinto (2010, p. 115), os saberes
docentes são “os saberes sobre o trabalho, no trabalho e para o trabalho”.
Os ‘saberes docentes’ são também saberes sociais, pois possuem in-
terferências diretas ou indiretas do contexto em que são experienciados.
No entanto, são conhecimentos que partem do indivíduo e trazem em sua
formação subjetividades inerentes ao sujeito. Para Tardif (2005, p. 64), as
fontes desses saberes são múltiplas, “provenientes da história de vida indi-
vidual, da sociedade, da instituição escolar e de outros atores educativos,
dos lugares de formação, etc.” A pesquisadora Ana Maria Monteiro (2001,
p.130) afirma que a indagação sobre os saberes docentes permite mais pre-
cisamente adentrar a importância do processo formativo do(a) educador(a),
“buscando compreender sua especificidade e constituição por meio dos
processos de socialização, identificando nos saberes os aspectos que po-
dem melhor definir e fortalecer a identidade e autonomia profissional”.
Mediante tais considerações, compreende-se que, os(as)
professores(as), sujeitos deste artigo, trazem em si uma gama de saberes
confluentes, formados em diversos lugares e situações, vivenciados no de-
curso de uma vida. Saberes que foram/são transformados em saberes do-
centes no processo contínuo de reflexão sobre suas práticas pedagógicas.
Percebemos a importância de conhecer com mais profundidade cada traje-
tória, sendo necessário, portanto, uma escuta sensível disposta a interagir
com suas histórias de vida, evidenciando suas relações com as questões
étnico-raciais.

A importância das metodologias que envolvem as narrativas docentes


autobiográficas
Considerando os objetivos deste artigo, torna-se necessário uma es-
colha metodológica que valorize a escuta das histórias de vida destes su-
jeitos e que enfatize como objeto de estudo as suas diversas experiências e
trajetórias formativas individuais, assim como permita a inserção pontual
de um diálogo teórico que reflita sobre os variados contextos, inclusive
os não institucionais. Como recomendam Canen; Xavier (2011, p. 655), a
partir de um olhar multicultural pós-colonial, é necessário intensificar es-

137
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

tudos sobre “histórias de vida, narrativas e ações dos atores escolares e de


formação docente, entendendo tais vozes plurais como constitutivas das
identidades institucionais e como protagonistas de ações curriculares”.
Interpretamos que, para a valorização das políticas públicas educa-
cionais, entre elas a efetivação da lei 10639/2003, é imprescindível reconhe-
cer a realidade vivenciada pelo sujeito docente sob suas próprias perspec-
tivas. Como afirma Passegi, Nascimento e Oliveira (2016, p. 115), “a escuta
sensível do outro fundamenta-se no reconhecimento de sua historicidade
e de seu pertencimento social, com base na hipótese de que o ato de narrar
as histórias por ele experienciadas está na origem do conhecimento de si.”.
É esse(a) professor(a), sujeito das diversas pesquisas sobre a ERER, que vi-
vencia as reais experiências e que representa os avanços e recuos (GOMES,
2005) da legislação em análise. Suas histórias de vida, particulares ou cole-
tivas, cruzam e representam as múltiplas caminhadas que evidenciam os
vários processos de inclusão da diversidade no ensino público brasileiro.
Para Souza (2006, p. 27), a expressão “história de vida” corresponde a
uma “autocompreensão do que somos, das aprendizagens que construímos
ao longo da vida, das nossas experiências e de um processo de conheci-
mento de si e dos significados que atribuímos aos diferentes fenômenos
que mobilizam e tecem a nossa vida individual/coletiva”. Mediante tais
observações, optamos pela prática metodológica das narrativas autobio-
gráficas. Para o autor citado, (p. 32), os vários estudos “sobre a vida dos
professores, carreiras e trajetórias de formação, com base na utilização
de biografias e autobiografias, revelam-se como de importante valor, pois
potencializam recolocar os professores como cerne do debate sobre as pes-
quisas educacionais”.
Conforme Teixeira e Pádua (2006, p. 2-3), sem desprezar os limites
enfrentados em uma situação discursiva, é possível afirmar que a narrativa
possibilita conhecer a subjetividade do(a) entrevistado(a) por meio da sen-
sibilidade analítica do pesquisador. Segundo as autoras, “os sujeitos ge-
nerosamente emprestam e confiam suas vidas aos/as entrevistados/as, que
delas recolhem não somente os fatos, mas os sentidos, os sentimentos, os
significados e interpretações que tais sujeitos lhes conferem”. Esse exercí-
cio permite uma aproximação das múltiplas realidades adjacentes, porém
inúmeras vezes invisíveis em entrevistas direcionadas. Permite também
uma discussão inclusiva e socialmente democrática, considerando, princi-
palmente, a compreensão dos(as) protagonistas, no caso em questão os(as)
professores(as), e uma aproximação do “cotidiano das relações sociais e
políticas (...) permitindo a análise de suas repercussões nas subjetividades
docentes e discentes”.
Diante de uma diversidade de práticas investigativas, percebemos
que, para alcançar os objetivos propostos, a metodologia de narrativa

138
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

proposta por Flick (2002) seria a melhor estratégia para ouvir e analisar
os relatos autobiográficos. Trata-se de uma metodologia que possibilita
analisar o conhecimento mediante entrevistas na forma de uma narrati-
va de pequena escala, baseada em fatos e acontecimentos do cotidiano.
O entrevistador é autorizado a intervir no decurso da fala, estabelecendo
uma relação que se aproxima de um diálogo investigativo. Tal modalidade
de entrevista possui a prerrogativa de utilizar diferentes formas de dados,
sejam eles conhecimento episódico ou semântico.4 Ao confluir essas in-
formações, é possível a produção de diferentes níveis de dados, alterando
entre “episódios específicos recordados em diferentes níveis; narrativas
de situações que ocorrem regularmente sem prévia definição espaço-tem-
poral, (...) e conceitos e abstrações sobre suas experiências” (RESSURREI-
ÇÃO, 2015, p. 155).
O elemento central da entrevista é o direcionamento provocado pelo
pesquisador para que o entrevistado relate acontecimentos ou uma série de
situações correlacionadas ao tema em destaque: “abre espaço às subjetivida-
des e interpretações do entrevistado no contexto das narrativas situacionais;
ela não as reduz e classifica imediatamente, mas ao invés disso descobre o
contexto de sentido em que ela é narrada” (FLICK, 2002, p. 128). Para Souza
(2006, p. 27), o método de pesquisa como “modelo interativo ou dialógico”
objetiva uma nova relação entre o sujeito e o pesquisador, “tendo em vista
uma co-construção de sentido, porque não é redutível à consciência que tem
dela o sujeito e também à análise construída pelo pesquisador”.
Para Delory-Momberger, as pesquisas que possuem como método
investigativo as entrevistas direcionadas e suas dinâmicas tradicionais
aguardam, como resultados destes processos, respostas que no mínimo
justifiquem ou mesmo ilustrem as “(hipó)teses” previamente estabelecidas
como objetivos. Nas palavras da autora:
toda a habilidade do perguntador consiste então, de fato, em
fazer aquele que responde (e é isso que ele é, propriamente,
um in-formante) ir na direção da tese que ele quer produzir.
Também, nesse caso, somente será retido pelo entrevistador
(e, sem dúvida, só será audível para ele) aquilo que contribuir
para ilustrar ou defender sua tese. Todo o resto será rejeita-
do (ou sequer será ouvido) como algo lateral, não pertinente
(DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 527).

4 Por episódico, entendem-se os conhecimentos inerentes ao cenário da situação vivenciada, ou seja, onde ocorreu,
o que e quando aconteceu, quanto tempo durou, quem estava envolvido e em quais situações, dentre outros. Por
conhecimento semântico, compreendem-se as leituras possíveis realizadas sobre o ocorrido, de caráter mais abstrato,
envolvendo os motivos, as relações entre causas e efeitos, os argumentos e teorias interpretativas.

139
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Optamos pela metodologia que valoriza as narrativas de vida, pois


temos como objetivo principal deste artigo ouvir o(a) professor(a) prota-
gonista e, portanto, conhecer sobre sua trajetória de vida no que tange à
temática racial, objetivando descobrir um pouco mais sobre seu processo
formativo e a aquisição de seus saberes docentes, assim como o reflexo de
tais saberes em sua vida. Possibilitamos, a esse (a) docente, a maior autono-
mia e liberdade possível em sua fala, ainda que indicando uma temática a
ser abordada, seguindo no encalço do caminho por ele(a) traçado. Trata-se
de uma decisão que não é somente um processo metodológico de pesquisa,
mas também um exercício de valorização daqueles(as) que se destacam por
serem referências enquanto profissionais no complexo processo de efeti-
vação da ERER, porém são silenciados(as) diariamente quando o assun-
to aborda suas individualidades. É ouvir alguém que possui histórias que
muito interessam a pesquisadores(as), porque dizem sobre suas decisões e
atitudes docentes, seja no sentido de enfrentamento ou omissão da legis-
lação em vigor. É ouvir o(a) profissional que conhece na prática cotidiana,
além de sistemática, as realidades e relevâncias de temas sobre os quais
dialogamos teoricamente na academia. É descobrir, com suas vivências, o
que de fato é relevante para ele(a) enquanto professor(a) protagonista no
processo da ERER.
Para Delory-Momberger (2012, p. 527), tudo se modifica quando o
“narratário”, que se distancia da figura do “perguntador”, tem como in-
tenção “expandir-se da maneira mais ampla e mais aberta possível o es-
paço da fala e das formas de existência do narrador”. Foi com tal sentido
que os processos de entrevistas e análises foram pensados e conduzidos.
Com essa perspectiva, a partir deste momento, trazemos as apresentações
e as narrativas dos(as) sujeitos docentes, buscando, quando possível, uma
interação temática entre elas e, paralelamente, propomos diálogos teóri-
cos pontuais no que se refere à presença de algumas categorias analíticas.
“Em se tratando de seguir os atores, o narratário não pode mais anteceder
o narrador, só pode correr atrás dele e tentar ficar o mais perto possível em
suas sinuosidades, nas bifurcações, nas rupturas dos seus caminhos e dos
seus desvios, sem nunca ultrapassá-lo”.

Apresentação dos sujeitos e de suas narrativas


Como informado, neste artigo selecionamos as narrativas de 2 docen-
tes que se apresentaram como protagonistas na pesquisa que observa o pro-
cesso de implantação e implementação da lei 10639/2003 na rede municipal
da cidade de Juatuba, sendo eles: a professora de história, Sônia Aparecida
dos Anjos, e o professor de ensino religioso, José Luiz Rodrigues.5 Importante

5 Para maiores informações sobre os sujeitos da pesquisa, sugerimos a leitura da dissertação de título A formação

140
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

destacar que as narrativas são apresentadas de uma forma fluida, respeitan-


do os sentidos e temas observados nas ordens colocadas pelo(a) narrador(a),
sem necessariamente uma separação mediante núcleos de sentido, uma vez
que a escolha política, metodológica e epistemológica do texto é enfatizar os
sentidos e significados que os sujeitos deram às suas experiências.
A professora Sônia dos Anjos é moradora desde criança do municí-
pio de Juatuba. Neta e filha de homens negros, Sônia, hoje com 48 anos,
também se identifica como uma mulher negra. No ano de 2021, ela con-
cluirá 28 anos de docência na escola pública. Durante todo esse percur-
so atuou com a disciplina de história. Também leciona na rede estadual,
trabalhando, desde o início de sua carreira, na mesma instituição em que
cursou o ensino fundamental e médio. Na rede municipal de Juatuba, ela
é uma das funcionárias mais antigas, aprovada em concurso público na
década de 1990. Entre os anos de 2001 e 2012, Sônia assumiu, no municí-
pio, a coordenação do grupo de professores(as) de história, sendo uma das
principais fomentadoras da questão racial no currículo escolar da cidade,
antes mesmo da promulgação da lei 10639/2003. No período em que ocor-
reram as entrevistas, a professora assumia a pasta da Secretaria Municipal
de Cultura e Turismo.
O professor José Luiz, hoje com 51 anos, passou sua infância e juven-
tude como morador de uma região periférica da cidade de Betim. Autode-
clarado negro, fiel de uma religião cristã protestante, professor do ensino
público há mais de 20 anos, membro da direção do Sindicato Único dos
Trabalhadores em Educação (Sind-UTE), José Luiz é também professor da
rede municipal de Juatuba desde o ano de 2005, quando foi efetivado por
meio de concurso público. No ano de 2007, ele assumiu, em paralelo com
a atividade docente, a coordenadoria do Grupo de Ensino Religioso, ocu-
pando o cargo até o ano de 2010. No mesmo período, foi aprovado em outro
concurso e efetivado no segundo cargo como professor da rede munici-
pal da prefeitura de Betim, também como professor de ensino religioso.
Elegeu-se para o cargo de diretor do Sind-UTE Estadual, e, na época de
realização das entrevistas, encontrava-se afastado das redes de ensino com
as quais possui vínculo.
Vamos iniciar a exposição das narrativas com o relato de apresenta-
ção da professora Sônia:
Vivi uma infância feliz, apesar de comum. Tive uma criação severa, pauta-
da em princípios rígidos de respeito e obediência às regras. Se hoje eu res-

continuada para a educação das relações étnico-raciais: um estudo de caso sobre um Curso de Aperfeiçoamento
em História da África e das culturas Afro-Brasileiras, mais precisamente o capítulo 03, que discorre sobre o percurso
metodológico da pesquisa. Importante também citar que os sujeitos autorizaram a utilização e a divulgação de seus
nomes verdadeiros.

141
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

peito as pessoas em suas individualidades, em parte, deve-se a uma criação


que primava pelo respeito acima de tudo. Nasci em uma cidade interiorana,
mas muito próxima à capital. Filha de uma costureira e um caminhoneiro,
eu sempre vi no trabalho uma fonte de realização pessoal. Meu pai costu-
mava dizer que poderíamos fazer tudo o que desejássemos. Ainda brinca-
va, se for honesto podemos fazer qualquer coisa. Nada pode nos impedir.
Demandará de força de vontade porque não estamos no mesmo ponto de
partida das pessoas que têm mais posses, contudo, não devemos retroceder.
Ao mesmo tempo que me dizia: “Seja independente, forte, solidária! Não
dependa de quem quer que seja, inclusive de seu futuro marido! Saiba fazer
tudo.” Minha mãe sempre se desdobrou em apoiar cada uma das minhas
decisões, mesmo que lhe custasse o suor de seu rosto! Não fui uma criança
que brincou nas ruas com outras, meu universo foram os livros. Aprendi
a ler muito cedo, antes de ir para a escola. Meu pai comprava revistinhas
para que eu pudesse ler, só mais tarde os livros se tornariam presentes de
Natal. Livros nunca foram baratos. Ele sabia que eu gostava de ler, que
era estudiosa, então, ele sempre me incentivava muito. Tudo que eu queria
estudar, ele falava. Vai, faz isso. Minha mãe principalmente. Quer estudar?
Vai mesmo. Você quer isto? Vai, estuda - (Professora Sônia, 2018).

Dentre importantes questões presentes em sua narrativa inicial,


a professora Sônia disserta como sempre foi estimulada a estudar pelas
ações de incentivo de seus pais. O fato de entrar para escola já sabendo
ler demonstra que houve uma alfabetização dentro de sua casa, até mesmo
porque sua mãe, além de costureira, era professora. As revistas em quadri-
nhos e posteriormente os livros são também outras formas de fomento à
leitura, fato recorrente em sua trajetória infanto-juvenil.
Historicamente, o direito à educação configura-se como uma das
principais e pioneiras bandeiras de luta na conquista da cidadania pela
população afro-brasileira. Após 1888, como afirmou Bastide, o povo ne-
gro foi deixado à própria sorte e tornou-se necessário lutar pela “segunda
abolição”, ou seja, criar condições para a alteração do quadro de miséria e
submissão na qual a maioria dos ex-escravizados e descendentes se encon-
travam. Nesse contexto, houve uma “propensão dos negros em valorizar a
escola e a aprendizagem escolar como um ‘bem supremo’ e uma espécie de
‘abre-te sésamo’ da sociedade moderna” (SANTOS, 2005, p. 21). A citada
importância histórica destinada à educação é verificada no espaço familiar
da professora Sônia, que, aliado a outros fatores como a disciplina, o em-
penho individual, a honestidade e o respeito pelo próximo, formam talvez
os pilares fundamentais em sua trajetória formativa.
Além dos fatores citados, percebe-se, na fala inicial da professora,
sinais de um forte encorajamento por autonomia pessoal, assim como uma
conscientização sobre a realidade socioeconômica na qual está inserida.
Tais evidências estão presentes, por exemplo, quando seu pai dizia “Seja

142
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

independente, forte, solidária! Não dependa de quem quer que seja, in-
clusive de seu futuro marido! (...). Demandará de força de vontade porque
não estamos no mesmo ponto de partida das pessoas que têm mais posses,
contudo, não devemos retroceder”. Tais palavras demonstram indícios de
uma forte raiz ideológica que talvez conduziu a docente a representar na
atualidade uma forte liderança feminina nos espaços que ocupa.
A professora continua seu relato, dizendo sobre seu universo de for-
mação acadêmica:
Meu pai sonhava comigo formada advogada. Apesar de sentir orgulho da
filha professora, ele não escondia o desgosto por eu não ter seguido uma
carreira mais glamourosa e que exalasse poder. Ele sempre me achando
super inteligente, não considerava justo eu perder meu tempo na escola
ensinando para quem não queria aprender. Minha graduação é em história
e estou nessa maratona há 28 anos completos. Ávida por estudar, fiz muitas
especializações, nas mais variadas áreas do conhecimento em humanas,
mestrado, doutorado e provável candidata ao pós-doc, pois é uma ideia que
tenho alimentado. Sigo um pouco o pensamento de Adilson Moreira6, nós
negros temos que tratar de temas não correlacionados à temática racial.
Temos que ser capazes de discursar, debater e refletir assuntos para além da
nossa militância. Assim, tive uma formação pós-graduada bem eclética que
vai da arqueologia à psicanálise - (Professora Sônia, 2018).

A professora Sônia cursou o magistério em uma escola estadual do


ensino médio. Na universidade da cidade de Formiga, formou-se em estu-
dos sociais e posteriormente em história. Nesta mesma instituição, fez a
primeira pós-graduação, em História do Brasil. Logo após, finalizou sua
segunda especialização na UNI-BH, em História do Brasil Contemporâ-
neo. Cursou outras duas especializações em Ouro Preto, sendo uma em
Filosofia da Arte e da Estética e outra em Mídia e Educação. Depois, na
UFMG, participou de uma especialização em ciências políticas. Pela Uni-
versidade de Brasília, cursou uma formação em Africanidades, posterior-
mente uma especialização em Violência na Escola pela Universidade do
Paraná. Depois de todo esse processo, a professora iniciou algumas disci-
plinas isoladas no Mestrado das Faculdades de Educação, Filosofia e Ci-
ências Sociais da UFMG. Na Faculdade de Letras, da mesma universidade,
optou pela literatura, área em que concluiu seu mestrado e doutorado.
Dentre algumas observações, é possível verificar que a professora
Sônia segue uma caminhada acadêmica progressiva, contando com o apoio
irrestrito de sua família. As características presentes em sua fala revelam
uma busca contínua e sistemática pelo conhecimento, marcada pelo em-

6 Doutor em Direito Constitucional Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (2013). Autor
da obra: Racismo Recreativo (2019).

143
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

penho individual e do coletivo familiar. Empenho verificado na quantidade


de cursos realizados, assim como na variedade de instituições nas quais os
cursos foram trilhados. Sônia demonstra uma inquietação positiva em tor-
no de sua trajetória, resultando em um amplo processo formativo, repleto
de diversidades de temas e olhares relacionados à educação.
Os estudos realizados por Coelho; Padilha (2011); Oliveira (2011);
Santana(2003); Santos (2016), dentre outros, afirmam que educadores(as)
que passam por uma formação continuada de fato abordando os princípios
estabelecidos pelas DCN-ERER estão mais estruturados a formalizar um
trabalho qualitativo e significante de combate ao racismo, valorizando as
múltiplas culturas e combatendo as ações discriminatórias identificadas
no meio educacional. Para Candau, presente em Carvalho e Pletsch (2011,
p. 281), a formação para as relações étnico-raciais “interferem no conhe-
cimento e na aprendizagem dos alunos. Interferem, sobretudo, no modo
como os professores concebem os currículos escolares, seus planejamen-
tos, seus programas de cursos e seus planos de aula”. Tais estudos vão ao
encontro das narrativas cedidas pela professora Sônia, pois justificam que
sua sólida e diversificada formação acadêmica contribuiu na formulação e
execução de seu trabalho enquanto protagonista como professora e coor-
denadora docente, no tocante à inserção e efetivação da ERER.
Vamos direcionar nossos olhares para as narrativas do professor José
Luiz. Assim ele inicia:
Quando a gente trata da questão racial, minha vida se dá numa realidade
extremamente marcada por um processo de demarcação, de violência, de
falta de condição, até porque eu passei grande parte da minha vida em uma
comunidade aqui em Betim, em um bairro chamado Marimbá. Foi nesta
estrada que minha mãe foi abandonada pelo meu pai. Foi nesta realidade
que ela teve que criar meus irmãos, que comigo são sete. Dizer que em um
universo de sete irmãos, eu fui o primeiro a concluir o ensino médio e che-
gar em uma universidade. Nenhum deles conseguiu chegar em um curso
superior, porque as questões raciais são muito fortes, seja em qualquer lugar
que você viva na sociedade. Em um universo de sete irmãos, fui o único
que não foi parar na informalidade. Fui um dos primeiros e únicos que
conseguiu ter uma vida financeiramente um pouco melhor. Eu consegui
sair deste espaço e não ter problemas de ordem psicológica oriundo das
questões raciais, que, ao longo da nossa vida, a gente via e percebia desde
a infância que estas coisas aconteciam, mas era muito velado. Era na festa
de aniversário, era na reunião da família, era por nunca ter conseguido,
em certa época, viajar com seus amigos para a praia, não porque faltava
condição, mas porque aquele não era seu lugar social. O que marca como
ponto crucial dessa história, foi quando eu fui fazer a universidade. Lá eu es-
cutei de alguém que disse, “um filho de um carroceiro preto não vai conseguir
concluir este curso”. Eu escutei esta coisa, e aquilo ali, naquele dia, algumas

144
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

coisas se encaixaram. Porque a trajetória, social e racial, quando ela se junta,


ela deixa sequelas que você não pode enxergar, e que ao longo de sua vida
você tem que superar. Assim como eu também tenho as minhas pessoais e a
partir da luta coletiva eu consegui superá-las - (Professor José Luiz, 2018).

O relato inicial do professor José Luiz, por sua vez, utiliza da pala-
vra demarcação como primeira característica ao se referir a sua trajetória,
seguida dos termos violência e falta de condição. Hoje, empoderado de
saberes diversos, o professor rompe o véu da invisibilidade que paira sobre
esses assuntos e possui as habilidades para interpretar que tais análises
estão intimamente relacionadas às questões raciais e sociais, sendo estes
os principais fundamentos para diversos problemas enfrentados por ele e
sua família, inclusive o insucesso econômico de muitos irmãos. Tais carac-
terísticas aparecem em outros importantes momentos de sua narrativa e
trazem, portanto, a necessidade de um destaque em nosso texto.
Demarcação é sinônimo de definição, limite, pertencimento. Trata-
-se de estabelecer de onde vim e onde estou, no sentido de lugar social, e
também compreender a definição de quem sou. É um processo, ora indi-
vidual, ora coletivo, sobre a trajetória de uma formação identitária. Cons-
titui-se como uma categoria analítica codificada em outras partes de sua
fala, quando ele afirma, por exemplo, que não conseguia viajar a turismo
porque “aquele não era seu lugar social”, ou mesmo no momento em que
lhe disseram que “um filho de um carroceiro preto não vai conseguir con-
cluir este curso”.
Reafirmando os estudos realizados por Pereira e Silva (2013), é per-
ceptível os reflexos da ideologia do embranquecimento na história de vida
do sujeito em questão. Os autores afirmam que as históricas convicções ra-
cialistas, presentes e naturalizadas na sociedade brasileira, por intermédio
da citada ideologia, prejudicam a formação de qualquer identidade que se
afaste do padrão europeu e branco, em detrimento a quaisquer outros tra-
ços identitários, sejam eles em seus aspectos físicos, culturais e/ou sociais.
O relato do professor José Luiz demonstra uma trajetória de ex-
clusão, mas também de uma luta constante por libertação deste estigma,
representada, entre outros momentos, pela fala: “eu consegui sair deste
espaço”. O referido “espaço”, para o qual historicamente a população ne-
gra é relegada, é o local da margem, da fronteira, da periferia, ou seja, do
não-espaço. Sair deste lugar socialmente instaurado para o(a) negro(a) é,
portanto, demarcar outra realidade social. Assim o professor José Luiz sin-
tetiza suas principais bandeiras de luta.
Como um dos objetivos deste artigo é escutar as histórias de vida
e compreender como aconteceram as trajetórias formativas e seus refle-
xos nas práticas pedagógicas e ações sociais dos sujeitos, trazemos um

145
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

exemplo, dentre importantes trabalhos coordenados pelos docentes José


Luiz e Sônia. Eles, juntamente com um coletivo, haviam trabalhado, com
estudantes do ensino fundamental, o livro “Ponciá Vicêncio”, da renomada
escritora Conceição Evaristo, em uma escola municipal da cidade de Juatu-
ba. Houve então importantes esforços desses coordenadores na intenção de
realizar uma conversa entre a autora e as crianças no espaço escolar. O pro-
fessor José Luiz assim apresenta os objetivos e delineamentos da proposta:
Eu lembro que convencemos ela (Conceição Evaristo) a ir na escola para
o seguinte: Conceição, queremos que você vá à escola para os meninos en-
tenderem que é possível o sujeito ser pobre, não ter família, ser filha de
empregada doméstica, e a partir de um esforço dele, a partir da tomada de
consciência, a partir de quando o poder público investe para melhorar sua
vida, a partir do momento que o professor e a escola entende que ele tem
que fazer interferências, ele pode ir para outro espaço. Ela foi lá para con-
tar a história dela, que nasceu em Belo Horizonte, que a mãe era lavadeira,
ela foi morar no Rio (de Janeiro), ela teve este diálogo com os meninos. Os
meninos sentados todos em roda e só ficou os meninos e ela. Fizeram uma
roda e eles tiveram uma manhã de um longo bate-papo. Ela, a escritora do
livro que eles tinham lido. Ela foi pra dizer o seguinte, que você carrega a
sua ancestralidade. Você carrega a história da sua família, do seu povo.
Então, ela foi tratar disto - (Professor José Luiz, 2018).

Por meio da análise das histórias de vida, é perceptível que os sujei-


tos analisados vivenciaram percursos formativos marcados pelo esforço
individual e coletivo, enfrentamentos e demarcações sociais. Trajetórias
que foram e são reverberadas em práticas pedagógicas por ações como a
que foi apresentada.
Importante considerar na narrativa do professor José Luiz, a exis-
tência de múltiplos processos de aquisição de saberes sobre a ERER, an-
tes mesmo de o docente cursar sua formação universitária. Saberes que
posteriormente seriam utilizados em práticas pedagógicas, recebendo,
portanto, a nomenclatura de saberes docentes. Retomando os estudos de
Tardif (2005), temos um exemplo de suas afirmações na declaração do autor
de que os diversos saberes utilizados pelos(as) professores(as) no processo
educativo são produzidos em lugares distintos, sendo, muitas vezes, exte-
riores ao ambiente acadêmico ou escolar. É uma confluência de saberes de
naturezas diversas que se apresentam também de forma diferenciada no
ofício docente.

O percurso da formação básica e o encontro com a ERER


Vamos analisar as narrativas da professora Sônia, quando aborda a
trajetória dela no ensino básico:

146
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Na escola, eu me deparei com o racismo. Eu descobri que havia racismo na


escola, na convivência com outras crianças, com outros alunos, eu comecei
a perceber que havia alguma coisa, algum tipo de xingamento, que não era
agradável aos ouvidos, vindo algumas vezes de alguns colegas brancos, e eu
nem imaginava que isto pudesse acontecer. Alguns sofreram uma agressão
maior, porque enquanto mais escura a cor da pele, mais sofre o indivíduo. A
escola foi minha primeira experiência negativa em relação ao preconceito
de raça. Por ter nascido num ambiente não racista, eu senti um estranha-
mento ao conviver com atitudes racistas num espaço conhecido por ser o
campo do conhecimento e da convivência. Do preconceito mais sutil ao
mais escrachado, eu passava por cima deles, porque tive em meu lar pessoas
que souberam me fortalecer. Antes mesmo de alçar os degraus da adoles-
cência, eu já me atrevia a enfrentar as adversidades. Caso contrário, talvez
tivesse até mesmo que abandonar a escola e os estudos, assim como vi mui-
tos colegas o fazerem. As agressões verbais foram ficando mais raras, não
obstante, as simbólicas ocuparam um espaço mais expressivo. O racismo
nesse período foi aquele em que atacava ao mesmo tempo em que te adu-
lava. Por exemplo, “você é até bonitinha, mas esse cabelo, esse nariz, essa
boca...!” E a escola, até hoje, continua se calando perante estas questões.
Eles não se movem, não defendem, acreditam que às vezes é só brincadeira,
que a gente tem de superar isto. Que o preconceito às vezes é mais nosso do
que do agressor - (Professora Sônia, 2018).

O professor José Luiz assim apresenta suas experiências como estu-


dante do ensino fundamental:
Na escola, enquanto aluno, eu não tinha a consciência das questões raciais.
Eu só fui alfabetizado no segundo ano. Eu não pertencia ao grupo de frente,
eu era do pessoal que ficava no fundo. Este povo do fundo, você vai pelejan-
do com eles até onde der. Eu tive muitos problemas no ensino fundamental,
de indisciplina, e o que me fez sair deste lugar, foram as falas da diretora da
escola, que também era professora, que dizia: você é muito capaz, você dá
conta. E quando me tiravam da sala de aula, eu ia pra biblioteca, ler livro.
Eu gostava de ficar lá, levar livro pra casa. Sempre muito retraído, fechado.
Porque a escola é sempre muito cruel. Lembro que, em um teatro infantil, o
ator principal nunca era você. Você sempre era o coadjuvante ou qualquer
outra coisa. Me lembro que o papel mais marcante que eu fiz foi Herodes,
o assassino. Eu que ajudei a matar o filho de Deus. Mas teve coisas boas.
Hoje, eu lembrando das pessoas que estavam ao meu redor, grande parte
dos negros e das negras, não conseguiram chegar em espaços sociais de
ascensão. Todos eles ficaram, em algum lugar, pararam pela vida afora. E o
ponto mais difícil pra mim, na minha vida, é me ver neste lugar. O processo
de aceitação é muito doloroso - (Professor José Luiz, 2018).

Muitas são as considerações possíveis de serem realizadas sobre es-


sas narrativas. É perceptível, dentre outras importantes questões, como a
professora Sônia teve o primeiro contato sistemático com o racismo em um

147
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ambiente escolar. Tais dados exemplificam as considerações presentes nos


estudos de Santana (2003), quando essa autora afirma que a instituição esco-
lar é o local do encontro das crianças negras com as primeiras manifestações
racistas presentes na sociedade. O professor José Luiz também vivencia um
processo de exclusão no espaço escolar, verificado por falas que rememoram
situações e sentimentos de isolamento, exclusão e insensibilidade.
Ambos os sujeitos falam sobre o silenciamento das questões raciais
em suas trajetórias no ensino básico. Vários pesquisadores(as), dentre
eles(as) Cavalleiro (2005), Gonçalves (2003), Guimarães (2005), afirmam que
o silenciamento das questões raciais, aliado a mecanismos racistas intra e
extraescolares, promovem o baixo rendimento das crianças e adolescentes
negros(as), a violência e evasão escolar, fatores também citados pelos sujei-
tos em análise. Tal silêncio predomina nos ambientes públicos, velando o
racismo e reafirmando a ilusão de uma sociedade igualitária e diversa. “Em
alguns casos, o silenciamento significa a insegurança em abordar a temá-
tica e, também, pode representar a pouca importância atribuída à questão
racial no Brasil” (SANTANA, 2003, p. 42).

A tomada de uma consciência racial


Os sujeitos desta pesquisa afirmam que vivenciaram o silenciamento
das questões raciais enquanto estudantes do ensino básico e, atualmente,
conscientes de suas trajetórias formativas, lutam como profissionais da
educação para que a lei 10639/2003 possa ser implementada na sociedade
em que atuam. Consideramos, mediante as narrativas dos sujeitos, assim
como a leitura de outros importantes estudos, a exemplo de Luiz (2014) e
Silva (2010), que trabalhar as questões raciais é uma decisão política, pois
exige enfrentamentos e conflitos políticos e pessoais, isto é, uma decisão
que é tomada de forma consciente e autônoma.
Verificamos a aquisição da consciência racial nas palavras concedi-
das pela professora Sônia:
Nos identificarmos nesse processo, apenas, não basta. É preciso militância.
É um processo de fala, mas também de escuta. Lembro de meu pai alertar
para a necessidade de não admitirmos jamais que sejamos desrespeitados.
Mas que soubéssemos igualmente respeitar. Que perder a dignidade signi-
ficava estar morto. Assim se fundamentou a minha formação: tijolo por
tijolo, pedra sobre pedra, luta após luta. Ser mulher, negra, de família po-
bre, numa cidade interiorana não é tarefa simples. É preciso resiliência. E
resistir nesse caso não é fazer papel de boba como alguns poderiam pensar.
Mesmo que eu não fosse professora, eu teria conquistado o espaço que ocu-
po através de outro percurso - (Professora Sônia, 2018).

148
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

O professor José Luiz assim expõe suas trajetórias formativas em


relação à tomada de consciência acerca das questões raciais:
Eu fui terminar meu ensino médio em um curso técnico em metalurgia na
escola técnica Vital Brasil. Fiz este curso e comecei a trabalhar em uma
indústria metalúrgica. Quando eu cheguei lá, eu tinha uma certa ilusão,
um certo pensamento que eu ia fazer carreira, mas como chefia eu tinha a
função de controlar os trabalhadores que ali trabalhavam e eu fiquei muito
incomodado de trabalhar assim, pois vi a opressão do trabalhador negro
neste espaço. Eu fui contratado para ser uma espécie de feitor, pois a fun-
ção de encarregado era dominar e deixar os peões todos controláveis. Eu
não me sentia muito bem neste papel, pois, além de várias coisas, era um
local onde meu pai tinha trabalhado. Em um dia, em uma conversa que a
gente estava tendo no interior da empresa, um dos meus colegas de traba-
lho disse para um operário que foi lá reclamar: “operário, olho do c... igual
à você, ali na porta tem uma fila enorme. Se você não quiser, você passa ali
embaixo e vai embora. Tem uma fila de gente querendo trabalhar. Não pre-
cisa de você reclamar comigo”. Ao presenciar esta situação, esta expressão,
esta forma que foi apresentada, me marcou tanto que nunca esqueci desta
fala. O interessante é que grande parte destas pessoas eram negras e par-
das. Hoje eu compreendo que o processo de colonização deste país é uma
colonização também das mentes. Você quer se distanciar daquele lugar, a
medida que você se distancia você pula para o outro grupo, para um outro
extrato social. A minha ruptura com esta empresa foi quando, um dia, con-
versando com uma pessoa a que agradeço muito, ela disse, “você não serve
para este serviço, vai fazer qualquer outra coisa”. Ai eu pedi pra sair. Neste
trabalho, eu comecei a ter ciência destas questões, de luta por direito, por
igualdade, de justiça - (Professor José Luiz, 2018).

Por sua vez, o professor José Luiz narra uma caminhada formativa
marcada inicialmente por um ensino médio técnico na área industrial que
o conduz a um emprego no mesmo local em que seu pai havia trabalha-
do. Nesse ambiente, José Luiz vivencia o racismo institucional em uma de
suas mais duras faces, pois, além de reviver questões familiares infelizes à
sua memória, ele é induzido a enfrentar seus pares a favor de uma empresa,
presenciando inclusive cenas de discriminação e assédio moral. A deci-
são de romper com tal círculo demonstra um alvorecer de sua consciência
atrelado a um entendimento sobre as questões sociorraciais, pois, ainda
que necessitasse trabalhar por razões financeiras, outras questões de sin-
gular importância para sua ética pessoal eram colocadas em jogo. É possí-
vel dizer que, neste momento, inicia-se uma caminhada militante que será
permeada por conflitos de diversas ordens. O referido contexto encaminha
José Luiz para a formação inicial em educação e, consequentemente, para
o espaço escolar no papel de professor e sindicalista.

149
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Neste processo todo, foi solidificando pra mim, em meu interior, a questão
racial. Porque o mais difícil é quando você começa a ter consciência de que
você é aquele sujeito. E é neste processo que eu comecei a perceber que,
por mais que eu não quisesse enxergá-las, eu não conseguia fugir delas. (...)
Então, eu costumo dizer o seguinte, a luta sobre as questões étnico-raciais,
eu não fiz uma escolha, tipo acordei de manhã e falei: vou fazer esta traje-
tória. Esta trajetória me alcança, por mais que tivesse tido um momento de
negação, de negar a própria trajetória da sua família, os próprios lugares
que você ocupou, em algum momento, como aconteceu comigo, se encon-
trou este lugar. Neste encontro, cada um escolhe o que vai fazer. Tem gente
que escolhe fazer uma ruptura. Eu quero negar, ou eu quero entrar neste
terreno para poder debater. E foi isto que eu fiz, debater estas questões
e trazê-las, não a partir de uma experiência acadêmica, mas a partir de
minha própria vida. Da minha própria vida, de criança, adolescente, de
professor, e dos espaços que passei e das coisas que vi nestes espaços - (Pro-
fessor José Luiz, 2018).

Com esta narrativa, o professor José Luiz resume, de uma forma sin-
gular, como aconteceu seu processo de formação identitária perante as
questões sociais e étnico-raciais. Definições e demarcações, negações, en-
frentamentos, abandonos e escolhas são características presentes em sua
fala. Para Passegi; Nascimento; Oliveira, (2016, p. 123), a análise de nar-
rativas autobiográficas permite adentrar o universo mais subjetivo de do-
centes, o que “possibilita-lhes uma melhor compreensão do que os move
como indivíduos nos processos de sua constituição como pessoa e como
cidadã nos mais diversos contextos educacionais” Nosso sujeito docente
revela que sua trajetória formativa é atravessada por importantes e com-
plexas questões, às quais ele busca respostas, tendo como base suas múlti-
plas vivências experienciais.
Como afirmado, as narrativas de nossos sujeitos demonstram, entre
outras análises, que toda formação é também um ato político, pois envolve
intenções, ideologias e relações interpessoais. A escolha pelos cursos rea-
lizados pela professora Sônia, assim como as decisões profissionais toma-
das pelo professor José Luiz marcam suas posições e ideais. Como afirma
Delory-Momberger (2012, p. 529), “O que o relato enreda é o mundo da
intencionalidade, que é próprio do agir humano e nunca redutível a uma
pura causalidade antecedente”.

O encontro das práticas pedagógicas com a ERER


Seguindo o percurso das análises sobre as narrativas de nossos su-
jeitos, destacamos um importante momento em que os relatos revelam as
confluências de suas práticas docentes com as questões raciais:
A professora Sônia assim expõe:

150
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

A história de minha luta vem de uma vivência que sempre reconheceu a


exclusão de negros e negras dos contextos políticos, sociais, educacionais,
culturais, entre outros. Não encontrei nos espaços que estudei, da educa-
ção básica à graduação qualquer suporte. Todo o suporte adveio do meu
círculo familiar. Desde antes de ser professora, eu já era engajada nas
questões do Congado7; das benzedeiras, pois minha mãe é benzedeira; da
capoeira e da folia de reis. Tradições de matriz africana que sempre me
encantaram e pertencem a minha linhagem familiar. Para além disso tudo,
sempre reconheci essa negação e a insistência de manter esses sujeitos na
invisibilidade, então, eu os levava para a sala de aula. Foram anos e anos
nesse engajamento. Aproveitei muito de todos estes contextos e me aproxi-
mei de temáticas atraentes aos jovens e adolescentes. De que maneira essa
negação é perpetuada nos diversos meios de circulação cultural: música,
cinema, teatro, televisão, etc. Ensinando e aprendendo com os estudantes a
identificar os símbolos desta negação e as ideologias em torno das mesmas
- (Professora Sônia, 2018).

O professor José Luiz apresenta mais detalhes que envolvem experi-


ências iniciais com a ERER:
Quando eu entrei na sala de aula, eu descobri qual era o meu lugar no
mundo e o que eu queria fazer. Entre o fazer e o acontecer, era uma grande
trajetória. Uma coisa era o desejo que tinha, mas eu não tinha base para
começar um debate racial naquele lugar e também não tinha muita ajuda.
Vivi situações de injustiça nas quais eu tive que tomar uma posição. Eram
tempos muitos difíceis, no qual você era contratado e poderia ser manda-
do embora. Você ficava três, quatro, seis meses sem receber seu salário. A
grande maioria de professores eram R8. Antes de ser professor de formação
acadêmica, eu me tornei professor no ofício da vida e da escuta das pesso-
as; com os erros e atropelos que cometi no processo educacional, pois ainda
não tinha formação pedagógica pra estar no espaço da escola. Eu era um
menino de vinte e poucos anos. Eu dava aula pra pessoas praticamente da
minha idade e que viviam na mesma comunidade que eu vivia. Geralmente
os professores vinham do centro da cidade, e eu não, eu morava lá. Eu tive
que fazer minha demarcação, com todas as minhas contradições e mazelas
sociais, com tudo que eu era. Ser um professor, oriundo daquela comuni-
dade, filho de uma mãe analfabeta e de um pai carroceiro. Filho de uma
realidade completamente adversa. E dava aula todos os dias. Você lidava
com estes processos da maneira que você dava conta, de acordo com sua
vida e seu lugar. O fazer e a tomada de consciência na minha vida foi dado

7 As tradições citadas pela professora Sônia, Congado, Capoeira, Folia de Reis, assim como o ato de benzer, realizado
por/pelas benzedores/benzedeiras, fazem parte da cultura afro-brasileira, presente em várias regiões do país.
8 Na rede estadual de ensino do Estado de Minas Gerais existia a possibilidade de estudantes em formação inicial
assumirem turmas. A Secretaria de Educação concedia uma licença e o(a) professor(a) em formação recebia a
nomenclatura de professor.

151
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

no chão da vida e da escola e da militância. Eu não fui primeiro pra acade-


mia. Eu não tinha o livro primeiro. A leitura e a base teórica chegou depois.
Antes disso veio a vivência - (Professor José Luiz, 2018).

Patrícia Santana (2003) afirma em suas pesquisas que o percurso pes-


soal do(a) educador(a), assim como os processos de socialização por ele(a)
vivenciados, são mais formadores que a própria formação acadêmica. Tais
evidências podem ser constatadas nas narrativas dos sujeitos da presente
pesquisa que declaram, entre várias considerações, terem tomado cons-
ciência das importâncias inerentes a uma prática pedagógica pela diver-
sidade em lugares diversos, não somente na universidade. A professora
Sônia afirma que seus conhecimentos sobre as questões raciais, ou seja,
seus saberes docentes sobre a temática, foram assimilados inicialmente no
ambiente familiar e no encontro com as tradições afro-brasileiras de sua
comunidade, experienciadas no decurso de sua vida. Para Tardif (2005, p.
78), o saber-ensinar e o como-ensinar, ou seja, a personalidade docente,
“não é forçosamente ‘natural’ ou ‘inata’, mas é, ao contrário, modelada ao
longo do tempo por sua própria história de vida e sua socialização”.
O professor José Luiz, por sua vez, adquire uma grande parte dos
saberes, no que tange à ERER no exercício de sua prática docente, quando
ainda cursava a formação inicial. Conforme as palavras de nosso sujeito,
seus aprendizados aconteceram “no chão da vida, da escola e da militân-
cia”. Sua narrativa corrobora os estudos de Contreras (2002), quando este
afirma que os saberes constituídos por meio da experiência pessoal pas-
sam a interagir com os saberes extraídos de um processo formativo, es-
tabelecendo sentidos e objetivos no fazer docente, transformando-se em
saberes docentes.
As pesquisadoras Ana Caldeira e Samira Zaidan (2013) compartilham
desse ponto de vista ao afirmarem que, observando as práticas pedagógicas
sob uma perspectiva histórico-crítica, o ser humano é o sujeito autônomo
de suas ações, portanto, autor do conhecimento que rege suas práticas e
também sujeito político de suas consequências. Dessa forma, ele é respon-
sável por conferir importância às suas experiências e tem a decisão de inferir
questões de sua prática na elaboração do pensamento teórico. Vamos com-
preender um pouco mais das trajetórias do professor José Luiz:
Depois desta primeira experiência como professor, saí pra trabalhar em
outras escolas. Eu trabalhei um certo tempo em uma escola que fica em
outra região da periferia de Betim. Lá tinha muitas professoras negras e a
dificuldade era muito grande. A gente criou uma rede de solidariedade, da
carona, da conversa, a gente criou um vínculo de ajuda. E trabalhando na
comunidade, com todos os desafios que os meninos tinham. Na minha ca-
minhada, encontrei com meus pares, encontrei com os movimentos sociais,

152
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

religiosos e preciso destacar que não são somente religiosos de matriz afri-
cana, mas também dentro da igreja católica, dentro da igreja evangélica,
eu conheci negros e negras que ao longo de sua jornada fizeram esta luta
e esta demarcação de espaço. Ao longo deste processo, eu enfrentei e tive
que demarcar a questão racial, de forma coletiva, com os alunos e colegas.
Neste processo, eu acabei entrando pra luta sindical. Por uma questão de
sobrevivência, de direito, de justiça social. Eu não nasci com uma consciên-
cia sindical e política, eu aprendi esta consciência porque tive direitos que me
foram negados. Direitos sociais e individuais - (Professor José Luiz, 2018).

Neste momento de sua narrativa, o professor José Luiz relata uma


trajetória de experiências coletivas, realizadas entre docentes e pessoas
envolvidas com outras caminhadas, entre elas, movimentos sociais e re-
ligiosos. Evidencia uma formação coletiva, proveniente de encontros e
aprendizados, que o levará a discutir também coletivamente as questões
raciais em outros espaços, além do contexto escolar. Tal situação é men-
cionada, nos estudos da pesquisadora Luiz (2014), quando ela afirma que os
vários processos formativos agem como um filtro para as relações sociais,
pois os docentes passam a questionar as questões raciais não somente em
suas práticas pedagógicas, mas também nos ambientes de socialização no
universo do trabalho e das relações pessoais.
Outro aspecto de muita importância no relato acima é a participação
do movimento negro na trajetória do educador. De forma institucionali-
zada, ou não, o encontro entre pessoas que discutem a questão social, no
caso em questão, a respeito da inclusão da ERER, é para nós uma ação de
militância, ou seja, um movimento de pessoas que lutam pela diversidade.
Para Gomes (2005, p. 153), pensar e agir com o objetivo de inserir as políti-
cas pedagógicas da ERER nos espaços escolares é muito mais que a leitura
de livros e manuais informativos, mas sim modificar a estrutura histórica
eurocentrista presente no ambiente escolar: “Significa dar subsídios aos
professores, colocá-los em contato com as discussões mais recentes sobre
os processos educativos, culturais, políticos”. Percebo que o encontro do
professor José Luiz com os movimentos citados e com outros(as) colegas
negros(as) docentes, assim como a participação da professora Sônia nos
vários movimentos tradicionais de sua cidade, contribuíram significativa-
mente em suas caminhadas para, no futuro, conseguirem protagonizar um
trabalho de excelência e vanguardismo na implementação da ERER.

Reverberações dos processos formativos em contextos não escolares:


considerações finais
Após o exercício de escuta das narrativas de nossos sujeitos docen-
tes, assim como a possibilidade de algumas possíveis análises, caminha-
mos para as considerações finais do artigo. Percebemos, no desenvolvi-

153
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

mento desse texto, como as trajetórias formativas individuais, ainda que


diferenciadas, percorrem caminhos paralelos, entremeados por discussões
sobre a formação da identidade, enfrentamento ao racismo, demarcação
social, engajamento político, importância da coletividade, entre outras ca-
tegorias. Neste momento, iremos dissertar brevemente sobre as vivências
de nossos sujeitos em momentos posteriores às suas experiências como
coordenadores docentes na rede municipal da cidade de Juatuba. Tais re-
latos são importantes para uma compreensão mais acurada acerca dos re-
flexos de seus conhecimentos nas variadas práticas sociais extraescolares.
O professor José Luiz assim narra suas experiências:
Na verdade, eu nunca saí da escola, ou a escola nunca saiu de mim. Eu
saí de Juatuba e fui pra direção do Sindicato Único dos Trabalhadores em
Educação de Minas Gerais (Sind-UTE) e acabei assumindo o departamen-
to de coordenação pedagógica do Estado, o departamento de formação.
O Sind-UTE é um dos maiores sindicatos do estado de MG, o segundo
maior do Brasil e o terceiro da América Latina. Levei a questão racial para
lá. Constantemente a gente tem que se educar em relação às questões de
gênero e às questões raciais. Nós temos coletivamente que nos reeducar
enquanto entidade. No período em que estive na direção do departamento,
fundamos o coletivo de combate ao racismo “Carolina de Jesus”. Realiza-
mos o Prêmio João Cândido, que premiava as escolas de Minas Gerais que
tiveram experiências pedagógicas nas questões raciais. Elaboramos vários
debates pedagógicos, em relação à questão racial, em todo o estado de Mi-
nas Gerais. Fui compor e ainda estou no coletivo de Igualdade Racial da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que en-
volve todos os sindicatos de educação do País, que é o coletivo racial Gal-
vani Lélis, que depois virou uma secretaria de combate ao racismo. Ingres-
sei nas fileiras do Movimento Negro Unificado (MNU). A gente tem um
grupo focal de estudo sobre a questão racial do país, um grupo permanente
de discussão, com as experiências de todos os estados da federação. Nestes
espaços, eu pude compreender e perceber que além da gente, outras pessoas
faziam lutas raciais nas escolas públicas, com olhares diferentes. Tive co-
nhecimento, não só do ponto de vista teórico, mas de visitação de trabalhos
em escolas sobre a temática, em todo o país e descobri, ao longo do tempo,
como que estas experiências eram solitárias. A gente começou a trazer estas
experiências para a coletividade, para cada um falar de seu espaço, de seu
lugar, da sua experiência pedagógica. Mais ainda, sempre focado nos sujeitos
mais importantes do processo, que são os nossos alunos, que estão na escola,
que é cada professor, trabalhador e trabalhadora que está dentro da escola.
Porque a gente educa e ao mesmo tempo a gente se educa a partir de uma
prática coletiva. Participei também de uma campanha chamada “10639 ve-
zes racismo é crime”, que foi uma campanha nacional, que a CNTE fez de
combate ao racismo, tivemos vários encontros neste período, vários, pelo país
afora para debater a questão racial - (Professor José Luiz, 2018).

154
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

O professor narra um processo de evolução significativa em sua


carreira como sindicalista, levando sempre consigo a defesa pela imple-
mentação dos direitos pela igualdade étnico-racial. São presentes, em sua
caminhada, as mesmas características que apresentou em seu processo
formativo enquanto docente, ou seja, uma busca constante pela demarca-
ção social, a luta sempre intensa pelo enaltecimento daqueles(as) que são
socialmente invisibilizados(as) e uma preocupação para com a coletividade
no sentido de valorização e fortalecimento de seus pares. O professor José
Luiz hoje representa uma liderança sindical dos trabalhadores em educa-
ção, tendo em vista o conflituoso processo de implementação e efetivação
da lei 10639/2003 nas várias instâncias do estado de Minas Gerais. Fato
constatado nas várias participações em coletivos docentes, secretarias,
campanhas, premiações, práticas pedagógicas e outras ações que possuem
como tema a questão da ERER na sociedade. É possível afirmar que toda
uma trajetória formativa, reverbarizada no seu protagonismo docente em
uma esfera municipal, hoje encaminha o professor sindicalista para um
papel também protagonista no que se refere à discussão pela diversidade
em vários espaços de importância no cenário estadual, quiçá nacional.
Vamos conhecer os caminhos traçados pela professora Sônia após as
vivências ocorridas na rede de ensino de Juatuba:
Em 2013, recebi um convite que a princípio recusei: assumir a secretaria
de cultura e turismo da cidade de Juatuba, onde sempre vivi e que carre-
ga a história de toda a minha família. Minha mãe me convenceu a acei-
tar, dizendo que era a oportunidade de mostrar que eu era capaz de fazer
mais pela cidade do que dar aulas, o que já é muita coisa e um desafio.
Mas assumir a responsabilidade de gestora de uma pasta era algo novo
e aprendi muito. Nesse universo tão novo, abrimos espaço, eu e a equipe
que estava comigo, para dialogar com grupos antes ignorados pelo poder
público. Então, iniciamos entusiasmados, dialogando com as benzedeiras,
não somente pelo fato de minha mãe ser uma delas, mas para desconstruir
a imagem negativa que algumas pessoas da sociedade ainda persistiam
contra a figura de senhoras e senhores tão importantes à manutenção da
saúde espiritual da cidade. Foi um trabalho que se iniciou em 2013 e se
consolidou em um livro em 2018. Elas se tornaram, inclusive, patrimônio
imaterial da cidade. Na mesma vertente, catalogamos todos os Terreiros de
Candomblé da cidade, dando visibilidade ao templo sagrado das religiões
de matriz africana, promovendo mostras, encontros e seminários. A Folia
de Reis, coordenada por um dos benzedores e raizeiros, entrou para o livro
de registros do IEPHA9 como parte do patrimônio do Estado de Minas
Gerais. Assim como alçamos a capoeira e a inserimos no catálogo nacional

9 Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico – IEPHA.

155
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

do IPHAN10, devido ao número de envolvidos com a capoeira na cidade.


Promovemos seminários, encontros e cursos de formação aos capoeiristas.
Em todas as ações, a educação esteve atrelada ao trabalho como ponto de
confluência para o mesmo fluir com a naturalidade e importância necessá-
rias à educação cultural de uma cidade. Promovemos também a proteção à
uma faixa territorial próxima às margens do Rio Paraopeba e das empresas
locais como território arqueológico protegido a nível municipal, tendo em
vista a identificação de vestígios arqueológicos de tribos indígenas nos lo-
cais - (Professora Sônia, 2018).

Na narrativa da docente Sônia, ocupando então o cargo de Secretária


de Cultura e Turismo da cidade de Juatuba, é também perceptível, entre
outras questões, a manutenção das principais características presentes em
todo seu processo formativo, sendo eles: o incentivo familiar, o esforço
individual e a valorização do conhecimento. Assim como na sala de aula
e na coordenação pedagógica, a gestora Sônia envolve em suas ações gru-
pos antes silenciados pela sociedade e pelo poder público. Junto com sua
equipe, Sônia lidera uma administração que promove políticas públicas
de reconhecimento das tradições afro-brasileiras, destacando as religiões
de matrizes africanas, as(os) benzedeiras/benzedores e a capoeira, promo-
vendo encontros, diálogos, festas, exposições, estudos e registros, entre
outras ações. Tais esforços foram ressignificados na produção de um livro,
além de suas oficializações nos registros de órgãos públicos de importan-
te competência, como o IEPHA e o IPHAN, objetivando salvaguardá-los,
preservando assim suas histórias e costumes.
A exemplo do professor José Luiz, enquanto sindicalista, a profes-
sora Sônia, ocupando o cargo de gestora de uma pasta municipal, torna-se
também protagonista no que se refere à promoção da igualdade étnico-
-racial, tendo como foco a valorização das tradições afro-brasileiras per-
tencentes a sua cidade e a sua história.
Tínhamos como objetivos do presente artigo conhecer, por meio das
narrativas autobiográficas, as diversas trajetórias formativas dos sujeitos
docentes desta pesquisa, e, quando possível, elaborar algumas análises
teóricas. Cada um com sua singularidade, percorreu seu caminho, rea-
lizando suas próprias reflexões, enfrentando seus conflitos particulares.
Retomando novamente as palavras de Delory-Momberger (2012, p. 524),
afirmamos que “o objeto da pesquisa biográfica é explorar os processos
de gênese e de devir dos indivíduos no seio do espaço social, de mostrar
como eles dão forma a suas experiências, como fazem significar as situa-
ções e os acontecimentos de sua existência”. Não tivemos a proposta de
elaborar e distinguir valores sobre qual ou quais experiências são mais ou

10 Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.

156
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

menos formativas. Tivemos o objetivo de conhecer e afirmar, por meio da


escuta e análises das histórias de vidas para nós contadas, que processos
formativos existem durante toda uma vida e que todas as caminhadas são
importantes na constituição dos saberes docentes sobre a ERER. A cons-
tatação que se torna mais importante ressaltar é a singularidade presente
em cada narrativa, ou seja, cada trajetória é única e particular, ainda que
existam similaridades e contextos sócio-históricos páreos. Nas palavras da
autora, o que uma “entrevista de pesquisa biográfica procura apreender e
compreender é justamente a configuração singular de fatos, de situações,
de relacionamentos, de significações, de interpretações que cada um dá
à sua própria existência e que funda o sentimento que tem de si próprio
como ser singular”.
As narrativas emprestadas pelos sujeitos da pesquisa confirmam que
estamos cotidianamente em um processo de formação e que nessa traje-
tória, principalmente em se tratando de questões étnico-raciais, somos
obrigados a fazer escolhas, muitas de valores incompreensíveis para a so-
ciedade. Ao termos contato com as histórias de vidas presente no artigo,
temos a oportunidade de também revermos nossas vivências formativas,
elaborando individualmente uma análise sobre a aquisição de nossos sabe-
res, ou seja, sobre nossas experiências relacionadas à ERER. Sentimentos
de similaridade, afinidades ideológicas, coincidências comportamentais,
semelhanças de contextos sociais, ou mesmo o indeferimento das ideias
aqui expressas podem contribuir para uma mais apurada explicação do
que somos na atualidade, ou então daquele(a) que desejamos ser. Tal con-
sideração condiz com os ensinamentos presentes em Souza (2012, p. 26),
quando este autor afirma que a metodologia de pesquisa centrada na abor-
dagem biográfica possui tamanha potência, pois:
configura-se como investigação porque se vincula à produção
de conhecimentos experienciais dos sujeitos adultos em forma-
ção. Por outro lado, é formação porque parte do princípio de
que o sujeito toma consciência de si e de suas aprendizagens
experienciais quando vive, simultaneamente, os papéis de ator e
investigador da sua própria história (SOUZA, 2012, p. 26).

Por fim, temos a consciência que um texto acadêmico não é finaliza-


do com citações. Porém, como todo este artigo possui como principal in-
tenção ouvir vozes silenciadas, não encontramos problemas em terminá-lo
com as palavras de nossos personagens protagonistas. Seguem, respecti-
vamente, as narrativas finais da professora Sônia e do professor José Luiz:
A militância é algo que se vive continuamente. É preciso saber ouvir, falar e
ocupar espaços com leveza, mas também com a firmeza necessária. O medo

157
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

é necessário enquanto cautela, mas viver com medo é morrer aos poucos. É
preciso saber viver... falar... ouvir... respeitar... E um dia, quando nenhum
de nós mais existir, ficará o que chamamos de legado e é este legado que
fará com que as pessoas se lembrem que a alma é imortal. Se hoje falamos
destes temas, lá atrás, alguém venceu o medo e lutou. Então, devemos isso
aos nossos ancestrais - (Professora Sônia,2018).
Eu até costumo dizer pras pessoas que discutir e discorrer sobre as questões
raciais, do ponto de vista teórico, é muito fácil. Mas, falar de uma pers-
pectiva, a partir das marcas que eu carrego e trago na vida, dá um outro
significado, porque você é o sujeito daquele processo. As marcas ficam, elas
não desaparecem, são como cicatrizes que eu carrego na alma. Elas não
desapareceram, mas eu consigo hoje passar a mão sobre elas e ver que elas
estão ali, com muita tranquilidade. Vou continuar caminhando, mas não
vou ser mais tão afetado por aquela situação - (Professor José Luiz, 2018).

Referências

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília/DF. Outubro de 2004.
CALDEIRA, Ana Maria. ZAIDAN, Samira. Práxis pedagógica: um desafio
cotidiano. Paidéia, Belo Horizonte, ano 10. n. 14. p. 15-32 jan./jun. 2013.
CANEN, Ana; XAVIER, Giseli Pereli de Moura. Formação continuada de
professores para a diversidade cultural: ênfases, silêncios e perspectivas.
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, p. 641-661, set./
dez. 2011.
CARVALHO, Carlos Alberto de; PLETSCH, Márcia Denise. Entrevista por
uma escola que reconheça as diferentes culturas presentes em seu contexto.
Movimentos sociais, processos de inclusão e educação. Revista Teias, Rio
de Janeiro, v. 12, n. 24, p. 279-284, jan./abr. 2011.
CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo,
preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto,
2005. 112 p.
COELHO, Wilma de Nazaré Baía; PADILHA, Maria do Socorro Ribeiro.
Formação de professores e conhecimento teórico-metodológico sobre
racismo, preconceito e discriminação racial no Ensino Fundamental.
Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 4, n. 1, 2011.
CONTRERAS, José. A autonomia de professores. Tradução de Sandra
Trabuco Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2002. 296 p.
DELORY-MOMBERGER, Christine. Abordagens metodológicas na
pesquisa biográfica. Tradução de Anne-Marie Milon Oliveira. Revisão

158
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

técnica de Fernando Scheibe. Revista Brasileira de Educação, Rio de


Janeiro, v. 17 n. 51, p. 523-536, set./dez. 2012.
FAZZI, Rita de Cássia. O drama racial de crianças brasileiras: socialização
entre pares e preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 228 p.
FLICK, Uwe. Entrevista Episódica. In: BAUER, Martin W.; GASKELL,
George (orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual
prático. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 114 - 136.
GOMES, Nilma Lino. As práticas pedagógicas com as relações étnico-
raciais nas escolas públicas: desafios e perspectivas. In: GOMES, Nilma
Lino (org.). Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais
na escola na perspectiva da Lei n. 10.639/2003. Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2012. p. 19-34.
GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial e educação no contexto
brasileiro: algumas reflexões. In: GOMES, Nilma Lino. Um olhar além das
fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
p. 97-109.
GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre
Algumas Estratégias de Atuação. In: MUNANGA, Kabengele (org.).
Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p.
143 -154.
GOMES, Nilma Lino; JESUS, Rodrigo Ednilson de. As práticas pedagógicas
de trabalho com relações étnico-raciais na escola na perspectiva de Lei
10639/2003: desafios para a política educacional e indagações para a
pesquisa. Educar em Revista, Curitiba, Brasil. n. 47, p.19-33, jan./mar. 2013.
GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves.
Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n.1, p. 109-123, jan./jun. 2003.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27902. Acesso em:
8 jul. 2016.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil.
2. ed. São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo: Ed. 34,
2005. 254 p.
JESUS, Rodrigo Ednilson de; MIRANDA, Shirley Aparecida. O processo
de institucionalização da lei nº 10639/03. In: GOMES, Nilma Lino (org.).
Práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na escola
na perspectiva da Lei n. 10.639/2003. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2012. 421 p.

159
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

LUIZ, Maria Fernanda. Educação das relações étnico-raciais:


Contribuições de cursos de formação continuada para professoras(es). São
Carlos: UFSCar, 2014. 138 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal
de São Carlos, 2013.
MELGAÇO, Paulo Henrique Maia. A formação continuada para a
educação das relações étnico-raciais: Um estudo de caso sobre um Curso
de Aperfeiçoamento em História da África e das culturas Afro-Brasileiras.
2019. 169 f. Dissertação (Mestrado em Educação e Formação Humana) –
Faculdade de Educação, Universidade do Estado de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2019.
MONTEIRO, Ana Maria Ferreira da Costa. Professores: Entre Saberes e
Práticas. Educação & sociedade, ano XXII, n. 74, p. 121-142, abr. 2001.
MUNANGA, Kabengele (orgs.). Estratégias e políticas de combate à
discriminação racial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo:
Estação Ciência, 1996. 304 p.
MUNANGA, Kabengele. Políticas de Ação Afirmativa em benefício da
População negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. In:
GOMES, Nilma Lino; MARTINS, Aracy Alves (orgs.). Afirmando direitos:
acesso e permanência de jovens negros na universidade. Belo Horizonte:
Ed. Autêntica, 2004.
OLIVEIRA, Fernanda Silva. O desafio da implementação do ensino de
história e cultura africana e afro-brasileira na prática pedagógica. Paidéia,
Belo Horizonte, ano 8, n. 11, p. 53-70, jul./dez. 2011. Disponível em: http://www.
fumec.br/revistas/paideia/article/viewFile/1309/890. Acesso em: 21 jun. 2017.
PASSEGI, Maria da Conceição; NASCIMENTO, Gilcilene Lélia
Souza; OLIVEIRA, Roberta Ceres Antunes Medeiros de. As narrativas
autobiográficas como fonte e método de pesquisa qualitativa em educação.
Revista Lusófona de Educação, Lisboa, n. 33, p. 111-125, 2016.
PEREIRA, M. M.; SILVA, Mauricio. Percurso da Lei n. 10639/03 e o ensino
de história e cultura africana no Brasil: antecedentes, desdobramentos e
caminhos. Em Tempo de Histórias, Brasília, v. 1. p. 125-135, jul. 2013.
PINTO, Maria das Graças Gonçalves. O lugar da prática pedagógica e dos
saberes docentes na formação de professores. Acta Scientiarum. Education
Maringá, v. 32, n. 1, p. 111-117, 2010.
RESSURREIÇÃO, Sueli Barros da. Jovens indígenas universitários:
experiências de transições e etnogênese acadêmica nas fronteiras
interculturais do desenvolvimento, s/l, 2015. 414 f, Tese (doutorado)
Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Salvador, 2015.
SANTANA, Patrícia. Professores negros, trajetórias e travessias. Belo
Horizonte: Mazza. Edições, 2003. 159 p.

160
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

SANTOMÉ, Jurjo Torres. As culturas negadas e silenciadas no currículo.


In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Alienígenas na sala de aula: uma
introdução aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 2009.
p. 159-177.
SANTOS, Lorene dos. Saberes e práticas em Redes de Trocas: a temática
Africana e afro-brasileira em questão. 2010. 334 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2010.
SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei nº 10.639/2003 como fruto da
luta antirracista. In: Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei
Federal nº 10.639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 21-38
SANTOS, Simone Ferreira Soares dos. A Lei nº 10.639/2003 e a formação
continuada para a discussão das relações étnico-raciais do 6º ao 9º anos
em uma escola pública estadual de Campo Grande – MS com alto IDEB.
Campo Grande, Universidade Católica Dom Bosco – UCDB, 2016. 123 f.
Dissertação (mestrado em educação) – Universidade Católica Dom Bosco,
Campo Grande, 2016.
SILVA, Rafael Ferreira. Educando pela diferença para a igualdade:
professores, identidade profissional e formação contínua. Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo. 2010. 310 f. Dissertação (mestrado
em educação) – Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2016.
SOUZA, Eliseu Clementino. A arte de contar e trocar experiências:
reflexões teórico-metodológicas sobre história de vida em formação.
Revista Educação em Questão, Natal, v. 25, n. 11, p. 22-39, jan./abr. 2006.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 5. ed. Rio
Janeiro: Ed. Vozes, 2005. p. 328.
TEIXEIRA, Inês A. de Castro; PÁDUA, Karla Cunha. Virtualidades e
Alcances da Entrevista Narrativa. In: Congresso Internacional sobre
Pesquisa (auto) biográfica. Salvador: UNEB, 2006. p. 2 - 23

161
CAPÍTULO 7

A TRAJETÓRIA FORMATIVA
DE UMA PEDAGOGA: A REFLEXÃO
DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE
PROFISSIONALIDADE DOCENTE

Marilene do Carmo Silva (UFOP)


Regina Magna Bonifácio de Araújo (UFOP)

Introdução
Este texto é fruto de pesquisa realizada para a disciplina eletiva Nar-
rativas Docentes: aspectos metodológicos e formativos, do Programa de
Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Ouro Preto.
Com ele, pretendemos refletir sobre a entrevista narrativa como instru-
mento importante nas pesquisas de abordagem qualitativa e compreender,
por meio dos relatos de educadores(as), os desafios presentes na formação
docente. Neste trabalho apresentamos a narrativa de uma pedagoga que
atua na rede municipal da cidade de Ouro Preto, graduada em Pedagogia e
Mestre em Educação pela UFOP. Aos 27 anos de idade ela se encontra no
primeiro ano de atuação profissional e traz em sua narrativa as marcas das
experiências vividas.
Acolher narrativas docentes nos permite compreender a constitui-
ção da identidade desses profissionais enquanto processo dinâmico que
se reconstitui imerso numa rede de socializações (GIDDENS, 2001), bem
como, conhecer suas trajetórias formativas marcadas por expectativas,
frustrações, medos, alegrias e vitórias. As narrativas, na dicotomia entre o
singular e o plural, são histórias de vida ao mesmo tempo em que são his-
tórias vividas no coletivo, recebendo influências do entorno, do momento
social e político, mas também influenciando outros ao seu redor.
Este texto parte da conceituação das narrativas inseridas na con-
cepção de uma pesquisa de abordagem qualitativa no campo da educação,
destacando suas possibilidades e limitações e, na sequência, busca estabe-

163
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

lecer aproximações entre os aspectos da formação inicial e da profissio-


nalidade docente, que emerge da narrativa de uma educadora/pedagoga
que atua na rede municipal. Ancorado no entrelaçamento entre formação
e profissionalidade, o texto visa apresentar a experiência formativa dessa
profissional, a relação entre a sua formação inicial e a sua atuação como
pedagoga, destacando ainda a sua participação na formação continuada
dos(as) professores(as) da rede em que atua.

As especificidades das narrativas


Vivemos um tempo de narrar, um tempo de falar as nossas palavras e
de tecê-las numa grande e colorida colcha. Um tempo ancorado nas nossas
possibilidades de fazer história e, de ao fazê-las, contar e recontar nossas
experiências. Tempo de ratificar a importância de refletir sobre os dife-
rentes espaços que se mesclam e constituem os processos de aprender, de
ensinar e de tornar-se professor(a).
O ato de narrar histórias, causos ou acontecimentos vem diminuin-
do com o passar do tempo, com a velocidade com que a sociedade vai se
transformando e se impondo cada vez mais, na correria do dia a dia, seja no
trabalho, nos estudos, na família, nos afazeres domésticos e, mais recente-
mente, no computador, no celular, nas redes sociais e jogos eletrônicos. Não
é comum parar para ouvir ou mesmo contar histórias, pois vivemos em um
mundo célere em que corremos contra o tempo, “O ritmo acelerado da vida
moderna, por sua vez, fez desaparecer a capacidade do ouvinte assimilar a
experiência narrada à sua própria experiência para poder recontá-la, impri-
mindo sua marca nas histórias” (TEIXEIRA; PÁDUA, 2006, p. 2).
De acordo com Teixeira e Pádua (2006) apesar de ir desaparecendo
aos poucos o ato de narrar, os pesquisadores, que trabalham com Oralida-
de e História Oral na pesquisa social, e mais recentemente os educadores,
vão em busca de narrativas, de possíveis narradores e suas experiências.
Para as autoras, tal metodologia “propõe-se a escutar os sujeitos que, ge-
nerosamente, emprestam e confiam suas vidas aos/as entrevistadores/as,
que delas recolhem não somente os fatos, mas os sentidos, os sentimentos,
os significados e interpretações que tais sujeitos lhes conferem” (TEIXEI-
RA; PÁDUA, 2006, p. 2).
O sujeito que aceita expor uma narrativa de si mesmo confia ao en-
trevistador a sua experiência, a sua vivência, seja ela, pessoal, profissional
ou formativa, e ao narrar revive tais momentos em cada recordação. Bon-
día Larrosa (2002) alerta que experiência é diferente de informação. Para o
autor o saber da experiência se distingue do saber coisas.
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.

164
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo,


quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa
está organizado para que nada nos aconteça (BONDÍA LAR-
ROSA, 2002, p. 21).

Essas palavras nos remetem a uma questão que é fundamental consi-


derar nas narrativas, a nossa memória é seletiva e aquilo que não nos toca
não nos move e, portanto, não fica na memória como algo importante e
significativo. A memória é seletiva, também, porque nem tudo que lem-
bramos nos permitimos transmitir ao outro. Compartilhamos aquilo que
ao nosso olhar faz sentido naquele momento, naquele diálogo e naquelas
circunstâncias. O que nos leva a refletir acerca da sensibilidade com que o
entrevistador deve se aproximar daquele que narra e respeitar as singulari-
dades e não forçar ou constrangê-lo a ir além dos seus limites.
Ao trabalharmos com narrativas estamos frente a processos de ouvir,
registrar, reler, contar, dar sentido, analisar e “poder-se-ia, ainda, acres-
centar interpretar, uma vez que quem lê, necessariamente, dá um novo
sentido ao texto, de acordo com as suas vivências e referências” (GALVÃO,
2005, p. 332). É preciso um olhar atento e uma escuta sensível e livre, o que
não é um processo fácil e simples, pois implica não uma descrição por si
só, mas uma reinterpretação do já narrado considerando que “os narra-
dores escolhem partes significativas do todo, mas acrescentam-lhe outros
elementos interpretativos” (GALVÃO, 2005, p. 332-333). A todo o tempo o
pesquisador se desafia então a estruturar a narrativa de forma a ser anali-
sada e interpretada, com respeito e sensibilidade, transformando-a em um
relato coerente e agradável ao leitor.
A narrativa como relato de investigação pressupõe a escolha
do que parece ser um discurso claro e coerente para que a his-
tória tenha sentido e credibilidade para quem lê. Tratando-se
de um texto científico e não apenas literário, implica o recurso
a normas de escrita, simultaneamente reveladoras dos dados
de uma investigação e agradáveis para que o texto seja lido
com agrado. Digamos que o prazer da leitura não pode sobre-
por-se à pertinência científica da investigação, ao mesmo tem-
po que a descrição pretensamente objetiva de inúmeros dados
não pode ultrapassar a intenção de captar para a leitura (GAL-
VÃO, 2005, p. 342).
Com efeito, as narrativas nos permitem a elaboração de imagens, a
atribuição de significados às experiências relatadas e a captura dos percur-
sos que expressam a identidade daquele(a) que narra, e assim dar sentido
aos acontecimentos organizados em uma determinada sequência narrada.
Teixeira e Pádua (2006) questionam de que é feita a narrativa e qual é a sua
matéria prima, e esclarecem:

165
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A narrativa se nutre da memória para narrar o que aconte-


ceu em torno de determinada experiência, ou melhor, ela (re)
constitui e (re) compõe uma experiência, cuja lógica é tecida
no modo do/a narrador/a transitar entre os eventos e imagens
mais e menos significativos, que no todo constroem o enredo
e o sentido da história, podendo cativar e encantar o ouvinte
(TEIXEIRA; PÁDUA, 2006, p. 3).

É evidente que uma entrevista narrativa consiste em uma história


que o sujeito conta, acerca de determinado fato, acontecimento ou expe-
riência, a depender do interesse do pesquisador ou daquele que escuta. As
experiências narradas estão registradas na memória do narrador(a) e são
carregadas de sentido, de emoção e de realismo. Daí que este seja um mo-
mento sem interrupções, sem percalços, um momento fluído não definido
pelo tempo de que ouve, mas pelo de quem narra.
Em geral, uma “entrevista narrativa inicia-se com uma questão ge-
rativa referente ao estudo, que tem por finalidade estimular a narrativa
principal do entrevistado” (TEIXEIRA; PÁDUA, 2006, p. 9). Na formulação
da questão gerativa deve considerar tudo que o investigador deseja saber,
de forma clara e objetiva. Deve-se considerar o perfil do narrador para que
a pergunta seja mais ou menos densa, mais ou menos formal. O impor-
tante é que o narrador compreenda o que está sendo solicitado e se abra,
discorrendo sobre a questão de forma natural, que se sinta seguro diante
do outro que lhe ouve, revelando as tramas da sua experiência, detalhes da
sua percepção dos fatos e acontecimentos.
Ao assumir uma entrevista narrativa como procedimento de investi-
gação, pode-se fazer a opção por conduzi-la oralmente ou utilizar os recur-
sos da escrita. Na entrevista oral há um contato direto entre narrador e en-
trevistador em que é possível captar gestos, movimentos, pausas, emoções,
dentre outros aspectos que podem ter muito valor no momento de análise.
Após uma narrativa conduzida oralmente é viável ao pesquisador retomar
alguns pontos que sejam de seu interesse, como esclarecimentos ou mes-
mo acrescentar algo que tenha surgido no relato. Por outro lado, a depen-
der do assunto tratado, pode ser que o sujeito fique constrangido por estar
frente ao outro, ao desconhecido e que limite de certa forma seus relatos.
No caso da narrativa escrita, em que há um contato entre entrevis-
tador e entrevistado, mas antes e após a narrativa, não durante, a condu-
ção da mesma transcorre diferentemente da anterior. Ao realizar este tipo
de entrevista, o pesquisador entrega pessoalmente ou envia por e-mail a
questão gerativa com as devidas instruções e é combinada uma data de
devolução da narrativa. Há pessoas que preferem escrever ao invés de falar
e, neste caso, essa opção é vantajosa, pois a narrativa poderá ser mais rica
em detalhes. Outra vantagem é em relação ao tempo, pois o texto escrito

166
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

pode ser feito em “qualquer lugar” e no tempo oportuno para aquele que
vai narrar, ao contrário da entrevista oral em que depende das duas partes
(narrador e entrevistador) a definição de espaço e tempo da narrativa.
Em contrapartida, nas entrevistas que se utilizam das narrativas escri-
tas os colaboradores podem demorar mais na devolutiva. O narrador, neste
caso, também poderá ver e rever o que foi narrado/escrito, o que possibilita
acrescentar e/ou retirar detalhes já mencionados, questões que o pesquisa-
dor não terá acesso. Outro ponto é que se houver alguma questão de interes-
se ou dúvida do pesquisador após a leitura da narrativa, pode ser mais difícil
esclarecer já que o narrador não está presencialmente ao seu alcance.
Trabalhar com narrativas não é um processo fácil, o pesquisador pre-
cisa receber as palavras do narrador, abraçá-las e nelas mergulhar tentan-
do apreender e compreender o dito e o não dito, indo além de uma simples
interpretação. Entretanto pode resultar em trabalhos muito ricos conside-
rando as potencialidades de uma narrativa, os detalhes e riquezas presen-
tes na fala do outro, assim como as especificidades de cada narrador. Uma
narrativa jamais é repetível, pois representa as singularidades daquele que
fala, daquele que escuta, do momento, do ambiente e de todo o contexto
que envolve o ato de narrar.
Considerando que as narrativas trazem singularidades dos entrevis-
tados e a proposta de conhecer a formação e atuação de pedagogos(as) da
nossa região, o necessário exercício de ouvi-los(as) era imperativo. E essa
experiência será relatada parcialmente a seguir, na voz de uma pedagoga
em início de carreira, desvelando as belezas e contradições da formação e
da profissão.

A formação docente e os desafios do início de carreira


Nossas incursões nos territórios da formação docente nos conduzi-
ram a este momento de diálogo com aqueles e aquelas que ao concluírem
sua licenciatura, se inserem na profissão, iniciando-os(as), também, na di-
fícil tarefa de educar e formar. Um território que mesmo sendo objeto de
inúmeras pesquisas ainda carece de concretização como espaço formati-
vo e de transformação; um território que merece nosso cuidado e nossa
atenção com aqueles(as) que formarão crianças, jovens e adultos para os
tempos atuais e vindouros.
Apresentamos, portanto, a narrativa de uma pedagoga que atua na
rede municipal da cidade do município de Ouro Preto, graduada em Pe-
dagogia e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto
– UFOP. Ela possui 27 anos de idade e se encontra no primeiro ano de
atuação profissional, ou seja, em início de carreira.

167
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Utilizamos a narrativa escrita como instrumento, o que foi decidido


em comum acordo com a pedagoga entrevistada, considerando sua sobre-
carga de trabalho quando foi convidada para a pesquisa. Essa opção pela
escrita em detrimento da entrevista oral pareceu a mais apropriada naque-
le momento. A partir da questão gerativa proposta, e que será apresentada
posteriormente, optamos pela análise de conteúdo como técnica de com-
preensão dos dados.
A análise de conteúdo pode ser considerada como um conjun-
to de técnicas de análises de comunicações, que utiliza proce-
dimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens. A intenção da análise de conteúdo é a inferên-
cia de conhecimentos relativos às condições de produção e de
recepção das mensagens, inferência esta que recorre a indica-
dores (quantitativos ou não) (BARDIN, 1977 apud FRANCO,
2008, p. 24).

Buscamos, assim, instaurar um espaço de reflexão, no qual a pedago-


ga pudesse narrar suas pautas, suas vivências e expressar seus sentimentos
por escrito, o que foi posteriormente lido, interpretado e analisado con-
siderando os aportes teóricos de Bardin (1977) e Franco (2008), num exa-
me detalhado, sem deixar de considerar as observações e percepções das
pesquisadoras. Recorrendo a indicadores não quantitativos, as categorias
foram estabelecidas a priori por meio da questão gerativa, entretanto ao
imergir na narrativa percebemos outros elementos que nos levaram a rever
e a repensar tais categorias.
Franco (2008, p. 61) alerta que nas categorias criadas a priori “afirma-
ções e respostas de outros tipos serão desprezados por não se encaixarem
em nenhuma das categorias criadas para responder a um interesse bastan-
te específico do investigador”. Assim, nos guiamos pela questão proposta,
mas acima de tudo, pelas palavras da pedagoga que em alguns momentos
pareceu-nos um desabafo.
A questão gerativa pode ser considerada, por si só, como um instru-
mento de coleta de dados, utilizado nas narrativas. Para Muylaert et al. (2014):
Esta forma de abordar o sujeito da pesquisa sugere capturar a
fala a partir de um posicionamento bastante diferenciado da
entrevista semidirigida que utilizam de roteiro semiestrutu-
rado com perguntas definidas ao qual se deseja circunscrever
um dado objeto a ser investigado (p. 197).

Dentre os objetivos desta investigação pretendemos também refle-


tir sobre a narrativa como um instrumento potencial no interior das pes-
quisas qualitativas, em especial na educação, e compreender os desafios

168
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

presentes na formação docente, assim como no início de carreira. Outro


interesse era saber sobre a formação continuada dos docentes e o papel
da pedagoga neste processo. Isso justifica a escolha da nossa entrevistada,
recém-formada e envolvida com as questões centrais na condução de uma
escola municipal, em contato direto com os professores.
A proposição da questão gerativa: Gostaria de saber um pouco sobre a
sua experiência formativa considerando desafios, dificuldades, motivações, in-
quietações e a relação que você estabelece entre a sua formação inicial e sua
atual prática profissional; fale-me também como ocorre a formação continuada
dos professores dos anos iniciais, na rede em que atua, e como você se percebe en-
quanto pedagoga neste processo; por fim, o que você destacaria de mais relevante
nesta profissão; contribuiu para que alcançássemos os objetivos propostos
na direção de recuperar memórias e vivências que constituíram essa nar-
radora como tal.
Tendo em vista a necessidade de preservar a identidade de nossa en-
trevistada, a nomearemos apenas como pedagoga, mantendo a eticidade
e o respeito necessários à educadora e à investigação. Outro cuidado que
tivemos foi em relação ao recorte realizado e necessário nas falas, consi-
derando a proposta deste capítulo. Como não será apresentada a narrativa
na íntegra, apresentaremos alguns trechos densos de detalhes e ricos nos
sentidos e significados que queremos aqui evocar, mas evitando a quebra
na essência do que foi narrado.

Experiências Formativas Significativas


A formação docente inicial tem o desafio de preparar os graduandos
para a sala de aula, e no caso da Pedagogia preparar, também, para a gestão
escolar, assim como para a atuação em espaços não escolares. O Conselho
Nacional de Educação - CNE institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura, por meio da Reso-
lução CNE/CP nº1, de 15 de maio de 2006, na qual estabelece que:
Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à for-
mação de professores para exercer funções de magistério na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamen-
tal, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, de
Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em
outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagó-
gicos (BRASIL, 2006, p. 2).

São muitas as atribuições aos licenciados(as) em Pedagogia, o que re-


presenta um desafio para os cursos de graduação. Acreditamos que as expe-
riências que se dão ao longo da formação podem implicar diretamente na
atuação profissional, e isso fica nítido na narrativa analisada neste trabalho:

169
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Pedagoga: O percurso da minha formação inicial em Pedagogia foi marcado por


diferentes experiências na área da pesquisa sobre o desenvolvimento profissio-
nal docente e por algumas vivências no cotidiano da escola pública de educação
básica que me proporcionaram um primeiro contato com o cotidiano da profis-
são. O meu ingresso na graduação aconteceu concomitantemente com a minha
participação como bolsista de iniciação à docência no Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/UFOP) por dois anos e meio. Consi-
dero essa como a minha primeira experiência profissional na educação básica,
pois, foi quando tive a oportunidade de desenvolver atividades em parceria com
professores da educação básica em escolas da rede pública estadual, e também
de participar e apresentar trabalhos relacionados ao tema em eventos da área
em âmbito regional e nacional, ampliando o meu olhar sobre a profissão.
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID)
foi instituído por meio do Decreto n° 7.219, de 24 de junho de 2010 que dis-
põe sobre o Programa e dá outras providências. Destacamos o seu artigo 1°
que apresenta a finalidade do Programa:
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
- PIBID, executado no âmbito da Coordenação de Aperfeiço-
amento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, tem por fina-
lidade fomentar a iniciação à docência, contribuindo para o
aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior e
para a melhoria de qualidade da educação básica pública bra-
sileira (BRASIL, 2010, p. 1).

Considerando a fala da Pedagoga em questão, seria pertinente tra-


zer, também, um dos objetivos do PIBID listados no artigo 3°, inciso IV:
inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública
de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação
e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e
práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar que
busquem a superação de problemas identificados no processo
de ensino-aprendizagem (BRASIL, 2010, p. 2).

Retomando a narrativa, a nossa entrevistada inicia o seu relato falan-


do sobre as experiências com pesquisas e a inserção nas escolas ainda na
graduação. Ela não considera a experiência profissional somente após con-
cluir o curso, mas sim quando iniciou a sua participação no PIBID, o que
proporcionou atividades junto aos professores da Educação Básica. Outra
experiência que aparece como marcante é a oportunidade de apresentar
trabalhos em eventos, o que ampliou a sua visão em relação à Educação
Básica. E segue o relato sobre suas experiências formativas:

170
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Pedagoga: Logo em seguida, comecei a participar de um grupo de pesquisa que


discute a formação de professores em diferentes níveis e modalidades de ensino,
composto por docentes, alunos de graduação e pós-graduação e pesquisadores
colaboradores de outros departamentos e instituições da região. A partir dessa
participação surgiu o interesse pela temática da formação continuada de pro-
fessores, foi quando ingressei em um projeto de iniciação científica que discutiu
a formação continuada de professores da EJA - Educação de Jovens de cinco
municípios de Minas Gerais que integram a 25ª Superintendência Regional de
Ensino (SRE) de Ouro Preto.
Pinho (2009) faz uma análise das políticas de iniciação científica no
ensino da graduação, considerando as contribuições destas para com o es-
paço de formação, no contexto da Universidade Federal do Tocantins.
O termo Iniciação Científica remete à ideia de algo que está
para começar. Vale dizer que a Iniciação Científica (IC) trata
da introdução do aluno de graduação no mundo da ciência,
das técnicas científicas e do desenvolvimento de projetos de
pesquisa, sob a orientação de um docente (PI, 2009, p. 664).

A autora ainda aborda que no Brasil é possível perceber que a par-


ticipação dos graduandos era bem tímida até os anos 2000, considerando
a trajetória de investimentos, por parte das agências financiadoras, em
estudos e pesquisas desde 1950. Entretanto, a partir do início do presen-
te século, alguns investimentos passaram a contemplar de maneira mais
significativa tanto os graduandos no Ensino Superior, quanto os alunos do
Ensino Médio nos programas e projetos de iniciação científica.
Nossa entrevistada destaca que a participação no projeto de Inicia-
ção Científica a incentivou a trilhar um caminho voltado para sua forma-
ção como pesquisadora no âmbito educacional e, mais especificamente,
despertou o interesse em pesquisar a formação docente na região.

Pedagoga: Foi quando surgiu a oportunidade de participar de uma pesquisa in-


titulada “Desenvolvimento Profissional Docente e Inovação Pedagógica: estudo
exploratório sobre as contribuições do PIBID” apoiada pelo Programa Obser-
vatório da Educação (OBEDUC/CAPES). Tratou-se de uma iniciativa em rede,
que envolveu três universidades situadas em três estados, e agregou professores
e discentes (graduandos, mestrandos e doutorandos), bem como professores da
Educação Básica. Foram quatro anos de pesquisas que foram fundamentais no
meu percurso formativo, pois me proporcionou o contato com a literatura na-
cional e internacional sobre o tema, a partir de seminários temáticos, apresen-
tações da pesquisa em congressos nacionais e internacionais. Também destaco
o desafio do trabalho em rede que foi um aprendizado que se deu ao longo do

171
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

tempo e que hoje levo muitas experiências para o meu trabalho enquanto peda-
goga, em que me deparo com equipes heterogêneas de professores e gestores.
A experiência que se deu na pesquisa, mencionada no trecho an-
terior, foi registrada na obra Pesquisa em Rede: Diálogos de formação
em contextos coletivos de conhecimento, dos autores Farias; Jardilino;
Silvestre e Araújo, publicada em 2018. Os autores relatam como se deu a
experiência de uma investigação interinstitucional e falam especificamen-
te sobre a pesquisa em rede:
Finalmente, pesquisa em rede é definida por nós como aque-
la desenvolvida em torno de um único objeto de investigação,
mas que conta com o trabalho e a colaboração de um coletivo
formado por pesquisadores de diferentes contextos institucio-
nais, a exemplo de programas de pós-graduação stricto sensu.
Seu objetivo, além de produzir conhecimento científico e ino-
vação, é dedicar-se à formação dos pesquisadores nela envol-
vidos (FARIAS et al., 2018, p. 32).

Nesse momento da narrativa já sabemos que a pesquisa fez parte


de sua trajetória na formação inicial e o quanto nossa entrevistada vai se
apropriando de temas ligados à formação docente. No início da narrativa
ela mencionou o PIBID como primeira experiência profissional, e no relato
anterior ela falou do trabalho em rede, desenvolvido na pesquisa sobre o
desenvolvimento profissional, como um aprendizado que tem sido útil em
seu trabalho enquanto pedagoga, na relação com professores e gestores. Re-
tomando o interesse em continuar pesquisando, ela relata que ao concluir a
graduação em Pedagogia ocorre o seu ingresso no Mestrado em Educação, o
qual dá prosseguimento à pesquisa que iniciou na graduação, considerando
toda sua bagagem de experiências vivenciadas na formação inicial.
Pinho (2009), em seus estudos sobre a política de Iniciação Científica
na graduação, relata que as universidades voltaram sua atenção para a gra-
duação, após a Reforma do Aparelho do Estado em 1995, com o intuito de
selecionar os alunos que mais se destacavam para a participação em proje-
tos de pesquisa. E que “essa iniciativa, por sua vez, facilitaria os sucessos
subsequentes nos níveis de pós-graduação stricto sensu, já que os alunos
que participam da Iniciação Científica (IC) são considerados os que en-
tram mais rapidamente para os cursos de mestrado” (PINHO, 2009, p. 661).
Essas observações foram constatadas na narrativa da pedagoga, re-
construída com o apoio das suas memórias dos fatos e situações vivencia-
das e que a ajudaram a construir o caminho que percorreria tempos depois.

172
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

O ingresso na profissão e as funções de pedagoga


Após concluir o curso de Mestrado é que ocorre a entrada oficial-
mente na Educação Básica, e esse processo é narrado numa reflexão car-
regada de representações e de valores. A pedagoga narra como se deu esta
inserção no campo profissional, mencionando algumas de suas funções
que, em muitos momentos, não foram de fácil realização.

Pedagoga: O meu ingresso na profissão docente, como pedagoga, aconteceu


após a conclusão do mestrado, quando comecei a trabalhar na secretaria de
educação de uma prefeitura municipal, participando da elaboração de cursos
de formação continuada para os professores da educação infantil e dos anos ini-
ciais do ensino fundamental que lecionam na rede, reuniões com os gestores das
escolas municipais, avaliações diagnósticas, amostras e atendimento ao público.
A questão gerativa indagava, também, sobre a formação continuada dos
professores, considerando como se daria a função de uma pedagoga em re-
lação a essa demanda. Paulo Géglio afirma que, de acordo com seus estudos,
Parto da compreensão de que o coordenador pedagógico exer-
ce um relevante papel na formação continuada do professor
em serviço, e esta importância se deve à própria especificida-
de de sua função, que é planejar e acompanhar a execução de
todo o processo didático-pedagógico da instituição (GÉGLIO,
2010, p. 115).

Sobre isso a entrevistada afirmou que:

Pedagoga: Em relação a formação continuada dos professores dos anos ini-


ciais, ocorria por meio de cursos oferecidos pela secretaria de educação que
discutiam, por exemplo, a aquisição da língua escrita e jogos matemáticos. Eu
percebia esses momentos como um rico espaço de formação, pois os professores
tinham oportunidade de encontrar com os demais colegas que lecionavam para
o mesmo segmento que eles e compartilhar e adquirir novos conhecimentos.
Nesse processo, enquanto pedagoga, eu tinha as funções de tentar fazer com que
as estratégias e as metas discutidas nos cursos fossem apropriadas pelas escolas.
Percebe-se que a Pedagoga exercia um papel de mediadora entre o
que a Secretaria Municipal de Educação propunha nos cursos de formação
e a realidade e necessidades das escolas, espaço em que o trabalho dos
professores se concretiza, onde de fato acontece a prática pedagógica e
quando se busca alcançar as metas propostas para a educação de crianças e
jovens. Nóvoa (2009) alerta que muitos programas de formação continuada
têm se mostrado inúteis, apenas complicando o cotidiano dos professores
que já é exigente o bastante. Para ele, “A única saída possível é o investi-
mento na construção de redes de trabalho colectivos que sejam o suporte

173
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

de práticas de formação baseadas na partilha e no diálogo profissional”


(NÓVOA, 2009, p. 23).
Em seguida, nossa entrevistada fala de algumas dificuldades como
a escassez de recursos na contratação de profissionais, o que limitava o
atendimento junto às escolas.

Pedagoga: Devido a falta de recursos para contratação de um número neces-


sário de pedagogos que atendesse a demanda da rede, todos os pedagogos que
atuam na secretaria também foram escalados para fazer um acompanhamento
pedagógico em múltiplas escolas e creches. Para tentar atender essa demanda,
também foram convidados para esse trabalho professores efetivos da rede que
atuaram em algumas escolas como professores de apoio. Nosso trabalho nas
escolas era muito limitado, e muitas funções do pedagogo, como por exemplo,
o atendimento aos pais e o planejamento dos encontros extra turno não eram
possíveis de serem realizadas devido a sobrecarga de trabalho e de tempo para
acompanhar, já que as visitas às escolas ocorriam uma vez por semana, e no
caso das creches quinzenalmente. Durante esses escassos encontros, eu tentava
fazer um diálogo entre as propostas da secretaria de educação e o trabalho que
estava sendo desenvolvido por cada instituição.
De fato, são muitas as demandas no trabalho do coordenador pe-
dagógico. Há pesquisas que mostram o dia a dia deste profissional, que
é sempre solicitado a resolver problemas imediatos e que não consegue
exercer as funções pedagógicas para as quais foi preparado e que constam
no seu imaginário formativo. No caso da pedagoga entrevistada, que atua
em mais de uma escola, ainda que tenham mais profissionais na secretaria
de educação e inserido professores efetivos no acompanhamento pedagó-
gico das escolas, o seu trabalho foi limitado ao não conseguir certa conti-
nuidade na efetivação do mesmo. Para Strieder et al. (2015):
Entende-se que o trabalho do pedagogo não é só atuar em pro-
blemas de relacionamento. Também envolve a participação em
atividades desenvolvidas nas escolas relacionadas à organiza-
ção, à participação e à responsabilidade nas decisões tomadas
para elaborar o Projeto Político Pedagógico (PPP), o assessora-
mento no planejamento e no aperfeiçoamento das atividades
educacionais, a coordenação de reuniões com os pais e pro-
fessores, a prestação de orientação (incluindo atendimento de
orientação vocacional), além das demais atividades relaciona-
das à função do pedagogo (STRIEDER et al., 2015, p. 395).

Considerando a multiplicidade de funções atribuídas ao coorde-


nador pedagógico que atua na Educação Básica, imbricadas às precárias
condições de trabalho presente em muitas escolas públicas, torna-se ainda

174
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

mais difícil realizar um trabalho pedagógico de qualidade e contínuo jun-


tos aos professores, na busca de melhorias relacionadas principalmente
ao ensino ministrado por esses educadores na efetivação da aprendizagem
dos alunos e alunas.

Entre o ideal e o real nas escolas públicas


Neste momento nos deparamos com a realidade educacional pre-
sente em algumas escolas públicas como, por exemplo, a falta de recursos
materiais e humanos. A pedagoga entrevistada atuava junto a Secretaria
Municipal de Educação desenvolvendo seu trabalho em mais de uma esco-
la, o que comprometia um acompanhamento mais próximo e efetivo junto
a cada unidade escolar, já que não era possível frequentar as mesmas es-
colas diariamente. Sampaio e Marin (2004) fazem uma discussão sobre as
condições precárias do trabalho escolar e afirma que
(...) problemas ligados à precarização do trabalho escolar não
são recentes no país, mas constantes e crescentes, e cercam as
condições de formação e de trabalho dos professores, as condi-
ções materiais de sustentação do atendimento escolar e da or-
ganização do ensino, a definição de rumos e de abrangência do
ensino secundário e outras dimensões da escolarização, proces-
so esse sempre precário, na dependência das priorizações em
torno das políticas públicas (SAMPAIO; MARIN, 2004, p. 1204).

Diante das condições de trabalho existente nesse município, além


de outros desafios e dificuldades que envolvem a prática do pedagogo, o
sentimento gerado na profissional entrevistada é de frustração:

Pedagoga: Essas dificuldades e desafios juntamente com a precariedade de re-


cursos presenciadas nas escolas, onde se faltava o básico para o funcionamento,
como papel higiênico, me despertou um sentimento de frustração por não con-
seguir desenvolver um trabalho que eu acreditava ser o ideal é que tanto havia
estudado e discutido durante a formação em pedagogia.
Trazer à memória fatos e situações ao expressá-los, fez com que a
pedagoga desabafasse sobre essa difícil situação que não se refere apenas
à sua realidade, mas permeia a realidade de inúmeros(as) profissionais da
Educação Básica. Infelizmente esta é a realidade da educação pública bra-
sileira, seja na rede municipal, seja na rede estadual. As palavras escritas,
ao espelharem sua realidade, atribuindo sentido à sua experiência, leva-
ram-na a refletir sobre sua posição de pesquisadora e acerca do trabalho
que realizava em cada umas dessas escolas, para alguns pesquisadores o
termo utilizado neste relato pode ser considerado um choque de realidade.

175
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Pedagoga: Esse meu primeiro ano de trabalho foi um choque de realidade, em


que eu saí da posição de pesquisadora, ingressei profissionalmente na educação
e passei a vivenciar de perto o cotidiano da escola pública com todos os seus
contrastes. Em vários momentos me senti sozinha, sem ter a quem recorrer dian-
te dos desafios, ou até mesmo desabafar. Aos poucos fui abandonado a visão
idealizada que eu tinha da profissão e buscando trabalhar dentro do que era
possível realizar nas escolas.
A autora Vera Souza (2010) faz uma análise sobre os desafios do co-
ordenador pedagógico considerando o atendimento à diversidade dos gru-
pos que atende e que tem sob sua responsabilidade, são alunos, pais e pro-
fessores, com características próprias e demandas específicas. Além disso,
é preciso considerar as pressões de instâncias superiores, visando as metas
que se desejam alcançar e alerta que
A natureza dessa relação é de conflito permanente, uma vez que
o coordenador se encontra com o limite entre o ideal (aquilo
que entende e concebe como correto, como necessário, como
imprescindível para uma educação de qualidade, de acordo com
suas crenças) e o possível (que lhe é imposto pelo contexto ou
sistema em que se insere a escola) (SOUZA, 2010, p. 104).

Outra fala na narrativa que chama a atenção é a solidão vivenciada


na profissão. Ao perceber-se frente aos desafios do cotidiano escolar, co-
locando em diálogo a realidade presente e os saberes construídos durante
a formação, ela se surpreende com a ausência de apoio, de parceria, enfim
de uma base que a sustente nas decisões tomadas. Pensar e praticar a for-
mação é o que se exige quando colocamos o fazer do coordenador peda-
gógico como ponto de reflexão e questionamentos. “Além de lidar com os
sentimentos dos professores, dos alunos e pais e dos gestores da escola, o
coordenador pedagógico irá trabalhar também com os seus próprios (...)”
(VIEIRA, 2010, p. 87). Para a autora é imprescindível compreender o papel
das emoções e dos sentimentos tendo em vista a afetividade humana e as
diversas situações que ocorrem no dia a dia deste profissional.
Percebemos ao longo da narrativa que a trajetória formativa influen-
ciou a sua prática, em especial a oportunidade de participar do PIBID e,
também, em mais de um projeto de pesquisa, o que permitiu que ampliasse
seu olhar de pedagoga e pesquisadora na linha da formação docente. A
pedagoga finaliza sua narrativa fazendo sua reflexão acerca da formação
inicial e os desafios do início de carreira.

176
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Pedagoga: Acredito que a formação inicial por si só não é capaz de preparar


o pedagogo para enfrentar os desafios do início de carreira, mas ela aponta
caminhos para os quais eu posso recorrer diante das demandas que vão surgindo
durante o percurso.
A narrativa analisada apresenta ricos detalhes que vão desde o iní-
cio da graduação em Pedagogia até a inserção na carreira, que teve início
recentemente, considerando que a profissional está no seu primeiro ano
de atuação. Foram relatados os desafios, as dificuldades, a precariedade
de recursos que limitam o trabalho nas escolas, também o seu sentimento
de frustração, o choque ao se inserir na realidade da escola básica pública
e a solidão do trabalho pedagógico. Ainda assim, a pedagoga reconhece a
importância da formação inicial que, embora não seja suficiente na prepa-
ração para a prática, aponta caminhos em que ela pode recorrer ao longo
de sua trajetória profissional.

Considerações finais
O objetivo central desse texto era compartilhar a narrativa de uma
pedagoga, em início de carreira, e os desafios enfrentados por ela no seu
trabalho. À medida que a narrativa foi se constituindo na escrita deste
memorial de formação, em que ela foi contando sua história, sua trajetória
acadêmica e profissional embora recente mas com diversas interpretações
e significações, se apresentaram diante do nosso olhar de pesquisadoras.
A esse exercício de refletir, analisar e dar ao texto o destaque que lhe é de-
vido, nos lançamos com respeito e preocupação.
A narrativa abriu espaço para a reflexão, num tempo em que a velo-
cidade nos consome a cada dia. Mas, era preciso. Um espaço/tempo que
restitui ao professor(a)/educador(a) as oportunidades roubadas, um tempo
de pensar e falar, de ponderar e definir, um tempo de caminhar juntas.
A escrita, como forma de narrar a vida e os acontecimentos foi um im-
portante instrumento nesta apropriação e valorização da voz da pedagoga,
trazendo-a de volta às práticas realizadas, colocando-a frente a si mesma e
à sua escolha profissional.
O início da carreira docente nem sempre é fácil e, no caso da peda-
goga entrevistada, sua primeira atuação ocorreu junto à secretaria de edu-
cação realizando trabalho em mais de uma escola. Fica nítida a influência
da formação inicial na prática, quando ela aponta a participação no PIBID
como a primeira experiência enquanto desenvolvia práticas no contexto
escolar, em meio a docentes da Educação Básica. Outra influência foram
as pesquisas em que participou durante a graduação, o que a motivou a
investigar mais sobre formação docente e a auxiliou no trabalho com os
professores, devido a experiência na pesquisa.

177
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

A formação continuada de professores tem sido alvo de discussões,


dentre elas a de que a formação deve estar centrada na escola, constituí-
da em colaboração com a comunidade escolar e tomando como ponto de
partida o cotidiano docente. Considerando que os pedagogos lidam dire-
tamente com os professores orientando a prática pedagógica e que estão a
par das demandas escolares, esses profissionais tornam-se fundamentais
na formação continuada dos docentes. No caso da narradora nesta inves-
tigação, que atuava em mais de uma escola, o seu papel era o de mediar
nas escolas as metas propostas para os cursos ofertados pela secretaria,
trabalhando com os professores formas de colocar em prática o que estava
nos programas.
Devido aos poucos recursos destinados à educação, a demanda nas
escolas nem sempre era atendida. Além da pedagoga foi necessária a atu-
ação de profissionais da secretaria de educação e professores efetivos da
rede no acompanhamento pedagógico nas escolas. Ao relatar a sobrecarga
de trabalho e a falta de recursos materiais mínimos, a entrevistada expõe
um sentimento de frustração por não conseguir exercer por completo as
suas funções, além da realidade até então distante da universidade. Outro
sentimento que a desperta é o de solidão quando falta apoio no sentido,
inclusive, de alguém com quem desabafar.
Encontramos no diálogo com a narradora, mediado pela escrita, um
caminho teórico-metodológicos que evidenciam as potencialidades das
pesquisas com e entre os educadores, produzindo conhecimentos e cons-
truindo significados. Também acreditamos que as narrativas, enquanto
instrumento metodológico de pesquisa, contribuem para a construção de
um conhecimentos e reflexões que evidenciam a urgência de novas discus-
sões em torno da formação do pedagogo, dos desafios do início de carreira,
das precárias condições de trabalho dos profissionais da Educação Básica,
das influências da formação inicial na prática e, por fim, dos sentimentos
que os profissionais da educação estão sujeitos em meio às emoções que
envolvem o cotidiano escolar.

Referências

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.


BONDÍA LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de
experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./fev./mar./abr. 2002.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZV
DxC/?lang=pt&format=pdf. Acesso em:
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 1/2006.
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia,

178
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

licenciatura. Brasília, DF, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/


arquivos/pdf/rcp01_06.pdf. Acesso em: 21 nov. 2012.
BRASIL. Decreto nº 7.219, de 24 de junho de 2010. Dispõe sobre o
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID e dá
outras providências. Diário Oficial da União. Brasília: Casa Civil da
Presidência da República, 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7219.htm. Acesso em: 29 ago. 2016.
FARIAS, Isabel Maria Sabino de et al. Pesquisa em Rede: diálogos de
formação em contextos coletivos de conhecimento. Fortaleza: EdUece,
2018. 173 p.
FRANCO, M. L. P. B. Análise de Conteúdo. 3. ed. Brasília: Liber Livros
Editora, 2008.
GALVÃO, Cecília. Narrativas em Educação. Ciência e Educação, v. 11, n. 2,
p. 327-345, 2005.
GÉGLIO, Paulo César. O papel do coordenador pedagógico na formação do
professor em serviço. In: PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza; ALMEIDA,
Laurinda Ramalho de (org). O coordenador pedagógico e o cotidiano da
escola. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010, cap 8, p.113-120.
GIDDENS, Anthony. O Estado-nação e a violência. Tradução de Beatriz
Guimarães. São Paulo: EdUSP, 2001.
MUYLAERT, C. J.; SARUBBI JR., Vicente; GALLO, Paulo Rogério; ROLIM,
Modesto Leite Neto; REIS, Alberto Olavo Advincula. Entrevistas narrativas:
um importante recurso em pesquisa qualitativa. Rev. Esc. Enferm, USP,
n.48 (Esp2), p. 193-199, 2014.
NÓVOA, A. Professores: O futuro ainda demora muito tempo? In: NÓVOA,
A. Professores: Imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.
PINHO, Maria José de. Ciência e ensino: contribuições da iniciação
científica na educação superior. Avaliação, Campinas; Sorocaba, SP, v. 22,
n. 3, p. 658-675, nov. 2017.
SAMPAIO, Maria Das Mercês Ferreira; MARIN, Alda Junqueira.
Precarização do trabalho docente e seus efeitos sobre as práticas
curriculares. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1203-1225,
set./dez. 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/t7pjz85czHRW3G
cKpB9dmNb/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 29 mar. 2017.
SOUZA, Vera Lucia Trevisan de. O coordenador pedagógico e o
atendimento à diversidade. In: PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza;
ALMEIDA, Laurinda Ramalho de (org). O coordenador pedagógico e o
cotidiano da escola. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010. cap 7. p. 93-112.

179
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

STRIEDER, Dulce Maria; MALACARNE, Vilmar; SAUCEDO, Kellys Regina


Rodio; ENISWELER, Kely Cristina; PIRES, Elocir Aparecida Corrêa. O
papel do pedagogo: reflexões com base em observações sobre as funções não
docentes. Ensino Em Re-Vista, v. 22, n. 2, p. 391-400, jul./dez. 2015.
TEIXEIRA, Inês A. de Castro; PÁDUA, Karla Cunha. Virtualidades e
Alcances da Entrevista Narrativa. In: CONGRESSO INTERNACIONAL
SOBRE PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, II, 2006, Salvador. Anais ...
Salvador: UNEB, 2006. 1 CD-ROM.
VIEIRA, Marili M. da Silva. O coordenador pedagógico e os sentimentos
envolvidos no cotidiano. In: PLACCO, Vera Maria Nigro de Souza;
ALMEIDA, Laurinda Ramalho de (org). O coordenador pedagógico e o
cotidiano da escola. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010, cap 6, p.83-92.

180
CAPÍTULO 8

NARRATIVAS-OTRAS Y EXPERIENCIAS
SEXUADAS: PROFESORAS
SINDICALISTAS ARGENTINAS

Zulma Viviana Lenarduzzi


(Facultad de Ciencias de la Educación -
Universidad Nacional de Entre Ríos – Argentina)

(…) te repartís, te partís más que te repartís (…) uno tiene que
buscar los tiempos…a mí el hecho de estar también en la escuela
me posibilita el que vaya fragmentando los tiempos”.
Fabiana (profesora sindicalista entrevistada)

(…) la docencia no se terminaba esas cuatro horas frente al curso.


(…)cumplís tantos roles en el aula que uno no se da cuenta de
esto (…). vamos a descansar un poquito” [dado que] el cuerpo lo
necesita [y] ahora el cansancio se nota.
Mónica (profesora sindicalista entrevistada)

Introducción
Los relatos de las profesoras sindicalistas del epígrafe inauguran la
temática de este capítulo: las experiencias de las mujeres sindicalistas do-
centes. Las mismas han sido insuficientemente indagadas, dado que los
estudios sobre sindicalismo otorgan preeminencia a los trabajadores, sus
formas organizativas y sus luchas reivindicativas. Bajo el manto de la mar-
ca de un sujeto universal, las profesoras sindicalistas han permanecido
bajo un cono de sombras, siendo excepcionalmente nombradas y visibili-
zadas. Alienaciones y subyugaciones colisionan con disputas y conquistas
que se forjan al calor de luchas y resistencias no siempre visibles desde
las figuras hegemónicas de los militantes sindicalistas. De ahí que resulte
relevante adentrarse en sus experiencias, habilitando narrativas-otras que
cierta historiografía androcéntrica ha silenciado.

181
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

La investigación que aquí se presenta abreva en ciertas perspectivas


teóricas provenientes del Feminismo Académico, la Historia de las Mu-
jeres, y la Sociología del Individuo, las cuales conceden potencia teórica
a las experiencias de las actrices y actores, otorgan un lugar central a la
historización en términos de un vínculo biográfico-histórico, y recono-
cen múltiples desigualdades y dominaciones. Por consiguiente, se adopta
un enfoque metodológico interpretativo, desde el cual cobra relevancia la
perspectiva de las participantes, al dar prioridad a sus sentidos, significa-
ciones, experiencias y relatos.
Entre los años 2014 y 2015, se realizaron entrevistas narrativas indi-
viduales, grabadas, con seis mujeres profesoras argentinas, sindicalistas,
de tres generaciones distintas. La entrevista narrativa constituyó una her-
ramienta central, entendida como un encuentro socio-antropológico y una
forma discursiva privilegiada para comprender las interpretaciones de las
sujetas sobre sí mismas, en una posible invención de sí.
De modo que en este escrito se exhiben algunas aproximaciones a las
experiencias de dos profesoras sindicalistas de la generación joven, con-
templando el entrecruzamiento de las dimensiones familiares, laborales y
sindicales. La articulación entre el trabajo sindical, el trabajo docente y el
trabajo de cuidados, constituye una de las principales expresiones de sus
experiencias sexuadas, en tiempos generizados que inciden en la posibili-
dad de disponer de un tiempo liberado para sí.
En este capítulo se esbozan algunos avances de la tesis finalizada
titulada “Generaciones de profesoras sindicalistas argentinas: fragmentos
de historia (1984-2016)”, desarrollada en el marco del Doctorado Latinoa-
mericano en Educación: Políticas Públicas y Profesión Docente (Facultad
de Educación de la Universidad Federal de Minas Gerais).

Dimensiones de la experiencia: entre el trabajo, el sindicato docente y la familia


Adentrarse en las experiencias cotidianas de las mujeres, conlleva la
búsqueda de las interpretaciones que ellas producen de sus propias vidas
cotidianas, las cuales se inscriben en una dinámica histórico-social. Cier-
tamente, la experiencia remite a situaciones biográficamente determina-
das, que se experimentan subjetivamente como significativas, que están
mediadas socialmente, y que tienen un carácter sexuado. En tal sentido,
la experiencia comporta tanto elementos personales como sociales, y se
encuentra atravesada por las relaciones de género (BACH, 2010).
Las experiencias narradas de las sindicalistas docentes de la joven
generación involucran dimensiones sindicales, laborales, familiares y tem-
porales, a modo de distintas capas que intervienen en el hacerse sindicalis-
ta. Se trata de los relatos de Fabiana y Mónica, profesoras que militan en
un sindicato de docentes privados.

182
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Fabiana, nació en una localidad del interior de la provincia de Entre


Ríos (Argentina), tiene 42 años al momento de ser entrevistada en el 2015,
está casada y es madre de una hija y tres hijos. Es Profesora de Nivel Pri-
mario y Locutora Nacional. Ha trabajado predominantemente en escuelas
primarias privadas, también en una institución estatal, además de desem-
peñarse como Locutora. Ha sido referente y delegada sindical por escue-
las privadas, Prosecretaria de Educación, y Secretaria de Comunicación y
Prensa en un sindicato docente privado.
Mónica, por su parte, nació en la capital de la provincia de Entre
Ríos (Argentina), tiene 38 años al momento de ser entrevistada en el 2015,
está separada y es madre de una hija y un hijo. Es Profesora de Artes Vi-
suales y Escultora. Ha trabajado en el negocio de su mamá, luego en un
McDonalds, y posteriormente alquilaba un salón de juegos para niñas y
niños. Ha ejercido la docencia en escuelas primarias privadas y estatales,
además de ser preceptora en el Nivel Secundario. Ha sido delegada sindi-
cal por escuelas privadas y Secretaria de Relaciones Institucionales, con-
juntamente con Fabiana.
La condición socio-histórica de las sindicalistas jóvenes remite a las
décadas que se extienden desde la Dictadura Militar hasta el presente. Sin
duda, ellas no han participado de manera directa de los distintos episodios
del autodenominado “Proceso de Reorganización Nacional”. Tampoco de
los eventos políticos organizados y construidos a favor del retorno a la
democracia. Sin embargo, esto no significa que tales acontecimientos no
se hayan inscripto como vestigios que recorren sus memorias. Estas sindi-
calistas docentes han venido al mundo en épocas de Dictadura Militar en
Argentina. Ese nacimiento adquiere relevancia, no sólo por las fechas cro-
nológicas per se, sino también por su incidencia en la construcción de la
memoria colectiva como parte de un proceso social de un pasado doloroso.
No sólo se trataba de la instalación de un nuevo modelo económico neo-
liberal, sino además de una nueva matriz política y de un cambio cultural.
Sus principales manifestaciones se evidencian en las rutinas cotidianas y
las posibilidades restringidas de interacción social, en el tratamiento de
la/del “otra/o” por la vía represiva, en una estética rígida y militarizada, en
la reconfiguración de los espacios prohibidos, permitidos y clandestinos,
en la desaparición forzada de personas y de bienes culturales y simbólicos.
La escolaridad de las sindicalistas entrevistadas ha transcurrido
básicamente durante el posterior período democrático. No se trata ex-
clusivamente de los momentos de escolarización por sí mismos, sino de
aquello que deja huella en términos de construcción de la ciudadanía, una
ciudadanía que se constituyó desde una cultura democrática durante los
años ochenta, pero que aparece eclipsada con la introducción de la refor-

183
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ma neoliberal en materia educativa en los años noventa, y la consecuente


producción de ciudadanos-consumidores. La desigualdad social pasa a ser
entendida como natural, soslayando los orígenes estructurales que com-
porta, endilgando a cada quien la responsabilidad de su destino ya sea por
su falta de esfuerzo personal o por su incapacidad individual.
En tal contexto, ellas han sufrido los embates de las políticas neoli-
berales en materia económica, y sus desplazamientos en todas las esferas
de la vida social y de la subjetividad. Los efectos económicos, políticos,
laborales y educativos socavan las estructuras e impactan en la vida de la
gente. La desocupación, el empobrecimiento sistemático y la precarizaci-
ón laboral, treparon de manera inédita. Para nuestras entrevistadas se tra-
ta de un embate evidente cuando la ofensiva del modelo neoliberal cercena
futuros, de ahí que un destino no previsto las haya conducido a la docencia.
Han conocido, además, el desencanto con la participación político-
-partidaria. Se trata de una generación que conoce otros códigos partida-
rios influidos por crecientes restricciones institucionales a la competencia
política, por la debilidad de los mecanismos de reparto, y por los desequi-
librios en la representación partidaria a favor de los partidos mayoritarios.
La política se percibe en un sentido de mercado y la participación parti-
daria acusa los efectos de la conformación de los ciudadanos-clientes en
una cartografía eleccionaria con reglas de juego diseñadas al fragor del
marketing, las imágenes de los candidatos y las encuestas de opinión, en-
tre otros de los trazos de la política institucionalizada y la dinámica social.
Su acercamiento a los sindicatos docentes ha tenido como telón de fondo
los efectos de la crisis del año 2001 en Argentina, no ajenos al desengaño
partidario aludido. También, el posterior período de recomposición eco-
nómica y política bajo los gobiernos nacional-populares.
La debacle económica y política trastoca la cotidianeidad con ajustes
sucesivos y rupturas en la cadena de pago, lo que suscitó movilizaciones
sociales que tuvieron como contestación la represión. Las protestas socia-
les se multiplican, se expanden territorialmente, e involucran una variedad
de sujetos y de demandas heterogéneas, abarcando las esferas económica,
social y política. A menos de dos décadas de reinstauración democráti-
ca, la pérdida de legitimación institucional basada en la mediación de los
partidos políticos tradicionales, se expresaba en el reclamo “que se vayan
todos”, como manifestación de un colapso tanto económico como simbó-
lico. La clase política argentina perdía credibilidad, la falta de confian-
za por parte de la sociedad se iba intensificando, y la política partidaria
se constituía en blanco de la repulsa popular. Además, ya en el 2003, las
movilizaciones van en declive y las organizaciones de desocupados se van
fragmentando (PALOMINO, 2005; SVAMPA, 2005, 2008; DI MARCO; PA-
LOMINO; MÉNDEZ; LIBCHABER, 2003).

184
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

El marco del agotamiento de las experiencias neoliberales en la re-


gión latinoamericana, encuentra a Argentina bajo el retorno a lo nacional-
-popular bajo el ala del peronismo en su expresión gubernamental kirchne-
rista, que perdura doce años. Con un inicio de escasa legitimidad electoral,
va ganando apoyos de los pares peronistas, pero también adhesiones de
grupos ajenos a su partido, favorecidos por un escenario previo de desor-
den institucional, económico y político, y la construcción de un liderazgo
personalista de ejercicio de la autoridad. Frente a la apatía política de los
años noventa, logra incorporar a las nuevas generaciones a la política, re-
cuperando una mística militante. A su vez, las alianzas internacionales se
inscriben en un ideal latinoamericanista. La recuperación económica se
posibilita por el pasaje a un modelo productivo de revitalización de un
sector de la industria nacional y por la rentabilidad de las exportaciones
beneficiada por la devaluación y por los altos precios internacionales, mar-
cando un período de reparación mediante la recuperación del mercado in-
terno y del empleo, así como de disminución de la pobreza y de la desocu-
pación (OLLIER, 2014; SIDICARO, 2011; SVAMPA, 2007, 2011).
Se trata de escenarios históricos complejos permeados por una cre-
ciente singularización de las experiencias sociales, en los que las profeso-
ras entrevistadas enfrentan nuevos retos existenciales a los que otorgan
respuestas. Ocupando espacios anteriormente solidificados como guetos
masculinos como los sindicatos, las sindicalistas docentes de la generaci-
ón joven, resisten y modifican dichas instancias de la sociedad, enfrentan-
do viejas y nuevas contiendas, forjándose a sí mismas.

Dimensiones laborales: itinerarios de trabajo


Nuestras entrevistadas reportan recorridos laborales heterogéneos,
caracterizados por la pluriactividad tanto secuencial como simultánea. En
efecto, los trayectos intencionados que se definen por ser escasamente li-
neales y articulan la pluriactividad simultánea y la identidad laboral con
una permanencia del sentimiento de continuidad profesional, especifican
la actividad magisterial tanto de Fabiana como de Mónica, de acuerdo al
análisis de Araujo y Martuccelli (2012b), en relación con las/os chilenas/os
que entrevistaron en su investigación sobre los desafíos comunes de los
individuos en Chile.
Sus empleos docentes comienzan en cargos de maestras suplentes en
escuelas privadas, cuyo ingreso depende de las orientaciones ideológicas
y religiosas de las instituciones educativas. A diferencia de los cargos en
escuelas públicas a los que se accede por concurso, la educación privada
posee reglas peculiares que prescriben la permanencia en las organiza-
ciones escolares, siendo el mérito académico y pedagógico muchas veces

185
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

desplazado a favor de otros patrones de valoración como las creencias reli-


giosas, la moral familiar, la conducta decente, los intereses financieros del
establecimiento, entre otros.
Así, Fabiana comienza a trabajar como maestra ni bien se recibe en
Santa Elena (Provincia de Entre Ríos, Argentina): “Mis primeros inicios en
la docencia fueron en una escuelita ya haciendo una suplencia…”. Era una
escuela privada donde trabajaba su tía, y esa suplencia duró tres meses.
Luego emigra hacia la ciudad de Santa Fe donde se establece y se desem-
peña en un liceo militar dependiente del ejército argentino durante tres
años, en que viaja a Recreo, una ciudad cercana a la capital santafesina.
Posteriormente, y durante un año, se va a vivir a Paraná (Provincia de En-
tre Ríos), viajando de una ciudad a la otra. En Paraná ingresa a trabajar ad
honorem en una escuela privada, para luego de un año, instalarse laboral-
mente en la capital provincial. Sin embargo, Fabiana confiesa que “…a mí
me gusta más Santa Fe…Y bueno yo me vine a Paraná porque mi esposo
trabajaba acá…”. En esa decisión, privilegia el trabajo de su pareja como
suele suceder en variadas circunstancias para las mujeres, y ella se deslo-
caliza de su empleo. Luego de haber realizado su recorrido como maestra
en escuelas privadas, con excepción de una estatal en la que estuvo quinces
días y a la que no quiso regresar, actualmente se desempeña en un cargo de
secretaria que obtuvo por concurso en una institución estatal.
En cuanto a Mónica, ella transita un recorrido laboral caracterizado
por su inserción en variados trabajos que, en algunos tramos, va en parale-
lo con la enseñanza. Comienza su experiencia docente en una institución
privada católica dado que fueron “las primeras escuelas que me abrieron
las puertas”, tal como ella lo expresa, estando embarazada y trabajando a
la vez en un Mac Donald, el cual le aportaba conocimientos de planifica-
ción que transponía a su actividad docente. “Me fui curtiendo en el andar
y gracias a Dios en la escuela…tuve una vicedirectora muy piola…y ahí fue
cuando le fui encontrando el gustito a los desafíos en mi vida…”, asevera.
Enuncia que “la docencia no se terminaba esas cuatro horas frente al
curso”. Las tareas de planificación didáctica y de organización de las cla-
ses, demandaban tiempos extras, además de aquellos dedicados a su hijo.
Esto la llevó a cerrar el lugar de juegos para niños/as, para dedicarse a la
actividad escolar en dos turnos. La escuela en la que logró titularizar su
cargo implica viajar una hora de ida y una vuelta, desde la capital de la
Provincia de Entre Ríos hasta la localidad de Hernandarias y viceversa.
Además de ser profesora en una escuela primaria, es preceptora en
una institución secundaria en desarrollo, en la cual “…estaba prácticamen-
te sola en un principio, ni rector había…aprendí todo, porque aparte de no
tener idea de la parte administrativa…tenés que aprender…”. En ambos car-
gos es profesora titular, es decir, ha logrado una situación de estabilidad

186
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

laboral. Con un problema de salud fonoaudiológico ha tenido que tomar


una licencia por enfermedad, manifestando que “cumplís tantos roles en el
aula que uno no se da cuenta de esto…”.
En efecto, las condiciones de trabajo docente afectan la salud de las/
os maestras/os. Las múltiples tareas que desempeñan, las exigencias físi-
cas y psíquicas, el trabajo docente que siguen desarrollando en sus casas,
son algunas de las evidencias de las condiciones laborales de la docencia.
Uno de los problemas que las/os aquejan es el de la voz, como le sucede a
Mónica. O bien angustian por los problemas familiares de las/os alumnas/
os a los cuales no les pueden dar respuesta, malestar que tanto Mónica
como Fabiana ponen en evidencia. Sus experiencias docentes sobre todo
en las escuelas estatales han sido cruentas. Han trabajado con niños gol-
peados, con infancias en situación de extrema pobreza, con adolescentes
incestuadas, con chicos que sólo conocen la violencia para dirimir conflic-
tos. En tales condiciones “…sos más psicóloga que docente, más socióloga
que profesora…”, afirma Mónica. De ahí que tanto Mónica como Fabiana
prefieran las escuelas privadas, a sabiendas del tiempo extra que solicitan
en actividades misionales y pastorales.
La tarea docente aparece desdibujada en múltiples demandas, sobre
todo en el relato de Mónica. Los mandatos de enseñar y asistir producen
una sobrecarga de trabajo, más aún en los tiempos actuales en que a la
tradicional función de transmisión y reproducción del conocimiento, se
agrega la contención de las/os alumnas/os en contextos de vulnerabilidad.
Esto significa que la complejidad de estas tareas recae en manos femeni-
nas, dada la alta feminización de la docencia. Sistemas de tutorías, proyec-
tos especiales, trabajo en redes con distintas instituciones, conforman un
amplio abanico de actividades que conllevan una preparación específica
no siempre garantizada desde las políticas públicas, a lo que se suman las
condiciones precarias de trabajo docente.
Efectivamente, la expansión de la educación en las últimas décadas
en Argentina ha sido un crecimiento por proliferación, que genera tensio-
nes sentidas fundamentalmente en el ámbito de la escuela pública que ex-
pande sus fronteras hacia nuevos sujetos sociales (TENTI FANFANI, 2007).
Además, la educación pública argentina ha sido caracterizada como la op-
ción educativa para los sectores pobres (NARODOWSKI; MOSCHETTI,
2000), siendo la oferta privada una elección de salida de la escuela pública
para quienes pueden afrontar los gastos que implica. Asimismo, se han
ido configurando espacios cada vez más diferenciados entre estamentos
sociales que acceden a escuelas estatales y privadas (GASPARINI et al.,
2009). Este panorama tiene sus impactos en nuestras entrevistadas. Ambas
van organizando sus trayectos laborales a futuro, concursando un cargo de
preceptora en la escuela estatal en el caso de Mónica, y una secretaría en una

187
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

escuela privada en la situación de Fabiana. Tales cargos permiten un aleja-


miento de la tarea áulica, aunque el primero implica un contacto con estu-
diantes no mediado por la enseñanza, además de requerir una dedicación de
carácter administrativo, ésta última con mayor pregnancia en el segundo.
Para las mujeres entrevistadas poder permanecer en el mundo del
trabajo, es parte esencial de sus vidas. Las fuentes de ingresos que pro-
vienen de sus empleos constituyen recursos materiales que permiten sus-
tentar los presupuestos familiares. Pero no se trata sólo eso. Ellas además
esculpen una composición de sus experiencias laborales, integrando dis-
tintas facetas de sus recorridos.
Así, Fabiana desarrolla las tareas de locución en el marco de un
proyecto conjunto entre locución y docencia. El mismo consiste en la pre-
paración y difusión de programas de radio sobre temas educativos, que
prepara conjuntamente con una compañera docente, luego de haber ga-
nado un proyecto que le permite realizarlo. También desempeña sus fun-
ciones sindicales en la Secretaría de Comunicación y Prensa, estrechando
sus intereses más preciados en las tareas sindicales, dado que comunicar,
ya sea de manera oral en la radio o de modo escrito en el sindicato, verte-
bra sus actividades preferidas. Mónica, por su parte, genera encuentros de
arte entre las/os docentes en el mismo sindicato, organizando muestras de
fotografía, dibujo y pintura. Lo entiende como “algo que puedo confluir”,
anudando docencia, arte y sindicalismo. Al narrar su experiencia, y con sus
treinta y ocho años, Mónica reflexiona: “…la vida se me pasó muy rápido”,
repasando las etapas que ha abierto, pero que también ha cerrado.

Dimensiones sindicales: de las injusticias a las solidariedades


Las gremialistas de la generación joven reconocen sus comienzos
sindicales en la afiliación. Ese acto formal parece sellar su vinculación con
la organización de docentes. Y si bien la admisión al sindicato puede cris-
talizarse en la afiliación, en el caso de las entrevistadas no se detiene allí.
Que afiliarse sea viable, remite a una condición histórica de luchas para
que tal posibilidad tenga lugar, aunque pueda parecer usual. En el relato
de Fabiana, la afiliación aparece ligada a la concurrencia al sindicato como
una cuestión de utilidad, constituyendo un modo primigenio de concebir-
se como afiliada. Tal como ella lo expresa: “…en ese tiempo pasaba por el
sindicato, preguntaba si había alguna novedad, más que nada tema curso…
beneficios por ahí…”. En este aspecto, la razón de la afiliación obedece a lo
que Guerrero Serón (SÁNCHEZ, 1991) denomina un motivo instrumental
apoyado en la defensa de los propios intereses individuales.
Por su parte, Mónica revela una cierta ingenuidad y desconocimien-
to con respecto al sindicalismo docente, manifestando que “…yo cuando

188
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

me inicio como afiliada…era como que yo no sabía nada del mundo sindi-
cal…uno por ahí es naive en todas estas cuestiones. Será que los simples
afiliados tendremos que saber o es todo para delegados…”, se interrogaba.
Su experiencia había transitado en una escuela privada a la que no llegaba
información quedando centralizada en manos de la delegada. Es así que
Mónica decide aproximarse al sindicato: “…vi la realidad y vi que hay un
montón de cosas que se hacen en el sindicato…yo fui rompiendo un poco
el hielo y llevando y cumpliendo el rol que no estaba todavía ejerciendo”.
Si bien consideraba los beneficios como afiliada al igual que Fabiana, Mó-
nica desde su “no saber” se pregunta por la representación del sindicato,
y asume la función sustantiva de delegada escolar sin el reconocimiento
formal que la sustenta, ya que, según sus palabras, “…la institución donde
yo trabajaba tenía delegada, pero no era una delegada comprometida…”.
El acercamiento al sindicato pareciera consistir más en una cuestión
de inquietudes individuales que de expresas estrategias sindicales, desde
el mundo de escuelas de enseñanza privada en las que la experiencia sindi-
cal debe mantenerse a distancia, o bien concentrarse en la figura de dele-
gadas/os escolares alejadas/os de las/os profesoras/es. Es así que el estatuto
de afiliada sindical se construye desde la condición docente, base sobre la
cual se asienta la posibilidad de una primigenia participación que se va
expandiendo, a medida que se conoce el sindicato, sus finalidades y sus
funciones. Sin embargo, tales inicios no constituyen desafíos existenciales,
aunque ponen de manifiesto los incipientes zócalos que sostienen poste-
riores involucramientos de las mujeres sindicalistas entrevistadas.
Si bien en una primera aproximación se vislumbra que la afiliación
constituye la faceta formal de la iniciación gremial, posteriormente los re-
latos se retrotraen a las figuras parentales, como si las aperturas sindicales
fueran más lejanas en el tiempo. La evocación de un padre sindicalista de
un frigorífico se asoma en la narrativa de Fabiana. La presencia de una
madre con participación político-partidaria adquiere pregnancia en el re-
lato de Mónica. La construcción identitaria sindical parece conformarse
en las respectivas filiaciones parentales, aun cuando dolores, sufrimientos
y temores hayan atravesado sus infancias y adolescencias.
Fabiana alude a los padecimientos vividos siendo niña, debido al “re-
corte que se hace a la familia…yo sabía que él ingresaba al sindicato y no
sabíamos a qué hora salía”, poniendo de manifiesto el afecto infantil por su
padre: “…yo con mi papá era muy pegada…era ese dolor viste, que vos decís
por ahí no está a la tarde…pero bueno…los fines de semana sí lo tenía para
mí…”. Las ausencias paternas habitan su memoria en momentos significa-
tivos como el acto de colación de séptimo grado en que “…mi papá no estu-
vo…porque tenía un Congreso en ese momento en Buenos Aires…y bueno
primero estaba el compromiso y la familia sabía por ahí que lo podíamos

189
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

aguantar…”. Por aquel entonces, Fabiana finalizaba la escuela primaria. La


entrega del diploma como rito de pasaje, sólo contaba con la presencia de
su mamá, dejando una huella dolorosa.
Asimismo, Mónica refiere sus inicios sindicales a la figura materna,
connotándolo como un comienzo más bien político que sindical. Resul-
ta de interés resaltar la contraposición entre la figura paterna en el caso
de Fabiana, y la materna en la situación de Mónica. En ésta última, se
puede interpretar que no es casual que sea una mujer-madre vinculada al
ámbito público - los partidos políticos –, referenciada como antecedente
significativo de la actividad sindical. Su padre no aparece mencionado ex-
plícitamente en la entrevista, aludiendo más bien a un “nosotros” que no
lo singulariza. Su mamá militaba en el partido justicialista acompañando
diferentes candidaturas políticas, lo cual le implicaba viajes a Buenos Ai-
res. Esto le originaba ciertos temores, los que relacionaba con que “que le
pasara algo en los viajes…le llega a pasar algo y no está más conmigo”.
La participación sindical es significada por ambas entrevistadas
como vocación en el sentido de servicio, connotaciones que remiten a las
matrices vocacionistas ligadas a las imágenes dominantes en los inicios
del magisterio: abnegación, donación, servicio. La entrega altruista y de-
sinteresada se traspasa a la tarea sindical, remitiendo a aquella primigenia
identidad de “madre educadora” transferida al de educadora profesional.
(MORGADE, 1997; YANNOULAS, 1996). A lo que cabe añadir, que se trata
de una representación dominante de la concepción de las mujeres en los
ámbitos religiosos.
Fabiana expresa que “te gana, llega un punto en que ese espíritu de
servicio que evidentemente yo lo heredé de mi papá me puede, me pudo…y
ya no pude decir no…”. En este aspecto, recuerda que cuando era pequeña
a su casa iba gente a pedirle dinero a su padre, “aunque él fuera un obrero
común” y “de algún lado se sacaba”. Mónica por su parte revela que “…eso
lo mamé, el hecho de abocarse a las necesidades de los demás más allá de
las propias…”, admitiendo que “el sindicalismo es vocación”, a diferencia de
los partidos políticos en que se trata de “una cuestión más individualista”.
Cabe destacar que Mónica se afilió al mismo partido en el que participaba
su madre, tuvo un acercamiento muy esporádico, y se terminó apartando,
al considerar que “son todo el tiempo especulaciones, no quiero hablar,
pero son traiciones”. Mónica es testigo del debilitamiento de la acción de
los partidos políticos y de sus lógicas atravesadas por relaciones gerencia-
listas. No es menos importante su alusión a las “traiciones” en un partido
caracterizado por su marca histórica de “lealtad”.
De aquella imagen vigorosa de los partidos políticos que encauzaban
la participación política evidenciada en la apertura de locales partidarios
barriales, las afiliaciones masivas, las paredes cubiertas de pintadas, los ac-

190
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

tos políticos en la calle durante el retorno democrático, queda poco resto.


Los partidos políticos se han transformado. Fragmentación, inestabilidad y
competencia asimétrica parecen ser las claves en que se consolidan sus re-
sortes actuales. En los mismos, se juegan nuevos juegos que demandan otras
reglas, a las que las sindicalistas entrevistadas deciden no plegarse, aunque
podría decirse que sus vinculaciones con los partidos políticos presentan un
carácter ambivalente. Pero además, tal como sostiene Marx (MAFFÍA; KUS-
CHNIR, 1994) no se ha producido una integración de los valores y pautas de
conducta de las mujeres en ese terreno, soslayando la transformación de la
cultura política. Las habilidades masculinas siguen siendo las que definen
los proyectos políticos, estableciéndose como parámetros “normales”. A lo
que se suma, la imagen dominante que atraviesa los partidos políticos: indi-
vidualista, racional y calculadora. Imagen que, huelga decirlo, se correspon-
de con la del sujeto masculino hegemónico en la actualidad.
El contrapunto de los partidos políticos son los sindicatos dado que
comportan “intereses distintos, acá uno busca siempre el bien colectivo y
por ahí en la política…siempre es más individualista o selectivo viste, para
un grupo determinado”, según las palabras de Fabiana. O en la expresión
de Mónica: “Lo que yo vivencio en el sindicato es totalmente honesto…
yo la verdad que es lo que más disfruto”. Las dos son hijas de militantes
peronistas, el padre sindicalista en el caso de Fabiana, y la madre activista
partidaria, en el de Mónica. Ambas piensan de modo similar, y descreen de
la participación en los partidos políticos actuales. Al decir de Fabiana: “se
vota por el partido y no por la persona, y sí, es lamentable hay gente que
cree que es así…acompañan al candidato que está, que el partido pone…”.
Si bien Fabiana desconfía de los modos actuales del ejercicio de la
acción partidaria, ha tenido vinculaciones con el partido radical, manifes-
tando que “…tuve un padre que nos dejó libres en ese sentido que por ahí
siendo peronista se tuvo que aguantar el que la hija un buen día se vaya al
partido radical…”. En este aspecto, Fabiana recuerda el discurso de Alfonsín,
refiriéndose al presidente democrático que asume en 1983: “…me acuerdo
patente…me enamoré de ese discurso…que invitaba a la unión y también vi
el otro donde se hizo la quema del cajón, y dije esto no quiero, y tenía diez
años, y eso fue lo que a mí me marcó…y bueno, mi papá también tenía eso de
buscar siempre la unión…”. Aquel discurso marcó la transición de la dicta-
dura a la democracia y la desmilitarización de la sociedad en Argentina, en
una coyuntura de relevantes actos públicos y masiva asistencia de la gente.
En su cierre de campaña electoral, Raúl Alfonsín llamaba a terminar con la
violencia y a bregar por un país con democracia, justicia social y libertad.
Aquel hecho histórico ha inscripto rastro en la memoria de las/os
argentinas/os, y Fabiana con diez años de edad lo recuerda, dado que se
trataba de un momento de transición democrática, luego de largos años de

191
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

terrorismo de Estado en que la represión ilegal y la violencia indiscrimina-


da aún persistían como angustias cotidianas.
Tanto Fabiana como Mónica han padecido situaciones dificultosas
siendo niñas. La primera, por cuanto su padre era perseguido por su con-
dición sindical, “nos apedreaban la casa (…) vos te levantabas y encontrabas
el pueblo lleno de panfletos, te decían barbaridades y uno por ahí cuando
es chico…te da por ahí cierta vergüenza de que ande tu papá en boca de la
gente…”. Una cierta estigmatización vinculada a la actividad sindical pare-
cía recorrer la figura de su padre y su familia.
Tratándose de una localidad pequeña como Santa Elena, la integra-
ción social en términos de Dubet (2013) sería excesiva encerrando a los
individuos en identidades y estatus agobiantes. Ser un militante sindica-
lista constituye una asignación que aparece como demasiado visible, se
es observado en exceso, de ahí que Fabiana sienta vergüenza de estar en
el podio de los comentarios de su pueblo. La segunda, porque su madre
acompañaba algunas candidaturas político-partidarias: “Nosotros tenía-
mos un negocio acá en el centro y pusieron explosivos, después le sacaron
el auto, se lo hicieron bolsa, también lo estrellaron y decían que había sido
un ajuste de cuentas…”.
En tales situaciones, no se trata del estigma como en el caso del papá
de Fabiana, sino de la destrucción de pertenencias que no sólo actúan
como avisos, sino también como maneras de cobrarse ciertas deudas de
carácter político. El desasosiego de estas entonces hijas pequeñas no era
infundado. Posiblemente se trataba de temores infantiles, pero parece ha-
ber algo más, tratándose de un país como Argentina en el que la dictadura
militar deja las marcas del miedo en la vida cotidiana y la interiorización
del “no te metás” - en la política, en el sindicato -. Son infancias que se
constituyen al calor de discursos y prácticas autoritarias que se inscriben
en la memoria, aunque obliteradas en parte por el padre en un caso y por
la madre en el otro que, con sus matices, parecen transferir ciertos legados
en términos de ideas, ejemplos y prácticas en la institución familiar. Ahora
bien, ¿qué hacen nuestras entrevistadas con las herencias sindicales y po-
líticas transmitidas por sus respectivos progenitores?
Desde aquello que brinda el sindicato a lo que nuestras entrevistadas
le ofrecen al mismo, se configura un proceso caracterizado por una suce-
sión de instancias que van rubricando una experiencia, una pertenencia y
una construcción identitaria. No se es sólo una docente, sino que se advie-
ne una sindicalista docente, en el marco de acontecimientos personales,
elementos familiares y colectivos de pertenencia. Se trata de un pasaje en
el que se van desplegando saberes, tareas y vínculos, que adquieren signi-
ficaciones, complejidades y responsabilidades crecientes. “…yo no dejé de

192
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

venir nunca, creo, cada vez empecé a venir más…”, dice Mónica, refirién-
dose a sus primeros vínculos con el sindicato de profesoras/es privadas/os.
Su itinerario se conforma desde la condición de afiliada, pasando por el
ejercicio de la función de delegada escolar, aunque ésta última no haya conta-
do con el reconocimiento formal del rol. Esta actuación, le permite a Mónica
ser elegida delegada escolar en representación de sus compañeras/os docentes
durante tres mandatos, manifestando que iba al sindicato “…a escuchar más
que nada. Yo soy una persona más callada…”. En ese momento recuerda que
estaba embarazada de su segunda hija y tenía la concepción de que el sindi-
cato exigía mucho tiempo de permanencia. De ahí que pensaba: “…no puedo
estar las veinticuatro horas como delegada metida en el sindicato”.
A medida que se va interiorizando, rompe con una visión a su enten-
der estereotipada de la función de delegada escolar, y se anima a participar.
Mónica supone, no sin razones, que la demanda de tiempo que requieren
las actividades sindicales es demasiado exigida. Su condición de madre de
su primer hijo, la actividad docente que realiza, su trabajo en un Mac Do-
nald, y el rol de delegada sindical escolar que ocupa, hacen que ella se plan-
tee y dude acerca de las posibilidades de desempeño de la función gremial.
Pero también su contacto directo con el sindicato, le permite entender y
precisar mejor las funciones como delegada, su carácter de nexo entre el
sindicato y la escuela, la importancia de socializar la información sobre los
derechos laborales con las/os docentes de instituciones privadas. Y a pesar
de los condicionamientos que atraviesan su vida cotidiana, Mónica decide
participar del sindicato.
Los primeros acercamientos tenían por objetivo “…lograr una mejor
relación y vínculo con nuestro empleador…la gente que estaba a la cabe-
za no tenía formación docente y tenían más una formación gerencial y a
la escuela no la querían conducir de manera más próspera…sino a nivel
económico como un negocio…”. Por cierto, Mónica se enfrentaba a las ló-
gicas economicistas en la escuela privada en la que trabajaba, de ahí que
la vinculación con el sindicato ofrecía un respaldo que permitía una inter-
mediación institucional, ante una concepción empresarial de la educación
que Mónica no compartía. A los treinta ocho años asume la Secretaría de
Relaciones Institucionales, en el marco de una lista que compite con otra,
y en la que milita no sin conflictos. En cuanto a Fabiana, ella rememora
que empezó “sin querer queriendo…me empecé a meter…con esa función
de que uno lleva información…empecé a estar más acá…”.
Atraviesa un recorrido similar al de Mónica. Comienza siendo afi-
liada, luego referente, después delegada escolar por dos períodos, poste-
riormente Pro-secretaria de Educación durante dos años, para finalmente
a sus cuarenta y dos años, ser Secretaria de Comunicación y Prensa. Com-

193
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

pite por la misma lista con Mónica y, para ambas participantes, consti-
tuye la primera elección sindical en la que se involucran. Esta elección es
significada como una dificultad, dado que según la opinión de Mónica “…
no teníamos…espalda sindical”. Trabajar para ganar una interna sindical,
viniendo de funciones de delegadas de escuelas en las que prevalecen las
racionalidades de la esfera social, ha constituido un aprendizaje. Afrontar
las agresiones de la oposición no fue sencillo dado que las enfrentó “a la
parte que uno no quisiera conocer del sindicalismo…del tener que sentarte
con compañeros tuyos…que apoyan otra lista…sentarte a negociar mesas-
…y…ése no era el espíritu que me trajo…”, observa Fabiana. Tener que salir
a ganar los votos, manejar información, recorrer mesas, controlar los pa-
drones de afiliadas/os, solucionar problemas a distancia, tomar decisiones,
eran algunas de las tareas que aprendieron “en un tiempo record”, tal como
lo define Fabiana.
En esa elección parecen jugarse otros intereses además de regir al-
gunas reglas poco transparentes, de ahí que Mónica y Fabiana hacen ex-
plícitas sus convicciones en el sindicato: trabajar en beneficio de las/os
compañeras/os docentes que están en el aula, y a quienes representan. Sin
embargo, para poder defenderlas/os, han tenido que conocer a los adver-
sarios, confrontar y salir de una posición ingenua para mirar el sindicato
en los juegos de poder que las implican. Los desmerecimientos y despres-
tigios, las acusaciones de corruptas, las publicaciones acusatorias, eran
parte de ese juego que, en más de una ocasión, las hizo llorar. Los códigos
de las elecciones, provenientes del ámbito político, desestabilizan sus ar-
raigadas concepciones de servicio al prójimo.
Se aprecia que ambas han tenido un recorrido sindical ininterrumpi-
do, ascendente y de creciente asunción de responsabilidades político-sin-
dicales, que aparece vertebrado con aquellas transmisiones de sus proge-
nitores que, aunque parcialmente ausentes en sus infancias, se encuentran
muy presentes en sus trayectorias sindicales. En el caso de Fabiana en par-
ticular, la transmisión de su padre sindicalista ha dejado huellas profundas
en su vida, y hasta el presente el significado de la injusticia y la solidaridad
la conmociona.
Al respecto, Fabiana pone de relieve el haber sufrido la injusticia en
carne propia. Un episodio invade su memoria: después de varios años de
trabajar en el ámbito de una escuela privada religiosa de nivel primario,
recibía presiones de sus empleadores, dado que, si se afiliaba al sindicato
docente, la dejarían en el último lugar de ascenso en los cargos docentes.
El hartazgo y el enojo condujeron a Fabiana a afiliarse, bajo la proclama
de que “no me van a seguir coartando mis derechos”. La defensa de los
derechos laborales, ya perfilada por su padre, se introduce en su recorrido
sindical. Fabiana necesitaba un crédito bancario para poder ampliar su

194
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

casa lo cual requería la afiliación a una entidad gremial, y al solicitar la


firma de la apoderada legal de la escuela privada en la que trabajaba, ésta
se la concede, pero a cambio de no obtener el ascenso en la carrera docente
que le correspondía.
En principio, tal como expresa Fabiana “…guardé la fichita, no la llevé
a ningún lado…me la aguanté, después empezamos a tener persecuciones,
esta señora se metía mucho en la parte pedagógica…te empezaba a pedir
cuentas que yo venga a las misas…te llaman aparte…y uno tenía miedo de
quedarse sin trabajo…”. Las presiones de la patronal de las escuelas priva-
das, específicamente las confesionales, se ejercen controlando no sólo los
aspectos didácticos, sino también las conductas religiosas de las/os profe-
soras/es. Este temor a perder el empleo se liga con la experiencia sindical
de su padre a quien a un año de jubilarse le envían el telegrama de despido.
Sólo podía permanecer trabajando en el frigorífico a cambio de no hablar y
no militar sindicalmente. Él no acepta esa negociación y lo exoneran.
La identidad de obrero estable que había configurado su experiencia
laboral y social, se ve abruptamente interrumpida. En efecto, el frigorífico
cerró en 1992, tras un proceso de despidos de trabajadores, en el escenario
económico del neoliberalismo del gobierno menemista. Aquel saladero de
la carne que comenzó a funcionar en 1879, posibilitó el afincamiento de
pobladores en torno a él. A ciento trece años de aquella fundación, Santa
Elena se transforma en una ciudad de desocupados. Hay quienes emigran,
algunos se deprimen, y otros llegan a suicidarse. Luego se reabrió en 2005,
aunque no volvió a ser el mismo. Corría el año 1991, el frigorífico se priva-
tizó, y aquella situación coincide con la finalización de la escolaridad se-
cundaria de Fabiana y la transición hacia los estudios superiores. En aquel
momento, ella sentía “que por sus ideas, me cagaba la vida a mí”. “¿Qué
ganás, papá?” – interrogaba Fabiana -. Su padre respondía: - “¿Qué gano?,
que yo camino por la calle con la frente alta…y me respetan los que piensan
igual que yo y los que piensan distinto…”. Recuerda que las palabras de su
progenitor le “dolieron en el alma”: “las ideas Fabi, no se compran ni se
venden” – aseveró -. Su padre sindicalista retorna a su memoria para apun-
talar que “uno tiene una fiebre de solidaridad en sus venas, y eso te puede”.

Dimensiones familiares: entre las responsabilidades parentales y los propios


intereses
Las narrativas de Fabiana y Mónica entretejen el trabajo, la activi-
dad sindical y las responsabilidades familiares. Ambas trabajan, al igual
que los padres de sus hijos. Ellos no son los únicos proveedores econó-
micos, y ellas desarrollan más de un trabajo. La manutención de las niñas
y niños es compartida. Fabiana vive con su esposo, mientras que Mónica

195
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

está divorciada. La pareja de Fabiana es un soporte significativo, no sólo


en relación con sus hijas/os, sino también con ella misma, incentivando
sus proyectos laborales y sindicales. Es además quien le sugiere ideas, se
involucra con ella, conversan. Así lo expresa: “…siempre tuvimos una rela-
ción de mucho diálogo y de acompañarnos, por ahí me acompaña más él
a mí que yo a él…soy un poco más egoísta, tal vez él es más noble en ese
sentido que me deja crecer…”. Se puede preguntar aquí, si su autoconside-
ración como “egoísta” parece estar refiriendo a la experiencia de individu-
alidad a la que no está dispuesta a renunciar. Se puede interrogar también
si esa autoconsideración no estaría implícito un sentimiento de culpa por
lo que Fabiana entiende que debería hacer y no está cumpliendo. Fabiana
define a su compañero como “cero sindicalista”, refiriéndose a que no tie-
ne ningún tipo de actuación en sindicatos, en contraposición a la figura
de padre, admitiendo que siendo adolescente rezaba para que Dios “no le
mande un marido sindicalista”. La situación de Mónica es de separación
de su ex pareja. Su hijo e hija viven con ella, lo cual la lleva a coordinar con
su ex marido los horarios “en base a la disposición del otro”. Mónica, a di-
ferencia de Fabiana, afronta una de las pruebas de las sociedades contem-
poráneas: la inestabilidad de la vida conyugal. (SINGLY, 2014). Las familias
muestran su fragilidad y se reconstituyen focalizadas en la calidad de las
relaciones interpersonales. La separación coloca a Mónica en el marco de
una familia monoparental, debiendo establecer intercambios con su ex pa-
reja en función de las necesidades de sus hijas/os. Esta es una situación que
se expande: ser padre y madre puede coincidir o no con ser pareja.
Los sentimientos con respecto a las/os hijas/os son disímiles en am-
bas entrevistadas. Fabiana recibe los cuestionamientos de su hija más
pequeña quien le reprocha que realice tareas del sindicato en la casa. El
resto de los hijos que son más grandes, asumen la condición polifacética
de su madre, aunque en ocasiones se plantea un problema de autoridad.
En efecto, su segundo hijo mediante expresiones que rozan con la ironía,
hace sentir sus reclamos. En palabras de Fabiana: “…vos empezás a ajustar
algunas cosas que por ahí en casa no están del todo bien o les ponés orden
por ahí en las piezas, que tiendan sus camas, y…entonces él te invita a que
te vayas…”. Ante lo cual, Fabiana se ve en la dificultad de colocar lími-
tes, de establecer algunas reglas de funcionamiento. Fabiana vivía estas
situaciones con culpa, pero al entender que sus tareas consisten en “un
servicio al otro”, “vas, cumplís, lo hacés…yo disfruto las cosas que hago…”.
La maternidad aparece como una función acotada. Admite que cuenta con
el sostén de su esposo quien la apoya “cien por ciento…él me incentiva (…)
se adecúa por ahí a los tiempos…busca de hacerse cargo de los chicos, que
no queden solos, sino que estén siempre con él o conmigo…”. Los modos
de organización de la pareja sobre las responsabilidades parentales, per-

196
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

miten una distribución más equitativa en el ámbito doméstico, notándose


una dilución de la fijeza de los roles tradicionales, vinculada a la división
sexual del trabajo en la perspectiva del patriarcado. Su pareja como padre,
asume la responsabilidad de padre cuidador, posiblemente en relación con
el ejercicio acotado de la maternidad de Fabiana.
Mónica difiere con Fabiana en sus sentimientos de culpa. Por el con-
trario, ella involucra a sus hijos en las actividades sindicales, les explica,
los integra, “ellos siempre vivenciaron mi parte laboral”, esgrime. Saben
que luego tienen el tiempo de familia, entonces “yo la verdad que culpa
no siento”, asevera Mónica, y agrega “yo creo que estoy en un lugar be-
neficioso en ese aspecto de poder mostrar y compartir con ellos”. Mónica
comparte tiempo con sus hijos, se proyecta con ellas/os, tanto en el trabajo
como en la casa. Luego de haber morado en viviendas ajenas, la casa de su
mamá, un departamento alquilado en Buenos Aires mientras estudiaba,
la residencia de sus suegros mientras estuvo casada, la casa propia parece
constituir no sólo un soporte material donde vivir, sino además un soporte
simbólico que se constituye en un espacio propio. El propio hogar le otor-
ga un lugar de pertenencia, además de planificar conjuntamente con sus
hijas/os, construyendo un lugar para poder disfrutar, de manera de poder
“irme a mi casa y olvidarme del resto, aunque sea dos horas al día y los fi-
nes de semana…y tener mi espacio para volver a construir obras mías…”. Se
trata de una familia monoparental en la que Mónica debe negociar tiem-
pos y espacios con su ex pareja.

La transversalidad del tiempo: la articulación de distintas esferas de la vida social


La dimensión temporal recorre los relatos de las entrevistadas y, de
alguna manera, se torna transversal a las dimensiones laborales, sindicales
y familiares abordadas en los apartados precedentes. El tiempo, remite a
sus dimensiones objetivas, pero también subjetivas, y resulta relevante si
se lo escruta desde la condición de las mujeres. Efectivamente, las defi-
niciones del tiempo responden a parámetros laborales patriarcales en re-
lación con su carácter público, remunerado y con reconocimiento social,
diluyendo otras experiencias del tiempo que en las mujeres que adquieren
rasgos diferenciados y desiguales a la experiencia masculina del tiempo.
En las profesoras sindicalistas, el tiempo adquiere ribetes peculiares, es-
pecialmente si se considera la condición de maternidad de ambas entrevis-
tadas. Las actividades escolares, sindicales y familiares requieren de una
combinación de tiempos que se despliegan en la cotidianeidad, cuestión
que cada entrevistada valora y enfrenta de modo particular. Se trata de
constantes y variables, las primeras con horarios fijos y previsibles, y las
segundas con duraciones que suelen ser volátiles.

197
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Hay tiempos regulados, pero también tiempos vividos. Hay tiempos


en que se privilegian determinadas esferas de la sociedad, en desmedro de
otras. Mónica los concibe estableciendo coordinaciones con los miembros
de su familia. Fabiana los organiza de manera fragmentada. Ambas requie-
ren de soportes relacionales que les permiten desarrollar sus recargadas
agendas laborales y sindicales.
Mónica parece representarse el tiempo en sincronización en el sen-
tido de producir acciones que puedan funcionar de modo simultáneo. Alu-
de a su vivencia del tiempo en su condición de sindicalista, cuyos trazos se
diversifican en el tiempo para el trabajo sindical, el tiempo sólo para las/os
hijas/os, y el tiempo en el sindicato con ellas/os. Sobre éste último, Mónica
expresa que “…ellos se suman a todo esto porque nos apoyan un montón…
ellos ven que no estás perdiendo el tiempo…ellos ven el resultado, los fru-
tos de la dedicación de uno…”. El sindicato aparece como un lugar perme-
able para las sindicalistas que son madres posibilitando instancias com-
partidas en que las/os hijas/os las acompañan. Como dice Mónica, “ellos
encuentran un espacio también acá”. El tiempo del trabajo sindical suele
producir ciertas demandas por parte de las/os niñas/os. Es un tiempo que
Mónica conjuga en presente y futuro, dado que “…uno va abriendo cami-
nos hacia una realidad diferente, y eso los incluye a ellos, no los deja fuera,
pero en la realidad inmediata uno les quita tiempo…”. Mónica los gestiona
de modo coordinado con otras/os, fundamentalmente con su ex pareja y, en
ocasiones, con su ex suegra y su madre. Se trata de una coordinación nece-
saria para poder sostener sus actividades docentes y sindicales, mientras
sus hijas/os quedan al cuidado de los miembros de la familia. Los soportes
de las relaciones personales se centran fundamentalmente en la atención
de los/as hijos/as.
En tiempos de vorágine cotidiana de trabajo, las abuelas pasan a ser
soportes de la crianza de las/os nietos/as, siendo depositado en las muje-
res de la familia el trabajo de cuidado no remunerado. Ellas aseguran la
reproducción cotidiana de sus nietas y nietos. Como lo expresa Mónica:
“…el primer año de vida de él no me tuvo…estaba más con la abuela por-
que yo estaba todo el día trabajando (…) mi mamá y mi suegra, estaba más
con mi suegra…nos ayudaban un montón las dos…”. También el padre de
sus hijos, de quien se encuentra separada, colabora en la tarea de crianza,
para lo cual acuerdan y coordinan horarios y posibilidades. Mónica ex-
presa que “yo le pido la colaboración al padre y él ve cómo lo soluciona,
así que bueno, uno se acomoda…”. El personal de seguridad del sindicato
docente constituye una ayuda cuando Mónica asiste con las/os niñas/os.
Y eventualmente, “uno se acomoda, y los chicos…están muy contentos de
venir acá”, haciendo alusión a que, cuando no hay disponibilidad de perso-
nas que se puedan encargar de las/os niñas/os, la acompañan al sindicato.

198
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Sus hijas/os juegan en el espacio sindical, mientras su mamá desarrolla las


actividades de la Secretaría de Relaciones Institucionales. Hay tiempos en
que sus hijas/os son parte de la rutina sindical, y otros en que el tiempo
se los dedica a ellos, especialmente los fines de semana. Mónica intenta
coordinar los tiempos con aquellas personas que pueden hacerse cargo de
sus hijas/os mientras realiza las actividades del sindicato. No obstante, ese
acoplamiento presenta sus fallas, toda vez que no puede contar con las/os
otras/os. La solución encontrada es la de llevarlas/os al sindicato con ella,
lo que no parece ser vivido como una carga, aunque queda la pregunta de
si se trata de una cuestión que resigna, haciéndose cargo ella.
Si Mónica alude a la coordinación de los tiempos, Fabiana se refiere
a sus tiempos como fragmentados, adquiriendo connotaciones de tiempo
cronológico, a la manera de los relojes. Al apuntar las múltiples activida-
des que desempeña, Fabiana alude a que “…te repartís, te partís más que
te repartís (…) uno tiene que buscar los tiempos…a mí el hecho de estar
también en la escuela me posibilita el que vaya fragmentando los tiem-
pos”. Su vida parece organizada en torno a un tiempo secuencial, que se
vivencia por partes. Así, hay un tiempo para la actividad escolar, otro para
la sindical, otro para la locución, otro para la familia. A pesar de tal frac-
cionamiento, esos tiempos no tienen el mismo espesor en la experiencia de
Fabiana. Desde su autopercepción de ser alguien “muy inquieta”, el tiem-
po en la casa es limitado dado que “el estar mucho tiempo en mi casa no
lo soporto”. De ahí que “salir” y “estar en contacto con otras personas”,
resulte más desafiante tal como ella lo concibe. Estar con docentes, estar
en el sindicato, conectarse con otras entidades, le permite vincularse con
realidades que abren el “abanico de contactos” y le posibilitan enriquecer-
se con “historias, con experiencias, vas creciendo…como que no me gusta
mucho la chatura…”.
Sus hijos “se van adaptando me parece…algunos a la fuerza, pero sí se
adaptan (…) les cuesta…adaptarse sobre todo a los más chicos…”. El punto de
tensión aparece en relación con sus hijas/os quienes le hacen reproches, y
la desautorizan cuando intenta colocar algunos parámetros de organizaci-
ón hogareña. Sencillamente la invitan a que se vaya de la casa. Lo cierto es
que Fabiana cuenta con su pareja, con quien divide las tareas de crianza, y
se constituye en soporte relacional y afectivo tanto para sus hijas/os como
para ella misma.
No obstante, los tiempos ininterrumpidos en la actividad sindical
parecen sostenerse desde una matriz vocacionista que permea las visiones
tanto de Fabiana y Mónica. Los tiempos sindicales se extienden incluso en
vacaciones, tornando el año 2015 en particular “largo y cansador”, en que
un grupo se autoconvocó “a seguir trabajando, seguir generando benefi-
cios en vacaciones…”, además de haber atravesado una elección sindical.

199
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Fabiana comenta que había viajado una semana para pasar la navidad en
su pueblo natal, aunque “esos días allá estuve generando beneficios, o sea,
no me la pasé sentada en mi casa, me iba a recorrer”. En esas coordenadas,
Fabiana y Mónica admiten que “vamos a descansar un poquito” [dado que]
el cuerpo lo necesita [y] ahora el cansancio se nota”. Empero, la tradición
vocacionista parece sostener la constante tarea gremial: “cosas que uno
hace sin darse cuenta…vos no medís…es algo que está adentro tuyo…”, dice
Fabiana. “…no es que se lo propone”, asiente Mónica.
Ese tiempo ininterrumpido es connotado por Fabiana en relación
con sus funciones de la secretaría sindical: “…por ahí uno no corta…si hay
que emitir un comunicado a las once de la noche, prendés la computado-
ra, hacés el comunicado…”. Ese tiempo de servicio al otro adquiere otras
connotaciones, específicamente, no tiene medida. Pareciera tratarse de
un tiempo incondicional, sin límites, para dar sin recibir. El aumento del
tiempo de las mujeres en el empleo y en el sindicato, parece afectar el tiem-
po de ocio, dado que no hablan de un tiempo propio o de un tiempo de des-
canso que dedican a sí mismas. El tiempo adquiere importancia en la joven
generación de mujeres debido a la articulación temporal de las diferentes
esferas en la vida contemporánea, en términos de un desequilibrio estruc-
tural de dominios como resultado de la combinación de políticas públicas,
luchas sociales, transformaciones culturales y aspiraciones individuales,
tal como lo plantean. (ARAUJO; MARTUCELLI, 2012a). En ese sentido,
se trata de una experiencia marcada por fuertes desequilibrios temporales
que se despliegan en el marco de un contexto de trabajo-sin-fin, y de un
déficit de legitimidad en ciertos ámbitos y sus implicancias en la existen-
cia escasa de soportes institucionales. (ARAUJO; MARTUCELLI, 2012a).
Para las mujeres, ese trabajo-sin-fin se profundiza en términos de la ar-
ticulación de ámbito de trabajo productivo y trabajo doméstico, con sus
respectivas repercusiones en los modos en que enfrentan temporalmen-
te dicha articulación, lo que repercute en la posibilidad de contar con un
tiempo liberado para sí.

A modo de conclusión: las tensiones entre lo público y lo privado


El sindicato históricamente constituido como un espacio de luchas,
de tensiones y de conflictos del mundo del trabajo, fue construido como un
mundo masculino, parte de la sociedad civil, de la esfera pública de la vida
social, territorio en el cual las mujeres entraron recientemente, ejerciendo
prácticas sociales para las cuales no fueron socializadas, visto la educación
diferenciada por género y la división sexual del trabajo. Una vez presentes
en ese territorio masculino, ellas se ven tensionadas, desafiadas, cuestio-
nadas, teniendo que aprender nuevos saberes y hacerse respetar, reconocer
y legitimar. En ese tránsito hacia el dominio sindical del espacio público, a

200
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

su vez, las mujeres no dejaron sus responsabilidades y tareas del hogar y de


maternaje, teniendo que articular tiempos, espacios y prácticas sociales de
los espacios públicos y de la vida privada una vez que, al estar en el mundo
público, ellas aún no se desprendieron de sus antiguas atribuciones del
mundo privado.
La articulación entre los espacios público y privado constituye un
desafío relevante que las mujeres sindicalistas deben enfrentar. Lo coti-
diano para las mujeres conlleva ciertas lógicas que no son equiparables a
la cotidianeidad masculina. Así, la redistribución de labores domésticas en
las parejas y las tareas de cuidados de las/os hijas/os parecen ser puntos de
difícil resolución para las mujeres. Las nuevas prácticas no han superado
necesariamente a las viejas y, en ocasiones, coexisten con ellas. Espacio
público y privado se requieren entre sí, pero el último aparece desvalori-
zado. Las actividades hogareñas efectuadas por amor, ahorran un salario.
Para que un ciudadano triunfe en el mundo precisa una vida afectiva. Para
que alguien sea un individuo autónomo necesita de otra que se individue
menos. La actuación de las mujeres, históricamente, ha estado en el espa-
cio privado, sosteniendo el público, desde un lugar secundario. (Fernández,
1994). Y, a veces, ellas no tienen privacidad, aun estando en el dominio de
la esfera privada. No tienen tiempo para sí mismas, no tienen espacio para
disfrutar de su propia persona sin demandas o interpelaciones simultáne-
as. Resulta insoslayable la referencia a la condición de mujeres-madres de
nuestras entrevistadas, el trabajo de cuidados que involucra, las emociones
que despierta, entre ellas el sentimiento de culpa, la sobrecarga de tiempos
de vigilia y de tareas sin fin, en las que se mueven de la casa para la escuela
y viceversa, entre otras situaciones, frente a las cuales ellas buscan soportes
que permitan sostener a las niñas y los niños, además de sostenerse ellas.
Esa actuación de las madres dependerá de la ayuda de la que disponen las
mujeres, de manera que el modelo familiar en cuanto a la conformación de
pareja, así como del ejercicio de la paternidad, resultan de importancia en la
posibilidad de articular tareas sindicales, maternales y domésticas.
Fabiana alude a una maternidad acotada, y Mónica a una maternidad
en la que se juega el compartir con las/os hijas/os. No se trata del modelo
de madres dedicadas con exclusividad a la casa y las/os hijas/os como an-
taño, sino de mujeres que trabajan y deben conciliar mundo del trabajo y
mundo doméstico. Empero, sus relatos engarzan actividades laborales y
sindicales en relación con la maternidad, y se advierte que Fabiana al igual
que Mónica, cuentan su recorrido laboral en periodizaciones ligadas a sus
embarazos y edad de sus hijas/os.
Las exigencias de largas jornadas a las que están expuestas las sindi-
calistas, hacen que muchas veces deban restarle tiempo y dedicación a sus
hijas/os. Los reproches son una constante por parte de las/os descendien-

201
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

tes. No obstante, los sentimientos de culpa aparecen como un sabor amar-


go en los relatos de Fabiana. La culpa se inscribe en un universo de signifi-
caciones que idealizan un modo histórico de ejercicio de la maternidad: el
ideal moderno. Ese ideal se torna difícil de encarnar en escenarios sociales
que se han transformado. Los deberes asociados a la función materna co-
locan a nuestras entrevistadas en situaciones de estar en falta, dado que la
sociedad les autoriza un margen de error menor que a los padres. La carga
que significa ser designadas como las principales cuidadoras las inscribe
en un deber ser que les deniega derechos.
No obstante, Mónica transita la experiencia sindical con sus hijas/
os en el sindicato, lo cual introduce otro modo de habitar la vinculación
público-privado en el espacio sindical. Se trata de la inclusión en el es-
pacio sindical de las tareas de cuidado de sus hijas/os, no ya solamente
en una diferenciación separada de espacio público y privado, sino en una
intersección en la que simultáneamente desarrolla actividades de crianza
y de trabajo sindical.
Las mujeres parecen habitar distintos mundos al mismo tiempo, en
una disociación que les implica manejar los códigos del mundo público y
del privado en simultáneo, formando parte de éste último, el cuidado de
las/os hijas/os. Y cuando llevan sus hijas/os al espacio del sindicato, si por
un lado resulta más fácil porque no precisan resolver el problema de quién
estará con ellas/os en la casa, por otro lado, tendrán que dividirse entre la
ocupación sindical y el maternaje al mismo tiempo. Por el contrario, si las/
os dejan en la casa o con otras/os responsables que son las abuelas, llevan
consigo al sindicato no a las/os hijas/os propiamente, sino la preocupación
por ellas/os, que las persigue, acompaña y tensiona permanentemente.
En tal situación, las mujeres salen de la casa, pero llevan la casa al
sindicato, manteniéndose atentas a ambos mundos, con sus respectivos
códigos y prácticas. Un trabajo invisible que, en tal caso, se sostiene en
simultáneo con el trabajo visible sindical. No se trataría sólo de dobles
y triples jornadas de trabajo, o de la doble presencia de las mujeres en el
mundo público y privado, sino de jornadas de trabajo productivo/repro-
ductivo no separadas, en concurrencia.

Referencias

ARAUJO, Kathya. Desafíos comunes: Retrato de la sociedad chilena y sus


individuos. Tomo II. Santiago de Chile: LOM, 2012b.
ARAUJO, Kathya; MARTUCCELLI, Danilo. Desafíos comunes: Retrato de la
sociedad chilena y sus individuos. Tomo I. Santiago de Chile: LOM, 2012a.
BACH, Ana. María. Las voces de la experiencia: El viraje de la filosofía
feminista. Buenos Aires: Biblos, 2010.

202
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

DI MARCO, Graciela; PALOMINO, Héctor; MÉNDEZ, Susana;


LIBCHABER de PALOMINO, Mirta. Movimientos sociales en la
Argentina. Asambleas: la politización de la sociedad civil. Buenos Aires:
Jorge Baudino-UNSAM, 2003.
DUBET, François. El trabajo de las sociedades. Buenos Aires: Amorrortu, 2013.
FERNÁNDEZ, Ana María. La mujer de la ilusión. Buenos Aires: Paidós, 1994.
GASPARINI, Leonardo; JAUME, David; SERIO, Monserrat; VAZQUEZ,
Emmanuel. La segregación escolar en Argentina. Documento de trabajo
no 123. Buenos Aires: Centro de Estudios Distributivos, Laborales y
Sociales (CEDLAS), 2011.
GUERRERO SERÓN, Antonio. ¿Por qué el profesorado no se sindica? En:
SÁNCHEZ, J. M. (Ed.). La sociología de la educación en España. Madrid:
J.M.S. Editor, 1991. p. 187-195.
MAFFÍA, Diana.; KURSCHNIR, Clara. Capacitación política para
mujeres. Buenos Aires: Feminaria, 1994.
MARX, Jutta. Mujeres, participación política y poder. En: MAFFÍA, Diana.;
KUSCHNIR, Clara (Comps.). Capacitación política para mujeres: género y
cambio social en la Argentina actual. Buenos Aires: Feminaria, 1994.
MORGADE, Graciela (Comp.). Mujeres en la educación. Género y docencia
en la Argentina 1870-1930. Instituto de Investigaciones en Ciencias de la
Educación. Universidad de Buenos Aires. Buenos Aires: Miño y Dávila
Editores, 1997.
NARODOWSKI, Mariano; MOSCHETTI, Mauro C. La educación privada
en Argentina después de los neoliberales y de los antineoliberales. Síntesis
Educativa, 23 marzo 2012.
OLLIER, María Matilde. Presidencia dominante y oposición fragmentada:
una construcción política. Néstor y Cristina Kirchner. Buenos Aires:
Universidad Nacional de General San Martín Edita, 2014.
PALOMINO, Héctor. Los sindicatos y los movimientos sociales emergentes
del colapso neoliberal en Argentina. En: TOLEDO, Enrique de la Garza
(Comp.). Sindicatos y nuevos movimientos sociales en América Latina.
Buenos Aires: CLACSO, 2005.
SIDICARO, Ricardo. El partido peronista y los gobiernos kirchneristas.
Revista Nueva Sociedad, n. 1, 234, p. 74-94, jul./agosto 2011.
SINGLY, Francois de. Separada. Vivir la experiencia de la ruptura. Madrid:
Pasos perdidos, 2014, Introducción y Capítulo 1. Disponible en: http://www.
pasosperdidos.org/libros/pdf-19.pdf. Acesso en: 15 enero 2017.
SVAMPA, Maristella. Argentina, una década después. Revista Nueva
Sociedad, n. 235, p. 17-34, sept./oct. 2011.

203
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

SVAMPA, Maristella. Cambio de época: Movimientos sociales y poder


político. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.
SVAMPA, Maristella. La sociedad excluyente: La Argentina bajo el signo
del neoliberalismo. Buenos Aires: Taurus, 2005.
SVAMPA, Maristella. Las fronteras del Gobierno de Kirchner: entre la
consolidación de lo viejo y las aspiraciones de lo nuevo. CDC, Caracas,
v. 24, n. 65, p. 39-61, 2007. Acesso en: 28 enero 2017.
TENTI FANFANI, Emilio (Comp.). La escuela y la cuestión social. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno, 2007.
YANNOULAS, Silvia C. Educar: una profesión de mujeres? Buenos Aires:
Kapelusz, 1996.

204
CAPÍTULO 9

NARRATIVAS E EXPERIÊNCIAS JUVENIS NO


MOVIMENTO CULTURAL SLAM INTERESCOLAR

Priscila Lima e Silva (UEMG)


Cirlene Cristina de Sousa (UEMG)

Introdução
Redemocratizada pelas novas tecnologias nos últimos anos, a lin-
guagem – seus usos e formas – tem acentuado seu processo evolutivo ade-
quando-se às necessidades de tempos e contextos comunicativos. Ainda
que de maneiras diferentes ao longo do tempo e na qualidade de sofis-
ticado instrumento de interação, a linguagem pode atuar para as meta-
morfoses sociais, emancipar construções culturais, protagonizar disputas
políticas, educar, alienar, permitir a experimentação de novas estéticas e
dentre tantas outras possibilidades de uso, movimentar vidas, criar mun-
dos e ressignificar histórias.
Assim, a arte das palavras, em especial nas últimas décadas, tem anco-
rado inúmeras práticas culturais de participação juvenil. Os saraus, os slams
poéticos e as batalhas de poesia destacam-se como movimentos literários
que se firmaram enquanto espaços de criação, socialização e representação
de visões de mundo. Nesse ínterim, estudos acerca das culturas juvenis ad-
quirem eminente importância, no sentido de perceber o que os/as jovens
constroem a partir de suas práticas culturais e compreender as habilidades,
sensibilidades e saberes que estes têm tramado para forjar seus percursos,
desenvolver subjetividades e intensificar seus vínculos de pertencimento e
sociabilidade (SPOSITO, 2000) por intermédio da linguagem.
Reconhecendo esse cenário, as perspectivas inscritas neste artigo
estão atreladas à pesquisa de mestrado, realizada entre 2017 e 2019, no
Programa de pós-graduação em Educação e Formação Humana da Uni-
versidade do Estado de Minas Gerais, que buscou compreender a maneira
como jovens poetas participantes do slam interescolar - um projeto literário
cultural organizado em escolas de Belo Horizonte, Minas Gerais - utilizam

205
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

e significam sua relação com a linguagem. O poetry slam ou simplesmente


slam é uma competição de poesia falada onde jovens se reúnem em espa-
ços públicos ou culturais para declamar e escutar poesias autorais. Cabe
esclarecer que o slam interescolar, uma das modalidades existentes do slam,
foi um projeto educacional, que teve como objetivo levar para dentro das
escolas da capital mineira a prática cultural, que envolveu, para além das
competições poéticas entre os estudantes, oficinas de escrita criativa.
Dessa forma, o presente artigo pretende apresentar as percepções
acerca das formas como os/as jovens participantes do slam interescolar se
relacionam com a linguagem, na medida em que essa prática cultural re-
vela indícios de que suas dinâmicas e atividades podem modificar o modo
como esses/as jovens utilizam e interagem por intermédio da linguagem.
Isso nos levou a refletir sobre as dimensões socioculturais dos letramentos
(STREET, 2014), uma vez que ao participarem desse movimento cultural,
os/as estudantes criaram vínculos com a escrita, com a recitação e escuta
de poemas, e, consequentemente, com o debate democrático e com uma
formação crítica e reflexiva da realidade. Esses movimentos mobilizados
pela juventude vêm chamando a atenção dos atores e espaços educacionais
para a necessidade de se compreender o/a jovem aluno/a como um sujeito
que carrega experiências socioculturais e que é, além disso, um articulador
de práticas culturais, sociais e de aprendizagens e conhecimentos arquite-
tados nos entrecruzamentos dos fluídos e plurais modos de ser e criar das
diferentes culturas juvenis (DAYRELL, 1996).
Sendo assim, a pesquisa, de natureza qualitativa, foi organizada a
partir de uma abordagem sociológica. Para tanto, nos aproximamos de au-
tores como Martuccelli (2006), o qual elabora teorias sociológicas mais ali-
nhadas com a realidade contemporânea, partindo da perspectiva da expe-
riência individual e considerando o indivíduo como ponto de partida para
a compreensão do social (MARTUCCELLI, 2006). Diante disso, metodolo-
gicamente a pesquisa de campo foi feita em dois momentos: observações
que possibilitaram construir as características da prática literária e cultu-
ral do poetry slam. As andanças pelo slam aconteceram em Belo Horizonte
entre os meses de setembro de 2017 e agosto de 2018, frequentando o slam
clube da luta e o slam das manas.
O segundo momento da pesquisa foi marcado pelo encontro e pela
escuta dos/as jovens poetas que participaram do slam interescolar. Tais en-
contros oportunizaram o que denominamos de “conversas biográficas”,
uma construção metodológica que viabilizou que os sujeitos da pesquisa
pudessem narrar e contar (BENAJMIN, 2012, 2015) suas experiências e tra-
jetórias linguageiras a partir de entrevistas. Além das narrativas produzidas
nas entrevistas, compuseram também o corpus analítico do estudo das poe-
sias dos/as jovens e um documento que detalha o Projeto slam interescolar.

206
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Destarte, as análises revelaram que as tramas narradas pelos/as jo-


vens pesquisados/as foram se agenciando em meio aos inúmeros pertenci-
mentos da juventude, já que os poetas rememoraram nas “conversas bio-
gráficas” os trânsitos pela linguagem e os processos formativos forjados
em suas vivências linguageiras. Nesse contexto, a relação afetiva desses/as
jovens com o movimento literário e cultural desenharam formas de aproxi-
mar os/as jovens da escrita, quando estes descobrem na arte possibilidades
de aprender a se expressar, de ver o mundo por outras lógicas, de construir
os significados e sentidos de suas atuações no social pela linguagem e de
se vincular à linguagem poética como um recanto de aprendizagens, sen-
sibilidades, resistência às adversidades e participação política.

Os movimentos culturais juvenis: as possibilidades da linguagem para a juventude


A linguagem possui intrínseca relação com a vida humana, já que
é através dela que significamos o mundo e construímos os sentidos. Nas
reflexões de Charaudeau (2014), a linguagem constitui-se como um fato so-
cial que carrega consigo vínculos de poder. Tais vínculos são construídos
e reconstruídos em meio às relações de contato e trocas promovidos pelos
sujeitos ao longo do tempo, ou seja, podemos considerar que “a linguagem
é uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social” (CHA-
RAUDEAU, 2014, p. 7).
Figurando como um importante meio de expressão, de representações
e visões de mundo, a linguagem tem sido, no decurso da existência huma-
na, artifício tanto para a dominação e colonização, como para a libertação
e emancipação dos indivíduos e das sociedades. Assim sendo, a contempo-
raneidade evidenciou uma disputa pela palavra, ou, de maneira ainda mais
profunda, uma disputa por narrativas. Nesse cenário, o slam caracteriza-se
como um movimento literário-cultural que se ancora na linguagem e na
construção de narrativas por parte dos poetas/slammers, por isso, possibilita
interessantes horizonte de perspectiva para pensar e construir novos cami-
nhos de aproximação entre os/as jovens, a literatura e a escrita.
De acordo com Martins e Carrano (2011), os/as jovens, enquanto pro-
tagonistas de diversas e expressivas manifestações culturais, criam espaços
próprios de socialização que se transformam em territórios culturalmen-
te expressivos e nos quais diferentes e plurais identidades são elabora-
das (MARTINS; CARRANO, 2011). Nos territórios culturais juvenis deli-
neiam-se espaços de autonomia conquistados pelos jovens e que permitem
a eles e elas transformarem esses mesmos ambientes, ressignificando-os a
partir de suas práticas específicas (MARTINS; CARRANO, 2011, p. 44-45).
A cultura dos slams pode ser considerada como um desses territórios,
por se tratar de um dos modos de sociabilidade ligados à arte da palavra e ao

207
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

sensível e que, por meio da poesia falada, passeia por ruas, praças, teatros,
bares, esquinas e escolas, resgatando experiências culturais que permeiam
e singularizam modos de ver e refletir sobre a organização social e cultural.
Essas narrativas literárias se desenvolvem intrinsecamente ligadas às vivên-
cias dos poetas. O poetry slam, uma competição de poesia falada, chegou ao
Brasil pelas mãos de Roberta Estrela D’alva. A poeta, atriz e slammer o define
como “uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão
poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo
mais uma forma de entretenimento” (D’ALVA, 2014, p. 110).
Nesse contexto, entre versos e rimas, o slam interescolar foi o marco
desencadeador de inquietações, descobertas e suposições. Em conversas
com Lucas Oliver, o educador e idealizador do projeto, compreendeu-se
que além de proporcionar a partilha, a troca e a escuta de poesias entre os/
as alunos/as, o slam na modalidade escolar incentivava, a partir de oficinas
criativas, o desenvolvimento da escrita. Com duração total de quinze horas
em cada instituição escolar, o projeto aconteceu em 10 escolas públicas de
BH, entre agosto e dezembro de 2017. Na dinâmica, os/as alunos/as se dedi-
cavam em discutir temáticas contemporâneas, além de escrever e escutar
textos poéticos. Ao adentrar os muros da escola e criar oportunidades de
fala, escrita e escuta entre os atores sociais, vislumbrou-se no slam interes-
colar uma oportunidade de revelar o/a jovem estudante como um sujeito
social que sonha, emite opiniões, pontos de vista, questiona, sugere e com-
partilha sentimentos, sentidos e significados sobre si, sobre o outro, sobre
a escola, sobre o mundo, sobre o ser e o viver.
Por isso, a dinâmica poética do slam está conectada à perspectiva de
pensadores que se interessam em compreender as juventudes e seus modos
de construir sociabilidades, suas formas de expressão e de articulação cul-
tural, tais como Juarez Dayrell (1996). Em seus escritos, o autor coloca que
as experiências da juvenis não podem ser ignoradas, ao contrário, precisam
ser abordadas e incorporadas no processo de ensino e aprendizagem dos/as
jovens, sugerindo que “é necessário levar em conta o aluno como um sujeito
sociocultural, quando sua cultura, seus sentimentos, seu corpo, são media-
dores no processo de ensino e aprendizagem” (DAYRELL, 1996, p. 157).
Dessa forma, de acordo com Nonato, Sposito e Dayrell (2016), são
nesses momentos que acontecem as relações sociais mais significativas
para os/as jovens, oportunidade em que podem refletir, problematizar e
interpretar suas experiências de vida e ir se formando como sujeito, uma
vez que os/as jovens
amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito de suas con-
dições e de suas experiências de vida, posicionam-se diante
dela, possuem desejos e propostas de melhoria de vida. É nes-

208
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

se processo que cada um/a delxs vai se construindo e sendo


construídx como sujeito, como ser singular que se apropria do
social, transformando-o em representações, aspirações e prá-
ticas, que são interpretadas e dão sentido aos seus mundos e às
relações que mantêm (NONATO et al., 2016, p. 255).

Essas relações mais contextualizadas com a realidade, entretanto,


ainda não têm se fortalecido de modo dinâmico nos espaços escolares,
costurando laços mais profundos nos contatos e interações feitos através
dos movimentos culturais. Por isso, ao cultivar liames mais estreitos com
a linguagem, em especial, com a linguagem literária, a cultura do slam re-
verbera características estéticas em que o uso da escrita aparece envolto
em finalidades de produção cultural e política. Portanto, por participarem
dessas atividades, que abarcam a utilização da linguagem em suas múlti-
plas facetas, esses/as jovens envolvem-se em práticas de letramento.
Assim, para pensar a dimensão de letramento no slam interescolar e nas
experiências dos/as jovens slammers, para além da perspectiva de aquisição
de habilidades como ler e escrever, considerou-se as constatações de Brian
Street (2014), um dos precursores da abordagem do letramento enquanto
algo que mobiliza, interfere e fundamenta as relações sociais. As contribui-
ções de Street (2014) embasaram as percepções acerca da maneira como os/
as participantes do slam utilizam e se relacionam com a linguagem, pois
o estudo dos significados e usos do letramento nas vidas de
pessoas específicas pode oferecer insights gerais sobre a or-
ganização humana e o processo social; e que os insights an-
tropológicos podem contribuir para informar a instrução do
letramento e a prática educacional à medida que a sociedade
contemporânea se torna cada vez mais diversificada cultural-
mente (STREET, 2007, p. 483-484).

Isso porque é pela linguagem que se tem criado e desenvolvido es-


paços e situações de aprendizagem e compreensão das tensões que per-
passam os encontros e conflitos interculturais. Pela linguagem também
percebemos dinâmicas socioculturais que foram construindo narrativas e
identidades ao longo dos tempos. Logo, os movimentos que se ancoram na
prática da escrita e da oralidade, tais como o slam interescolar, lançam um
novo desafio para as concepções e pesquisas em torno dos usos da lingua-
gem. Diferente das práticas de letramento tradicionais, que permeiam os
ambientes escolares, esse espaço artístico-político revela novos sentidos e
reverberações para as práticas de leitura e escrita exercidas por seus par-
ticipantes, uma vez que o letramento social pode ser percebido como um
campo que se dedica em investigar a escrita e a oralidade, seus usos, sua
funcionalidade e a sua repercussão na vida dos sujeitos (KLEIMAN, 1995).

209
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

No atual contexto contemporâneo, além de perceber se os sujeitos


sabem ler e escrever, é importante também entender como eles utilizam
essas práticas e como dão significado a essa relação com a linguagem. Des-
sa maneira, a virada de paradigma, segundo Street, se concentra em não
mais entender o “efeito” do letramento sobre os sujeitos, mas sim em com-
preender como esses sujeitos se apoderam do letramento e também como
o letramento repercute nas relações e interações sociais angariadas pelas
inúmeras culturas (STREET, 2014). Sendo assim, frente às novas configu-
rações da sociedade globalizada, multicultural e tecnológica, é importante
que as práticas de leitura e escrita entreteçam diálogos entre os letramen-
tos dominantes e as novas práticas letradas, mostrando como essas práti-
cas acontecem e impactam a vida de cada um desses sujeitos de maneira
diferente (STREET, 2014).
É nesse sentido, que a linguagem tem ancorado iniciativas para a
criação de espaços formativos condizentes com a pluralidade de culturas e
linguagens que se encontram nas salas de aula, tais como o slam interesco-
lar. A necessidade de considerar e introduzir essas novas práticas letradas
possui vínculos com as mudanças socioculturais, uma vez que os/as novos
sujeitos, ao adentrar os espaços escolares, trazem consigo novas formas
de se expressar, de utilizar a linguagem, de produzir conhecimento e de
vivenciar e significar o mundo, pois é pelas atividades de linguagem que o
indivíduo “tem condições de refletir sobre si mesmo” (BRASIL, 2006, p. 24)
e de reconstruir novas perspectivas de vida.
Nesse cenário, os letramentos sociais se consolidam quando rela-
cionados às formas de expressão e representação artísticas, às experiên-
cias culturais e às relações cotidianas, assim como aos conhecimentos (re)
construídos fora da escola e também dentro dela. Desse modo, a literatura
e os movimentos que dela nascem reafirmam-se cada vez mais como ma-
nifestações artísticas com potencial humanizador e transformador (CÂN-
DIDO, 2004) e podem atuar como um meio de problematização e reflexão
por meio das palavras. Sendo assim, na próxima seção refletimos sobre a
escolha da narração e da escuta de experiências enquanto construção me-
todológica para a pesquisa.

Construções metodológicas a partir do narrar-se


Assim como Walter Benjamin, autor de O Narrador, dialogou com po-
etas como Charles Baudelaire e escritores como Marcel Proust para explicar
suas teorizações sobre o narrar, sobre a experiência, a tradição e até mesmo
sobre a memória, ciente das potencialidades da literatura, esta pesquisa pro-
curou dialogar com as narrativas literárias de jovens poetas, reverberando
suas memórias e experiências para compreender as relações que estabele-

210
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

ciam com a linguagem. Nesse cenário, a pesquisa também possui contri-


buições de leituras feitas nos tempos da licenciatura em Letras, quando foi
obrigatória o estudo de obras primas de autores como Benjamin.
Dessa maneira, as teorizações deste autor, juntamente com autoras
como a renomada filósofa Olgária Matos, embasam a escolha pela escuta
das narrativas e experiências juvenis, por meio de entrevistas, para a reali-
zação da pesquisa. Em seus escritos, Benjamin argumenta que as mudan-
ças socioculturais advindas com a modernidade estimularam a perda da
experiência, já que a arte de narrar as experiências, que era algo coletivo e
passado entre as gerações, tornou-se algo individual na contemporaneida-
de. Segundo o autor, fatores como o excesso de informação, a mercantili-
zação das relações humanas e a industrialização do mundo contribuíram
para que atividades artesanais como a arte fossem colocados em segundo
plano (BENJAMIN, 2015).
Nesse sentido, devido aos novos modos de perceber e sentir o mundo
a partir dessas transformações sociais, o autor explica que a experiência foi
fragmentada em dois tipos, a experiência tradicional, que está relacionada
com uma memória coletiva e a experiência privada, a qual relaciona-se à
vivência do indivíduo solitário (BENJAMIN, 2012). Em Baudelaire, Benja-
min encontra a figura do flâneur para explicar essas experiências, uma vez
que para conseguir transformar sua vivência (individual) em experiência
(coletivo), o poeta Baudelaire se aproxima da sociedade, mas logo depois
se afasta desta para construir uma visão crítica sobre o empobrecimento
da experiência e o esvaziamento da memória (BENJAMIN, 2015, 2012). A
dinâmica de aproximação e afastamento se assemelha ao trabalho de com-
preensão do social do pesquisador contemporâneo, que muitas vezes atua
tal como um flâneur, ou seja, tal como um narrador.
É aí que entra os escritos de Proust nas teorizações benjaminianas,
com o conceito de memória involuntária, que se caracteriza como aque-
la memória que vem de repente, quando lembramos e narramos algo que
nem sabíamos que lembrávamos e que acontece quando nos deparamos
com certos estímulos. Essa memória contrapõe a chamada memória volun-
tária, que é aquela que vem da inteligência, quando colocamos o cérebro
para trabalhar até lembrarmos de algo que vivemos ou sabemos, mas que
às vezes demoramos para lembrar. Sendo assim, a vivência solitária, ou
seja, a experiência privada não possibilita a reflexão por parte do indivíduo
moderno, essa reflexão só irá acontecer por meio da memória involuntária,
que evoca lembranças que estavam esquecidas (BENJAMIN, 2012).
Esse esquecimento pode reproduzir, no presente, as condições que
produziram as injustiças e opressões do passado. Contra esse tipo de es-
quecimento, a memória involuntária funcionaria como veículo de liberta-
ção, trazendo à tona lugares de reinvenção do presente a partir do passado.

211
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Por outro lado, Matos reflete acerca do esquecimento enquanto possibili-


dade de ressignificar “estórias”, pois o esquecimento “permite narrar uma
mesma história, sempre a mesma e sempre outra, pelas lacunas abertas por
nossa própria indeterminação [..] e que configuram nossa identidade [...]”
(MATOS, 2001, p. 18).
Nesse contexto, Benjamin coloca que a modernidade trouxe uma tare-
fa para o historiador e pesquisador materialista, que não é a de correr atrás
de um passado que já foi, mas de reconstruí-lo a partir de suas ruínas, de seus
cacos. Trata-se não somente de contar as histórias que não foram contadas,
mas também de reconstruir o passado para libertá-lo da lógica hegemônica
(BENJAMIN, 2012, 2015). Por isso, a ideia de um narrar em fluxo, como na
memória involuntária, é uma das tentativas e riquezas do trabalho com as
narrativas, uma vez que para Matos (2001) a narrativa é um espaço de liber-
dade transformador (MATOS, 2001). Isto posto, reverberamos as “conversas
biográficas” com os/as jovens poetas como uma construção metodológica de
escuta ativa para a (re)contagem de histórias que ainda não foram contadas
ou que foram contadas de outra forma. Diante disso, a seguir, contextualiza-
mos o movimento literário e cultural do poetry slam.

Contextualizando o slam
O poetry slam no Brasil tem seu surgimento atrelado à ascensão da
literatura periférica/marginal surgida nos anos 90. Essa vertente literária
criou raízes em meio à intensificação de uma consciência sociocultural,
que valoriza as subjetividades e problematiza os conhecimentos e vivên-
cias tidos como hegemônicos. Todas essas questões revelam aspectos de
modos de ser e viver que antes eram silenciados em detrimento da manu-
tenção das relações de poder. Contudo, foi nesse ínterim que começaram
a ecoar - em especial por meio da arte literária - as narrativas de grupos
sociais colocados à margem, momento em que nascia um celeiro de jovens
artistas que mergulharam na semântica das palavras para questionar, exal-
tar e registrar os sentidos produzidos por sua vida e cultura:
trata-se, em geral, de uma literatura de auto-representação
com uma dimensão política e social importante, a enunciação
de realidades invisibilizadas por parte de setores sociais que
historicamente têm tido um acesso mínimo à palavra escrita,
em um contexto no qual a língua, sobretudo escrita, tem servi-
do como mecanismo de dominação desde os tempos coloniais
(ARIAS, 2011, p. iii).

Entretanto, ainda que essa vertente literária tenha se fortalecido nos


anos 90, as culturas periféricas já vêm construindo suas referências iden-
titárias desde meados dos anos 60, quando Carolina Maria de Jesus, uma

212
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

das primeiras autoras negras a ganhar notoriedade no Brasil, recebe o lei-


tor em seu Quarto de despejo: diário de uma favela com uma narrativa
feminina marcadamente autobiográfica. Em seus escritos, Carolina relata
seu cotidiano na favela do Canindé e a difícil rotina que enfrentava como
catadora de lixo. O ativismo da literatura periférica ampliou-se ainda mais
com a publicação de Cadernos Negros em 1978. Ainda hoje, mais de 40
anos após a primeira publicação, os Cadernos organizam e publicam, de
forma independente, contos e poesias de autores negros, como da autora
mineira Conceição Evaristo.
Nos anos 2000, a literatura marginal se expandiu com o sucesso do
romance Capão Pecado do escritor Férrez e com a criação da Cooperiferia
(Cooperativa Cultural da Periferia) em 2001, na cidade de São Paulo pe-
las mãos do poeta e escritor Sergio Vaz. A cooperativa organiza inúmeros
eventos que promovem a valorização e divulgação das artes, expressivi-
dades e linguagens produzidas à margem do mercado editorial, buscando
aproximar os jovens da poesia e da escrita criativa. Em formato parecido,
surgiu na capital mineira, em 2008, o Coletivoz sarau de periferia, idealiza-
do pelo educador e articulador Rogério Coelho. Recentemente, o coletivo
lançou um livro em comemoração aos seus 10 anos de atividade em torno
“da luta” e “da voz” da resistência poética mineira.
Foi nesse contexto, que também em 2008, Roberta Estrela D’alva,
poeta e atriz brasileira, foi a responsável por introduzir uma novidade na
cena poética marginal, o poetry slam. Esse movimento literário pode ser
caracterizado como uma competição de poesia falada, em que poetas de-
clamam poesias autorais de até 3 minutos. A celebração geralmente acon-
tece em espaços culturais da cidade, onde o público se reúne em roda para
escutar o poeta. D’alva ressalta que devido às proporções que a prática
adquiriu “se tornou, além de um acontecimento poético, um movimento
social, cultural, artístico que se expande progressivamente e é celebrado
em comunidades em todo mundo” (D’ALVA, 2014, p. 110).
A multiartista (2014) conta que o precursor do movimento é Mark
Kelly Smith, um mestre de obras e poeta, que em 1986 criou a disputa poé-
tica, realizada pela primeira vez no bar Green Mill Jazz Club, na cidade de
Chicago. Desde então, o slam expandiu-se pelos Estados Unidos, e pouco a
pouco foi ganhando a Europa e a América Latina, firmando-se como uma
instigante prática de expressão popular. D’alva ainda explica que a gíria
slam, na língua inglesa, refere-se às finais de campeonatos de baseball e
bridge, comumente chamadas de “grand slam”, foi daí que Smith inspirou-
-se para nomear a disputa poética nas quais os/as poetas, chamados de
slammers, têm suas performances avaliadas pela plateia (D’ALVA, 2014).
A união entre os slams de todo mundo é tecida pelas regras da com-
petição, que apesar de sofrerem adaptações de contexto para contexto, têm

213
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

por base três orientações básicas: as poesias devem ser autorais, declama-
das em até 3 minutos e não podem ter acompanhamento musical ou de
figurino. A dinâmica da prática cultural geralmente se divide em três eta-
pas por encontro. Cerca de quinze poetas começam a disputa. Na primei-
ra rodada todos os inscritos participam, passando para a segunda os oito
melhores e para a terceira os três melhores, elegendo-se daí o vencedor ou
a vencedora. Quem julga as apresentações dos slammers? Pois bem, o slam
é construído na inter-relação e interação entre poeta, público e poesia,
uma vez que os cinco jurados de cada batalha são escolhidos em meio ao
público presente, os/as quais atribuem notas que podem ir de 0 a 10, ou
seja, sem espectadores não há como acontecer o movimento performático
e poético dos versos.
O resultado desse processo de imersão da poetisa na cultura do poe-
try slam mostrou-se tão logo ela voltou ao Brasil: D’alva criou o slam Zona
Autônoma da Palavra, ou simplesmente ZAP! Slam, que acontece mensal-
mente nas noites paulistanas desde dezembro de 2008, especificamente em
toda segunda quinta-feira do mês, em ocupações, casas culturais ou em
espaços públicos no centro da cidade de São Paulo. A disseminação da
prática deu margem para que em 2012 o slammer e ator Emerson Alcalde
criasse o slam da Guilhermina, na Zona Leste de São Paulo. No contexto
mineiro o campeonato foi inaugurado em 2014 pelo Slam Clube da Luta,
idealizado por Rogério Coelho. O evento ocorre toda última quinta-feira
do mês, no teatro espanca!, região central de Belo Horizonte. A celebração
literária consolidou-se quebrando regras e padrões e passados quase 10
anos da chegada dos slams ao país, segundo Estrela D’alva, a prática poéti-
ca já mobiliza aproximadamente 80 slams espalhados pelo Brasil.
Com essa expansão, os slammers foram encontrando maneiras para
que a troca de experiência e o encontro entre os praticantes acontecesse.
Sendo assim, além das já conhecidas disputas mensais, campeonatos esta-
duais, nacionais e internacionais começaram a surgir e a expandir a cena
do poetry slam. A mais importante competição da prática é a Copa do Mun-
do de slam, que ocorre anualmente em solo francês, desde 2011, na cidade
de Paris. Para chegar à disputa mundial, o/a poeta-competidor/a precisa
vencer a competição estadual e a competição nacional do slam de seu país.
Contudo, ainda que venha ganhando cada vez mais visibilidade e
formatos no cenário artístico literário, Emerson Alcalde, representante
brasileiro na Copa do Mundo de slam em 2014, conta, em entrevista à pes-
quisadora e professora da Unicamp Cynthia Neves (2017), que se surpre-
endeu com a disseminação, incentivo e envolvimento da mídia e da popu-
lação francesa com o slam. Diferentemente do Brasil, em que os recursos
institucionais são poucos e a divulgação é ainda tímida, ele relata que a
divulgação a que assistiu na Copa do Mundo, em Paris, mostrou-se estron-

214
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

dosa. Segundo Alcalde, a TV francesa faz entrevistas com os poetas e a


competição ganha lugar de destaque nos jornais e revistas.
No Brasil, a desvalorização da vertente marginal reflete as tensões
ainda existentes entre a literatura hegemônica e a literatura periférica
(DALCASTAGNÈ, 2007). Por outro lado, nos últimos anos, os poetas mar-
ginais vêm compondo obras cada vez mais originais frente aos cânones
literários, sustentando com destreza a inevitabilidade de “se contrapor a
representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafir-
mar a legitimidade de sua própria construção” (DALCASTAGNÈ, 2007,
p. 18). Regina Dalcastagnè (2012), em artigo sobre o campo literário con-
temporâneo brasileiro, alerta que este é um espaço de disputa e exclusão
e que a literatura marginal reforça a necessidade de que os estudos literá-
rios comecem a questionar a definição do que seja uma obra literária. São
essas novas vozes, produzidas à margem do cânone, que têm tensionado e
reivindicado um novo fazer literário, que ao mesmo tempo em que se afas-
ta do tradicional, mostra-se cada vez mais característico e representativo
(DALCASTAGNÈ, 2012).
As colocações de Dalcastagnè (2007; 2012) são importantes no sentido
de visibilizarmos essas obras nos diversos cenários literários, dialogando e
problematizando com a pluralidade das vertentes e movimentos literários
nascidos em cada tempo e espaço. No cenário dos slams, por exemplo, a
ampliação acontece, pois, as vozes a se expressarem revelaram-se tantas
e tão significativas, que dentro da própria dinâmica começaram a surgir
formatos interessantes e inclusivos em torno do movimento. Em São Pau-
lo, Daniel Minchoni criou em 2012 o Menor Slam do Mundo, com poesias
de 10 segundos e hoje a ideia já se espalhou por países como México, Por-
tugal, Argentina, França e África do Sul. No mesmo ano, e inspirado pela
ideia anterior, surgiram também o Minimenor Slam do Mundo, com poemas
de até 3 segundos e o Nano Slam, com poesias de apenas 1 segundo. Nesse
ambiente democrático, afloraram também os chamados Slams do Corpo,
com enfoque para a poesia surda e declamada a partir da Libras – Língua
Brasileira de Sinais.
Outra vertente que vem se destacando são os slam escolares, que le-
vam a prática literária e cultural para dentro das escolas. Emerson Alcalde,
ainda em entrevista concedida à pesquisadora Neves (2017), conta que em
2015 teve a ideia de levar o slam para as escolas estaduais paulistas, uma
vez que “ficou impressionado com o envolvimento também das escolas
francesas no evento [Copa do Mundo de Slam], pois presenciou caravanas
de crianças chegando ao teatro, com cartazes, gritos de torcida, muito em-
polgadas para compor o espetáculo como plateia” (NEVES, 2017, p. 97). As-
sim, igualmente motivado pela potência educativa dos slams, Oliver Lucas
trouxe os encontros poéticos do “esporte da palavra” para o contexto mi-

215
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

neiro e, em 2017, organizou e executou o slam interescolar de Minas Gerais


e também o 1º slam interescolar nacional, com participação dos estados de
Minas Gerais e Espírito Santo. Certamente motivado pela natureza educa-
tiva de práticas que promovam o uso e a reflexão por meio da linguagem,
como o slam, o educador ofereceu oficinas de escrita criativa para alunos
de 10 escolas públicas da capital Belo Horizonte e região metropolitana.
Dessa forma, os slams se consolidam, uma vez que se inserem no âm-
bito artístico, cultural e político, como forma de construção de aprendi-
zagens, participação sociocultural, ativismo e, consequentemente, como
trata-se de um evento associado a processos de letramento, reflexões acer-
ca dos usos da linguagem. Em seguida, contextualiza-se o slam interescolar,
espaço onde encontramos os colaboradores da pesquisa.

O slam interescolar 2017


O slam interescolar foi um projeto de arte educação inspirado no mo-
vimento literário cultural poetry slam que aconteceu com alunos e alunas
do Ensino Médio em escolas públicas da cidade de Belo Horizonte no se-
gundo semestre do ano de 2017, entre os meses de agosto e dezembro.
Figurando como uma das modalidades do slam, em sua versão escolar, o
projeto foi além das competições e também abrangeu a realização de ofi-
cinas de escrita criativa. Idealizado pelo educador, poeta e slammer Oliver
Lucas, o slam interescolar pode ser caracterizado enquanto
uma competição de poesias faladas entre alunos da rede públi-
ca de ensino. Os slams são competições de poesia, que visam
incentivar a leitura, a produção criativa e consciente de textos,
a interpretação crítica do mundo, a escuta participativa e aten-
ta, a performance e a fala em público, habilidades que permiti-
rão os alunos participantes, desenvolverem-se como cidadãos
democráticos e participativos na sociedade (OLIVEIRA, 2017,
Documento “Projeto Slam Interescolar”).

O educador, que participa da cena dos slams desde que o movimento


se inseriu na capital mineira, graduou-se em Geografia pela UFMG e, re-
centemente, defendeu sua dissertação de mestrado em Educação sobre os
jovens e os saraus de rua de Belo Horizonte. Em entrevista, Lucas Oliveira
conta que o projeto buscava desenvolver e estimular a escrita dos alunos
do Ensino Médio das escolas belorizontinas, em específico, aquelas esco-
las que faziam parte do núcleo CICALT1 – Plug Minas. As oficinas eram
essenciais no sentido de que uma das regras do slam é a declamação de

1 O CICALT - Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias é um Núcleo Valores de Minas, que
através do Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias (CICALT), oferece aulas de arte em cinco
áreas: Artes Visuais, Circo, Dança, Música (Canto, Harmonia e Percussão) e Teatro.

216
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

poesias “de autoria própria dos alunos, de até três minutos de duração, e
utiliza a performance como ferramenta de expressão dos textos. Os po-
etas são avaliados por cinco jurados escolhidos no local, entre os alunos
participantes do projeto. A soma das notas das poesias define o campeão”
(OLIVEIRA, 2017, Documento “Projeto Slam Interescolar”).
Entre agosto e novembro, o professor Oliver percorreu 10 escolas,
passando quatro dias em cada uma delas. Ele conta que o projeto está vin-
culado ao Valores de Minas- Plug Minas, um núcleo educacional e artístico
que oferece aulas de arte para jovens de Belo Horizonte. Refletindo sobre
a dinâmica das oficinas, Lucas conta que atuava como professor e ator, na
intenção de mobilizar e chamar a atenção dos/as alunos/as e incentivá-los/
as a falar e escrever sobre como viam o mundo. A proposta era que nos três
primeiros dias os alunos e alunas escrevessem poesias para a participação
no slam, que ocorria no quarto e último dia. Em meio à competição, o poeta
e slammer conta que foi surpreendido positivamente pela criação de um
espaço de diálogo e convívio com a diferença e com o outro: “na verdade
eu não tô fazendo uma oficina de poesia, eu tô criando um espaço de diálogo”2.
Assim, mobilizados pelo educador, os/as jovens alunos e alunas iam
aprendendo uns com os outros, uma vez que escreviam sobre temáticas que
tocavam nas vivências da juventude. Diante disso, podemos pensar que a
dimensão educativa do slam acontece devido ao seu formato de intensa
interação e espaços de fala, escuta e conflito. Os/as alunos/as discutem,
escrevem, reescrevem e partilham seus textos uns com os outros. Nessa
mediação o/a jovem tem a possibilidade de pensar sobre si e é estimulado a
refletir e questionar, em um movimento de educação pela arte.
O pensamento crítico foi outra perspectiva trabalhada no projeto,
uma vez que o educador coloca o slam como um lugar em que os/as jovens
discutiam sobre temas contemporâneos e de relevância social: “é uma coisa
bem legal assim que eu acho, é porque eu só descobri a palavra feminismo há uns 5
anos atrás, eu já tinha formado, nem existia... e as meninas de 15 e 16 anos já estão
falando disso... questão de gênero foi muito abordado também”.
Diante desse contexto, podemos pensar o espaço do movimento po-
ético como uma oportunidade para que os atores escolares se conheçam e
reconheçam as visões de mundo e os distintos posicionamentos que per-
meiam as experiências dos/as participantes: “pensando nesse espaço de diá-
logo, foi uma forma das profissionais da educação terem contato com o que os
jovens estão aprendendo, com o que eles pensam”. Por isso, o slam interescolar é
uma oportunidade para um encontro entre escola, arte e cultura, literatura
e escrita criativa e além disso, um lugar para se conhecer os/as alunos/as

2 Ao longo do artigo, as falas dos colaboradores da pesquisa virão em itálico.

217
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

e formar a sensibilidade do próprio professor, na intenção de aproximá-lo


das realidades de cada aluno/a.
Nesse sentido, percebemos como importante uma aproximação en-
tre escola e coletivos culturais e artísticos, no sentido de aprender o modo
como os jovens se formam, constroem aprendizagens e experimentam lin-
guagens nesses movimentos. Ou seja, é pensar a maneira como esses mo-
vimentos atuam no processo formativo da juventude, uma vez que eles de-
monstram proporcionar uma formação que funciona a partir de uma outra
forma de pensar e abordar a educação, a escuta, o diálogo, a linguagem e os
modos de aprender e fazer no mundo. A seguir, apresentamos a narrativa
de dois jovens, Ivan e Karol, acerca de suas experiências linguageiras.

IVAN: o RAP, o rádio e a fé enquanto significativas experiências linguageiras


Transitando pela roda-viva das experiências com a linguagem, a nar-
rativa do jovem Ivan foi nos conduzindo aos processos formativos os quais
vivenciou ao longo da vida e que o levaram a descobrir e se identificar com o
processo da escrita. Ivan nasceu e cresceu na capital mineira Belo Horizonte
e sua infância foi marcada pelo contato com as bandas de RAP que conhecia
através do rádio e por idas à praça Floriano Peixoto brincar com os amigos.
Estudante do 3º ano do Ensino Médio na E.E. Henrique Diniz, tam-
bém trabalha como Jovem Aprendiz em uma empresa de engenharia e aos
sábados participa como articulador e locutor no programa Som e Graça,
que vai ao pela Nossa Rádio, 97.3 FM. A ocupação de comunicador, acon-
teceu e se consolidou na medida em que Ivan foi expandindo suas habili-
dades com a linguagem e compartilhando com seus pares as rimas e versos
que escreve. O jovem tem 18 anos, se auto declara como negro e mora com
os pais e o irmão mais novo na Fazendinha, uma das vilas que fazem parte
do Aglomerado da Serra, favela localizada na região centro-sul da capital.
Na infância familiar, o contato de Ivan com a música desvela um
campo de possibilidades que o permitem continuar e aprofundar sua expe-
riência com a linguagem. Ivan conta sobre como descobriu o rap aos sete
anos de idade, episódio que vai marcar suas primeiras práticas de letra-
mento e delinear a partir destas, outras práticas, alavancando sua relação
com os dispositivos midiáticos, a começar pelo rádio. Nesse contexto, Ivan
cita os Racionais Mc’s como principal referência porque “os caras chegaram
e falaram o que é você ser negro no Brasil”. A partir daí, podemos pensar o rap
enquanto um importante lugar de fala e expressividade juvenil.
O estudante conta que gosta muito de falar e que se identificou com o
rap porque era um estilo musical que abordava a realidade, ou seja, Ivan viu
no rap uma oportunidade para desaguar informações, sentimentos, aconteci-
mentos. Por permear diversas situações da vida e angariar distintos sentimen-

218
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

tos, Dayrell (2001) explica que a música “constitui um agente de socialização


para os jovens, à medida que produz e veicula molduras de representação da
realidade, de arquétipos culturais, de modelos de interação entre indivíduo e
sociedade, e entre indivíduo e indivíduo” (DAYRELL, 2001, p. 21).
Diante de tantas informações, sentidos e palavras, aliados ao som, ao
ritmo e a batida do rap, Ivan foi percorrendo outras importantes práticas
formativas pela linguagem. O despertar que veio pelo som, avançou para
as palavras quando Ivan se deu conta de que existia “aquele tanto de infor-
mação, aquele tanto de palavra que eu não conhecia... aí eu pensei assim nó, eu
vou ter que pegar um dicionário pra entender isso aí”. Nesse sentido, pesquisar
e percorrer significados no dicionário representaram para Ivan a expansão
das possibilidades de pertencimento. Isso porque, a partir do RAP, o jovem
descobriu um novo mundo se abrindo, onde ele estava se reconhecendo e
criando laços identitários e culturais. Assim, ele transita pelos significa-
dos das palavras no dicionário, passa a estudar as técnicas de fazer rima e
desenvolve habilidades como o freestyle, improvisando versos motivacio-
nais e reflexivos acerca de suas vivências.
Mais além, é possível notar que o envolvimento com a vertente mu-
sical foi responsável também por desenvolver certo senso crítico no jovem,
que começou a compreender que o rap tinha um objetivo e uma intenção:
“mostrar as coisas que estão acontecendo de fato e tentar ajudar principalmente
a juventude”. Incentivado pelo pai, que lhe presenteava com CDs de música
e sintonizava as frequências do rádio, a figura paterna também despertou
no jovem a ligação com a igreja, outro espaço essencial para o desenvolvi-
mento de suas práticas de letramento. Refletindo sobre quando começou
a escrever, Ivan conta que grafou os primeiros versos fazendo paródias de
músicas. A escrita se consolidou na vida do jovem quando ele começou a
improvisar rimas e a escrever versos: “sempre gostei muito de escrever, fazer
redação e geralmente vinha umas ideias meio doidas assim na cabeça e eu tinha
que mostrar pra alguém, aí geralmente a forma que eu achava pra mostrar era
através da escrita. Essa questão pra mim de escrever sempre teve muito perto as-
sim, eu não gosto de copiar, detesto copiar, mas eu gosto de escrever.”
No trecho acima, temos uma interessante colocação do jovem, que
quando diz da linguagem em sua perspectiva de criação e vivacidade, esta
aparece como algo prazeroso a se fazer. Contudo, quando a linguagem fi-
gura com fins de reprodução, sua perspectiva viva sai de cena, entrando o
desinteresse. A fala de Ivan chama atenção para a perspectiva de letramen-
to que ele traz como referência, que se refere à perspectiva social proposto
por Street (2014), no sentido de que quando vinculada a práticas sociais e
culturais, como no estilo musical do rap, as experiências de letramento
surgem com maior sentido para os sujeitos.

219
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Por outro lado, apesar de ter descoberto todas essas potencialidades


da escrita, Ivan conta que durante um tempo deixou as rimas e os versos de
lado. Esse fato aconteceu quando o jovem entrou para o ensino fundamen-
tal, momento em que, segundo ele, a linguagem não era apresentada com
tanto sentido, pois estava quase sempre atrelada a atividades de cópia e
reprodução e não de criação. Nesse momento, Ivan nos localiza entre suas
experiências de jovem e aluno, revelando indícios de que fora da escola a
experiência de criatividade que tinha com a arte e a linguagem, principal-
mente a partir do rap, vai se esvaindo quando ele adentra a escola e a arte
lhe é apresentada em uma abordagem de reprodução e cópia. Diante disso,
o jovem narra uma ocasião em que escreveu uma de suas poesias, ao ser
estimulado na escola a copiar uma obra de arte. Ivan transgride esse estí-
mulo e escreve o poema “A arte e seus conceitos”:

Arte e seus conceitos Com ideologia não pare


Quebrando meu preconceito Não se entregue ao descarte
Da cidade ou do gueto Quero um som de qualidade
Vinda do Branco ou preto; Carregado de verdade
Toda raça se expressa Feito com sinceridade
E escrever me desestressa Viva a comunidade
Crio letras e palavras Não penso no meu caderno
Como agora criei essa Mofando em uma caixa
A escrita me acalma Muito menos minhas folhas
Escrevo o que vem da alma Mofando com minhas palavras
Sendo ela representada É por isso que invisto
A arte ela é grata De rimar não desisto
Pois tem gente que precisa
E o rap pra nóis é arte
E eu também preciso disso.
Batida e letra faz parte

O jovem narra que a retomada da escrita vai vir no momento em que


o slam interescolar adentra os muros da escola. As reflexões que Ivan vai
empreendendo, revelam que uma das importantes atuações do movimento
cultural ao surgir na escola foi possibilitar a criação de um espaço que o
reconectaria com o hábito da escrita e ampliaria suas reflexões sobre as
funções que a linguagem pode adquirir, mobilizar, proporcionar e traria
até mesmo perspectivas e planos para o futuro profissional: “você ali escre-
vendo e você vendo naquele espaço ali muita gente desabafando coisa que acon-
tecia, gente soltando as vezes sofrimento que teve dentro de casa ou então a falta
que o pai fez, você vê muita gente botando pra fora aquilo que tava reprimido (...)
aí tipo assim, o pessoal escrevendo, desabafando, falando sobre a vida ali.”
Ivan conta que os/as jovens colegas escreviam sobre o que se passava
em seus mundos, desabafavam acontecimentos, relatavam vivências fami-

220
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

liares. A narrativa do jovem vai dimensionando o espaço criado pelo pro-


jeto como um agenciador de processos formativos e nos direciona a pensar
sobre a relevância das pedagogias e dinâmicas gestadas no interior dos
movimentos culturais. Segundo Arroyo, as experiências educativas nos
movimentos sociais e culturais “tiveram grande sensibilidade para captar
a presença dos sujeitos” (ARROYO, 2003, p. 38).
Diante disso, as ressonâncias da narrativa do jovem nos levaram a
identificar a relevância de se conhecer as pedagogias alternativas com que
os jovens chegam na escola. A partir dos diferentes espaços e práticas de
socialização, Ivan narra, na perspectiva do tempo, sua experiência com a
linguagem, entrelaçando passado, presente e futuro. Ao contar suas vivên-
cias peculiares pelas rotas da linguagem, ele informa ao mundo autênticos
e singulares modos de subjetividade, que amalgamados revelam a dimen-
são coletiva e formativa das experiências socioculturais.

KAROL: os trânsitos entre as letras e o ativismo poético


Karol, a regente do universo que pretendemos explorar, no que diz
respeito a sua trajetória pela linguagem, é notadamente um ser artístico
e político. Os versos da jovem refletem suas pertenças, suas leituras lite-
rárias e as lutas identitárias pelas quais milita. Karol possui uma vivência
dupla no movimento cultural do slam: participa tanto dos slams escolares,
quanto daqueles que acontecem e ocupam os espaços públicos e culturais
da cidade em que vive, Juiz de Fora. A jovem sagrou-se campeã nacional
do slam interescolar 2017 em dezembro daquele ano, quando veio a Belo
Horizonte representar sua escola e cidade no Plug Minas.
A jovem poeta tem 18 anos, se auto declara como branca, mora com os
pais e o irmão mais novo na cidade do interior mineiro e é recém-formada
no Ensino Médio pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Minas Gerais (IFMG), campus Juiz de Fora. Pela trama narrativa da po-
eta, fomos percebendo as rememorações dos momentos mais relevantes e
das questões que constituem e atravessam sua singular vivência no mundo.
A identidade de mulher bissexual marca intensamente o processo de cria-
ção e participação artística, cultural e política que a jovem mantém com os
versos que declama no movimento cultural do slam. Tanto que a produção
literária que a poeta vem construindo aborda questões como padrão de be-
leza, sexualidade feminina, amor, desigualdade social e o direito às mani-
festações populares, revelando posicionamentos e pertencimentos de uma
engajada ativista pelas palavras dos movimentos feminista e LGBT. Nessa
rememoração, descobrimos que Karol começou a escrever poesias como
uma forma de externar seus conflitos, já demonstrando o caráter político
presente em seus versos e reflexões.

221
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

As influências familiares foram também o ponto de contato e apren-


dizagem que aparecem para fazer alusão às primeiras práticas e eventos de
letramento de Karol. As figuras do pai e da mãe aparecem como grandes
arquétipos e incentivadores das experiências linguageiras da filha. A ad-
miração do pai pelo hábito da leitura é descrita como algo rotineiro e que
marcava a interação entre pai e filha desde o princípio. Karol conta que ele
comprou uma coletânea de livros com obras de escritoras mulheres para
influenciar e instigar a jovem pelos caminhos da leitura e da escrita. Nesse
sentido, o espaço familiar é demarcado como um espaço onde iniciou-se
também sua formação identitária, alinhadas com as proposições feminis-
tas: “eu leio muito, muito mesmo... eu leio muito e eu gosto de ler pessoas, autores
nacionais e autoras mulheres é incrível pra mim.”
Para além dos escritos no diário e as rimas escritas despretensio-
samente nos cadernos, a poesia veio em um momento intenso da vida de
Karol, a adolescência. Em um de seus voos de pássaro migratório pelos
jardins labirínticos da juventude, ela foi aconselhada por uma terapeuta
à encontrar uma forma de externar os sentimentos e foi assim que encon-
trou na escrita um pouso seguro para transbordar e manifestar seus pen-
samentos e opiniões: “aí eu comecei a escrever poesia mesmo com treze anos
de idade, foi quando eu tive... passei por uma época bem conturbada da vida e
aí minha psicóloga virou pra mim e falou assim, olha um jeito bom de você fazer
isso é você externando o que você tá sentindo e eu escrevi a minha primeira poe-
sia... que tipo é marcante na minha vida que foi a 38":

Eu não caibo em um 38.


Nem em um 40.
42.
44.
Eu não caibo em número algum
O meu defeito foi vir com um código de
barras que não é reconhecido pelo leitor
“Só três números a menos”
Ah faça-me um favor,
Que mal lhe faz o meu tamanho, senhor?
Se eles sempre nos exigem mais, mais e mais
E quando somos mais, eles querem menos
Nas escolas nos ensinam a contar,
Em que parte da vida ensinam a nos amar?
Mas o padrão eles deixão estabelecido:
Por dentro você pode apodrecer
Se por fora for belo de se ver
Sim, belo

222
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

O adjetivo formado por letras e definido


por números
Números esses que não abrigam inúmeros
Inúmeros que acreditam que a felicidade
está na menor parte da balança
E o defeito se encontra em mim,
Que não quis fazer parte dessa dança?
Tragam uma porção grande de mudança!
Porque o meu corpo não é escravo dos
olhos de ninguém.
Eu não sou pra ser medida
Sou pra ser compreendida
E se não me entendeu,
Foi porque não leu as dobras do meu corpo.

Em “38”, Karol conta de conflitos que vivencia no cotidiano, questio-


na padrões e estereótipos de beleza, proclama suas lutas e com as palavras
desvanece o que incomoda e acomoda, ou seja, 38 revela questões impor-
tantes que constituem a identidade da jovem e reforçam seu senso crítico.
No momento de adversidade, Karol conta que encontrou na literatura uma
forma de expressão para externar, colocar para fora sua visão de mundo e
o que estava sentindo.
Na narrativa de Karol, é perceptível a influência e admiração que tem
pelos artistas locais que conheceu no slam, os quais, além de influenciar,
foram também responsáveis por aproximar a jovem de outros coletivos, que
ampliaram seus vínculos de sociabilidade e as possibilidades de criações po-
éticas e artísticas. Foi no slam também que estreitou laços ainda mais signi-
ficativos com artistas mulheres locais, que transitavam entre o RAP e os de-
senhos. Nesses trânsitos, fez parcerias com outras artes, mesclando a escrita
e a imagem, criando e potencializando outras formas de expressão.
Antes mesmo de participar do slam, as poesias que Karol escrevia já
continham um teor marcadamente ativista em torno de aspectos e vivên-
cias cotidianas das mulheres e dos/as jovens. Percebe-se que o contato com
os artistas locais e com o conteúdo presente nas produções artísticas da
cultura do slam alavancaram o processo criativo e a conscientização políti-
ca da jovem. A relação que Karol promove com os coletivos e movimentos
culturais também é composta pelas aprendizagens mobilizadas pelos ver-
sos, que se materializam em um encantamento com a particularidade da
escrita de cada poeta: “cada pessoa tem uma forma de escrever muito diferente,
e você encontra tantas realidades que são distintas da sua que você aprende o
respeito, você aprende a compreensão... é muito ouvir, você ouve o que a outra
pessoa tem a dizer e você tipo entende a realidade dela, é o espaço de fala dela, é
o seu momento de tá ali escutando o que ela tem a dizer...”.

223
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Em tempos marcados pela polaridade política, onde quem vence é


aquele que fala mais alto, movimentos que envolvem o trabalho de escuta
como o slam vem dominando a cena cultural, uma vez que conhecer outras
realidades faz parte do movimento de descoberta e reconstrução identitá-
ria, na medida em que aprendo e me constituo com a experiência do outro
na sociedade (HALL, 2004). Nesse sentido, a linguagem poética não pode
ficar apenas dentro dos livros, tem que ecoar, transitar e tocar aqueles que
buscam na expressividade, seja falando e/ou escutando, uma forma de criar
melhores espaços para se viver.
Esses contatos vão conduzindo Karol a uma escrita política e a se en-
gajar ainda mais na luta das mulheres, com as quais vem estreitando laços
mais profundos desde os 32 livros que o pai lhe presenteou. Ou seja, ainda
que inconscientemente os movimentos sociais e culturais dizem de ques-
tões tão próximas ao sujeito que o empoderam em suas ações e tomadas
de decisão. Nesse cenário, Arroyo (2003) reforça que os movimentos so-
ciais e culturais se apropriam de uma outra lógica para abordar as questões
que atingem os sujeitos, fazendo com que nesses movimentos, o sujeito
se perceba como alguém cujo a ação vai causar uma transformação e que
também é afetado e atravessado pela ação do outro. Por outro lado, os mo-
vimentos revelam a cultura como um campo de tensão, onde não há lugar
para reprodução de condutas atrasadas e conservadoras (ARROYO, 2003).
Diante disso, os movimentos nos levam a reconhecer o campo cul-
tural enquanto um espaço de notória importância formativa e compreen-
siva das questões sociais, culturais, educativas, políticas (ARROYO, 2003).
A narrativa de Karol revela, por exemplo, que os movimentos feministas
vêm, pouco a pouco, modificando o modo como as mulheres e a sociedade
têm questionado, pensado, agido e articulado suas ações no mundo. Es-
ses movimentos vêm também mobilizando a conscientização em torno de
direitos iguais entre os gêneros, frente ao privilégio estrutural masculino
que vigora ao longo dos anos. Os feminismos, nesse sentido, abrem tam-
bém discussões fundamentais em relação à violência contra as mulheres e
à criação de políticas públicas mais condizentes com a realidade feminina.
Sendo assim, a aproximação entre escola e movimentos culturais demons-
tra a relevância de se conhecer os sujeitos e os processos e experiências
socioculturais que os constituem. Não só as poesias, mas as reflexões da
jovem sobre suas vivências cotidianas de mulher e suas leituras revelam
seus posicionamentos, pertencimentos e perspectivas de futuro.

Considerações finais
A linguagem, artefato milenar que engendra as ações e tensões no
social, permite às relações, enseja a criatividade artística, mantém os vín-

224
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

culos e nos lança ao outro, ancorou as reflexões desta pesquisa em torno


de singulares experiências linguageiras de jovens poetas participantes do
movimento literário cultural slam interescolar. No interior das narrativas, no-
tamos indícios de que os encontros e as dinâmicas socializadoras em diver-
sos espaços e instituições foram trazendo distintas experiências e processos
formativos de letramento. Processos esses que permitiram aos jovens pes-
quisados colocarem-se como autores da própria história ao ressignificarem
os usos e significados da linguagem, no sentido de que foram conhecendo
outras visões de mundo, reconhecendo a si mesmos, (re)criando pertenci-
mentos identitários, guiando conflitos, aperfeiçoando técnicas de escrita,
articulando versos políticos e mobilizando ações por meio da poesia.
Ao longo do trajeto pelos letramentos e no seio do movimento cul-
tural, quando a linguagem apareceu atrelada às atividades que envolveram
a arte e a cultura, as potencialidades de desenvolvimento, mobilização e
articulação dos sujeitos no mundo foram ampliadas. Nesse sentido, notou-
-se como os movimentos culturais podem expandir as relações entre ju-
ventude, arte e linguagem e como isso acaba motivando a escola a expandir
as atividades culturais. Foi perceptível também que quando letramento e
juventude se encontram, a escrita não aparece apenas em seu modo tradi-
cional, mas vem acompanhada do ritmo, da musicalidade, da relação com
as novas tecnologias e instituições.
Isto posto, se não ouvirmos os jovens sobre suas experiências com a
linguagem e sobre como percebem seus usos e funcionalidades em sua re-
alidade, a abordagem escolar da linguagem demorará para alcançar a ma-
neira viva e dinâmica com que os/as jovens se relacionam com as palavras
nas vivências fora do ambiente escolar, como nos coletivos, nos movimen-
tos culturais, na família, nas ruas. A partir destas linhas podemos pensar
processos e práticas de letramento que abarquem e valorizem os/as jovens
como sujeitos de saberes, culturas e de direitos.
Nas andanças em meio a tempos, espaços e vivências com lingua-
gem encontramos espaços de resistência, em que a arte literária atua na
ruptura à ordem dominante do mundo, vislumbrando lugares sociocul-
turais onde além de perceber e sentir a vida, os/as jovens possam refletir,
problematizar e pensar pela linguagem sobre os aspectos e conflitos e
sobre os usos que fazemos desta, percebendo de quais formas ela nos afeta
e mobiliza transformações.

Referências

ARIAS, Alejandro Reyes. Vozes dos Porões: A Literatura Periférica do


Brasil. Tese (Doutorado em Filosofia e Línguas e Literaturas Hispânicas) –
University of California, Berkeley, 2011.

225
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

ARROYO, Miguel. PEDAGOGIAS EM MOVIMENTO – o que temos a


aprender dos Movimentos Sociais? Currículo sem Fronteiras, v. 3, n. 1, p.
28-49, jan./jun. 2003.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade
Técnica. In: Benjamin e a Obra de Arte: Técnica, Imagem, Percepção.
Tradução de Marijane Lisboa. Tadeu Capistrano (Org.). Contraponto: Rio
de Janeiro, 2015.
BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Obras Escolhidas I.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, SP: Ed. Brasiliense, 2012.
BENJAMIN, Walter. O Narrador: Considerações Sobre a Obra de Nikolai
Leskov. In: Obras escolhidas I. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Ed. Brasiliense, 2012.
BRASIL. Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio:
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006.
CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São
Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre. Azul, 2004. p. 169-191.
DALCASTAGNÈ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados:
tensões e estratégias na narrativa contemporânea. Letras de Hoje, Porto
Alegre, v. 42, n. 4, p. 18-31, dez. 2007.
DALCASTAGNÈ, Regina. Um território contestado: literatura brasileira
contemporânea e as novas vozes sociais. Iberic@l, n. 2, 2012.
D’ALVA, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-
MC. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL,
J. (org.). Múltiplos olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1996.
DAYRELL, Juarez. A música entra em cena: o rap e o funk na socialização
da juventude em Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Educação) –
Faculdade de Educação, USP , 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2004.
MARTINS, C. H. dos S; CARRANO, P. C. R. A escola diante das culturas
juvenis: reconhecer para dialogar. Educação, Santa Maria, v. 36, n. 1, p. 43-
56, jan./abr. 2011.
MARTUCCELLI, Danilo. Leciones de sociologia del indivíduo.
Transcrição do curso realizado na Pontificia Universidad Católica del Peru
em setembro de 2006.
MATOS, O. A narrativa: metáfora e liberdade. Dossiê HISTÓRIA ORAL, v.
4, p. 9-24, 2001.

226
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

NEVES, C. A. B. Slams - letramentos literários de reexistência ao/no mundo


contemporâneo. Linha D’Água (Online), São Paulo, v. 30, n. 2, p. 92-112,
out. 2017.
NONATO, Poliana Symaira; ALMEIDA, Jorddana Rocha de.; FARIA, Ivan;
GEBBER, Saulo; DAYRELL, Juarez. Por uma pedagogia das juventudes. In:
DAYRELL, Juarez (org). Por uma pedagogia das juventudes: experiências
educativas do Obs. da Juventude da UFMG. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2016.
SPOSITO, Marília Pontes. Algumas hipóteses sobre as relações entre
movimentos sociais, juventude e educação. Revista Brasileira de Educação,
n. 13, jan./fev./mar./abr. 2000.
STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, na etnografia e na educação. 1. ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2014.
STREET, Brian. Perspectivas interculturais sobre o letramento. Filol.
linguíst. port., n. 8, p. 465-488, 2007.

227
CAPÍTULO 10

TRAJETÓRIAS EM PERSPECTIVA: UMA


REFLEXÃO SOBRE NOVOS PERFIS DISCENTES
E ACADÊMICOS NO BRASIL A PARTIR DE DUAS
HISTÓRIAS DE VIDA

Elis de Aquino (Freie Universität Berlin)


Renata Melo (UFRJ)

Introdução
A expansão do ensino superior no Brasil data sobretudo dos anos
2000, processo que resulta de uma série de políticas públicas voltadas para
ampliação do acesso à universidade, contribuindo para uma importante
mudança dos perfis discentes (RISTOFF, 2014), compostos atualmente por
mais pessoas não-brancas e de origem pobre. Com isso, vimos emergir
também uma geração de novos pesquisadores e pesquisadoras com inte-
resse em produzir conhecimento a partir de questões sociais que atraves-
sam suas biografias (MEDEIROS, 2018).
Muitas pesquisas já vêm há algum tempo apontando para as transfor-
mações sociais provocadas por esse fenômeno no país1, que para ser com-
preendido em seus meandros demanda um olhar aprofundado para questões
não capturáveis apenas por números e dados estatísticos. Como entender
os impactos da expansão do acesso ao ensino na construção de identidades,
na ampliação da circulação pela cidade, nas mudanças em relações com a
família, na formação e inserção profissional, nos desafios, medos, desejos e
muitas outras subjetividades que compõem o processo formativo?
Tais questões demandam um olhar minucioso para os percursos aca-
dêmicos e afetivos em suas singularidades, limites, potencialidades, repro-

1 Para uma visão geral sobre o ensino superior brasileiro e de alguns dos temas de pesquisas na atualidade, consultar:
DINIZ, Rosa Virgínia; GOERGEN, Pedro L. Educação Superior no Brasil: panorama da contemporaneidade. Avaliação
(Campinas), Sorocaba, v. 24, n. 3, p. 573-593, dez. 2019.

229
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

duções e rupturas em meio às estruturas sociais. Para tanto, é preciso vol-


tar o olhar para existencialidades emocionais e sensíveis, estas “que pouco
se levam em conta nos projetos educativos e sociais das sociedades oci-
dentais” (JOSSO, 2007, p. 428). No contexto brasileiro, parece fundamental
refletir sobre as trajetórias consideradas excepcionais de quem ingressou
nas universidades do país nas últimas duas décadas, trazendo para a sala-
-de-aula e para a academia seus corpos, experiências e vivências distintas.
Com o objetivo de contribuir para esse debate, partiremos de nos-
sas próprias trajetórias para reflexão, enquanto mulheres de origem pobre,
vindas da periferia do Rio de Janeiro e atualmente doutorandas em ciên-
cias sociais que realizam pesquisas atravessadas por nossas histórias de
vida. Fomos diretamente afetadas pelas políticas públicas voltadas para o
setor educacional brasileiro no início do século XXI e vemos o estudo de
biografias como elemento significativo para a análise dos múltiplos efeitos
- individuais e coletivos - da expansão do ensino superior no Brasil. Tendo
como inspiração a metodologia transdisciplinar da pesquisa-formação a
partir da narração de histórias de vida, sistematizada por Marie-Christine
Josso (Ibidem), tomamos nossos percursos como objeto de “questionamen-
to retroativo e prospectivo”, como propõe a autora, para o recorte de expe-
riências que consideramos “formadoras e fundadoras” (JOSSO, Ibidem, p.
420) em nossas trajetórias.
Bastante mobilizado nos estudos da área da educação e, particular-
mente, nos trabalhos sobre trajetórias e biografias, a metodologia propos-
ta por Josso é um dos vários métodos que buscam explorar as experiências
dos sujeitos narradas em primeira pessoa e relacioná-las aos debates sobre
construção de identidades e a maneira como os indivíduos dão sentido
para suas escolhas, suas existências. A escrita deste artigo se deu a partir de
intensa troca sobre as vivências selecionadas, pois interpretadas enquanto
etapas fundamentais da nossa formação. Foi um processo construído de
maneira dinâmica por meio de longos áudios no Whatsapp, vídeo chama-
das, compartilhamento de textos e de reflexões a partir de uma adaptação
metodológica para uma elaboração realizada em dupla, a distância e em
contexto pandêmico.
De maneira experimental, nos tornamos objetos de nós mesmas,
explorando questões suscitadas por nossas trajetórias acadêmicas entre-
meadas por experiências pessoais também narradas no texto. Esperamos
inspirar mais pesquisadores e estudantes a utilizarem essa metodologia
extremamente rica para a reflexão não apenas sobre nossas trajetórias,
mas também para as relações entre elas e nossos atuais universos de pes-
quisa. Partiremos de uma descrição analítica do nosso encontro na uni-
versidade, onde nos conhecemos e reconhecemos em nossas trajetórias
pontos em comum para, em seguida, refletir sobre questões individuais

230
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

de cada uma e alguns de seus entrecruzamentos com outras histórias e


contextos sociais mais amplos.

Caminhos de um encontro
Aquelas eram tardes quentes de 2009 em salas apinhadas de jovens
ingressantes na universidade. O sistema de cotas só passaria a ser adotado
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no ano seguinte, mas
desde 2007 o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais, conhecido como Reuni, já vinha sendo uma
das políticas responsáveis por um expressivo aumento do número de vagas
nas instituições de ensino públicas. Não era, então, mera casualidade que
aquela fosse uma turma bastante cheia, com mais de 40 alunos.
Mas a quantidade não era necessariamente sinônimo de diversidade.
Falamos de uma turma de comunicação social, um dos cursos mais concor-
ridos daquele ano e, portanto, estudantes vindos de famílias com melhores
condições de investimento em educação eram maioria dentre os que con-
seguiam tirar notas suficientes para atravessar o estreito funil do vestibu-
lar. Essa informação se confirmou em uma de nossas primeiras aulas, cuja
proposta era que cada pessoa falasse brevemente de si, das expectativas
com relação ao curso e um pouco de sua história até ali. Os depoimentos
evidenciaram que uma grande parte dos discentes vinha de escolas e cur-
sos preparatórios privados, inclusive de fora do estado do Rio de Janeiro,
frequentados por pessoas de origem social mais abastada.
Além do fator socioeconômico das famílias, as pesquisas sobre as
desigualdades educacionais no Brasil e em diferentes países do mundo
mostram que a origem étnico-racial, o gênero, além de características in-
dividuais dos e das estudantes, têm forte correlação com a escolha do curso
e da instituição de ensino (CARVALHAES; RIBEIRO, 2019). Grosso modo,
nas instituições e carreiras de mais prestígio e com maior rendimento
salarial ainda predominam estudantes do sexo masculino, brancos e de
maior renda, enquanto que os cursos de menor rendimento no mercado de
trabalho têm estudantes, em sua maioria, não-brancos, do sexo feminino e
de classes sociais menos favorecidas2.
Essas disparidades também eram visíveis na população discente dos
outros cursos ofertados no campus localizado em um dos cartões postais
do Rio de Janeiro, a Urca, na Praia Vermelha, onde estudávamos. Enquanto
as áreas de administração, economia, psicologia, relações internacionais
eram compostas de maioria branca e de origem mais favorecida economi-

2 Portanto, “a estratificação horizontal entre cursos universitários em termos de classe, sexo e raça são fruto de
escolhas individuais que dependem tanto de preferências quanto de avaliações relativamente objetivas das reais
chances de entrar ou não em cursos mais seletivos.” (CARVALHAES; RIBEIRO, Ibidem, p. 221).

231
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

camente, as carreiras de pedagogia e serviço social aparentavam ter mais


diversidade social e étnico-racial3. Chegávamos a essas conclusões ob-
servando os estilos de roupa e reparando na hora do almoço quem levava
“marmita” - como nós e alguns poucos colegas da comunicação, que tam-
bém vinham de regiões mais periféricas - e quem comia nas lanchonetes e
restaurantes nos arredores do c ampus4.
Nos conhecemos durante uma disciplina da Escola de Comunicação
da UFRJ, a famosa ECO. Apesar dos mais de 10 anos que nos separam
daquela tarde, uma cena permanece fresca na memória. Estávamos sen-
tadas na primeira fileira, uma ao lado da outra. Até então não havíamos
nos notado até que, por algum debate em torno da aula, iniciamos uma
conversa paralela sobre os porquês de não gostarmos do grupo musical
Los Hermanos, um dos favoritos entre nossos colegas de classe, dos quais
sentíamos que destoávamos. Esse primeiro contato abriu espaço para falar
sobre nossos locais de moradia, um ponto central para o desenrolar de ou-
tras identificações e da nossa amizade.
Somos da Baixada Fluminense, uma região marcada pelos estigmas e
estereótipos de uma área considerada periférica na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro5. Temos também em comum a presença de migrantes
paraibanos em nossas famílias, que vieram para o Rio de Janeiro em busca
de melhores condições de vida e de trabalho, ocupando as margens da ci-
dade. Além da origem pobre dos nossos pais, nossas mães ainda exercem
profissões mal remuneradas e de pouco reconhecimento social: uma é em-
pregada doméstica e a outra costureira e camelô, um grande contraste se
compararmos aos trabalhos das mães e pais de nossos antigos colegas de
curso, de maior prestígio social e melhor rendimento.
Nossas referências territoriais e sociais contribuíam não apenas
para a criação de conexões entre nós, mas também com outras pessoas da

3 Nesta breve descrição, não incluímos a dimensão do gênero - também visível na composição discente dos cursos do
campus da Praia Vermelha - para não alongar um debate que foge do escopo deste artigo. Para mais detalhes sobre
as desigualdades de gênero no acesso às diferentes carreiras oferecidas pelas universidades brasileiras, sugerimos
consultar o mesmo artigo de Carvalhaes e Ribeiro supracitado.
4 O campus da Praia Vermelha só passou a ter restaurante universitário ou “bandejão” em 2017, fruto da luta do
Movimento Estudantil da UFRJ. Até então, as opções de alimentação se restringiam ao pequeno comércio dentro
do campus e à praça de alimentação do Shopping Rio Sul, localizado há poucos metros dali. No entanto, ambos
eram caros sobretudo por estarem em uma área nobre da cidade. Comprar comida diariamente era impraticável para
estudantes de menor poder aquisitivo. À época, ambas usávamos as copas destinadas aos trabalhadores da limpeza e
manutenção da universidade, que dispunham de pequenos espaços dotados de geladeiras, onde conservávamos as
marmitas durante as aulas para depois esquentá-las e comer ali mesmo, às vezes na companhia desses funcionários.
O uso desses espaços pelos estudantes era feito de maneira informal. Em algumas ocasiões, quando o microondas
da copa quebrava, por exemplo, precisávamos buscar soluções nos outros departamentos (e o mesmo acontecia
com estudantes dos demais cursos; e isso nem sempre se dava de maneira pacífica pois a chegada de mais pessoas
aumentava significativamente a fila do microondas), tornando a hora do almoço uma longa peregrinação.
5 Como há muitas nuances e heterogeneidades quando falamos de territorialidades, é importante especificar que o
mapa oficial da Baixada considera 13 municípios e morávamos em Duque de Caxias e Nova Iguaçu, consideradas as
duas principais cidades da região em termos de atividades comerciais, geração de renda e circulação de pessoas.

232
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

universidade. Conforme conhecíamos colegas moradores da mesma região


ou de suas proximidades, ía crescendo o “bonde da Baixada”, que, eventu-
almente, era companhia nas longas voltas para casa. A distância entre nos-
sos locais de moradia da época e a universidade não é mensurável apenas
em quilômetros ou em horários facilmente previsíveis. É preciso compre-
endê-la como “algo que vai se especificando nas dobras do mundo social,
nos pontos de junção entre espaços e que são demarcados por todas as
complicações dos meios de transporte e circulação pela cidade” (TELLES,
2006, p. 19). Falamos, então, de trajetos que podiam ter mais de 2 horas de
duração, a depender dos engarrafamentos ou de eventuais problemas no
trânsito ou nos trens, sempre lotados nos horários de pico, por volta das
17h, 18h, quando o fim das aulas coincidia com o término do expediente de
quem cruzava a cidade para trabalhar.
Para driblar o trânsito e aproveitar “a viagem” - tanto o esforço
quanto o custo de sair da Baixada até a capital - começamos a usar o tempo
depois das aulas para descobrir o Rio, experiência até então rara e bastante
planejada, considerando os limites impostos pelas condições familiares.
Flanar pelas ruas da cidade não cabia no nosso bolso, pois custava dinhei-
ro, era longe, e mesmo perigoso6. Para superar esse obstáculo, buscamos
atrações gratuitas ou de baixo custo, como as exposições do Centro Cul-
tural Banco do Brasil, as praias e trilhas da cidade e algumas festas da
universidade e dos centros mais boêmios do Rio de Janeiro. À medida em
que conseguimos bolsas e estágios, conquistamos uma renda modesta e
pudemos viver novas descobertas e aprendizados para além dos muros da
universidade, explorando múltiplas possibilidades de experienciar a cida-
de. Neste sentido, a escolha aqui pelas ideias “descobrir” e “aprender” não
são fortuitas, pois, de maneira consciente ou não, construímos nosso pro-
cesso de formação em suas diferentes dimensões.
Seguir essas mobilidades (TELLES, op.cit.) parece ser um caminho
profícuo para uma reflexão sobre trajetórias estudantis e processos de for-
mação em sentido amplo, isto é, para além das salas de aula e dos espaços
entendidos como propriamente escolares (laboratórios, bibliotecas etc).
Por isso falamos aqui de caminhos, de trajetos particulares e muitas vezes
confluentes, em suas especificidades. E descobrimos durante o processo
de escrita a necessidade de alargar ainda mais esses passos, buscando in-
clusive em nossas infâncias questões centrais para nossas histórias e para

6 Sair pela cidade, sobretudo à noite, era muitas vezes tido como perigoso pelas nossas famílias. De fato, a depender
dos horários e caminhos, o trajeto vinha acompanhado de riscos e medos da violência urbana e, enquanto mulheres,
o temor do assédio sexual. Muitas vezes, fazíamos companhia uma à outra, passando a madrugada na rua depois de
um passeio no boêmio bairro da Lapa. Além dos ônibus pararem de circular após um determinado horário da noite,
esperar os primeiros raios de sol significava também poder retornar à casa com certa segurança que a luz do dia
parecia nos trazer.

233
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

a forma como nos relacionamos com desafios da vida acadêmica. Este é,


portanto, um texto preenchido de alguns flashbacks e passeios pelo tempo
não necessariamente lineares, num vai e vem em busca de compor as peças
de um todo conectado.
Falamos de percursos que nos trouxeram até aqui e culminaram em
uma amizade, em escolhas e desafios profissionais e acadêmicos, pegadas
que buscamos reconstituir e sobre as quais nos debruçamos para a elabora-
ção deste artigo. Para tanto, parte do nosso processo teórico-metodológico
envolveu a produção de imersões individuais - porém sempre em diálogo
- de cada uma sobre sua trajetória. A seguir compartilharemos essas re-
flexões, em tópicos destacados, para na sequência pensá-las em conjunto.

Escrever sem esconder as cicatrizes: as marcas de Elis


Há algum tempo um amigo jornalista disse que eu deveria escrever
sobre minha trajetória de vida. Quando nos conhecemos, em 2010, ainda
não era comum ver a filha de uma empregada doméstica e de um militar
de baixa patente estudando em uma das maiores universidades do país e,
mais tarde, vindo a fazer mestrado em uma importante instituição fran-
cesa, conquistando posteriormente um concorrido financiamento alemão
para realização de doutorado em Berlin. Querendo ou não, fui deixando
rastros da minha história nas entrelinhas dos meus trabalhos acadêmicos.
Nesta parte, escolhi revisitar brevemente essas experiências, analisando as
conexões vida e academia buscando mostrar como a escrita deste texto me
conduziu a entender as marcas presentes na minha biografia como resul-
tantes do impacto das diferentes camadas de desigualdades (JELLIN et al.,
2017) a nível individual e subjetivo.
No meu projeto de iniciação científica e na minha monografia do
curso de jornalismo da UFRJ, acabei por trabalhar sobre um tema doloro-
so durante parte da minha adolescência, e importante ao longo de toda a
minha formação: o acesso ao passe livre estudantil. Estudei boa parte do
ensino fundamental, graças a bolsas e descontos, em escolas privadas (a
maioria de baixo custo) e, por isso, nunca tive acesso à gratuidade no trans-
porte público. Na minha pré-adolescência meus pais não viviam juntos.
Apesar da pensão informal que meu pai pagava para mim e minhas duas
irmãs, minha mãe sempre precisou equilibrar as contas no fim do mês,
completando o apertado orçamento com seu trabalho de doméstica. Nesta
época, eu tinha mais ou menos 12 anos e conter os gastos era fundamental
para construir e mobiliar nossa primeira casa (até então vivíamos de favor
na casa de parentes), que ficava no quintal da família materna, em São
João de Meriti. Para ajudar na redução das despesas, comecei a usar uma
camiseta e carteirinha de estudante de escolas públicas da região para não
pagar passagem.

234
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Eu vestia o uniforme de colégio público por cima da camiseta da


escola onde eu estudava de fato e, quando entrava no ônibus, apresentava
rapidamente a carteirinha, comprada em uma famosa loja de material es-
colar Duque de Caxias, minha cidade natal, e que a maioria dos motoristas
não verificava a autenticidade7. Entrar pela porta da frente dos ônibus
por meio de fraude foi uma das experiências mais difíceis da minha ado-
lescência. Eu sabia que esse esforço ajudaria tanto a finalizar a obra da
casa, quanto poderia proporcionar pequenos “luxos”, como comprar uma
televisão de 29 polegadas ou um refrigerante no fim de semana. No entan-
to, o medo e a vergonha de ter meu “jeitinho” desmascarado me faziam,
às vezes, caminhar cerca de 3 km que separavam a escola da minha casa8.
Os entrelaçamentos entre minhas experiências de vida e a pesquisa
se estenderam até o mestrado, quando realizei uma etnografia na escola de
jovens adultos (EJA) onde minha mãe concluiu seus estudos (DE AQUINO,
2020). Ela havia estudado apenas até a quinta série do ensino fundamental.
Órfã de pai e com problemas na casa do padrasto, minha mãe decidiu viver
com uma tia, a quem ajudava, durante as férias escolares, a fazer faxina
em casas de família da Zona Sul do Rio de Janeiro. Aos 13 anos, quando
trabalhava como diarista ou babá, já não lhe sobrava mais tempo para a
escola. Ela só conseguiu voltar a estudar em 2013, aos 46 anos, quando lhe
apresentei a Escola de Jovens e Adultos de Manguinhos, que eu conhecia
por estagiar com alguns professores e professoras na Fiocruz, parceira da
Rede CCAP na gestão da instituição e do curso9.
Por fim, encontro a marca biográfica na minha tese de doutorado, na
qual investigo as aspirações de jovens universitário(a)s da Baixada Flumi-
nense que constroem seus projetos de vida em um momento de múltiplas
crises (econômica, política, social, ambiental, sanitária, etc) e incertezas.
Como vimos até aqui, eu mesma fui uma estudante da Baixada e nutri as-
pirações que me trouxeram até o doutorado. A diferença entre a minha ge-
ração e a de meus e minhas interlocutoras está no frágil contexto do país.
Na minha época de graduanda, o Brasil vivia uma espécie de “sonho”10: a
economia crescia a despeito do colapso mundial, as desigualdades - em

7 A autenticidade do documento era expressa pelo nome e carimbo das instituições.


8 Um amigo, hoje pós-doutorando na Alemanha, disse ter vivido a mesma situação na sua adolescência. É interessante
observar que nosso encontro é similar ao que eu tive com Renata na época da graduação na UFRJ. Em ambos os
casos, a aproximação se deu, de início, por uma identificação socioeconômica e pela origem baixadense.
9 A Rede de Empreendimentos Sociais para o Desenvolvimento Socialmente Justo, Democrático, Integrado e
Sustentável é uma organização da sociedade civil de interesse público localizada em Manguinhos, Rio de Janeiro.
10 Em 2014, o diretor da Oxfam Brasil - agência internacional não-governamental com ações voltadas para o combate
à pobreza - disse que o país era uma exceção à tendência mundial do crescimento da concentração de riqueza
acentuada com a crise financeira internacional iniciada em 2008. Em entrevista à Agência Brasil, Simon Ticehurst disse
que estaríamos construindo uma espécie de Brazilian Dream. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-10/crise-financeira-dobrou-o-numero-de-bilionarios-no-
mundo-diz-oxfam. Acesso em: 8 mar. 2021.

235
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

especial aquelas relacionadas à renda - se reduziam graças a diferentes po-


líticas públicas, como as voltadas para o ensino superior, que como vimos,
se expandia. Parecíamos ter “finalmente” tomado o “rumo do futuro”11. Atu-
almente, as predições são menos otimistas e, devido aos sucessivos cortes
em serviços essenciais como educação, saúde e programas sociais12, resulta-
do das gestões conservadoras no poder desde 2016, vivenciamos um impor-
tante acentuamento das desigualdades em sua concepção mais ampla.
Narrar este breve percurso serviu para ligar os pontos entre minha
trajetória de vida e acadêmica-profissional. Nas Ciências Sociais, de onde
escrevo, é comum que as investigações carreguem traços biográficos. O
debate sobre essas implicações também é bastante extenso. Mas na pes-
quisa-formação, isto vai além, pois as narrativas construídas com base em
experiências de vida dos sujeitos em formação são o foco do trabalho. Elas
equivalem à pesquisa de campo dos e das cientistas sociais. E enquanto,
nestas últimas, falar de si significa objetificar nossa relação com o campo
e a pesquisa, isto é deixar claro de onde falamos e quem somos, em traba-
lhos (auto)biográficos, como o proposto por Josso (op.cit), as experiências e
os sentidos conferidos a elas estão no cerne do produto final. No processo
de redação deste texto a reflexão foi me conduzindo para um tema que me
acompanhou durante toda a formação e persiste até hoje, o medo da escrita.

Reconstituindo as raízes do medo


Quando recebi o convite para participar deste livro, precisei encarar
o fantasma da escrita. Pode parecer paradoxal, já que escrever faz parte
do meu ofício. Mas ainda hoje, aos 32 anos, dispondo (e desenvolvendo)
de ferramentas técnicas para dominá-la, e já tendo um certo acúmulo de
conhecimentos, ela continua a me amedrontar. Decidi, portanto, usar essa
oportunidade para reconstituir a raiz da minha paralisia, buscando conec-
tá-la com questões que vão além das minhas experiências pessoais.
Uma das minhas lembranças mais marcantes da infância é a de es-
crever a pedido de minha mãe. Os textos e fins eram variados. Às vezes, sua
voz guiava minhas mãos pelo caderno de recados da escola. Em outras, eu
copiava - “com caligrafia bonita”, como ela enfatizava - suas receitas culi-
nárias favoritas em um caderno guardado com esmero. Até cartas cheguei
a escrever em seu nome.
Na maioria das vezes, fazia isso contrariada. Não gostava e nem que-
ria exercer o papel de escrivã da minha mãe. E dentre esses pedidos - ou

11 Cito de maneira crítica a ideia por trás da obra de Stefan Zweig intitulada Brasil, o país do futuro (1941).
12 A Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos instituiu o Novo Regime Fiscal que alterou a Constituição
de 1998, limitando as despesas do governo durante 20 anos. Para uma análise sobre os possíveis efeitos da lei na
educação, indicamos o artigo: ROSSI, Pedro; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de; ARANTES, Flávio; DWECK, Esther.
Austeridade fiscal e o financiamento da educação no Brasil. Educ. Soc., Campinas, v. 40, 2019.

236
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

ordens - um me deixava particularmente irritada: fazer a lista das compras


do supermercado, ditada enquanto ela vasculhava a despensa da cozinha.
Nessas horas a perguntava “mas porque você mesma não escreve?”, ao que
ela respondia como “minha letra não é bonita” ou “não sei escrever”, isto
é, sem “erros de português”.
A memória não me deixa reconstituir com detalhes todos esses episó-
dios e hoje, ao tentar revivê-los, interpreto a atitude de minha mãe de duas
maneiras : ela não escrevia por vergonha e medo de ser julgada, reduzida à
sua caligrafia e sua suposta falta de domínio da língua; e, por querer evitar
que eu amargasse as dores de não ser “alguém na vida”, via nessas pequenas
práticas uma forma de me familiarizar com a escrita e com o mundo esco-
lar, onde estaria a minha chance de ter uma sorte diferente da sua.
Se hoje ocupamos, eu e minha mãe, posições diferentes na socieda-
de, algo além da nossa filiação nos unia. De maneiras distintas, nós e tan-
tas outras mulheres e pessoas de grupos subalternizados, fomos levadas
a duvidar de nossas capacidades e tivemos nossas vozes sufocadas pelas
diferentes camadas que constituem as desigualdades. Acreditamos não ser
boas o suficiente, inteligentes o suficiente, ou mesmo dignas de contar
nossas (e outras) histórias. Não à toa, a pergunta “o que eu tenho a dizer”
sempre me perseguiu. Era como se nada do que eu sentisse ou pensasse
merecesse ser escrito, lido, externalizado. E se pararmos para pensar, não
era mesmo. Como sugere Donna Haraway, dentro do “Patriarcado Capi-
talista Branco” (1998, p. 35) - com seus resquícios coloniais - que dominou
e ainda domina parte do campo científico, só havia espaço para um ator,
um produtor de conhecimento, cujo perfil é majoritariamente masculino,
branco, ocidental. Neste paradigma-prisão, todos os outros seres, huma-
nos e não-humanos, tornam-se objetos nas mãos de um único “conhece-
dor” (HARAWAY, Ibidem, p. 26).
No entanto, este paradigma é cada vez mais desafiado por teorias e
métodos que, paradoxalmente, surgem dentro das universidades, sobretu-
do quando estas acolhem públicos diversos, se inspiram e aprendem com
os diferentes movimentos sociais13. Em seu livro sobre educação enquanto
prática de liberdade, a professora e pesquisadora bell hooks (1994) conta
seu entusiasmo ao perceber que instituições de ensino eram ao mesmo
tempo espaços onde o saber era compartilhando, por meio de estruturas co-
loniais, de dominação, e onde os ideais de justiça e democracia, presentes
na luta dos movimentos pelos direitos civis, se realizariam (Ibidem, p. 30)14.

13 Para Nilma Lino Gomes (2017) os movimentos sociais são educadores. Partindo de uma análise sobre o movimento
negro brasileiro, a autora defende que nas lutas antirracistas constroem-se saberes emancipatórios, e que estes
últimos, quando sistematizados, educam a universidade e a sociedade de maneira ampla.
14 Além disso, hooks conta que na universidade encontrou pares com os quais dialogar (e ela destaca o papel
fundamental de Paulo Freire na sua formação), e teve apoio de uma comunidade de aprendizado. Esta última é

237
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

É importante destacar aqui o caráter ambivalente das instituições de


ensino e seu impacto na formação dos indivíduos e na sociedade. Quando
narramos nossa entrada na universidade, Renata e eu frisamos o quanto
nos sentimos deslocadas e até inferiores a nossa(o)s colegas de curso por
não compartilhamos da mesma origem social e de certo repertório cul-
tural. Se por um lado isto nos levou a encontrar uma na outra um apoio
emocional para lidar com os desafios e aparentes contradições de viver
na fronteira (ANZALDÚA, 1987) de classe, na universidade construímos
ferramentas intelectuais para analisar as origens desses sentimentos, loca-
lizá-los dentro da complexa estrutura de desigualdades sociais e valorizar
nossas trajetórias constituídas nas encruzilhadas15.
Quando investigamos a entrada de um grupo mais diverso de pes-
soas na universidade brasileira, para além do seu impacto no mercado
de trabalho e na estratificação social, nos deparamos com o potencial da
multiplicação das vozes e das possibilidades de renovação da produção do
conhecimento, sobretudo quando falamos da pós-graduação. Parte dessas
transformações podem ser vistas no surgimento de determinados temas
de pesquisa (ARTES; MENAS-CHALCO, 2017)16 e na escolha das teorias
nas quais estas se embasam (SILVA; ARAÚJO, 2020)17 e que, em diferentes
áreas, vêm provocando novas leituras sobre a sociedade brasileira (ME-
DEIROS, op. cit, n. p).
O espaço é curto para navegar nos meandros dos debates pós e de-
coloniais e nas contribuições dos estudos de gênero e raça, onde encon-
trei diálogo e embasamento para analisar meu percurso e de tantas outras
vozes que proliferaram e se fizeram ouvir com o processo de expansão da
universidade brasileira nos últimos anos. Essa constelação literária tem
sido fundamental na minha formação e junto com outras experiências, me
deu ferramentas teóricas para entender não só a minha relação com a escri-
ta, mas também a síndrome da impostora, da qual eu e, particularmente pes-

definida como “o lugar onde a diferença poderia ser reconhecida, e onde finalmente entenderíamos, aceitaríamos, e
afirmaríamos que nossas formas de saber foram forjadas na história e em relações de poder” (Idem). Tradução própria.
15 No meu caso, as fronteiras de classe se misturam às de “raça”. Apesar da pele clara, e das possíveis vantagens que
isso me traz dentro de um sistema social racista, trago nos traços, e na raiz dos cabelos as evidências da mestiçagem. No
Brasil, como sabemos, pessoas brancas têm pelo menos o dobro do rendimento das não-brancas (GUIMARÃES, 2006).
Na graduação, sentia que meu fenótipo era mais uma camada reveladora da minha origem social, periférica e, portanto,
subalterna. Possivelmente, esse sentimento foi forjado ao ouvir histórias de família. Em uma delas, minha mãe conta
que a irmã de uma de suas patroas teria dito uma vez: “Nunca vi tanta gente feia. Parece que um ônibus veio direto
da Baixada, e parou na praia”. Para essa mulher, beleza deve ter a ver com branquitude e renda, já que as praias ficam
na zona nobre Rio, onde a maioria dos moradores (à exceção das favelas) é branca (COSTA, 2015). O documentário
brasileiro Os pobres vão à praia, produzido no final da década de 1980, traz comentários semelhantes ao que minha mãe
relata ter escutado. Disponivel em: https://www.dailymotion.com/video/x2p7wi7 Acesso em: 8 mar. 2021
16 Segundo a pesquisa dos autores, houve um aumento dos estudos sobre relações étnico-raciais nos últimos
anos. Resta saber se “são negros que estão estudando sobre relações raciais, ou a temática está para além da
autoclassificação dos estudantes de pós-graduação” (Ibidem, p. 1236)
17 Neste trabalho, as pesquisadoras associam a política de cotas na pós-graduação da Universidade Federal da Bahia
como importante fator do aumento de pesquisas sobre feminismos baseados na perspectiva decolonial.

238
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

soas não-brancas, e de origem socioeconômica mais baixa, tentam curar-se.


A metodologia da pesquisa-formação ajudou a sistematizar essa reflexão.
O exercício de pensar e narrar as experiências formadoras e fundado-
ras (e fazer isso em dupla), revela o quanto nossos saberes são construídos
em múltiplos contextos. Eles vêm das experiências traumáticas e das con-
versas entre amigo(a)s; das horas em pé nos transportes públicos e também
dos doces vendidos por trabalhadores ambulantes da Central do Brasil, do
dinheiro contado para durar até o fim do mês, de uma saída especial feita
após bastante planejamento econômico. Todas essas vivências, que a escri-
ta acadêmica dominante muitas vezes desconsidera, são essenciais tanto
na nossa formação enquanto sujeitos (sempre em construção), quanto na
própria produção do conhecimento.
Situar nossos saberes, refletir sobre nossa “localização”, nossa posição
- isto é, o espaço ocupado dentro da trama complexa das relações sociais e
nosso posicionamento sobre o que vemos, falamos e validamos enquanto
saber - significa, a meu ver, assumir a perspectiva parcial, defendida por
Donna Haraway (op. cit). Isto é, trazer para dentro da narrativa nossos cor-
pos, sem esconder nossas cicatrizes. Antes partir delas para a construção de
conhecimento, estabelecimento de diálogos, e criação de conexões.
Enquanto eu achava que o medo da escrita era só meu, um evidente
resultado da minha falta de habilidade ou capacidade, sufoquei a minha
voz. Na busca por reconhecimento social, escondi as marcas das quais me
envergonhava e das quais aprendi a me envergonhar por acreditar que elas
deslegitimavam de alguma forma minha presença no ambiente acadêmico
e em outros espaços sociais até então exclusivos às elites econômicas (e
brancas). Libertador foi perceber que eu não tinha medo de escrever, mas
da vulnerabilidade que o papel de autora traz. A escrita acadêmica, dentro
dos seus moldes e padrões mais restritos, foi uma capa que eu usei (e muita
gente usa ainda) acreditando ser possível falar a partir de lugar nenhum
(HARAWAY, op. cit, p.18-30). Como cientista social, me viciei em narrar no
impessoal, na tentativa de me desviar de mim. Este texto, mediado por lei-
turas e conversas, me trouxe de volta para minhas experiências, sempre em
articulação com as dimensões subjetivas, simbólicas e materiais das desi-
gualdades que entrelaçam as sociedades contemporâneas (JELIN, op. cit).
Eu precisei de apoio e parceria para enfrentar a empreitada de uma
escrita localizada, costurada intensamente mesmo quando eu não estava à
frente do computador. Além de uma gama de escritora(e)s que me acom-
panharam mais de perto e cujos rastros se encontram nas referências aqui
expostas, além das pessoas e mulheres que marcaram minha vida (minha
mãe e irmãs em especial), teve também Renata, que me fez insistir nesse
projeto. Quando ela disse que escreveria comigo, senti alívio por não pre-
cisar estar só. A parceria não anulou meus medos, mas me deu forças para

239
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

enfrentá-los. O silêncio nunca me protegeu (LORDE, 1977). Pelo contrário,


ele chegou a me paralisar, a me fazer duvidar de mim, a me isolar. Mas a
linguagem em ação nos conecta. Quando aceitamos os riscos de nossas de-
cisões - e escrever de corpo inteiro é um deles - construímos pontes sobre
nossas diferenças18.

Mitos fundadores e suas reinvenções: refazendo as trilhas de Renata


“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como que-
rem”, há muito essa frase de Marx (2003, p. 7) ressoa nos meus passos. Re-
conhecer que a nossa agência está sempre esbarrando em limites e cons-
trangimentos das estruturas não é algo trivial, para não dizer doloroso.
Como desestabilizar ou ao menos borrar lugares que se apresentam para
nós como previamente marcados, determinados? Não tenho resposta para
essa questão, mas é ela quem tem me guiado em muitas andanças pessoais
e acadêmicas em busca de brechas para possíveis transformações, indivi-
duais e coletivas. A seguir compartilharei algumas delas que, em suas sin-
gularidades, se conectam com trajetórias de outros indivíduos fazedores
da história entre o sonho e o possível.
Vinda de uma família pobre de migrantes do sertão da Paraíba, en-
trar na faculdade não era algo trivial de ser inserido em meu roteiro de
vida. Cresci em meio a pessoas onde isso não era nem cogitado como pos-
sibilidade, de tão distante que parecia. As exceções foram uma tia e um
primo de segundo grau que estudaram em faculdades particulares, peda-
gogia e enfermagem respectivamente, a partir de seus vínculos com a igre-
ja, que garantia os recursos necessários para os investimentos escolares.
Uma estudou em um colégio de freiras e o outro em uma escola se-
minarista de padres, o que mudou o percurso esperado deles, os fazendo
ter histórias de vida muito diferentes do restante da família, cuja grande
maioria não terminou nem o ensino fundamental, como é o caso dos meus
pais. Nas viagens de férias da infância e adolescência, me chamava atenção
reparar que na casa de cada um dos meus familiares era exibido em lugar
de destaque um retrato da minha tia com a roupa de formatura. Este se
somava a imagens religiosas do altar da minha avó, que era analfabeta.
Meu interesse pelos estudos foi se construindo por caminhos mais
profanos, especialmente se considerarmos que ele se deu a partir de um
lugar com o simbólico nome de Garganta do Diabo. Este era um morro,
localizado em Nova Iguaçu-RJ, com muitas das características do que é

18 A ideia de ponte sobre as diferenças vem de Audre Lorde. A autora usa o termo “bridging the differences”, que
seria melhor traduzida enquanto “vencer”, “superar” ou mesmo “contornar” as diferenças. Mas eu gostei da ideia
mais subversiva que a palavra bridging pode ter, já que ela deriva da palavra “ponte” em inglês. Me pareceu curiosa, e
profícua a ideia de que nossas diferenças também podem nos unir.

240
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

descrito como “aglomerados subnormais” pelo Instituto Brasileiro de Ge-


ografia e Estatística, isto é, lugares que apresentam “padrão urbanístico
irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas
com restrição à ocupação” (IBGE, 2020, p. 5). Fui morar lá aos 11 anos de
idade com meu irmão mais novo e minha mãe, logo após ela e meu pai te-
rem se separado. Ela era uma costureira sem vínculo empregatício e ele um
garçom assalariado. Nunca recebemos pensão ou coisa do tipo. Na época
com 31 anos de idade, minha mãe não tinha ainda carteira de identidade,
apenas a certidão de nascimento. Mesmo em situação de grande vulnera-
bilidade econômica e social, eu era vista como a “riquinha do morro”, o que
tinha relação com o fato de ser uma das poucas pessoas brancas no local.
Meus longos cabelos lisos castanhos provocavam inveja nas vizinhas da
minha idade.
A antiga dona da casa onde morávamos morreu ali de mal súbito na
frente da filha pequena e foi delas que herdei uma modesta biblioteca que
ficava ao fundos, em um cômodo que abrigava entulhos. Ali se desenvolveu
meu gosto pela leitura, um certo espaço sagrado na Garganta do Diabo. Eu
já gostava de ler, adorava as crônicas, poesias e contos dos livros de portu-
guês da escola. Era uma criança que lia tudo o que caísse nas mãos, de em-
balagem de shampoo a folhetos de Testemunhas de Jeová. Tinha também o
hábito de escrever diários, trancados a cadeado tal como nos filmes que eu
assistia na infância. Mas naquele espaço encontrei meu refúgio predileto,
onde consegui o feito de ler pela primeira vez um livro inteiro, o que foi
motivo de enorme orgulho e certa sensação de poder. Com o livro no colo,
eu me sentia a própria personagem de Clarice Lispector (1998) num flerte
com a felicidade clandestina: “não era mais uma menina com um livro, era
uma mulher com o seu amante”.
Segui morando em Nova Iguaçu até a vida adulta, mas no morro da
Garganta do Diabo vivi por cerca de 1 ano apenas e nesse curto espaço de
tempo ele foi um cenário central para a inauguração em mim de uma pro-
funda relação com os livros e, com eles, da liberdade de imaginar mundos
muitas vezes distantes dos meus. A sementinha da curiosidade, do interes-
se, do encantamento já estava em mim, assim como em muitas crianças,
mas ali encontrei terreno propício para fazê-la germinar.
O cultivo foi se dando. Nas escolas públicas estaduais por onde pas-
sei tive professores que foram centrais por me incentivarem e estimula-
rem a estudar, em especial os de história, geografia e literatura, disciplinas
com as quais eu tinha mais identificação. Fui nutrindo o desejo de fazer
uma faculdade e aos 17, no último ano do ensino médio, me inscrevi em
um pré-vestibular comunitário. Eu tinha vontade de estudar algo ligado ao
campo das artes, tocava violão e cantava na igreja, cheguei a fazer oficinas
de teatro, gostava de literatura, sempre adorei dançar, mas achei que era

241
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

preciso escolher um curso onde eu pudesse de algum modo expressar o que


pulsava em mim, mas “sem tirar os pés do chão”, ou seja, estando sempre
atenta ao meu sustento em termos financeiros.
Jornalismo parecia uma boa opção, de acordo com os meus critérios
da época, mas o curso era na época muito concorrido e para conseguir a
nota necessária me determinei a fazer certos sacrifícios. Terminei com um
namoradinho, ia para escola de manhã e para o pré-vestibular de noite,
todos os dias da semana, e, antes da rotina frenética de estudos se esta-
belecer, tive uma conversa séria com minha mãe, explicando minha ne-
cessidade de deixar de trabalhar naquele ano. Eu ajudava no acabamento
das bolsas produzidas por ela que vendíamos juntas no Calçadão e no Ca-
melódromo de Nova Iguaçu. Ela entendeu e me apoiou, sempre alertando
para que eu não criasse muitas expectativas, pois universidade pública era
difícil mesmo, “coisa de rico”, não seria fácil chegar lá.
Depois de um ano pesado de preparação para o vestibular, fui aprovada
no curso de jornalismo da Universidade do estado do Rio de Janeiro, a Uerj,
porém não fiquei satisfeita. Atribuía essa frustração à minha preferência
pela UFRJ ou à estrutura do prédio da Uerj, “cinza e baixo astral”, como eu
costumava dizer, entre outras justificações. Mas havia uma que eu não tinha
coragem de admitir: a vergonha de ser cotista. Entrei por cotas sociais, mas
acreditava não precisar daquilo, me parecia uma humilhação, uma diminui-
ção da minha capacidade. Eu queria provar algo para mim e para o mundo,
então “aproveitei” uma das greves da Uerj para tentar novamente o vestibu-
lar da UFRJ, onde ainda não havia cotas. Dessa vez fui aprovada, mas não
nas primeiras colocações, por isso entrei apenas no segundo semestre de
2009, quando conheci Elis, como já contamos em outro tópico deste artigo.
Chegando na UFRJ, eu era uma jovem de 19 anos, de personalidade
extrovertida, mas que no começo da vivência no espaço universitário se
sentia absolutamente deslocada, não pertencente a nenhum grupo, o que
se deu tanto na Uerj como na UFRJ. Mas nesta última talvez fosse ainda
mais forte, com meu deslocamento contrastando com a Zona Sul, com a
Urca, o bondinho, o Aterro do Flamengo, todos eles cenários lindos de
uma moldura onde eu me sentia figurando apagada. Isso não necessaria-
mente tinha relação com nenhuma forma de exclusão objetiva, mas com
complexos de inferioridade e uma constante comparação com os demais,
que eu via sempre como superiores a mim por já terem viajado para fora
do país, por terem estudado em escolas melhores, por falarem outros idio-
mas, por suas roupas, pelos lugares que frequentavam, por repertórios e
referências que eu não compartilhava, enfim, por tudo que me fazia sentir
de fora daquele universo.
Esse sentimento passou a ser ressignificado quando comecei a criar
vínculos com pessoas de origens parecidas com as minhas, como a Elis. Isso

242
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

foi fundamental para a criação de espaços para a partilha, para a troca e


acolhimento, que se dava muitas vezes de forma leve e bem-humorada, em
brincadeiras por sermos “marrentas” e da periferia, por exemplo. Esse pro-
cesso se intensificou quando comecei a entrar em contato com experiências
e narrativas que valorizavam justamente aquilo que lá atrás me fazia sentir
menor. O prognóstico de Lícia do Prado Valladares (2005) parecia estar se re-
alizando. Nos idos de 2005, a autora dizia que os trabalhos sobre temas como
favelas, pobreza, segregação urbana e as consequências da urbanização se-
riam possivelmente influenciados por um novo tipo de autor: “aquele oriun-
do da favela com um diploma superior” (VALLADARES, Ibidem, p. 162).
O impacto foi ainda mais amplo do que o previsto pela autora, pois
essa nova geração, vinda não apenas das favelas, mas de diversas outras
origens menos privilegiadas, influenciou em debates para além dos espa-
ços acadêmicos, afetando o campo das artes, da política e dos movimentos
sociais a partir da afirmação de determinados “lugares de fala”, que de es-
tigmatizados passaram a ser reivindicados como expressão de legitimida-
de para a produção das mais variadas narrativas. Ser pobre e da periferia
passou então a se apresentar para mim como um lugar do qual eu deveria
me orgulhar, não porque eu fosse especial ou mais capaz que os outros -
“alguém que veio de baixo e mostrou que é possível vencer na vida”- como
já quis ou talvez tenha precisado um dia acreditar, mas por me entender
agora como parte de uma coletividade complexa e repleta de significados
constitutivos da minha história.
Obviamente não cheguei a essas conclusões sozinha. Tudo isso tem
relação com as reflexões provocadas pela universidade, dentro e fora de sala
de aula. A partir de projetos de extensão e estágios, trabalhei em favelas ca-
riocas, como Cidade de Deus e Manguinhos, onde era muito forte uma mobi-
lização da ideia de “favelado” não como lugar de vergonha, mas de potência,
de saber, de criatividade, o que se expressava em meios de comunicação co-
munitários e espaços culturais por onde circulei. Essa experiência me levou
a repensar minha relação com minha própria origem e com o lugar onde eu
vivia, na Baixada Fluminense, que, embora não fosse uma favela, era também
alvo de muitas representações negativas (ENNE, 2002; FREIRE, 2016).
Busquei me aprofundar no trabalho de campo em favelas no mes-
trado, o que resultou em uma etnografia sobre um jornal comunitário
da Cidade de Deus chamado A notícia por quem vive (MELO, 2017). No
doutorado fiz o caminho de volta para casa, tendo como foco de pesquisa
circuitos alternativos de cinema da Baixada Fluminense, essa região que
tanto esteve presente nos percursos descritos até aqui19. Esse breve passeio

19 A pesquisa ainda está em curso e mais informações sobre ela podem ser encontradas em artigo meu publicado pela
revista Critical Reviews on Latin American Research (MELO, 2021).

243
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

por minha trajetória me fez revisitar cenários que hoje compõem uma pes-
quisa inegavelmente motivada pela minha busca por compreender melhor
territorialidades que atravessam minha história. Refletir sobre essa ques-
tão, em termos teóricos e metodológicos, já vem há algum tempo se colo-
cando como relevante para mim a partir da minha vinculação ao campo da
antropologia. A disciplina acumula ao longo de sua história diversos de-
bates que partem da premissa de um envolvimento inevitável com o objeto
de estudo, sem que isso represente necessariamente um problema. E mais:
aponta para a necessidade de fazer desse envolvimento objeto de reflexão e
para a importância de explicitá-lo, o que pode abrir chaves importantes para
a compreensão das relações entre pesquisadores e seu universo de estudo.
Quando a proposta é “observar o familiar” (VELHO, 1980), como tem
sido em minhas pesquisas, o desafio de pensar o binômio distância/proximi-
dade, tão caro aos estudos antropológicos, ganha outras dimensões. Gilber-
to Velho trouxe contribuições significativas para esse tema a partir do estu-
do do que foi descrito por ele como “camadas médias superiores na fronteira
com as elites” (VELHO, 2003, p. 14), tendo como base a análise de grupos dos
quais ele fazia parte e com os quais tinha vínculos pessoais e afetivos.
Pensar relações com as quais se tem proximidade traz como desafio a
busca por uma postura de constante auto-vigilância para a desnaturalização
e compreensão de dinâmicas sociais nas quais estamos diretamente implica-
dos. Nessa empreitada, me somei a diversas outras pessoas que têm feito do
acesso à universidade espaço para o aprofundamento de reflexões e para a
produção de conhecimento sobre questões que atravessam suas próprias ter-
ritorialidades, gênero, identidades, classe social, entre outros temas (DA SIL-
VA; ARAUJO, op.cit; GOMES, 2020) que afetam a sociedade como um todo.
O estudo do familiar certamente não é uma novidade, mas é relati-
vamente recente que indivíduos vindos de grupos subalternizados, como
Elis e eu, também possam hoje, em maior quantidade, produzir conheci-
mentos sobre e a partir de suas experiências e origens particulares. Diante
disso, é interessante observar que têm ganhado espaço perspectivas que
buscam romper de modo mais radical com a dualidade sujeito e objeto a
fim de pensar relações entre experiência pessoal e processos sociais e po-
líticos. São expressão disso pesquisas que envolvem o uso da metodologia
da auto-história e da autoetnografia, por exemplo, nas quais o objetivo não
é apenas refletir criticamente sobre o lugar do pesquisador em relação ao
seu universo de pesquisa, como sugerido por estudos mais clássicos da
antropologia, mas de trazer elementos biográficos para o centro de suas
análises, fazendo deles matéria-prima para reflexão.
Neste artigo me dispus a fazer esse tipo de exercício a partir da me-
todologia da pesquisa- formação com base na história de vida, o que não
foi fácil para uma antropóloga que, embora busque sempre pensar seu

244
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

lugar em campo e suas relações com ele, tem como enfoque de pesquisa
trajetórias de outras pessoas e não a sua. Deslocar o foco para mim foi
um exercício extremamente rico para uma reflexão mais aprofundada não
apenas sobre meu lugar em minha pesquisa atual, mas também sobre meu
processo de formação de modo mais amplo e suas conexões com fenôme-
nos sociais e políticos.
Foram três os principais marcos que selecionei para narrar como
formadores em minha trajetória: a relação com a leitura construída na in-
fância, a preparação para o vestibular na adolescência e as questões so-
bre identidade e território provocadas pela faculdade na vida adulta. São
memórias vasculhadas, sentimentos desengavetados, projetos revisitados,
enfim, narrativas que devem ser pensadas a partir da perspectiva de que
“toda história contada é, por definição, interpretativa e que uma grande
parte de nosso trabalho de análise consistirá em desvelar as pré-interpre-
tações contidas nas suas ‘descrições dos fatos’ da vida” (JOSSO, op.cit., p.
428). Por isso penso nos relatos que escolhi trazer como mitos fundadores
do meu processo de formação em seus diferentes momentos. Há muitos ou-
tros nas entrelinhas, mas se esses vieram com cores mais fortes nesse auto-
-retrato que busquei pintar certamente não foi por acaso. Foi preciso, então,
acolhê-los, abraçando certas emoções que já não me vestem mais, ao mesmo
tempo em que são constitutivas da pessoa e da pesquisadora que sou hoje.
Como se revelou no texto, por muito tempo precisei acreditar em
lógicas meritocráticas para ter motivação para seguir em um caminho em
que tudo ao redor indicava não ser para mim. Me convenci e fui conven-
cida de que era preciso sofrer, me sacrificar, me isolar para conquistar um
objetivo. Estive constantemente lembrando à menina da Garganta do Dia-
bo que era preciso sonhar, mas sem nunca tirar os pés do chão, pois a vida
era dura, pesada, sempre. O quanto disso ainda não me veste como a roupa
mais íntima? Sutiã desses de aro apertado, difícil de tirar… Mas narrar minha
história é também uma oportunidade de refletir sobre o que está para além
de mim, religando os pontos para a compreensão de que “nossas existencia-
lidades em movimento são em certos períodos históricos mais fortemente
atingidas pelos efeitos desestruturadores de mudanças sociais, econômicas
e/ou políticas” (JOSSO, Ibidem, p. 416). Nesse sentido, pensar sobre minha
trajetória é pensar também sobre um momento histórico no Brasil em que
certos campos de possibilidades (VELHO, 1994) se alargaram.
Não é possível compreender as tramas do meu processo de forma-
ção ao longo da vida sem reconhecer que elas foram diretamente afetadas
por políticas públicas. Desde da minha entrada em um pré-vestibular co-
munitário e gratuito, a minha passagem como cotista pela universidade,
meu ir e vir pela cidade a partir do recebimento de bolsas - de auxílio ao
estudante, iniciação científica, extensão, mestrado e doutorado - sem es-

245
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

quecer também da minha identificação com coletivos culturais de favelas


e periferias em um momento de maior investimento em editais e políticas
culturais no Brasil. E, para dar lugar a tudo isso, eu precisei e pude me dar
ao luxo de deixar de trabalhar por um período da minha vida para estudar,
isso em um contexto de crescimento econômico, quando estava em alta o
consumo das chamadas classe C e a barraca de camelô da minha mãe tinha
relativo sucesso nas vendas, garantindo uma vida um pouco mais confor-
tável para nossa família.
Os tempos hoje são outros e muito mais áridos para quem vem de
lugares como aqueles de onde eu vim. Temos o desafio de não deixar se
perder o que já foi conquistado, semeando futuros melhores para as próxi-
mas gerações e para nós mesmos. As histórias de vida podem ser grandes
aliadas nesse processo, desde que explorado seu potencial como mediado-
ras de reflexões sobre o indivíduo e suas relações em sociedade. A narração
da vida é uma ficção baseada em fatos reais, como afirma Josso (op.cit.), e
a partir dessa “invenção de si”, da qual fala a autora, podemos também
reinventar, não apenas a nós mesmos, mas também ao nosso entorno. Eis
aí um grande desafio.

Considerações finais
Com o objetivo de contribuir para a reflexão em torno das transfor-
mações provocadas pela expansão do ensino superior no Brasil, revisitamos
neste artigo nossas histórias de vida, tendo como inspiração o método da
pesquisa formação e o diálogo com perspectivas teóricas e metodológicas
dos campos das ciências sociais e dos estudos decoloniais. Esse processo
evidenciou algumas questões para as quais gostaríamos de chamar atenção.
A primeira delas é que o acesso à universidade deve ser pensado para
além da simples entrada de novos perfis de estudantes e que estes devem
ser compreendidos em sua heterogeneidade, não apenas em termos so-
cioeconômicos, mas também em suas dimensões simbólicas e subjetivas.
Como revelam nossas trajetórias, houve um encontro entre momentos
biográficos marcantes e nossos repertórios de vida acumulados com no-
vos contextos e experiências provocados durante a formação universitária.
Isso se revelou na centralidade dos nossos locais de moradia e das nossas
origens familiares para a construção de relações com pessoas e espaços e,
consequentemente, para a criação de vínculos e de novas formas de viver a
cidade e a universidade. Trata-se de uma via de mão dupla na qual o fluxo
entre territorialidades e identidades foi fundamental, o que, inclusive, me-
receria ser mais discutido em outras reflexões, já que neste artigo não nos
aprofundamos no debate sobre identidades.
Esse processo foi provocador também de interesses em temas de pes-
quisa que atravessam nossas histórias de vida e, com eles, de reflexões so-

246
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

bre nossos lugares enquanto pesquisadoras na relação com nossos campos


de estudo. Somos, afinal, parte deste novo público universitário que trouxe
e continua trazendo “consigo suas realidades sociais, suas experiências ra-
cializadas (e incluímos aqui as sociais e de gênero) e, com elas, seus anseios
por representação teórica e epistemológica” (2018, n.p.). Uma verdadeira
democratização do acesso à graduação e à pós-graduação, o apoio à per-
manência das pessoas de maior vulnerabilidade socioeconômica durante a
formação e o combate às desigualdades relacionadas à estratificação ho-
rizontal do ensino superior têm o potencial de mudar “a cara” da ciência
brasileira e da sociedade de maneira mais ampla20.
Gostaríamos ainda de destacar algo que se revelou em diferentes
momentos do texto: a importância do processo de formação ser pensado de
modo amplo, para além da sala de aula, pois a entrada na universidade re-
presenta também a descoberta de novos mundos e uma redescoberta de si
a partir do contato com universos muitas vezes distantes. Diante disso, são
fundamentais políticas públicas que garantam o ir e vir e o desenvolvimen-
to criativo de estudantes que partem de condições menos privilegiadas.
Como revelam nossas histórias, é essencial haver as mais diversas bolsas
de pesquisa, projetos de extensão, infra-estrutura (restaurantes universitá-
rios, salas de estudo com computadores etc), enfim, espaços e iniciativas
que considerem as diferenças sociais dentre os discentes e favoreçam sua
permanência na universidade.
Ao mesmo tempo, parece importante também haver a construção de
espaços acolhedores que permitam o compartilhamento de dificuldades
que refletem aspectos sociais e pessoais de cada indivíduo. A partir da
escrita deste artigo, pudemos experimentar a potência desse tipo de troca.
Como afirma Josso (op.cit., p.421), “a apresentação e a escuta de histórias
introduz uma dialética de identificação e de diferenciação que alimenta o
questionamento sobre seu próprio percurso e, consequentemente, o ques-
tionamento do percurso dos outros”. Foi a partir daí que pudemos reelaborar
neste texto dificuldades que nos acompanham (ou acompanharam) em nos-
sas trajetórias acadêmicas, como o sentimento de inferioridade, o medo da
escrita e a reprodução de padrões de trabalho e estudo marcados pela lógica
do sacrifício e do esforço extenuante. Falar dessas questões, algumas delas
até traumáticas, foi a forma que encontramos de contribuir para a criação
deste espaço de partilha, dentro e fora do ambiente acadêmico.
Este exercício também mostrou o quão rico é encontrar fontes com
as quais dialogar, tanto dentro quanto fora da academia. A literatura, neste

20 A pesquisadora trata especificamente dos efeitos da entrada de mais pessoas negras no ensino superior na
produção do conhecimento. Aqui, nos baseamos neste trabalho para ampliar o escopo da análise de Medeiros e lançar
a hipótese de que as experiências relacionadas à origem social e ao gênero também podem impactar as escolhas e
posicionamentos teóricos e epistemológicos de pesquisadores e pesquisadoras, como de estudantes.

247
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

caso científica, não serve apenas para validação do trabalho diante dos pa-
res; ela é também uma importante aliada ao fornecer repertórios que ajudam
a articular o complexo processo de produção do conhecimento. Ademais, ela
pode abrir a possibilidade para outras leituras da realidade social.

Referências

ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La frontera: The new mestiza. San


Francisco: Spinsters/Aunt Lute, 1987.
ARTES, Amélia e MENA-CHALCO, Jesús. Expansão da temática relações
raciais no banco de dados de teses e dissertações da CAPES. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 1221-1238, out./dez., 2017.
CARVALHAES, Flavio; RIBEIRO, Carlos Antônio Costa. Estratificação
horizontal da educação superior no Brasil: desigualdades de classe, gênero
e raça em um contexto de expansão educacional. Tempo social, v. 31, n. 1,
p. 195-233, 2019.
COSTA, Camila. 5 mapas e 4 gráficos que ilustram a segregação racial
no Rio de Janeiro. BBC Brasil, 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/
portuguese/noticias/2015/11/151109_mapa_desigualdade_rio_cc. Acesso em:
8 mar. 2021.
DA SILVA, Amanda Alves; ARAÚJO, Janja. A importância da política
de cotas para o avanço dos estudos de gênero a partir das perspectivas
decoloniais no Brasil. Revista Desigualdade & Diversidade, n. 18, p. 105-
123, 2020.
DE AQUINO, Elis. “Réformer l’école pour transformer la société. L’éducation
territorialisée de jeunes et adultes dans la favela de Manguinhos”. Cahiers de
la recherche sur l’éducation et les savoirs, 19, 2020.
ENNE, Ana Lúcia. Lugar, meu amigo, é minha Baixada: memória,
representações sociais e identidades. Tese (Doutorado em Antropologia
Social)–PPGAS/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2002.
FREIRE, Jussara. Problemas Públicos e mobilizações coletivas em Nova
Iguaçu. 1. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.
GOMES, Nilma Lino. A força educativa e emancipatória do Movimento
Negro em tempos de fragilidade democrática. Revista Teias, v. 21, n. 62,
p. 360-371, 2020.
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Entrevista com Carlos Hasenbalg.
Tempo social, v. 18, n. 2, p. 259-268, 2006.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas,
SP, n. 5, p. 7–41, 2009.

248
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

HOOKS, bell. Teaching to transgress. Education as the Practice of


Freedom. Routledge, p. 216, 2014.
IBGE. Aglomerados Subnormais 2019: Classificação preliminar e
informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19. 2020. Disponível
em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_notas_
tecnicas.pdf Acesso em: 4 mar. 2021.
JELIN, Elizabeth; MOTTA, Renata; COSTA, Sérgio (Ed.). Global Entangled
Inequalities: Conceptual Debates and Evidence from Latin America.
Routledge, 2017.
JOSSO, Marie Christine. A transformação de si a partir da narração de
histórias de vida. Educação, v. 30, n. 63, p. 413-438, 2007.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina: contos / Clarice Lispector.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LORDE, Audre. The transformation of silence into language and action.
Identity politics in the women’s movement, p. 81-84, 1977.
MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003.
MEDEIROS, Priscila Martins. A produção sociológica na área de Relações
Raciais: uma análise teórico-metodológica das pesquisas brasileiras
(2001-2017). 42o Encontro Anual da ANPOCS. GT 28 - Relações Raciais:
Desigualdades, Identidades e Políticas Públicas. 2018.
MELO, Renata da Silva. A notícia por quem vive: um olhar antropológico
sobre a comunicação comunitária a partir de uma experiência da Cidade
de Deus. Rio de Janeiro, 2017. Dissertação (Mestrado em Sociologia e
Antropologia)- Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
MELO, Renata da Silva. A periferia como futuro: o cinema em tempos de
pandemia visto a partir da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Critical
Reviews on Latin American Research, v. 9, 2021.
RISTOFF, Dilvo. O novo perfil do campus brasileiro: uma análise do
perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação: Revista da
Avaliação da Educação Superior (Campinas), v. 19, n. 3, p. 723-747, 2014.
TELLES, Vera. Trajetórias urbanas: fio de uma descrição da cidade. In:
CABANES, R. TELLES, V. (orgs.). Nas tramas da cidade: trajetórias
urbanas e seus territórios. São Paulo: Humanitas, 2006.
VALLADARES, Lícia do Prado. A Invenção da favela: do mito de origem a
favela. com. Rio de Janeiro: FGV, 2005. 204 p.
VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (orgs.). Pesquisas urbanas: desafios
do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

249
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

VELHO, Gilberto. “Observando o familiar”. In: Individualismo e cultura:


notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1980.
VELHO, G. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades
complexas. 1. ed. Rio de Janeiro, 1994.

250
CAPÍTULO 11

NARRATIVA(S), IMAGINAÇÃO
E CONHECIMENTO EM DUAS
EXPERIÊNCIAS DE REALIZAÇÃO
AUDIOVISUAL

Clarisse Maria Castro de Alvarenga (UFMG)


Ana Paula Soares da Silva Gomes (UFMG)

Introdução
A proposta deste trabalho é aproximar as experiências de realização
de dois filmes dirigidos pelas autoras, ambas educadoras. Primeiramente
vamos tratar do filme Homem-peixe, de Clarisse Maria Castro de Alva-
renga (HOMEM-PEIXE, 2017) e, em seguida, de Um desenho, várias emo-
ções, de Ana Paula Soares da Silva Gomes (UM DESENHO..., 2020). Não
se trata de subsumir as diferenças entre eles, mas de promover um diálogo
entre os saberes produzidos em seus processos de criação.
Nas duas experiências, cada uma ao seu modo, o cinema e a educação
são fundamentais. Nesse sentido, o aspecto que associa os dois trabalhos é a
busca por criar espaços e tempos de escuta e observação das narrativas dos
sujeitos envolvidos nos processos (BENJAMIN, 1994). As autoras se colocam
a escutar e observar no ato da filmagem a maneira como os próprios sujeitos
escutam e observam eles(as) próprios(as) o mundo, assegurando um espaço
de comunicação em que a experiência estética é fundante e constitutiva das
relações e do conhecimento que se produz por meio dos filmes.
Homem-peixe (HOMEM-PEIXE, 2017) acompanha a maneira sin-
gular como o agricultor Juscelino acessa um conhecimento baseado nas
qualidades sensíveis de sua percepção sobre o mundo e na escuta das pes-
soas com quem se relaciona. No ano de 2009, fizemos uma viagem em que
ele, prestes a completar 50 anos de idade, aceitou o nosso convite de, pela
primeira vez, deixar a família e o espaço da comunidade onde vive no Nor-
te de Minas Gerais e ir até o litoral da Bahia para ir ao encontro de um
novo espaço então desconhecido: o litoral da Bahia.

251
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Já a experiência de realização de Um desenho, várias emoções (UM


DESENHO... 2020) está voltada para um outro espaço: a biblioteca de uma
escola pública em Belo Horizonte. Por meio do filme, quatro educadoras
se põem a narrar suas histórias de vida que se entrelaçam com a história da
escola. A motivação para que a conversa entre elas acontecesse partiu da
observação de um quadro feito por estudantes no qual está desenhada com
giz de cera a escola na época de sua fundação. As falas que elas endereçam
ao filme são fruto do convívio cotidiano na escola e foram motivadas pela
rememoração que o quadro provoca quando colocado em cena ao lado de
cada uma delas.
Mas, antes de passar à abordagem dos filmes pretendemos apresen-
tar algumas considerações sobre a relação entre as imagens e as narrativas.
Ao final, pretendemos encaminhar uma discussão que envolve a produção
de um conhecimento pela imaginação (HUBERMAN, 2013). Nossa propos-
ta é mostrar como seria possível criar, com o cinema, um espaço e um tem-
po para a escuta e para um conhecimento baseado nas qualidades sensíveis
nos espaços da educação, da arte e da cultura.

Narrativa e imagem
Em Narradores – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov,
Walter Benjamin faz uma defesa acerca das potencialidades da narrativa.
Logo na abertura do artigo, sentencia-se que a figura do narrador não es-
taria mais presente entre nós. “A arte de narrar está em vias de extinção
[...] São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente”
(BENJAMIN, 1994, p. 197), afirma. “É como se estivéssemos privados de
uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de inter-
cambiar experiências” (BENJAMIN, 1994, p. 198).
Depois de lamentar o fim da narração, Benjamin opõe a arte de narrar
a duas outras estilísticas que interferem na trajetória da narração ao longo
dos tempos, a saber, o “romance” e a “informação”. Em relação ao romance,
demonstra que ele se estabelece a partir de um estatuto vernacular e se ba-
seia na necessidade de isolamento de um sujeito, que parece não poder falar
sobre suas próprias experiências, estando impossibilitado de dar ou receber
conselhos. Diferentemente, a narrativa reitera a aposta na possibilidade de
comunicação da experiência entre os que narram e os que o escutam. Ape-
sar de representar pouco do ponto de vista da historiografia da literatura,
na qual o romance tem lugar destacado, o fim das narrativas é bastante sig-
nificativo, na concepção benjaminiana, pois está identificado com o fim da
possibilidade de ouvir e o desmanche das comunidades de ouvintes.
Sobre a informação, Benjamin diz que ela nos chega sempre acom-
panhada de explicações e de uma necessidade de verificação e compreen-

252
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

são imediatas, ao passo que a arte da narrativa está em evitar explicações,


o que permite, por outro lado, que o extraordinário e o miraculoso este-
jam ali presentes de forma precisa. Haveria na narrativa, portanto, uma
liberdade de interpretação da história que amplia a sua possibilidade de
ressonância para além do terreno controlado da informação. “Se a arte da
narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável
por esse declínio” (BENJAMIN, 1994, p. 203).
O texto de Benjamin acaba funcionando, a despeito das intenções do
próprio autor, como um ensaio de afirmação da narrativa e de suas poten-
cialidades visto que são levantadas várias pistas que demarcam caminhos
que podem nos levar de volta às narrações nos dias de hoje. Afinal, a his-
tória não é linear e não avança apenas em uma única direção. No caso dos
filmes que iremos abordar, as narrativas são fundamentais para tecer um
espaço comum de troca das experiências sensíveis entre os sujeitos envol-
vendo o diálogo entre diferentes saberes (tradicionais e científicos).
Robert Stam e Ella Shohat no livro Crítica da Imagem Eurocêntrica
(2005) nos dizem que no momento em que as grandes histórias ocidentais
já foram contadas e recontadas ao infinito precisamos nos perguntar: “pre-
cisamente a narrativa de quem é a história de quem estão sendo declaradas
findas? A Europa hegemônica deve claramente ter começado a esgotar seu
repertório estratégico de histórias, mas os povos do Terceiro Mundo e as
minorias do Primeiro Mundo apenas começaram a contá-las e a descons-
truí-las” (STAM; SHOHAT, 2005, p. 355).
Acreditamos que essa indagação seja pertinente por apontar para a
possibilidade de investir sobre as narrativas tendo em mente a busca por
outros pontos de vista. Na concepção de Shohat e Stam, o que está em jogo
no contexto contemporâneo é justamente a necessidade de emergência de
outras histórias, histórias que ainda não estejam roteirizadas dentro de um
cânone institucionalizado.
Neste sentido, podemos pensar que as qualidades da narrativa te-
riam muito a nos ensinar, visto que se estabelecem a partir de outras bases
distintas daquelas que sustentam as grandes histórias. As narrativas, por
exemplo, se guiam por vestígios que impregnam a experiência de quem as
viveu, daqueles que as relatam e daqueles que as escutam. Tanto é que até
mesmo as circunstâncias em que foram transmitidos os fatos que vão ser
contados interessam do ponto de vista do enredo da história e modificam
a forma como o narrador se movimenta dentro de seu próprio imaginário.
É justamente isso que nos permite depositar nas narrativas certa
responsabilidade de restabelecer um vínculo sensível do homem com o
mundo, dizer-lhe alguma coisa para além das coisas em si e da necessidade
que ele mesmo inventou modernamente de controlá-las ou administrá-las

253
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

através da informação. Aqui podemos retomar Benjamin, que, usando pa-


lavras de Leskov, nos diz o seguinte:
[...] os planetas recém-descobertos não desempenham mais ne-
nhum papel no horóscopo, e existem inúmeras pedras novas,
todas medidas e pesadas e com seu peso específico e sua densi-
dade exatamente calculados, mas elas não nos anunciam nada e
não têm nenhuma utilidade pra nós. O tempo já passou em que
elas conversavam com os homens (BENJAMIN, 1994, p. 210).

A experiência de um filme não precisa se restringir à possibilidade


de captar o conteúdo contado pelos sujeitos tendo o objetivo de trans-
mitir essas informações ao espectador de cinema ou de fazer da história
ordinária das pessoas uma grande história romanceada sempre a partir
de nossas próprias ficções já roteirizadas, como diria Jean-Louis Comolli
(2001, p. 99-108). É possível fazer com que o papel de intermediar essas his-
tórias, provocar a passagem delas para a linguagem audiovisual, em última
instância, traduzi-las, seja a própria motivação que move a experiência de
realização audiovisual.
Dentro dos campos da literatura e da história, a oralidade sempre foi
uma questão controvérsia. O pensamento eurocêntrico, historicamente,
relacionou a escrita com a interpretação histórica dita verdadeira, com o
documento. Shohat e Stam chamam atenção para as duas chaves que en-
volvem, de um lado, o escrito, o sublime, o sério, o científico e o histórico
e, do outro, a oralidade, o atraso, o frívolo e o irracional.
Diversos cineastas refletiram sobre a importância da narração e do
relato oral em seus filmes que de certa forma chamam para si a responsa-
bilidade de registrar a memória de povos silenciados, conseguindo como
contrapartida revitalizar a escrita do próprio cinema. Podemos locali-
zar na obra de Jean Rouch, de Pierre Perrault, de Eduardo Coutinho, por
exemplo, a preocupação em conduzir narrativas orais para o contexto cine-
matográfico. Aliás, posicionamento, contrário do que faz Hollywood, em
geral interessado em transmitir sempre uma versão livresca das histórias,
baseando muitos filmes em adaptações literais de livros.
Outro aspecto interessante é que as narrativas dependem de uma
temporalização da experiência vivida e da própria experiência de relatar.
A duração permeia tanto o processo de empreender a narrativa quanto o
processo da escuta. É por isso que Benjamin contrapõe as narrativas às
short storys.
Ao invés das short storys que em geral são contadas em vídeo
através dos cortes rápidos, da ausência de extra-campo, o que
as narrativas nos propõem é uma possibilidade das histórias se
constituírem a partir da lenta superposição de camadas finas

254
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

e translúcidas que representa a melhor imagem do processo


pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroa-
mento das várias camadas constituídas pelas narrações suces-
sivas” (BENJAMIN, 1994, p. 206).

Não pretendemos sugerir aqui que a narrativa seja uma forma pura
ou genuína de relato pois sabemos que os narradores desenvolvem artifí-
cios para manter a atenção dos ouvintes sempre alerta. As narrativas nos
interessam inclusive por esse seu caráter mestiço, híbrido e hipertextual.
Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1966), já havia dito da
necessidade de verificarmos a riqueza das figuras de linguagem usadas
fora do contexto e do tempo onde a língua está devidamente constituída.
As figuras de linguagem não são o efeito de um refinamento
de estilo; traem, pelo contrário, a mobilidade própria de toda a
linguagem, que é espontânea: ‘empregam-se mais figuras num
dia de mercado nas Halles do que em vários dias de assem-
bléias acadêmicas’. É muito provável que esta mobilidade seja
mesmo muito maior na origem do que presentemente: hoje,
a análise é tão fina, o reticulado tão cerrado, as relações de
coordenação e de subordinação tão bem estabelecidas que as
palavras quase não têm oportunidade de sair do seu lugar”
(FOUCAULT, 1966, p. 160).

É justamente essa mobilidade dos elementos expressivos, sugerida


por Foucault, que observamos na estrutura narrativa das falas dos sujeitos
que participam dos dois filmes. Um outro ponto importante é o fato dessas
narrativas, por meio da experiência do registro audiovisual, serem traduzi-
das sob a forma de imagens.
O artista indígena Denilson Baniwa reconhece que povos que trans-
mitiram seus conhecimentos via oralidade estão hoje buscando registrar
esses mesmos saberes por meio da imagem. Por isso nota-se uma busca
dos povos ameríndios e afro-brasileiros por registrar seus conhecimentos
e experimentar a linguagem audiovisual nos últimos tempos.
[...] a gente primeiro parou de falar com as plantas, depois dei-
xou de falar com os animais, e aí eles também não compreen-
deram mais a gente. Aí quando chegou até o ponto em que a
gente não falava com mais ninguém, só falava com humano,
a gente começou a não falar com outros humanos também.
Aí os brancos não falam com os negros, não falam com os
asiáticos. Aí quando todo mundo parou de se falar enquanto
etnia, a gente começou a parar de se falar entre nós mesmos
(BANIWA, 2019).

255
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Ao lançar esse olhar sobre as novas formas de transmissão de co-


nhecimento e se perguntar sobre o lugar da imagem nesse processo, ele
levanta uma questão importante: se as pessoas param de conseguir con-
versar entre elas é porque elas já haviam perdido também a oportunidade
de conversar com os animais, com as plantas, com seres de outras espécies.
E, por sua vez, se os seres humanos pararam de escutar as outras espécies
isso faz com que as demais espécies também parem de escutá-los.
Um dos grandes desafios que se coloca tanto para o cinema quanto
para a educação é exatamente como ser um lugar de emancipação, como
defende Paulo Freire (1975), em que narrações que foram silenciadas e apa-
gadas possam transcorrer livremente, sem reiterar os mecanismos colo-
niais da opressão.

A experiência de homem-peixe

Figura 1 - Homem-peixe

Foto: Homem-peixe (2017).

Em Homem-peixe (HOMEM-PEIXE, 2017), buscamos identificar


formas de invenção por meio do cinema em que o vínculo com o outro
não passe apenas pelas tentativas de captura, de dominação, de controle,
de domínio, de violência ou pura e simplesmente de manifestação de po-
der. Sabemos muito bem por conta de toda a nossa tradição colonial - não
custa lembrar –, extremamente presente ainda nos dias de hoje em nosso
país, que a invasão do território do outro, sua dilapidação, a expulsão de
seus entes e, no limite, seu extermínio são formas de aproximação que nos
são oferecidas como modelos cotidianamente não apenas pelos coloniza-
dores, mas também pelos fazendeiros, pelos proprietários de terra, pelos
empresários, pela comunicação corporativa, pelo Estado e, em alguma me-
dida, até mesmo pelo próprio cinema.

256
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

A atenção às formas de aproximação ao território do outro se mani-


festa, primeiramente, na atuação do protagonista no filme. Em 2009, con-
videi Juscelino Rocha de Alkmim, agricultor negro, habitante do Norte de
Minas Gerais, então com 48 anos de idade, para fazer uma viagem rumo
ao litoral brasileiro. Ele nunca havia saído do território onde nasceu e vive
até os dias de hoje, mas tinha curiosidade para conhecer o estado da Bahia
em função de um laço ancestral, sua bisavó Abila Rocha tinha vindo de lá.
Ele então deixa a pequena comunidade do Sítio localizada nas proxi-
midades da cidade de Bocaiúva e conhece o mar. Profundo conhecedor do
seu território, Juscelino sabe das rezas, dos cantos, das festas, das plantas,
das águas, dos animais, do plantio e também das narrativas tradicionais
de seu povo. Quando chegou ao litoral da Bahia, ele procurou se apro-
ximar dos elementos naturais (observar o mar e perceber suas alterações
da maré), dos peixes, das conchas, dos pássaros, e em igual medida ele se
aproximou dos moradores, interrogando-os e escutando-os sobre aspectos
que chamavam sua atenção naquele território. A busca de Juscelino duran-
te as três semanas em que estivemos nesse novo território foi, reiterada-
mente, uma busca por conhecer esse espaço, por meio do contato com seus
mais diferentes elementos.
E foi a partir dos encontros de Juscelino com esse outro território
que o filme se realizou, seguindo os passos do personagem, acompanhan-
do-o, observando-o, escutando-o, descobrindo esse território junto com
ele. É no encontro com o outro território ou com o território do outro que
Juscelino deixa seu próprio território e se abre a uma experiência que até
então desconhecia. Ao longo do filme, Juscelino observa, escuta, pergunta,
tateia, procura estabelecer comparações entre o que ele conhece e o novo
que a ele se apresenta; chama atenção para detalhes nos elementos encon-
trados aqui e os compara com aqueles que conhece lá em sua terra.
Ao se deparar com um outro território e desejar conhecê-lo, ele nos
oferece a sua própria percepção (o gosto da água, a aparência colorida dos
peixes, os sons dos pássaros, o peso da areia). Enquanto percebe, usando
todos os sentidos de que dispõe, ele tenta traduzir essa experiência, usan-
do sempre seu corpo para efetuar a tradução.
Em Xamanismo e tradução, Manuela Carneiro da Cunha (2009) rei-
tera a ideia de que todo xamã seja um tradutor. Primeiramente, ela mostra
que a tradução não é uma tarefa de simples arrumação, “de guardar o novo
em velhas gavetas”, mas envolve um “remanejamento” (2009, p. 107). Em
seguida, ela faz referência ao fato de o xamã observar sob todos os ângulos,
examinar minuciosamente e se abster, em princípio, de nomear o que vê
por meio da linguagem ordinária. Para se expressar, ele suprime a lingua-
gem ordinária, substituindo-a por “palavras torcidas”, cujo uso é sempre
figurado e aproximativo, mas nunca direto. “Como se escrutasse por apal-

257
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

padelas, como se abordasse um domínio desconhecido cujos objetos só se


deixam ver parcialmente, o xamã adota uma linguagem que expressa um
ponto de vista parcial” (2009, p. 108).
A esfera de competência do xamã é, portanto, essa tentativa sem-
pre fracassada e, no entanto, inevitavelmente recomeçada de reconstrução
do sentido, de estabelecer relações, de encontrar íntimas ligações, pon-
tes, reverberações, aqui e ali, entre os mundos díspares, sem dissolver suas
diferenças. Nesse sentido, guardadas as diferenças, sua prática de tradução
poderia ser aproximada a de Juscelino.
No filme, a tentativa da tradução é colocada em cena pela própria
exposição em imagem da percepção de Juscelino nalgumas vezes e em ou-
tras pela tentativa mesma de colocar a diferença em palavras, de tentar
nomeá-la, o que nunca acontece diretamente. Ao traduzir, de uma maneira
ou de outra, ele se torna narrador do filme, assumindo para si a tarefa de
traduzir o território que visita.
Não exatamente durante o deslocamento da viagem, mas nesses en-
contros com elementos heteróclitos, detalhes aqui e ali, um por um, que ele,
ao mesmo tempo, dá a ver e a imaginar o seu próprio território e se dester-
ritorializa. A partir daí, percebe-se também, em contrapartida, um esforço
dele para se reterritorializar. Esse movimento que parte do território, pas-
sa pela desterritorialização e pela posterior reterritorialização identifica a
própria narrativa do filme, extensivamente, na sua montagem. Se do ponto
de vista da cena, busca-se mostrar a percepção de Juscelino sobre a diferença
e as tentativas de traduzi-la, do ponto de vista da montagem do material fil-
mado, o que está em jogo é essa passagem de um território a outro.
Um exemplo de como esses três momentos do território e da narração
do filme se articulam é a chegada de Juscelino na praia. Ele apresenta in-
teresse pelos coqueiros que encontra, quer conhecer, saber os tipos de
coco que eles produzem, nota as diferenças em relação à vegetação de seu
território e, ao final, leva uma muda de coqueiro que ele planta ao retornar
para casa novamente. Ou seja, de forma bastante concreta ao observar os
coqueiros e querer conhecê-los ele se desterritorializa da geografia que
conhece, afinal o coqueiro é muito diferente das árvores com as quais ele
convive. Mas, decide levar uma muda do coqueiro para casa e assim que re-
torna, no dia seguinte, planta a muda ao lado de sua casa, onde hoje ainda
está alto e produzindo cocos.
Seja de uma forma ou de outra, ao invés de seguir pela trilha gasta dos
invasores, dos destruidores, dos exterminadores, ou seja, de todos aqueles
que pretendem eliminar o território do outro, a opção pela narração e pela
tradução envolve uma crença na necessidade da manutenção dos territórios
e de sua relação na diferença. A manutenção dessas diferenças gera a possi-
bilidade da escuta e da observação e também a necessidade de produção de

258
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

um conhecimento que coloca em diálogo saberes tradicionais e científicos a


partir da experimentação sensível dos espaços e seus elementos.

A experiência de um desenho: várias emoções

Figura 2 e 3 - Imagens de desenhos feitos por crianças na Biblioteca Menino


Maluquinho

Fonte: Um desenho... (2020).

Passando ao contexto escolar, podemos pensar que a escuta é algo


essencial no processo de ensino-aprendizagem. Estudantes não apren-
dem sem ouvir instruções, seja em Libras, língua portuguesa ou língua
estrangeira moderna. Tampouco se integram na dinâmica estudantil sem
compreender as mensagens de diretores, bibliotecários, cantineiras, fun-
cionários da limpeza e outros integrantes da organização escolar. Alunas
e alunos também não podem progredir na arte da convivência sem escutar
os colegas, vozes também dotadas de valor e sabedoria. O mesmo se aplica
nas pesquisas em educação, sobretudo nas pesquisa-ação, em que o pes-
quisador produz pesquisa e intervenções no mesmo campo em que exerce
suas funções laborais.
O exercício da pesquisa-ação em ambientes de educação exige do
pesquisador a escuta sensível como premissa básica, pois se a primeira vis-
ta, o local e os sujeitos da pesquisa fazem parte do universo laboral do pes-

259
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

quisador, por outro, desvelar novas nuances desse local e desses sujeitos,
requer mais do que ouvir. Requer despir-se de ideias pré-concebidas e em
certa medida abrir-se para o outro. Educadores precisam também escutar.
Não apenas os pares, responsáveis ou as vozes oriundas de posições hie-
rárquicas superiores. É preciso escutar quem tradicionalmente é pensado
para ocupar a posição de apenas escutar, crianças e adolescentes sentados
em bancos escolares. E é preciso uma escuta outra, atenta e sensível, isto
é, disposta a saber de histórias de vidas, cosmovisões, dificuldades, dores,
alegrias, sonhos e conhecimentos. Escuta que aproxima, cria comunida-
des, constrói pontes e auxilia nas travessias.
É preciso mais que o reconhecimento das normas, das leis do
pensamento, das prescrições metodológicas, das estratégias
de controle do tempo e do espaço para entrar e sair das re-
lações de produção dos saberes em campo. É preciso o reco-
nhecimento dos saberes que atravessam nossos corpos e dese-
nham sob a nossa pele a memória sublime das sensibilidades
que aprendemos a cultivar, vivendo as diferentes situações de
estar com os outros . É preciso ler e reler as lições que nos
indicam a pesquisa como uma forma de proximidade conos-
co. Um processo de proximidade com os outros. Proximidades
que nos alteram conosco e com os outros. Através da experi-
ência em pesquisa constituímos, às vezes sem saber, saberes
estéticos expressivos que introduzem neste espaço (cheio de
restrições, repetições e configurações do mesmo) vivências do
extraordinário (PIMENTEL; ÁLAMO, 2016, p. 8).

A escuta sensível tem o potencial de estreitar vínculos que poderiam


se limitar apenas a relações burocráticas, distantes e regidas pelas hierar-
quias. Em outras palavras, a escuta com sensibilidade é ponto de encontro,
situação em que profissionais e estudantes, verdadeiramente, unem-se.
Foi nesta perspectiva da escuta sensível e atenta que realizei, na es-
cola em que trabalho há mais de doze anos na biblioteca, o documentário
Um desenho, várias emoções (UM DESENHO..., 2020). O documentário
faz parte da minha pesquisa no Mestrado Profissional em Educação e Do-
cência da Faculdade de Educação da UFMG. Os processos de gravação
e edição se deram entre os meses de setembro a dezembro de 2020 nas
oficinas do Laboratório de Práticas Audiovisuais (LAPA) da Faculdade de
Educação da UFMG. Em maio de 2021 o documentário foi finalizado.
No curta-metragem, quatro trabalhadoras da educação, Maísa Alves
de Oliveira, Maria das Graças Ribeiro, Selma Fátima da Cruz e eu, reve-
lamos diferentes percepções sobre a Escola Municipal Rui da Costa Val
(EMRCV) a partir de diferentes olhares para uma mesma obra: um dese-
nho em giz de cera, feito há vinte anos, mais precisamente em 2001, por

260
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

professoras e estudantes em comemoração ao aniversário de nove anos da


instituição. Desde 2001, o desenho encontrava-se em uma das paredes da
biblioteca Menino Maluquinho, tendo saído de lá por determinado tempo,
em função de uma grande reforma na escola, e voltando, alguns anos mais
tarde, depois de ter passado por um processo de revitalização por ocasião
dos 25 anos da EMRCV.
A história da Escola Municipal Rui da Costa Val, localizada na peri-
feria de Belo Horizonte, mescla-se com a história do bairro onde está lo-
calizada, o Jardim Felicidade, na região norte. A aquisição dos lotes pelos
moradores foi fruto de um intenso processo de luta por moradia própria
organizado pela Associação dos Moradores de Aluguel de Belo Horizonte
(AMABEL), com a liderança do Padre Piggi, no início da década de 80. As
famílias pioneiras chegaram ao bairro em 1985 com a distribuição da pri-
meira gleba de lotes que naquele momento tinha um critério específico:
atender as famílias com maior quantidade de filhos abaixo dos 14 anos de
idade. Após a conquista dos lotes e a construção das casas, os moradores
mobilizaram-se para buscar junto ao poder público condições para o bem
viver na comunidade, no tocante, especialmente, às questões de saúde pú-
blica, educação e outros serviços essenciais, como luz elétrica e água enca-
nada. Foi neste contexto, em 24 de março de 1992, que a Escola Municipal
Rui da Costa Val foi inaugurada.
Neste cenário de começos e lutas um grupo de professoras e estudan-
tes resolveu celebrar os nove anos da EMRCV e entregar um desenho de
presente para escola, em 2001. Um quadro colocado na parede, geralmente,
torna-se algo com que as pessoas se acostumam ao perder o caráter de novi-
dade. No caso de um trabalho artístico exposto na biblioteca de uma escola,
com mais de 500 estudantes, e que nela permanece por anos a fio, um pro-
cesso curioso parece ocorrer. É como se a facilidade de acesso a uma obra
visual, paradoxalmente, iniciasse um processo de invisibilização. A beleza
dos traços, a delicadeza do colorido, a autoria coletiva e o contexto histórico
da escola e do bairro na época da feitura do desenho tornam-se detalhes su-
pérfluos em meio a rotinas burocratizantes de ensino e gestão escolar.
Somando-se a isso todos os problemas enfrentados pela educação
pública e seus profissionais nos últimos anos, remetemo-nos a um cená-
rio de poucas possibilidades de aprendizagem a partir de experiências de
sensibilidade na escola e a consequente falta de um processo de em que a
escuta ativa, reflexiva e afetuosa entre os profissionais, ou entre estes e o
corpo discente, pois qualquer atividade diferenciada torna-se algo traba-
lhoso demais para ser efetivada no cotidiano escolar. Em sua narrativa, a
professora Maísa, responsável pela restauração do desenho, rememora o
cheiro do giz de cera na época do processo de revitalização e trata da re-
levância afetiva da trajetória autoral das pessoas envolvidas na feitura do

261
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

desenho e da importância de poder enxergar o outro para além dos regis-


tros burocráticos e sistemáticos da escola:
(...) E já tinha anos que eu não tinha contato com essa cartolina que é to-
talmente diferente das de hoje. É, o registro em giz de cera também não tem
como fazer nem parecido com ele mais, porque a cartolina a porosidade
dela é outra, o giz dele é outro, sabe? Então, ele mostra, assim, o poder da
Arte mesmo. Esse aqui não é um registro burocrático, sabe, esse aqui é a
essência mesmo que conseguiu ficar no papel. Então conhecer esses alunos
no diário de classe deles é uma coisa e conhecer eles por aqui, é outra -
(Maísa, professora de artes, 2019).

Para a gravação do documentário, o desenho foi retirado da parede e


colocado em uma mesa, na biblioteca da escola, local onde exerço há doze
anos meu trabalho. Ao lado do desenho, Maísa, Graça e Selma observam
os detalhes, falam da escola, das suas experiências pessoais na educação e
na vida, numa dimensão afetiva de sensibilidade, ao mesmo tempo em que
ressaltam os distintos desafios enfrentados por cada uma delas. A proximi-
dade com o desenho aproxima as mulheres de suas emoções, como se elas
tivessem olhando para ele pela primeira vez, em um tempo de contempla-
ção e reflexão que a rotina intensa de trabalho na educação frequentemen-
te não permite. A representação da escola estava ao lado de três mulheres
que contribuíram para construir a instituição.
A influência das questões políticas e sociais da nossa sociedade per-
passam as falas, tornando os relatos pessoais uma janela para compreensão
das mulheres e suas relações com a escola, os sonhos e o bairro. Em meio
à força quase poética das narrativas, ressalta-se a importância da educa-
ção pública numa comunidade recém- inaugurada, sobretudo para Graça
e Selma, que, de nós quatro, são as que possuem maior tempo de atuação
profissional na Escola Municipal Rui da Costa Val, ambas com mais de
vinte anos de serviços prestados na instituição. As duas situam a escola
numa ótica de luta, sublinhando, em suas falas, as conquistas ao longo do
tempo, tanto no bairro quanto na própria escola. A realização do docu-
mentário, mediada por um processo de produção audiovisual centrado na
amplificação de vozes reprimidas e no uso de narrativas que carregam os
afetos, revela outros aspectos da vida dessas mulheres que nos ajudam a
compreender questões de cunho sociocultural. Como salienta bell hooks:
Quando renovamos nosso interesse pelo lar, temos condições
de abordar as questões políticas que mais afetam nossa vida
diária. Ao ressaltar as habilidades e recursos de mulheres ne-
gras que tenham começado a achar que não possuem nenhu-
ma contribuição significativa para oferecer; de mulheres que
podem ou não ter educação formal, mas que têm saberes fun-

262
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

damentais para compartilhar; de mulheres que têm experiên-


cias práticas que funcionam como base de criação para toda
teoria que se mostra útil, podemos começar a nos relacionar
umas com as outras de maneira a renovar nossa solidariedade
- (HOOKS, 2019, p. 116).

Selma faz parte do primeiro grupo que conquistou um lote no bairro.


Chegou à escola também nos primeiros anos de sua inauguração e demons-
tra um sentimento de pertencimento e orgulho dos seus espaços de mora-
dia e trabalho, bem como dos laços afetivos construídos ao longo do tempo
e de poder ter conseguido dar vazão a suas expressões artísticas enquanto
ganhava seu sustento como auxiliar de serviços gerais. Ela reconhece a
representação estereotipada e negativa que o bairro recebe socialmente,
no entanto reconhece as potencialidades, exaltando em seus desenhos e
poesias a casa onde criou seus filhos e o quintal com árvores frutíferas.
Além de celebrar a trajetória pessoal, num processo de elaboração da ex-
periência por meio da poesia que exprime profundidade e singeleza, como
nos mostra com o poema autoral “Cantinho da Felicidade!”:
O cantinho de felicidade
No cantinho em que moro
Talvez ninguém queira morar
Não tem rua, nem calçada
Dá tristeza só de olhar
Olhando assim de primeira
Até dá para imaginar
Como pode alguém viver
Feliz nesse lugar
O lugar é deprimente.

Mesmo assim vivo contente


E falo para toda gente
Aqui é bom de morar
Apesar da casa modesta
Meu quintal é uma beleza
Todo coberto de árvores
Vivo em meio à natureza.

O cantinho onde moro


Tem histórias para contar
Dos filhos que eu criei
Das árvores que eu plantei
E de tudo que já passei
Dá para rir e para chorar.

263
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Em minha casa com minha família


Tem alegria, tem harmonia
Lá fora o canto dos pássaros
Em perfeita sinfonia
Tudo aqui é muito simples
Mas é pura poesia.

Agradeço de coração
A Deus e a quem quer que seja
Que me deu essa riqueza
O contato com a natureza
Só faz bem à minha cabeça
E é o que me dá inspiração.

Minha casa é bem modesta


Talvez de pouco valor
Mas dentro dela
Há felicidade
Construída com muito amor.
(Selma, artista e serviços gerais, 2019)

Por meio da escrita e do desenho Selma celebra sua moradia, suas


árvores, suas plantas, seus filhos e desvela a potência criativa de uma mu-
lher que aprendeu os caminhos da resistência pelas experiências de alteri-
dade proporcionadas pela expressão artística. Mesmo que implicitamente
Selma, com sua poesia e desenho, retrata o lugar em que mora e a escola
como são para ela: uma oportunidade. Oportunidade de moradia própria,
de escrever peças de teatro, de produzir poesias, de desenhar e de colocar
o pão na sua mesa. O ingresso na EMRCV fez emergir seus sonhos ador-
mecidos e trouxe a possibilidade de despertar subjetividades, por muito
tempo, reprimidas pelo contexto de desigualdades sociais:
A escola pra mim é uma grande oportunidade, além da oportunidade, mas
primeiramente foi, assim, providência divina. Entende? Providência divina
tanto do lado da necessidade mesmo do trabalho e também foi assim como
se Deus me presenteasse. Assim, de vir pra essa escola e ainda poder reali-
zar alguns de meus sonhos. Poder ter a oportunidade de trabalhar. E depois
que eu vim pra cá, graças a Deus, eu tive esse oportunidade: por um lado,
trabalho, e por outro, fazer aquilo que eu gosto. Porque em sempre gostei,
uma coisa assim que a Arte, por exemplo, quando a gente nasce com um
dom de fazer uma coisa, parece que a gente sente necessidade de fazer al-
guma coisa, sabe? De expressar, então quando eu faço alguma coisa, assim,
expressando a minha arte... a minha arte, ela é simples, é o meu natural.
Gosto de buscar bem lá de dentro do meu próprio eu, fazer, entendeu? Por

264
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

mais simples que seja, mas é com muito carinho, com muito amor que eu
faço e me sinto feliz cada vez que eu faço, eu sinto uma alegria assim por
dentro, eu sinto qualquer coisa - (Selma, artista e serviços gerais, 2019).

Assim como Selma, Graça, uma das professoras mais antigas da es-
cola, também traz à tona memórias de afeto e as adversidades de trabalhar
em uma comunidade e instituição ainda nos primeiros passos. A dimensão
da organização comunitária, bem como a incansável luta dos moradores
do bairro e dos profissionais da educação por melhoramentos na escola e
na comunidade aparecem em seu relato. Em certo ponto da conversa, Gra-
ça olha para a quadra representada no desenho sem o telhado que a cobre
hoje em dia e se recorda:
(...) sou apaixonada por essa escola, muito apaixonada e foi uma luta pra
conseguir, é, fazer essa quadra. Você vê que hoje ela já é coberta, né, na
época ela não era coberta. Era uma luta, né, no sol quente, com chuva não
podia, né, porque com chuva molhava tudo. É, não tinha arquibancada, né,
tão vendo aí que era grama, não tinha arquibancada, hoje é arquibancada,
né, mais o que? Ah, eu sei que dá uma lembrança, muito, muito gostosa,
porque foi uma luta pra gente conseguir o que está aqui - (Graça, profes-
sora alfabetizadora, 2019).

As experiências de criação na escola, com os devidos processos de


mediação para um direcionamento contra-hegemônico, inserem proces-
sos de deslocamento e questionamentos que ampliam os olhares da comu-
nidade escolar para sua própria realidade, fazendo emergir um ambiente
propício ao debate, questionamento, reflexão e ação para um movimento
de transformação que pode ser chamado de letramento audiovisual. Sendo
assim, o ato de retirar o quadro da parede em Um desenho, várias emoções
(UM DESENHO..., 2020) configuram-se como um movimento no sentido
de trazê-lo para mais próximo das pessoas e das experiências delas na Es-
cola Municipal Rui da Costa Val.
É uma espécie de “segunda revitalização” do desenho, pois a obra,
antes quase esquecida, agora é «aberta» para a análise e contemplação de
profissionais, despertando reflexões e sentimentos nelas, variando confor-
me as experiências de vida e de profissão de cada uma das entrevistadas.
Neste sentido, essa experiência, aproxima essas educadoras da narração de
suas experiências com a escola e com os demais elementos que constituem
suas subjetividades, numa perspectiva que valoriza os sujeitos de uma for-
ma integral no ambiente escolar.

265
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Figuras 4, 5 e 6 - As participantes do filme Maísa, Graça e Selma

Fonte: Um desenho... (2020).

Cinema e educação em diferentes territórios


Em que a experiência de Juscelino conhecendo um outro território
que até então desconhecia, como acontece em Homem-peixe (HOMEM-
-PEIXE, 2017), tem a ver com a experiência das quatro mulheres narrando
sua vida a partir do contato com um desenho feito por crianças de uma
Escola pública em Um desenho, várias emoções (UM DESENHO..., 2020)?
Primeiramente, ambos os trabalhos são formas de conhecer o mun-
do que estão profundamente vinculadas com a experiência sensível, com o
corpo. A maneira como Juscelino se aproxima da natureza e dos habitantes

266
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

do lugar onde visita coloca em questão sua percepção como se ele estives-
se a tatear esse espaço para conhecê-lo na tentativa sempre em processo
de traduzi-lo. Trata-se de um conhecimento que surge do tato e enfatiza
o caráter táctil dessa elaboração. No caso de Um desenho, várias emo-
ções (UM DESENHO..., 2020) também está em evidência uma maneira de
conhecer e construir um território que tem a ver com o caráter sensível
dessa experiência na escola. Não se trata de um conhecimento adquirido
nos livros, mas de um conhecimento que se produz no contato direto dos
sentidos com o mundo.
Usar a confissão e a memória como meios para nomear a reali-
dade permite que mulheres e homens conversem sobre experi-
ências pessoais como parte de um processo de politização que
posiciona tal conversa num contexto dialético. Isso nos permi-
te discutir sobre a experiência pessoal de uma forma diferente,
de uma maneira diferente, de uma maneira que politiza não só
a narração, mas também a narrativa. Ao teorizar a experiência
enquanto contamos narrativas pessoais, teremos um sentido
mais afiado e aguçado do objetivo que é desejado pela narra-
ção (HOOKS, 2019, p. 227).

O filme Homem-peixe (HOMEM-PEIXE, 2017) foi exibido em di-


versas ocasiões, seja no campo do cinema ou da educação. Nas várias con-
versas que se seguiram a essas exibições, o filme chamou atenção de seus
espectadores justamente sobre as qualidades sensíveis dos processos de
aprendizado e também para a necessidade de estabelecer diálogos entre os
saberes para se produzir conhecimento.
O ato de retirar o quadro da parede em Um desenho, várias emoções
(UM DESENHO..., 2020) configura-se como um movimento no sentido de
trazê-lo para mais próximo das pessoas e das experiências delas na Escola
Municipal Rui da Costa Val. É uma espécie de “segunda revitalização” do
desenho, pois a obra, antes quase esquecida, agora é “aberta” para a aná-
lise e contemplação de profissionais, despertando reflexões e sentimentos
nelas, variando conforme as experiências de vida e de profissão de cada
uma das entrevistadas. Neste sentido, essa experiência, aproxima essas
educadoras da narração de suas experiências com a escola e com os de-
mais elementos que constituem suas subjetividades, numa perspectiva que
valoriza os sujeitos de uma forma integral no ambiente escolar.
Portanto, um processo de mediação que contribua para a criação de
uma nova cartografia imagética decolonial, não pautada na legitimação
de uma suposta superioridade das nações do hemisfério norte , mas sim
no campo das experiências de alteridade emancipatórias e do letramento
audiovisual, pode passar pela escola, com a valorização e elaboração das

267
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

narrativas das pessoas que circulam por esse ambiente na construção de


uma comunidade de cinema envolvida num contexto em que o processo
de realização audiovisual seja uma experiência de ensino-aprendizagem
pautada na escuta sensível e no constante processo de questionamento das
representações imagéticas.
Nas duas experiências que apresentamos o encontro entre o ci-
nema e o mundo é ocasionado, privilegiando as qualidades sensíveis da
experiência. Trata-se de um pensamento construído mais com base no cor-
po e na experiência do que no intelecto e na razão e é nesse sentido que
se trata de um conhecimento que se contrapõe ao poder e às instituições.
Os processos que estão em curso nos dois trabalhos se aproximam da
ciência que Lévi-Strauss (1997, p. 32) prefere chamar de ciência primeira,
em vez de primitiva, pois não se compromete em fabricar os fatos com base
em estruturas pré-concebidas – hipóteses e teorias. Em vez disso, empre-
ga a bricolagem, procedimento que envolve a composição com elementos
heteróclitos, muitas vezes residuais, não havendo um objetivo último a ser
perseguido. O que está em jogo, finalmente, nesse “pensamento selvagem”
é o constante arranjo e rearranjo do mesmo objeto a partir de cada lance
de olhar que se lhe dirige.
A partir daí acreditamos que um conhecimento que esses filmes pro-
movem ou sugerem está voltado para uma relação com a imagem que é da
ordem da experiência sensível, dos afetos, da relação táctil com os objetos,
da escuta e da observação sensíveis e não apenas de um conhecimento que
se identifica com aquilo que a racionalidade é capaz de sistematizar. Nesse
caso, as imagens são experiências sensíveis que nos dizem do mundo na
medida em que nos proporcionam uma experiência com ele.
Justamente em função do caráter sensível dessa experiência seria
possível aproximá-la também aquilo que Didi-Huberman (2013) chama de
conhecimento pela imaginação. Para tanto, com Walter Benjamin, ele vai
evocar a seguinte fórmula: o ato de ler o que nunca foi escrito. Esse tipo de
conhecimento, que envolve a leitura antes de toda linguagem é algo que a
realização de filmes provoca.

Referências

BANIWA, Denilson. Upurandú resewara: entrevista com Denilson Baniwa.


Revista Usina, 2019. Disponível em: https://revistausina.com/artes-visuais/
upurandu-resewara-entrevista-com-denilson-baniwa/. Acesso em: 27 jun. 2021.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai
Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1987. p. 197-221.

268
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Xamanismo e tradução. In: CUNHA,


Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo:
Cosac Naify, 2009. p. 101-113.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a gaia ciência inquieta. Lisboa:
Imago, 2016. p. 11-70.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas – uma arqueologia das
ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1966.
HOOKS, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. São Paulo:
Elefante, 2019. 448 p.
HOOKS, Bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra.
São Paulo: Elefante, 2019. 380 p.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia
Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1997.
SILVA, Janice Anterio da Rocha; GOMES, Maria do Carmo (orgs.). Jardim
Felicidade: várias histórias em uma história. Belo Horizonte: O Lutador,
2013. 128 p.

Referências fílmicas

HOMEM-PEIXE. Direção: Clarisse Alvarenga. Bahia, Minas Gerais (Brasil).


2017. (70 min). Digital. Disponível em: https://embaubaplay.com/catalogo/o-
-homem-peixe/.
UM DESENHO, várias emoções. Direção: Ana Paula Gomes. Produção:
Laboratório de Práticas Audiovisuais da Faculdade de Educação da UFMG.
Belo Horizonte (Brasil). 2020. (21 min). Digital. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=Kp_8QOItKkA.

269
CAPÍTULO 12

UM COTIDIANO INSTÁVEL QUE SE ALIMENTA


DE ESPERANÇA: NARRATIVA DA DIRETORA DA
ESCOLA MUNICIPAL DE BENTO RODRIGUES

Marco Antonio Torres (UFOP)

Introdução
No presente capítulo, apresento uma narrativa sobre a tragédia que
se abateu sobre localidades do estado de Minas Gerais e do Espírito Santo,
devido ao rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana/MG, no dia
05 de novembro de 2015. Esta barragem estava sob a responsabilidade da
mineradora Samarco, controlada pelas empresas Vale e BHP Billiton. Em
2021, quando escrevo este texto, muitos (as) atingidos (as) ainda sofrem as
consequências do ocorrido, experimentam incertezas jurídicas que pro-
duzem esperanças precárias. Existem disputas sobre a responsabilidade
do acontecido, porém, junto com muitos (as), compreendo aquela tragédia
como resultado da irresponsabilidade de um sistema que privilegia o lucro
em detrimento da vida humana.
A narradora é Eliene Geralda Santos, que era diretora da Escola Mu-
nicipal de Bento Rodrigues, no distrito de mesmo nome, uma localidade
centenária da cidade de Mariana que foi devastada pela lama da barragem.
A entrevista narrativa se deu em 30 de março de 2017, quando Eliene esta-
va com 33 anos de idade. Sua narrativa se mescla a muitas outras que nos
dizem sobre aquele dia e seus desdobramentos. O relato oral é a materia-
lização de um conjunto de pensamentos, emoções, posições existenciais
do viver que localizam o sujeito dentro de um determinado universo de
significados (DUTRA, 2002). Todavia, pela entrevista narrativa, partindo
de uma questão gerativa, localizamos um acontecimento, para que quem
narra situe sua história e direcione todo relato, sem interrupções por parte
de quem escuta (MUYLAERT et al., 2014).
Na voz de Eliene muitas vozes se misturam e nos relatam sobre a lama
que atingiu grandes áreas daquela região, também invadiu rios, córregos e

271
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

chegou até o Estado do Espírito Santo atingindo praias da costa brasileira.


Contudo, devemos atentar à dimensão do sujeito nas análises de fenômenos
sociais também na pesquisa narrativa (CLANDININ; CONELLY, 2011). Re-
latar a si mesmo sempre é uma possibilidade de produzir reconhecimento,
gerar formas de inteligibilidade diante do coletivo, diante de um outro e
diante de si mesmo, ainda que os processos de reconhecimento tragam cer-
tas opacidades das vozes que se misturam (BUTLER, 2015).
No caso do contexto do acontecimento em questão, a rapidez das
mídias digitais espalhou a dor da catástrofe muito além daquela região,
produziu perplexidades sobre o presente, incertezas sobre o futuro e o luto
por tudo e todos (as) que se foram. As imagens, em tempo real, foram der-
ramadas pelas mídias. Tudo nos remetia à perplexidade e ao desalento das
pessoas. Havia uma tristeza seca na garganta com a devastação da natureza
e de vidas humanas, havia também o despertar de uma comoção nacional.
Toda uma geração que viveu ou assistiu remotamente esse acontecimento
se aproximará das palavras de nossa narradora. Ela trabalhava na escola
de Bento Rodrigues desde 2004, porém aquele lugarejo não era apenas seu
local de trabalho, era também morada de sua família, de seus (uas) amigos
(as) e, por fim, era uma paisagem que habitavam seus olhos com aquele
afeto que temos pelos quintais de nossas infâncias interioranas. Era uma
comunidade composta por patrimônios históricos materiais, tradições da
história de nosso país, redes de sociabilidade e modos de vida singulares.
Estes agora ressoam como ausências no coração de quem ali morava, de
visitantes que por lá passavam e de quem desejava um dia explorar essa
região histórica.
No período da entrevista, a Escola Municipal Bento Rodrigues esta-
va sendo abrigada no prédio da Escola Municipal Dom Luciano Mendes,
no bairro do Rosário, em Mariana, mas, atualmente, conseguiram se alojar
numa casa alugada pela Fundação Renova, na zona urbana de Mariana. En-
contra-se em processo de construção um outro distrito, numa área diferen-
te, destinado às famílias que residiam na localidade destruída pela lama.
A narradora apresenta-se de um ponto de vista singular, pois como
diretora daquela escola era responsável por dezenas de estudantes. O dis-
trito de Bento Rodrigues foi logo atingido pela lama que chegou no ho-
rário das aulas. Naquele dia, alertada sobre o rompimento da barragem,
ela, em curto espaço de tempo, precisava retirar dali quem estava sob sua
responsabilidade. Não bastava retirar as pessoas da escola, era necessá-
rio procurar abrigo em lugares mais altos, assim conseguiram sobreviver.
Com o tempo, já alojada na sede do município, Eliene viu sua responsabi-
lidade se desdobrar na tarefa de conseguir outra escola e enfrentar novos
desafios, uma história que ainda não acabou. Todavia, durante a narrativa,
é perceptível a emergência da força e da coragem de uma mulher diante do

272
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

infortúnio. Em suas palavras moram grandes esperanças na organização


de um novo comum, ainda que outras posições também fiem o tecido de
sua história. Há momentos de dúvidas, sentimentos de desolação e incer-
tezas sobre o que estaria por vir. Escolhemos como ponto disparador da
narrativa o rompimento da barragem, algo acontecido há 15 meses do mo-
mento da entrevista, porém a narrativa apresenta memórias mais recentes
e outras que se articulam a períodos anteriores ao rompimento. A narrativa
possibilita a quem relata uma organização afetiva de suas memórias, bem
como as pontes semânticas atuais que o sujeito dispõe em seu repertório.
Através da narrativa, as pessoas lembram o que aconteceu, co-
locam a experiência em uma sequência, encontram possíveis
explicações para isso, e jogam com a cadeia de acontecimentos
que constroem a vida individual e social. Contar histórias im-
plica estados intencionais que aliviam, ou ao menos tornam fa-
miliares, acontecimentos e sentimentos que confrontam a vida
cotidiana normal (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002, p. 91).

A construção da entrevista narrativa foi articulada a partir de uma


exposição realizada pelos (as) estudantes, professores(as) e a diretora da
Escola Municipal de Bento Rodrigues sobre suas memórias da comunida-
de. Após ser apresentada em outros espaços, a exposição foi também reali-
zada no Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS), da Universidade
Federal de Ouro Preto (UFOP), que cedeu o espaço à atividade. Entende-
mos que essa narrativa possibilita situar melhor as parcerias entre uni-
versidade e a situação daquela escola, fornecendo pistas a quem desejasse
pesquisar e/ou cooperar com a reestruturação daquela comunidade escolar
ou mesmo de outras atingidas pela tragédia. A entrevista faz parte de um
movimento que ganhou corpo nas áreas do ensino, pesquisa e extensão de
universidades da região.
A entrevista foi promovida e mediada por dois docentes do curso de
Mestrado em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP),
com a participação de discentes da disciplina Narrativas docentes: aspectos
metodológicos e formativos1 e aberta aos demais interessados. A partir de
diálogos e do consentimento da narradora, a entrevista foi pública e dela
participaram, além dos (as) estudantes da disciplina, algumas pessoas que
eram membros de grupos de pesquisa do ICHS. Tudo foi registrado em áudio
e vídeo, também com a anuência de Eliene e das demais pessoas presentes.
Para o desenvolvimento da entrevista, apresentamos a seguinte
questão gerativa:

1 A disciplina NARRATIVAS DOCENTES: ASPECTOS METODOLÓGICOS E FORMATIVOS era ministrada pela


Profa. Dra. Karla Cunha Pádua, da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), que realizava um estágio de pós-
doutorado na UFOP. Esta professora e o autor desse texto participaram da construção da entrevista.

273
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

“Conte-nos sobre o que mudou no seu trabalho, como diretora da Escola


Municipal de Bento Rodrigues, após o rompimento da barragem, detalhan-
do sobre as mudanças ocorridas na vida dos alunos, dos professores e da co-
munidade até chegar nas atividades que vocês têm desenvolvido hoje para
dar continuidade a vida escolar”.

Depois da narração terminar, foram propostas algumas questões que


se referiam a trechos da narrativa, evitando trazer outros temas que não
tivessem sido abordados por Eliene. Todo o processo durou mais de duas
horas, pois ao final também realizamos uma visita à exposição guiada pela
narradora. A transcrição da entrevista gerou um arquivo de 49 páginas,
sendo inviável, nesta obra, sua reprodução na íntegra. Tendo isto em vista,
neste capítulo apresentamos os trechos que mais nos mobilizaram em re-
lação aos efeitos da tragédia na comunidade escolar. Ao final do capítulo,
apresentamos algumas considerações sobre os relatos.
A entrevista narrativa se orienta pela voz de quem narra, evitando
ao máximo formas de interferência durante o relato apresentado diante da
questão gerativa, pois, entendendo a capacidade de contar histórias como
forma elementar da comunicação humana, todos (as) são capazes de fazê-lo
de um ponto de vista onde se tecem as dimensões do sujeito e do coletivo
(JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002). A seguir, apresento alguns trechos
que selecionamos para este capítulo, agrupados por temas que ajudaram
na seleção e organização do relato. Utilizamos o parágrafo para indicar nu-
ances de trechos que apresentavam especificidades. Ao longo da entrevis-
ta, entre colchetes, deixamos alguma informação para situar melhor quem
lê o presente texto. O uso das reticências indica pausas na fala, momento
que percebemos que nossa narradora refletia sobre seus argumentos. A
seguir, apresentamos a entrevista.

Entre as dificuldades de recomeçar e o reconhecimento da importância da escola


na comunidade

Bom, gente, assim, é até difícil… É muito difícil descrever esses desafios que
a escola tem enfrentado, esses dois anos. Eu acho que assim, novembro…
Eu lembro de novembro [de 2015] logo quando a gente voltou com as ativi-
dades com os alunos, nosso desespero era não ter nada. Assim, era não ter
nenhum arquivo mais, acho que isso pesa demais. Porque enquanto mora-
dores, cada um de nós conseguiu refazer documentos, a identidade, o CPF,
uma carteira de motorista. Isso tudo a gente consegue fazer uma segunda
via. Mas a questão da documentação da escola pesou muito, você não tem
mais nada. Você não tem livro de atas, você não tem livro de matrícula,
você não tem o resultado dos alunos mais, um diário ao que se basear.
Então isso foi muito! Por mais que estava na lembrança da gente, a gente
precisa disso no concreto. Pegar, comparar…

274
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Então foi muito difícil para a gente essa questão do material, não ter mais
esses documentos. Então… Isso foi pesado demais. Hoje, a gente já está
acostumado com isso, mas aquele mês de novembro e dezembro dava von-
tade de desistir, porque você não tem mais nada… Nenhum documento
mais que prove as questões do menino, as dificuldades dele… Ele está lá
no 5° ano, mas lá na educação infantil já apresentava aquela defasagem.
Estava ali, estava registrado, tinha como provar e não ter isso mais foi pe-
sado. Foi duro. Até mesmo para você iniciar uma ata você tinha que puxar
lá da memória como que eu inicio, qual que é a primeira frase que a gente
faz lá no livro de ata. Então tudo foi questão de memória mesmo… Então,
isso pesou muito.
O que facilitou o nosso trabalho foi a questão da referência da escola, a
gente saber o quanto que a escola é importante para o distrito… Isso veio de
contra partida, a gente tinha vários desafios, mas ao mesmo tempo saber o
quanto que a escola era importante e é importante para a comunidade é o
que deu essa energia para a gente.
Porque eu não esqueço até hoje do dia que a secretária de educação, até
então era Bete Cota, ela entrou pelo Hotel Providência, eu estava no Hotel
Providência, e ela me perguntou: “O que que você acha, a gente volta com
as aulas com os meninos? Isso vai ser bom ou ruim para eles?” E eu via
os meninos morrendo de medo o tempo inteiro, eles não podiam escutar
barulho, eles não podia… toda hora grudado com o pai, com a mãe… E eu
falei “Eu, pelo que eu tenho visto aqui no Hotel, vai ser difícil. Mas, eu
acho válido tentar.” E aí, só que eu expliquei a minha situação, que não
tinha condições de voltar naquela semana que meu menino tinha quebrado
a perna… Aí eu falei que não poderia voltar, que ele estava com um ano e
dez meses só, é difícil deixar. E aí eu fui, conversei com ela e disse, vamos
tentar! A equipe é boa, os professores estão preparados, vamos tentar. E no
primeiro dia de aula, naquele dia, na segunda-feira, todos os alunos foram.
Todos! Não faltou um aluno! Eu fui também, junto com meu menino, para
ver como seria esse início. E aí eu fiquei muito satisfeita de ver o quanto a
escola é muito importante e o quanto ela é valorizada. Então isso deu um
pouco de energia para a gente.

A difícil tarefa de reorganizar o cotidiano

Mas, os desafios são inúmeros e às vezes, assim, quando eu aceitei a direção


da escola, para mim foi complicado, porque recém formada em Pedagogia,
com pouca experiência, mas eu tinha pessoas para me ajudar. Eu tinha os
outros diretores que me apoiavam, a pedagoga da escola que já estava a
mais tempo que eu, conseguia lidar com essa parte administrativa. Mas,
o rompimento da barragem trouxe tanta coisa que ninguém consegue aju-
dar. Ninguém tem uma fórmula para falar “não, é assim, o caminho é esse,
vamos fazer assim”. Então, as pessoas... Está todo mundo perdido. Então é

275
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

complicado, mas a equipe ela é forte, ela é uma equipe unida. A questão
do resultado do aluno até hoje é muito difícil, assim emitir um histórico.
Hoje em dia a gente pega um menino lá do 9° ano e válida o histórico dele
todinho e coloca só a nota de 2015 para frente. É triste! A gente sabe que é
difícil. Tem algumas escolas aqui que mostram até resistência para receber
esses documentos. Mas assim, são coisas que a gente vai adaptando, vai
acostumando. Eu lembro também do ano passado de ter sido muito penoso
para mim também correr atrás da documentação da escola. Registrar tudo
de novo né, essas questões de ir atrás de cartório, de ir na receita federal, e
comprova daqui, comprova dali, isso foi muito penoso, porque ao mesmo
tempo eu sentia que a escola precisava da minha presença lá. Mas, ao mes-
mo tempo eu ficava muito tempo fora da escola resolvendo essas questões.
Então eu achei muito complicado. Eu lembro que eu consegui legalizar a si-
tuação da escola já estava encerrando o primeiro semestre. Porque até então
não estava legal a nossa situação, a gente estava funcionando, mas ainda
não é legal, não tem um lugar fixo, a escola não tinha mais seu registro. E
aí nós conseguimos, graças a Deus, corremos atrás, conseguimos. Então, são
muitos detalhes, muita coisa, assim, que a gente resolve um problema aqui,
e tem outro, tem outro… Fora essas questões administrativas, de registro, é o
perfil dos alunos que muda demais, até então eram alunos de distrito, com
poucas referências, com um leque menor de oportunidades, então eu tenho
muitas crianças que estão aproveitando a vida na cidade para fazer coisas
boas, eu tenho muitos adolescentes aproveitando a vida na cidade para fa-
zer coisas ruins. Então assim, está bem confuso, está bem complicado.

Os vínculos afetivos e sociais entre Eliene, a comunidade e a escola: desafios do


deslocamento para a sede do município de Mariana

Eu costumo falar assim, todo mundo que me conhece, a gente já trabalhou,


ela também já trabalhou com a gente, a gente se encontra em reuniões e
todo o mundo fala “Eli você está cansada, não está?”. Porque quem me
conhecia antes… Estou, estou muito cansada. Estou achando muito difícil
lidar com essa escola agora, da forma que ela está. Mas, assim, já pen-
sei em desistir, já entreguei o cargo, peguei de volta [risos]... Está difícil.
Até para abandonar a escola está complicado. Mas, a questão assim, do
vínculo mesmo com a comunidade. Eu sou de Bento, às vezes, se eu não
fosse mantida… não morasse em Bento, [trecho inaudível] ia ser fácil de-
sistir da escola. Mas, eu sou moradora de lá, conheço todo mundo, então
eu acho que assim, eu… Enquanto eles estiverem deixando eu acho que eu
tenho que ficar, por mais que esteja cansativo. Mas… E a questão assim
dos alunos mesmo, que eu acho complicado, temos muita dificuldade com
os adolescentes. Os adolescentes mudaram demais! Praticamente eu tenho
35 alunos do 6° ao 9°, praticamente a metade faz acompanhamento. No
Crescer, e tem psicólogo, e tem esse tipo de atendimento. Os meninos estão
mais agressivos. Semana passada eu tive três ocorrências com a polícia mi-

276
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

litar. Ter que ir na delegacia fazer boletim. Isso com meninos de 12 anos,
13 anos, que não davam trabalho, andavam a cavalo, que nadavam, que
pulavam o muro para ir nadar, que pulavam o muro para ir andar a cava-
lo. Mas, são umas questões assim, mais fáceis e compreensíveis e a gente
consegue resolver. Agora eu estou achando um pouco mais complicado, a
família perdeu um pouco do domínio com eles morando aqui [na sede do
município de Mariana].
E fora isso, essas questões de raiz mesmo, essa questão de um habitar tam-
bém. Oh gente! Nossa, morar na casa do outro não é fácil! É só você que
cede o tempo inteiro. Você escuta coisas que o tempo inteiro que desagrada,
que desmotiva, que coloca você para baixo. A escola não é sua, você vai
tirar xerox na hora que sobrar. “Aqui vai funcionar assim, assado...”. Então
esse tempo inteiro quem cede é aquele que chegou por último. E a gente lida
com isso o tempo inteiro, e é complicado, por mais que você tenha cabeça
aberta, é... que você tenta mediar esse tipo de conflito, não é todo mundo que
é assim, tem pessoas que revidam, tem pessoas que adoecem com isso. Então
é de cada um. Eu acho que essa operação é de cada um mesmo. E a gente
viveu muito com isso. Essa questão da comunicação era muito complicada.
É difícil de resolver. Porque, por mais que pegue um cantinho lá na escola,
só para a Escola de Bento, a gente não consegue manter a nossa identidade.
Não é mais a mesma coisa que era antes. É... a gente tinha um trabalho
assim... nossa escola era reconhecida como a escola dos painéis. Todas as
atividades que eram desenvolvidas, todos os trabalhos que eram desenvol-
vidos, a gente montava um painel do lado de fora e colocava, e expunha
os trabalhos lá no muro e eles gostavam. Aqui nós já tentamos umas qui-
nhentas vezes. Não foi uma tentativa, duas, três... A gente já tentou várias
vezes expor o material dos meninos. Essa exposição poderia estar lá no
Dom Luciano [a exposição que estava sendo exibida no prédio do ICHS, em
Mariana]. Mas, se a gente coloca lá, some tudo, estragam tudo. E aí a gente
fica preocupado com essas questões, que a nossa identidade com a escola,
ela ainda não conseguiu trazer de volta. Espero que a gente consiga agora,
mudando para o Catete [bairro da cidade de Mariana]. Eles estão alugando
uma casa para funcionar como escola lá. Mas, são muitas coisas pequenas,
que dificultam de fato nosso trabalho.
E essa questão com os meninos mesmo, eu estou achando muito complica-
do essa questão com os alunos. Porque antes as advertências, as ocorrên-
cias com eles eram mais tranquilas do que está sendo agora. Acho que os
pais estão meio que perdendo a linha mesmo. Que isso é papel da família,
não é da escola. E eu acho que as famílias estão meio que desequilibradas,
não estão conseguindo achar uma saída para isso não, apesar de ter todo
o acompanhamento, e eles não estão conseguindo. E aí sobra tudo para a
escola... Porque a escola é tudo! A escola é que dá conselho, a escola que vai
lá e ajuda, é a escola que conversa, é a escola que tem que chamar a mãe e
falar “olha não é assim que fala com seu filho”... E aí fica pesado. Porque,

277
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

quem trabalha na Prefeitura ou outro, a gente é cobrado. Tem os conteúdos


que tem que ser trabalhados naquele bimestre. A gente não pode ficar por
conta só daquele ocorrido. Então, assim, a escola tem que funcionar, tem
os conteúdos que a gente tem que dar, a gente tem aquela questão também
do funcionamento da escola... Ninguém vai me perdoar se eu não mandar
uma planilha na data certa, porque eu fiquei atendendo um aluno que está
precisando do meu apoio naquele momento. Assim, nem vai saber porque
eu não mandei a planilha. Ninguém quer entender, ninguém quer saber
da vida do outro. Então assim, além da gente lidar com as questões que é
certo da escola e já tinha que fazer, eu tenho um serviço extra, que eu não
tenho tempo a mais para fazer. Tudo dentro do funcionamento da escola,
do mesmo horário, do mesmo do outro, e tudo ao mesmo tempo.
É cansativo, é difícil, mas... Igual eu estou falando, desistir eu ainda não
consegui desistir, até agora. Já entreguei, já voltei. Mas, é isso, é complica-
do, é difícil. E são coisas assim, igual eu estou falando, algumas coisas a
gente já se acostumou, como essa questão da documentação. O primeiro
histórico que eu dei para o menino, o menino chorou demais, nossa! “Eu
não quero esse histórico, tem que ter um jeito, tem que ter um cálculo, al-
guém para me ajudar”. E a gente chora junto, porque não tem jeito. É, agora
a gente já redige esses documentos assim, com mais facilidade, sabendo que
é o que é possível fazer. A questão de quem já estudou na Escola do Bento.
Isso é muito penoso para a gente também. Existem muitos pais dos nossos
alunos que nunca passaram da 4ª série. Sempre estudaram até a 4a série.
A gente tinha um livro lá que comprovava isso. Então, a gente emitia uma
declaração só para ele conseguir uma vaga de emprego, não era para voltar
a estudar, mas para comprovar que ele tinha feito até a 4ª série. E agora a
superintendência entende que a gente não pode emitir nenhum documento
mais anterior a 2015. E aí é complicado, às vezes a pessoa chega lá e “nossa
é uma vaga de emprego, como que eu vou fazer? Você lembra, eu estudei...
e aí como é que eu faço agora?”. E aí gente elaborou um documento lá, que
graças a Deus tem dado certo, que é falando que a escola não tem mais
nada. Só para ajudar, porque eu não posso comprovar que ele estudou até a
4ª série, mas eu posso comprovar que a escola não tem mais arquivo. Então
a gente fez esse documento e tem dado certo, ninguém tá perdendo uma
vaga de emprego porque eu não consigo dar mais uma declaração. Mas aí
a gente dá esse documento e tem funcionado, as empresas não tem negado
essa vaga para esse pessoal não. Mas, a gente vai adequando, vai buscando
uma saída daqui e outra dali, para amenizar um pouco o sofrimento de
todo mundo. Porque é muito sofrido isso tudo e os impactos estão aí, ain-
da... As consequências estão aí... Parece que acabou ali, mas não acabou. A
gente vê que isso aí é incalculável o que aconteceu. Às vezes a gente recebe
algumas pessoas falando “Ah, mas tá bem assistido”... Sim. Financeiramen-
te, sim. Financeiramente a gente consegue tudo com muita dificuldade.

278
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

As dificuldades em recomeçar

A Escola de Bento está desde novembro de 2015 procurando um lugar para


ficar, agora que nós conseguimos alugar uma casa, a Fundação vai pagar,
porque ela ainda está bancando. Tudo é muito demorado... A gente con-
segue, demorado... Mas, são questões que envolvem dinheiro. Para a Fun-
dação, a questão do dinheiro é tranquila. Mas tem coisa que nunca mais.
Tem coisa assim que é difícil a gente conseguir de volta, não tem como
mais, é complicado. E o que é possível a gente corre atrás. É demorado,
difícil, doloroso, mas, a gente corre atrás e faz. Mas, eu preocupo mais é
com a questão humana mesmo. Porque os meninos, eles mudaram demais
e eles, os pais, não tem equilíbrio para passar uma segurança para eles. Os
pais estão mais perdidos que eles. Então às vezes o que os meninos é [trecho
inaudível] falam na escola assustam a gente, porque eles sabem que eles
estão só reproduzindo o que os pais falam em casa. “Ah, que isso... Ah, que
não vai ter jeito... Que eu não vou ter mais nada... Que eu não tenho casa,
que agora eu sou obrigado a ficar escondido...”. Que não sei o que... E aí
atrapalha a aula inteira, às vezes tem um teste que você tem que cancelar,
uma prova marcada para aquele dia que você tem que cancelar. E tudo isso
influencia, acaba que eleva os planejamentos da escola. Mas aí a gente vai
adequando, vai tentando ajudar daqui, dali... e essa questão da... e a Escola
de Bento, ela graças a Deus, ela tem um apoio muito grande das famílias.
Mas, o nosso trabalho cotidiano é com os alunos, então a gente tenta fazer
com os alunos e pedindo a Deus para que eles reproduzam isso em casa, ao
invés de ser o contrário, os pais reproduzirem isso e eles levarem isso para a
gente. Porque trabalhar com os pais é complicado, porque a gente não con-
segue ter os pais presente todos os dias para a gente conversar, para a gente
ter uma oficina que ajude. Mas, com os meninos a gente tem feito, tanto
que teve esse projeto [refere-se a construção da exposição e de apresenta-
ções sobre as memórias do distrito de Bento Rodrigues], e que nós vamos
dar continuidade no projeto, para ver se anda, para ver se a gente consegue
sair um pouco disso, da questão da tragédia em si. E retomar, recomeçar
mesmo, de verdade, que até então eu tenho escutado muito esse recomeçar,
mas, ninguém recomeçou ainda. Tá todo mundo ainda bem focado no ve-
lho Bento, bem focado no que aconteceu. E esse recomeçar, tem começar
mesmo, porque se não a gente vai perder vínculo, vai ficar uma cicatriz
difícil de apagar depois. [Final da primeira narrativa].

Após esta primeira parte, certificando que não haveria algo mais
para acrescentar por parte de Eliene, foram propostas algumas questões à
narradora, contudo apenas retomando temas por ela já relatados, evitando
quaisquer questões estranhas à sua fala, dentro do escopo daquilo que se
propõe como entrevista narrativa (MUYLAERT et al, 2014). A partir do
recorte deste artigo, privilegiamos o relato que diz mais especificamente
da escola, assim, não apresentamos outros trechos também importantes,
como o relato específico do dia da tragédia. Uma das questões que reto-

279
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

mamos foi em relação à vida escolar dos (as) estudantes. Foi proposta uma
questão sobre como os (as) estudantes foram realocados nas escolas. Eliene
informou que aqueles (as) estudantes que foram para o ensino médio fica-
ram distribuídos em outras escolas, porém o restante permaneceu numa
mesma escola. Vejamos o relato de Eliene colocado que diz sobre a convi-
vência no mesmo prédio com uma outra escola.

O cotidiano difícil que se alimenta de esperanças

É difícil. É difícil, porque o setor público, as pessoas têm uma mentalidade


muito difícil de pertencimento. Essa mesa é minha, esse armário é meu,
nessa parede ninguém cola nada, isso é muito... É uma cultura complicada
de mudar. Isso acontecia com os meus também, para eles foi um aprendiza-
do, saber que nada é meu, isso aqui é público. Para os nossos funcionários,
para nós, ficou o aprendizado muito grande, porque nada é nosso, isso é
público. Mas, aí, assim, a questão da coabitação, foi complicada por causa
disso, porque, no caso eu falei, era um horário novo, o tempo todo quem
segue é a gente. O horário que a escola já funcionava não confere com os
horários [da escola de Bento Rodrigues]. “Ah! O meu sábado letivo vai ser
de manhã, então o seu tem que ser à tarde, eu que crie os meus. Os meus
são de manhã, os seus fica para tarde”. Então a gente fica com aquela li-
berdade de fazer do jeito que a gente quer, que a gente precisa. É a questão
do pertencimento mesmo, porque é complicado, você chega numa sala que
o professor sabia que aquela sala era dele e agora já não é mais só dele.
Tem uma outra turma ali, um outro professor, uma turma diferente, então
é complicado, a gente quebra muita coisa, mas isso está mais presente nas
questões das comunidades. Com os nossos funcionários, é fácil! Lá no Dom
Luciano por exemplo, a nossa equipe está dando muito certo com a equipe
do Dom Luciano, a gente compartilha informações, a gente divide os dife-
rentes espaços, a gente conseguiu quebrar muita coisa, mas a comunidade,
por exemplo de Bento parece que... Cria-se uma barreira sem necessidade
alguma, um menino não pode xingar o outro, que é bem... Aí tudo cria-se,
às vezes uma coisa desse tamanhozinho fica desse tamanho. Aí é complica-
do, porque, se um menino do Rosário briga com outro menino do Rosário, é
fácil de amenizar, se um menino do Bento briga com um menino do Rosário
a briga já fica maior. Então é tanto mais complicado. “Esses meninos não
deveriam estar aqui, porque que esses meninos estão aqui até agora. Vira
aquela confusão, que não sei o que, é assim, e da minha parte também, por-
que eu sei que se um menino do Rosário brigar com o meu, a mãe vai falar
alguma coisa. É uma cultura difícil de quebrar, não é? Mas que a gente vai
conseguir safar dessa.
Mas, aí, graças a Deus a gente está se dando muito bem, dividimos sala
de professores, secretaria. A gente está quebrando muita coisa assim, de
entender que somos todos servidores públicos, aluno é aluno, dividimos expe-
riências. Então está dando um trabalho bacana. A questão é a convivência,

280
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

eu por exemplo, não queria fazer... separado. Sou obrigada a fazer porque os
pais dos meus alunos não aceitam. Então você, você fica preso, a gente quer
que os meninos socializem, que os meninos se encontrem e brinquem juntos.
Mas não conseguem, porque os pais dos meus não aceitam, os pais dos meni-
nos do Rosário não aceitam, e aí é complicado, então nunca vai ter um bom
relacionamento se a gente não consegue fazer com que eles fiquem juntos.
Mas a questão da nova casa é isso, é por causa da questão da identidade,
cada escola tem uma forma de funcionar. Nossa escola prioriza umas coisa,
outras ela deixa para lá, assim é no Dom Luciano, assim é a outra escola.
Então cada um tem uma forma de trabalhar e eu acho que um cantinho é
essencial, cada um ter seu cantinho. Nós vamos deixar de estar trabalhan-
do numa escola, tem uma estrutura boa, grande, a sala é ampla, é arejada,
para ir para uma casa alugada. Que a casa que a gente está indo, é uma
casa, não é uma escola, só está sendo adaptada, é pequena. Banheiro, por
exemplo, é um vaso só, cada banheiro, um vaso no banheiro masculino,
um vaso no banheiro feminino. Se entra num banheiro de uma escola, se
entrou ali tem três, quatro, cinco vasos, tem toda uma facilidade, que é
uma estrutura para funcionar uma escola. Mas a gente optou por isso, por
essa questão de ter o nosso canto, de ter o nosso cantinho, se não ter mais
que ficar dividindo nada, de saber que aquilo ali é meu, que eu vou colar,
vai ficar, vai ficar colado ali, não vai gerar muito atrito, muita confusão,
muito conflito, então é importante. Eu sempre falo com todo mundo, às
vezes uma sogra, você vai morar com sua sogra, coitada, quer te ensinar,
quer te ajudar, ela abre as portas da casa dela, mas mesmo assim você não
se sente à vontade, não é a sua casa. Então, assim é complicado mesmo,
cada um quer ter seu canto. Por mais que seja inferior ou sinta acostumado,
mas quer seu canto. Eu acho que é isso que a equipe está precisando. Mas
a nossa perspectiva, nossa, nós estamos bombando, contando os minutos
pra ir para lá, (risos) doida pra ir, eu já arrumei até caixa de papelão, tudo,
ó! Quando vocês falarem que é para ir, já tem até a caixa de papelão para
colocar os pertences de todo mundo (risos).

Considerações finais
Nos trechos da narrativa, aqui apresentados, a narradora trouxe
alguns temas que destacamos como organizadores da narrativa. Inicial-
mente ela apresenta a desolação provocada pela tragédia e a importância
do reconhecimento da escola pela comunidade. Logo após o rompimento
da barragem, emergem duas urgências: a sobrevivência diante da lama
que invadiu e destruiu o distrito e a escola, bem como a necessidade de
se alojar e se alimentar. O prédio da Escola de Bento estava soterrado sob
a lama, mas a comunidade escolar estava viva e buscando se reencontrar.
Era uma catástrofe inédita e não havia caminhos pré-definidos sobre o
que fazer. Nesse momento de desolação, Eliene percebe o valor que a es-
cola tinha diante do distrito. Comunidade e escola possuíam fortes laços,

281
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

uma identidade que se objetivava no mesmo nome para ambas: Bento


Rodrigues. O retorno, ainda que improvisado, trouxe todos (as) os (as)
alunos (as) à escola que os recebia. Na tragédia muito se tinha perdido,
mas a comunidade escolar continuava viva e Eliene celebra o retorno de
seus (uas) alunos (as) às aulas:
E no primeiro dia de aula, naquele dia, na segunda-feira, todos os alunos
foram. Todos! Não faltou um aluno! Eu fui também, junto com meu menino,
para ver como seria esse início. E aí eu fiquei muito satisfeita de ver o quanto
a escola é muito importante e o quanto ela é valorizada - (ELIENE, 2017).

Porém, muito ainda estava por vir. Com o reinício das atividades
havia todo um cotidiano para ser reorganizado. Houve colaborações que
emergiram de diretores (as) de outras escolas, de agentes públicos e ges-
tores (as). Porém o histórico escolar dos alunos emerge como motivo de
grande preocupação para Eliene, o aluno que chora diante de um histórico
que parecia incompleto comovia nossa narradora. Existia uma sensação
de impossibilidade em continuar, algo que ao longo da entrevista Eliene
nomeia. Ela relata sobre alguns momentos em que pensou em desistir, e
desistiu, todavia, logo retornava. A sua relação com a comunidade não era
apenas como diretora daquela escola, mas como moradora daquela locali-
dade, onde cresceu e partilhou o seu cotidiano com tantas pessoas. Bento
Rodrigues também era o lugar de residência de sua família. Com o deslo-
camento para Mariana, Bento Rodrigues já não era mais sustentada pelos
limites geográficos da localidade destruída. Bento passou a ser uma comu-
nidade que se sustentava por outros vínculos, pois aqueles da proximidade
física já não eram possíveis como antes.
Arrisco dizer que tanto a escola como a comunidade de Bento Rodri-
gues se tornaram nômades, ocupantes provisórios de um espaço que por
vezes demonstrava hostilidades. Sustentar os vínculos afetivos e sociais
entre Eliene, a comunidade e a escola tornou-se um grande desafio. Nes-
sa provisoriedade a escola e a comunidade se deparam com problemas de
uma outra sociabilidade, principalmente com os casos de polícia envolven-
do os adolescentes. O problema com o alunado já não era a fuga para nadar
no rio ou andar a cavalo, mas problemas com a polícia de Mariana. O des-
locamento produziu esgarçamentos do tecido social daquela comunidade,
colocando pais, mães e professores (as) em estado de alerta com problemas
antes não imaginados na antiga Bento. Todavia, ainda assim, existe uma
enorme resistência que opera junto às dificuldades em recomeçar.
Está todo mundo ainda bem focado no velho Bento, bem focado no que
aconteceu. E esse recomeçar, tem que começar mesmo, porque se não a
gente vai perder vínculo, vai ficar uma cicatriz difícil de apagar depois -
(ELIENE, 2017).

282
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Diante de toda dificuldade a possibilidade de uma casa se tornar um


prédio exclusivo para a Escola Municipal de Bento Rodrigues abre pos-
sibilidades para nossa narradora. Ainda que não fosse o melhor espaço,
mesmo com a dificuldade do número de banheiros, aquela casa adaptada
poderia trazer um espaço para que a comunidade escolar se reorganizasse
social e afetivamente. No momento da entrevista a transferência para essa
casa ainda não havia acontecido, mas Eliene ecoa a voz de muitos (as) mo-
radores (as) ao dizer da mudança, pois já tinha até uma caixa de papelão
para levar os materiais. Um novo prédio para escola e uma nova comunida-
de de Bento sendo construída produzem nesta narrativa um cotidiano que
se alimenta de esperanças. Hoje, mais de meia década depois da tragédia,
ainda permanecem incertezas jurídicas, atrasos nos cronogramas e pesso-
as que precisam lutar muito para sustentar seu cotidiano com a esperança.
Antes da pandemia, as crianças da Escola de Bento Rodrigues utilizavam a
brinquedoteca do curso de Pedagogia da UFOP, onde se mostravam gran-
des aprendizes da esperança. Ao longo do tempo somou-se aos (às) atingi-
dos (as) pela lama da Barragem de Fundão outras histórias de tragédias que
aconteceram em Minas Gerais. Ficou explícita a ganância dos devoradores
de terra. Com a pandemia que assola a todos (as) nós, pouco temos notícias
dessas pessoas, mas ao apresentar esta entrevista queremos manter viva a
memória das lutas e esperanças que sustentaram Eliene e a Escola Muni-
cipal de Bento Rodrigues.

Referências

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Tradução


de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CLANDININ, D. Jean; CONELLY, F. Michael. Pesquisa narrativa:
experiências e história na pesquisa qualitativa. Tradução de Grupo de
Pesquisa Narrativa e Educação de Professores ILEEL/UFU. Uberlândia:
EDUFU, 2011.
DUTRA, Elza. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica.
Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v. 7, n. 2, p. 371-378, jul. 2002 .
Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-294X2002000200018.
FLICK, Uwe. As narrativas como dados. In: Uma introdução à pesquisa
qualitativa. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2004.
JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. In:
BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto,
imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 90-113.
MUYLAERT, Camila Junqueira; SARUBBI JR, Vicente; GALLO, Paulo
Rogério; NETO, Modesto Leite Rolim; REIS, Alberto Olavo Advincula.

283
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa.


Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo , v. 48, n. spe2,
p. 184-189, dez. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0080-
623420140000800027.
PÁDUA, Karla C.; TORRES, Marco A. Mudanças na paisagem e a escolar
na memoria da diretora da escolar municipal Bento Rodrigues. In: XII
Encontro Regional Sudeste de História Oral. Alteridades em tempos
de (in)certeza: escutas sensíveis, 2017, Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, Belo Horizonte. Disponível em: http://www.sudeste2017.
historiaoral.org.br/resources/anais/8/1507816885_ARQUIVO_t

284
CAPÍTULO 13

SESSÃO DE ENTREVISTA

INVESTIGAÇÃO NARRATIVA: APRENDENDO


COM A EXPERIÊNCIA DE DANIEL SUAREZ

Inês A. Castro Teixeira


Karla Cunha Pádua
Glaucimary Nascimento

Toda narrativa contém histórias. Toda narrativa tem sua própria his-
tória. Assim foi: em uma tarde de março de 2021, dia 08, estando Daniel
em Buenos Aires; Karla e Inês em Belo Horizonte e Glaucimary em Ber-
lim, atravessamos continentes para um encontro remoto. Nosso convite
para uma entrevista foi aceito com solicitude por Daniel, uma de nossas
maiores referências internacionais em trabalhos com narrativas, sobretu-
do com professores (as). Durante um período, fizemos os entendimentos
relativos aos propósitos da entrevista. Por fim, optamos por um caminho
misto em que, de um lado, apresentamos previamente a Daniel um rotei-
ro de pontos sobre os quais gostaríamos de escutá-lo e, de outro, fizemos
também uma pergunta/formulação aberta, como uma questão geradora.
Ele escolheu este caminho, tendo falado mais livremente e, aos poucos,
enquanto entrevistadoras, fomos colocando tópicos sobre os quais ainda
não havia desenvolvido.
O clima geral da entrevista foi de descontração, confiança, amabili-
dade e, sobretudo, de reflexividade. Daniel nos ofereceu ideias muito sig-
nificativas, vigorosas, por vezes surpreendentes e originais. Aprendemos
muito junto com Daniel neste belo momento de encontro, trocamos ideias
vigorosas, plenas de possibilidades e de fértil imaginação para nossos tra-
balhos com narrativas e similares.
Antes de iniciarmos a entrevista, após os cumprimentos, agradeci-
mentos, apresentações e comentários sobre o contexto político dos dois

285
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

países, o Brasil e a Argentina, perguntamos sobre a forma de abordar as


questões do roteiro enviado com antecedência, se ele preferia englobar to-
das as questões em sua resposta, ao que Daniel nos respondeu: “Tal vez no
me sentiría en condiciones de poder contestar una por una de manera tan
directa. Pero sí conversando. Tal vez la mejor forma de pensar y la mejor
forma de contarles lo que vengo pensando, lo que vengo trabajando, lo que
vengo vivenciando en estos años de investigación narrativa, en el campo
de la Pedagogía.”
Daniel preferiu iniciar com a primeira pergunta do roteiro, que era
a seguinte: “¿Cómo se produjo tu encuentro con las narrativas y qué poder
reveló este encuentro en tu condición de profesor e investigador de la Uni-
versidad?”. Ele comentou: “Sí me gustaría de comentar un poco la primera
pregunta…. Apela a mi propia narrativa autobiográfica.” E assim iniciamos
a entrevista, buscando reduzir ao mínimo nossas intervenções, ao modo da
primeira etapa da entrevista narrativa.
Agradecemos muitíssimo a Daniel Suarez por sua generosidade e
esperamos poder continuar com estes encontros e projetos conjuntos; de-
sejando que nossos leitores e leitoras desfrutem com prazer essa belíssima
conversa que aqui compartilhamos.
Lembramos, ainda, que depois de realizada a gravação da entrevis-
ta, ela foi transcrita, revisada e autorizada pelo professor Daniel Suarez,
sendo posteriormente editada para efeito desta publicação. Cabe ressaltar
que, nesta edição, mantivemos o uso das duas línguas, o português das en-
trevistadoras e o español de Daniel Suarez, tal qual aconteceu no momento
de realização da entrevista.
Somos (e)ternamente gratas por esta ímpar e tão feliz oportunidade.
Estamos convictas de que, aqui, estão ideias preciosas a serem pensadas,
repensadas, complementadas, divulgadas e debatidas para o aprimora-
mento de nossos trabalhos nos territórios das narrativas.
Saudações fraternais e feliz leitura!!!

O encontro com a investigação biográfico-narrativa1


Tal vez mi primer encuentro… [con investigación narrativa y con la
investigación de la narrativa biográfico narrativa] tuvo lugar a fines de la
década del 80. Era investigador bolsista, becario de un proyecto de inves-
tigación que dirigía Graciela Batallán, una antropóloga que venía, viene
trabajando en este límite en curso entre la etnografía y la pedagogía, entre
la etnografía y la educación. Porque si bien así la educación, etnografía
escolar y además incorporaba dentro de sus investigaciones un dispositivo

1 Agradecemos a transcrição da entrevista em espanhol feita por Maria Regina Brandão Lins Veas.

286
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

pedagógico del cual yo aprendí mucho que es la investigación de la prácti-


ca de los profesores.
En este proyecto que tratábamos de comprender, de estudiar las sig-
nificaciones sociales asociadas al trabajo docente, desde la perspectiva
gremial, desde la perspectiva sindical, […] tuvimos la primera aproximaci-
ón a recursos metodológicos de la investigación…narrativa, de la investi-
gación…biográfica. Fundamentalmente trabajamos indagando bibliográ-
ficamente… con historia de vida, con autobiografías profesionales. En fin,
con toda una serie de recursos, que venían de la investigación narrativa
de la investigación cualitativa que profundizamos en aquel momento. Y
que fue, no solamente para las lecturas… [pero, tambien, aproximaciones
con] una serie de investigadores sociales, antropológicos, cualitativos que
utilizaban intensamente recursos narrativos autobiográficos y herramien-
tas, instrumentos narrativos autobiográficos para sus investigaciones. Y
en ese caso lo comenzamos a hacer. Hicimos algunas entrevistas narra-
tivas, biográficas en búsqueda de reconstruir trayectorias profesionales,
trayectorias docentes. En fin. Pero claro, el tipo de preguntas que nos ha-
cíamos, el tipo de preocupación que teníamos, inclusive el tipo de objetos
que construíamos venían del campo mismo de investigación etnográfica,
la etnografía de la educación.
Lo que procurábamos era construir descripciones de esos procesos
de constitución de significaciones entorno al trabajo de enseñar. Graciela
Batallán después sacó un libro muy interesante que se llama “Docentes de
infancia. Antropología del trabajo en la escuela primaria”, título publicado
en español, lo cierto es que todo nuestro [trabajo] tenia lo que clásicamen-
te, bajo la supervisión de Graciela Batallán, lo que había en ese campo de la
antropología de la educación. Lo que pretendíamos era, bueno, justamente
documentar todo aquello que no estaba documentado y de vincularlo a la
construcción social del trabajo docente.
Hago esta aclaración porque después, cuando yo a empecé a vincular
de otra manera la investigación narrativa de otra manera, descubrí que la
investigación narrativa pretende cierta definición específica de sus pro-
pios criterios metodológicos, al mismo tiempo se construye una comuni-
dad científica en torno de esos criterios, de esas reglas del juego. Pero me
parece importante y distingo muy nítidamente: investigaciones narrativas
en sentido estricto se inscriben dentro de una perspectiva narrativa como
un campo de investigación, como un campo de producciones específicas
por sus propias comunidades científicas que se interrogan acerca de cues-
tiones metodológicas, epistemológicas, éticas, políticas, estéticas en torno
a esta peculiar y específica forma de investigar.
Y otra cosa diferente es el uso intensivo de recursos y de instrumen-
tos narrativos e autobiográficos dentro de modelos de investigación, diga-

287
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

mos que así, más disciplinares o disciplinarias dentro de un determinado


campo de estudio. Investigaciónes sociológicas cualitativas que utilizan
intensivamente estos instrumentos, o investigaciones antropológicas et-
nográficas, inclusive pedagógicas, que utilizan extensivamente estos re-
cursos, pero que no se inscriben dentro de una comunidad práctica de
discursos teórico metodológicos y epistemológicos específicos, y que no
se identifican explícitamente o no se autoperciben como investigadores
narrativos. A mi parece muy peculiar lo que viene sucediendo en Brasil, no
específicamente con investigación narrativa pero sí con investigación bio-
gráfica, que rápidamente generan congresos, publicaciones que recogen
esta designación, revista de pesquisa biográfica o autobiográfica en Brasil
o revista brasileira de pesquisa autobiográfica, es decir, organizan con-
gresos internacionales de pesquisas autobiográficas. Se genera un campo
con doble filiación todos los que trabajan ahí también están afiliados a
otros campos disciplinarios de origen, pero encuentran ahí un espacio, un
tiempo, condiciones de enunciación, condiciones de elaboración de sus
propias preguntas de investigación, de sus propios enfoques, en fin. Este
me parece una primera salida, y mi encuentro con mi narrativa no tuvo
con casi ningún otro, en principio tuve que ver con un problema, si ustedes
quieren político y de escala. Yo estaba en aquel momento, en año 2000, en
el Ministerio de Educación, coordinaba un proyecto en el Ministerio de
Educación de la Nación, en la dirección de Gestión Cultural y capacitaci-
ón y el proyecto estaba vinculado a la construcción escolar del currículo.
La idea era dar lugar, dentro del Ministerio de Educación, a la política
de desarrollo curricular que se apoyara en una fuerte participación de los
docentes como activos sujetos del campo pedagógico. Cosa que no venía
sucediendo, recuerden, veníamos de una reforma educativa tecnócrata ne-
oliberal que en Argentina fue muy resistida por el sindicalismo docente
por la CTERA particularmente, que viene la Carpa Blanca que fue toda una
movilización y un plantón muy performativo con mucha capacidad de pro-
ducción de narrativas vinculadas o contranarrativas vinculadas en contra
de la retórica y de la reforma de Menem. Entonces ese lugar, ese ámbito,
esa carpa, esa tienda, la tienda blanca - en la Argentina lo blanco simboliza
la educación pública, blanco de los delantales de estudiantes –, se le cargó
el sentido. Y tuvo la capacidad, el sindicalismo docente, de aglutinar gran
parte de la lucha antineoliberal en torno de la lucha docente.
Lo cierto es que esto generó mucha movilización docente y una do-
cencia en aquel momento muy resistente a la reforma educativa neolibe-
ral, no solamente a las condiciones salariales. Esto ha cambiado la política
educativa en sí mismo. Pero también generaban ciertas condiciones para
pensar políticas publicas que incorporaban a los docentes como sujetos
de discurso educativo, como sujetos de discurso político y, en este caso,

288
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

como sujeto del currículo. Es en este momento, y explícitamente como un


movimiento de recuperación de la docencia, pensamos en algo así como
un proceso de construcción de documentos curriculares que habilitara las
palabras de los docentes y el saber de los docentes para dar cuenta del
currículo de la nación. Un poco la idea de autorizar los docentes, a través
de su palabra en el discurso, en este caso curricular, que habían sido explí-
citamente descalificados, desacreditados, marginalizados por el discurso
tecnocrático la reforma que los posicionaba claramente como objeto del
currículo, como objeto de intervención curricular, de dispositivo curricu-
lar entendido este como tan solo como norma, expectativa, como proyecto.

A Documentação Narrativa: contexto e pressuposto


Y un poco acá la idea era de recuperar lo que habían hecho los do-
centes con eso, o sea, como resistencia, como apropiación. Se me ocurría
y no se me ocurrió hacerlo como sabía hacerlo a través fundamentalmente
de estudios etnográficos o de los talleres de investigacion de la práctica de
Graciela Batallán. En ambos casos, implicaba un anuncio muy intensivo
de recursos académicos para poder trabajarlo. En un primer momento, yo
me imagine muchos talleres de educadores, pero claro, ser un coordina-
dor de uno taller de educadores, o de la investigación de la práctica con
educadores implicaba muchos años de formación, de recursos económicos
importantes y muchas horas de trabajo y a partir de ahí un problema de
escala, estoy aquí pensando en nivel nacional. Indagando junto con otros
compañeros y compañeras dentro del Ministerio de Educación, encontra-
mos en la narrativa y en la investigación narrativa una posibilidad de, para
decirlo en términos de Bolívar, de Antonio Bolívar, democratizar un poco
lo que es estilo narrativo, estilo autobiografico, estilo cualitativo, había
generado en el campo de la investigación.
Esta habilitación de nuevos sujetos, como sujetos de conocimiento
educativo con forma de regular en el proceso de indagación que no implica-
ba necesariamente su inscripción o su filiación en el campo académico. Para
decirlo de otra forma, encontramos en la investigación narrativa una forma
plausible válida de generar procesos de indagación que ustedes llaman in-
vestigación, que los anglos saxónicos dicen como inquiry, o de esa forma de
producción de saber, no necesariamente de esa forma de regular los criterios
de campo académico, pero que permitían indagar, a través de la narrativa
pedagógica, un poco de sus propias experiencias pedagógicas. En cierta for-
ma, encontrar, documentar a través de sus relatos la experiencia de, como
ejemplo, de implementado una propuesta educativa en el espacio escolar.
Por supuesto esta indagación del Ministerio no pretendía ser exhaus-
tiva. Problematizaba también la idea de cómo un relato singular permitía
pensar en proceso mucho más amplios de la construcción escolar del cur-

289
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

rículo. Pero en fin, por cuanto la narrativa y la investigación narrativa tuvo


que ver con esta posibilidad de habilitar a través de la narrativa o de la in-
dagación narrativa, posiciones de sujetos que en otros momentos a través
de los dispositivos, se posicionaren claramente en un subordinado en una
relación, por decir así, colonial. En ese sentido, a reducirlo tan solo a ser
proveedores anónimos de fragmentos textuales narrativos que iban a ser
interpretados por otro. Pues la idea también era que los docentes narrando
y renarrando su propia experiencia, indagándola con algunos recursos pro-
pios de investigación narrativa pudieran reconstruir su propio relato, de
su propia experiencia, y transformarla, por ejemplo, en algunas lecturas o
lecturas más teóricas y armar sus propias bibliotecas y ampliarlas. Pero es
un proceso espiralado donde, digamos, su propia indagación coordinada y
regulada pudiera generar comprensión pedagógica cada vez más sutiles y
cada vez más densas y que estas, como forma de interpretación o como hi-
pótesis interpretativa de la propia experiencia, puedan estar desarrollada a
través del relato. Esta fue mi primera vinculación.
Después, obviamente, esta inquietud se transformó, en primer mo-
mento, en una intervención en plano de la política educativa o de las polí-
ticas curriculares, según mi principal inquietud académica a punto de que
cambié mi tese de doctorado, cambié mi Directorio (ese Directorio es una
especie de doctorado), y me arrojé a trabajar ya en el campo de la Univer-
sidad, en la Universidad de Buenos Aires, pero también en el Laboratorio
de Políticas Públicas que construimos con Pablo Gentili en Buenos Aires.
También nos dedicamos a indagar estos tipos de dispositivos y estos
tipos de posibilidades de la investigación narrativa en el campo de la Edu-
cación, después, en el campo de la Pedagogía. Una posibilidad de no solo
de reconstruir un poco lenguaje teórico de la Pedagogía, sino también la
posibilidad de habilitarnos la posición de la educación nos factores, nos
sujetos de pedagogía que conversen junto con otros sujetos de ese campo
sobre distintas formas, distintas experiencias para producir saber peda-
gógico. Un poco ese fue mi comienzo con la narrativa, que estuvo desde
principio atravesado por esa pretensión de encontrar formas, estrategias,
recursos que hagan posible pensar la investigación pedagógica protago-
nizada por maestros y profesores, por docentes que puedan indagar sus
prácticas como una forma de desarrollo profesional y, también, como una
forma de intervenir en el debate público, con su palabra, a través de estos
documentos narrativos, intervenir en el debate público, en la memoria pe-
dagógica. Digamos que los que me movieron fueron estos campos de la po-
lítica educativa y la política curricular, esta preocupación epistemopolitica,
si me permiten. Con esta idea de pensar y una forma de indagación o de
producción de saber e investigación (esta seria otra discusión) que permite
un reposicionamiento de los sujetos de esas investigaciones, no solo como

290
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

sujetos de investigación, sujetos colaboradores, si no como sujeto copar-


tícipes, o inclusive protagonistas de investigaciones pedagógicas sobre su
propia experiencia. Y acá enfatizo la idea de investigaciones pedagógicas
como una forma particular de investigación educativa, como una forma
particular de producir saberes y conocimientos educativos.
Diferente a lo que podemos decir de las formas más convencionales
de investigación de la ciencia de la educación, de la sociología de la edu-
cación, de la economía de la educación, de la psicología de la educación,
como la forma que se organiza la investigación académica en Argentina; la
investigación pedagógica habilitaría no solamente la forma de interrogaci-
ón, la forma de producción, de saber en campo académico, que correspon-
de también a la habilitación de pedagogía como un campo de saber plau-
sible y con un campo de investigación posible, que esta fue también en el
campo de la universidad y en el campo académico una gran lucha nuestra
en la universidad, particularmente en la Universidad de Buenos Aires, en
habilitar nuevamente el espacio de la Pedagogía como un campo de saber
de experiencia, de experimentación, de subjetivación. E importante, por
ejemplo, en el plan de estudio de la licenciatura, en el campo de posgrado,
en campo de los estudios y las investigaciones acreditadas de la universi-
dad que estaba prácticamente borrada. Bueno, esa es otra conversación.
Lo importante es que esta observación más epistemopolítica, esta pre-
ocupación también posterior de construir un campo de saber entorno de la
pedagogía, recuperar la Pedagogía (es mejor) como campo de saber y como
campo de experiencia por supuesto, como campo de poder, pero también
como campo de saber específico, campo de experimentación metodológica
específico que fue desplazado hacia los márgenes por el discurso tecno-
crático cientificista desde hace mucho tiempo, desde último tiempo, pero
fundamentalmente en discursos que hizo la reforma neoliberal en nuestro
país. Hay todo un movimiento epistemopolítico muy interesante, muy diver-
so, pero que tiene que ver con la recuperación de la pedagogía y la posibili-
dad de la investigación narrativa de aportar también elementos muy críti-
cos en eses sentidos, es la posibilidad, es el elemento que mucho hablamos
para recuperar la pedagogía, algunos en francés, como Philippe Meirieu,
que escribe un libro con este nombre2, o los catalanes españoles, como Jor-
ge Larrosa, que están hablando de la necesidad de crear una lengua para la
conversación pedagógica… o la experiencia de la practica pedagógica en la
América Latina. La expedición pedagógica nacional piensa, por ejemplo,
en como construir, con la participación activa y principal de los docentes,
una forma de saber pedagógico, una forma de pedagogía que yo llamaría de

2 MEIRIEU, Philippe. Recuperar la pedagogía. De lugares comunes a conceptos claves. 1. ed. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Paidós, 2016.

291
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

pedagogía por esta vinculación estructural entre la pedagogía y el territo-


rio. La necesidad de pensar la pedagogía también como un saber situado,
como un saber de difícil estatuto epistemológico, en el sentido que más
bien pensarlo como una forma de inteligencia, como una forma de saber
practico, en fin, toda otra discusión que también creo yo que es una zona
de contacto muy firme con la investigación narrativa.
Así…bueno, esos fueron mis primeros amores, mis primeras apro-
ximaciones con la investigación narrativa que después, bueno, ocupó una
gran parte de mi vida, o mejor dicho, generó en mí una forma bastante
particular de aproximarme a los problemas educativos, de nombrarlos, de
pensarlos. Como diría Contreras, de Universidad de Barcelona, España,
una forma de profundizar narrativamente la educación, de abrir esta sen-
sibilidad, que no tiene que ver estrictamente con lo que no solo se diría no
campo de la discusión epistemológica sino en otros campos, estético, ético
y político, que también son centrales en la hora de pensar en una forma
de saber, en una forma de denominación de mundo, en una forma interro-
garse a cerca del mundo, que me parece es lo que ofrece a la investigación
narrativa esa oportunidad de pensar en un nuevo mundo.

Quem era Daniel, quando de seu encontro com as narrativas?


En años 80, era un pesquisador, tesista becario, bolsista, era muy jo-
ven y además participé de investigación con la que fue mi maestra, Gaciela
Batallán. Tuve mucha suerte en este momento porque tuve una bolsa de
la universidad de Buenos Aires y, en aquel momento, con los subsidios
que otorgaba la Universidad, los pesquisadores, los directores de proyec-
tos podían contratar a personal para las tareas de pesquisa. Además de ser
bolsista; cobraba un sueldo, un contracto por me dedicarme fulltime a la
investigación. Hoy eso seria impensable. Lo cuento porque es anecdóti-
co la capacidad de un director de subcontractar gente y la posibilidad de
no facturar lo trabajo. Pero, bueno, [la situación], en aquella ocasión, fue
prehistórica, digamos, y también con un grande esfuerzo mío por afiliar-
me al campo académico. Aquello fue una oportunidad muy grande por-
que podía dedicarme fulltime a la pesquisa y a la docencia. Con mucho
entusiasmo y con la suerte también de participar en ese equipo, Graciela
Batallán es una de las promotoras, de los principios de los 80, de modali-
dad participativa y dialógica de pesquisa, de incorporación de profesores a
ámbitos conversacionales y dialógicos de interacción. Desde el principio,
aprendí no solamente con la bibliografía, si no participando de este grupo
de pesquisa lo que son las relaciones simpáticas, las posibilidades episte-
mológicas, pero también metodológicas, de los enfoques conversaciones
y dialógicos. La inmersión desde principio fue la modalidad de pesquisa

292
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

interpretativa, hermenéutica, en aquella época leía Gadamer y a Paul Ri-


coeur, y juntamente con ella, Graciela Batallán, me inicie las lecturas.
Y también me inicie mi formación por afiliación, socialización, mi
formación experiencial, también en un equipo de investigación muy con
relaciones horizontales muy firmes, pues en aquella época era mucho
más difícil de conseguir. Lecturas de autores latinos americanos fueran
también hechas.
Pero, claro, después, mi aproximación a estas mismas lecturas venía
con otro tipo de preocupación. Como funcionario, formaba parte de los
equipos técnicos superiores de lo Ministerio de la Educación, pero no por
carrera, sino por un cargo técnico político. A mi me llama lo Secretario de
Educación, - porque conocía mi trabajo, mi currículo, al trabajo con do-
centes, mis estudios sobre la conflictividad docente etc., incipiente porque
eran de campo e relativamente conocidos - y me dice… “Daniel, ayudamos
a descentrarnos el lenguaje de la reforma.” En eso fracasé rotundamente.
Porque, bueno, fue el gobierno de Alianza, que terminó en la crisis más
grande que tuvo en Argentina en 2001.
Yo estaba en pleno proceso de documentación narrativa con al rede-
dor de 950 docentes, profesores del país escribiendo sus relatos indagando
sus propias experiencias cuando fue la crisis de diciembre del 2001, donde
desapareció el Ministerio, la República talvez. Tuvimos cinco presidentes
en tres semanas. En esas tres semanas, el Ministerio de Educación desa-
pareció. Entonces también esto habla un poco de las condiciones en la que
estábamos trabajando. Sabemos muy bien que en un periodo de reforma
tan tecnocrático, tan autoritario y tan verticalista, como fue el de la Refor-
ma de los 90, donde los docentes se descalificaban sistemáticamente y si
pedía su palabra solo para evaluarlos o solo para descalificarla o solo para
someter a la parafernalia tecnocrática de la reforma, o para poner como
consultados en las referencias que daban legitimidad a las políticas impul-
sadas tecnocráticamente con colaboración de los organismos de créditos.
En ese momento de reforma vertical, venia a plantear relaciones
simpáticas, relaciones de conversación, de confianza, de mutua atención,
desde el Estado a los maestros les resultaba muy difícil. Sin embargo, lo
fuimos logrando, a partir de un trabajo muy de hormiga, de viajes míos y
del equipo, a cada una de las provincias y aún así las sospechas justifica-
das de los docentes, la resistencia de dar su propia palabra era muy fuerte.
Pero ahí mis preocupaciones ya no era de un pesquisador en formación, o
relativamente formado en un taller, en un oficina de docentes que narra-
ban sus experiencias en marco de una investigación, de la programación
científica de la UBA3: 12 profesores, 2 coordinadores, una de ellas la social

3 Universidad de Buenos Aires.

293
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

otra Graciela Batallán, yo trabajando en ese momento como registrador y


asistente, la condiciones son completamente distinta, no solamente de es-
cala, no solamente de dispositivos como también de interrogante político,
o de interrogante de otro tipo. Era, también, una posición de recepción de
lectura de esos materiales completamente distintas a las que tenia en mi
proceso de formación, donde me encantaba decir palabras difíciles, para
dar a conocer mi erudición bibliográfica y teórica. Era otro que valía en mi
anunciación, por ahí: la seducción, la convicción, la sensibilidad política,
la escucha de otro tipo. Iba a leer esos textos de forma completamente
distinta y pensaba los dispositivos de aquella forma distinta. Ahora lo inte-
resante fue para mi, en mi propria biografía, en mi propia trayectoria, que
esos tres años en el Ministerio de Educación a mi me cambiaron la forma
de pensar inclusive la investigación. No solo por haber experienciado, por
haber tenido la experiencia de tener que leer, escuchar, hablar y escribir
de manera distinta de ministerio, con otros interlocutores, tratándolos de
convencer de una política que en aquel momento resultaba desopilante.
Sino también, de cómo pensar los dispositivos de indagación. Yo creo que
aproveché mucho en el Laboratorio de Políticas Públicas, en un principio
mucho más que es, en la Universidad de Buenos Aires.
La Universidad de Buenos Aires, en los primeros 2000, estaba diezma-
da por la reforma, la asfixia económica y además los profesores universita-
rios ganábamos miseria, sinceramente miserias. No nos alcanzaba a mil lo
que yo ganaba en la universidad, no me alcanzaba para pagar los servicios
de mi casa. Ese seria un fenómeno muy generalizado en mi generación y en
los poco más grande también de tener pluriempleo, de ser profesores a tiem-
po completo en la Universidad, pero al mismo tiempo tener otros emple-
os porque no alcanzaba para vivir. Eso generó también un mecanismo muy
perverso en la Universidad que luego se corrigió, que cierta permissividad
a respecto de la dedicación fulltime de los investigadores y profesores. Eso
también es un problema de condiciones de producción en Argentina.
Primero el LPP (Laboratorio de Políticas Públicas) como un espacio
de experimentación metodológica muy intensa, tuvimos proyectos muy
grandes con el Ministerio de Educación, con el Ministerio Providénciale,
con sindicatos, con Organizaciones Sociales, en triangulación con minis-
terios. Ya en el gobierno Kirchnerista deshabilitaron estos experimentos,
entre organizaciones académicas, entre organizaciones sociales y el Esta-
do, generando algunos proyectos. Tuvimos algunos proyectos interesantes
y luego, yo diría un tanto tardíamente, dentro de la Universidad. Cuando
se generaron las condiciones en la universidad para poder llegar adelante
a través de la extensión universitaria, a través de la investigación sistemá-
tica, el trabajo académico… bueno ahí sí pudimos desarrollarlo a través de
tesis, de semanarios, de actividades académicas, de vinculaciones acadé-

294
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

micas con grupos de pesquisas de otras universidades, fundamentalmente


de Brasil, pero también de Chile, de Colombia, de Mexico, de Costa Rica,
de España, de Portugal, de Italia y de Francia. También esa misma dinámi-
ca fue generando la filiación de nuestro equipo, de nuestro grupo dentro
de esta comunidad académica que será autorreferencia en investigación
de narrativa biográfica y autobiográfica. Y a tal punto, esto se desarrolló
en Argentina, que ahora con la Universidad Mar del Plata estamos codi-
rigiendo un programa específico de investigación narrativa biográfica y
autobiográfica para el doctorado de la Universidad Nacional del Rosário.
Un programa específico en investigación de narrativa biográfica y auto-
biográfica en educación como programa de doctorado. Ese fue al menos mi
itinerario, mi vinculación con la investigación narrativa, donde las pregun-
tas, insisto, siempre tuvo atravesadas por esta propia vida, por esta propia
trayectoria en mi caso.
El caso de Luis Porta, que es otra experiencia también interesante
en un grupo de investigación que se forma en Argentina, siguió un camino
completamente distinto, mucho más vinculado a la investigación académi-
ca, a lo Conicet4, a la universidad. Y tal vez estudiar la trayectoria de los
dos grupos puede ser también interesante para ver como también las con-
diciones de producción y de enunciación habilitan determinado tipo de
pregunta y determinados tipos de problemas de investigación. Por ejem-
plo, nuestra investigación com grupo de la Universidad de Buenos Aires
tiene dos perfiles. Un primer perfil que tiene que ver con la investigación
narrativa biográfica y autobiográfica clásica. Los proyectos autobiográfi-
cos que estoy dirigiendo como director de teses es autobiografía profe-
sionales, por ejemplo, estoy dirigiendo una tese de doctorado en Rosario
muy interesante, clásica, narrativa autobiográfica, pesquisa autobiográfica
resuelta narrativamente y onde se indaga la vuelta de la docencia como
punto de llegada como una trayectoria típica, alguien que comenzó en la
docencia, se fue de la docencia, hizo una carrera profesional por fuera de
la docencia y vuelve a la docencia como punto de llegada. Estamos traba-
jando narrativas autobiográficas mismo. Es un estudio clásico de esta línea
de investigación, o investigaciones que se construyen relato de experiencia
de otro, por ejemplo, como se construye el espacio educativo en contexto
de cierro, en cárceles federales, en programas educativos específicos y de-
más. Y otro grupo de investigación donde nosotros indagamos el dispo-
sitivo metodológico que utilizamos en las investigaciones coparticipadas
con docentes, en la red de formación docente de narrativa pedagógica, que
donde llegamos a delante do proceso de documentación narrativa. Estos

4 O CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas) é o principal organismo dedicado à


promoção da ciência e a tecnologia na Argentina.

295
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

procesos coparticipados entre investigadores universitarios y docentes or-


ganizados para generar procesos de indagación de narrativa autobiográ-
ficas de experiencia pedagógica, o mejor, de documentación narrativa de
experiencia pedagógica, como una estancia y un proceso de investigación
pedagógica en el sentido que le comentaba antes.
Ahí se da un fenómeno muy interesante, porque como pesquisado-
res universitarios nosotros no interpretamos los relatos de los docentes, o
mejor, también colaboramos en el espiral hermenéutica colectiva que le
proponemos a los docentes para que indaguen su propia experiencia. Pero
no cerramos la interpretación, o en esta dualidad que plantea el circulo her-
menéutico, consideramos a los relatos como interpretación de primer grado,
nuestros relatos o nuestras interpretaciones de segundo grado son inter-
pretaciones de interpretaciones. Por esa espiral interpretativa, participamos
de investigaciones participativas, pero nosotros, entanto que investigadores
universitarios cerramos interpretación, le ponemos nuestra firma, escribi-
mos nuestro informe y confinamos al anexo, al anonimato y a nombres muy
extraños AB 5 o 4 a los constructores de sus primeras narrativas.

A documentação narrativa como um proceso de coinvestigação (ou coparticipação)


e de transformação
Lo que tratamos de hacer en la documentación narrativa es algo dife-
rente. Nosotros, como investigadores, nos replegamos en nuestra posición,
nos incorporamos en nuestras interpretaciones en la cadena de interpre-
taciones que colaboran la interpretación del docente narrador en función
de su propia experiencia. No cerramos interpretación, pero sí trabajamos
como investigadores narrativos y autobiográficos en la reconstrucción del
dispositivo de la experiencia que llevan delante de lo docente. Para decirlo
de otra forma: nuestro “objeto” no son los relatos de experiencia de los do-
centes, sí no, nuestra propia experiencia de implementación de dispositi-
vo de la documentación narrativa de experiencia pedagógica. Investigamos
nuestros dispositivos. Por esto nuestra investigación también es una inves-
tigación narrativa y autobiográfica, porque investigamos también a través
de relato de experiencia. Pero nuestra posición en este proceso de coinves-
tigación o de coparticipación no es cerrar la interpretación, lo que cierra la
interpretación es el relato de experiencia publicado por lo docente narrador.
Luego por un proceso de indagación, que supone la escritura y la
rescritura de sucesivas versiones del relato, mediadas estas escrituras, por
lo que llamamos clínica, edición pedagógica o esta espiral hermenéutica
colectiva. La inscripción del relato en un circuito de lectura entre pares,
comentarios cruzados y conversación pedagógica en torno de los relatos
para que el docente narrador indague dos cosas: indague de nuevo la ex-

296
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

periencia a través de las pistas otorgadas por estas lecturas, comentarios


y conversaciones; y también indague lenguaje que utiliza para dar cuenta
de este. Para nosotros la investigación narrativa no solamente investiga la
experiencia, sí no también investiga el lenguaje que utilizamos para dar
cuenta de la experiencia. Entonces, luego de esta indagación narrativa y
autobiográfica del docente narrador, escribe la segunda versión del relato.
Es incorporado nuevamente en un nuevo rulo del espiral hermenéutica,
hasta que se decide publicar y si cierra el proceso, se cierra, yo diría arbi-
trariamente, como casi todas las publicaciones, el proceso de indagación
narrativa del propio docente.
Es un relato escrito en primera persona, pero escrito dentro de un
dispositivo que presupone una dimensión colectiva, comunitaria, de co-
munidad de pares, de discursos y relaciones horizontales, donde tambi-
én funciona el investigador, pero también participando en este colectivo
dando a leer sus propios relatos, que son relatos del dispositivo. También
sometiendo la lectura de pares y emparejando las lecturas dando a leer
nuestro proprio relato de experiencia, que son relato de experiencias del
coordinado del dispositivo. Entonces, el resultado de esa investigación son
los relatos de experiencia de los docentes, que ratifican la autoría de los
docentes sobre su propio relato y también el relato de experiencia nuestro
como investigadores universitarios de la implementación del dispositivo.
Así indagamos nuestro dispositivo, así los mejoramos, así nos redefinimos
también en ese proceso espiral. Hay también una cuestión epistemopolitica
interesante que tiene que ver con esta, que yo llamo “repliegue” de la posici-
ón del investigador, de la posición de la construcción del investigador narra-
tivo, lo que Boaventura de Sousa llamó y me encantó como “intelectuales de
la retaguardia”, no de vanguardia. Es decir, intelectuales, investigadores que
repliegan no solo para generar relación de horizontalidad, si no para habili-
tar palabras de otros que fueron silenciados, para lo cual tiene que generar
condiciones, también condiciones de posibilidad. Pero, más que cuestiones
epistemológicas, las preguntas son este tipo de preocupaciones.
Por supuesto hay cuestiones epistemológicas, metodológicas, medu-
lares que tienen que ver, insisto, con eso que yo llamo muy rápidamente
[…] de genero poscualitativo. A mí me gusta más la idea del doble impe-
rativo que plantea Boaventura de Souza Santos, en un libro que yo leí en
portugués, no está traducido al español que se llama “Hacia a una ciencia
pós moderna”, yo tengo por ahí, un librito muy interesante, que esta plan-
teado en una discusión entorno de la ciencia, capítulo uno, epistemolo-
gía del Sur. Ese doble imperativo, imperativo hermenéutico e imperativo
pragmático, como posibilidad de construir un nuevo paradigma de ciencia.
Interrogarse acerca del sentido y del significado que tiene para el sujeto,
considerando que ese significado y ese sentido forman parte de la realidad

297
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

social, y, al mismo tiempo, un imperativo de una ciencia que se haga res-


ponsable de sus resultados. O sea, que todo proceso de investigación es, a
mismo tiempo, investigación acción, para los cuales hay que buscar formas
de validación diferentes de las que vienen construyendo la ciencia conven-
cional o, como dice Boaventura de Sousa Santos, la ciencia moderna.
Parece que por ahí viene, por ese doble imperativo la acción de jugar,
no con los aportes, pero que se vino llamando giro lingüístico, giro narra-
tivo, giro decolonial, giro pós-moderno, giro feminista. Estando con Luis
Porta, pensamos algunas cosas y dijo: “No veo la hora de dejar de girar. Y
estar, de cierta forma, mordiéndonos la cola, como los perros que giran en
su proprio eje”. Y da un poco la idea de pensar el pasaje, de cómo trans-
bordar y construir un discurso afirmativo. Son lenguajes muy académicos,
dejemos de incomodarnos con las cosas que están pasando que me parece
que ya no podemos regordearnos con los giros y tenemos que pensar en la
construcción de un discurso afirmativo. Yo creo que hoy solo es posible
con una resistencia afirmativa, sabiendo que eso es una tarea ciclopica,
imposible por el grado de hegemonía, pero que es necesaria como una for-
ma de sobrevivencia. Creo que la preocupación necesariamente tiene que
ser epistemopolitica. No nos podemos dar el lujo de ser una Torre de Marfil
ni de engolosinarnos con nuestras propias palabras, porque las urgencias
son muchas y tiene que ver con la sobrevivencia de la especie, con nuestra
propia sobrevivencia. Ni tan solo como nuestra reproducción intelectual
en la universidad, si no, hay un problema mucho más serio que tiene que
ver con que la muerte está demasiado cerca.
[…]
Entonces, yo creo que la narrativa nos ofrece posibilidades para estos
enfoques conversacionales, indiciarios. Por esta búsqueda de nuevos len-
guajes, de nuevas sensibilidades, de romper ya, y parece, no es necesario
un movimiento pós, lo que habilita el giro, porque el giro, como metáfora,
se vuelve sobre si mismo, avanza sobre la misma ruta, por eso sale pós; pós-
-modernismo, pós-critico, pós-marxismo. Juzgo que hoy por hoy la crise
civilizatoria nos compele a pensar un nuevo lenguaje. Creo que la narrati-
va, las distintas narrativas, el arte, la literatura, el cine, pero también otras
manifestaciones que no están consagradas tan poco, como cine y pintura,
otras formas de expresión estética y humana que no están disciplinadas…
[…]
Y también las sabidurías, las sabidurías bizarras, las sabidurías es-
condidas. Un poco la narrativa… esta idea caótica que se tiene de la do-
cumentación narrativa que no es tan caótica, tiene que ver con la idea de
multitud, que es un concepto fuerte que es muy discutido. O de los huecos

298
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

anticapitalistas que plantea Rancière… esta idea de generar pequeñas co-


munidades anticapitalistas donde primen las relaciones humanas de so-
lidaridad, amistad, amor y felicidad. Aunque se sepan capsulas, aunque
se sepan inútiles en su unidad, en su singularidad. […] Esas micronarra-
tivas y esas micro comunidades, de una forma que uno puede solamente
sospechar hoy en día, puedan constituirse en un nuevo relato plural que
inevitablemente va a ser plural. Por eso esta pregunta acerca do singular.
… Somos herederos todavía de esta dualidad occidental entre el individuo
y la sociedad. Y tenemos que aprender nuevas formas de sociabilidad y no
en dos posiciones. Eso lo dicho muy rápidamente, lo singular, lo plural,
lo colectivo y lo comunitario y lo público o lo común, un espacio de lo
común, un espacio de lo singular que se pluraliza comunitariamente, o
sea, en comunidades plurales y lo plural como categoría, no simplemente
como número. No pensar o comunitario solo a partir de la pluralidad y de
la singularidad.
Eso me parece un camino posible, que nos permite eludir esa duali-
dad entre un individuo plenamente constituido y una sociedad plenamen-
te constituida, de Durkheim y de toda esa racionalidad positiva, toda esa
herencia de los liberales. Pero hay otras posibilidades y otras formas de
estar en el mundo, y creo que ahí la idea de la pluralidad epistémica o la
posibilidad de pensar distintas formas de construcción de saber y la con-
versación por la ecología o formas ecológicas de entendimiento mutuo, de
tecer campos de inteligibilidad, de evitar la traducción – no la traducción
que plantea Boaventura de Sousa Santos, pero sí la traducción de reducir
una lengua a la otra. En vez de generar entre ambas un campo de inteli-
gibilidad donde la mutua comprensión sea posible, la mutua escucha y la
producción de un discurso o de un saber, o de una narrativa, que ninguna
de esas singularidades pudo haber dicho sola o separada. Eso me parece
que es también una idea muy rica, no que viene de la ecología del saber de
Boaventura Sousa Santos que a mi me gusta pensar más en los términos
conversacionales, que a mí es más interesante. Para que una conversación
sea posible, primero es necesario que haya una igualdad desde el origen,
no como resultado de la conversación sí desde el principio. Esa idea de
igualdad de inteligencia, que plantea también Rancière de una forma bas-
tante fuerte, bastante eruptiva. Pero también a diferencia, si no hay dife-
rencia no hay conversación posible, si no hay igualdad de comienzo tam-
poco. Porque sí no o que hay es persuasión, adoctrinamiento y libertad, si
presupone la libertad que tiene uno de abandonar el propio argumento se
entra en conversación. Es decir, no como el dialogo platónico, que Platón
mostraba que idiotas eran los sofistas y que racional e inteligente era él. Si
no sabemos a dónde vamos y que voy hacer después de entrar en conversa-
ción con otro, porque tengo que construir esa posición de repliegue sobre

299
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

si mismo para poder recepcionar al otro, cultivar la posición de recepción,


aprender a escuchar y también tener la posibilidad de modificar mi posi-
ción de inicio para transmitir en otro a través de la conversación. Y una
conversación que no sabemos para donde va, justamente porque produce
así un discurso, un saber que ninguno de los hablantes pudo reconstruido
solo sin haber sometido en la conversación. Haber sometido y haber for-
mado parte de la conversación.
Eso me parece que está en fondo, este problema no va a resolver
un intelectual de vanguardia. En todo caso la posición del intelectual es
replegarse sobre si, encontrar un nuevo lugar de interlocución, traer una
conversación plural, su biblioteca por supuesto entrando en conversación
con otros. Eso me parece fundamental, porque los otros solos tampoco
van a poder llegar a encontrar soluciones o formas de saber, o formas de
conocimiento, o formas de discurso que antes solos, o por fuera del marco
conversacional. También esto en la documentación narrativa nos tratamos
de plantear, se crea una pasta institucional…. de movimiento, de la rede,
la pasta universitaria entrando en una conversación con destino incierto.
Claro, el problema es este destino incierto, […] ese problema posee una gran
virtud, porque si tú arrasas el proceso de antemano caes entrampado en las
lógicas institucionales. Solo es posible yo hacer este tipo de investigacio-
nes en los bordes de las instituciones. La extensión universitaria es para mi
el ámbito, e también la lucha para la programación científica. Claro este
tipo de investigación no nos permitiría incluir dentro de la programación
científica de la universidad. Lo que nosotros metemos dentro de la progra-
mación científica de la universidad es la investigación del dispositivo, y ahí
sí tenemos tesis, tenemos bolsas, acreditación de proyectos, en fin.

Legitimidade acadêmica da investigação narrativa


[…] Podemos contar con nuestra propia experiencia. Nosotros no tu-
vimos tanto problema, hay sí una lucha, todavía hay gente, por supuesto,
que cree que nosotros no hacemos ciencia. Por supuesto. Pero te digo que
el secreto es la comunidad científica, la fuerza, por supuesto son los argu-
mentos, pero eso hay de sobra, el problema es que son inconmensurables,
con otros. En definitiva, terminan siendo relaciones de poder las que deci-
den las cuestiones. En algunos lugares se puede avanzar más, por ejemplo,
un programa específico de doctorado en pesquisa narrativa autobiográ-
fica, biográfica en educación, en la Universidad Nacional de Rosario. La
cuarta Universidad, según los rankings, de Argentina o no tengo ningún
problema, en la Universidad de Buenos Aires de dirigir tesis que se escri-
ben en primera persona. No hay ningún problema. ¿Claro que esto implica
actitud militante, por que qué es lo que hacemos cuando participamos de
una comunidad científica más que dirimir ese tipo de cuestiones?

300
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

También conozco casos de universidades argentinas que rechazaron


investigaciones narrativas y autobiográfica o biografías. Todo eso tiene
que ver con una buena lectura de campo, de la pesquisa y de como uno se
mueve ahí. Las publicaciones científicas, los congresos, eso va generan-
do, insisto, hoy por hoy. Hoy las condiciones son completamente distintas
de cómo era hace veinte años atrás cuando comenzábamos. No existía la
posibilidad de hacer una investigación en primera persona del singular,
o investigaciones, o tesis doctorales magnificas o con fuerte componente
autobiográfico. Por supuesto que eso genera debates epistemológicos, me-
todológicos, ontológicos, pero bienvenidos sean, si están bien argumenta-
dos. Esa es una buena tesis. No la tesis que ratifica lo que ya sabemos. No
salía la palabra rigor porque me causa cierto escozor, pero digamos así,
entre comillas, “rigor” metodológico, dar cuenta del proceso, dar cuenta
de erudición, todas las condiciones de una tesis, el tema es quien evalúa la
tesis, dentro de una Universidad o programa de doctorado. Recuerdo las
peleas de Graciela Batallán, mi maestra, con la etnografía de la educación,
por ejemplo, en la década del 80.
Hoy por hoy, 80% - no sé si el 80 pero sí 60% - de las investigaciones
que aprueba el CONICET en el área de educación son etnográficas. Antes
se sospechaba. Antropólogos tienen una gran capacidad comunitaria de
lucha en el campo académico. Yo digo que hay un factor de militancia, si
quieres pensar así.
Y yo siempre digo que la vida académica en la universidad tiene cua-
tro funciones, no tres. Primero, la famosa pesquisa, enseñanza, extensión,
la cuarta la llamo participación. La sobrevivencia en el acampo académico
forma parte, por lo menos en Argentina, forma parte constitutiva de la
vida académica. Y ocupa mucho en nuestra vida académica. por ejemplo,
nosotros tenemos una fuerte participación en el Gobierno universitario. El
gobierno universitario en Argentina a diferencia de Brasil… tiene sus venta-
jas y desventajas. Una de las cuestiones es que habilita la participación polí-
tica de listas en la universidad, es un tema de conversación permanente; yo
fui director del Instituto al cual se accede por votación. Participe en Juntas
Departamentales, Consejos Directivos como parte medular de mi actividad
académica. Eso también hace parte de mi trabajo. Y cada vez más en Argen-
tina eso forma parte del trabajo del profesor y de los pesquisadores.
Y ahí está claro que uno participa de un ámbito académico, discute
de cosas académicas y participa también de relaciones de poder en el cam-
po académico. Las posiciones que uno ocupa en determinado campo, en
determinados programas, van definir la permeabilidad o no un determina-
do tipo de enfoque. […] Me parece que ese es el camino.
Por ejemplo, si a mí me vienen a pedir que dirija una tesis. Por ejem-
plo, en un programa de maestría, una tesista colombiana me pide que diri-

301
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

giese la tesis del punto de vista narrativo autobiográfico. Como yo conocía


el perfil de este comité científico de este programa de pos grado, pedí una
entrevista con la directora, con la cual conversé, le expliqué las cuestiones
de caso de la especificidad de este tipo e investigación y generamos con
ella un compromiso de que los evaluadores de esta tesis permitían la ins-
cripción y que además los evaluadores de esa tesis vendrían de ese campo.
Bueno ahí se logró que un programa que no era para tener ese tipo de en-
foque, haciendo uso de la 4a función de la vida académica, de la participa-
ción, si ustedes quieren, de la negociación política generó la oportunidad.
Si no se le decía a esta tesista que no podía en este caso. Porque no
están dadas las condiciones. Si te ponen después para evaluar esa tesis an-
tes que pretextara los agitadores que no son del campo muy probable que
no pasaran. Y tampoco amigos, no me refiero a agentes de campo. Tuve
una excelente experiencia con Inés Teixeira en la Universidade Federal de
Minas Gerais, con la tesis de Juliana Batista Faria5. Para mí fue un caso
efectivo muy interesante, con los debates que se generaron en torno de
esa tesis de doctorado que jugaba en poner justamente un poco de límite
de una simple apropiación de instrumentos metodológicos de la pesquisa
narrativa en una investigación clásica. Lo que procuramos hacer, bien o
mal, fue una investigación narrativa, autobiográfica, biográfica, también
en sentido estricto. Bueno, y generó muchos debates, muy interesantes y
al mismo tiempo fue aprobada en una universidad bastante dura en sus
criterios académicos de aprobación de títulos.

Palavras finais
Assim, concluímos esta nossa edição da entrevista com Daniel Suarez,
agradecendo sua disponibilidade e sua abertura para o diálogo conosco, di-
zendo que sentimos profundamente renovadas e inspiradas por sua narrati-
va, ainda que levantando novas questões para novas conversas. Ao que Da-
niel nos responde: “quando queiras, como quieras”, “me encanta conversar”!

5 Trata-se da tese intitulada O naufrágio, o baile e a narrativa de uma pesquisa: experiências de formação de sujeitos
em imersão docente, defendida em 2018, que contou com período sanduíche na Universidade de Buenos Aires, sob a
orientação Daniel Hugo Suárez, que se tornou co-orientador do trabalho, em parceria com Júlio Emílio Diniz Pereira
(Orientador). O estudo está disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-BA8PTQ/1/faria_2018_
tese_finalcompleta.pdf. Acesso em: 02 maio 2022

302
SOBRE AS AUTORAS E AUTORES

Adriele Machado Rodrigues


Graduada em Letras-Habilitação em Espanhol, URCAMP- Alegrete-RS, Es-
pecialista em Gestão Educacional, pela UFSM. Atualmente, é Técnica em
Assuntos Educacionais do Instituto Federal Farroupilha. Professora de Lín-
gua Portuguesa da Rede Estadual. Atua como pesquisadora no Grupo de
Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social - GEPEIS (UFSM).
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/6479175506564948
E-mail: adrielemr@gmail.com

Álida Angélica Alves Leal


Professora da Faculdade de Educação da UFMG (Departamento de Méto-
dos e Técnicas de Ensino - Geografia) nos Cursos de Geografia, Pedagogia
e Licenciatura em Educação do Campo. Doutora em Educação pelo Pro-
grama de Pós Graduação Conhecimento e Inclusão Social na Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG, 2017), na
Linha de Pesquisa Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Cole-
tivas. Temas de interesse em pesquisas: Vidas de professores/as, Formação
de professores/as, Condição docente, Profissão docente, Juventude e do-
cência, Ensino-aprendizagem de Geografia, Educação do Campo.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/6076786020372420
E-mail: alidaufmg@gmail.com

Ana Paula Soares da Silva Gomes


Mãe do João Paulo. Moradora de Ribeirão das Neves/MG. Pesquisadora das
relações entre Cinema e Educação. Mestre em Educação e Docência pela
FAE/UFMG. Especialista em Educação e Cinema pela FAE/UFMG. Gradua-
da em Biblioteconomia pela ECI/UFMG. Assistente Administrativo Educa-
cional na Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, trabalhando há mais
de 13 anos em uma biblioteca escolar. Apaixonada, entre outras coisas, por
inventar seus pequenos mundos por meio da Literatura e do Cinema.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1731805008527999
E-mail: anapssg1984@gmail.com

303
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Celia Maria Fernandes Nunes


Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Santa Úrsula (1987),
Mestrado em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos
(1995), Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (2004) e Pós Doutorado pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2010). Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal
de Ouro Preto atuando na Graduação e Pós- Graduação.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1724159981026056
E-mail: cmfnunes1@gmail.com

Cirlene Cristina de Sousa


Professora da Pós-graduação (Mestrado) e do curso de Graduação (Peda-
gogia) na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Possui dou-
torado em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014) e
graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000).
Desenvolve sua pesquisa nas áreas de educação, linguagens, cultura midi-
ática e juventudes, ensino Médio e políticas educacionais juvenis, escola e
diversidades, comunicação e educação, formação de professores.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/9127893910137084
E-mail: cirlenesousa@yahoo.com.br

Clarisse Maria Castro de Alvarenga


Professora adjunta na Faculdade de Educação da UFMG, onde integra o
corpo docente do Mestrado Profissional em Educação e Docência (Pro-
mestre). Atualmente, coordena o projeto de pesquisa e extensão Laborató-
rio de Práticas Audiovisuais (LAPA) e o Laboratório e Arquivo de Imagem
e Som (LAIS). Sua pesquisa situa-se na interface entre cinema e educação
com atenção especial aos processos pedagógicos e poéticos realizados por
coletivos e cineastas ameríndios. Entre os filmes que dirigiu, estão os lon-
gas-metragens Ô, de casa! (2007) e Homem-peixe (2017). É autora do livro
Da cena do contato ao inacabamento da história (Edufba, 2017). Em 2016,
sua tese de doutorado foi agraciada com o prêmio Eduardo Peñuela Cañi-
zal de Melhor Tese, concedido pela Associação Nacional dos Programas de
Pós-Graduação em Comunicação Social (Compós)
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/3413084947174681
E-mail: clarissealvarenga@gmail.com

304
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

Elis de Aquino
Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (2013), e em Sociologia pela Université Paris Diderot
(2014). Conclui mestrado em Sociologia pela École des Hautes Études en
Sciences Sociales, Paris (2017), e atualmente sou doutoranda em Sociologia
na Freie Universität Berlin e Research Fellow do  Colégio Internacional
de Graduados “Temporalidades do Futuro na América Latina”, financiado
pela agência de pesquisa alemã DFG. Ao lado da vida acadêmica, pratico
escalada, sou obcecada em descobrir novas músicas, com especial interes-
se por ritmos não-ocidentais. Também ando aprendendo violão e alemão
pelo Youtube.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0430539112854814
E-mail: elis.deaquino@fu-berlin.de

Fábio Júnio Mesquita


Mestrando em Educação pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(Bolsista CAPES), Especialista em Pedagogia Social e Educação de Jovens
e Adultos (FAVENI), Pedagogo (FACISA-BH). Tem interesse pelos temas:
Educação Permanente, juventudes, narrativas, movimentos políticos.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/5632599889885214
E-mail: fabiojmesquita@outlook.com

Glaucimary Nascimento Teodósio


Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e
Formação Humana da Universidade do Estado de Minas Gerais (2019) e
Doutoranda em Educação no Instituto de Educação da Universidade de
Lisboa, Portugal. Pedagoga formada pela Universidade Federal de Minas
Gerais (2008). Arte-Educadora. Escritora. Pesquisa com os professores, por
meio de narrativas, as relações entre arte e educação, com ênfase na forma-
ção ético-estética. Pesquisa também a formação experiencial de estudan-
tes migrantes por meio da investigação narrativo-biográfica.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1651371790927019
E-mail: glaunascimento@gmail.com

Inês Assunção de Castro Teixeira


Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais e Doutora em Educação pela
UFMG. Professora Titular (aposentada) da FaE/UFMG e professora vo-
luntária do Programa de Pós-Graduação em Educação: conhecimento e

305
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

inclusão social da Faculdade de Educação da UFMG. Professora visitante


da Universidade Federal da Paraíba. É pesquisadora do Grupo de Pesqui-
sas sobre Condição e Formação Docente e do Grupo Mutum: Educação,
Docência e Cinema, ambos FaE/ UFMG. Trabalha com as temáticas: da
condição docente e das vidas dos/as professores/as; dos tempos escolares
e tempos docentes; da educação, docência e cinema e com discussões da
História Oral e da Pesquisa com Narrativa. É pesquisadora do CNPq há
vários anos, mediante bolsa de produtividade em pesquisa.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1047127256639285
E-mail: inestei@uol.com.br

José de Sousa Miguel Lopes


Graduação em Pedagogia pela UFMG (1992), mestrado em Educação pela
UFMG (1995), doutorado em História e Filosofia da Educação pela PUC/
SP (2000) e pós-doutorado pela Universidade de Lisboa (2013). Professor
do Mestrado em Educação na UEMG. Experiência na área de Educação,
com ênfase em História da Educação, Moçambique, educação, letramento,
formação de professores, cinema, antropologia.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0369885239832659
E-mail: miguel-lopes@uol.com.br

José Eustáquio de Brito


Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
(1988) e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG (2003).
É membro do quadro docente permanente do Programa de Pós-Gradua-
ção stricto sensu Educação e Formação Humana da FaE-UEMG. Integra o
quadro de associados da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros
(ABPN) e de pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Edu-
cação e Relações Étnico-Raciais (NEPER) da FaE-UEMG sendo um dos
formuladores do projeto que instituiu esse Núcleo. Tem se dedicado à pes-
quisa na área de Educação tematizando as dimensões do Trabalho, Educa-
ção e Relações Étnico-Raciais.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8417738767350749
E-mail: joseeustaquio.brito@uemg.br

Karla Cunha de Pádua


É professora de Sociologia: Sociedade e Educação na Faculdade de Edu-
cação (FaE-CBH) e membro do quadro permanente de professores do Pro-

306
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

grama de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade do Estado


de Minas Gerais (UEMG). Graduada em Ciências Sociais (1983), com mes-
trado (1989) e doutorado (2009) em Educação pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Tem como interesses de pesquisa os estudos sobre
identidades étnico-culturais, educação indígena, interculturalidade, narra-
tivas docentes, formação de professores para a diversidade cultural, cultu-
ra e memória, ambiente e cultura, em uma perspectiva socioantropológica.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0070726136449085
E-mail: karla.padua@uemg.br

Marco Antônio Torres


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mem-
bro do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em
Educação desta universidade. Pesquisa e publica acerca dos contextos edu-
cacionais com ênfase nos temas Educação e Diversidade, Gênero, Sexuali-
dades, Laicidade, Direitos Humanos, Subjetividades e Identidades Políticas.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/1187338993234801
E-mail: torresgerias@gmail.com

Marilene do Carmo Silva


Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto – PPGE/
UFOP (2020). Graduação em Pedagogia, na modalidade Licenciatura, na
Universidade Federal de Ouro Preto-MG (2017). Professora contratada na
Educação Infantil na rede municipal de Ouro Preto-MG (2018). Atualmen-
te é Professora na Educação Infantil na rede municipal de Mariana-MG
(2020). Integrante do grupo de pesquisa Formação e Profissão Docente –
FOPROFI – Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP) – CNPq. Atuei como pesquisadora do OBEDUC Observató-
rio da Educação em Projeto sobre desenvolvimento profissional docente e
inovação pedagógica – OBEDUC/CAPES/Projeto em rede UECE, UFOP e
UNIFESP. Fui bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência
(PIBID/EJA) em 2017. Atuei como bolsista de Iniciação Científica financia-
da pelo PIP/UFOP entre agosto de 2015 e julho de 2016. Exerci atividades
no projeto de Monitoria da disciplina de Estágio Supervisionado, entre
abril e junho de 2015. Fui bolsista de Iniciação Científica, na mesma Insti-
tuição, financiada pela FAPEMIG no período de 2014 a 2015.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/9403860471278133
E-mail: enemary1990@gmail.com 

307
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Paulo Henrique Maia Melgaço


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade
do Estado de Minas Gerais (UEMG). Graduado em História pela Pontifí-
cia Universidade Católica de Minas Gerais (2005); extensão em Estudos
Africanos e Afro-brasileiros pela Faculdade de Educação da UFMG (2009).
Especialista em Cultura Africana e Afro-brasileira pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de Minas Gerais (2012). Professor dos anos finais do ensino
fundamental da rede municipal de Juatuba-MG.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/4415644642171672
E-mail: paulomelgaco@hotmail.com

Priscila Lima e Silva


Mestra em Educação e Formação Humana, pela Universidade do Estado
de Minas Gerais (2017). Desenvolve estudos sobre as fronteiras culturais
e a maneira como elas têm influenciado o surgimento de movimentos ar-
tísticos de resistência, como a literatura marginal. Possui graduação em
Letras - Português, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade
Federal de São João Del-Rei (2016).
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/2912399974246140
E-mail: prilimaufsj08@gmail.com

Regina Magna Bonifácio de Araújo


Professora, possui Pós-doutoramento pelo Instituto de Educação da Uni-
versidade de Lisboa, Portugal (2014/2015), Doutorado em Educação pela
Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP (2007), Mestrado em
Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF (1999) e Gra-
duação em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais-PUC-MG (1979). Professora titular - Adjunto III, Departamento
de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto, professora e pesqui-
sadora no Programa de Pós-graduação em Educação e no Mestrado Pro-
fissional em Ensino de Ciências da Universidade Federal de Ouro Preto.
Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação de Jovens, Adultos
e Idosos – GEPEJAI. Foi professora de Didática e Prática de Ensino em
outras IES, Pró-reitora de Graduação do Centro Universitário Metodista,
IPA-RS e diretora da Educação Básica em colégios da Rede Metodista de
Educação em Minas Gerais e São Paulo. Tem experiência na Educação Bá-
sica e no Ensino Superior, com ênfase em Gestão de Unidades Educativas.
Na docência e na pesquisa atua principalmente com os seguintes temas:

308
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

formação de professores - políticas públicas - educação de jovens e adul-


tos. Coordenadora da série EJA, da Coleção Docência em Formação, pela
Editora Cortez e uma das autoras do Livro “Educação de Jovens e Adultos:
sujeitos, saberes e práticas”.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/9840517590035310
E-mail: regina.magna@hotmail.com

Renata da Silva Melo


Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro-UFRJ (2014) e mestre em Sociologia e Antropologia
(2017) pela mesma instituição. Atualmente, realiza  doutorado em Socio-
logia e Antropologia pela UFRJ, com parte do trabalho de campo sendo
desenvolvido em Portugal e sob supervisão de Lígia Ferro, professora da
Universidade do Porto.  É bolsista Capes e integra o Urbano - Laboratório
de Estudos da Cidade.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8372690309272354 
E-mail: renatamelo@poli.ufrj.br

Santuza Amorim da Silva


Professora Doutora da Universidade Estadual de Minas Gerais, Belo Ho-
rizonte-MG, Brasil. Atualmente integra os seguintes grupos de pesquisas:
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Relações Étnico-Raciais
(NEPER), Nepel (FAE/UEMG) e Prodoc (UFMG). As pesquisas focalizam
os seguintes temas: formação e práticas docentes, práticas culturais e so-
ciais de leitura e desigualdades raciais/ desigualdades escolares.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/5328277676660908
E-mail: santuza@hotmail.com

Valdete Aparecida Fernandes Moutinho Gomes


Possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP), graduação em Pedagogia pela Universidade de Uberaba (UNIU-
BE) e Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP). É professora dos anos iniciais da SME de Mariana e integrante da
rede Professores Transformadores.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0751051758571523
E-mail: valdeteafernandes@gmail.com

309
Inês Assunção de Castro Teixeira, Karla Cunha Pádua e Glaucimary Nascimento Teodósio (orgs)

Valeska Maria Fortes de Oliveira


Professora Doutora Titular do Departamento de Fundamentos da Educa-
ção da Universidade Federal de Santa Maria, RS. Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social (GEPEIS). Pes-
quisadora no campo autobiográfico do imaginário social na formação de
professores. Atualmente vem trabalhando com as escolas da rede públi-
ca da cidade de Santa Maria, RS, com produção audiovisual e a formação
ética-estética e política com o dispositivo do cinema.
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/3628223248832085
E-mail: vfortesdeoliveira@gmail.com

Zulma Viviana Lenarduzzi


Licenciada en Ciencias de la Educación (Facultad de Ciencias de la Edu-
cación, Universidad Nacional de Entre Ríos, Argentina, 1994). Diplomada
Superior en Ciencias Sociales con mención en Educación y Nuevas Tecno-
logías (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina, 2019).
Diplomada en Orientación Vocacional y Ocupacional (Universidad Fava-
loro, diploma en trámite, Argentina, 2020). Doctora en Educación (Facul-
tad de Educación, Universidad Federal de Minas Gerais, Brasil, 2017). Pro-
fesora Adjunta en el Departamento de Pedagogía Universitaria, Facultad
de Ciencias de la Educación (Universidad Nacional de Entre Ríos –UNER.
Argentina).
Endereço do Lattes: http://lattes.cnpq.br/0124615197214674
E-mail: zlenarduzzi@gmail.com

310
DIDÁTICA E DOCÊNCIA: DEBATES E PESQUISAS

311

Você também pode gostar