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Da reforma à mutação constitucional


Joyce Moreiragomes

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Mut ação const it ucional e segurança jurídica: ent re mudança e permanência


Clèmerson Merlin Clève, Bruno Lorenzet t o

Mut ação const it ucional: alguns apont ament os sobre seus limit es
Pablo Cesar Nunes Borgo Guimarães

PONT ÍFICIA UNIVERSIDADE CAT ÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ADRIANO SANT 'ANA PEDRA T EORIA DA …
Maria Elisa Barbosa
Da reforma à mutação constitucional

UADI LAMÊGO BULOS

SUMÁRIO

1. Mutação constitucional: noção, existência e


constatação. 2. Questão terminológica. 3. Natureza
e categorias. 4. Rigidez e mutabilidade. 5. Limites da
mutação constitucional.

1 . M UTAÇÃO CONSTITUCIONAL: NOÇÃO , EXIS-


TÊNCIA E CO NSTATAÇÃO

Uma observação percuciente da vida cons-


titucional dos Estados, evidencia que as Cons-
tituições sofrem mudanças, além daquelas pre-
vistas formalmente.
Isto quer dizer que não é apenas através do
mecanismo instituído da reforma que os precei-
tos constitucionais vão se modificando,a fim
de aderirem às exigências sociais, políticas, eco-
nômicas, jurídicas do Estado e da comunidade.
O caráter dinâmico e prospectivo da ordem
jurídica propicia o redimensionamento da reali-
dade normativa, onde as Constituições, sem
revisões ou emendas, assumem significados
novos, expressando uma temporalidade própria,
caracterizada por um renovar-se, um refazer-se
de soluções, que, muitas vezes, não promanam
de reformas constitucionais.
É inegável que ao lado desse dinamismo do
ordenamento alia-se a estabilidade das suas
normas, mormente as Constitucionais, por
consubstanciarem a estrutura basilar do Estado.
O liame entre dinamismo e estabilidade está
Uadi Lamêgo Bulos é Advogado. Mestre e dou- presente nas ordenações constitucionais posi-
torando em Direito Constitucional (PUC-SP). tivas, permitindo o equilíbrio imperioso entre o
Professor de Direito Constitucional da Escola de
Preparação e Aperfeiçoamento de Magistrados da
elemento dinâmico e o elemento estático.
Bahia. Membro efetivo do Instituto dos Advogados O elemento dinâmico consiste num compo-
Brasileiros e do Instituto Brasileiro de Direito nente necessário para as mudanças informais nas
Constitucional.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 25
Constituições, que, diferentemente do processo tucional é a separação entre o preceito da Lei
formal de alteração, não se revestem em moldes, Suprema e a realidade, constatou que as normas
limites expressos ou requisitos específicos, constitucionais são modificadas lentamente,
arrolados pelo legislador constituinte. sem interferências do poder de reforma.3
Georg Jellinek, colocando-se entre os pri-
Já o elemento estático, por sua vez, também meiros que se preocuparam com o assunto, tam-
não exclui mudanças, pois a sua análise opera- bém aduziu:
se em consonância com o dinamismo do orde-
namento jurídico, exteriorizado pela síntese “Por reforma de la Constitución
dialética das forças de transformação da entiendo la modificación de los textos
sociedade. constitucionales producida por acciones
voluntarias e intencionadas. Y por muta-
Nesse sentido, as leis constitucionais logram ción de la Constitución, entiendo la
uma inalterabilidade relativa, dado que podem modificación que deja indemne su texto
sofrer alterações, independentemente das sin cambiarlo formalmente que se produce
formalidades especiais oriundas do princípio da por hechos que no tienen que ir acom-
rigidez, consagrado a partir do Visconde James pañados por la intención, o conciencia,
Bryce.1 de tal mutación”.4
À luz dessa constatação, os estudiosos Poderíamos citar ainda Haug, F. Klein,
perceberam que as Constituições podem sofrer Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H.
mudanças através de processos informais, isto Krüger, Heydte, Lerche, Tomuschat, Scheuner,
é, modificações que não decorrem da atuação Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, F. Müler, que,
formal do poder constituinte derivado. do mesmo modo de Hans Kelsen, compreen-
Ao fenômeno, mediante o qual os textos dem a mutação constitucional como a aplica-
constitucionais são modificados sem revisões ção de normas que se modificam lenta e imper-
ou emendas,denominaram mutação constitu- ceptivelmente, quando às palavras que perma-
cional. necem imodificadas do Texto Maior, se lhes
Parece ter sido a doutrina alemã que primeiro outorga um sentido distinto do originário ou
quando se produz uma prática em contradição
detectou o problema, ao notar que a Constitui-
com o texto, não sendo um acontecimento
ção de 1871 sofria, freqüentemente, mudanças peculiar e único na órbita das normas constitu-
quanto ao funcionamento das instituições do cionais, senão um fenômeno constatado em
Reich – mudanças estas que ocorriam sem todos os âmbitos do Direito.5
reformas constitucionais.
O alemão Konrad Hesse, a propósito, de-
Foi aí que Laband, examinando o aludido monstrou com propriedade:
texto constitucional alemão de 1871, notou
importantes modificações neste Diploma Maior, “la revisión constitucional debe ser dife-
para acompanhar a situação constitucional do renciada de la ‘mutación constitucional’
império (verfassungszustand), distinguindo a (verfassungswandel), que no afecta al texto
verfassungänderung (reforma constitucional) como tal – el cual permanece inmodificado
da verfassungswandel (mutação constitu- – sino a la concretización del contenido de
las normas constitucionales, las mismas
cional).2 pueden conducir a resultados distintos
Mais tarde, no início da década de 30, Hsü
ante supuestos cambiantes operando en
Dau-Lin, após entender que a mutação consti-
este sentido una ‘mutación’”.6
1
BRYCE, James. Constituciones Flexibles y Cons-
tituciones Rígidas.Madrid: Centro de Estudios Cons- 3
DAU-LIN, Hsü. Die Verfassungswandlung.
titucionales, 1988. p. 14: Las Constituciones del tipo Berlin: 1932. p. 29.
más antiguo pueden llamarse flexibles, porque pose- 4
JELLINEK, Georg . Reforma y mutación de la
en elasticidad y se adaptan y se alteran sus formas Constitución. Tradução Christian Föster. Madrid:
sin perder sus características principales. Las Cons- Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p. 7.
tituciones del tipo más moderno no poseen esta pro- 5
Cf.: KELSEN, Hans. Teoría General del
piedad, porque su estructura es dura y fija. Por lo Estado.Tradução Luis Legaz Lacambra. Barcelona:
tanto, no hay incoveniente en darles el nombre de Labor, 1934. p. 332.
Constituciones rígidas. Por estos dos nombres las 6
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitu-
designaremos para los fines de nuestra investigación. cional. 2.ed.Tradução Pedro Cruz Villalon. Madrid:
2
LABAND. Wandlugen der deutschen Reichver- Centro de Estudios Constitucionales, 1992. p .24. Vide
fassung. Dresden, 1895. p. 2. mais adiante a análise do binômio rigidez e mutabilidade.
26 Revista de Informação Legislativa
A noção de reforma constitucional, observa siendo suscetibles con ello de ocasionar
Karl Loewenstein, adquire um significado for- una ‘mutación constitucional’”.10
mal e outro material, ao passo que as mutações Os estudiosos constatam, pois, o fenômeno
constitucionais, além de não possuírem tal sig- das mutações constitucionais como uma cons-
nificado, não afetam a letra do texto, que perma- tante na vida dos Estados, e as constituições,
nece intacta. como organismos vivos que são, acompanham a
“Este tipo de mutaciones constitu- evolução das circunstâncias sociais, políticas,
cionales se da em todos los Estados econômicas, que, se não alteram o texto na letra e
dotados de una constitución escrita y son na forma, modificam-no a substância, o signifi-
mucho más frecuentes que las reformas cado, o alcance e o sentido de seus dispositivos.
constitucionales formales”.7 Assim, denomina-se mutação constitucional,
Manuel Garcia-Pelayo, também acentuou: o processo informal de mudança da Constitui-
“ Hemos visto las razones y las vías de ção, por meio do qual são atribuídos novos sen-
las transformaciones constitucionales tidos, conteúdos até então não ressaltados à le-
incluso en aquellos casos en que se trata tra da Lex Legum, quer através da interpretação,
de constituciones rígidas. Es, pues, cla- em suas diversas modalidades e métodos,quer
ro que la constitución sufre cambios aun- por intermédio da construção (construction),bem
que permanezca inalterable su texto y como dos usos e costumes constitucionais.
que, por consiguiente, no es el método
de reforma previsto por la constitución
2 . Q UESTÃO TERMINO LÓ GICA
el único camino para la transformación
de la misma, y hemos visto, en fin, que la Inexiste terminologia uniforme para cogno-
tranformación está estrechamente vincu- minar o fenômeno das mudanças informais nas
lada a la esencia de la constitución”.8 Constituições.
Não discrepa dessa argumentação Paolo
Biscaretti Di Ruffía, para quem Jorge Miranda, por exemplo, prefere o termo
vicissitude constitucional tácita, que, no seu
“si se quiere realmente conocer el desar- entender, compreende as modificações trazidas
rollo de la vida constitucional de un pelo costume praeter e contra legem, assim
Estado, es necesario también tener como as que resultam da interpretação evolutiva
presentes las múltiples modificaciones da Constituição e da revisão indireta, não pas-
no formales de las normas constitu- sando esta última de uma forma particular de
cionales que siempre suelen tener lugar interpretação sistemática.11
en medida más o menos acentuada, Gomes Canotilho utiliza a expressão transi-
según los diversos ordenamientos”.9 ções constitucionais, ao referir-se “à revisão
Mais recentemente, F. Müller doutrinou que informal do compromisso político formalmente
“La ‘mutación constitucional’ ven- plasmado na Constituição sem alteração do texto
drá, así, impuesta por una modificación constitucional. Em termos incisivos: muda o
producida en el ‘ámbito normativo’ sentido sem mudar o texto”.12
(normbereich) de la norma constitucio- Pietro Merola Chierchia, ao tratar da inter-
nal, pero será el ‘programa normativo’ pretação sistemática da Constituição, realça a
(normprogamm), contenido básicamente terminologia processos de fato.13
en el texto de la norma, quién determi-
nará qué hechos de la realidad quedan 10
F. Müller, apud: Pedro Cruz Villalon, na intro-
comprendidos en el ‘ámbito normativo’, dução aos Escritos de Derecho Constitucional de
HESSE, Konrad. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios
7
LOEWESTEIN, Karl. Teoría de la Consti- Constitucionales, 1992, p. 28.
tución.Tradução Alfredo Gallego Anabitarte. Barce- 11
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Cons-
lona: Ariel, 1986. p. 165. titucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1991.
8
GARCIA-PELAYO, Manuel. Derecho Cons- T. 2, p. 133.
titucional Comparado. 2. ed. Madrid: Revista de 12
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Occidente, 1951. p.126. Constitucional. 6.ed. Coimbra: Livraria Almedina,
9
DI RUFFÌA, Paolo Biscaretti. Introducción al 1993. p. 231.
Derecho Constitucional Comparado.Tradução 13
CHIERCHIA, Pietro Merola. L’interpretazione
Héctor Fix Zamudio.México: Fondo de Cultura sistematica della costituzione. Padova: Cedam, 1978.
Ecónomica, 1975. p. 347. p.128.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 27
Entre nós, Luís Pinto Ferreira, apoiado na Todavia, alguns podem entender que o
lição de Corwin, Cushman, Stier-Somlo, Jellinek vocábulo mutação não é o mais apropriado para
e Munro, adere à expressão mudança material, se delimitar as mudanças silenciosas (stillen
designando as alterações constitucionais pro- verfassungswandlugen) dos preceptivos cons-
porcionadas pelos costumes e pela interpreta- titucionais.
ção judicial.14 Certamente, a palavra possui diversas
Na década de 80, Anna Candida da Cunha acepções. Daí ser possível demarcar, como o
Ferraz utilizou as expressões processos indire- faz André Lalande, três sentidos para o signo
tos, processos não formais ou processos infor- mutação:
mais “para designar todo e qualquer meio de “Mutação D. mutation; E. mutation;
mudança constitucional não produzida pelas F. mutation; I. mutazione.
modalidades organizadas de exercício do poder
constituinte derivado”.15 A. Mudança; e, em particular, mudança
na organização social.
Compreendemos que vicissitude constitu-
cional tácita, mudança constitucional silenciosa B. Quando lidamos com uma série de
(stillen verfassungswandlungen), transições formas de uma mesma espécie fóssil, cha-
constitucionais, processos de fato, mudança mam-se variações às diferenças morfo-
material, processos indiretos, processos não lógicas que os espécimes provenientes
formais, processos informais, processos oblí- da mesma camada apresentam, e muta-
ções àquelas que os espécimes apresen-
quos, são denominações convenientes, que
tam quando provêm de camadas suces-
expressam o conteúdo dos meios difusos de
sivas.
modificação constitucional.O uso de uma ou
de outra expressão alcança o mesmo resultado, C. Transformação brusca e hereditá-
pois revela a existência de alterações operadas ria de um tipo vivo, que se produz no
no texto da Constituição, diversas da atividade, espaço de um pequeno número de gera-
adrede demarcada, do poder reformador. ções, ou até de uma só.
Com base na lição de Georges Burdeau, Crítica: o sentido B é mais antigo do
segundo a qual há um poder constituinte difuso que o sentido C. Data de Waagen, Die
que, por não ser registrado pelos mecanismos Formenreihe des Ammonites Subradiatus
constitucionais, não é menos real, seria viável a (1869); divulgou-se entre os paleontó-
denominação meios difusos, para demarcar as logos através da obra de Neumayr,
mutações realizadas fora do exercício do insti- Diestäme des Tirreiches (1889).
tuído poder reformador. O sentido C: Este foi adotado por De
De fato, as mudanças informais são difu- Vries, na sua obra Die Mutations Theorie
sas, inorganizadas, porque nascem da necessi- (1901). Rapidamente se tornou usual na
dade de adaptação dos preceitos constitucio- linguagem filosófica e biológica. O fato
nais aos fatos concretos, de um modo implícito, que ele representava já tinha sido desig-
espontâneo, quase imperceptível, sem seguir nado por Cope, Saltation, e por Korchiski
formalidades legais. sob o nome heterogênese. Lamarck
Atuam modificando o significado das nor- empregava frequentemente mutação no
malizações depositadas na Constituição, mas sentido geral, para designar as peque-
sem vulnerar-lhes o conteúdo expresso, e são nas mudanças biológicas”.16
apenas perceptíveis quando comparamos o Robert Campbell, a sua vez, analisa o termo
entendimento dado às cláusulas constitucio- associado à genética, como sendo “aquele tipo
nais em momentos afastados no tempo. de variação, na constituição biológica dos mem-
bros individuais de uma espécie, que é o resul-
tado de uma mudança permanente em seu equi-
14
FERREIRA, Luís Pinto . Direito Constitucio- pamento idioplásmico”.17
nal Moderno. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1962. T. 1,
p.108. 16
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e
15
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
informais de mudança da Constituição: mutações p. 715.
constitucionais e mutações inconstitucionais. São 17
CAMPBELL, Robert J.. Dicionário de
Paulo: Max limonad, 1986. p. 12. Psiquiatria. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 715.
28 Revista de Informação Legislativa
O dicionarista Silveira Bueno ensina que natureza informal. São mudanças de fato, por ve-
mutação traduz ,também, a idéia de “mudança, zes despercebidas, só notadas de vez em quando.
alteração, substituição, volubilidade, inconstân- Processam-se lentamente, através da inter-
cia, mudança de cenário nos teatros”.18
pretação dos tribunais, dos usos e costumes,
Evaldo Heckler leciona que mutação do da construção judicial, da influência dos gru-
latim mutare, significa “descolar, mudar, trocar, pos de pressão e de tantos outros meios que
permutar, abandonar”.19 provocam ou podem provocar alterações na
Fritjof Capra associa mutação a uma trans- realidade constitucional, embora a letra da Carta
formação do mundo e da consciência humana.20
Magna permaneça imodificada.
Mas no sentido em que estamos estudando,
o signo mutação fica bem delimitado dentro Como quer Milton Campos, são modifica-
daquela ótica proposta por Laband. ções que não geram deformações maliciosas,
Entendeu o grande publicista alemão que nem subversões traumatizantes; daí serem
uma Constituição, independentemente de refor- constitucionais.23
mas, poderia ser modificada, permanecendo Sem embargo, as mudanças informais ocor-
intacta a letra de suas normas. Utilizou, então, a rem, naturalmente, de modo espontâneo, sem
terminologia verfassungswandlugen, que sig- qualquer previsibilidade de quando irão ser vis-
nifica mutação constitucional, porque queria lumbradas. Disso decorre a natureza fática dos
aduzir às mudanças informais, que transcorriam à meios difusos de alteração constitucional.
margem da técnica da reforma, a qual já era conhe- Como mudanças de fato que são, desenvol-
cida pela expressão verfassungsanderung.21 vem-se em momentos cronologicamente distin-
O vócabulo mutação, utilizado dentro desse tos, perante situações diferentes.
raciocínio, não padece de equívocos, podendo
ser adotado com o propósito de cognominar Karl Wheare exemplificou o fenômeno com
certas mudanças que imprimem novos sentidos primazia:
às normas constitucionais, sem desfigurar-lhes “sin tocar una sola palabra de la consti-
a letra e o conteúdo. tución el congreso de los Estados
Unidos, a través de su poder para regular
3 . N ATUREZA E CATEGORIAS el comercio entre los distintos estados,
tiene autoridad sobre una extensa gama
De acordo com Georges Vedel, a natureza
de um ato ou de uma atividade jurídica pode ser de actvidades de la mayor importancia
analisada sob dois pontos de vista: o material e para el pueblo de los Estados Unidos.
o formal. No primeiro, considera-se o objeto em Esta autoridad no se ha tomado de los
sua substância. No segundo, investiga-se o estados, puesto que éstos nunca la
processo de formação do ato ou da atividade. 22 tuvieron. Había pertenecido desde el
principio al Congreso, se bien no tuvo
Trasladando o ensinamento do constitucio- mucho campo para su ejercicio. Con el
nalista francês para o objeto do nosso estudo, desarollo del tráfico entre los estados se
constataremos que os meios difusos, como o produjo un aumento en el poder del
próprio nome já indica, não seguem formalida- Congreso de los Estados Unidos y el
des ou procedimentos expressos. correspondiente cambio en el equilibrio
Por não aderirem a requisitos explícitos na de poder entre la unión y los estados que
Constituição, os meios difusos possuem a la componen. Un cambio parecido ocurrió
en Canadá y Australia”.24
18
BUENO, Francisco Silveira . Dicionário Mas alguns autores rechaçam a afirmativa
Escolar da Língua Portuguesa. 8.ed. Rio de Janeiro: de que as mutações constitucionais desenvol-
MEC, 1973. p. 896.
19
HECKLER, Evaldo et al. Dicionário Morfo- vem-se em momentos cronologicamente distin-
lógico da Língua Portuguesa . São Leopoldo: tos, ocorrendo naturalmente, sem qualquer pre-
Unisinos, 1984. p. 2.827. visibilidade, exigindo um certo período mais ou
20
CAPRA, Fritjof . Ponto de mutação. São Paulo: menos largo de tempo.
Cultrix, 1982.
21
LABAND. Wandlungen der Deutschen 23
CAMPOS, Milton. Constituição e realidade.
Reichsverfassung. Dresden, 1895. Revista Forense, v. 187, n. 679/680, p. 18-22, jan./fev.
22
VEDEL, Georges. Manuel Élémentaire de 1960.
Droit Constitutionnel. Paris: Librairie du Recueil 24
WHEARE, Karl. Las Constituciones Modernas.
Sirey, 1949. p. 112. Barcelona: Labor, 1971, p.77.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 29
Hesse, aí incluído, entende que os proces- quatro categorias:1ª) mutação constitucional
sos que dão lugar à mutação constitucional não através de prática que não vulnera a Constitui-
têm relação alguma com o caráter mais ou me- ção; 2ª) mutação constitucional por impossibi-
nos remoto da entrada em vigor de uma Consti- lidade do exercício de determinada atribuição
tuição, pois pode produzir-se ao cabo de muitos constitucional; 3ª) mutação constitucional em
anos, como também ao cabo de pouco tempo. decorrência de prática que viola preceitos da
Logo, a exigência de um certo período de Carta Maior; 4ª) mutação constitucional atra-
tempo mais ou menos largo não serviria como vés da interpretação.29
elemento caracterizador do fenômeno, pois Paolo Biscaretti Di Ruffìa averbou que as
mudanças na realidade constitucional, que não
“el supuesto más importante de mutación atingem a letra da Constituição, agrupam-se em
constitucional, el de la interpretación dois ramos, bem delimitados. No primeiro
modificada , dicha modificación no pasa- encontramos as modificações operadas em
rá despercebida a un atento intérprete”(...) decorrência de atos elaborados por órgãos esta-
“Lo que pueda ser correcto como des- tais de caráter normativo (leis, regulamentos etc.)
cripción de numerosos casos de mutaci- e de natureza jurisdicional (decisões judiciais,
ón constitucional no puede convertirse principalmente em matéria de controle de cons-
en elemento definitorio de la misma”(...) titucionalidade das leis). No segundo ramo,
“Las notas relativas a la duración y al
estão as mudanças ocorridas em virtude dos
caráter inconsciente del proceso deben
quedar, pues, excluidas”. 25 fatos de caráter jurídico (como os costumes),
de natureza político-social (normas convencio-
Seguimos a orientação, segundo a qual as nais ou regras sociais de conduta correta frente
mudanças informais da Constituição se dão,
à Carta Suprema), ou simplesmente as práticas
normalmente, em períodos separados no tempo,
sendo esta uma das marcas características do constitucionais (tais como a inatividade do
fenômeno. Isto, entretanto, não precisa ser legislador ordinário que, não elaborando nor-
levado ao pé da letra, ou seja, não descartamos mas de execução, logra, substancialmente,
a hipótese de existirem mutações constitucio- impedir a realização efetiva de disposições cons-
nais em momentos próximos, pois há algo de titucionais). 30

exato naquela afirmação de Loewestein, quando Georg Jellinek, em conferência pronunciada


diz que uma “Constituição não é jamais idêntica a na Academia Jurídica de Viena, em 28 de março
si própria, estando constantemente submetida ao de 1906, proclamou que as mutações constitu-
pantha rei heraclitiano de todo o ser vivo”.26 cionais não ocorrem unicamente pela atividade
legislativa, mas também através das práticas
Óbvio que a determinação do lapso tempo-
judiciais, parlamentares, administrativas-gover-
ral não pode ser exatificada, haja vista a
possibilidade de uma norma constitucional namentais, bem como pelo desuso das faculda-
sofrer mutação enquanto perdurar o Texto des estatais.
Supremo, sem qualquer previsibilidade de Doutrinou Jellinek que
quando isso irá ocorrer. “Los preceptos constitucionales a
menudo son oscuros o extensos y sólo
As mudanças difusas, contudo, não pos- el legislador les da sentido preciso me-
suem uma sistematização doutrinária uniforme diante leyes que los concretan de modo
e definitiva, mormente no que concerne às suas muy parejo a como el juez, primero, tomo
categorias ou modalidades. Numa palavra, exis- conciencia clara del contenido de las
tem diversos critérios salientados pelos auto- leyes que ha de aplicar. Así como por lo
res com o escopo de estudar o fenômeno. general la aplicación jurisprudencial de
Hsü Dau-Lin,seguido por Pablo Lucas los textos legales vigentes está sujeta a
Verdú27 e por Manuel Garcia-Pelayo 28, esboçou las necesidades y opiniones variables de
los hombres, lo mismo ocurre con el
25
HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Consti- legislador, cuando interpreta mediante
tucional. 2.ed. Madrid: Centro de Estudios Consti-
tucionales,1992. p. 86 - 87. 29
DAU-LIN, Hsü. Die Verfassungswandlung.
26
LOEWESTEIN, Karl. Teoria.... p. 164. Berlin: 1932, p. 21 e ss.
27
LUCAS VERDÚ, Pablo . Curso de Derecho 30
Cf.: DI RUFFÌA, Paolo Biscaretti . Introducción
Político. Madrid: Technos, 1984. p. 179-180. al Derecho Constitucional Comparado.... p. 347. — .
28
GARCIA-PELAYO, Manuel . Derecho Cons- Direito constitucional. Tradução Maria Helena Diniz.
titucional Comparado.... p. 126 - 127. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 233-234.
30 Revista de Informação Legislativa
leyes ordinarias la Constitución. Lo que en el texto de la Constitución pero que,
parece en un tiempo inconstitucional sin embargo, haga que esta signifique
emerge más tarde conforme a la Consti- algo diferente de lo acostumbrado o que
tución y así la Constitución sufre, me- perturbe su equilibrio. La segunda y la
diante el cambio de su interpretación, una más patente forma en que dichas fuerzas
mutación. No sólo el legislador puede actúan se da cuando éstas originan cir-
provocar semejantes mutaciones, también cunstancias que conducen a una modi-
pueden producirse de modo efectivo ficación en la Constitución, ya sea por el
mediante la práctica parlamentaria, la proceso de una enmienda formal o a
administrativa o gubernamental y la de través de una decisión judicial o del
los tribunales”.31 desarrollo y establicimiento de algún uso
Noutro prisma, Milton Campos ressaltou as o convención en la Constitución”.34
seguintes hipóteses em que seria possível deli- Para Wheare, tanto a interpretação judicial,
near-se a mutação constitucional: complemen- como usos e costumes, podem provocar muta-
tação legislativa, construção judiciária e con- ções constitucionais. Em sentido idêntico Hum-
senso costumeiro.32 berto Quiroga Lavié35 e Héctor Fix-Zamudio36.
Já Anna Candida da Cunha Ferraz exami-
José Horácio Meirelles Teixeira, além de nou a interpretação constitucional, em suas
indicar a interpretação da Constituição e os cos- várias modalidades, e os usos e costumes cons-
tumes, aduziu, do mesmo modo que Milton Cam- titucionais, enquanto processos informais de
pos, à complementação legislativa, admitindo mudança da Constituição, procurando seguir,
que em essência, a classificação proposta por
“outra via, pela qual freqüentemente se Biscaretti Di Ruffía.37
modificam indiretamente as constitui-
ções rígidas, falseando-se mesmo o Como se vê, não existe consenso a despeito
sentido de seus dispositivos, restringin- das modalidades pelas quais as Constituições
do-lhes ou ampliando-lhes o alcance, al- são modificadas através dos processos infor-
terando-se o seu significado, é a lei ordi- mais de mudança.
nária complementar. Como se sabe nem Na realidade, não podemos enumerar, com a
todos os dispositivos da Constituição pretensão de esgotar a matéria, o rol de todas
são auto-executáveis, isto é, aplicáveis as hipóteses em que os dispositivos de uma
por si mesmos, desde logo, mas ao con- Carta Suprema sofrem mutações no seu sentido,
trário, grande número deles necessita da significado e alcance, sem mudar a forma pres-
complementação da lei ordinária para sua crita pela manifestação constituinte originária.
aplicação. Daí reportar-se à Constituição, Isto porque, ao serem editadas, as Consti-
freqüentemente, a lei ordinária, que tuições não têm a perfeição de refletir todas as
deverá integrá-la, a fim de que tenha ple- crenças e todos os interesses em pugna. Elas
na vigência”(...) “Ora, é fácil imaginar-se derivam de um paralelogramo de forças políti-
como a lei ordinária poderá modificar o cas, econômicas, sociais, culturais etc., atuan-
sentido original e autêntico das cláusu- tes naquele determinado momento histórico.
las constitucionais, alterando-o por Daí englobarem compromissos antagô-
vezes substancialmente”.33 nicos,vontades e suscetibilidades de variadís-
O constitucionalista britânico Karl Wheare sima gama, o que não permite ao legislador
pontificou que as mudanças constitucionais
podem atuar de duas formas: 34
WHEARE, Karl . Las Constituciones.... p. 77.
“En primer lugar pueden originar un 35
Cf.: QUIROGA LAVIÉ, Humberto . Los
cambio en las circunstancias que, de por Cambios constitucionales. México: Unam, 1977. p.
sí, no conduzca a ningún cambio efectivo 112: Los Cambios Constitucionales através de la
costumbre y la jurisprudencia.
31
JELLINEK, Georg. Reforma y mutacion... 36
Cf.:FIX-ZAMUDIO, Héctor .Instituto de
p.15-16. Investigaciones Jurídicas: La interpretación consti-
32
CAMPOS, Milton . Constituição e realidade. tucional. México: Unam, 1975. p. 14: Algunas refle-
op. cit. p. 19. xiones sobre la interpretación constitucional en el
33
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de Direito ordinamiento mexicano.
Constitucional.Org. e atual. Maria Garcia. Rio de 37
Cf.: FERRAZ, Anna Candida da Cunha.
Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 146. Processos Informais.... p.13.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 31
prever todas as possíveis combinações de casos partidos políticos e independente de toda
concretos, que a experiência cotidiana possa institucionalização ou reconhecimento
proporcionar. formal nos textos jurídicos”.39
Isto enseja a utilização de determinados mé- Os grupos de pressão, portanto, que têm
todos, muitos deles espontâneos, naturais – sem sido objeto de numerosos estudos e investiga-
qualquer previsibilidade de quando irão ser acio- ções, em todas as suas modalidades e técnicas
nados – com intuito de extraírem o sentido, o sig- de ação,40 afirmam-se como uma realidade ine-
nificado e o alcance das normas constitucionais. gável em nossos dias, independentemente de
Esses métodos, que podem provocar convicções pessoais e idiossincrasias. Basta
mudanças difusas no Texto Máximo, são ilimi- ver o exemplo dos Estados Unidos, onde os
tados, porque variam de acordo com as trans- lobbies funcionam como verdadeiras empresas
formações sociais, as quais repercutem sobre especializadas, dotadas de imponentes escritó-
todo o ordenamento constitucional. rios, com organização e influência marcantes,
Realmente, não há como negar que a orde- cuja atividade é regulamentada em lei.
nação constitucional, mesmo no que atina aos Entre os americanos, contudo, tais grupos
aspectos sociais, políticos e econômicos, fun- não representam a unanimidade dos interesses,
da-se em fatos, nem como ignorar a celeridade e nem ocupam tampouco todos os setores sociais
a concomitância espácio-temporal das mudan- que demandam representação. Corwin e Koening,
ças na realidade.38 dois politicólogos americanos, alertados para
Justamente por serem inumeráveis, tais esse fato, lembravam o bom humor do Presi-
métodos alcançam várias maneiras de se exterio- dente Truman que jocosamente se proclamava
rizarem. Alguns deles já foram evidenciados, lobbyist de todo o povo, porquanto este, mar-
não apenas pela doutrina, mas também pela ginalizado em seus mais caros interesses pelos
observação atenta da experiência consti- grupos de pressão, estava sozinho e não dis-
tucional,vivida pelos Estados. punha de nenhum lobby.41
Desse modo, podem ocasionar mutações No Brasil, embora não estejam previstos na
constitucionais: a interpretação, a construção legislação, é manifesta a atividade dos grupos
judicial, os usos e costumes, as complementa-
ções legislativas, as práticas governamentais,
39
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10.ed.
legislativas e judiciárias, e até mesmo a influên- São Paulo: Malheiros Editores, 1994. p. 428.
40
A bibliografia sobre grupos de pressão é bas-
cia dos grupos de pressão. tante extensa. Desde a obra básica de BENTLEY,
Os últimos aí apontados – os grupos de pres- Arthur. The Process of Government: A Study of Social
são –, em certos momentos da vida constitu- Pressupores, 1908, até os nossos dias, várias foram
cional dos Estados, influem no processo de as formulações a respeito do problema. Dado o
mudança informal das Constituições. Nas socie- propósito objetivo desse trabalho, que é o de estudar
dades hodiernas, devido ao fato de refletirem a o fenômeno da mutação constitucional, remetemos o
estrutura econômica, social, política, religiosa, leitor aos seguintes escritos específicos sobre o tema:
BURDEAU, Georges. Traité de Science Politique.
cultural, são retratos fiéis das grandes paixões, Paris: LGDJ, 1957, T. 7. MEYNAUD, Jean. Os gru-
provenientes de aspirações cooporativas, que pos de pressão. Tradução por Pedro Lopes de Aze-
se desdobram em núcleos de configuração e vedo. Lisboa: Europa-América, 1966. 146 p. PAS-
finalidades inconfundíveis: associações, sindi- QUINO, Gianfranco . Dicionário de Política. Brasí-
catos, entidades de classe, partidos políticos, lia: Universidade de Brasília, 1988, 1318 p. Grupos
grupos artísticos, religiosos, filosóficos, orga- de pressão. MACIEL, Marco . Grupos de pressão e
nizações civis, militares etc. lobby: importância de sua regulamentação. Brasília:
Lembra Paulo Bonavides que hoje a impor- Senado Federal, 1984. 23 p. GRUPOS de pres-
são: Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1988.
tância desses grupos tomou tal dimensão que OLIVENNES, Denis e BAVEREZ Nicolas.
não há nenhum exagero em afirmar L’Impuissance Publique. Paris: Calmann-Lèvy, 1989.
“que são parte da Constituição viva ou MATHIOT, André. Les pressure groups aux États-
da Constituição material tanto quanto os Unis. Revue Française de Science Politique, set., 1952.
SANCHEZ AGESTA, Luís. Princípios de Teoria
Política . Madrid: Nacional, 1967. BERNSDORF,
38
Cf.: FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Decreto- Wilhelm . Staat un Politik. 1967: Pressure groups.
lei: um instrumento discricionário. Jornal do Advo- 41
Fato narrado por BONAVIDES, Paulo. Ciência
gado, Abr. 1985. p. 11. Política.... p. 432.
32 Revista de Informação Legislativa
de pressão, não raro sob o impulso direto dos estatuídos para tal fim, rompendo as estruturas
partidos políticos, das categorias profissionais, jurídicas que pretendam escravizá-las.
de trabalhadores ou de servidores públicos,das Embora o seu texto permaneça inalterado,
organizações econômicas, privadas e públicas, as disposições constitucionais vão lenta e
das instituições de classes liberais, militantes insensivelmente se modificando, sem mudar
da defesa do meio ambiente, enfim,dos patro- uma vírgula sequer, mas assumindo significa-
nos de diferentes interesses, que agem, forte- dos novos, sob o influxo das exigências da evo-
mente, em favor de teses e reivindicações. lução social.
Nesse ínterim, assevera Josaphat Marinho,
E os grupos de pressão podem contribuir
que:
para que esse fenômeno se intensifique.
“grupos diversos aliam-se em defesa de
Para exemplificar, veja-se o importantíssimo
determinadas posições, ainda que a um
papel da Suprema Corte norte-americana, ao
deles apenas, ou a alguns, se vincule o interpretar a Constituição de seu país, que não
interesse discutido e objeto de decisão. olvidando o influxo de fatores promanados da
Esse procedimento conjugado se exer- estrutura econômica e social, condicionados
cita, sobretudo, na medida da politização àqueles grupos da esfera intermediária entre o
das corporações profissionais, inspirado indivíduo e o Estado, nos quais um interesse se
no fundamento inteligente de que a união incorporou e se tornou politicamente relevante,
de forças fortalece a legitimidade da passou a dar novos sentidos e novos alcances
pretensão e a possibilidade de êxito do às cláusulas constitucionais, sem qualquer atua-
movimento”.42 ção do poder constituinte instituído.
Diferenciados em cada sociedade, mas sem- Lêda Boechat Rodrigues demonstrou bem a
pre atuantes, os grupos de pressão não são influência dos lobbies no processo de interpre-
fenômenos estranhos à ordem constitucional.43 tação das leis, ao estudar a Suprema Corte norte-
americana,que, ao interpretar a Constituição,
Quando aliam-se em defesa de determina- mudava o seu conteúdo sem mudar a sua letra.45
das posições, exercem forte influência sobre os
poderes públicos, dentre os quais vale desta- Tudo isso comprova que
car o órgão jurisdicional, a quem compete dizer “toda Constituição é sempre uma estrutura
do direito, naqueles conflitos de interesses qua- dinâmica, como bem assinala Linares Quin-
lificados por uma pretensão resistida.44 tana, e esse dinamismo constitucional
manifesta-se através de uma espécie de
Ao exercer a jurisdição constitucional, por- ‘poder constituinte difuso’, na excelente
tanto, o Judiciário interpreta a Constituição,e, expressão de Burdeau, fora das modali-
nesse mister, não está descartada a possibili- dades organizadas de exercício do poder
dade de atribuir à letra da Lex Legum novos constituinte, cumprindo ainda observar-
sentidos, conteúdos ainda não ressaltados, se, como o faz Friedrich, que ‘quanto mais
mudando a substância dos comandos prescri- difíceis se apresentam esses processos de
tos pelo legislador, mas sem afetar-lhes a forma. reforma, mais fortemente atuarão os
Aí, tanto quanto em tantas outras esferas processos indiretos de modificação cons-
da vida política e da ordem constitucional, as titucional’, como por exemplo pela inter-
normas supremas do Estado transformam-se pretação dos juízes e tribunais. O ritmo,
espontaneamente, fora dos processos formais mais ou menos acelerado dessas modi-
ficações constitucionais indiretas, há de
42
MARINHO, Josaphat. Grupos de pressão na variar, portanto, em cada época e em cada
sociedade. Revista Trimestral de Direito Público, n. 1, lugar, de acordo com os fatores históricos
p. 16-20, 1993. atuantes, entre os quais, evidentemente,
43
Cf.: BURDEAU, Georges . Traitè...,T. 8, p. em primeiro lugar, o próprio ritmo das trans-
136 -148.
44
CARNELUTTI, Francesco, em Sistema del formações sociais e políticas”.46
Diritto Processuale Civile,vol.I, Pádua, Cedam, 1939,
n.2 e 14, quando disse que a jurisdição é o conflito de 45
Cf.: RODRIGUES, Lêda Boechat. A Côrte
interesses qualificado por uma pretensão resistida, Suprema e o Direito Constitucional Americano. Rio
ressaltou que o interesse é a posição favorável para a de Janeiro: Forense, 1958, p. 31, 71,73,112, 176,
satisfação de uma necessidadee a pretensão a exigên- 179, 221, 297.
cia de uma parte de subordinação de um interesse 46
TEIXEIRA, J.H. Meirelles . Curso.... p.142 -
alheio a um interesse próprio. 143.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 33
No que pese à imprecisão e à vaguidade 4 . RIGIDEZ E M UTABILIDADE
criteriológica para se estudar os diversos meios
que podem ocasionar mutações constitucionais Existe uma correlação entre o corolário da rigi-
– sobretudo diante do dinamismo da ordem dez constitucional e o fenômeno da mutabilidade.
jurídica – é possível construirmos generaliza- Mutabilidade é a qualidade daquilo que é
ções, extraídas da experiência constitucional e mutável. O termo logra dois sentidos completa-
de certos conhecimentos oriundos da classifi- mente distintos: um formal e outro informal. A
cação genérica do Direito. mutabilidade formal delineia-se através da
Como é sabido, o estudo do fenômeno jurí- reforma constitucional, seja por revisão, seja
dico pode ser desdobrado em três partes: heu- por emenda. Já a mutabilidade informal
rística, morfologia e técnica. concerne ao processo difuso de modificação
da Constituição.
A heurística tem como objeto o conheci-
mento dos elementos, fatores e condições, cau- Interessa-nos perscrutar o princípio da rigi-
sas e funções do Direito na sociedade. dez em consonância com a mutabilidade infor-
mal, retirando daí possíveis previsões.
A técnica objetiva estabelecer métodos a
serem empregados na elaboração e na aplica- Para tanto, impende estudarmos a rigidez
ção do Direito. da Constituição perante os elementos estático
e dinâmico, cuja análise nos fornece uma visão
À morfologia compete o estudo das formas mais fecunda da ordem jurídica.
gerais, classificações, categorias ou modalida- Através do elemento estático, a Constituição
des, sobre as quais são elaborados os raciocí- reveste-se de certa estabilidade, de certo equilí-
nios didáticos. brio, pois a instabilidade do Texto Maior seria
Se aceitarmos as mutações constitucionais responsável pela instabilidade do próprio Estado.
como uma realidade tranformadora do sentido, Estabilidade, contudo, não significa inaltera-
significado e alcance das normas da Lei Máxima, bilidade, porquanto o dinamismo da realidade
então seria viável estudá-las do ponto de vista social, com situações e exigências sempre novas,
morfológico, procurando didatizar as suas em constante evolução, obriga a adaptação das
categorias. Para tanto nos valeríamos de dados, normas constitucionais aos ditames da vida.
extraídos da realidade concreta, todos prove- Por achar-se interligada à realidade social cam-
nientes da prática constitucional. biante, aos avanços da ciência, da tecnologia, da
Por intermédio desses dados concretos, economia, da religião, da moral etc., a Constitui-
retirados da experiência vivida pelas Constitui- ção, conforme dissemos anteriormente, é um or-
ções, poderíamos esboçar a seguinte morfolo- ganismo vivo, em consonância com as forças
gia didática, a qual abrangeria: reais do poder (Lassalle) , que funcionam como
a) as mutações constitucionais operadas em verdadeiras forças atuantes na comunidade.
virtude da interpretação constitucional, nas suas Ora, se as Constituições, para serem social-
diversas modalidades e métodos; mente eficazes, observadas e cumpridas na prá-
b) as mutações decorrentes das práticas tica, devem corresponder, ao menos em sua
constitucionais; essência, a esses fatores reais do poder – os
quais sempre variam, evoluem, modificam-se
c) as mutações através da construção cons- através das transformações e do progresso – é
titucional; evidente que os textos supremos devem seguir
d) as mutações constitucionais que contra- o ritmo das mudanças sociais.
riam a Constituição, é dizer, as mutações incons- Devem, até mesmo, abrir caminho para as al-
titucionais. terações sérias, oportunas e viáveis, “exigindo
As mutações inconstitucionais, por não respeito ao que existe de mais profundo”, como
serem alheias à realidade vivida nos diversos vaticinou Francis Delperée, ao examinar, em 1992,
Estados, foram incluídas nessa classificação, na Associação Francesa dos Constitucionalistas,
mas nada têm em comum com as mutações cons- o processo de modificação da Constituição belga.47
titucionais, haja vista que, além de violarem a
letra da Lei das Leis, desbordam o próprio con-
47
DELPERÉE, Francis . La Révision de la Cons-
titution. Paris: Association Française Des Constitu-
trole de constitucionalidade. Devido a motivos, tionnalistes, 1992. p. 67-77: Le processus de modi-
estritamente didáticos, para facilitar o estudo fication de la Constitution belge. (Economica Pres-
da matéria, preferimos enquadrá-las na tipolo- ses Universitaires D’aix-marseille, collection Droit
gia proposta. Public Positif).
34 Revista de Informação Legislativa
Nesse ínterim, a efetividade48 de uma norma É utilizando, para tanto, certo processo for-
constitucional repousa na sua capacidade de mal – complexo e específico, diverso dos meios
enquadrar e fixar, na ordem jurídica, as vonta- comuns de elaboração das leis ordinárias e
des e as instituições menores que a sustentam, complementares.
as quais devem corresponder às forças sociais, Logo, é possível dizermos, como o fez James
políticas, econômicas, morais, religiosas, exis- Bryce, que rígida é a Constituição somente sus-
tentes no grupo social. cetível de mudança por intermédio de um pro-
Se, ao invés, a base constitucional assen- cesso solene e complicado, bem mais específico
tar-se em poderes fictícios, sem raiz histórica e rigoroso do que aquele utilizado para modifi-
precisa, procurando impor idéias e interesses car as leis em geral. Para ele as Constituições
minoritários, a Constituição torna-se mero rígidas possuem uma autoridade superior à das
arcabouço formal, sem qualquer utilidade outras leis do Estado e são modificadas por pro-
prática. cedimentos diferentes daqueles pelos quais se
editam e revogam as demais leis.49
Assim, a vida constitucional dos Estados
desenvolve-se perante dois elementos, aparen- Foi Bryce, porém, quem cunhou as expres-
temente contraditórios: o estático e o dinâmico. sões rígida e flexível, pela primeira vez; histori-
O elemento estático consigna uma exigência camente a rigidez é muito mais antiga.
indispensável à segurança jurídica, evitando, Certamente, o pórtico da rigidez constitu-
ao menos em tese, a instabilidade institucional, cional não foi detectado apenas por Bryce.
procurando salvaguardar os direitos e garantias Aristóteles já distinguia a politéia (normas
fundamentais da pessoa humana; o elemento fundamentais da organização política) dos
dinâmico propicia a adaptação das Constitui- nomói (normas ordinárias, fundadas na
ções às exigências do progresso, da evolução e politéia). Em Roma , as normas fundamentais
do bem-estar social. somente podiam ser alteradas por juízes
O vetor da rigidez da Constituição encontra especiais,e, em França as leis fundamentais do
guarida precisamente nesse contexto. Trata-se reino só sofriam modificações oriundas dos
de técnica capaz de atender a ambas exigências Estados Gerais, sem falar no período antes da
de estabilidade e dinamismo constitucionais. Revolução Francesa, quando Vatel, em impor-
Tornam-se possíveis alterações formais tante obra50, Rousseau, Bodin e Huber insistiam
(revisões e emendas), imprescindíveis à adap- na diferença formal entre as leis fundamentais e
tação das Constituições a novas realidades as outras leis comuns.
fáticas. Há muito tempo, pois, o princípio da rigidez
Só que ao estabelecerem o processo de constitucional vem registrado como uma exi-
revisão ou emenda, os legisladores fazem-no gência indispensável para a mudança formal da
cautelosamente, de modo a tornar tais técnicas Constituição, consistindo em um processo
de mudança mais solenes, árduas, difíceis, solene, dificultoso e demorado, sem a facilidade
demoradas, para que não sejam de inopino, des- e a rapidez de elaboração das leis comuns.
propositadas, sem previsibilidade de quando Podemos destacar os seguintes caracteres
irão ocorrer. do aludido primado da rigidez:
Daí a exigência da ponderação e equilíbrio a) dificultar o processo reformador da Cons-
nas instituições ao se pretender reformular a tituição;
letra do Texto Magno. b) assegurar a estabilidade constitucional;
48
Compreenda-se o vocábulo efetividade, como c) resguardar os direitos e garantias funda-
a capacidade de atuação prática da norma mentais, mantendo estruturas e competências,
constitucional,fazendo prevalecer, no mundo dos com vistas à proteção das instituições.
fatos, os valores por ela tutelados. Nessa ótica,a efe- Das características apontadas, deflui a
tividade simboliza a aproximação, tão íntima quanto assertiva de que qualquer mudança formal,
possível, entre o dever-ser normativo e o ser da rea-
lidade social. Ademais, efetiva é a norma constitu- 49
BRYCE, James . Constituciones flexibles y
cional que enseja a concretização do direito que nela Constituciones rígidas.... p.9.
se substancia, propiciando o desfrute real do bem 50
VATEL. Le Droit des Gens ou Principes de la
jurídico assegurado.Cf.:BARROSO, Luís Roberto .O Loi Naturelle Appliqués à la Conduite et aux Affaires
Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Nor- des Nations et des Souverains .Nouvelle Édition,
mas. Rio de Janeiro: Renovar, 1990. Paris, 3 v. Guillaumin, 1863.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 35
operada na Lex Legum, só se faz possível atra- progressiva adaptação às necessidades políti-
vés de processos complexos e demorados, para cas e sociais, da educação política do povo a
adquirir o Texto Maior muito mais estabilidade. que se aplicam. Trata-se de estabilidade real,
O problema da estabilidade constitucional autêntica, ao passo que as Cartas escritas, dog-
fica então resolvido, sem prejuízo de modificar- máticas, por faltar-lhes aquelas condições, pro-
se a Constituição, independentemente de moti- curam criar, artificialmente, uma estabilidade
vos imperiosos, que aconselhem ou exijam alte- técnica, ao consagrarem processos jurídicos
rações amplas ou restritas. complicados, difíceis, demorados e solenes de
reforma.
Contrapõe-se à Carta rígida a denominada
flexível, que é a capaz de ser, a cada momento, “Por isso mesmo, autores como
modificada, expandida, contraída, sem processo McBain preferem falar em estabilidade
formal complexo, solene, demorado, dificultoso. sociológica (caso da Inglaterra) e estabi-
Por isso notou Bryce, quando utilizou o termo, lidade legal (Brasil, Estados Unidos,
que a Lei Magna da Inglaterra transformava-se França etc.). Daí o paradoxo, apenas apa-
constantemente, pois o Legislativo aprovava, rente, de um país como a Inglaterra, cuja
com freqüência, leis que atingiam os métodos Constituição é flexível, apresentar uma
de governo e os direitos políticos dos cidadãos. estabilidade política muito maior que os
países do continente europeu e da nossa
Sempre ao fim de uma sessão parlamentar, América Latina, como suas enfáticas
não havia a certeza de que aquilo que era tido constituições rígidas. Evidentemente
como Constituição continuaria sendo a mesma vale muito mais a rigidez sociológica, que
coisa de antes. Isto porque as Cartas flexíveis se assenta na mais ou menos perfeita ade-
são as que estão no mesmo nível das outras quação entre a Constituição e a conjun-
leis do País, procedendo das mesmas autorida- tura social e política, que a rigidez pura-
des que fazem as leis ordinárias e sendo pro- mente jurídica, geralmente incapaz, como
mulgadas e abolidas segundo o mesmo proce- sobejamente no-lo demonstra a História,
dimento daquelas.51 de resistir ao impacto das crises políticas
A distinção operada entre as Cartas rígidas e sociais, do desajustamento entre o sis-
e as flexíveis, contudo, não encontra acolhida tema político e jurídico e as exigências da
unânime na doutrina. Há, por exemplo, que fale realidade político-social”. 53
em constituições imutáveis, graníticas e into- Certos autores54 lembram ainda das Consti-
cáveis52, que não estabelecem o seu próprio tuições transitoriamente flexíveis, que podem
processo de reforma, como a Constituição ser reformuladas, durante certo período, por
espanhola de 1976 e a italiana de 1848. Seriam processos idênticos aos de elaboração de uma
constituições permanentes, para toda a vida, lei ordinária, como, por exemplo, a Carta irlan-
não admitindo que nenhum poder possa legiti- desa de 1922 (art. 50) e as constituições de cer-
mamente reformulá-las, e, muito menos, revo- tos Estados da Alemanha, que permitiam a
gá-las. Numa palavra, não haveria órgão com- desnazificação, sem qualquer observância às
petente para revê-las. normas constitucionais. Daí a Carta de Baden
Vimos, alhures, que se na história dos tem- (1947), que previa no seu art. 128:
pos remotos o dogma das constituições eter-
nas vem registrado, o mesmo não se pode dizer “A lei pode estabelecer normas jurídi-
em nossos dias, pois seria errôneo e mesmo cas especiais até 31 de dezembro de 1948,
ingênuo conceber-se uma Constituição – no mais tardar, para libertação do povo ale-
verdadeiro organismo vivo, inalterável, frente mão do nacional socialismo e do militarismo,
à realidade social cambiante, em constante evo- e para remoção de suas conseqüências”.
lução e transformação. Ao lado dessas últimas constituições,
Todavia, ressalta Meirelles Teixeira que enfatiza Nelson Sampaio as fixas. Elas seriam
algumas Constituições, a exemplo das histórico- assim denominadas pelo fato de só sofrerem
costumeiras (Carta inglesa), apresentam uma
estabilidade que lhes advém da sua própria 53
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso.... p. 112.
natureza, de sua lenta formação, da sua 54
Cf.:SAMPAIO, Nelson de Sousa .O Poder de
Reforma Constitucional.3.ed.rev.e atual. por Uadi
BRYCE, James . Constituciones.... p. 64.
51
Lamêgo Bulos. Belo Horizonte: Nova Alvorada,
Cf.:ARNOLD, Gabriel . De la Révision des
52
1995, p. 68. TEIXEIRA, J.H.Meirelles. Curso....
Constitutions. Paris: Arthur Rousseau, 1896. p.112.
36 Revista de Informação Legislativa
alterações por meio de um poder de competên- membros (art. 60, I, II, III), o mesmo não se exige
cia igual ao que as criou, isto é, por uma nova para a iniciativa de elaboração das leis ordinárias
manifestação do poder constituinte originário. e complementares (art. 61).
São constituições silenciosas quanto ao pro- Logo, o constituinte de 1988 achou por bem
cesso de reforma, e.g., o Estatuto do Reino da permitir alterações na ordem constitucional
Sardenha de 1848, que depois se tornou a Cons- somente mediante processos, solenidades e exi-
tituição da Itália, assim como a Constituição gências formais,especiais, diversos e mais difi-
espanhola de 1876.55 cultosos daqueles processos comuns de ela-
Houve também quem falasse em graus de boração legislativa.
rigidez56, aparecendo a classificação das cons-
tituições em muito rígidas e pouco rígidas, que Rigidez e flexibilidade, portanto, constituem
variam de acordo com o processo reformador uma base perfeitamente útil de classificação,
mais ou menos rigoroso, solene e complexo. principalmente nos países como o Brasil, de
Por este critério, a Lei Maior dos Estados escassa educação política e tradição constitu-
Unidos seria muito rígida, porque o processo cional, com acentuada instabilidade política.57
de sua alteração é difícil e complicado, enquanto Nesses países as cartas rígidas desem-
a Constituição soviética qualificariar-se-ia como penham importante papel. Servem para demar-
pouco rígida, pois para a sua reforma seriam car o âmbito de exercício do Poder Legislativo,
necessários apenas dois terços dos votos do evitam mudanças desnecessárias, previnem
Soviet Supremo. alterações facilitadas e reviravoltas inusitadas,
colocando em destaque matérias primordiais
Em que pese à diversidade de formulações para o imperioso equilíbrio da sociedade.
doutrinárias a respeito do assunto, a rigidez e a
flexibilidade consignam critérios classificatórios As constituições do tipo rígido possuem um
úteis para a compreensão do mecanismo fundamento lógico de existência, pois servem de
constitucional de um Estado. freio para a deflagração de mudanças bruscas,
Através da maior ou menor complexidade que porventura tentem comprometer a pacifici-
do processo de reforma, é possível sentirmos a dade da vida constitucional dos Estados.
anatomia da organização estatal. A experiência constitucional tem demons-
trado que só é admissível tocar nas bases do
Veja-se, a propósito, o Estado brasileiro, Texto Supremo em casos de urgência e necessi-
consubstanciado na Carta Política de 5 de dade, e, mesmo assim, de modo limitado, através
outubro de 1988, cuja rigidez das normas que o do mecanismo da emenda (reforma de menor
instituem fica constatada na simples leitura do extensão), antes até do mecanismo de revisão
seu art. 60, em cujo regaço encontramos os (reforma de maior abrangência).
requisitos exigidos para a emenda.
Com isso não se quer dizer que o corolário
Dentre tais requisitos estão aquelas cláu- da rigidez deva funcionar como óbice às trans-
sulas que não podem ser abolidas, levando-nos formações do progresso e da evolução social.
a admitir que a forma federativa de Estado, o A ratio essendi do princípio não consigna uma
voto direto, secreto, universal e periódico, a barreira para impedir modificações indispensá-
separação dos poderes, os direitos e garantias veis, oportunas e benéficas para o crescimento
individuais fazem parte da estrutura, da confi- material e espiritual da sociedade.
guração mesma do Estado brasileiro.
Como acentua Carl Friedrich, o excesso gera
E esta rigidez fica mais clara ainda se obser- a instabilidade, pois o uso exagerado do vetor
varmos o processo de propositura de emendas, da rigidez pode causar movimentos revolucio-
pois enquanto a Carta de 1988 poderá ser emen- nários, quando as disposições do Documento
dada mediante proposta de um terço, no mínimo, Supremo não conseguirem se ajustar aos novos
dos membros da Câmara dos Deputados ou do reclamos sociais, algo admissível em todo o
Senado Federal, do Presidente da República, mundo.58
de mais de metade das Assembléias Legislativas
das unidades da Federação, manifestando-se, 57
Nesse sentido: TEIXEIRA, José Horácio
cada uma delas, pela maioria relativa de seus Meirelles. Curso.... p. 106 e ss.
58
Cf.: FRIEDRICH, Carl. Teoria y realidad de
55
Cf.: SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Poder de la organización constitucional democrática. Tradu-
Reforma.... p. 54 -61. ção Vicente Herrero. México: Fondo de Cultura Eco-
56
Cf. TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso.... p. 112. nômica, 1946.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 37
Acrescente-se a isso que em torno do pri- distribuídos. É, enfim, a lei suprema do
mado da rigidez alicerçam-se temas fundamen- Estado, pois é nela que se encontram a
tais para a vida constitucional dos Estados, tais própria estruturação deste e a organiza-
como: ção de seus órgãos; é nela que se acham
a) a diferença entre poder constituinte e as normas fundamentais do Estado, e só
poder originário e poderes constituídos; nisso se notará sua superioridade em
b) supremacia e hierarquia das normas cons- relação às demais normas jurídicas”.59
titucionais; Não se confunda, todavia, a supremacia
c) inconstitucionalidade das leis e dos atos formal com a supremacia material. A diferença
normativos; é de notória importância, pois as constituições
d) controle de constitucionalidade das leis flexíveis também são supremas, mas do ponto
e dos atos normativos; de vista substancial, sociológico.
É que, como explicam Georges Burdeau 60 e
e) indelegabilidade de competências cons- Franco Modugno 61, a supremacia material pode
titucionais. ser constatada nas cartas flexíveis, logrando
Realmente, o princípio da rigidez constitu- nesse caso a natureza sócio-política, socio-
cional coaduna-se com o poder criador da Cons- lógica, pois.
tituição. Nas palavras de Marcelo Neves,
Trata-se do poder constituinte originário “Mesmo nos sistemas carentes de
que, ao desempenhar uma atividade normativa Constituição em sentido formal, há um
em primeiro grau, difere da função exercida pelo núcleo normativo regulador do processo
Poder Legislativo, que encontra na Constitui- de produção das normas jurídicas gerais,
ção sua origem, limites e formas de atuação, caracterizado como uma Constituição em
cumprindo-lhe criar leis ordinárias, resoluções, sentido material estrito, cujo conteúdo
alguns atos políticos e administrativos, cuja tem uma supremacia jurídica intrínseca,
atividade encontra-se circunscrita às normas da por ser logicamente anterior às demais
Lei Maior. normas gerais (legais e costumeiras) per-
Estas últimas – as normas constitucionais tencentes ao ordenamento jurídico. Em
propriamente ditas, a fim de serem reformadas – realidade, quando, nos sistemas de Cons-
deparam-se com o primado da rigidez, decor- tituição flexível, a legislatura ordinária
rendo daí a maior dificuldade de alteração das reforma as normas de conteúdo intrinse-
mesmas do que para a modificação dos precei- camente constitucional (Constituição em
tos jurídicos da ordem estatal. sentido material estrito), deve atuar de
Ademais, é da essência da rigidez a supre- acordo com o procedimento por elas
macia formal da Constituição. É nesse sentido mesmas prescrito, sob pena de sanção
que se diz que o Texto Constitucional é a Lei por invalidade formal”.62
das Leis, a Lei Máxima, o Código Supremo de Já a supremacia formal seria aquela respon-
um povo, a base de todo o Direito estatal, o sável pela distinção operada entre leis comuns
limite de toda a atividade infraconstitucional, o e leis constitucionais. Ela encontra-se adstrita
fundamento último de todas as instituições. à reforma da Constituição, na medida em que
procura estruturar um processo mais dificulto-
Por isso, escreveu José Afonso da Silva so e solene para a sua mudança.
com pena de ouro:
Dessa supremacia formal promana uma hie-
“Da rigidez emana, como primordial rarquia normativa, que, partindo da norma
conseqüência, o princípio da suprema- superior, tem por escopo regular o modo de cria-
cia da Constituição que, no dizer de ção da norma inferior. Esta, por sua vez, proce-
Pinto Ferreira, ‘é reputado como uma derá da mesma maneira em relação à norma que
pedra angular, em que se assenta o edifí-
cio do moderno direito político’. Significa
que a Constituição se coloca no vértice
59
SILVA, José Afonso da. Curso.... p. 49.
do sistema jurídico do país, a que confere
60
BURDEAU, Georges. Traité.... p. 90.
61
MODUGNO, Franco. L’invalidità della legge.
validade, e que todos os poderes esta- Milano, Giuffrè, 1970, v. 1, p. 71-72.
tais são legítimos na medida em que ela 62
NEVES, Marcelo . Teoria da inconstituciona-
os reconheça e na proporção por ela lidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 65.
38 Revista de Informação Legislativa
lhe está imediatamente abaixo, e assim por próprio exercício da função que garante
diante. a Constituição”.64
Como conseqüência da hierarquia norma- Por fim, o princípio da rigidez também man-
tiva, que exige a conformidade da norma jurí- tém nítida ligação com a indelegabilidade das
dica inferior à norma superior, exsurge a idéia competências constitucionais.
de que não deve haver poder arbitrário, pois a É sabido que a Constituição distribui com-
nenhum órgão estatal é dado o poder de editar petência entre os entes públicos, assim como
normas incompatíveis com a Constituição. entre as funções legislativa, executiva e judi-
Ocorrendo contradição entre um ato nor- ciária.65
mativo ou um ato administrativo com a Carta Em matéria de rigidez, a conseqüência mais
Maior, ter-se-á a hipótese de inconstitucionali- importante, no que diz respeito às competên-
dade – o vício mais grave que pode sofrer uma cias constitucionais, pauta-se na impossibili-
norma ou ato do poder público, porque “coloca dade de transferir-se a uma entidade ou órgão
em choque uma manifestação derivada, secun- do poder público uma parcela das atribuições
dária, do exercício do poder público, com as específicas, enfeixadas na Lex Legum.
normas fundamentais do Estado, ameaçando- Assim acontece porque as competências de
lhe, portanto, a própria estrutura e funciona- cada entidade constitucional ou órgão público
mento, tal como nelas previstos”.63 são organizadas de modo cuidadoso, de acordo
Considerado vício irremediável, a inconsti- com a natureza das funções, não sendo possí-
tucionalidade é algo que pode violar o princí- vel uma esfera extrapolar a órbita de outra.
pio da legalidade, em detrimento a algo que é de Ora, se as cartas rígidas só podem ser alte-
fundamental importância nos Estados que pos- radas por meio de processos difíceis e compli-
suem um Texto Maior rígido: a limitação da ati- cados, estabelecidos nelas mesmas, logo não é
vidade legiferante ordinária pelos preceptivos possível haver delegação de competências,
constitucionais. exceto na hipótese de reforma constitucional,
Sem dúvida, a Constituição, mesmo dotada que, modificando a forma dos preceitos relati-
de supremacia, não está imune aos abusos e vos à matéria, atribua a uma certa entidade
violações, tanto por parte do legislador ordiná- função que antes não era sua.
rio, como das autoridades públicas em geral. Excetuada a via da reforma, qualquer modi-
É exatamente aí que reside o fundamento ficação através de lei ordinária, no sistema de
básico do controle de constitucionalidade das competências constitucionais, será inconstitu-
leis e dos atos do poder público, com vistas à cional. Não pertine, em regra, a delegabilidade
defesa da Carta Magna. de competências nas constituições rígidas, o que
Não basta que as normas constitucionais obriga o órgão a praticar atos dentro dos limites
sejam hierárquica e formalmente superiores às estabelecidos pelo legislador constituinte.
leis em geral, e que estas devam compatibilizar- Tecidas essas breves considerações sobre
se àquelas. Urge que seja acionado o meca- a importância do princípio da rigidez, que
nismo do controle de constitucionalidade das espraia a sua influência sobre todo o ordena-
leis, juridicamente verificado, com o fim espe- mento jurídico, vale examinar como ele se apre-
cífico de fiscalizar a legalidade dos atos norma- senta diante do fenômeno da mutação consti-
tivos. tucional.
Entre nós, Gilmar Ferreira Mendes demons- Para tanto, cumpre indagarmos: a mutação
trou que: constitucional só ocorre nas constituições rígi-
“controle jurisdicional de constitu- das? Estariam as constituições flexíveis também
cionalidade desenvolve-se, por definição, sujeitas a mudanças informais?
no âmbito de um processo mais ou menos A experiência constitucional dilucida que o
complexo, atendendo às próprias caracte- fenômeno da mutação constitucional independe
rísticas do ordenamento jurídico. E o da rigidez do Texto Magno. Tanto as cartas
modo de provocar o exame da questão
constitucional assume importância fun-
64
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de Cons-
damental, uma vez que dele depende o titucionalidade.... p.117.
65
Cf.:ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de.
As Competências na Constituição de 1988. São Paulo:
63
TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso.... 126. Atlas, 1989.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 39
rígidas como as flexíveis estão sujeitas ao Isto não significa que alguns países de Carta fle-
influxo de novos sentidos, novos significados, xível escapem da incidência dos processos indi-
que, embora não mudem a letra dos precepti- retos de modificação constitucional, v.g., Ingla-
vos supremos do Estado, conferem-lhes conteú- terra, Nova Zelândia, Finlândia, África do Sul etc.
dos ainda não contemplados, quer através da in- Do mesmo modo que as constituições rígi-
terpretação e da construção judicial, quer por meio das, as flexíveis, por intermédio da interpreta-
dos usos e dos costumes constitucionais. ção em suas diversas modalidades, da constru-
Sendo o princípio da rigidez aquele corolá- ção dos tribunais, dos usos e costumes consti-
rio, no qual é estabelecido um processo especial, tucionais, estão predispostas a mutações, e,
mais solene e dificultoso, para a alteração das com isto, transformam-se espontaneamente, fora
normas constitucionais, seria normal, à primeira dos processos formais previstos para este fim.
vista, que toda e qualquer mudança fosse ape- As constituições flexíveis, fora de dúvida,
nas produzida, com base em requisitos formais podem lograr novos sentidos e significados na
e específicos. compreensão de seus artigos, incisos, alíneas,
Na realidade, nem sempre é assim, pois as seja para acrescentar, suprimir ou alterar algo.
constituições, sem qualquer processo formal de Tomemos como exemplo as mutações cons-
modificação, são alteradas no sentido, signifi- titucionais operadas na histórica e flexível Lei
cado e alcance de seus preceitos, mesmo per- Magna da Inglaterra.
manecendo intactas na estrutura, dentro dos
moldes estipulados pelo legislador constituinte Para facilitar o estudo da Constituição
originário. inglesa, os professores de Direito costumam
dividi-la, didaticamente, em duas partes: a escrita
Os Estados Unidos, por exemplo, têm Cons- e a não-escrita.
tituição rígida, mas tal rigidez não impediu que A parte escrita é composta dos atos ou tra-
certas disposições, mormente as referentes à tados de união, das leis expressas do Parlamento
distribuição de competências entre o Estado (Statutes Law) e das Cartas – acordos solenes
central e os Estados-membros, sofressem ou pactos (Bill of Rights).
modificações informais por meio da interpre- A parte não-escrita da Constituição inglesa
tação judicial, a fim de adaptarem-se à realidade forma-se pela jurisprudência (Case Law) e pelas
social cambiante. convenções constitucionais (Constitutions
Óbvio que nessa hipótese a interpretação Conventions).
não feriu a letra plasmada pelo constituinte São nas Conventions que encontramos a
americano, e a mutação gerada foi “constitu- parte mais importante da Lei Magna dos ingle-
cional”, modificando apenas o sentido, o signi- ses, nas quais repousam o fulcro da organiza-
ficado e o alcance daqueles preceitos jurídicos, ção política do Estado francês, como o Parla-
mas sem promover qualquer inconstitucionali- mento, o Gabinete, o Primeiro-Ministro, a irres-
dade. ponsabilidade da Coroa, a nulificação do direito
Em França, inobstante a rigidez proclamada de veto, o apelo à decisão do eleitorado em caso
pelo seu Texto Supremo, são perceptíveis as de conflito entre o Gabinete e o Parlamento.
mutações ocorridas pelas práticas consuetudi- Cada convenção apresenta-se como dispo-
nárias. Neste País a atrofia do direito de disso- sições da prática política, sendo tidas como
lução do Presidente frente ao Parlamento, anu- obrigatórias para aqueles a que elas se dirigem.
lando uma norma expressa na Constituição, pro- Não podem ser invocadas em juízo e não exis-
vocou uma mudança difusa, através de um uso tem sanções judiciais específicas, se isso lhes
constitucional. fosse solicitado. Malgrado, contêm os grandes
Mas a dinâmica constitucional dos Estados princípios políticos, coordenando a mecânica
demonstra que as constituições flexíveis tam- do funcionamento dos poderes.
bém são suscetíveis de serem alteradas através As Conventions apresentam-se como pre-
de mudanças informais. ceitos de natureza costumeira, promanando daí
Vale dizer: o fenômeno da mutação consti- a conclusão de que o Texto inglês é um diploma
não totalmente escrito, no qual encontramos o
tucional não é exclusivo das constituições fenômeno da mutação constitucional, adaptando
rígidas. ditas convenções à realidade circundante.
Certamente, o princípio da rigidez predomina Grande parte de certos acontecimentos fun-
no panorama do constitucionalismo moderno. damentais para a conformação do poder político,
40 Revista de Informação Legislativa
que em outros lugares estão revestidos por nor- do mesmo modo que as rígidas –, evoluem no
mas jurídicas numa Carta escrita (Loewenstein), sentido, significado e alcance de seus precei-
tem lugar na Inglaterra, principalmente na trans- tos, através dos processos informais de
formação da decisão monárquica pela decisão alteração constitucional.
parlamentar, sem que nenhuma lei tenha outor-
gado tal faculdade, e mesmo assim sempre há
uma absoluta obediência entre as convenções 5 . LIMITES DA M UTAÇÃO CONSTITUCIONAL
e a realidade constitucional modificada. Konrad Hesse chamou-nos a atenção para
Associe-se a tudo isso as decisões juris- o intrigante problema dos limites da mutação
prudenciais, interpretativas das cláusulas inin- constitucional.66
teligíveis, ou melhor, dos atos ou tratados da
União, das leis expressas do Parlamento, dos A maioria da doutrina não enfrentou o tema
acordos ou pactos solenes (parte escrita), que especificadamente não sendo descipienda a
aumentando e até modificando o sentido origi- assertiva, segundo a qual inexiste estudo siste-
nal dessas cláusulas, atribuem novos sentidos mático no tocante às limitações dos processos
às prescrições constitucionais. indiretos de mudança da Constituição.
Enfim, qualquer Constituição, rígida ou fle- Contudo, a prática constitucional evidencia a
xível, pode sofrer mutação constitucional. impossibilidade de traçarmos, com exatidão, as
Até porque seria equívoco admitir-se crité- limitações a que estão sujeitas o poder consti-
rio absoluto no que concerne à classificação tuinte difuso, de que nos fala Burdeau, respon-
das Constituições, pois nem sempre os textos sável pela ocorrência daquelas alterações infor-
maiores são totalmente escritos e, muito mais, que, se não alteram a letra dos preceitos
menos,totalmente consuetudinários (não- supremos do Estado, modificam-lhes a substân-
escritos). cia, o sentido, o significado e o alcance.
Em verdade, não é possível determinar os
Se, por um lado, países de documentos rígi- limites da mutação constitucional, porque o
dos e escritos, como o Brasil, a França, os Esta- fenômeno é, em essência, o resultado de uma
dos Unidos, procuram enfeixar, de uma maneira atuação de forças elementares, dificilmente
exaustiva e única, os princípios fundamentais que explicáveis, que variam conforme acontecimen-
os regem, a estruturação, os limites do poder es- tos derivados do fato social cambiante, com exi-
tatal, as competências, os direitos e deveres dos gências e situações sempre novas, em cons-
cidadãos, por outro prisma, surgem, inexoravel- tante transformação.
mente, outras necessidades e outras carências. Logo, as mutações constitucionais não se
Tais necessidades e carências, manifesta- produzem através de meios convencionais e em
das em momentos afastados no tempo, recla- razão de um Direito Constitucional estático,
mam o lento trabalho dos costumes ou a ativi- acomodatício. Ao invés, podem ser produzidas
dade técnica dos juízes e tribunais, que inter- de diversas formas, tais como por intermédio
pretando os ditames da Lei Maior, atribuem- da interpretação, dos usos e costumes, da cons-
se-lhes novas significações, outrora não trução judicial, dentre outros modos de ocor-
contempladas. rência do fenômeno.
Demais disso, inadmissível é a hipótese dos Uma teoria jurídica dos limites da mutação
textos totalmente costumeiros, vale dizer, intei- constitucional só seria possível, ressalta Hesse,
ramente não-escritos. “mediante el sacrificio de uno de los
Conforme dissemos, até a Constituição da presupuestos metódicos básicos del
Inglaterra - considerada exemplo típico de Texto positivismo: la estritcta separación entre
consuetudinário e não-escrito –, compõe-se de ‘Derecho’ y ‘realidad’, así como los que
atos, pactos, cartas, evidenciando uma parte constituyen su consecuencia, la inadmi-
escrita, ao lado da sua parte mais importante, sión de cualesquiera consideraciones
formada pelas convenções constitucionais e históricas, políticas y filosóficas del pro-
decisões jurisprudenciais (parte não-escrita). cesso de argumentación jurídica”.
Mas, o mesmo Hesse conclui que a separa-
E diante das transformações sociais, políticas, ção metódica entre Direito e realidade, com o
econômicas, bem como do influxo de substan- intuito de se obter parâmetros jurídicos para
ciais deslocações nos esquemas de distribuição
do poder político, as constituições flexíveis – 66
HESSE, Konrad. Escritos.... p. 81 - 104.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 41
determinar os limites da mutação constitucio- se puede explicar satisfactoriamente
nal, esbarra em um problema de magnitude cuando se parte de una relación de coor-
extrajurídica, pois denación correlativa entre normalidad e
“dicha realidad resulta inevitablemente normatividad”.
– a pesar de la ‘separación metódica’ – Analisa Hesse69 não obstante, ao doutrinar
jurídicamente relevante: incapaz por que a mutação constitucional encontra seu li-
definición de operar en el interior de la mite na própria normatividade da Constituição,
norma misma, modifica por así decir Heller utilizou um raciocínio genérico e difícil
desde fuera el Derecho constitucional de de precisar, sem pontos de apoio que permitam
una forma explicable sólo políticamente, uma concretização do problema.
no jurídicamente, al hacer ocupar su lugar Estamos que é impossível se estipular crité-
por ‘una situación constitucional’ diver- rios exatos para o delineamento dos limites da
gente que, desplazando a las normas de mutação constitucional.
la Constitución, deviene ella misma Isto porque uma Constituição é um orga-
Derecho”.67 nismo vivo, em cujo esteio encontramos a auto-
Outros autores alemães também não respon- consciência de um povo, assentado em uma
deram de forma satifatória a questão dos limites base territorial definida, e submetido a um
da mutação constitucional. Heller, aí incluído, governo soberano, numa determinada época
admitiu que o fenômeno encontra limitações na histórica, sujeita a fatores sociais cambiantes.
própria normatividade da Constituição. Entende
que uma mudança de significado na norma cons- Como a doutrina das mutações constitucio-
titucional se encontra adstrita à normali- nais é o reflexo, teórico e prático, desses fato-
dade dos fatos, a qual não pode renegar por res sociais cambiantes, ela se produz quando a
completo à normatividade, pois ambos elemen- normatividade constitucional se modifica pelo
tos estão coordenados entre si, formando a influxo de acontecimentos que não afetam a sua
tensão entre o sein e o soler. forma, porém transmutam seu conteúdo.
Por conseguinte, o fenômeno é involuntá-
Heller, para chegar a essa conclusão, enten- rio e intencional, como disseram Laband e
deu que “não se podem considerar completa- Jellinek, e por isso não podemos imprimir-lhes
mente separados o dinâmico e o estático, tam- uma exatidão, a ponto de prevermos a unanimi-
pouco podem sê-lo a normalidade e a normati- dade dos casos de mutação constitucional que
vidade, o ser e o dever ser no conceito da Cons- a experiência possa ensejar.
tituição. Uma Constituição política só se pode
conceber como um ser a que dão forma as nor- Diversamente da reforma constitucional, a
mas. Como situação política existencial, como mudança difusa da Lei Maior não segue limites
forma e ordenação concretas, a Constituição previstos pelo legislador, nem tampouco for-
só é possível porque os partícipes consideram mas expressas e sacramentadas. Surge espon-
essa ordenação e essa forma já realizadas ou taneamente, de modo subreptício, sem previ-
por realizar-se no futuro, como algo que deve sões de quando irá ocorrer.
ser e o atualizam”.68 Por essa razão, Georg Jellinek, nascido em
A partir daí compreende que os limites da Leipzig (16.6.1851) e falecido em Heidelberg
mutação constitucional só podem ser claramen- (12.1.1911), um dos pioneiros no estudo das
te compreendidos mutações constitucionais, observou, percucien-
temente:
“cuando la modificación del contenido
de la norma es comprendida como cambio “Los preceptos constitucionales a
‘en el interior’ de la norma constitucional menudo son oscuros o extensos y sólo
misma, no como consecuencia de dasar- el legislador les da sentido preciso
rollos producidos fuera de la normati- mediante leyes que los concretan de
vidad de la Constitución, y cuya ‘muta- modo muy parejo a como el juez, primero,
ción’ en normatividad estatal tampouco toma conciencia clara del contenido de
las leyes que ha de aplicar. Así como por
lo general la aplicación jurisprudencial de
HESSE, Konrad. Escritos.... p. 91.
67
los textos legales vigentes está sujeta a
HELLER, Herman. Teoria do Estado.Tradução
68

Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jôu,


1968. p. 296. 69
HESSE, Konrad. Escritos.... p.99.
42 Revista de Informação Legislativa
las necesidades y opiniones variables de empreender o processo interpretativo, que sem
los hombres, lo mismo ocurre con el transbordar os mecanismos de controle de cons-
legislador, cuando interpreta mediante titucionalidade, adequaria a Lei Máxima
leyes ordinarias la Constitución. Lo que à realidade social cambiante.
parece en un tiempo inconstitucional É inegável que esse limite subjetivo, consubs-
emerge más tarde conforme a la Consti- tanciado no elemento psicológico da consciên-
tución y así la Constitución sufre, cia do intérprete em não desbordar os parâme-
mediante el cambio de su interpretación, tros jurídicos, através de interpretações maliciosas
una mutación. No sólo el legislador e traumatizantes, não pode ser levado às últimas
puede provocar semejantes mutaciones, conseqüências, diante da realidade cotidiana dos
también pueden producirse de modo diversos ordenamentos constitucionais.
efectivo mediante la práctica parlamen- Referimo-nos à existência de mudanças
taria, la administrativa o gubernamental informais, resvaladoras dos cânones normati-
y la de los tribunales. Han de interpretar vos, preceituados nas Constituições, que nem
las leyes y también las normas constitu- sempre seguem os moldes estabelecidos pelo
cionales, pero de modo subrepticio una poder constituinte originário.
ley constitucional puede adquirir, poco a
poco, un significado totalmente distinto Ao invés, o que se constata, cada vez mais,
al que tenía en el sistema originario”.70 é a proliferação dos processos inconstitucio-
nais de mutação do Texto Magno, ou porque o
Diante de tudo isso, as mudanças informais controle de constitucionalidade não se apre-
da Constituição não encontram limites em seu senta efetivo, “ou porque esse controle não
exercício. A única limitação que poderia existir - logra atingir o universo de atos e práticas
mas de natureza subjetiva, e, até mesmo psico- desenvolvidas no âmbito dos poderes consti-
lógica, seria a consciência do intérprete de não tuídos, ou porque pela própria natureza do pro-
extrapolar a forma plasmada na letra dos pre- cesso ele se subtrai, sem possibilidade de san-
ceptivos supremos do Estado, através de inter- ção, a qualquer controle de constitucionalidade,
pretações deformadoras dos princípios funda- exercido por órgão ou poder constituído. O
mentais que embasam o Documento Maior. único tipo de controle que poderá incidir sobre
Assim, estar-se-ia evitando as mutações in- tais mutações é o controle não organizado, isto
constitucionais, e o limite, nesse caso, estaria por é, acionado por grupos de pressão, pela opi-
conta da ponderação, por parte do intérprete, ao nião pública, pelos partidos políticos etc.”.71

70
JELLINEK, Georg . Reforma Y mutacion.... p. 71
FERRAZ, Anna Candida da Cunha . Processos
15 - 16. informais.... p .213 -214.
Brasília a. 33 n. 129 jan./mar. 1996 43

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