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na Doutrina Portuguesa
Recuperando a temática, que desde logo nos suscitou interesse no primeiro ano da
licenciatura, é nosso intento elaborar uma triagem crítica da doutrina portuguesa
mais relevante e, num quadro intermédio entre a exposição e a dialética, é nosso
dever, nesta investigação propedêutica, pensar, refletir e concluir, tentando lograr
fazer dogmática, sem ser dogmático. Eis a lição, já veiculada com alguma
longevidade, pelo regente.
Pelo que, após a resenha doutrinal, pretendemos erigir uma posição intermédia
que nos leve a pôr em cheque as teses concomitantemente mais ortodoxas e
fechadas, erigindo um quantum mínimo, embora assaz inferior aos postulados de
eternidade, para que de Constituição material se possa falar, não descurando
alguns problemas que hodiernamente se suscitam, mormente ao nível da crise da
sub-representação no âmbito do sistema político.
Revisão. 2.1. Tese da Relevância Absoluta. 2.2. Tese da Irrelevância. 2.3. A Denúncia
do Malogro da Super-Rigidez por Lucas Pires. 2.4. Tese da Relevância Relativa ou
da Dupla Revisão. 2.5. Tese da Relevância Limitada (Posições Intermédias). 3.
Posição Adotada. Bibliografia.
1
Trata-se do poder constituinte, i.e., do poder para elaborar e sancionar positivamente uma
Constituição. Mas esse poder só é legítimo se for exercido dentro de um quadro democrático, i.e.,
se for exercido pelo povo, quer a título de representatividade numa Assembleia Constituinte, quer
a título direto, participando diretamente nessa opção, quer a título semidireto, mediante um
referendo. De outra maneira, estamos perante uma proclamação autocrática, dimanada do
monarca, de uma figura carismática ou de uma pequena oligarquia, outorgando uma
“Constituição”, que mais não é do que um documento proclamatório ostensivo, com um alcance
meramente semântico. Para maiores desenvolvimentos, vide J.J. GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 63-84.
2
ROGÉRIO SOARES, “Constituição (Política)”, in Polis – Enciclopédia VERBO da Sociedade e do
Estado, Vol. I, 1983, col. 1167.
3
Mais desenvolvidamente, AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, La Revisión Constitucional y el
Ordenamiento Portugués, 2ª edição, Lisboa-Madrid: Edições estado&direito, 1995, pp. 29-38.
4
Por oposição, autores há que propugnam que no poder de revisão se trata da subsistência do poder
constituinte originário, onde a revisão é sempre possível e ilimitada. Não estamos de acordo com
esta posição, porquanto essa revisão total representaria, no mínimo, uma verdadeira transição
constitucional, e não o rever de aspetos específicos, que veiculam uma revitalização da Constituição
ante o confronto com a realidade efémera.
5
Pedimos a terminologia de empréstimo a JORGE MIRANDA. Segundo o insigne constitucionalista,
as vicissitudes constitucionais consubstanciam um conceito lato, que compreende “quaisquer
eventos que se projetem sobre a subsistência da Constituição ou de algumas das suas normas”.
(JORGE MIRANDA, Curso de Direito Constitucional, Vol. I, Lisboa: Universidade Católica Editora,
2016, pp. 154-155).
6
Assim, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84: “Uma constituição revista continua a ser a
mesma constituição. O próprio da revisão, é, justamente, o não importar o exercício de um novo poder
constituinte originário. É um acto de autoconservação e de auto-regeneração da Lei Fundamental,
traduzido na eliminação de normas que, entretanto, se mostraram desajustadas, e no aditamento de
outras que novas necessidades impuseram como condição de revitalização da mesma lei básica. A
revisão constitucional não importa, pois, qualquer ruptura com o quadro essencial de valores vigente
até aí, nem a sua substituição por uma nova ordem ou fundamento de validade”.
7
JORGE MIRANDA, op. cit., p. 158.
8
AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 47-65. JORGE MIRANDA, op. cit. pp. 136-170. VITAL
MOREIRA, Sebenta de Direito Constitucional, 3ª edição, Porto: s.n., 2019, pp. 40-43.
9
Posição assaz peculiar é a de BARBOSA RODRIGUES, sustentando que a revisão constitucional
de 1982 arvorou-se materialmente numa transição constitucional, mercê de uma alteração
substancial na organização política do Estado, constituindo a sua regulação objeto do direito
constitucional, ao vislumbrar a substituição do “sistema de governo complexo governamental-
presidencial “sui generis” por um “sistema de governo simples governamental”. (L. BARBOSA
RODRIGUES, O Primeiro-Ministro, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2012, pp. 245-248).
10
CASTANHEIRA NEVES, “A Revolução e o Direito – A Situação de Crise e o Sentido do Direito no
Actual Processo Revolucionário”, in ROA (Revista da Ordem dos Advogados), ano 35, Vol. I, 1975,
pp. 26-27.
que formam os limites materiais ao poder de revisão, de que ora curaremos (art.
288º CRP)11.
A Constituição, no seu art. 288º, contempla um leque assaz alargado de
limites materiais ao poder de revisão, leque esse que não encontra semelhante
quadro noutras experiências constitucionais europeias12.
Tal leque confronta-se com o seguinte problema: é legítima a compressão
intergeracional concernente ao poder decisório? I.e., é legítimo que a Constituição,
intentando limitar a alteração de certas matérias e a revisibilidade das próprias
“cláusulas pétreas”, limite, com igual força, o direito das gerações futuras ao poder
de fixar determinadas opções jurídicas e políticas, em função dos condicionalismos
externos?
A doutrina, mormente a doutrina jurídico-constitucional portuguesa, não é
unânime.
Para uma parte da doutrina, os limites materiais vêm tutelar a Constituição
contra momentos jurídico-políticos conjunturais, passíveis de aniquilarem o
conteúdo identitário da lei fundamental, propugnando a tese da relevância
absoluta dos limites materiais13.
Em sentido contrário, há quem defenda que os limites materiais constituem
uma imposição de uma ditadura de valores não consentânea com a soberania do
povo e com a sua inerente mutação geracional. Não obstante, inexiste uma posição
11
Segundo uma leitura superficial do texto Constitucional, há limites que não podem ser
ultrapassados, atingindo um grau de transcendência: são eles, nos termos do art. 288º: “a) a
independência nacional e a unidade do Estado; b) a forma republicana de governo; c) a separação das
Igrejas do Estado; d) os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; e) os direitos dos trabalhadores,
das comissões de trabalhadores e das associações sindicais; f) a coexistência do setor público, do setor
privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; g) a existência de planos
económicos no âmbito de uma economia mista; h) o sufrágio universal, direto, secreto e periódico, na
designação dos titulares eletivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local,
bem como o sistema de representação democrática; j) a separação e a interdependência dos órgãos
de soberania; l) a fiscalização da constitucionalidade por ação ou por omissão de normas jurídicas;
m) a independência dos tribunais; n) a autonomia das autarquias locais; o) a autonomia político-
administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.
12
A título de exemplo, as Constituições francesa e italiana, erigem a limite material ao poder revisão
única e exclusivamente a forma republicana de governo.
13
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit. p. 1031.
14
PAULO OTERO, A Democracia Totalitária - Do Estado Totalitário à sociedade totalitária. A
influência do totalitarismo na democracia do século XXI, Cascais: Princípia Editora, 2001, p. 243.
15
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 181-182.
16
Para BLANCO DE MORAIS, existe um conjunto de limites materiais intangíveis positivados na
Constituição, dotados de uma “proeminência substancial”, porquanto na sua caracterologia estão
ancorados critérios de essencialidade e de absoluta indispensabilidade, que constituem conditio
sine qua non à existência da nossa ordem constitucional. A eliminação dos limites materiais
intangíveis comportaria uma fraude constitucional. No entanto, o autor rejeita uma resistência
transcendental desses limites ao próprio poder constituinte, admitindo a latência existencial do
poder de criar uma Constituição. Com efeito, uma revisão simulada pode em todo o momento dar
lugar a uma transição constitucional. Cremos que esta convicção doutrinal apela sub-repticiamente
a uma rutura constitucional desnecessária, em jeito de assunção constituinte popular, apontando,
lógico-materialmente, para uma certa relativização dos próprios limites, qual paradoxo insanável!
A latência do poder constituinte, passível de simulação mediante a capa da revisão constitucional,
redundando numa transição, já se não trata de uma fraude, mas de uma força existencial, decisória,
legítima e imparável? Deve ficar a questão levantada. (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de
Direito Constitucional, Teoria da Constituição em Tempo de Crise do Estado Social, Tomo II, Vol. 2,
Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 285-289).
17
MARCELO REBELO DE SOUSA sustenta que a preterição dos limites materiais significa uma
rutura constitucional, pois que surgirá uma nova Constituição material. A aposição de tais limites
constitui uma legítima expressão da soberania popular, não havendo a pretensão de “cristalizar”
uma manifestação do legislador constituinte num dado momento histórico. Mas não haverá aqui
uma contradição? Com efeito, como é que não haverá tal pretensão de cristalização, se a superação
de tais limites – todos eles, note-se – constitui, para o autor, uma rutura da ordem constitucional?
(MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional I – Introdução à Teoria da Constituição,
Braga: Livraria Cruz, 1979, pp. 83-85).
18
MELO ALEXANDRINO tem defendido a tese da relevância absoluta, com base numa pluralidade
de postulados jurídicos. 1) inexistência de equiparação entre o poder constituinte e o poder
constituído; 2) o poder constituinte está limitado por prescrições constituintes prévias; 3/4) os
limites materiais, enquanto normas constitucionais hierarquicamente superiores às demais,
arvoram verdadeiras e absolutas proibições, cuja violação comporta a sua colocação fora da ordem;
5) há uma presunção constitucional de utilidade e relevância dos limites expressos; 6) os limites
materiais tutelam traves mestras da Constituição; 7) tutelam núcleos e princípios essenciais; 8)
assumem funções de classificação, individualização, advertência e de relevância da sua
superioridade normativa; 9) garantem o conteúdo material identitário da Constituição; 10) podem
ser objeto de interpretação e aplicação restritivas. (JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Lições de
Direito Constitucional, Vol. I, 3ª edição, Lisboa: AAFDL Editora, 2017, pp. 235-236).
19
PAULO FERREIRA DA CUNHA, Direito Constitucional Geral, Lisboa: Quid Juris, 2006, pp. 130 e
ss.
20
Para VITAL MOREIRA, a não aposição de limites materiais à revisão constitucional arvorar-se-ia
na subversão dos traços essenciais conformadores da coletividade política, i.e., do complexo de
direitos e princípios fundamentais concretizados num amplo leque de posições jurídicas subjetivas
face aos poderes públicos, num determinado sistema político e económico e num quadro
garantístico da própria Constituição. Por outro lado, como a faculdade de rever a Constituição
deriva de uma atribuição genética – o poder constituinte -, sustenta MOREIRA que tal faculdade
está originariamente submetida a balizas materiais, teleologicamente subordinadas à defesa e
preservação da Constituição e não à sua livre alteração. Ademais, a admissibilidade da reapreciação
do “sistema essencial de valores da Constituição” por um ato ulterior, tendo por pressuposto a
correção material das ideias chave que presidem à Constituição, redundaria numa contradição
insanável, posto que “seria pressupor que o poder de revisão pode, com mais fidelidade do que o poder
constituinte, traduzir as ideias fundamentais que o próprio legislador constituinte pôs na
Constituição”. (VITAL MOREIRA, Constituição e Revisão Constitucional, Lisboa: Editorial
Caminho, 1980, pp. 102-103; 106-107). Tal posição não pode ser sufragada, pois que se consubstancia
num pacto irrevogável entre a geração constituinte e a gerações futuras, a despeito das
contingências e mutações sociais. Note-se que a revisão não deve arrogar-se o direito de corrigir
retroativamente as ideias estruturais da Constituição. Neste aspeto assiste razão a VITAL
MOREIRA. Malgrado, o legislador constituinte não pode arrogar-se o direito de congelar a
Constituição ad aeternum, porquanto o direito tem de acompanhar a dinâmica da vida social e os
fenómenos políticos. A revisão visa adequar funcionalmente a Constituição às novas exigências do
desenvolvimento sociopolítico e não a substituição de uma Constituição por outra, como pretende
MOREIRA.
21
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1030.
22
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1031.
23
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1032.
24
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 1033; 1038-1040.
25
Correção nossa. A autora, por lapso, escreveu artigo 295º.
26
SUZANA TAVARES DA SILVA, Direito Constitucional I, Coimbra: Instituto Jurídico – Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 39. Isto, não obstante a presença na discursividade
político-social a iminência de nova revisão.
27
Embora inserido sistematicamente nos direitos económicos, sociais e culturais, a doutrina tem
entendido que o direito de propriedade constitui um direito de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias. Ademais, os mais importantes textos normativos internacionais de direitos
de liberdade consagram este direito (cf. art. 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos; art. 17º da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia).
28
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 208-210.
29
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional – Tópicos, Lisboa: Quid Juris, 2015, pp. 46 e ss.
30
JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, 4ª edição, Coimbra:
Almedina, 2011, pp. 659-660.
jugo31. Ao conquistar essa liberdade, irá assumir o papel de fundador de uma nova
ordem constitucional.
Ademais, o argumento tem em si ínsito o perigo de ser aproveitado por
regimes totalitários para se protegerem contra eventuais investidas de
democratização32, logrando perpetuar-se e expandir-se.
Já NOGUEIRA DE BRITO opta por uma via bastante mais ousada para
veicular este pensamento. O autor começa por lançar uma posição, segundo a qual,
sendo certo que, embora os limites materiais encontrem a sua autêntica expressão
em princípios, eles são verdadeiras normas, então, ad maiori ad minus, a relevância
das cláusulas de limites expressos é igual à de todas as outras normas contidas na
Constituição. Pelo que todas as normas podem ser revistas, através dos
procedimentos consagrados para tanto, inclusive as normas que preveem tais
procedimentos, as que consagram os limites expressos e as normas que reportam
a tais limites, contanto que aos princípios que conformem tais normas seja dada
adequada expressão constitucional33. Destarte, através desta ressalva, o
constitucionalista escamoteia a sua principal intenção, qual seja, a de imprimir
uma hiper-rigidez à Constituição. Com efeito, NOGUEIRA DE BRITO sustenta que
o art. 288º tem uma função meramente declarativa, i.e., declara os princípios a que
se reconduz, os quais estão implicitamente constituídos pelas normas de onde eles
se podem deduzir34. Nesta linha de pensamento, o autor logra advogar que as
condições que definem o poder de revisão operam como limites materiais
31
Vejam-se as palavras de ALBERT CAMUS, no seu O Homem Revoltado, trad. de Maria Santos,
Lisboa: Livros do Brasil, 2019, p. 263: “A revolta, no homem, significa a recusa de ser tratado como
coisa e de ser reduzido à sua simples história”. “Na sua revolta, o homem, por sua vez, põe um limite
à história. Neste limite nasce a promessa de um valor”. Daqui se infere que uma ordem inflexível,
que reconduz a pessoa a uma intenção axiológica uniforme, estanque, tende a quebrar-se, pois, em
todo o caso, é no homem, enquanto conjunto, enquanto povo, que reside a decisão última do
fundamento da ordem constitucional. Desejável será imprimir uma dinâmica à ordem, que se ajuste
às necessidades sociológicas, que estão em permanente devir.
32
PAULO OTERO, A Democracia Totalitária…, cit., p. 240.
33
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Constituição Constituinte, Ensaio Sobre o Poder de Revisão da
Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 418-419.
34
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, op. cit., p. 422.
35
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, op. cit., p. 425.
36
Em sentido idêntico se pronunciava PAULO OTERO, num primeiro momento do seu
pensamento. Com efeito, afirmava o autor que “(…) a verdade é que quanto mais extenso for o elenco
positivado de natureza constitucional de tais cláusulas pétreas, maior será a ditadura de valores de
uma geração sobre a soberania da vontade constituinte de todas as restantes gerações”. (PAULO
OTERO, A Democracia Totalitária… cit., p. 243).
37
MARCELLO CAETANO, Constituições Portuguesas, 7ª edição, reimp., Lisboa / São Paulo: Verbo,
1994, p. 157. Esta tese parece-nos tributária da Constituição francesa de 1791, na senda de SIEYÉS,
que atribuída à Nação o poder imprescritível de modificar a sua Constituição.
38
MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6ª edição, reimp.,
Coimbra: Almedina, 2015, p. 340.
39
MARCELLO CAETANO, Manual…, cit., pp. 340-341.
40
JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 6ª reimp.,
Coimbra: Almedina, 1993, pp. 156-157.
41
JOÃO MARIA TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO, Ensaio Sobre a Inconstitucionalidade das Leis
no Direito Português, Coimbra: França e Arménio Editores, 1915, pp. 85 e ss.
posterior derogat legi priori. Tal subverte a ideia de uma Constituição material
balizada temporal, cultural e juridicamente, tornando a Constituição um
enunciado programático ou até mesmo meramente político, subjugando-a à
margem de manobra dos detentores do poder. Assim, e a título de exemplo, a
revisão de 1959 à Constituição de 1933 veio introduzir uma alteração à forma de
eleição do Presidente da República, deixando de ser por sufrágio universal, tendo
sido atribuída a um colégio restrito, na sequência da vitória de Humberto
Delgado42, facto representativo de elevado perigo para o regime instituído na época
(o denominado Estado Novo).
42
Mais tarde, o general Humberto Delgado seria assassinado pela PIDE, na zona de Badajoz.
43
Linha de fortificações e de defesa militares francesa contra a Alemanha e a Itália, construída após
a I Guerra Mundial.
44
FRANCISCO LUCAS PIRES, Teoria da Constituição de 1976: A Transição Dualista, Coimbra: s.n.,
1988, p. 155.
45
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., pp. 156-157.
46
Para LUCAS PIRES, o princípio da legitimidade democrática só logrará o seu expoente máximo
através de um referendo de ratificação, numa tentativa de expandir a democracia direta, só podendo
tal figura responder a exigências reinvenção e abertura do sistema. (FRANCISCO LUCAS PIRES, op.
cit., pp. 172-173).
47
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., pp. 160-161.
48
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 162.
49
Mais vem constatar o autor que a vontade democrática tem considerado o art. 290º (atual art.
288ª) um entrave à própria democracia. A democracia funciona melhor com novas regras
(FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 181).
50
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 176.
51
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 182-183.
52
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 183-184.
53
Constituem limites implícitos aqueles que se retiram de uma operação lógico-hermenêutica
constitucional, que recai, em primeiro grau, sobre a articulação entre as normas que consagram os
limites materiais e os conteúdos por si tutelados e, em segundo grau, sobre aquilo que se retira do
próprio conceito de revisão, que postula a proibição de uma revisão total, não podendo a revisão
aniquilar os elementos que dão identidade à ideia de Constituição material. (AFONSO D’OLIVEIRA
MARTINS, op. cit., pp. 131-134).
54
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 183-184. Nesta linha de raciocínio também se encontra AFONSO
D’OLIVEIRA MARTINS. No que concerne aos limites materiais, releva, na senda do autor, distinguir
entre aqueles que outorgam identidade à Constituição e aqueles que concernem a pontos não
essenciais a essa identificação, i.e., aqueles que resultam de um “capricho constituinte”. Quanto aos
primeiros, estão dotados de um valor jurídico absoluto; mesmo que deixem de constar do texto
constitucional, eles valem como limites implícitos, não podendo ser superados por nenhum
procedimento de revisão. Tais limites só podem ser superados mediante uma vicissitude arvorada
numa rutura com força bastante para fundar uma nova ordem constitucional. No que tange aos
segundos, possuem um valor jurídico relativo, pelo que podem modificados mediante um duplo
processo de revisão. (AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 164-165). Subscrevendo a tese
de JORGE MIRANDA, conquanto advertindo que a supressão de um limite de primeiro grau
consubstancia uma efetiva rutura constitucional, MANUEL AFONSO VAZ, Teoria da Constituição
- O Que é a Constituição Hoje?, 2ª edição, Porto: Universidade Católica Editora Porto, 2015, pp. 99
e ss.
55
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1033-1034. VITAL MOREIRA, Constituição e Revisão
Constitucional… cit., p. 106-107. PAULO FERREIRA DA CUNHA, op. cit., pp. 133-134.
56
L. BARBOSA RODRIGUES, Assembleia da República – Uma Perspetiva Jurídica Anti-Parlamentar,
Lisboa: Quid Juris, 2013, p. 60. O professor vai mais longe, propugnando que “concluído o
procedimento de sufrágio, os membros do Parlamento agem de forma independente da vontade dos
seus próprios eleitores, não detendo qualquer mandato representativo popular”. (Assembleia…, cit.,
p. 59).
57
PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Identidade Constitucional, Coimbra:
Almedina, 2010, p. 201. Em momento anterior, a leitura da sua obra A Democracia Totalitária deu-
nos a perceção de que o autor teria aderido à tese da irrelevância dos limites materiais, pois aí
intentava uma desconstrução da legitimidade do legislador constituinte de vincular as gerações
futuras aos seus postulados normativos, ao denunciar o desprezo que uma primeira geração
demonstrou sobre as que viriam ulteriormente. (A Democracia Totalitária…, cit., p. 242).
58
PAULO OTERO, Direito, I…cit., pp. 201-202. O autor, por outro lado, identifica uma
transfiguração identificativa da Constituição, concretizada através de mutações tácitas. Em jeito de
analogia, tal como poucas semelhanças se encontrarão em retratos de uma pessoa captados entre
intervalos de trinta anos, também a Constituição de 1976 é quase inidentificável com a Constituição
atual. Três elementos essenciais dão suporte a esta reflexão: a) a eliminação do princípio socialista;
b) a mitigação do princípio da soberania, com a transferência de certos poderes para entidades
supranacionais; c) a reconfiguração do sistema de governo, vislumbrando agora um
“presidencialismo de primeiro-ministro” (Direito, I…, cit., pp. 17 e ss).
59
CATARINA SANTOS BOTELHO, “Constitutional Narcissism on the Couch of Psychoanalysis”, in
European Journal of Law Reform, n.º 21, 2019, pp. 351-352. Para a autora, as Constituições puramente
flexíveis podem facilmente reconduzir-se a um quadro meramente semântico, onde o poder
constituinte intenta espraiar o momento político da sua elaboração eternamente, uma vez que
detém o poder de a ajustar de forma a consolidar o seu poder, ante a sua grande flexibilidade. Por
outro lado, nas Constituições hiper-rígidas, pode haver uma pretensão de perpetuar ad aeternum o
poder constituinte, o que levanta graves problemas de legitimidade. Idem, pp. 353 e ss.
60
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., pp. 370 e ss.
61
Assim, o seu artigo de opinião, Narcisismo Constitucional, disponível em
https://observador.pt/opiniao/narcisismo-constitucional-mude-se-a-constituicao-ii/.
3. Posição Adotada
62
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., p. 375.
63
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., pp. 370 e ss.
64
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 52.
65
Aproximadamente, JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 115-118.
66
Com isto não se pretende dizer que uma determinada Constituição material tem idoneidade para
se espraiar na sociedade a título perpétuo. Pode mesmo haver uma vontade popular de transição.
O que queremos dizer é apenas que ultrapassados tais elementos essenciais, já não estamos no
âmbito da mesma Constituição material.
67
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…cit., pp. 49-52. O costume, como mecanismo
privilegiado da expressão da vontade popular, sendo o povo o titular da soberania, tem força
bastante para arvorar vicissitudes constitucionais. Veja-se que os direitos económicos, sociais e
culturais têm sido objeto de uma paulatina compressão (ou mesmo supressão) consuetudinária.
Estes, enquanto não concretizados, assumem-se como meras expetativas jurídicas de direitos
fundamentais ou, quando muito, direitos sob reserva do possível.
68
Advertimos que não faremos um desenvolvimento exaustivo de cada um dos elementos. Apenas
apontaremos os principais tópicos materiais.
69
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 250.
70
Sem prejuízo da sua participação em partidos políticos, que serão objeto de crítica infra.
71
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…, cit., p. 46.
72
Assim, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 5ª edição, reimp., Coimbra: Almedina, 2017, p. 337.
73
Um problema se tem suscitado com a integração de Portugal na União Europeia. Não cremos,
contudo, que se trate de uma aniquilação da sua independência. Com efeito, a União Europeia não
é uma federação, porquanto não é um superestado, mas sim uma organização internacional. Note-
se que não há um “povo europeu”, titular de um poder constituinte originário, pelo que não se pode
falar numa Constituição da Europa. Os Estados-Membros da União preservam a sua identidade e
independência, embora voluntariamente participem num projeto de integração política, social e
económica.
74
Tais postulados deduzem-se do direito natural. Segundo o direito natural, o direito positivo em
geral e o direito constitucional em especial não se confinam a um formalismo positivista, antes têm
em conta determinações que valem por si mesmas, transcendentes, inerentes à dignidade da pessoa
humana, que independem da vontade de cada um. Com efeito, no que ora releva, a revisão
constitucional não pode afetar o “mínimo vital” necessário à plena afirmação da condução humana.
(AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 144; 152).
75
CARLOS BLANCO DE MORAIS, O Sistema Político, No Contexto da Erosão da Democracia
Representativa, Coimbra: Almedina, 2017, pp. 94-100.
76
PAULO OTERO, Direito, I…cit., pp. 216-217.
77
L. BARBOSA RODRIGUES, Assembleia…, cit., pp. 56-78.
78
AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Uma Constituição Democrática Hoje – Como?, Coimbra:
Atlântida Editora, 1980, pp. 25-29.
povo à Polis, como é o caso do referendo. Note-se que o referendo vem operar como
controlo político imediato, a despeito das diretrizes partidárias, possibilitando uma
decisão mais sóbria – i.e., apartada de ingerências promanadas de colorações
político-partidárias -, como produto de uma racional e pessoalíssima ponderação
das vantagens e desvantagens que presidem, por inerência, a uma decisão
incidente sobre a Polis. Ademais, uma decisão democrática direta, por via do
referendo, confere maior legitimidade aos comandos normativos sancionados.
Nesta linha de pensamento, e tentando concretizar neste conspecto o
princípio da soberania popular, propomos, de jure constituendo, que a lei de revisão
constitucional, prima facie aprovada no Parlamento, seja, numa segunda fase,
sancionada pelo povo, através do mecanismo do referendo79, o que permite que o
devir constitucional se revele como um “produto social, cultural, espontâneo,
instintivo, progressivo, direto e imediato”80. Em conformidade, tal sanção
referendária iria comprimir a falta de comunicação entre governantes e
governados, possibilitar uma maior transparência no processo de revisão, atribuiria
ao povo o papel de juiz, no que concerne a assuntos que suscitam grandes
controvérsias, a maior parte das vezes subordinados às clivagens partidárias e iria
expandir a informação político-constitucional, esclarecendo o povo nos demais
pontos político-constitucionais, investindo-o numa consciência política mais
sólida8182.
79
De forma intermédia em relação à nossa posição, a Constituição da República de Itália, estatui,
no seu art. 138º, §2, que “as próprias leis são submetidas a referendo popular quando, no prazo de três
meses da sua publicação, são pedidas por um quinto dos membros de uma Câmara ou quinhentos mil
eleitores ou cinco Conselhos regionais. A lei submetida a referendo não é promulgada, se não for
aprovada pela maioria dos votos válidos”. Mais próxima do nosso pensamento se encontra a lei
fundamental francesa, que vem dizer, no seu art. 89º, §2 in fine que, em regra, a revisão só se torna
definitiva após ter sido aprovada por referendo.
80
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…, cit., p. 46.
81
Aproximadamente, CARLOS BLANCO DE MORAIS, O Sistema…, cit., pp. 126-128; AFONSO
QUEIRÓ, op. cit., pp. 48 e ss., sendo certo que o professor de Coimbra sustenta que, embora a
Constituição seja omissa quanto à possibilidade de o povo ratificar, por via de referendo, a lei de
revisão constitucional, tal não pode obstar à sua admissibilidade, posto que o povo “está antes e
acima da constituição positiva escrita”. Idem, p. 50.
82
No âmbito do sistema político, e na senda do pensamento de BARBOSA RODRIGUES –
mormente a solução menos revolucionária que o autor apresenta -, estamos em crer que seria assaz
Bibliografia
oportuno, para efeitos de mitigação da crise da democracia representativa, levar a cabo as seguintes
reformas: a) adoção de um sistema eleitoral de natureza mista; b) admissibilidade de intervenção
dos eleitores na escolha dos candidatos partidários; c) admissibilidade de candidaturas à AR por
parte de grupos de cidadãos eleitores independentes, contanto que estes não tenham sido
militantes em partidos políticos há pelo menos duas legislaturas; d) diminuição do número de
deputados, de forma a agilizar a atividade política; e) limitação dos mandatos parlamentares a dois,
de forma a garantir uma mutação geracional no centro do poder político; f) concorrência positiva e
equilibrada entre candidaturas partidárias e independentes; g) abertura das comissões
parlamentares a cidadãos eleitores; h) iniciativa de dissolução popular junto do Presidente da
República; i) alargamento do âmbito material do referendo. (L. BARBOSA RODRIGUES,
Assembleia…, cit., pp. 125-130).
CUNHA, Paulo Ferreira da, Direito Constitucional Geral, Lisboa: Quid Juris,
2006.