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O Problema dos Limites Materiais da Revisão Constitucional

na Doutrina Portuguesa

José Penim Pinheiro

Resumo: O presente trabalho corresponde ao relatório concernente à Unidade


Curricular de Direito Constitucional Avançado do Mestrado em Ciências Jurídico-
Criminais da Universidade Lusíada de Lisboa.

Recuperando a temática, que desde logo nos suscitou interesse no primeiro ano da
licenciatura, é nosso intento elaborar uma triagem crítica da doutrina portuguesa
mais relevante e, num quadro intermédio entre a exposição e a dialética, é nosso
dever, nesta investigação propedêutica, pensar, refletir e concluir, tentando lograr
fazer dogmática, sem ser dogmático. Eis a lição, já veiculada com alguma
longevidade, pelo regente.

Pelo que, após a resenha doutrinal, pretendemos erigir uma posição intermédia
que nos leve a pôr em cheque as teses concomitantemente mais ortodoxas e
fechadas, erigindo um quantum mínimo, embora assaz inferior aos postulados de
eternidade, para que de Constituição material se possa falar, não descurando
alguns problemas que hodiernamente se suscitam, mormente ao nível da crise da
sub-representação no âmbito do sistema político.

Palavras-Chave: Revisão Constitucional / Vicissitudes / Limites ao Poder de


Revisão / Relevância Absoluta / Hiper-Rigidez / Irrelevância / Dupla Revisão /
Relevância Limitada / Gerações Futuras / Crise da Democracia Representativa.

Sumário: 1. Revisão Constitucional e Outras Vicissitudes Constitucionais. 1.1.


Limites à Revisão Constitucional. O Problema dos Limites Materiais. 2. Discussão
na Doutrina Portuguesa acerca da Relevância dos Limites Materiais ao Poder de

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O Problema dos Limites Materiais da Revisão Constitucional
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Revisão. 2.1. Tese da Relevância Absoluta. 2.2. Tese da Irrelevância. 2.3. A Denúncia
do Malogro da Super-Rigidez por Lucas Pires. 2.4. Tese da Relevância Relativa ou
da Dupla Revisão. 2.5. Tese da Relevância Limitada (Posições Intermédias). 3.
Posição Adotada. Bibliografia.

1.Revisão Constitucional e Outras Vicissitudes Constitucionais

Todo o direito se confronta com um problema crónico: o da adaptação às


contingências temporais e conjunturais, patenteadas em mutações (não raro,
revoluções) sociais, culturais, económicas, políticas, etc. Isto repercute-se, no
plano jurídico, no fenómeno da ampliação da produção legislativa.
Destarte, uma coisa é o plano dos atos legislativos ordinários – conquanto
que a carência de estabilidade subjacente a essa agigantada atividade legiferante se
revele, as mais das vezes, danosa – e outra é o plano constitucional. Na grande
maioria dos casos, ante um momento constituinte prévio, onde é legitimada a nova
ordem1, é pretendido pelos membros dessa ordem que a sua ordem-quadro – a
Constituição – vigore por um período mais ou menos longo.
Para tanto, a Constituição não pode reconduzir-se a um “governo dos vivos
pelos mortos”, permanecendo estanque, a título de perpetuidade. Uma hipotética
vocação de perpetuidade da ordem jurídico-constitucional no plano formal daria
azo a uma instabilidade no plano praxiológico, porquanto a Constituição não é
uma ordem fechada, distanciada da dinâmica social. Não é um instrumento político
estático, antes está em permanente atualização, ante o devir. Não é cega e

1
Trata-se do poder constituinte, i.e., do poder para elaborar e sancionar positivamente uma
Constituição. Mas esse poder só é legítimo se for exercido dentro de um quadro democrático, i.e.,
se for exercido pelo povo, quer a título de representatividade numa Assembleia Constituinte, quer
a título direto, participando diretamente nessa opção, quer a título semidireto, mediante um
referendo. De outra maneira, estamos perante uma proclamação autocrática, dimanada do
monarca, de uma figura carismática ou de uma pequena oligarquia, outorgando uma
“Constituição”, que mais não é do que um documento proclamatório ostensivo, com um alcance
meramente semântico. Para maiores desenvolvimentos, vide J.J. GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 63-84.

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inflexível, antes olha para a comunidade, para a sua evolução e atualiza-se em


conformidade. Ela, como assinala ROGÉRIO SOARES, tem uma vocação de
atualização crónica, i.e., atualiza permanentemente “princípios fundamentais da
comunidade, dirigindo um processo sempre inacabado de busca de uma unidade de
acção, subordinado à ideia de justiça”2. Com efeito, tendo em conta fatores que
assentam na evolução da ordem jurídica e imperativos de garantia e estabilidade
constitucionais, é mister a previsão de um mecanismo que permita compatibilizar
a Constituição com as novas realidades que vão sempre sucedendo – eis a figura da
revisão constitucional3.
Por norma, o poder de revisão constitucional é uma faculdade limitada e
conformada formal e materialmente pelo poder constituinte – donde, um poder
constituído ou um poder constituinte derivado – só podendo ser exercido em
circunstâncias muito singulares4.
A revisão constitucional consubstancia-se numa vicissitude constitucional5,
que visa a continuidade da ordem jurídico-constitucional, mediante uma
regeneração e conservação internas – através da modificação, integração ou
supressão de uma ou de várias normas da Constituição - que não impliquem
estarmos defronte uma nova Constituição material6. Pelo que a Constituição não

2
ROGÉRIO SOARES, “Constituição (Política)”, in Polis – Enciclopédia VERBO da Sociedade e do
Estado, Vol. I, 1983, col. 1167.
3
Mais desenvolvidamente, AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, La Revisión Constitucional y el
Ordenamiento Portugués, 2ª edição, Lisboa-Madrid: Edições estado&direito, 1995, pp. 29-38.
4
Por oposição, autores há que propugnam que no poder de revisão se trata da subsistência do poder
constituinte originário, onde a revisão é sempre possível e ilimitada. Não estamos de acordo com
esta posição, porquanto essa revisão total representaria, no mínimo, uma verdadeira transição
constitucional, e não o rever de aspetos específicos, que veiculam uma revitalização da Constituição
ante o confronto com a realidade efémera.
5
Pedimos a terminologia de empréstimo a JORGE MIRANDA. Segundo o insigne constitucionalista,
as vicissitudes constitucionais consubstanciam um conceito lato, que compreende “quaisquer
eventos que se projetem sobre a subsistência da Constituição ou de algumas das suas normas”.
(JORGE MIRANDA, Curso de Direito Constitucional, Vol. I, Lisboa: Universidade Católica Editora,
2016, pp. 154-155).
6
Assim, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84: “Uma constituição revista continua a ser a
mesma constituição. O próprio da revisão, é, justamente, o não importar o exercício de um novo poder
constituinte originário. É um acto de autoconservação e de auto-regeneração da Lei Fundamental,
traduzido na eliminação de normas que, entretanto, se mostraram desajustadas, e no aditamento de
outras que novas necessidades impuseram como condição de revitalização da mesma lei básica. A

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pode ser “revista” na sua totalidade. Há uma imposição de parcialidade expressa e


autorizada, veiculando uma revitalização jurídica idónea a obstar às contingências
ontológicas, de alcance geral e abstrato7.
A par da revisão, a doutrina tem apontado outras vicissitudes
constitucionais8, entre as quais destacamos:
A derrogação – em vez de uma modificação, de alcance geral e abstrato,
temos uma modificação de conteúdo individual e concreto (v.g. arts. 308º e 309º
da versão originária da Constituição de 1976, que vedavam o acesso a direitos
políticos a ex-membros da polícia política);
As mutações tácitas – compreendem modificações constitucionais não
formais, reveladas através de uma metamorfose ou uma falta a nível hermenêutico
e aplicativo da Constituição, em sede legiferante, jurisprudencial ou praxiológica
(engloba a hermenêutica, o costume e o desenvolvimento constitucionais, que não
serão objeto de desenvolvimento no presente trabalho);
A transição constitucional9 – trata-se de uma mudança da Constituição
material, embora com a observância das regras constitucionais ao nível de forma,
i.e., há uma transformação de aspetos característicos da Constituição, mas
conserva-se a Constituição instrumental (v.g. transição do regime militar para o
regime constitucional, de 1985 a 1988, no Brasil);
A revolução – arvora-se numa rutura total da ordem jurídico-constitucional
anterior, que irá servir de fundamento material à nova ordem-quadro (v.g.
revolução francesa de 1789; revolução portuguesa de 1974). Se a Constituição, nos

revisão constitucional não importa, pois, qualquer ruptura com o quadro essencial de valores vigente
até aí, nem a sua substituição por uma nova ordem ou fundamento de validade”.
7
JORGE MIRANDA, op. cit., p. 158.
8
AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 47-65. JORGE MIRANDA, op. cit. pp. 136-170. VITAL
MOREIRA, Sebenta de Direito Constitucional, 3ª edição, Porto: s.n., 2019, pp. 40-43.
9
Posição assaz peculiar é a de BARBOSA RODRIGUES, sustentando que a revisão constitucional
de 1982 arvorou-se materialmente numa transição constitucional, mercê de uma alteração
substancial na organização política do Estado, constituindo a sua regulação objeto do direito
constitucional, ao vislumbrar a substituição do “sistema de governo complexo governamental-
presidencial “sui generis” por um “sistema de governo simples governamental”. (L. BARBOSA
RODRIGUES, O Primeiro-Ministro, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2012, pp. 245-248).

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dizeres de CASTANHEIRA NEVES, exprime uma determinada intenção axiológica,


conferindo especificidade valorativa à ordem vigente, a revolução há de
reconduzir-se a uma “anti-ordem” tendente a desorganizar a ordem estabelecida, a
superar tal intenção axiológica e a superá-la por outra que se repute histórico-
socialmente mais adequada10.

1.1. Limites à Revisão Constitucional. O Problema dos Limites


Materiais

A Constituição da República Portuguesa (CRP) assume uma hiper-rigidez


qualitativa e quantitativa, ante a plêiade de limites que erige, quais condições
reunidas para efeitos de procedência da revisão constitucional.
Em primeiro lugar, contempla limites formais/procedimentais, ao exigir um
processo particularmente agravado, para efeitos de aprovação da lei de revisão, na
Assembleia da República (AR) (arts. 284º e 286, n.º 1 CRP);
Em segundo lugar, prevê limites temporais, justificados, em norma, para
proteger a Constituição de maiorias políticas conjunturais, ficando o exercício do
poder de revisão confinado a um quadro temporal ordinário de 5 anos, sem
prejuízo de a AR assumir poderes de revisão num quadro extraordinário, verificada
a anuência de 4/5 dos deputados em efetividade de funções (art. 284º CRP);
Em terceiro lugar, proíbe a faculdade de rever a Constituição na vigência de
estado de sítio ou de estado de emergência, pois que a liberdade de deliberação do
parlamento fica, em tais circunstâncias, assaz comprimida – limites circunstanciais
da revisão (art. 289º CRP);
Em último lugar, erige a marca identitária certos e determinados conteúdos,
que, pré-compreensivamente, parecem inalteráveis e inalienáveis, conteúdos esses

10
CASTANHEIRA NEVES, “A Revolução e o Direito – A Situação de Crise e o Sentido do Direito no
Actual Processo Revolucionário”, in ROA (Revista da Ordem dos Advogados), ano 35, Vol. I, 1975,
pp. 26-27.

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que formam os limites materiais ao poder de revisão, de que ora curaremos (art.
288º CRP)11.
A Constituição, no seu art. 288º, contempla um leque assaz alargado de
limites materiais ao poder de revisão, leque esse que não encontra semelhante
quadro noutras experiências constitucionais europeias12.
Tal leque confronta-se com o seguinte problema: é legítima a compressão
intergeracional concernente ao poder decisório? I.e., é legítimo que a Constituição,
intentando limitar a alteração de certas matérias e a revisibilidade das próprias
“cláusulas pétreas”, limite, com igual força, o direito das gerações futuras ao poder
de fixar determinadas opções jurídicas e políticas, em função dos condicionalismos
externos?
A doutrina, mormente a doutrina jurídico-constitucional portuguesa, não é
unânime.
Para uma parte da doutrina, os limites materiais vêm tutelar a Constituição
contra momentos jurídico-políticos conjunturais, passíveis de aniquilarem o
conteúdo identitário da lei fundamental, propugnando a tese da relevância
absoluta dos limites materiais13.
Em sentido contrário, há quem defenda que os limites materiais constituem
uma imposição de uma ditadura de valores não consentânea com a soberania do
povo e com a sua inerente mutação geracional. Não obstante, inexiste uma posição

11
Segundo uma leitura superficial do texto Constitucional, há limites que não podem ser
ultrapassados, atingindo um grau de transcendência: são eles, nos termos do art. 288º: “a) a
independência nacional e a unidade do Estado; b) a forma republicana de governo; c) a separação das
Igrejas do Estado; d) os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; e) os direitos dos trabalhadores,
das comissões de trabalhadores e das associações sindicais; f) a coexistência do setor público, do setor
privado e do setor cooperativo e social de propriedade dos meios de produção; g) a existência de planos
económicos no âmbito de uma economia mista; h) o sufrágio universal, direto, secreto e periódico, na
designação dos titulares eletivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local,
bem como o sistema de representação democrática; j) a separação e a interdependência dos órgãos
de soberania; l) a fiscalização da constitucionalidade por ação ou por omissão de normas jurídicas;
m) a independência dos tribunais; n) a autonomia das autarquias locais; o) a autonomia político-
administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.
12
A título de exemplo, as Constituições francesa e italiana, erigem a limite material ao poder revisão
única e exclusivamente a forma republicana de governo.
13
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit. p. 1031.

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hierarquicamente superior dos limites materiais face às demais normas


constitucionais, advogando-se a irrelevância jurídica dos limites materiais14.
Amiúde, descortinam-se duas posições intermédias:
Uma, segundo a qual se não nega a validade dos limites materiais,
conquanto que estes possam, como normas de direito positivo que são, ser
modificadas ou revogadas num primeiro momento, abrindo-se a possibilidade para
em momento ulterior serem revistos os conteúdos protegidos pelos limites – trata-
se da tese da dupla revisão ou da relevância relativa dos limites materiais15.
Outra, que, consoante os limites que estejam em causa, afirma ou rejeita a
validade dos limites materiais, onde se vislumbra um maior número de flutuações,
como veremos infra, abarcando a maior parte das teses intermédias.
Desta súmula primeira, resulta que o problema dogmático subjacente aos
limites materiais concerne à sua própria subsistência, à possibilidade de eles
próprios serem revistos, à identidade constitucional, à vinculação intergeracional,
à dualidade rigidez-flexibilidade, enfim, à legitimidade constituinte, patenteado na
discussão doutrinal acerca da relevância dos limites.
Na presente investigação, intentaremos densificar essa discussão,
elaborando uma triagem crítica da doutrina jurídico-constitucional portuguesa
que se debruçou sobre esta problemática, enquadrando cada posição
individual/autoral em função de cada uma das quatro posições supra referenciadas,
tomando, in fine, posição própria.

2. Discussão na Doutrina Portuguesa acerca da Relevância dos Limites


Materiais ao Poder de Revisão
2.1. Tese da Relevância Absoluta

14
PAULO OTERO, A Democracia Totalitária - Do Estado Totalitário à sociedade totalitária. A
influência do totalitarismo na democracia do século XXI, Cascais: Princípia Editora, 2001, p. 243.
15
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 181-182.

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A tese da relevância absoluta, segundo a qual há matérias intangíveis que


constituem o núcleo essencial e identitário da Constituição, é propugnada, na
doutrina portuguesa, por GOMES CANOTILHO, BACELAR GOUVEIA,
NOGUEIRA DE BRITO, BLANCO DE MORAIS16, MARCELO REBELO DE
SOUSA17, MELO ALEXANDRINO18, PAULO FERREIRA DA CUNHA19 e VITAL
MOREIRA20. GOMES CANOTILHO, BACELAR GOUVEIA e NOGUEIRA DE
BRITO merecem particular acuidade de tratamento.

16
Para BLANCO DE MORAIS, existe um conjunto de limites materiais intangíveis positivados na
Constituição, dotados de uma “proeminência substancial”, porquanto na sua caracterologia estão
ancorados critérios de essencialidade e de absoluta indispensabilidade, que constituem conditio
sine qua non à existência da nossa ordem constitucional. A eliminação dos limites materiais
intangíveis comportaria uma fraude constitucional. No entanto, o autor rejeita uma resistência
transcendental desses limites ao próprio poder constituinte, admitindo a latência existencial do
poder de criar uma Constituição. Com efeito, uma revisão simulada pode em todo o momento dar
lugar a uma transição constitucional. Cremos que esta convicção doutrinal apela sub-repticiamente
a uma rutura constitucional desnecessária, em jeito de assunção constituinte popular, apontando,
lógico-materialmente, para uma certa relativização dos próprios limites, qual paradoxo insanável!
A latência do poder constituinte, passível de simulação mediante a capa da revisão constitucional,
redundando numa transição, já se não trata de uma fraude, mas de uma força existencial, decisória,
legítima e imparável? Deve ficar a questão levantada. (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de
Direito Constitucional, Teoria da Constituição em Tempo de Crise do Estado Social, Tomo II, Vol. 2,
Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 285-289).
17
MARCELO REBELO DE SOUSA sustenta que a preterição dos limites materiais significa uma
rutura constitucional, pois que surgirá uma nova Constituição material. A aposição de tais limites
constitui uma legítima expressão da soberania popular, não havendo a pretensão de “cristalizar”
uma manifestação do legislador constituinte num dado momento histórico. Mas não haverá aqui
uma contradição? Com efeito, como é que não haverá tal pretensão de cristalização, se a superação
de tais limites – todos eles, note-se – constitui, para o autor, uma rutura da ordem constitucional?
(MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Constitucional I – Introdução à Teoria da Constituição,
Braga: Livraria Cruz, 1979, pp. 83-85).
18
MELO ALEXANDRINO tem defendido a tese da relevância absoluta, com base numa pluralidade
de postulados jurídicos. 1) inexistência de equiparação entre o poder constituinte e o poder
constituído; 2) o poder constituinte está limitado por prescrições constituintes prévias; 3/4) os
limites materiais, enquanto normas constitucionais hierarquicamente superiores às demais,
arvoram verdadeiras e absolutas proibições, cuja violação comporta a sua colocação fora da ordem;
5) há uma presunção constitucional de utilidade e relevância dos limites expressos; 6) os limites
materiais tutelam traves mestras da Constituição; 7) tutelam núcleos e princípios essenciais; 8)
assumem funções de classificação, individualização, advertência e de relevância da sua
superioridade normativa; 9) garantem o conteúdo material identitário da Constituição; 10) podem
ser objeto de interpretação e aplicação restritivas. (JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Lições de
Direito Constitucional, Vol. I, 3ª edição, Lisboa: AAFDL Editora, 2017, pp. 235-236).
19
PAULO FERREIRA DA CUNHA, Direito Constitucional Geral, Lisboa: Quid Juris, 2006, pp. 130 e
ss.
20
Para VITAL MOREIRA, a não aposição de limites materiais à revisão constitucional arvorar-se-ia
na subversão dos traços essenciais conformadores da coletividade política, i.e., do complexo de
direitos e princípios fundamentais concretizados num amplo leque de posições jurídicas subjetivas

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Para GOMES CANOTILHO, há um determinado leque de matérias apartado


do poder de revisão, porquanto constituem o “cerne material da ordem
constitucional” – é o caso das matérias elencadas no art. 288º da CRP21.
Continua o insigne constitucionalista, dizendo que, embora a Constituição
não tenha o poder de paralisar o normal andamento dos itinerários históricos,
releva ter em conta a possibilidade do cumprimento das suas funções. Estas não
são compatíveis com a total disponibilidade da lei fundamental pelos órgãos de
revisão, mormente quando o poder de revisão é atribuído ao órgão legislativo
ordinário. Com efeito, a Constituição não pode ficar à mercê de momentos
jurídico-políticos conjunturais, in casu, maiorias parlamentares de dois terços. A
Constituição, para efeitos de autoconservação, não pode ser revista na sua
totalidade ou ser objeto de mutações desfiguradoras da sua identidade, sob pena
de afirmação de um novo poder constituinte22.
GOMES CANOTILHO identifica a existência de limites materiais implícitos,
arvorando-se em verdadeiras “imposições da Constituição”, erigindo a limites não
expressos a integridade do território (art. 5º CRP) e o próprio art. 288º, imprimindo
uma maior rigidez metodológica à Constituição. O decano de Coimbra justifica a

face aos poderes públicos, num determinado sistema político e económico e num quadro
garantístico da própria Constituição. Por outro lado, como a faculdade de rever a Constituição
deriva de uma atribuição genética – o poder constituinte -, sustenta MOREIRA que tal faculdade
está originariamente submetida a balizas materiais, teleologicamente subordinadas à defesa e
preservação da Constituição e não à sua livre alteração. Ademais, a admissibilidade da reapreciação
do “sistema essencial de valores da Constituição” por um ato ulterior, tendo por pressuposto a
correção material das ideias chave que presidem à Constituição, redundaria numa contradição
insanável, posto que “seria pressupor que o poder de revisão pode, com mais fidelidade do que o poder
constituinte, traduzir as ideias fundamentais que o próprio legislador constituinte pôs na
Constituição”. (VITAL MOREIRA, Constituição e Revisão Constitucional, Lisboa: Editorial
Caminho, 1980, pp. 102-103; 106-107). Tal posição não pode ser sufragada, pois que se consubstancia
num pacto irrevogável entre a geração constituinte e a gerações futuras, a despeito das
contingências e mutações sociais. Note-se que a revisão não deve arrogar-se o direito de corrigir
retroativamente as ideias estruturais da Constituição. Neste aspeto assiste razão a VITAL
MOREIRA. Malgrado, o legislador constituinte não pode arrogar-se o direito de congelar a
Constituição ad aeternum, porquanto o direito tem de acompanhar a dinâmica da vida social e os
fenómenos políticos. A revisão visa adequar funcionalmente a Constituição às novas exigências do
desenvolvimento sociopolítico e não a substituição de uma Constituição por outra, como pretende
MOREIRA.
21
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1030.
22
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1031.

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existência de limites implícitos com base num juízo analógico: todas as


Constituições que não previssem limites expressos, i.e., no seu corpus textual,
seriam “constituições em branco”, subordinadas à discricionariedade de quem
dispõe do poder de revisão23.
Mais adianta que as normas de revisão, mormente as relativas aos limites
materiais, são normas “superconstitucionais”, i.e., normas hierarquicamente
superiores às demais normas constitucionais, porquanto veiculam a vontade do
legislador constituinte. Pelo que a sua violação ou modificação comportam, não
uma revisão, mas uma rutura constitucional (“fraude à Constituição”),
transportando, outrossim, a sua inconstitucionalidade24.
Este entendimento é de rejeitar por três ordens de razão: uma de natureza
fáctica, outra de jaez ideológico e uma última de cariz metodológico.
No que concerne à razão de natureza fáctica, é de constatar que o art. 288º
não tem constituído impedimento material bastante para as sucessivas revisões
constitucionais que a CRP tem sofrido, com especial incidência para as revisões de
1982 e de 1989, que expurgaram da ordem jurídico-constitucional o sentido
revolucionário e socializante, num primeiro momento da sociedade em geral, e
num segundo momento do modelo económico em especial. Como diz SUZANA
TAVARES DA SILVA, “a circunstância de não ter sido ainda possível, desde 2004,
proceder a uma revisão constitucional deve-se mais à dificuldade político-partidária
em encontrar a maioria de dois terços necessária para aprovar essas alterações do
que ao conteúdo do artigo 288º25 da C.R.P.”26
No que tange à razão de jaez ideológico, somos levados a crer que, no
entendimento de GOMES CANOTILHO, deveríamos, em tempos hodiernos, estar
subordinados ao jugo revolucionário e socializante da construção constitucional

23
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1032.
24
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 1033; 1038-1040.
25
Correção nossa. A autora, por lapso, escreveu artigo 295º.
26
SUZANA TAVARES DA SILVA, Direito Constitucional I, Coimbra: Instituto Jurídico – Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 39. Isto, não obstante a presença na discursividade
político-social a iminência de nova revisão.

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originária de 1976, que influiu quer na subversão do princípio da separação de


poderes, elemento essencial à existência de uma Constituição material, com a
existência de um Conselho da Revolução, de natureza político-militar, despido de
legitimidade popular, dotado dos poderes hoje atribuídos ao Tribunal
Constitucional e de legislar em algumas matérias, quer na compressão de alguns
direitos de liberdade, designadamente o direito de propriedade27, fortemente
condicionado pelo princípio da apropriação coletiva dos meios de produção
(erigido a limite material ao poder de revisão, nos termos do antigo art. 290º da
CRP de 1976), tendo as revisões de 1982 e de 1989 arvorado uma verdadeira rutura
constitucional. Em boa verdade, o autor defende, qual incongruência lógica, que
estamos diante da mesma Constituição28.
No que respeita à razão de cariz metodológico, nada nos diz no corpus da
CRP que o art. 288º tem um valor agravado, operando como norma
“superconstitucional”. Não se pode afirmar a existência de uma “Constituição
dentro de uma Constituição”, ao menos em termos puramente positivos. Tal
significaria paralisar quase todo o corpus constitucional originário, quando
exigências de revitalização constitucional impõem uma modificação, qual cárcere
jurídico-constitucional intergeracional. Note-se que o povo é superior ao próprio
Estado e, consequentemente à Constituição, cabendo-lhe um poder decisório29,
que se deve adaptar à sua inerente mudança intergeracional. Quando muito,
consentimos na superioridade das normas de ius cogens, atributivas de direitos de
liberdade inerentes à dignidade da pessoa humana, que são eminentemente
supraconstitucionais (cf. art. 8º, n.º 1 CRP).

27
Embora inserido sistematicamente nos direitos económicos, sociais e culturais, a doutrina tem
entendido que o direito de propriedade constitui um direito de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias. Ademais, os mais importantes textos normativos internacionais de direitos
de liberdade consagram este direito (cf. art. 17º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
art. 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos; art. 17º da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia).
28
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., pp. 208-210.
29
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional – Tópicos, Lisboa: Quid Juris, 2015, pp. 46 e ss.

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BACELAR GOUVEIA inscreve-se na teoria da irrevisibilidade dos limites


materiais, veiculando a ideia de conservação da vontade originária do legislador
constituinte, sendo certo que se ele construiu cláusulas materiais de suma
importância, elas devem dispor de força bastante para efeitos de maior
permanência temporal ante as demais disposições. Defende o autor que “a criatura
jamais pode impor-se ao criador”30.
Este argumento não procede.
A revisão constitucional tem um propósito de autoconservação e
autorrevitalização, o que implica, desde logo, uma evolução, um desenvolvimento
constitucional diferenciado da ordem-quadro originária. I.e., se a Constituição
intenta sobreviver às novas realidades sociais, políticas e culturais, não pode ficar
arreigada aos propósitos do seu “criador”. Uma vez que a Constituição tem de lidar
com interesses sociopolíticos e culturais contrapostos entre si espácio-
temporalmente, o quadro positivista em que se intenta encerrá-la é desadequado
para fazer face aos problemas que lhes estão subjacentes. A Constituição é
expressão dos princípios fundamentais conformadores da comunidade jurídica,
pelo que o seu texto só terá força bastante se exprimir de forma adequada a
Constituição material, sob pena de se pretender uma intenção axiológica
condicionada e estanque. Ora, a realidade não é estanque, enquanto o legislador
constituinte originário ficou estagnado no tempo.
Ademais, ante o vasto elenco de limites materiais, plasmado na CRP, o autor
imprime uma hiper-rigidez material à Constituição, retirando às gerações futuras
o poder de pronúncia jurídico-política, ante uma estagnação impositiva da maior
parte do corpo Constitucional. Ora, se a Constituição é assolada por essa rigidez,
ela não dobra, mas tende a partir-se. I.e., se a “criatura” não pode impor-se ao
“criador”, numa lógica de escravatura institucional, ela, tal como a dialética
histórica constata, acabará por revoltar-se contra o “senhor” e libertar-se-á do seu

30
JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, 4ª edição, Coimbra:
Almedina, 2011, pp. 659-660.

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jugo31. Ao conquistar essa liberdade, irá assumir o papel de fundador de uma nova
ordem constitucional.
Ademais, o argumento tem em si ínsito o perigo de ser aproveitado por
regimes totalitários para se protegerem contra eventuais investidas de
democratização32, logrando perpetuar-se e expandir-se.
Já NOGUEIRA DE BRITO opta por uma via bastante mais ousada para
veicular este pensamento. O autor começa por lançar uma posição, segundo a qual,
sendo certo que, embora os limites materiais encontrem a sua autêntica expressão
em princípios, eles são verdadeiras normas, então, ad maiori ad minus, a relevância
das cláusulas de limites expressos é igual à de todas as outras normas contidas na
Constituição. Pelo que todas as normas podem ser revistas, através dos
procedimentos consagrados para tanto, inclusive as normas que preveem tais
procedimentos, as que consagram os limites expressos e as normas que reportam
a tais limites, contanto que aos princípios que conformem tais normas seja dada
adequada expressão constitucional33. Destarte, através desta ressalva, o
constitucionalista escamoteia a sua principal intenção, qual seja, a de imprimir
uma hiper-rigidez à Constituição. Com efeito, NOGUEIRA DE BRITO sustenta que
o art. 288º tem uma função meramente declarativa, i.e., declara os princípios a que
se reconduz, os quais estão implicitamente constituídos pelas normas de onde eles
se podem deduzir34. Nesta linha de pensamento, o autor logra advogar que as
condições que definem o poder de revisão operam como limites materiais

31
Vejam-se as palavras de ALBERT CAMUS, no seu O Homem Revoltado, trad. de Maria Santos,
Lisboa: Livros do Brasil, 2019, p. 263: “A revolta, no homem, significa a recusa de ser tratado como
coisa e de ser reduzido à sua simples história”. “Na sua revolta, o homem, por sua vez, põe um limite
à história. Neste limite nasce a promessa de um valor”. Daqui se infere que uma ordem inflexível,
que reconduz a pessoa a uma intenção axiológica uniforme, estanque, tende a quebrar-se, pois, em
todo o caso, é no homem, enquanto conjunto, enquanto povo, que reside a decisão última do
fundamento da ordem constitucional. Desejável será imprimir uma dinâmica à ordem, que se ajuste
às necessidades sociológicas, que estão em permanente devir.
32
PAULO OTERO, A Democracia Totalitária…, cit., p. 240.
33
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, A Constituição Constituinte, Ensaio Sobre o Poder de Revisão da
Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, pp. 418-419.
34
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, op. cit., p. 422.

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implícitos ao exercício do mesmo35. Numa palavra, os limites materiais expressos,


embora possam ser revistos, operam sempre como limites materiais implícitos,
erigindo a princípios fundamentais estruturantes da Constituição todos aqueles
que estão plasmados no art. 288º da CRP.
Em nosso entender, aplaudindo a ousadia teorética, o autor olvida o
desenvolvimento de que a nossa Constituição é objeto, mormente através das
mutações tácitas. A nossa Constituição não é um instrumento perene. Atualiza-se
permanentemente. É objeto de interpretações atualistas e corretivas, adaptando-
se aos tempos hodiernos e ao devir. Passa por práticas costumeiras, que, não raro,
contradizem os seus enunciados normativos. Mas, mais importante, a Constituição
passa e o povo permanece. É este o titular de uma vontade decisória, que se deve
repercutir nos grandes programas políticos a seguir, sem que sejam violados os
traços essenciais da Constituição material, ademais, elevados ao estatuto de ius
cogens. Pelo que não podemos sustentar que todos esses limites, esses elementos
principiológicos, se conservem a título perpétuo. A Constituição de hoje não é a
mesma que a de amanhã.

2.2. Tese da Irrelevância

Destacam-se entre nós, na subscrição da tese da irrelevância dos limites


materiais, segundo a qual os limites materiais são apenas orientações políticas ou
sugestões de interpretação, MARCELLO CAETANO, BAPTISTA MACHADO e
MAGALHÃES COLLAÇO.
Para MARCELLO CAETANO, os limites materiais consagrados no antigo
art. 290º (atual art. 288º da CRP) configuram autênticos princípios políticos
ditatoriais36, impostos pelo Conselho da Revolução. Juridicamente, não há modo

35
MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, op. cit., p. 425.
36
Em sentido idêntico se pronunciava PAULO OTERO, num primeiro momento do seu
pensamento. Com efeito, afirmava o autor que “(…) a verdade é que quanto mais extenso for o elenco
positivado de natureza constitucional de tais cláusulas pétreas, maior será a ditadura de valores de

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de fazer prevalecer determinadas normas constitucionais sobre outras, não se


podendo afirmar a existência de uma “Constituição dentro de uma Constituição”,
i.e., de normas superconstitucionais, porquanto tudo o que está plasmado na
Constituição, pode ser alterado por outra lei constitucional37.
Como o autor dizia em obra anterior, “nenhuma Constituição pode pretender
ser a palavra definitiva e regra imutável da sociedade política”38. Numa reflexão
praxiológica, MARCELLO CAETANO vem constatar que a estabilidade do texto
constitucional subjacente a Constituições de natureza mais rígida conflitua com
uma realização prática de geometria variável, mercê de mutações sociais que
sucedem. Por seu turno, as Constituições mais flexíveis sentem a necessidade de
conservar algumas matérias. Pelo que a Constituição ideal deverá corresponder
àquela que, recebendo a identidade histórica de certo povo, garanta, outro tanto,
a possibilidade de se adaptar às contingências temporais, atribuindo às instituições
políticas o poder de prosseguir objetivos mais ajustados face à realidade
existencial39.
Neste sentido, vem sustentar BAPTISTA MACHADO que o legislador
constituinte, ao estabelecer uma norma que fixa determinados limites materiais,
pretensamente intransponíveis, fazendo-o por reputá-la justa e adequada e por
estar suportado por um poder democrático, está a pôr em causa a própria essência
do princípio democrático, uma vez que pretende projetar essa norma para além
desse poder democrático que o suporta em dado momento histórico, fundada num
simples “quero porque quero”. Com efeito, emprestar validade a tal norma seria
pressupor que todo o direito é produto de uma vontade política conjuntural e
contingente, postergando-se, assim, certos princípios de direito que valem

uma geração sobre a soberania da vontade constituinte de todas as restantes gerações”. (PAULO
OTERO, A Democracia Totalitária… cit., p. 243).
37
MARCELLO CAETANO, Constituições Portuguesas, 7ª edição, reimp., Lisboa / São Paulo: Verbo,
1994, p. 157. Esta tese parece-nos tributária da Constituição francesa de 1791, na senda de SIEYÉS,
que atribuída à Nação o poder imprescritível de modificar a sua Constituição.
38
MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6ª edição, reimp.,
Coimbra: Almedina, 2015, p. 340.
39
MARCELLO CAETANO, Manual…, cit., pp. 340-341.

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universalmente em todos os tempos. Tais princípios, ainda que venham a ter


expressão positiva nas normas jurídicas, são produto de uma herança sociocultural
dotada de substancial historicidade. Pelo que uma norma que intente congelar no
tempo certas pretensões jurídico-políticas carecerá de legitimidade, pois que a
força da ideia de direito é maior, transcendendo as maiorias políticas
conjunturais40.
Tendo apresentado, em traços largos, a propósito da análise à Constituição
de 1911, estas ideias, insere-se MAGALHÃES COLLAÇO. Salienta o autor que as
disposições que intentam estabelecer limites materiais ad aeternum à revisão
constitucional não são disposições com verdadeira valência jurídica, mas sim
valência política, porquanto, não obstante existirem “condições de ordem política
que aconselhem o legislador a respeitar o carácter de permanência a certas normas”,
o legislador constituinte não pode arrogar-se conservar indeterminadamente um
quadro específico jurídico-político, que é eminentemente transformável. Ademais,
se se levasse às últimas consequências a tese da relevância absoluta dos limites
materiais à revisão constitucional, ter-se-ia de chegar à conclusão de que ninguém
teria competência para modificar as matérias pretensamente supraconstitucionais.
Ora, segundo o pensamento de MAGALHÃES COLLAÇO, atendendo a que é um e
o mesmo órgão que declara, em determinada fase, a natureza constitucional e
supraconstitucional de certas matérias em determinado momento, como
destrinçar, face à legitimidade subjacente ao procedimento, a diferente natureza
jurídica entre umas e outras?41
Esta tese não tem a virtualidade de fazer uma distinção entre poder
constituinte e poder constituído (ou poder constituinte derivado), havendo uma
subsistência transcendental do poder constituinte. Trata-se de uma visão
exacerbadamente positivista da norma normarum, apoiada do princípio lex

40
JOÃO BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 6ª reimp.,
Coimbra: Almedina, 1993, pp. 156-157.
41
JOÃO MARIA TELLO DE MAGALHÃES COLLAÇO, Ensaio Sobre a Inconstitucionalidade das Leis
no Direito Português, Coimbra: França e Arménio Editores, 1915, pp. 85 e ss.

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posterior derogat legi priori. Tal subverte a ideia de uma Constituição material
balizada temporal, cultural e juridicamente, tornando a Constituição um
enunciado programático ou até mesmo meramente político, subjugando-a à
margem de manobra dos detentores do poder. Assim, e a título de exemplo, a
revisão de 1959 à Constituição de 1933 veio introduzir uma alteração à forma de
eleição do Presidente da República, deixando de ser por sufrágio universal, tendo
sido atribuída a um colégio restrito, na sequência da vitória de Humberto
Delgado42, facto representativo de elevado perigo para o regime instituído na época
(o denominado Estado Novo).

2.3. A Denúncia do Malogro da Super-Rigidez por Lucas Pires

LUCAS PIRES vem dizer que os limites expressos ao poder de revisão


constituem uma espécie de “Linha de Maginot”43, sendo que os limites materiais
invocam uma pretensão de irreversibilidade das conquistas revolucionárias44. Com
efeito, os limites materiais consagrados no art. 290º (atual 288º) pretendem
transformar determinadas matérias em limites absolutos, fazendo da Constituição
uma Constituição “super-rígida”45.
Para o autor, o poder constituinte vai configurar uma realidade ex nova, qual
tábua rasa, não tendo o poder de prever, como numa bola de cristal, o que irá
suceder futuramente. Pelo que o poder constituinte deve respeitar o princípio da
legitimidade democrática e o limite humano e geracional subjacente à sua origem.
As limitações impostas pelo poder constituinte não podem ser absolutas; são
apenas uma função, variável como a “dos furos de uma fivela”. Ante a extensão dos
limites presentes no art. 290º, torna-se praticamente impossível rever a

42
Mais tarde, o general Humberto Delgado seria assassinado pela PIDE, na zona de Badajoz.
43
Linha de fortificações e de defesa militares francesa contra a Alemanha e a Itália, construída após
a I Guerra Mundial.
44
FRANCISCO LUCAS PIRES, Teoria da Constituição de 1976: A Transição Dualista, Coimbra: s.n.,
1988, p. 155.
45
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., pp. 156-157.

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Constituição, o que lhe imprime uma pretensão de irrevisibilidade. Vislumbra


LUCAS PIRES uma enorme compressão do princípio da legitimidade
democrática46, pelo que, na sua senda, estamos defronte de um abuso do poder
constituinte47. Em conformidade, aventa a seguinte pergunta retórica: “Como
podem considerar-se como absolutos certos critérios de organização da sociedade,
quando é a plenitude de afirmação dessa mesma sociedade perante o poder político
que com essa Constituição se quer defender?”48.
Para o autor, a única matéria imodificável concerne à soberania popular e à
organização democrática do poder político, só assim se garantindo a sua
sobrevivência ante o devir49. Nas magistrais palavras de LUCAS PIRES, “uma
Constituição é cada vez menos a mera reprodução glacial de uma vontade granítica,
maciça e imobilizada no tempo, mas tanto mais moribunda quanto mais inerte e
laqueada”50.
Embora esta tese, imprima a virtualidade de se atender ao respeito pelo
poder jurídico decisório que cabe ao povo, titular da soberania, e de pôr em
evidência a intergeracionalidade que lhe inere, enferma de um quadro climatérico
de insegurança. Com efeito, estamos em crer que não conserva, no seu objeto, o
quantum mínimo para que de uma Constituição material se possa falar, podendo
facilmente confundir revisão com transição constitucional.

46
Para LUCAS PIRES, o princípio da legitimidade democrática só logrará o seu expoente máximo
através de um referendo de ratificação, numa tentativa de expandir a democracia direta, só podendo
tal figura responder a exigências reinvenção e abertura do sistema. (FRANCISCO LUCAS PIRES, op.
cit., pp. 172-173).
47
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., pp. 160-161.
48
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 162.
49
Mais vem constatar o autor que a vontade democrática tem considerado o art. 290º (atual art.
288ª) um entrave à própria democracia. A democracia funciona melhor com novas regras
(FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 181).
50
FRANCISCO LUCAS PIRES, op. cit., p. 176.

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2.4. Tese da Relevância Relativa ou da Dupla Revisão

A tese da relevância relativa ou da dupla revisão, embora subscrita por


alguns constitucionalistas, teve como principal paladino JORGE MIRANDA.
Para JORGE MIRANDA, numa pré-abordagem, o poder de revisão
constitucional é um poder constituinte derivado, porquanto se não trata do poder
de elaborar uma Constituição, mas de a rever, revitalizando-a, não podendo esta
ser objeto de um atentado essencial51.
Malgrado, embora as cláusulas de limites identifiquem o núcleo material da
Constituição, elas não podem obstar a alterações que impendam sobre tais
cláusulas, como normas positivas que são, pois, o poder constituinte é soberano.
Donde, a possibilidade de dupla revisão: um primeiro processo de revisão
destinado a eliminar o limite que tutelava uma determinada matéria; outro, para
suprir ou modificar essa mesma matéria. Com efeito, na senda do autor, nada
permite equiparar uma “suprarrigidez” a limites absolutos. Absoluto deve ser o
respeito pelas regras constitucionais enquanto se mantiverem em vigor52.
JORGE MIRANDA sustenta que as normas de limites não são juridicamente
necessárias. Necessários são os próprios limites, que se deduzem a partir da análise
de todo o sistema constitucional. Com efeito, tais normas são passíveis de revisão,
tais como outras normas constitucionais, conquanto o autor proceda a uma
distinção entre cláusulas concernentes a limites de primeiro grau – aqueles que
concernem aos princípios essenciais, inerentes à ideia de Constituição material - e
cláusulas concernentes a limites de segundo grau – respeitantes a matérias que não
comportam essa essencialidade. Se as primeiras forem eliminadas, elas, ainda

51
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 182-183.
52
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 183-184.

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assim, se conservam, operando como limites implícitos53, a serem respeitados pelo


legislador constitucional. As segundas podem ser objeto de uma dupla revisão54.
Do exposto, resulta que o poder de revisão demonstra a latência do poder
constituinte.
Esta tese tem sido objeto de várias críticas pela doutrina, mormente pela
doutrina que subscreve a relevância absoluta dos limites materiais. Tais críticas
têm sido aduzidas em jeito de exemplos, entre os quais: compara-se a tese da dupla
revisão a uma situação em que um indivíduo, confrontado com uma tábua que
proibia a sua entrada numa propriedade privada, virou a tábua ao contrário e
entrou (retirado de um filme de Charlie Chaplin); admitir a supressão dos limites
materiais por via da dupla revisão seria o mesmo que admitir que um
automobilista, embora se confronte com um sinal de trânsito de sentido proibido,
possa quebrar a regra e conduzir em tal sentido, com a simples manobra de retirar
o sinal ou admitir que a “má moeda expulsa a boa”; a dupla revisão, a ter
legitimidade operativa, careceria de expressa consagração constitucional, à
semelhança de outras soluções constitucionais, o que, efetivamente, não sucede,
pelo que não é essa a intenção da Constituição portuguesa. Isto para tentar

53
Constituem limites implícitos aqueles que se retiram de uma operação lógico-hermenêutica
constitucional, que recai, em primeiro grau, sobre a articulação entre as normas que consagram os
limites materiais e os conteúdos por si tutelados e, em segundo grau, sobre aquilo que se retira do
próprio conceito de revisão, que postula a proibição de uma revisão total, não podendo a revisão
aniquilar os elementos que dão identidade à ideia de Constituição material. (AFONSO D’OLIVEIRA
MARTINS, op. cit., pp. 131-134).
54
JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 183-184. Nesta linha de raciocínio também se encontra AFONSO
D’OLIVEIRA MARTINS. No que concerne aos limites materiais, releva, na senda do autor, distinguir
entre aqueles que outorgam identidade à Constituição e aqueles que concernem a pontos não
essenciais a essa identificação, i.e., aqueles que resultam de um “capricho constituinte”. Quanto aos
primeiros, estão dotados de um valor jurídico absoluto; mesmo que deixem de constar do texto
constitucional, eles valem como limites implícitos, não podendo ser superados por nenhum
procedimento de revisão. Tais limites só podem ser superados mediante uma vicissitude arvorada
numa rutura com força bastante para fundar uma nova ordem constitucional. No que tange aos
segundos, possuem um valor jurídico relativo, pelo que podem modificados mediante um duplo
processo de revisão. (AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 164-165). Subscrevendo a tese
de JORGE MIRANDA, conquanto advertindo que a supressão de um limite de primeiro grau
consubstancia uma efetiva rutura constitucional, MANUEL AFONSO VAZ, Teoria da Constituição
- O Que é a Constituição Hoje?, 2ª edição, Porto: Universidade Católica Editora Porto, 2015, pp. 99
e ss.

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demonstrar que a tese da dupla revisão leva a uma situação de rutura


constitucional ou mesmo de fraude à Constituição55, nos termos já expostos supra.
Estas críticas não procedem, ao menos para a formulação de JORGE
MIRANDA. Podem, eventualmente, proceder para uma tese que sufrague uma
dupla revisão a título absoluto. Note-se que o constitucionalista português cuidou
de subtrair à supressão ilimitada certos e determinados limites que inerem à ideia
de Constituição material. Conquanto não constem expressamente do corpus
constitucional, eles estão ínsitos no seu sistema: sem respeito por estes limites, por
este quadro principiológico-material, já extravasamos o patamar da Constituição
material, para estarmos dentro de uma proclamação significativo-ideologicamente
semântica (ou, no mínimo, nominal), qual reserva mental, que se situa num plano
infra praxiológico. Aí, opera um poder sem limite, ao serviço de um líder
carismático, ou de uma oligarquia que se constitui o núcleo duro do Estado.
Embora no plano teorético, sobressaia uma ideia de segurança jurídica
subjacente a esta tese, no plano da práxis ela pode redundar em postulados
excessivos que dimanam das direções partidárias, sendo certo que hodiernamente
assistimos a uma crise de sub-representatividade no âmbito do sistema político,
ante o paulatino afastamento pelo povo dos seus representantes parlamentares,
que se inscrevem num núcleo relativamente fechado, materializado nas direções
dos partidos políticos. Como sustenta BARBOSA RODRIGUES, os parlamentares
dependem, as mais das vezes, das instruções partidárias, apartando-se, com efeito,
de alguma liberdade que outro modelo de democracia lhes poderia proporcionar56.

55
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 1033-1034. VITAL MOREIRA, Constituição e Revisão
Constitucional… cit., p. 106-107. PAULO FERREIRA DA CUNHA, op. cit., pp. 133-134.
56
L. BARBOSA RODRIGUES, Assembleia da República – Uma Perspetiva Jurídica Anti-Parlamentar,
Lisboa: Quid Juris, 2013, p. 60. O professor vai mais longe, propugnando que “concluído o
procedimento de sufrágio, os membros do Parlamento agem de forma independente da vontade dos
seus próprios eleitores, não detendo qualquer mandato representativo popular”. (Assembleia…, cit.,
p. 59).

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2.5. Tese da Relevância Limitada (Posições Intermédias)

Neste tópico, inscrevem-se os autores que propugnam verdadeiras teses


intermédias, embora possam ser objeto de várias flutuações. Consoante os limites
em causa, eles têm ou não relevância jurídica. Apontamos como principais
subscritores da tese da relevância limitada, PAULO OTERO e CATARINA SANTOS
BOTELHO.
Embora denunciando que o art. 288º da CRP veda às gerações futuras o
acesso ao poder decisório relativamente às grandes opções políticas e
constitucionais, falando num “abuso do poder constituinte”57, PAULO OTERO não
aceita que se possa rever a Constituição da mesma forma que se modificam as leis,
quer a nível procedimental, quer a nível temporal, não podendo esses dois
elementos – mormente através de uma dupla revisão – aniquilar os traços
identificadores da Constituição, sob pena de transição constitucional. Sem
embargo, e por outro lado, é mister estabelecer um equilíbrio, no sentido da
inclusividade das gerações futuras nas grandes decisões político-constitucionais58.
Embora o catedrático de Lisboa tenha levantado o problema, não o
solucionou.
CATARINA SANTOS BOTELHO tratou com bastante assertividade o
problema acima levantado, que merece o nosso aplauso e adesão parcial. Para
CATARINA SANTOS BOTELHO, a Constituição deve enquadrar-se numa medida

57
PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I, Identidade Constitucional, Coimbra:
Almedina, 2010, p. 201. Em momento anterior, a leitura da sua obra A Democracia Totalitária deu-
nos a perceção de que o autor teria aderido à tese da irrelevância dos limites materiais, pois aí
intentava uma desconstrução da legitimidade do legislador constituinte de vincular as gerações
futuras aos seus postulados normativos, ao denunciar o desprezo que uma primeira geração
demonstrou sobre as que viriam ulteriormente. (A Democracia Totalitária…, cit., p. 242).
58
PAULO OTERO, Direito, I…cit., pp. 201-202. O autor, por outro lado, identifica uma
transfiguração identificativa da Constituição, concretizada através de mutações tácitas. Em jeito de
analogia, tal como poucas semelhanças se encontrarão em retratos de uma pessoa captados entre
intervalos de trinta anos, também a Constituição de 1976 é quase inidentificável com a Constituição
atual. Três elementos essenciais dão suporte a esta reflexão: a) a eliminação do princípio socialista;
b) a mitigação do princípio da soberania, com a transferência de certos poderes para entidades
supranacionais; c) a reconfiguração do sistema de governo, vislumbrando agora um
“presidencialismo de primeiro-ministro” (Direito, I…, cit., pp. 17 e ss).

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intermédia entre a hiper-rigidez e a flexibilidade, porquanto, por um lado, a rigidez


protege a lei fundamental de alterações “fúteis ou impulsivas”, mas, por outro, ela
não pode ser excessivamente exigente quanto à sua alterabilidade, sob pena de se
não ajustar às necessidades sociais que emergem59
SANTOS BOTELHO propugna que a CRP padece de “Narcisismo
Constitucional”, conceito que se consubstancia na tentativa de conservar ad
eternum a matriz essencial da Constituição, em detrimento do renascimento do
poder constituinte. Com efeito, num ambiente psicológico paternalista, o
legislador constituinte intenta proteger excessivamente a sua criação – a
Constituição –, com o intuito de guiar as gerações futuras pelos itinerários políticos
e jurídicos que reputou mais convenientes, apartando-as de um poder decisório
nessa matéria. Pelo que a única forma aparente de se modificar alguma das
cláusulas de limites materiais consagradas no art. 288º da CRP seria através de uma
rutura constitucional, chegando a autora a invocar a expressão “algemas
constitucionais” 60.
Por outro lado, se o povo é o titular da soberania (art. 3º, nº 1 CRP), ele é o
titular do poder constituinte e, concomitantemente, do poder constituído. O
processo de absolutização de um conjunto de matérias consubstancia um
dualismo, no que concerne ao povo, levando necessariamente à distinção entre
“povo iluminado” – aquele que esteve na génese da CRP de 1976 – e “povo subjugado”
– as gerações presentes e futuras. Ora, tais cláusulas devem ser objeto de
relativização, devem ser aligeiradas, sob pena de “distorções patológicas”
constitucionais61. A Constituição reconduz-se a um processo de evolução

59
CATARINA SANTOS BOTELHO, “Constitutional Narcissism on the Couch of Psychoanalysis”, in
European Journal of Law Reform, n.º 21, 2019, pp. 351-352. Para a autora, as Constituições puramente
flexíveis podem facilmente reconduzir-se a um quadro meramente semântico, onde o poder
constituinte intenta espraiar o momento político da sua elaboração eternamente, uma vez que
detém o poder de a ajustar de forma a consolidar o seu poder, ante a sua grande flexibilidade. Por
outro lado, nas Constituições hiper-rígidas, pode haver uma pretensão de perpetuar ad aeternum o
poder constituinte, o que levanta graves problemas de legitimidade. Idem, pp. 353 e ss.
60
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., pp. 370 e ss.
61
Assim, o seu artigo de opinião, Narcisismo Constitucional, disponível em
https://observador.pt/opiniao/narcisismo-constitucional-mude-se-a-constituicao-ii/.

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permanente, de tornar-se numa norma fundamental adequada a exprimir os


princípios fundamentais de uma comunidade jurídica, não se reconduzindo a um
mero “segmento de ser”. A Constituição vai ganhando “maturidade constitucional”,
ante o fator temporalidade, é mutável, tendo em conta as aspirações legítimas do
povo62.
Não obstante, e como bem nota a autora, há certas matérias que estão
ancoradas na Constituição, estejam ou não expressas, porquanto são matérias
supraconstitucionais, que transcendem conjunturas políticas meramente
temporais – são elas, na descrição de SANTOS BOTELHO, o princípio democrático,
a soberania popular, o sufrágio universal e a proteção dos direitos e liberdades
fundamentais. Estas são matérias passíveis de subordinar as gerações presentes,
com vista a impedir as elites populistas e radicais de subjugarem o povo às suas
investidas de rutura (e potencialmente subverterem a democracia em prol de um
regime político autocrático). Tais limites constituem limites de primeiro grau. Eles
são fundamentalíssimos a tal ponto que, mesmo que não estivessem expressamente
consagrados como tal, seriam, da mesma forma, vinculantes. Com efeito, a sua
consagração expressa tem um propósito meramente declarativo63.

3. Posição Adotada

A principal ideia de direito constitucional concerne à submissão do Estado


ao direito e à limitação do seu poder. Esta ideia dimana do advento do
constitucionalismo, que postula como núcleo essencial da organização política do
Estado uma prossecução governativa limitada por elementos garantísticos da
dignidade da pessoa humana. Pelo que, independentemente de quaisquer
consagrações semânticas de jaez ostensivo, há um conjunto necessário de
elementos que devem estar reunidos para que de Constituição moderna se possa
falar: o princípio da separação de poderes, arvorado numa limitação e moderação

62
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., p. 375.
63
CATARINA SANTOS BOTELHO, op. cit., pp. 370 e ss.

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do poder político; a existência de direitos de liberdade ou direitos civis e políticos;


organização e estruturação jurídico-política do Estado64.
Isto conduz-nos à indagação de um conceito assaz idêntico – o conceito de
Constituição material. O que ora releva é o objeto da Constituição, i.e., aquilo que
lhe dá substância e identidade, materializado numa determinada aceção de direito,
que é balizada espácio-temporalmente. É uma realidade que, conquanto esteja em
permanente dialética, está subordinada a um quadro principiológico, fora do qual
– v.g. se violado – estamos diante de outra Constituição, ao menos em sentido
material. Tal quadro principiológico, essencial matriz da ordem constitucional
material, concerne à ideia de direito constitucional e de Constituição moderna
acima exposta, veiculando uma relação concomitantemente comunicacional e
limitativa entre a sociedade e o poder político; conferindo aos membros dessa
sociedade um poder decisório em primeira instância ou originário, qual vontade
geral que se irá repercutir na ordem constitucional; imprimindo uma identidade a
essa ordem; limitando-a transcendentalmente, através de postulados deduzidos do
princípio da dignidade da pessoa humana65.
Do exposto, resulta que há elementos essenciais invioláveis e irrevisíveis,
que inerem à ideia de Constituição material66. A sua superação comporta uma
rutura constitucional, seja pela via da transição, da revolução ou, de forma tácita,
por via do costume contra constitutionem67. São eles68:

64
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 52.
65
Aproximadamente, JORGE MIRANDA, op. cit., pp. 115-118.
66
Com isto não se pretende dizer que uma determinada Constituição material tem idoneidade para
se espraiar na sociedade a título perpétuo. Pode mesmo haver uma vontade popular de transição.
O que queremos dizer é apenas que ultrapassados tais elementos essenciais, já não estamos no
âmbito da mesma Constituição material.
67
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…cit., pp. 49-52. O costume, como mecanismo
privilegiado da expressão da vontade popular, sendo o povo o titular da soberania, tem força
bastante para arvorar vicissitudes constitucionais. Veja-se que os direitos económicos, sociais e
culturais têm sido objeto de uma paulatina compressão (ou mesmo supressão) consuetudinária.
Estes, enquanto não concretizados, assumem-se como meras expetativas jurídicas de direitos
fundamentais ou, quando muito, direitos sob reserva do possível.
68
Advertimos que não faremos um desenvolvimento exaustivo de cada um dos elementos. Apenas
apontaremos os principais tópicos materiais.

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O princípio da separação de poderes (art. 111º CRP) – é um princípio


garantístico do Estado de Direito, porquanto se os tribunais não forem
independentes, não há forma de garantir a fiscalização do Estado ao direito. Este
princípio opera negativamente como “divisão, controlo e limite do poder”, e
positivamente como garantia de uma “justa e adequada ordenação das funções do
Estado e, consequentemente, intervém como esquema relacional de competências,
tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais da soberania”69. Por
outro lado, e em articulação com o princípio democrático, deduz-se que não pode
haver uma alteração substancial do sistema de governo, de tal modo que se supra
a interdependência dos órgãos de soberania (v.g. a mudança para um sistema de
governo de matriz presidencial comportaria uma rutura com a Constituição
material, porquanto o Presidente não é responsável perante o Parlamento). O
executivo deve prestar contas ao Parlamento (e, outro tanto, ao povo), e a
Assembleia é mediatamente responsável perante o Presidente, em casos que
comprometam o normal funcionamento da democracia.
O princípio da soberania popular (art. 3º, nº 1 CRP) – o povo, como seu
elemento mais perene, é o pressuposto existencial do Estado. É ele o exclusivo
titular da soberania popular. Para além do direito ao voto, onde elege os seus
representantes e sanciona programas, ele pode usufruir de mecanismos de
democracia semidireta – referendos, iniciativa popular, petição pública ou
candidatura à Presidência da República – de modo a poder participar ativamente70
nas decisões da Polis. Contudo, isto é o mínimo. Na verdade, o povo “coloca-se,
outrossim, num patamar sobrelevado frente à Constituição”71.
O princípio democrático (art. 2º CRP) – assume-se, negativamente, como a
proibição de uma concretização do sistema político não democrático;
positivamente, postula: um governo dos cidadãos; responsabilidade dos
governantes perante os governados; pluralismo e concorrência; liberdade política.

69
J.J. GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 250.
70
Sem prejuízo da sua participação em partidos políticos, que serão objeto de crítica infra.
71
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…, cit., p. 46.

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O princípio republicano (art. 1º CRP) – consubstancia-se na expressão da


supressão dos estamentos e de uma ordem de privilégios outrora “escravizadora”
do povo. Impede o exercício de cargos públicos a título vitalício ou hereditário e a
transformação da República em Monarquia.
A tutela dos direitos de liberdade (art. 18º CRP) – os direitos de liberdade –
designados na CRP como direitos, liberdades e garantias – constituem a matriz
identitária da Constituição. As pessoas têm direitos face ao poder, qual conquista
liberal, inerente aos Estados de Direito Democráticos ocidentais – não há Estado
de Direito sem direitos de liberdade. Problema que se pode suscitar é: pode uma
lei de revisão constitucional restringir esses direitos? Ora, se se admite que as leis
ordinárias – cujo processo de elaboração é assaz mais fluído do que o de uma lei de
revisão – o possam fazer, ad maiori ad minus as leis de revisão outro tanto, contanto
que o conteúdo essencial do direito, em estrito respeito pelo art. 18º, nº 3 da CRP,
não fique aniquilado72.
O Princípio da Independência Nacional e da Unidade do Estado (arts. 5º e
6º CRP) – aqui, a CRP vem consagrar a tradição e a unidade histórica e geográfica
do Estado português. O Estado português é um Estado unitário, embora apresente
uma forte descentralização administrativa – v.g. autarquias locais – e política- v.g.
o caso dos arquipélagos dos Açores e da Madeira -, pelo que não poderá ser objeto
de cisão ou de integração num outro Estado73.

Se estes elementos matriciais identitários não adquirirem (ou adquirissem)


hipoteticamente expressão semântica bastante, eles operam como limites
materiais implícitos e imanentes, dominando, com efeito, a realidade

72
Assim, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 5ª edição, reimp., Coimbra: Almedina, 2017, p. 337.
73
Um problema se tem suscitado com a integração de Portugal na União Europeia. Não cremos,
contudo, que se trate de uma aniquilação da sua independência. Com efeito, a União Europeia não
é uma federação, porquanto não é um superestado, mas sim uma organização internacional. Note-
se que não há um “povo europeu”, titular de um poder constituinte originário, pelo que não se pode
falar numa Constituição da Europa. Os Estados-Membros da União preservam a sua identidade e
independência, embora voluntariamente participem num projeto de integração política, social e
económica.

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constitucional e as grandes soluções constitucionais que daí derivarem, resultando


da integração do dever ser no ser, num quadro de construção recíproca. Ademais,
com exceção do último princípio acima elencado e da última dimensão do
princípio republicano – porquanto cabe a cada Estado, num quadro de evolução
histórica ou num determinado momento temporal relevante, definir a sua concreta
organização jurídico-política interna – eles operam como limites materiais
transcendentes, pois se consubstanciam em postulados jurídicos anteriores e
superiores a todo o direito positivo74.
E quanto aos restantes? Podem ser objeto de modificação, integração ou
revogação, por via de um procedimento constitucionalmente consagrado para o
efeito? Podem ser objeto de revisão num único procedimento ou antes ser objeto
de dupla revisão? A resposta não é tão fácil, como seria intuitivamente de antever.
No quadro constitucional português atual, é a Assembleia da República,
através dos seus parlamentares, que tem competência para rever a Constituição
(art. 284, nº 1 CRP). Tais parlamentares, na sua esmagadora maioria, estão
subordinados aos diretórios partidários.
Se é certo que as primeiras eleições legislativas pós-revolução, de 25 de abril
de 1976, registaram uma afluência de 83,53% - sancionando positivamente a ordem
constitucional que se acabava de instaurar -, hodiernamente assiste-se a uma crise
da democracia representativa no âmbito do sistema político português, ante a
elevada taxa de abstenção que se tem registado nos últimos momentos,
demonstrativa do paulatino afastamento do povo ante a classe política e de um
sentimento geral de desconfiança nessa mesma classe. Ora, este fenómeno vem
trazer um clima de destruição que recai sobre a clássica figura do contrato social,
segundo a qual os membros da sociedade transferem os seus poderes para uma

74
Tais postulados deduzem-se do direito natural. Segundo o direito natural, o direito positivo em
geral e o direito constitucional em especial não se confinam a um formalismo positivista, antes têm
em conta determinações que valem por si mesmas, transcendentes, inerentes à dignidade da pessoa
humana, que independem da vontade de cada um. Com efeito, no que ora releva, a revisão
constitucional não pode afetar o “mínimo vital” necessário à plena afirmação da condução humana.
(AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, op. cit., pp. 144; 152).

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entidade governamental, com a finalidade de esta lhes garantir a tranquilidade e a


segurança, qual veículo de suporte à liberdade. Numa palavra, a prossecução do
interesse público e do bem comum.

Este fenómeno veio a agigantar-se, mercê, entre outros, dos seguintes


fatores, apontados por BLANCO DE MORAIS: a) reducionismo eleitoral; b)
concentração do poder político numa elite política e económica afastada dos
interesses dos cidadãos, ante um crónico incumprimento dos programas eleitorais,
favorecimento de tráfico de influências e, por vezes, práticas de corrupção; c)
influência dos grandes centros do poder económico no poder decisório; d)
transferência da soberania estadual para organizações económicas transnacionais
(v.g. UE, OMC, FMI); e) influência desmesurada de minorias nas tomadas de
decisão; f) engessamento da representação; g) paulatina sub-representação dos
cidadãos nos grandes partidos políticos; h) afastamento das elites políticas diante
dos eleitores, ante a degradação da imagem dos partidos (v.g. aparelhismo
partidário, casos de corrupção, etc.)75. Há quem vá mais longe, propugnando que
vivemos numa “quase ditadura constitucional dos partidos políticos”, ante o
alargamento das máquinas partidárias a todos os vértices estaduais e
especialmente porquanto as principais decisões políticas são tomadas tendo em
conta, não o interesse público, mas o “timing político-partidário”76, ou mesmo
sustentando que a AR padece de irrepresentatividade, ilegitimidade,
irracionalidade, puridade, concentração, indiretividade, instabilidade,
irresponsabilidade, corporativismo e demérito77.
No que tange ao nosso objeto de estudo, do exposto resulta que o
procedimento de revisão constitucional tem de ser repensado. Se a soberania
reside no povo, a nossa ordem constitucional tem de ser revitalizada, para efeitos
de sobrevivência, de modo a integrar o povo no centro do poder decisório. Com

75
CARLOS BLANCO DE MORAIS, O Sistema Político, No Contexto da Erosão da Democracia
Representativa, Coimbra: Almedina, 2017, pp. 94-100.
76
PAULO OTERO, Direito, I…cit., pp. 216-217.
77
L. BARBOSA RODRIGUES, Assembleia…, cit., pp. 56-78.

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efeito, cada pessoa é comproprietária da soberania; tal compropriedade não


pertence a determinadas elites políticas ou a instâncias formais de produção de
direito. Tal atribuição seria a negação da própria democracia. Assim, a “erosão da
democracia representativa” configura uma premonição de uma revolução, ou no
mínimo, de uma qualquer rutura constitucional.
Com efeito, e seguindo de perto o pensamento de AFONSO QUEIRÓ, releva
notar que a norma que prevê limites materiais à revisão constitucional, por mais
arbitrária que possa ser, não pode ser, na sua plenitude – ao menos quanto aos
elementos essenciais identificadores da Constituição e já não quanto a elementos
não essenciais, como por exemplo de ordem ideológico-política ou ideológico-
partidária-, objeto de revisão, por mais arbitrária que possa ser, posto que, por um
lado, a Constituição ficaria despida da sua identidade, havendo lugar a uma
subjugação do criador pela criatura, num quadro de contradição lógica, e, por
outro, um dúplice procedimento, temporalmente balizado, redundaria na sujeição
do povo a uma tirania político-partidária ou coligacional meramente transitória ou
conjuntural. Malgrado, a Constituição parece obrigar as gerações vindouras a um
modelo social, político e axiológico geneticamente imposto, que se não compadece
com a historicidade e temporalidade das instituições políticas, sociais e
económicas78. Ora, sendo certo que a soberania reside no povo e sendo o elemento
povo perene e o elemento Constituição finito, é aquele quem é o titular do poder
constituinte e sustentáculo da validade da Constituição. Se assim é, a Constituição
não pode pretender impor-se-lhe, pelo que o povo é o legítimo titular de modificar
a Constituição, de forma direta e imediata.
Contudo, não sendo humanamente possível configurar uma assembleia que
albergue todo o povo, ao menos é possível criar mecanismos de democracia direta
ou semidireta que concorram positivamente com a democracia representativa,
possibilitando um maior escrutínio da classe política e uma maior aproximação do

78
AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Uma Constituição Democrática Hoje – Como?, Coimbra:
Atlântida Editora, 1980, pp. 25-29.

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povo à Polis, como é o caso do referendo. Note-se que o referendo vem operar como
controlo político imediato, a despeito das diretrizes partidárias, possibilitando uma
decisão mais sóbria – i.e., apartada de ingerências promanadas de colorações
político-partidárias -, como produto de uma racional e pessoalíssima ponderação
das vantagens e desvantagens que presidem, por inerência, a uma decisão
incidente sobre a Polis. Ademais, uma decisão democrática direta, por via do
referendo, confere maior legitimidade aos comandos normativos sancionados.
Nesta linha de pensamento, e tentando concretizar neste conspecto o
princípio da soberania popular, propomos, de jure constituendo, que a lei de revisão
constitucional, prima facie aprovada no Parlamento, seja, numa segunda fase,
sancionada pelo povo, através do mecanismo do referendo79, o que permite que o
devir constitucional se revele como um “produto social, cultural, espontâneo,
instintivo, progressivo, direto e imediato”80. Em conformidade, tal sanção
referendária iria comprimir a falta de comunicação entre governantes e
governados, possibilitar uma maior transparência no processo de revisão, atribuiria
ao povo o papel de juiz, no que concerne a assuntos que suscitam grandes
controvérsias, a maior parte das vezes subordinados às clivagens partidárias e iria
expandir a informação político-constitucional, esclarecendo o povo nos demais
pontos político-constitucionais, investindo-o numa consciência política mais
sólida8182.

79
De forma intermédia em relação à nossa posição, a Constituição da República de Itália, estatui,
no seu art. 138º, §2, que “as próprias leis são submetidas a referendo popular quando, no prazo de três
meses da sua publicação, são pedidas por um quinto dos membros de uma Câmara ou quinhentos mil
eleitores ou cinco Conselhos regionais. A lei submetida a referendo não é promulgada, se não for
aprovada pela maioria dos votos válidos”. Mais próxima do nosso pensamento se encontra a lei
fundamental francesa, que vem dizer, no seu art. 89º, §2 in fine que, em regra, a revisão só se torna
definitiva após ter sido aprovada por referendo.
80
L. BARBOSA RODRIGUES, Direito Constitucional…, cit., p. 46.
81
Aproximadamente, CARLOS BLANCO DE MORAIS, O Sistema…, cit., pp. 126-128; AFONSO
QUEIRÓ, op. cit., pp. 48 e ss., sendo certo que o professor de Coimbra sustenta que, embora a
Constituição seja omissa quanto à possibilidade de o povo ratificar, por via de referendo, a lei de
revisão constitucional, tal não pode obstar à sua admissibilidade, posto que o povo “está antes e
acima da constituição positiva escrita”. Idem, p. 50.
82
No âmbito do sistema político, e na senda do pensamento de BARBOSA RODRIGUES –
mormente a solução menos revolucionária que o autor apresenta -, estamos em crer que seria assaz

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dos eleitores na escolha dos candidatos partidários; c) admissibilidade de candidaturas à AR por
parte de grupos de cidadãos eleitores independentes, contanto que estes não tenham sido
militantes em partidos políticos há pelo menos duas legislaturas; d) diminuição do número de
deputados, de forma a agilizar a atividade política; e) limitação dos mandatos parlamentares a dois,
de forma a garantir uma mutação geracional no centro do poder político; f) concorrência positiva e
equilibrada entre candidaturas partidárias e independentes; g) abertura das comissões
parlamentares a cidadãos eleitores; h) iniciativa de dissolução popular junto do Presidente da
República; i) alargamento do âmbito material do referendo. (L. BARBOSA RODRIGUES,
Assembleia…, cit., pp. 125-130).

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