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UNIVERSIDADE SÃO TOMÁS DE MOÇAMBIQUE

FACULDADE DE DIREITO
CURSO DE DIREITO
EXTENSÃO DE XAI-XAI

SEBENTA DE APONTAMENTOS
DA CADEIRA DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

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Alfeu C. Cuna – Mestre em Direito


____________________________________________________________________________________

Xai-Xai, Agosto de 2022

1
BREVES NOTAS AUTORAIS

Quando fui convidado para Universidade São Tomás de Moçambique – Delegação de Xai-Xai, pela primeira vez (em
Fevereiro de 2016) para leccionar a disciplina de Justiça Constitucional, uma das grandes dificuldades com que me
deparei, foi a falta de bibliografia específica, socorrendo-me grosso modo, das obras do Direito Constitucional.

Como é sabido, a Cadeira em referência ainda não contém um acervo bibliográfico assinalável no nosso
ordenamento jurídico (moçambicano), uma vez que, poucos autores e/ou investigadores se interessam por esta área
do saber, sendo que, estes apontamentos são extraídos das obras do Direito Constitucional.

Pelo que, sendo esta, a minha 7ª viagem, nesta cadeira e 9º ano de experiência na docência do ensino superior (em
outras disciplinas de enciclopédia jurídica), impeliu-me o desejo de compilar e organizar numa única sebenta os
apontamentos sobre a Justiça Constitucional, pois para além de cativante revela-se importante para a comunidade
jurídica e para o público em geral, quando se tenta buscar a justiça através da lei mãe – a Constituição.

É minha intenção assinalar através destes apontamentos, os elementos essenciais de enquadramento da realidade
moçambicana, através do Direito Comparado no âmbito da temática geral da Cadeira.

Nesta cadeira de Justiça Constitucional, iremos aprender como fazer o uso das várias garantias constitucionais, isto
é, as categorias/órgãos e modelos cujas relações aquele ramo de direito vem enquadrar, sendo que no fim do
curso/disciplina, o estudante conheça e esteja em altura de conhecer sobre: a jurisdição constitucional em
Moçambique e no Mundo na perspectiva da sua génese e evolução até à situação actual; o perfil do Conselho
Constitucional moçambicano à luz da Constituição vigente; o sistema e os processos de fiscalização da
constitucionalidade e da legalidade adoptados na ordem jurídica moçambicana; desempenho do Conselho
Constitucional desde a sua entrada em funcionamento; algumas ideias sobre as perspectivas de evolução da
jurisdição constitucional em Moçambique.

Pelo que, por uma questão organizacional, elaborei a presente sebenta/resumo para minha orientação e auxiliar o
estudante, sendo obrigatório compulsar a bibliografia recomendada no Plano Temático/Analítico (e outra que versa
sobre Justiça Constitucional), para além da legislação pertinente indicada e existente.

Ressalta-se que, estes apontamentos são resultado de uma pesquisa Bibliográfica/Documental, estando sujeitos a
acréscimos, críticas e sugestões.

Alfeu C. Cuna

2
CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

1.1. Conceito de justiça

Justiça significa respeito à igualdade de todos os cidadãos, e é um termo que vem do latim “Justitia”. É o
princípio básico que tem o objectivo de manter a ordem social através da preservação dos direitos em sua
forma legal.

É um termo abstracto que designa o respeito pelo direito de terceiros, a aplicação ou do seu direito por ser
maior em virtude moral ou material. A Justiça pode ser reconhecida por mecanismos automáticos ou
intuitivos nas relações sociais, ou por mediação através dos tribunais.

Em Roma, a justiça é representada por uma estátua, com olhos vedados, que significa “todos são iguais
perante a lei” e “todos têm iguais garantias legais”, ou ainda, “todos têm iguais direitos”. A justiça deve
buscar a igualdade entre todos.

Segundo Aristóteles, o termo justiça denota, ao mesmo tempo, legalidade e igualdade. Assim, justo é tanto
aquele que cumpre a lei (justiça em sentido estrito) quanto aquele que realiza a igualdade (justiça em
sentido universal).

Justiça também é uma das quatro virtudes cardinais, e, segundo a doutrina da Igreja Católica, consiste “na
constante e firme vontade de dar aos outros o que lhes é devido”.

1.2. A Constituição e seus sentidos: sociológico, político e jurídico

Qual o sentido que melhor reflecte o conceito de Constituição?1

Para respondermos a essa questão tão discutida na doutrina, precisaremos primeiramente, conceber a
Constituição não apenas sob esses 03 (três) aspectos inicialmente propostos, mas também precisaremos
dos conceitos da classificação moderna da constituição:
A) Concepção Sociológica 2: Estabelece a Constituição sob o aspecto da relação entre os factos
sociais dentro do Estado. Para Lassalle havia uma Constituição real (ou efectiva - definição
clássica - é a soma dos factores reais de poder que regem uma determinada nação) e uma
Constituição escrita (para Lassalle, uma constituição escrita não passa de uma folha de papel).

1 Por: Luiz Lopes de Souza Júnior


2 Proposta por Ferdinand Lassalle no livro “A essência da Constituição”.
3
Esta soma poderia ou não coincidir com a Constituição escrita, que sucumbirá se contrária à
Constituição real ou efectiva, devendo se coadunar com a Constituição real ou efectiva.

B) Concepção Política: Prisma que se dá nesta concepção é o político, defendida por Carl Schmitt
no livro “Teoria da Constituição”. Busca-se o fundamento da Constituição na decisão política
fundamental que antecede a elaboração da Constituição - aquela decisão sem a qual não se
organiza ou funda um Estado. Ex: Estado unitário ou federação, Estado Democrático ou não,
parlamentarismo ou presidencialismo, quais serão os direitos fundamentais etc. Podem estar ou
não no texto escrito. O autor diferencia Constituição de Lei Constitucional. A 1ª traz as normas que
decorrem da decisão política fundamental, normas estruturantes do Estado, que nunca poderão
ser reformadas. A 2ª será que estiver no texto escrito, mas não for decisão política fundamental, é
matéria adstrita à lei, mas que está na Constituição, podendo ser reformadas por processo de
reforma constitucional.

C) Concepção Jurídica ou concepção puramente normativa da Constituição: Hans Kelsen3, a


Constituição é puro dever-ser, norma pura, não devendo buscar seu fundamento na filosofia, na
sociologia ou na política, mas na própria ciência jurídica. Logo, é puro “dever-ser”. Constituição
deve poder ser entendida no sentido: a) lógico-jurídico: norma fundamental hipotética:
fundamental porque é ela que nos dá o fundamento da Constituição; hipotética porque essa norma
não é posta pelo Estado é apenas pressuposta, ela própria está no topo do ordenamento; e b)
jurídico-positivo: é aquela feita pelo poder constituinte, constituição escrita, é a norma que
fundamenta todo o ordenamento jurídico. É algo que está no direito positivo, no topo na pirâmide.

A norma infraconstitucional deve observar a norma superior e a Constituição, por consequência. Dessa
concepção nasce a ideia de supremacia formal constitucional e controle de constitucionalidade, e de
rigidez constitucional4, ou seja, necessidade de proteger a norma que dá validade a todo o ordenamento.
Para ele nunca se pode entender o direito como fato social, mas sim como norma, um sistema escalonado
de normas estruturas e dispostas hierarquicamente, onde a norma fundamental fecha o ordenamento
jurídico dando unidade ao direito.

3
In Teoria Pura do Direito
4
Cf. Artigo 301º CRM.
4
1.3. Concepções Modernas sobre a Constituição

Força Normativa da Constituição - Konrad Hesse - critica e rebate a concepção tratada por Ferdinand
Lassalle. A Constituição possui uma força normativa capaz de modificar a realidade, obrigando as
pessoas. Nem sempre cederia frente aos factores reais de poder, pois obriga. Tanto pode a Constituição
escrita sucumbir, quanto prevalecer, modificando a sociedade.

Constitucionalização Simbólica - Marcelo Neves. Cita o autor que a norma é mero símbolo. O legislador
não a teria criado para ser concretizada. Nenhum Estado Ditatorial elimina da Constituição os direitos
fundamentais, apenas os ignora.

Constituição Aberta - Peter Haberle e Carlos Alberto Siqueira Castro. Leva em consideração que a
Constituição tem objecto dinâmico e aberto, para que se adapte às novas expectativas e necessidades do
cidadão. Se for aberta, admite emendas formais (EC) e informais (mutações constitucionais), está repleta
de conceitos jurídicos indeterminados.

Concepção Cultural - Remete ao conceito de Constituição total, que é a que possui todos os aspectos
vistos anteriormente. De acordo com esta concepção, a Constituição é fruto da cultura existente dentro de
determinado contexto histórico, em uma determinada sociedade, e ao mesmo tempo, é condicionante
dessa mesma cultura, pois o direito é fruto da actividade humana. José Afonso da Silva é um dos autores
que defendem essa concepção. Meirelles Teixeira a partir dessa concepção cultural cria o conceito de
Constituição Total, segundo o qual: “Constituição é um conjunto de normas jurídicas fundamentais,
condicionadas pela cultura total, e ao mesmo tempo condicionantes desta, emanadas da vontade
existencial da unidade política, e reguladoras da existência, estrutura e fins do Estado e do modo de
exercício e limites do poder político”5.

Entende-se que da classificação inicialmente proposta (sociológica, política e jurídica), assumimos nossa
preferência pela concepção normativa de constituição, que se aproximaria mais da concepção jurídica.
Mas, não poderíamos deixar de esclarecer que a Constituição de um Estado não deve ser vista apenas
por uma única concepção, e sim por uma “junção” de todas elas, e nesse ponto devemos considerar que a
concepção, ou o sentido que melhor compreende o conceito de constituição, é o sentido ou
concepção cultural, que reflecte numa união (conexão) de todos os sentidos vistos anteriormente.

5
Expressão retirada do livro do professor Dirley da Cunha Júnior na página 85, o qual retirou do livro de J. H. Meirelles Teixeira página 78.

5
Reconhecemos a supremacia da Constituição quando comparada às demais leis, estando no ápice da
pirâmide, servindo de legitimação para todo o Ordenamento Jurídico. Concordamos com o entendimento
defendido pelo professor Dirley da Cunha Júnior, em seu livro, ao afirmar que: Devemos, porém, confessar
que a concepção de Constituição como facto cultural é a melhor que desponta na teoria da constituição,
pois tem a virtude de explorar o texto constitucional em todas as suas potencialidades e aspectos
relevantes, reunindo em si todas as concepções - a sociológica, a política e a jurídica - em face das quais
se faz possível compreender o fenómeno constitucional. Assim, um conceito de Constituição
“constitucionalmente adequado” deve partir da sua compreensão como um sistema aberto de normas em
correlação com os factos sociopolíticos, ou seja, como uma conexão das várias concepções desenvolvidas
no item anterior, de tal modo que importe em reconhecer uma interacção necessária entre a Constituição e
a realidade a ela subjacente, indispensável à força normativa", (trecho retirado do livro - Curso de direito
constitucional - Dirley da Cunha Júnior, página 85 e 86).

O Conceito IDEAL de constituição, para J. J. GOMES CANOTILHO, é o conceito a partir de um


conceito cultural da constituição, devendo: “(i) consagrar um sistema de garantia da liberdade (esta
essencialmente concebida no sentido do reconhecimento dos direitos individuais e da participação do
cidadão nos actos do poder legislativo através dos Parlamentos); (ii) a constituição contém o princípio da
divisão de poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estaduais; (iii) a
constituição deve ser escrita”. (J. J. GOMES CANOTILHO - Direito Constitucional, p. 62-63.).

1.4. NOÇÂO JURÍDICA DA CONSTITUIÇÃO

Luiz Fernando Coelho define a constituição como uma lei suprema, estabelecida pelo povo em virtude de
sua soberania, para servir de base à sua organização política, dispor sobre os modos de criação das
outras leis e estabelecer os direitos e deveres dos seus membros.

Ao lado desta, inúmeras outras definições podem ser elencadas, ao longo da história. Para Locke,
constituição é o pacto social firmado entre o povo e o rei; para Rousseau, um contracto social firmado
pelos indivíduos entre si; para Barthélémy et Duez, uma suprema declaração unilateral de vontade do
povo; para Pedro Calmon, o corpo de leis que rege o Estado, limitando o poder do governo e
determinando a sua realização; para Carlos Maximiliano, o complexo de regras que determinam a
estrutura e o funcionamento dos poderes públicos e asseguram a liberdade dos cidadãos. Todas as
definições, portanto, apontam para um Poder organizador da ordem estatal.

6
O que é LEI? – Norma de conduta genérica e prospectiva, emanada dos órgãos do Estado (Legislativo,
especialmente, mas existem excepções), imposta coactivamente à obediência de todos, regular em face
da Constituição e supostamente legitimada pelo sufrágio universal. A lei é a expressão normativa do poder
soberano do Estado. É preciso questionar também os limites do poder legiferante do Estado.

Constituição em sentido jurídico é aquela compreendida de uma perspectiva estritamente formal. Hans
Kelsen, jurista austríaco, considera a Constituição como norma, e norma pura, como puro dever-ser, sem
qualquer consideração de cunho sociológico, político ou filosófico.

Kelsen desenvolveu dois sentidos para a palavra Constituição: um sentido lógico-jurídico e um sentido
jurídico-positivo.

a) Em sentido lógico-jurídico, a Constituição significa a norma fundamental hipotética (pensada,


pressuposta), cuja função é servir de fundamento da validade da Constituição em sentido jurídico-
positivo. Essa norma fundamental hipotética, fundamento da Constituição positiva, teria,
basicamente, o seguinte comando: conduza-se na forma ordenada pelo autor da primeira
Constituição. Já que Kelsen não admitia como fundamento da Constituição positiva algo de real,
foi obrigado a desenvolver este fundamento meramente formal;

b) Em sentido jurídico-positivo, a Constituição corresponde à norma positiva suprema, conjunto de


normas que regula a criação de outras normas, sem qualquer consideração de cunho sociológico,
político ou filosófico. Seu fundamento é a norma fundamental hipotética.

A Constituição é a lei fundamental de um determinado Estado. Pois, aí estão consagrados protegidos os


direitos e garantias fundamentais do cidadão. Também estão estabelecidas as regras de organização e
funcionamento dos órgãos estatuais bem como princípios fundamentais válidos nesse Estado.

7
CAPITULO II: NOÇÃO E ÂMBITO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

2.1. Surgimento da Justiça Constitucional

A origem da justiça constitucional remonta a aproximadamente dois séculos 6, teve sua origem no pós-
guerra, após as inovações trazidas pelo novo Direito Constitucional norte-americano, através de suas
decisões baseadas no stare decisis, por outro lado, aliada às ideias de Kelsen, surge, na Europa, a Justiça
Constitucional, uma esfera constitucional específica, incumbida da salvaguarda da Constituição e de sua
superioridade.

A Jurisdição Constitucional representava, a priori, uma arma de defesa, um mecanismo garantidor da


preservação da ordem democrático-constitucional, face a eventuais acções agressivas, antidemocráticas e
corrosivas em relação à Constituição. Com o decorrer do tempo, passou a ser crescentemente
considerada como elemento necessário da própria definição do Estado de direito democrático e seu
estudo tende a ser restrito a uma análise dos modelos de controlo de constitucionalidade.

Desta forma, cumpre fixar como premissa básica que para que exista processo constitucional é necessário
que o país possua uma Constituição rígida, isto é, uma Lei superior às demais leis. Ou seja, a Jurisdição
constitucional nasceu e desenvolveu-se em face da supremacia da Constituição.

Assim, o controle de constitucionalidade pode ser compreendido como a verificação da adequação da lei à
Constituição, tanto dos requisitos formais – subjectivos, como a competência do órgão que o editou –
objectivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição – quanto dos requisitos
substanciais – respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição.

Já para o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos, o controle de constitucionalidade, “é o instrumento de


garantia da supremacia constitucional. Serve para defender a constituição das investidas praticadas pelos
poderes públicos, e, também, dos actos privados atentatórios à magnitude de seus preceitos”.

Os Estados Unidos da América foi o país precursor da actual configuração do controle de


constitucionalidade, com a actuação da Suprema Corte na decisão emblemática do Caso Marbury V.
Madison, em 1803. Igualmente importante para o surgimento da justiça constitucional foi a criação e
actuação de Cortes Constitucionais em muitos países durante o século XX. José Alfredo Baracho destaca
que “a protecção dos direitos fundamentais está totalmente associada à instituição da justiça

6 PANIZZA, 2015, p. 61
8
constitucional”7. As Cortes constitucionais instituídas em diversos países têm a missão precípua de
interpretarem e servirem de guardiãs da Constituição de um país (KELSEN, 2003, pp. 239-298).

Como é sabido, as Constituições anteriores não previam qualquer forma de fiscalização de


constitucionalidade pelos Tribunais. A apreciação da constitucionalidade era entregue exclusivamente à
política, já que eram os políticos que detinham o cargo de vigiar pelo cumprimento da constituição. Mais
tarde foi entre aos Tribunais Comuns onde passou-se a um processo ou sistema difusão de controlo
constitucional, confiado à generalidade dos Tribunais.

Dai que, o conceito da justiça constitucional esta directamente relacionado ao Direito Constitucional, que é
o ramo do Direito Público dedicado à análise e interpretação das normas constitucionais. Tais normas são
compreendidas como ápice da pirâmide normativa de uma ordem jurídica consideradas leis supremas de
um Estado soberano e tem por função regulamentar e delimitar o poder estatal, além de garantir os
direitos considerados fundamentais.

2.2. Evolução da Justiça Constitucional no Constitucionalismo Moçambicano

2.2.1. Evolução Constitucional na República de Moçambique

A primeira Constituição de Moçambique entrou em vigor em simultâneo com a proclamação da


independência nacional em 25 de Junho de 1975. Nesta altura, a competência para proceder a revisão
constitucional fora atribuída ao Comité Central da Frelimo até a criação da Assembleia com poderes
constituintes, que ocorreu em 1978.

Considerando a importância da constituição como a “lei-mãe” do Estado moçambicano, e daí a


necessidade do seu conhecimento pelos cidadãos, de seguida é feita uma breve menção sobre a evolução
constitucional de Moçambique8.

Nesse contexto que foi instalado na República Popular de Moçambique (RPM) o regime político socialista
e uma economia marcadamente intervencionista, onde o Estado procurava evitar a acumulação do poderio
económico e garantir uma melhor redistribuição da riqueza. O sistema político era caracterizado pela
existência de um partido único e a FRELIMO assumia o papel de dirigente. Eram abundantes as fórmulas
ideológicas - proclamatórias e de apelo das massas, compressão acentuada das liberdades públicas em

7 BARACHO, 2003, p. 31
8
CONSTITUIÇÃO DE 1975: tendo como um dos objectivos fundamentais “a eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais...
e a luta contínua contra o colonialismo e o imperialismo”.
9
moldes autoritários, recusa de separação de poderes a nível da organização política e o primado formal da
Assembleia Popular Nacional.

Esta Constituição sofreu seis alterações pontuais, designadamente: em 1976, em 1977, em 1978, em
1982, em 1984 e em 1986. Destas, merece algum realce a alteração de 1978 que incidiu maioritariamente
sobre os órgãos do Estado (sua organização, competências, entre outros), retirou o poder de modificar a
Constituição do Comité Central da Frelimo e retirou a competência legislativa do Conselho de Ministro
(uma vez criada a Assembleia Popular que teria estas competências) e a de 1986 que fora motivada pela
institucionalização das funções do Presidente da Assembleia Popular e de Primeiro-Ministro, criados pela
5ª Sessão do Comité Central do Partido Frelimo.9

CONSTITUIÇÃO DE 1990: A revisão constitucional ocorrida em 1990 trouxe alterações muito profundas
em praticamente todos os campos da vida do País. Estas mudanças que já começavam a manifestar-se
na sociedade, principalmente na área económica, a partir de 1984, encontram a sua concretização formal
com a nova Constituição aprovada. Resumidamente, podemos citar alguns aspectos mais marcantes,
como sejam:
 Introdução de um sistema multipartidário na arena política, deixando o partido Frelimo de ter um
papel dirigente e passando a assumir um papel histórico na conquista da independência;
 Inserção de regras básicas da democracia representativa e da democracia participativa e o
reconhecimento do papel dos partidos políticos;
 Na área económica, o Estado abandona a sua anterior função basicamente intervencionista e
gestora, para dar lugar a uma função mais reguladora e controladora (previsão de mecanismos da
economia de mercado e pluralismo de sectores de propriedade);
 Os direitos e garantias individuais são reforçados, aumentando o seu âmbito e mecanismos de
responsabilização;
 Várias mudanças ocorreram nos órgãos do Estado, passam a estar melhor definidas as funções e
competências de cada órgão, a forma como são eleitos ou nomeados;
 Preocupação com a garantia da constitucionalidade e da legalidade e consequente criação
do Conselho Constitucional; entre outras.

9
Publicada no BR n.º 1, I Série, Quarta-feira, 25.06.1975., Art. 4 da CRPM de 1975, Jorge Miranda, Direito Constitucional, Tomo I, 6ª Edição,
Coimbra Editora, 1997, pg. 237, 8ª Reunião do Comité Central da Frelimo, publicada no BR n.º 42, I Série, Sábado, 10.04.1976, 2ª Sessão do
Comité Central da Frelimo, publicada no BR n.º 100, I Série, Terça-feira, 30.08.1977, Lei n.º 11/78 de 15 de Agosto, publicada no BR n.º 97, I
Série, Terça-feira, 15.08.1978, Resolução n.º 11/82 de 01 de Setembro, publicada no BR n.º 34, I Série, Suplemento de Quarta-feira, 01.09.1982,
Lei n.º 1/84 de 27 de Abril, publicada no BR n.º 17, I Série, Suplemento de Sexta-feira, 27.04.1984, Lei n.º 4/86 de 25 de Julho, publicada no BR
n.º 30, I Série, 2º Suplemento, Sábado, 26.07.1986.

10
A CRM de 1990 sofreu três alterações pontuais, designadamente: duas em 1992 e uma em 1996. Destas
merece especial realce a alteração de 1996 que surge da necessidade de se introduzir princípios e
disposições sobre o Poder Local no texto da Constituição, verificando-se desse modo a descentralização
do poder através da criação de órgãos locais com competências e poderes de decisão próprios, entre
outras (superação do princípio da unidade do poder).

CONSTITUIÇÃO DE 2004: Esta é a última revisão constitucional (até então) ocorrida em Moçambique.
Fora aprovada no dia 16 de Novembro de 2004. Não se verifica com esta nova Constituição uma ruptura
com o regime da CRM de 1990, mas sim, disposições que procuram reforçar e solidificar o regime de
Estado de Direito e democrático trazido em 1990, através de melhores especificações e aprofundamentos
em disposições já existentes e também pela criação de novas figuras, princípios e direitos e elevação de
alguns institutos e princípios já existentes na legislação ordinária à categoria constitucional. Um aspecto
muito importante de distinção desta constituição das anteriores é o “consenso” na sua aprovação, uma vez
que ela surge da discussão não só dos cidadãos, como também da Assembleia da República
representada por diferentes partidos políticos (o que não se verificou nas anteriores).

A nova CRM começa por inovar positivamente logo no aspecto formal, dando nova ordem de sequência
aos assuntos tratados e tratando em cada artigo um assunto concreto e antecedido de um título que
facilita a sua localização (o que não acontecia nas Constituições anteriores). Apresenta o seu texto
dividido em 12 títulos, totalizando 306 artigos (a CRM de 1990 tinha 7 títulos e 212 artigos no total).

Quanto ao aspecto substancial, verificamos o reforço das directrizes já fixadas para o Estado
moçambicano, como acima se mencionou. De forma meramente exemplificativa, pode-se citar alguns
pontos que ajudam a entender tal afirmação, como sejam:
 Logo no capítulo I do título primeiro referente aos princípios fundamentais, podemos destacar para
além do maior ênfase dado a descrição do Estado moçambicano como de justiça social,
democrático, entre outros aspectos de um Estado de Direito, a referência constitucional sobre o
reconhecimento do pluralismo jurídico, o incentivo no uso das línguas veiculares da nossa
sociedade, entre outros;
 No âmbito da nacionalidade, destaca-se o facto de o homem estrangeiro poder adquirir
nacionalidade moçambicana pelo casamento (antes só permitido para a mulher estrangeira);
 Os direitos e deveres fundamentais dos cidadãos para além de serem reforçados, ganham maior
abrangência. Pode-se citar exemplo de alguns direitos/deveres antes sem tratamento
11
constitucional: direitos dos portadores de deficiência, os deveres para com o semelhante e para
com a comunidade, os direitos da criança, as restrições no uso da informática, o direito de acção
popular, o direito dos consumidores;
 Para além do pluralismo jurídico, a importância da autoridade tradicional na sociedade
moçambicana passa a ter reconhecimento constitucional. Pode-se ainda mencionar a terceira
idade, os portadores de deficiência, o ambiente e a qualidade de vida como novos temas tratados
pela constituição;
 O capítulo VI do título IV que se dedica ao tratamento do sistema financeiro e fiscal em
Moçambique comporta um tema que antes não tinha tratamento constitucional;
 É criado um novo órgão político, o Conselho de Estado e um novo órgão de representação
democrática, as Assembleias Provinciais. As garantias dos cidadãos relativamente a actuação da
Administração Pública são reforçadas com a criação do Provedor da Justiça. Surge igualmente o
Conselho Superior da Magistratura Judicial Administrativa. A Administração Pública e os princípios
que norteiam a sua actuação também passam a gozar de tratamento constitucional, assim como a
Polícia de Moçambique e o Ministério Público;
 O tratamento dado às disposições relativas aos tribunais no título IX da CRM é mais
pormenorizado. Merece destaque o tratamento mais aprofundado que é dispensado às
disposições relativas a Tribunal Administrativo (na CRM de 1990 ocupava apenas 2 artigos);
 No título XV são tratadas com cuidado, as garantias constitucionais em caso de estado de sítio e
estado de emergência. A revisão constitucional encontra agora limites tanto materiais quanto
temporais, procurando-se com as primeiras salvaguardar as linhas bases que definem o Estado
moçambicano, como por exemplo: a forma republicana do Estado, o sistema eleitoral e o tipo de
sufrágio eleitoral, o pluralismo político, os direitos, liberdades e garantias fundamentais. A restrição
temporal é de 5 anos após a última revisão (salvo deliberação extraordinária de ¾ da Assembleia
da República), procurando-se com isto os aspectos positivos trazidos com a estabilidade e
solidificação dos princípios e instituições criadas.

Outras alterações são trazidas com a nova CRM que apenas com uma exposição mais detalhada
poderíamos deixar registadas. No entanto, não sendo este o intuito destes apontamentos, deixou-se ficar
algumas linhas que nos permitem uma visão geral sobre a evolução constitucional em Moçambique,
testemunhando desse modo o crescimento político, social e económico da nossa sociedade.

12
É importante assinalar que o estabelecimento formal do Conselho Constitucional pela Constituição de
1990 não foi seguido da criação das condições legais e institucionais requeridas para a sua entrada em
funcionamento. Aliás, esta situação estava prevista na própria Constituição que inseria uma disposição
cometendo ao Tribunal Supremo o exercício das competências do Conselho Constitucional até que este
iniciasse as respectivas funções.

O período transitório prolongou-se até Novembro de 2003, altura em que, pela primeira vez, foi aprovada e
entrou em vigor a Lei Orgânica do Conselho Constitucional, ao abrigo da qual procedeu-se à designação
dos membros que inauguraram o exercício da jurisdição constitucional no país.10

Em Novembro de 2004, o Parlamento moçambicano, no final da sua segunda Legislatura multipartidária,


concluiu o processo de revisão constitucional do qual resultou uma nova Constituição formal e
instrumental. Com efeito, o texto de 2004 manteve o núcleo essencial da Constituição material de 1990.
Todavia, a revisão constitucional verificada desenvolveu e, nalguns casos, explicitou e clarificou princípios
e regras fundamentais do Estado de Direito Democrático, nomeadamente nos domínios dos direitos,
liberdades e garantias individuais, dos direitos económicos, sociais e culturais, da organização do poder
político, do sistema de administração da justiça e o da garantia da constitucionalidade.

Neste último domínio, a Constituição de 2004 veio a tornar explícito o princípio de que o Estado subordina-
se à Constituição, tendo igualmente reafirmado e reforçado o princípio da constitucionalidade dos actos
normativos do poder público. O Conselho Constitucional adquiriu uma nova configuração e as suas
competências foram significativamente ampliadas, facto que ditou a actualização da sua Lei Orgânica,
passando a reger-se pela Lei nº6/2006, de 2 de Agosto (LOCC), actualizada pela Lei nº5/2008, de 9 de
Julho.

Importa salientar que, através da Lei nº1/2018, de 12 de Junho, a CRM de 2004, passou por uma revisão
pontual, para ajustá-la ao processo de consolidação de reforma democrática do Estado, ao
aprofundamento da democracia participativa e à garantia da paz, reiterando aos valores e princípios da
soberania e da unicidade do Estado, dando lugar a uma descentralização político-administrativa.

10 Pag. 7 Relatório sobre Moçambique à I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010

13
CAPÍTULO III: ANÁLISE SUMÁRIA DO REGIME JURICO-CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS,
LIBERDADES E GARANTIAS NA CRM DE 2004

3. Justiça constitucional, legitimidade e interesse público

O objectivo primordial desta temática é reflectir sobre a possibilidade de conciliação entre justiça 11 e
legitimidade12, observando a necessidade de um princípio normativo que configure a passagem do justo
ao legítimo e do legítimo ao justo, tendo em vista a relação entre política e direito. Argumenta-se que a
zona cinzenta entre justiça e legitimidade deve ser preenchida pelo princípio normativo do interesse
público. Parte-se da hipótese que o conceito de interesse público permite a passagem da justiça à
legitimidade, e vice-versa.

O interesse público é o princípio que fundamenta a ordem do político pelos interesses, de acordo com a
publicidade de decisões e juízos estabelecidos na dimensão do público.

Nesse sentido, essa hipótese permite afirmar que a passagem da justiça constitucional à legitimidade –
quando decisões de justiça são legítimas – ocorre se ela for publicamente fundamentada de acordo com
os interesses publicamente reconhecidos na lei. Por outro lado, a passagem do legítimo ao justo ocorre
quando a lei é fruto de uma igual consideração – Justiça Constitucional, legitimidade e interesse público e
respeito aos interesses postos em jogo, tendo em vista o princípio da publicidade.

É fundamental, como aponta Urbinati, separar o julgamento político do julgamento judicial, porém é
fundamental haver, o que ela não pressupõe, um princípio que permita a passagem de um a outro
(Urbinati, 2010). A conciliação entre justiça e legitimidade, portanto, demanda pensar um princípio de
natureza ontológica13 que, em nosso argumento, é o conceito de interesse público.

11 Justiça é um conceito abstracto que se refere a um estado ideal de interacção social em que há um equilíbrio razoável e impar cial entre os
interesses, riquezas e oportunidades entre as pessoas envolvidas em determinado grupo social. Em um sentido mais amplo pode ser considerado
como um termo abstracto que designa o respeito pelo direito de terceiros, a aplicação ou reposição do seu direito por ser maior em virtude moral
ou material. A Justiça pode ser reconhecida por mecanismos automáticos ou intuitivos nas relações sociais, ou por mediação através dos
tribunais, através do Poder Judiciário.
12 Qualidade para estar em juízo, como demandante ou demandado, em relação a determinado conflito trazido ao exame do juiz. Sempre

dependerá de uma relação entre o sujeito e a causa e traduz-se na relevância que o resultado desta virá a ter sobre a sua esfera de direitos, seja
para favorecê-la, seja para restringi-la. Trata-se, portanto, de uma relação de legítima adequação entre sujeito e a causa. O requisito da
legitimidade desdobra-se em legitimidade passiva e activa. Faltando qualquer uma delas, o demandante será carecedor de acção, impedindo qu e o
juiz analise o mérito da acção. Tal qual as demais condições da acção, a legitimidade inclui-se entre os pressupostos de admissibilidade do
julgamento do mérito.
13 Ontologia significa “estudo do ser”. A palavra é formada através dos termos gregos “ontos” (ser) e “logos” (estudo, discurso). Consiste em uma

parte da filosofia que estuda a natureza do ser, a existência e a realidade, procurando determinar as categorias fundamentais e as relações do “ser
enquanto ser”.
14
Definida esta hipótese e a problematização, o tema está em mais três secções. Na primeira secção,
apresentaremos o argumento do constitucionalismo liberal para a despolitização da justiça, considerando-
o como uma das teorias políticas hoje dominantes.

No que diz respeito ao tema da justiça constitucional, trataremos de duas contribuições importantes ao
debate, que são a de John Rawls e a de Ronald Dworkin, sem pretendermos esgotar as possibilidades e
os alcances do liberalismo.

John Rawls foi o grande responsável por uma virada de cunho metodológico na teoria política, que, desde
então, se centra no tema da justiça como algo fundamental para a concretização de uma sociedade
democrática.

É de se notar que Rawls, em momento algum de sua obra, propõe ou afirma uma concepção de
democracia direccionada ao Estado. O Estado é esvaziado como centro de produção da democracia,
sendo o problema da justiça política dirigido, substancialmente, à produção de uma sociedade democrática
e não de um Estado democrático14.

Como perspectiva de uma sociedade democrática, a justiça política rawlsiana circunscreve o problema da
democracia ao problema da produção de um consenso sobreposto em torno dos princípios de justiça, o
qual seja capaz de produzir uma sociedade tolerante à medida que seus cidadãos sejam razoáveis e
respeitem o princípio da diferença.

A tolerância, como fim normativo do liberalismo político de Rawls, baseia-se, em primeiro lugar, no
princípio da igual liberdade dos indivíduos; em segundo lugar, no princípio segundo o qual as diferenças
na distribuição de riqueza só se justificam se for mais vantajosa para aquele indivíduo que se encontra em
pior posição.

Rawls não está preocupado em produzir uma concepção legítima de justiça política, mas uma concepção
que seja válida tendo em vista os preceitos de um procedimento formal que dê origem ao contrato. Nesse
sentido, a origem dos princípios de justiça demanda uma concepção contratualista centrada na validade
dos princípios e não em sua legitimidade.

A validade configura-se, de acordo com Rawls, através do consenso em torno de princípios que todos
possam endossar, independentemente de suas concepções morais, filosóficas ou religiosas.

14 Rawls, 1993, p. 156-157


15
O dilema do construtivismo rawlsiano é estabelecer a concretude desses princípios sem recorrer a uma
concepção metafísica e ética da justiça.

Dessa forma, a questão da posição original e o uso do véu de ignorância, no momento de construção do
contracto originário, buscam assegurar a validade dos princípios de justiça e sua aplicação mediante o
consenso constitucional.

Questões de legitimidade, no âmbito do liberalismo político rawlsiano, circunscrevem-se em torno da


questão da constitucionalidade de actos normativos e acções políticas do governo e dos cidadãos.

Não há, dessa maneira, uma preocupação, no liberalismo político, com a questão da vontade dos
cidadãos ou com concepções de bem. Não há, portanto, uma preocupação com uma política do bem
comum ou uma preocupação com o tema da comunidade. O exercício do poder, segundo Rawls, é
legítimo se exercitado de acordo com uma constituição, a qual todos os cidadãos livres e iguais
razoavelmente endossam.

A todos é garantido o direito constitucional de provocar a actividade jurisdicional. Mas ninguém está
autorizado a levar a juízo, de modo eficaz, toda e qualquer pretensão, relacionada a qualquer objecto
litigioso. Impõe-se a existência de um vínculo entre os sujeitos da demanda e a situação jurídica afirmada,
que lhes autorize a gerir o processo em que esta será discutida. Surge, então, a noção de legitimidade ad
causam15.

A legitimidade para agir (ad causam petendi ou as agendum) é condição da acção que se precisa
investigar no elemento subjectivo da demanda: os sujeitos. Não basta que se preencham os “pressupostos
processuais” subjectivos para que a parte possa actuar regularmente em juízo. É necessário, ainda, que
os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo
em que se discuta aquela relação jurídica de direito material deduzida em juízo. É a “pertinência
subjectivada acção”, segundo a célebre definição doutrinária.

Essa noção revela os principais aspectos da legitimidade ad causam:

15 Qualquer um é garantido o direito constitucional de provocar o judiciário, mas ninguém está autorizado a deduzir em juízo toda e qualquer
pretensão, relacionada a qualquer objecto litigioso. Esse dispositivo trata da legitimidade ad causam, que não se confunde com a legitimidade
para o processo, em latin legitimatio ad processum. Aquela é condição da acção, enquanto esta é pressuposto processual que se refere à
capacidade para estar em juízo. A legitimidade para agir é condição da acção que se precisa investigar no elemento subjectivo da demanda: os
sujeitos. Não basta que se preencham os pressupostos processuais subjectivos para que a parte possa actuar regularmente em ju ízo. É necessário,
ainda, que os sujeitos da demanda estejam em determinada situação jurídica que lhes autorize a conduzir o processo em que se discute aquela
relação jurídica de direito material deduzida em juízo. É a pertinência subjectiva da acção.
16
a) Trata-se de uma situação jurídica regulada pela lei (“situação legitimante”; “esquemas abstractos”;
“modelo ideal”, nas expressões normalmente usadas pela doutrina);
b) É qualidade jurídica que se refere a ambas as partes do processo (autor e réu);
c) Afere-se diante do objecto litigioso, a relação jurídica substancial deduzida – toda legitimidade
baseia-se em regras de direito material, embora se examine à luz da situação firmada no
instrumento da demanda.

A legitimidade ad causam é bilateral, pois o autor está legitimado para propor acção em face daquele réu,
e não em face de outro. Pode-se dizer, no que tange à legitimidade do réu, que não constitui ela
normalmente uma legitimidade autónoma e desvinculada daquela do autor. Ambos são legitimados
quando inseridos na mesma relação jurídico-processual emergente da pretensão.

3.1. Funções fundamentais da Justiça Constitucional

3.1.1. Funções estruturais (próprias) e funções impróprias.

Como se ressaltou, há duas grandes categorias de funções que se podem constatar na realidade
constitucional concreta, apartadas sob o signo da necessária ou prescindível vinculação ao Tribunal
Constitucional:
(i) Funções próprias e
(ii) Funções impróprias.

As funções impróprias são aquelas que determinada realidade estatal imputa ao Tribunal Constitucional
ignorando a posição e a natureza dessa instituição. São funções que não se compadecem com a posição
de garante da Constituição, descolando-se da categoria de funções que são estruturais (próprias) a
qualquer Justiça Constitucional.

As funções chamadas próprias são aquelas que pertencem a um Tribunal Constitucional por sua
natureza e desenvoltura (cf. art. 243º CRM).

São as funções estruturais da Justiça Constitucional, responsáveis por sua identificação e caracterização
final. Todas as funções próprias são essenciais, e delas não se pode desvencilhar o Tribunal
Constitucional, sob pena de grave prejuízo para a Constituição e o sistema jurídico.

17
A categoria das funções próprias pode ser repartida, por seu turno, em diversas outras, reagrupáveis a
partir de alguns critérios classificatórios.

Assim, como já se assinalou, as funções próprias podem ser, do ponto de vista histórico:
a) Funções originárias (incluindo algumas que restaram ocultadas pela doutrina e prática constitucionais);
e
b) Funções recentes (novas). Essa classificação obedece, exclusivamente, a critérios cronológicos de
surgimento e de exercício das funções, não apresentando, portanto, o necessário interesse científico
para fins de construção de uma dogmática jurídica (cf. 243º/3).

3.1.2. Categorias de Funções Próprias

O critério é relevante, contudo, para realizar o elenco completo das funções estruturais do Tribunal
Constitucional. São elas:
(i) Função de controlo das leis;
(ii) Função de árbitro dos “poderes”;
(iii) Função interpretativa;
(iv) Função de governo;
(v) Função estruturante;
(vi) Função arbitral;
(vii) Função legislativa e função comunitária.

3.1.3. Função interpretativa16

A interpretação, enquanto actividade a ser desenvolvida, é o discurso que se insere entre o sujeito que
interpreta e a coisa a ser interpretada.

Aqui se tem em mira, especialmente, a interpretação da Constituição. A preocupação é, portanto, com o


reconhecimento da existência dessa actividade no seio do Tribunal Constitucional, procurando determinar
sua natureza, especificidades e limites.

Evidentemente que o Tribunal Constitucional, como qualquer outro tribunal, opera a interpretação de
qualquer texto que lhe seja submetido a apreciação para aplicação. Mas a interpretação das leis não cabe
como função própria do Tribunal Constitucional a não ser para fins de controlo de constitucionalidade das

16 Artigo 246º CRM, 2004


18
leis e, por vezes, no desempenho da função de corte de cessação. Essa parcela da actividade, que se
reconhece também no âmbito da interpretação ao Tribunal Constitucional, não integrando o círculo da
Justiça Constitucional, será afastada das teorizações a seguir formuladas.

Outro pressuposto é a constatação de que a Constituição e as leis em geral não hospedam a solução total,
objectiva e definitiva para as controvérsias sociais ou mesmo jurídicas. É necessária a intermediação
subjectivo-judicial para a finalização da representação jurídica.

3.1.4. Limites da função interpretativa

A interpretação efectuada pelos tribunais constitucionais apresenta seus limites, para além dos quais
extravasa da legitimidade constitucional. Os limites são tanto de ordem processual quanto substancial. Os
limites processuais fazem parte da própria essência do processo que deve ser trilhado por um Tribunal
Constitucional17.

Quanto aos limites substanciais ou materiais, como já decidiu o Tribunal Constitucional espanhol: “Não
pode (...) tratar de reconstruir uma norma que não esteja devidamente explícita em um texto, para concluir
que esta é a norma constitucional18”

Ademais, há limites decorrentes da opção política adoptada pela própria Constituição, embora essa opção
seja passível de certa margem de interpretação a ser operada pelo Tribunal. Problemática específica e de
grande alcance, cujo perigo da escassa análise decorre do escamoteamento da função criadora pelas
pseudo-teorias da mera execução do Direito na actividade julgadora, encontra-se na não-incidência do
princípio da proibição do efeito retroactivo. A retroactividade das decisões judiciais interpretativas (que
opera fora de qualquer questionamento) é fruto da ficção de que o Tribunal Constitucional apenas declara
o Direito.

Por outro lado, mostra-se necessário, aqui, sublinhar a necessidade de que a interpretação seja
explicitada pelo Tribunal Constitucional. Ao Tribunal Constitucional é defeso promover uma leitura isolada
da Constituição, sem maiores esclarecimentos ou demonstrações. O próprio método utilizado, suas
vantagens e as preocupações do Tribunal devem ser, por este, apresentadas no próprio contexto
decisório. Trata-se de uma dimensão comunicativa, que, se não é a própria interpretação, é, contudo,
imanente a essa actividade.

17
CAPPELLETTI, 1993, p. 24).
18 S.T.C. de 8 abr. 1981, apud PÉREZ GORDO, 1983, p. 56-7, tradução nossa.
19
3.2. A Fiscalização da Constitucionalidade e da Legalidade – O Caso de Moçambique

3.2.1. O sistema de fiscalização

Tal como dissemos a retro, a Constituição de 2004 manteve, no essencial, o já referido modelo misto de
fiscalização da constitucionalidade e da legalidade oriundo da Constituição de 1990, continuando assim a
pertencer ao Conselho Constitucional o exercício, em exclusivo, da fiscalização sucessiva abstracta19 e
aos tribunais o controlo sucessivo concreto por via incidental 20. Contudo, foram introduzidas duas
inovações de capital importância, designadamente, a fiscalização preventiva das leis a cargo do Conselho
Constitucional21 e o controlo por este mesmo órgão das decisões dos tribunais que recusem a aplicação
de normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.22

Em relação ao objecto, a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade apenas abrange os actos


normativos dos órgãos do Estado23, ou seja, os actos legislativos tanto da Assembleia da República como
do governo, respectivamente, as leis e os decretos-lei, os decretos normativos do Presidente da
República, os decretos regulamentares do governo e os avisos do Governador do Banco de
Moçambique.24

Nestes termos, embora também vinculados à Constituição e à lei, não estão abrangidos pelo sistema de
fiscalização da constitucionalidade e da legalidade previsto, nomeadamente os actos de natureza política,
jurisdicional e administrativa.

3.3. Os processos de fiscalização na CRM (2004) e na LOCC

3.3.1. A fiscalização preventiva

A fiscalização preventiva é da competência exclusiva do Conselho Constitucional e a iniciativa do


respectivo processo cabe unicamente ao Presidente da República25. O objecto do controlo preventivo
confina-se aos actos legislativos da Assembleia da República que, nos termos da Constituição, são os

19
Artigo 244 da CRM/2004;
20
Artigo 213 da CRM/2004;
21 Artigo 245 da CRM/2004.
22 Artigo 246, nº1, conjugado com o artigo 213, ambos da Constituição
23 Artigo 243, nº1, alínea a), da CRM/2004.
24 Artigos 142 e 147 da CRM/2004.
25 Artigo 245, nº1, da CRM/2004.

20
únicos que se sujeitam à promulgação do Presidente da República26. O exercício da iniciativa processual
tem como efeito a interrupção do prazo da promulgação.27

3.3.2. A fiscalização sucessiva abstracta

Tal como na fiscalização preventiva, compete em exclusivo ao Conselho Constitucional exercer o controlo
sucessivo abstracto. Contudo, a legitimidade processual activa é reconhecida a várias entidades,
designadamente o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, um terço, no
mínimo, dos deputados da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Procurador-Geral da
República, o Provedor de Justiça e cidadãos perfazendo o mínimo de dois mil.28
Neste tipo de fiscalização a acção directa de inconstitucionalidade pode ter por objecto quaisquer normas
vigentes na ordem jurídica interna, desde que emanadas de órgãos do Estado, podendo a iniciativa do
processo ser exercida a todo o tempo da vigência da norma.29

3.3.3. A fiscalização concreta

A fiscalização concreta, que é sempre sucessiva, é exercida tanto pelos tribunais como pelo Conselho
Constitucional. Com efeito, qualquer tribunal, independentemente da respectiva jurisdição, tem o poder-
dever de recusar a aplicação, aos casos concretos, de normas que julgar inconstitucionais ou ilegais30, e
as decisões jurisdicionais daí decorrentes são obrigatoriamente remetidas ao Conselho Constitucional que
aprecia e decide em definitivo a questão prejudicial de inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada no
processo.31

3.4. Valor e efeito jurídicos das decisões

De forma geral, os acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os
cidadãos, instituições e pessoas jurídicas, são irrecorríveis e prevalecem sobre todas as demais decisões,
incluindo as dos tribunais.32 No entanto, a Constituição e a lei prevêem efeitos específicos das decisões
em função da espécie do processo e do sentido de cada decisão.

26 Artigos 245, nº1 e 162 da CRM/2004.


27 Artigo 245, nº3, da CRM/2004.
28 Artigo 244, nº2, da CRM/2004.
29 Artigo 244, nº 1, da CRM/2004.
30 Artigos 213 e 246, nº 1, alínea a), da CRM/2004.
31 Artigo 246, nº 1, alínea a).
32 Artigo 247, nº 1, da CRM/2004.

21
Assim, na fiscalização preventiva as decisões de não provimento determinam, a partir da sua notificação
ao requerente, o começo da contagem de novo prazo da promulgação da lei em causa 33 e as de
provimento vinculam o Presidente da República a vetar o diploma legal sindicado, com fundamento na
inconstitucionalidade declarada, devendo devolve-lo à Assembleia da República.34

No controlo sucessivo abstracto, as decisões declarativas da inconstitucionalidade ou da ilegalidade têm


força obrigatória geral e os seus efeitos produzem-se a partir da entrada em vigor da norma declarada
inconstitucional ou ilegal e determinam a repristinação das normas revogadas. Nos casos de
inconstitucionalidade ou ilegalidade superveniente, a respectiva declaração só produz efeitos a partir da
entrada em vigor da norma paramétrica.35

As decisões negativas, porque não declaram a constitucionalidade ou a legalidade das normas, limitando-
se a não acolher a questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada, vinculam apenas o
Conselho Constitucional no sentido de não poder voltar a pronunciar-se pela inconstitucionalidade ou
ilegalidade das mesmas normas, salvo se o requerente apresentar fundamentos diferentes dos alegados
no processo anteriormente julgado.

Na fiscalização concreta, as decisões de provimento obrigam o tribunal a quo a reformar a sua decisão de
acordo com o julgamento da questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade feito pelo Conselho
Constitucional e fazem caso julgado no processo quanto a aludida questão.36

3.5. Os casos de decisões intermédias

A Lei Orgânica prevê casos de decisões intermédias, por um lado, na fiscalização sucessiva abstracta, ao
conceder ao Conselho Constitucional a prerrogativa de limitar o alcance dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade, normalmente previstos na lei, com fundamento na segurança
jurídica, em razões de equidade ou de interesse público de excepcional relevo37, por outro lado, na
fiscalização concreta, habilitando o Conselho Constitucional a formar um juízo de constitucionalidade
sobre a norma desaplicada pelo tribunal a quo, baseando-se numa determinada interpretação da mesma
norma, que seja mais conforme com a Constituição.38

33 Artigos 245, nº 4 e 162, nº 2, da CRM/2004.


34 Artigo 245, nº 5, da CRM/2004.
35
Artigo 66, nºs 1 e 2, da LOCC.
36 Artigo 73, alíneas a) e c) da LOCC.
37 Artigo 66, nº 4, da LOCC.
38 Artigo 73, alínea b) da LOCC.

22
CAPÍTULO IV: GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NA CRM DE 2004

A Constituição da República de Moçambique é o documento que estabelece a forma de organização e


funcionamento do Estado bem como reconhecer os direitos, deveres e liberdades fundamentais dos
cidadãos. A Constituição é a lei fundamental do nosso Estado e serve como base de todas as leis que
existem em Moçambique.

Os elementos em apresentação nesta temática, tem como objectivo apresentar os princípios fundamentais
da Constituição da Republica de Moçambique (C.R.M) aprovada no dia 16 de Novembro de 2004. Para
além dos princípios, direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, pretende-se que nesta parte de
apontamentos os estudantes conheçam e saibam defender os seus interesses e direitos, bem como
outrem (na qualidade de juristas).

Nesta parte, procuraremos apresentar em uma linguagem mais simples e esclarecedora, isto para facilitar
a qualquer um a perceber esta temática. Não se pretende esgotar a matéria constitucional, mas quer-se
sim responder à alguns problemas concretos que afectam o nosso dia-a-dia.

Os elementos que evidenciaram nesta unidade temática, foram: o livro “Os direitos humanos” da Diocese
de Quelimane assim como o livro: “Direitos Humanos” do Centro Cultural Mosaiko em Angola. Os
exemplos são inventados e não se referem a certas pessoas vivas ou mortas.

4. Princípios fundamentais

A Constituição da República de Moçambique estabelece alguns princípios que regem no nosso país. Os
mais importantes são: o princípio do Estado de Direito e o princípio de Democracia. Além desses é para
destacar que o nosso Estado é laico e de Direito Democrático39

A. ESTADO DE DIREITO

O princípio de Estado de Direito trata do conteúdo, extensão e modo, como o Estado deve proceder com
as suas actividades. O princípio de Estado de Direito conforma as estruturas do poder político e a
organização da sociedade segundo a medida do direito. O direito estabelece regras e medidas, prescreve
formas e procedimentos, e cria instituições.

39
Artigo 3º da CRM. A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política
democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais do homem.
23
As características mais importantes do Estado de Direito são:
 Império da lei como expressão da vontade geral: todos os actos do Estado são limitados pela lei;
 Divisão dos poderes: legislativo, executivo e judicial;
 Direitos e liberdades fundamentais
 Garantia jurídica formal e efectiva realização.

No entanto, a Constituição da República de Moçambique consagra um vasto conjunto de requisitos do


Estado de Direito. Queremos salientar artigo 2º (Soberania e Legalidade) 40.

4.1. Democracia

A República de Moçambique é uma democracia. Isto quer dizer que, é dirigido pelo povo. É uma
democracia representativa, significa que o povo exerce o seu poder através de representantes eleitos por
ele. A democracia como princípio fundamental da República de Moçambique.

4.2. Estado Laico

Em Moçambique, a religião é separada do Estado. Há uma divisão total, em que a religião não tem nada a
ver com o Estado. A constituição reconhece a liberdade de se praticar a religião assim como desenvolver
actividades de interesse social, mas sempre em observância com as leis do Estado (artigo 12º – Estado
laico).41

B. DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS

Além de abordar acerca da estrutura do Estado e os seus princípios fundamentais, a Constituição da


República de Moçambique consagra direitos e liberdades fundamentais. Esses se referem a todos os
cidadãos. Os mais importantes nestes apontamentos, são: o princípio de igualdade, a liberdade de
expressão, liberdade de imprensa, liberdade de associação, direito de propriedade etc.

40
O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade. Neste artigo está consagrado que todos os actos do Estado devem cumprir com
a Constituição da República bem coma as leis.
41A República de Moçambique é um Estado laico.

A laicidade assenta na separação entre o Estado e as confissões religiosas.


As confissões religiosas são livres na sua organização e no exercício das suas funções de culto e devem conformar-se com as leis do Estado.
O Estado reconhece e valoriza as actividades das confissões religiosas visando promover um clima de entendimento, tolerância, paz e o reforço
da unidade nacional, o bem estar espiritual e material dos cidadãos e desenvolvimento económico e social.
24
4.3. Direito à vida42

Todo o cidadão tem direito à vida e à integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou
tratamentos cruéis ou desumanos. Na República de Moçambique não há pena de morte.

Exemplo 1: Chikako Barroso é membro da comunidade Goba no Distrito de Murrupula. Ele é cidadão
moçambicano como outros tantos. Ele, só pelo facto de ser pessoa goza de certos direitos como o direito
de viver bem e de gozar a sua vida livremente segundo os limites estabelecidos pela Constituição da
República de Moçambique. Em princípio, ele não pode e não deve ser ameaçado e nem violentado pelo
Estado, porque o direito à vida é um direito inerente à pessoa humana.

4.4. Princípio de igualdade

Exemplo 2: Jovelina pede um título de direito de uso e aproveitamento da terra no município da Cidade
Xai-Xai. Epifania nasceu no Distrito de Ribaué, Província de Nampula. Os pais dela são camponeses. Eles
nunca têm celebrado casamento. Epifania é membro do partido PIMO. Acontece, que o pedido não tinha
sucesso. Depois, ela soube que o direito não foi concedido, porque ela é mulher, filha de pais camponeses
que além disso não são casados oficialmente, nasceu num distrito da zona norte, pertence à tribo Macua,
é negra, é da religião islâmica e membro do partido PIMO.

Exemplo 3: Mandoviane e Mudlhawana são estudantes e moram no bairro de Chinuguine – Cidade Xai-
Xai. Acordaram às 4 horas de madrugada e foram ao Notariado do Registo Civil para reconhecer
fotocópias de B.I. Estava muito cheio e havia uma longa bicha. Tinham que esperar duas horas. Vitimada
José de Araújo, é filha do Director Provincial da Saúde e funcionária do Notário, acordou às 9 horas e
dirigiu-se ao Notariado do Registo Civil para, também, reconhecer fotocópia do seu B.I. Ao chegar
deparou-se com uma longa bicha mas, ela entrou e foi logo atendida pelo funcionário público.

Nos exemplos acima, vislumbra-se de forma inequívoca que, foram violados os princípios da
universalidade e da igualdade, pois todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos
direitos e estão sujeitas aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar
de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política
(artigos 35 e 36).

42
Artigo 40

25
(Princípio da igualdade de género): O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da
vida política, económica, social e cultural. A lei não distingue as pessoas quanto aos seus direitos de
cidadão. Perante a lei não há ministro nem camponês, nem branco nem negro, nem mulher nem homem,
nem macena e nem makonde, nem que este nasceu em Cabo Delgado ou em Niassa, não há muçulmano
nem católico, não há rico nem pobre, nem doutor nem analfabeto. Não importa se os pais são casados
pelo registo ou não, se trabalham ou não, se são do PDD ou da FRELIMO. Todos cidadãos são iguais
perante a lei e gozam dos mesmos direitos.

4.5. Liberdade de expressão

Exemplo 4: No bairro de Mukoboro foram presas oito pessoas, porque estas teriam dito que o Presidente
da República não está a cumprir com as promessas que fez durante a campanha eleitoral. Essas pessoas
já não sabem se podem falar livremente ou não43.

(Liberdades de expressão e informação): 1.Todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, à


liberdade de imprensa, bem como o direito à informação; 2. O exercício da liberdade de expressão, que
compreende nomeadamente, a faculdade de divulgar o próprio pensamento por todos os meios legais, e o
exercício do direito à informação não podem ser limitados por censura.

O artigo 48º da Constituição da República de Moçambique reconhece que cada um pode ter as próprias
opiniões e pode manifestá-las aos outros. As pessoas têm o direito de falarem aquilo que sentem, desde
que isso não prejudique o bem comum. Todos os cidadãos podem trocar ideias com os outros e
manifestar as suas próprias opiniões sem medo, desde que haja limite de tal liberdade.

Contra este direito vai a proibição de exprimir as próprias opiniões, o que é contra lei. Também contra a lei
é quando alguém está sendo condenado porque ele teve a coragem de manifestar as suas ideias. A
liberdade de expressão tem limites nos direitos dos outros. Há, no entanto, actos que a lei pune como
calúnia ou difamação ou mesmo a libertinagem.

4.6. Liberdade de imprensa (artigo 48)

1. A liberdade de imprensa compreende, nomeadamente, a liberdade de expressão e de criação dos


jornalistas, o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e do sigilo profissional e
o direito de criar jornais, publicações e outros meios de difusão.

43 Vide o artigo 48 da CRM


26
2. O Estado garante a isenção dos meios de comunicação social do sector público, bem como a
independência dos jornalistas perante o Governo, a Administração e os demais poderes políticos.
3. A Constituição da República de Moçambique protege a liberdade de imprensa. Esta é um dos direitos
fundamentais mais importantes para uma democracia viva. Quando os jornalistas têm o direito de
acesso às fontes de informação, têm a possibilidade de exprimir livremente as suas opiniões e os
jornais podem publicá-las livremente etc. Cria-se uma base para o pluralismo de opiniões que é
(im)pertinente para uma sociedade democrática. Também importante é que jornalistas podem ser
formados e exercer a sua profissão sem intervenções do Estado.

4.7. Liberdade de associação (artigo 52)

1. Os cidadãos gozam da liberdade de associação.


2. As organizações sociais e as associações têm direito de prosseguir os seus fins, criar instituições
destinadas a alcançar os seus objectivos específicos e possuir património para a realização das suas
actividades, nos termos da lei.
3. São proibidas as associações armadas de tipo militar ou paramilitar e as que promovam a violência, o
racismo, a xenofobia ou que prossigam fins contrários à lei.

É muito normal que o homem se reúna com outros para conversar, trabalhar, para resolver problemas,
para trocar experiências etc. O homem é um ser social, por isso tem necessidade de conviver e de se
associar aos outros.

O artigo 53º da Constituição da República de Moçambique consagra o direito de todos os cidadãos para
se juntarem em associações pacíficas. Existem associações com objectivos culturais, religiosos, políticos,
desportivos, estudantis, etc.

4.8. Liberdade de constituir, participar e aderir a partidos políticos (artigo 53)

(Liberdade de constituir, participar e aderir a partidos políticos)


1. Todos os cidadãos gozam de liberdade de constituir ou participar em partidos políticos.
2. A adesão a um partido político é voluntária e deriva da liberdade dos cidadãos de se associarem em
torno dos mesmos ideais políticos.

27
Em Moçambique hoje, existem mais de 30 partidos políticos44. Eles ajudam a pôr a democracia na prática,
porque são um meio para formar e expressar a vontade política dos cidadãos.
Democracia é o governo pelo povo. No nosso país, a democracia é executada por representantes, em
primeiro lugar os Deputados da Assembleia da República. Os partidos políticos intervêm no processo
eleitoral, mediante apresentação ou patrocínio de candidatura. Os partidos políticos expressam o
pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são um instrumento
fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país, (art. 74º n.º1, CRM).

Essas funções, os partidos políticos só podem exercer, quando os cidadãos têm o direito de livremente
constituir e participar em partidos políticos, assim como está consagrado no art. 53º da Constituição da
República. Ao mesmo tempo, o Estado deve assegurar que cada cidadão possa decidir sem pressão, se
ele quiser aderir a um partido ou não.

4.9. Liberdade e consciência, de religião e de culto (artigo 54)

(Liberdade de consciência, de religião e de culto)


1. Os cidadãos gozam de liberdade de praticar ou de não praticar uma religião.
2. Ninguém pode ser discriminado, perseguido, prejudicado, privado de direitos, beneficiado ou isento de
deveres por causa da sua fé, convicção ou prática religiosa.

A liberdade de religião abrange a possibilidade de escolher, praticar ou não praticar uma religião. Cada
pessoa é livre de seguir a sua religião, podendo praticá-la sozinho ou em grupo, na sua casa ou em
público. O Estado não tem o direito de intervir na escolha ou na prática ou não prática da religião dos seus
cidadãos.

4.10. Direito de propriedade (artigo 82)

1. O Estado reconhece e garante o direito de propriedade.


2. A expropriação só pode ter lugar por causa de necessidade, utilidade ou interesse públicos, definidos
nos termos da lei e dá lugar a justa indemnização.

O art. 82º da Constituição da República de Moçambique protege o direito de propriedade. Embora a terra
(de acordo com art. 109º da CRM) seja propriedade do Estado, cada cidadão pode ter outros bens, como

44
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_partidos_políticos_de_Moçambique (consultado em 17/08/2017, pelas 18H30)

28
casas, bicicletas, rádios etc. O Estado só tem direito de tirar este direito do cidadão pagando uma justa
indemnização.

C. DIREITOS NO PROCESSO PENAL

A Constituição da República de Moçambique também prevê alguns direitos que se referem especialmente
ao processo penal. Quando um cidadão fica preso por alegadamente ter cometido um crime, ele perde um
direito muitíssimo importante, que é a sua liberdade. Para assegurar que a estadia na prisão assim como o
julgamento não ultrapassem os limites do necessário para manter a ordem do Estado, a Constituição põe
ao lado da pessoa acusada dum crime, alguns direitos – (artigo 59).

(Direito à liberdade e a segurança)


Na República de Moçambique, todos têm direito à segurança e ninguém pode ser preso e submetido a
julgamento senão nos termos da lei.
As pessoas em Moçambique só podem ser presas nos casos em que a lei o determina. Isto é, por
exemplo, quando a pessoa é encontrada a cometer um crime ou nos casos em que a pessoa comete um
crime punível com pena de prisão por mais de um ano (p.e. em caso alguém matar uma outra pessoa).

Nenhum cidadão pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, nem ser punido
com pena não prevista na lei ou com pena mais grave do que a estabelecida na lei no momento da prática
da infracção criminal.

(Aplicação da lei criminal – artigo 60)


1. Ninguém pode ser condenado por acto não qualificado como crime no momento da sua prática.
2. A lei penal só se aplica retroactivamente quando disso resultar benefício ao arguido.

4.11. Presunção da inocência

Artigo 59 – Os arguidos gozam da presunção da inocência até decisão judicial definitiva.


O Estado moçambicano quer, que todos os cidadãos vivam em paz e gozem da justiça. Para não provocar
injustiças, o Estado só pode punir alguém, quando tiver certeza, que ele cometeu um crime. Por isso, o art.
59º da Constituição da República diz que até a decisão judicial definitiva uma pessoa é tratada como
inocente. No nosso país, alguém só pode ser condenado dum crime, quando está provado que foi ele
quem cometeu e, só os juízes no tribunal, depois dum julgamento, podem decidir, se as provas são
bastantes ou não.
29
4.12. Direito à defesa, audiências públicas e proibição da tortura

Artigo 62 – Acesso aos tribunais


1. O Estado garante o acesso dos cidadãos aos tribunais e garante aos arguidos o direito à defesa e o
direito à assistência jurídica e patrocínio judiciário.
2. O arguido tem o direito de escolher livremente o seu defensor para o assistir em todos os actos do
processo, devendo ao arguido, que por razões económicas não possa constituir advogado, ser
assegurada a adequada assistência jurídica e patrocínio judicial.
Cada pessoa, contra qual o Estado está a realizar uma investigação ou um processo criminal, tem o direito
de ser defendido por um advogado escolhido por ela. Se alguém não tem dinheiro para pagar um
advogado, o Estado deve disponibilizar um defensor oficioso.

Artigo 65 – Princípios de processo criminal


2. As audiências de julgamento em processo criminal são públicas, salvo quando a salvaguarda da
intimidade pessoal, familiar, social ou da moral, ou ponderosas razões de segurança da audiência ou de
ordem pública aconselharem a exclusão ou restrição de publicidade.
3. São nulas todas provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da
pessoa, abusiva intromissão na sua vida privada e familiar, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações.

4.13. Prisão preventiva

Artigo 64 – Prisão preventiva


1. A prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei, que fixa os respectivos prazos.
2. O cidadão sob prisão preventiva deve ser apresentado no prazo fixado na lei à decisão de autoridade
judicial, que é a única competente para decidir sobre a validação e a manutenção da prisão.
3. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das
razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.
4. A decisão judicial que ordene ou mantenha uma medida de privação da liberdade deve ser logo
comunicada a parente ou pessoa da confiança do detido, por este indicado.

A prisão preventiva só é permitida nos casos previstos na lei. Estes são: Uma pessoa pode ser presa
preventivamente:
 Quando for encontrada a praticar crime ou tendo acabada de o cometer;
30
 Quando for perseguida logo após a prática do crime por qualquer pessoa;
 Com mandado de captura.
Um mandado de captura pode ser emitido por:
 Juízes dos tribunais judiciais ou equivalentes;
 Procuradores;
 Directores, inspectores e subinspectores do SERNIC;
 Oficiais da PRM com funções de comando;
 Administradores distritais, chefes de postos administrativos ou presidentes dos conselhos
municipais, onde não existam oficiais da PRM.

Dentro de 48 horas depois de captura, o cidadão na prisão preventiva tem que ser apresentado ao juiz. Só
esse pode determinar se se justifica manter a prisão preventiva.

Outras garantias
Existem mais garantias importantes na Constituição para os cidadãos, por exemplo o princípio de
proporcionalidade, o princípio de divisão de poderes ou o princípio que o Estado só pode interferir em
direitos dos cidadãos quando uma lei admite este acto. Aqui queremos apresentar mais dois princípios,
quais são o acesso aos tribunais, a independência dos juízes bem como direitos dos administrados.

D. ACESSO AOS TRIBUNAIS

Artigo 70 - Direito de recorrer aos tribunais


O cidadão tem o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses
reconhecidos pela Constituição e pela lei.

Artigo 252 - Direitos e garantias dos administrados: É assegurado aos cidadãos interessados o direito ao
recurso contencioso fundado em ilegalidade de actos administrativos, desde que prejudiquem os seus
direitos. Pilar fundamental do Estado de Direito é o livre acesso à via aos tribunais. Este direito não só está
preconizado em caso que o cidadão sentir violado os seus direitos por um outro cidadão, mas sim,
também pelos actos do Estado. Qualquer cidadão, sofrendo uma violação dos seus direitos, pode recorrer
aos tribunais.

31
4.14. Independência dos Juízes

Artigo 216 - Independência dos juízes


1. No exercício das suas funções, os juízes são independentes e apenas devem obediência à lei.
2. Os juízes têm igualmente as garantias de imparcialidade e irresponsabilidade.

4.15. Direitos e garantias dos administrados

Artigo 248 - Princípios fundamentais


1. A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades
fundamentais dos cidadãos.
2. Os órgãos da Administração Pública obedecem à Constituição e à lei e actuam com respeito pelos
princípios da igualdade, da imparcialidade, da ética e da justiça.

Artigo 249 - Estrutura


1. A Administração Pública estrutura-se com base no princípio de descentralização e desconcentração,
promovendo a modernização e a eficiência dos seus serviços, sem prejuízo da unidade de acção e dos
poderes de direcção do Governo.
2. A Administração Pública promove a simplificação de procedimentos administrativos e a aproximação
dos serviços aos cidadãos.

Artigo 252 -Direitos e garantias dos administrados


1. Os cidadãos têm o direito de serem informados pelos serviços competentes da Administração Pública
sempre que requeiram sobre o andamento dos processos em que estejam directamente interessados nos
termos da lei.
2. Os actos administrativos são notificados aos interessados nos termos e nos prazos da lei e são
fundamentados quando afectam direitos ou interesses dos cidadãos legalmente tutelados.
3. É assegurado aos cidadãos interessados o direito ao recurso contencioso fundado em ilegalidade de
actos administrativos, desde que prejudiquem os seus direitos.

A Administração Pública tem a tarefa de implementar as leis em todo o país, da capital até ao nível das
comunidades locais. Na sua função, serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e
liberdades fundamentais dos cidadãos. Consoante art. 248º da Constituição da República de Moçambique,
os órgãos da Administração Pública obedecem à constituição e à lei. Eles actuam com o respeito dos
princípios da igualdade, da imparcialidade, da ética e da justiça
32
4.16. Direito de acesso à justiça constitucional45

Quando se fala de acesso à justiça constitucional pretende-se, em geral, individualizar as vias para se
chegar ao Tribunal Constitucional ou aos Tribunais com competência de fiscalização da
constitucionalidade (vide artigos 62º e 70º da CRM).

Assim, poderemos considerar que o acesso aos Tribunais para controlo de normas pode ser feito através
do incidente de inconstitucionalidade, nos tribunais ordinários, através de acções constitucionais de
defesa, através de fiscalizações abstractas, sucessivas ou preventivas, através de litígios federativos como
acontece nos estados federais. Esta primeira aproximação ao acesso à justiça constitucional indicia,
porém, que alguma coisa permanece obscura.

Aqui depreende-se dois elementos: Uma coisa é ter acesso à justiça constitucional e outra é ter o direito
de acesso à justiça constitucional. O Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República,
1/3 pelo menos, dos Deputados da Assembleia da República, o Primeiro Ministra, o Procurador-geral da
República, o Provedor de Justiça, dois mil cidadãos, têm a faculdade de acesso à jurisdição constitucional
porque as constituições dos respectivos Estados lhes conferem expressamente a competência, ou se se
preferir, o poder de levar questões constitucionais - diríamos, em termos amplos "questões da vida
constitucional" - às jurisdições constitucionais respectivas (cf. artigos artigo 244º CRM, conjugado com os
artigos 60º e 117º, ambos da LOCC).

É correcto e rigoroso designar estas competências constitucionais por direito de acesso? O direito de
acesso à justiça constitucional não deverá recortar-se como um direito fundamental dos cidadãos incluído
no direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais? A estar correcta a sugestão que acaba de
fazer-se, o direito de acesso à justiça constitucional será um direito dinamizado pelos titulares de direitos
fundamentais (pessoas individuais ou pessoas colectivas) através dos seguintes fundamentos: (1)
suscitação do incidente de inconstitucionalidade; (2) de acções constitucionais de defesa ou de amparo
dirigidas contra medidas dos poderes públicos (legislativas, administrativas, judiciais) violadoras de direitos
fundamentais; (3) de acções contra actos omissivos dos poderes públicos também lesivos de direitos
fundamentais (cf. Artigo 41º LOCC)

É esta a proposta que propusemos: discutir o direito de acesso à justiça constitucional significa aprofundar
a justiça constitucional como meio de protecção de direitos fundamentais. Isso significa que se discutem
45 José Joaquim Gomes Canotilho. Direito de Acesso à Justiça Constitucional. Luanda, Julho de 2011.
33
não apenas questões de legitimidade activa ou passiva ou problemas de direito processual constitucional,
mas sim questões directamente relacionadas com o direito fundamental de acesso à justiça e aos
tribunais.

Começaremos por aqui, desde logo sobre a subjectivação do acesso à justiça constitucional. Marshall
salienta que o que está em jogo na fiscalização da inconstitucionalidade das leis são os actos ultra vires do
poder legislativo ou executivo, violadores das regras de competência dos órgãos constitucionais
estabelecidas na lei fundamental. Kelsen aposta na ideia de "legislador negativo" defendendo que os
pecados (originais) transportados por actos legislativos deveriam ser eliminados por um outro órgão
constitucional através da declaração da inconstitucionalidade. De uma forma ou de outra, o controlo
pautar-se-ia pelas regras do direito constitucional objectivo. Não estava directamente em causa um direito
fundamental dos cidadãos à justiça constitucional. A crescente subjectivação deste acesso à justiça
constitucional e a outros tribunais com funções semelhantes como os tribunais internacionais de defesa
dos direitos humanos coloca, hoje, com acuidade, o sentido e limites deste direito.

Sentido e limites que começam logo pelo texto de cada constituição, pelo modo de entendimento da sua
aplicabilidade e pela própria interpretação das normas constitucionais. As constituições procuram ter força
normativa de forma a auto afirmarem-se como direito imediatamente aplicável. Não é este o lugar para
voltar ao tema das “constituições programáticas” e das “constituições preceptivas”. Se queremos que as
leis constitucionais valham como lei superior e contenham direito imediatamente aplicável de forma a
vincularem todos os poderes do Estado então deveremos reter dois pontos básicos:
 A prevalência ou superioridade da Constituição relativamente a todos os poderes eleva-a a
medida de toda a acção estatal que, por sua vez, apela à existência de uma justiça constitucional
intencionalmente dirigida ao controlo da observância desta “medida constitucional”;
 Ao valer como lei e ao produzir os efeitos da lei ela pode e deve ser convocada para a solução de
casos concretos submetidos à decisão judicial, quer se trate de casos impregnados de alta
sensibilidade política (fiscalização abstracta preventiva da inconstitucionalidade das leis, solução
de “litígios orgânicos” ou “litígios federativos”), quer se trate de casos presos às ritmias e arritmias
da vida comunitária intersubjectiva (defesa de direitos através do incidente de
inconstitucionalidade, acções de amparo ou acções constitucionais de defesa).

34
CAPÍTULO V: OS MODELOS DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL NO ÂMBITO DO DIREITO
COMPARADO

Nesta temática de Justiça Constitucional pretende-se desde logo, e fundamentalmente, enquadrar a justiça
constitucional, com especial destaque para o controlo da constitucionalidade das normas, apresentando as
diversas razões justificativas da sua necessidade, algumas delas intemporais e genéricas, outras mais
localizadas do ponto de vista temporal e espacial.

5. Os modelos de justiça constitucional

A) O modelo americano de justiça constitucional, seus elementos de identificação: as

perspectivas contemporâneas da interpretação e hermenêutica constitucional.

A noção de justiça constitucional é expressão que designa o conjunto de instituições e técnicas por meio
das quais é assegurada a supremacia da Constituição, ao mesmo tempo que propicia a ampliação do
conteúdo inserido na Constituição escrita, através da jurisprudência constitucional. A noção de justiça
constitucional aparece em Hans Kelsen e Charles Eisenmann que a utilizam a partir do ano de 1928, já
com o sentido que é dado nos dias de hoje. Para Kelsen a justiça constitucional é a garantia jurisdicional
da Constituição.

Eisenmann fornece uma primeira definição, pela qual a justiça constitucional é uma espécie de justiça ou
meio de jurisdição pela qual se examina aspectos das leis constitucionais. Ele completa esta primeira
definição, distinguindo justiça constitucional e jurisdição constitucional, a segunda é o órgão pelo qual se
exerce a primeira, propiciando em seguida a compreensão do sentido jurídico da justiça constitucional.

O sentido jurídico da justiça constitucional é, em última análise, o processo de garantia da repartição entre
a legislação ordinária e a legislação constitucional, assegurando-se o respeito à competência do sistema
de regras ou órgão supremo de ordem estatal. Este elemento decisivo permite concretizar a existência da
justiça constitucional. Ele não se contém apenas nas atribuições de uma jurisdição que garante a
repartição de competências entre legislação ordinária e legislação constitucional, quando essa jurisdição
exerce propriamente a justiça constitucional. No caso da França, todas as jurisdições administrativas e
judiciárias são apreciadas pelo Conselho de Estado e pela Corte de Cassação. O vocabulário moderno
não foi utilizado, durante muito tempo, pela doutrina francesa que pretendia falar em controlo de
constitucionalidade das leis.

35
De facto o controlo de constitucionalidade das leis não é senão as técnicas à disposição da justiça
constitucional. É a mais importante, no que diz respeito a um dos elementos da Teoria da Justiça
Constitucional. Os diversos sistemas de justiça constitucional são reduzidos a três, se examinamos o
modo como é aplicado em vários Estados do mundo. Novos estudos teóricos e práticos foram feitos por L.
Favoreau, em seguida aos realizados por Mauro Cappelletti, nos anos de 1984 a 1986, com a distinção em
dois grandes modelos de justiça constitucional, com referências particulares à França.

No exame dos modelos de justiça constitucional, que hoje são reduzidos a dois, o sistema americano
funcionou no início do século XIX, apesar de não se ter expandido no conjunto de outros Estados. Países
europeus como a Noruega ou a Grécia praticaram sistemas semelhantes ao do século XIX. A maior parte
deles excluiu a possibilidade dos juízos ordinários em verificar a constitucionalidade das leis. Novas
tentativas são realizadas na França, na Alemanha e na Itália entre as duas Grandes Guerras. Para
Favoreau, em 1996, várias são as razões que geraram uma concepção diferente da separação de poderes
e da estrutura do aparelho jurisdicional.

O modelo americano dificilmente é transponível para outros países a não ser os Estados Unidos, tendo em
vista suas particularidades e em decorrência de que os países europeus adoptaram um sistema que não
repousa no exercício da justiça constitucional pelos juízes ordinários, mas confia aos mesmos uma
jurisdição constituída em decorrência das particularidades desses sistemas.

Os dois modelos, o americano e o europeu, passaram a ter hoje uma repercussão mundial, com a
prevalência do sistema continental europeu.

O modelo americano de justiça constitucional tem como base o estudo dos fundamentos do controle de
constitucionalidade dos Estados Unidos, permitindo-se salientar as razões da implementação rápida
naquele país, dos mecanismos de justiça constitucional. A procura dos elementos identificadores do
modelo americano deve ser analisada pela caracterização do sistema de Judicial Review. Ele constitui um
dado necessário ao estudo da difusão desse modelo, nas transposições que ocorreram nos contextos
jurídicos nacionais diferentes e dos mecanismos adoptados no quadro específico do sistema constitucional
e jurídico norte-americano.

Os fundamentos do controle da constitucionalidade nos Estados Unidos decorrem de razões que podem
ser paradoxalmente evocadas, através de uma distante influência judiciária britânica. Surgiram daí
antecedentes que vão desde o excesso do parlamento de Londres e da posição das Colónias americanas,

36
que estabeleceram aplicação efectiva de uma Constituição que se situa em uma origem primeira, com
base no controle de constitucionalidade dos Estados Unidos.

Nesse processo de racionalidade, destaca-se o arresto fundador decorrente do caso Marbury versus
Madison da Corte Suprema, em 1803, onde o Chief Justice Marshall se inspira directamente nos
argumentos já presentes em certos redactores da Constituição americana. Apesar do significado e da
importância dessa decisão, a doutrina destaca as origens longínquas no L’arrêt Bonham. Parece
paradoxal que na Inglaterra, ou ainda hoje, a democracia maioritária e a soberania do parlamento tenha
propiciado a vinda de uma verdadeira democracia constitucional que deu origem à primeira ideia moderna
de controlo de constitucionalidade.

O juiz inglês Sir Edward Coke, no início do século XVII, aplica a noção de lei superior, através do arrêt
Bonham, decorrente do tribunal de Common Pleas, em 1610. Nesta decisão, ele considera que o Colégio
de Médicos de Londres não é competente para sancionar a situação de Bonham para o exercício da
medicina sem autorização, desde que a lei invocada não apoia esta sanção que parece contrária ao direito
da common law. A common law, monopólio do poder judiciário, de conformidade com esta tese, é a lei
fundamental do reino, é a encarnação da razão.

É neste sentido que uma lei do parlamento contrária à lei superior deve ser declarada nula46. Na Inglaterra,
a doutrina do juiz Coke é abandonada, e, com ela, o princípio, segundo o qual a vontade do Parlamento
pode ser submetida ao controle de juiz; nos Estados Unidos, os teóricos da revolução a aceitaram
expressamente. No ano de 1761, esse princípio começa fazer parte do conceito de Constituição, pelo que
James Otis e John Adams defendem as reivindicações de independência das Colónias da nova Inglaterra,
proclamando que uma lei contrária à Constituição é nula.

A existência do Comité Judiciário do Conselho Privado, na Inglaterra, é uma forma de controlo de


constitucionalidade que foi difundida nas Colónias americanas, através da prática do Comité Judiciário do
Conselho Privado (Privy Council), emanação do Conselho do Rei que podia invalidar as leis das
Assembleias Coloniais contrárias ao direito da mãe pátria. Este mecanismo pré-figura uma espécie de
controlo jurisdicional de conformidade com a legislação que destaca as relações com a norma reputada
superior.

46 O que ate coincide com a lei moçambicana


37
O contexto constitucional norte-americano, devido à ausência da consagração expressa do controle de
constitucionalidade da Constituição de 1777, tem grande significado. Deve-se ressaltar que, a partir da
independência em 1776 e da adopção de Constituições rígidas nas treze Colónias americanas, surgiram
na América do Norte os primeiros elementos do constitucionalismo moderno. A Constituição de 17 de
Setembro de 1787 não consagrou expressamente um mecanismo de controlo de constitucionalidade, mas
James Madison propôs conferir ao Poder Judiciário um direito de veto por inconstitucionalidade,
proposição que foi rejeitada. O artigo III, Secção 1, da Constituição prevê apenas que o Poder Judiciário
dos Estados Unidos será exercido por uma Corte Suprema e por Cortes inferiores, pelo que o Congresso
poderá, à medida de suas necessidades, ordenar seu estabelecimento.

Antes que o Chef justice John Marshall, Presidente da Corte Suprema, não reivindicasse para o Poder
Judiciário sua missão de guardião da Constituição, a célebre decisão Marbury v. Madison de 1803,
Alexander Hamilton, um dos elaboradores do texto constitucional da Convenção de Filadélfia, pretendeu
colocar seus fundamentos.

Os argumentos dos pais fundadores em favor do controle da constitucionalidade em Federalist Papers


consistiram em uma reunião de artigos que surgiram no ano de 1787, para sustentar a ratificação da
Constituição nos treze Estados da Confederação. Hamilton apresentou a primeira argumentação moderna
em favor do controle de constitucionalidade.

A Constituição dos Estados Unidos consagra limitações precisas ao Poder Legislativo. Qualquer legislação
contrária à Constituição não será válida, caso contrário, as limitações previstas não teriam qualquer
sentido. A Constituição, lei suprema do país, como todas as leis, deve ser objecto de interpretação, que é
função própria de um Tribunal. A partir dessas premissas, Hamilton concluía que compete aos juízes
determinar o sentido da Constituição e assegurar a supremacia da norma superior.

Em O Federalista, nº78, de forma premonitória, afirma-se que, se existe uma contradição entre a
Constituição e uma lei, a norma que tem um carácter obrigatório e um valor superior deve ser
naturalmente preferida. A Constituição tem preferência sobre a lei, a intenção do povo e a intenção de
seus agentes. Tal entendimento justifica a escolha feita em favor do Poder Judiciário para assegurar este
controle, pelo qual os três Poderes ficam passíveis de examinar o sistema de equilíbrio e harmonia entre
os mesmos. É lógica a reivindicação de que o exercício do controlo de constitucionalidade, segundo
Hamilton, deverá ser feito pela Corte Suprema. Vários elementos demonstram a legitimidade da Corte na

38
democracia americana de hoje, em que o juiz não pode decidir que as leis contrárias à Constituição
possam ser aceitas.

O poder de interpretar o espírito da Constituição e sua função deve garantir o respeito objectivo ao texto
fundamental. Se numerosas disposições ambíguas da Constituição Federal podem conduzir até nossos
dias a interpretações, muitas vezes audaciosas, a Corte Suprema é dotada do princípio de uma reserva
judiciária que a coloca no conjunto das condições primeiras de legitimidade no quadro do sistema jurídico-
constitucional norte-americano.

A decisão Marbury v. Madison decorreu do raciocínio inicial de Hamilton, repetida por Marshall, em 1803,
através de uma decisão unânime. O decisório nasceu de questões políticas, quando em 1800 Thomas
Jefferson foi eleito Presidente dos Estados Unidos, em que os republicanos tinham a maioria da Câmara
dos Representantes e do Senado. Marbury intentou um recurso perante a Corte Suprema invocando
certas disposições da lei sobre a organização do Poder Judiciário (Judiciary Act) de 1789. Esses textos
permitiam determinar a Corte ou ordenar que a nova administração efetuasse as nomeações. Naquele
período, houve uma importante decisão para o sistema constitucional americano e pela difusão do próprio
princípio de controlo da constitucionalidade.

O raciocínio de Marshall decorria de uma opinião bem hábil, afirmando o direito de Marbury ser nomeado.
Marshall entendeu que a Corte não poderia ordenar essa nomeação, desde que a disposição da Lei de
1789 previa que era contrária à Constituição. O Congresso havia, segundo a Corte, ultrapassado seus
poderes, e estendeu sua competência à alta jurisdição.

Esta interpretação levou a várias discussões doutrinárias sobre os dispositivos de controlo e da


consolidação do poder federal. O Presidente Jefferson condenou vigorosamente tal afirmação do controlo
de constitucionalidade por parte do Judiciário. Em nome da democracia e do equilíbrio de poderes,
Jefferson e Madison recusaram de ver na Corte Suprema, órgão politicamente irresponsável, o guardião
único da Constituição, propiciando um debate sobre a legitimidade e a competência do juiz constitucional,
que é válida até nossos dias.

Naquele momento, surgiram questionamentos básicos que ainda persistem no sistema constitucional
contemporâneo: a Constituição é superior a toda outra norma; a lei sobre a organização judiciária de 1789
é contrária à Constituição; a lei deve ser invalidada por inconstitucionalidade. A linguagem e a Constituição
dos Estados Unidos confirmam e reforçam o princípio considerado como essencial por toda Constituição

39
escrita, segundo o qual uma lei contrária à Constituição é nula, e os Tribunais, como os outros Poderes,
estão ligados por esse instrumento.

O primeiro sistema de justiça constitucional teve assim no modelo americano seus paradigmas,
transformando-se num produto de exportação, pelo que é importante identificar seus próprios caracteres e
especificidades. Os elementos de identificação do modelo americano, pela doutrina, são compostos de
quatro componentes essenciais, que o caracterizam:
a) O exercício de um controle difuso;
b) O controlo concreto;
c) Exercido geralmente a posteriori, por via de excepção;
d) A decisão se beneficia, em princípio, somente de uma autoridade relativa da coisa julgada, devendo-se
acentuar a função reguladora da Corte Suprema no sistema americano.

O controlo difuso é exercido por um Tribunal, sob a autoridade reguladora da Corte Suprema. O princípio
do controle difuso, aplicado neste sistema, implica que o controle de constitucionalidade pode ser
exercido, não importando qual juiz federal ou estadual. Os Tribunais americanos dispõem de uma
plenitude de jurisdição, sendo que o juiz de primeira instância é competente para pronunciar-se sobre o
conjunto das questões decorrentes de um litígio, sejam elas civis, penais, administrativas ou
constitucionais.

Na Noruega, Dinamarca, Austrália e Suíça, em certa medida, onde o controle de constitucionalidade foi
introduzido, como nos Estados Unidos, de maneira espontânea, por via jurisdicional, são as disposições
constitucionais específicas que consagram nesses outros países mecanismos da justiça constitucional.

No Canadá, o Governo Federal pode encaminhar à Corte Suprema um aviso consultivo sobre toda
questão constitucional. Já nos Estados Unidos, pelo contrário, todo procedimento de consulta é, por
princípio, proibido.

Todas as transposições do modelo americano geraram alterações no modelo originário, onde o sistema do
judicial review está ligado ao contexto americano e é difícil de ser rapidamente absorvido de maneira
efectiva, em um quadro institucional diferente. Nos diversos países da Europa Oriental ocorreu um
movimento de extensão da justiça constitucional, sendo que, à excepção da Estónia, que institui um
sistema de controle difuso, os países adoptaram o modelo europeu de sistema constitucional. No sistema
francês, nas diversas referências às Cortes Constitucionais Europeias, ocorre uma tendência para a

40
consagração do modelo europeu. Todos os dois modelos consagram as novas perspectivas
contemporâneas da interpretação e da hermenêutica constitucional, pelo que Francisco Fernandez
Segado, tratando a justiça constitucional no século XXI, menciona a progressiva aproximação do sistema
americano e do sistema europeu-kelseniano.

A interpretação é uma actividade reguladora do direito, sendo que em alguns ordenamentos a própria
actividade de interpretação é reguladora do direito, apesar de nem sempre indicar o instrumento e o
critério a ser usado na compreensão. A regra sobre a interpretação do direito constitui uma regra
instrumental no sentido de que não tem valor em si e por si, mas só como fonte reguladora relativa a outra
regra. Esta instrumentalidade não consiste na finalização, mas na compreensão do significado da
disposição a ser interpretada.

Não existe uma interpretação objectivamente verdadeira, em razão de que no campo do direito não existe
um critério de verificação da falsificação. O direito e a interpretação são ciências puramente convencionais
que não têm realidade objectiva com a qual confrontam. O direito objectivo é próprio do que se deve
determinar através da interpretação, sendo que o resultado da interpretação não pode ser entendido como
uma norma fora da compreensão a ser desejada.

A interpretação é intimamente sujeita a pressões de vários tipos que se exprimem em questões de dúvida
interpretativa pelo que nem sempre há uma certeza absoluta na interpretação. O critério de verdade da
interpretação e sua eficácia concreta, bem como sua capacidade de afirmar nas actividades práticas de
aplicação do direito, prima sobre tudo em sede judiciária. É justa a interpretação quando é dotada por um
juiz competente, dizendo-se que a interpretação do mesmo é um dado indiscutível, como é o experimento
na ciência da natureza. Quando a interpretação judiciária é controvertida e controversa, surgem diversas
indagações no que se refere ao entendimento da interpretação do juiz como interpretação eficaz, mas a
eficácia e a verdade são critérios que nem sempre definem o carácter do trabalho do momento.

Entende-se que a interpretação exacta é aquela que corresponde à exigência do momento e que exprime
a exigência aprazível, sendo o direito uma manifestação da sociedade, com objectivo de dar resposta aos
problemas que ocorrem. Neste sentido, discute-se se a oportunidade seja um critério que guia ou não
pode guiar um intérprete.

No âmbito puramente convencional, pode-se falar em interpretação verdadeira ou falsa, referindo-se a uso
da regra técnica ou instrumental. Verdadeira, ou melhor, bem como correcta, a interpretação faz o bom

41
uso das regras interpretativas; tal entendimento conduz à compreensão da relatividade da interpretação. A
regra sobre interpretação visa também estabelecer o parâmetro do raciocínio jurídico, distinguindo a
interpretação jurídica da interpretação realizada em outros sectores da actividade humana.

A caracterização da norma sobre interpretação ou as regras sobre a interpretação do direito são


logicamente prioritárias a qualquer disposição decorrente da interpretação. Nessa tipologia da
interpretação, pode surgir a formação de uma jurisprudência alternativa baseada sobre os critérios
interpretativos diferenciados. Dois princípios sobre a generalidade da interpretação podem surgir para a
compreensão do direito, com vinculações às relações sociais e ao contexto constitucional:

a) A interpretação do direito não subtrai às regras que usam os intérpretes, quando opera com

critérios linguísticos. Desde o momento em que, o direito formal se exprime em linguagem, não
pode prescindir das regras da linguagem. A linguagem jurídica tem uma característica de
especialização.
b) A interpretação do direito é legada a posição institucional que assume o intérprete a respeito da

fonte, preocupando-se com a compreensão do poder normativo. Em certos sistemas de produção


normativa, baseia-se na concentração do poder no sujeito ou de conformidade com a produção
autorizada, quando se deve deduzir a posição passiva do intérprete acerca do sujeito dotado de
poder interpretativo. O intérprete não é o legislador, mas é subordinado à vontade manifestada
pelo legislador. Daí a expressão intenção do legislador. A intenção do legislador introduz a ratio
da disposição de direito e o modo de entendê-la. Por ratio compreende-se o elemento lógico
político.

A Constituição opera como uma norma jurídica de máxima eficácia, pelo que não existe razão para
separá-la do resto do ordenamento jurídico no momento de sua interpretação. A interpretação adequada é
uma das regras mais importantes sobre a interpretação, ela não deriva de disposição geral de lei, mas
directamente da estrutura do ordenamento vigente.

As formas de interpretação apresentam particularidades quando destacam a compreensão das leis


especiais e das leis excepcionais, entendimento que leva a novas regras de interpretação, de ordem lógica
e universal, válidas para o intérprete como para o legislador. É nesse sentido que algumas normas
estabelecem que a regra que efectiva excepções à regra geral ou a outras regras legais não se aplica a
outros casos.

42
A Constituição italiana, em seu artigo 25, determina que ninguém pode ser impedido de seu juízo natural,
pré-constituído por lei. Ao mesmo tempo estabelece que ninguém pode ser castigado senão em virtude de
uma lei, que haja entrado em vigência, antes de se haver cometido o fato delituoso. No mesmo sentido,
ninguém pode ser submetido a medidas de segurança, senão nos casos previstos pela lei. A norma não
faz qualquer referência à necessidade de uma previsão expressa do crime ou da pena, contenta-se,
todavia, com a exigência básica da reserva de lei em matéria penal, monopólio da disciplina por parte do
legislador e a certeza da situação jurídica, senão com a analogia, caracterizada estruturalmente na
possibilidade de não se apegar ao subjectivismo, por parte do intérprete. A lei ordinária que pretende
admitir a analogia, em relação à aplicação particular da norma penal, será possível de
inconstitucionalidade.

A lacuna do direito vincula-se à compreensão da interpretação analógica. Entende-se como lacuna a


ausência de uma regra jurídica de relação, que deve ser juridicamente regulada. As análises em torno da
lacuna partem da distinção entre lacune esterne e lacune interne ao ordenamento.

A interpretação da Ciência do Direito, a interpretação judiciária e a norma vigente, bem como a


interpretação autêntica merecem diversas reflexões, para a compreensão do tema em estudo, através do
qual torna-se possível resguardar a eficácia, com a distinção dos seguintes tipos de interpretação, em
decorrência do sujeito da qual provém:

 Interpretação científica ou da doutrina jurídica. Houve época em que a interpretação científica


vivia um período de grande influência. Destacaram aí os grandes jurisconsultos romanos, da
época republicana e imperial. Os glosadores e comentaristas dos textos clássicos do Direito
Romano tiveram grande papel.

Posteriormente o romanticismo jurídico alemão, da primeira metade do século XIX, conduziu uma
grande luta contra a ideia jurídica iluminista, que se firmou, primeiramente, na França, conduzindo
à codificação do direito, com consequências na Ciência Jurídica, reduzida a uma tarefa de mera
exegese dos textos escritos, em posição de subordinação ao legislador. Contra a codificação, que
afastava a fonte espontânea do direito ou do costume, cristalizando a disciplina normativa em
regra modificável apenas pelo legislador, examina-se a função criativa do intérprete.

Destaca-se aí a figura de Savigny e sua escola que foi desenvolvida na escola histórica do direito.
O postulado da escola histórica era tipicamente romântico e alterava a natureza da fonte. O direito

43
é aquele que vive na tradição histórica popular, como um dado vivo e espontâneo, natural como a
língua e os fenómenos culturais em geral. A codificação era tida como a tentativa de sobrepor-se à
vontade artificial, à vida efectiva do direito, desenvolvendo o movimento em nome de uma
abstracta e inconcludente racionalidade. Este direito, historicamente determinado e vivo, os
juristas consideravam-no como de natureza interpretativa, formalizadora e reconstrutora. Surgiu
daí a compreensão da lição resultante da história de cada povo, que é considerada vital, tornando
explícito o que era encarado implicitamente. Neste contexto, o jurista representava a compreensão
científica das consciências colectiva do povo (il Volksgeist), sendo o juiz o seu realizador.

A escola histórica teve um grande sucesso, principalmente na Itália, mais no direito privado do que
no direito público, de conformidade com as condições políticas e espirituais reinantes. A aversão à
inovação racionalista de um poder normativo artificial e a coerência do jurista com interesse
burocrático e conservador tiveram grande significado. O jurista ocupa na organização social um
poder dirigente, eminente e homogéneo, de acordo com a razão política prevalente. Este papel do
jurista, como intérprete da vontade popular profunda e do destino histórico da nação, comparável
àquele do sujeito activo na cena política, foi amplamente examinado. Os juristas da época foram
pessoas activamente impregnadas na política do tempo. O carácter político da ciência jurídica
daquele tempo e daquela escola estava coerente com as exigências de uma sociedade
conservadora. Em épocas posteriores, o espírito do povo, a nação e sua história tiveram papel de
relevo cultural na orientação pela acção. Não ocorreu uma nova valorização da Ciência Jurídica,
desde que, nos autoritarismos contemporâneos, o sujeito histórico, portador e intérprete destes
valores, será o partido único.

Na época actual, com o direito artificial, produto do procedimento ad hoc, de um lado, a inclusão do jurista
como categoria culturamente unitária, derivada da progressiva afirmação, também, no estudo jurídico de
um pluralismo. Perguntando-se qual consequência geral da democratização e liberalização – houve uma
grande redução do que foi analisado pela Ciência do Direito. Seu valor prático depende, como qualquer
outra ciência social, da persuatividade de sua argumentação e da capacidade de traduzir um ato, através
da exigência da regulamentação da relação social.

Não depende mais, ao contrário, do status do jurista ou da razão ideológica geral, sobre a natureza deste
direito. O direito actual é sempre mais direito artificialmente posto que exclui o campo criativo da
interpretação. A própria interpretação da lei e a crise que investe o campo do legislador, no momento
actual, pode construir a declaração sobre a importância dos estudos políticos, como uma contribuição à
44
obra da jurisprudência e da racionalização do sistema jurídico. O retorno da ordem no direito era obra do
legislador. Nos dias actuais a causa de sobrevivência da produção normativa gera diversas polémicas. A
manutenção da ordem na confusão do direito só será possível através da Ciência do Direito.

 A interpretação judiciária. O ordenamento jurídico assume valor concreto, por meio de sua
aplicação à obra do jurista. É o filtro necessário para que o direito possa realizar sua função
prática. Vem daí a importância decisiva da interpretação judiciária, que é o instrumento deste filtro,
na determinação da compreensão do que é concretamente o ordenamento.

A interpretação judiciária é dotada de efeito vinculativo, no confronto da definição do objecto da


decisão, determinadora do conteúdo. Junto com a decisão judiciária forma-se a jurisprudência. Ela
não é qualquer coisa de monolítico, mas antes percorre as diversas tendências que reflectem a
divisão de orientação ético-político de maneira menos significativa; e técnico-jurídico, existente
entre o juiz e aqueles que são igualmente sujeitos só à lei, sendo habilitados a interpretar sem
interferência externa. A pluralidade de tendências é que faz transformar a jurisprudência adequada
à exigência social emergente. Certa unitariedade da jurisprudência, todavia, obtém, através da
decisão unificadora da Corte de Cassação, com vários instrumentos processuais, a exacta
aplicação e interpretação uniforme da lei. Através do ordenamento jurídico chega-se a um potente
instrumento de unificação, por intermédio da interpretação de última instância. Existe uma natural
tendência da jurisprudência, não existindo fortes razões que pensam em contrário, a uniformizar a
tendência interpretativa em acto, a reconhecer uma certa força do precedente judiciário, quando o
ordenamento não conhecer o princípio do precedente vinculante ou do stare decisis, que de vários
modos opera nos países anglosaxônicos do common law.

Com o objectivo de avaliar a natureza desta força, junta-se a questão de definir se o juiz é sujeito
apenas da razão, de vários tipos existentes. Conclui-se pela existência de uma obrigação de
motivação suplementar. A jurisprudência da Corte de Cassação, dada a sua específica natureza
reconhecida pelo direito, deve reconhecer não só uma autoridade de fato, mas antes de direito,
nos limites determinados pelo sistema judiciário. Esta compreensão não conduz ao imobilismo da
jurisprudência, mas a um imediato uso de uma possibilidade evolutiva.

Convém salientar a importância de lei, considerando-se que à liberdade absoluta do juiz opõe-se o
oportuno argumento do valor jurídico da Constituição. A igualdade do cidadão frente ao direito,
além do momento de sua aplicação e unidade do ordenamento no seu valor concreto, efectiva-se,
45
adequadamente, de conformidade com as razões jurídicas. A efectivação deste princípio exige
não só que o precedente da Corte de Cassação assuma qualquer valor moral, mas que se afirme
como um dever constitucional funcional do juiz que assegura a uniformidade da interpretação do
direito. Pode, entretanto, entender que, em certas formas de conciliação, esta exigência pode
reconhecer ao juiz um poder de discordar de uma interpretação precedente da Corte de
Cassação.

A interpretação constitucional efectivada pelos Tribunais ou Cortes Constitucionais vem


possibilitando várias discussões sobre a teoria filosófica hermenêutica, a teoria do método jurídico
e a argumentação. Dentro de uma teoria da interpretação, vamos encontrar diversas formas de
compreensão do método hermenêutico, no qual podemos salientar as posições de Heidegger,
Gadamer, (Verdade e método), Pareyson, Ricoeur e outros. Em Gadamer encontramos fecundas
discussões sobre a Teoria Filosófico-Hemenêutica e a Teoria do Método Jurídico, que tem grande
importância nesse debate, inclusive no que se refere à argumentação, jurisprudência e filosofia do
direito.

A problemática da interpretação promove novos argumentos sobre a pré-compreensão, a concretização do


direito, a potencialidade do texto e a auto-compreensão metodológica do intérprete. A doutrina dworkiniana
traça distinção entre semantic theories e interpretive theories, que refletem aspectos da hermenêutica do
direito.

As várias dimensões da interpretação têm gerado diversas discussões que procuram desenvolver os
pontos principais da aplicação do direito e de suas repercussões na compreensão da justiça, da cidadania,
para que ocorra uma adequada aplicabilidade do direito.

B) O modelo europeu de justiça constitucional: Os elementos de identificação e a difusão do

modelo europeu

O modelo europeu de justiça constitucional, também denominado de austríaco, tem esta denominação por
ter surgido na Áustria e pela participação efectiva de Kelsen na sua estruturação e teorização.
Inicialmente, e durante muito tempo, a doutrina apresentou aspectos de oposição entre os mesmos, sendo
que as exposições contemporâneas têm destacado a aproximação entre os princípios de hierarquia e de
supremacia da Constituição.

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A doutrina mostra que a ideia de um direito superior difundiu-se com as concepções da escola do direito
natural de Santo Thomas a Grotius e Puffendorf. Contrapõe-se, no século XVIII, ao absolutismo da lei,
expressão da soberania. O projeto do jurie constitutionnaire, elaborado por Sieyès, influenciou a
argumentação de Alexandre Hamilton, tendo repercussão em 1795, sendo que na Alemanha aparece
concepção sobre um Tribunal do Império. Concepções liberais ocorrem no Projecto de Constituição de
1848, com a inclusão de um Tribunal Constitucional Federal competente para controlar as questões entre
Estados, as leis do Império e os recursos que invocam a defesa dos direitos fundamentais. O princípio da
supremacia constitucional não encontrará formulação definitiva, senão após a Primeira Guerra Mundial, no
quadro da Escola de Viena.

A origem da justiça constitucional na Europa assenta-se em bases teóricas e práticas. A experiência da


Corte constitucional austríaca, com base nas teorias de Hans Kelsen, foi determinante na difusão deste
modelo nos países da Europa ocidental.

As origens da justiça constitucional na Europa tiveram uma evolução progressiva, sendo que seu
aparecimento está ligado à evolução das ideias e ao conceito de democracia.

A contribuição de Kelsen decorre do positivismo constitucional kelseniano, consagrado a partir da teoria da


construção do direito por degraus, exigência de um controle de constitucionalidade, exercido por uma
jurisdição única, para garantir o princípio da hierarquia das normas e a coerência da ordem jurídica. Para
Kelsen, sem controlo não poderiam impedir a produção de normas válidas, mas factíveis. Vem daí a noção
moderna da Constituição, com a introdução de um instrumento jurídico para garantir o respeito às normas
superiores. A norma é aquela que respeita todas as exigências das normas superiores. O controlo de
constitucionalidade das leis é uma necessidade da política constitucional, com a redução à margem de
defeitos possíveis entre validade e conformidade. Essa exigência de coerência é mais generalizada e
aplicada em todas as categorias normativas: lei, tratado, regulamento, etc.

Para Kelsen, o controle surge de sua legitimidade, pelo que um juiz não pode estar em oposição ao
legislador positivo (Parlamento), no que diz à origem da lei, senão como um legislador negativo, cuja
actividade é determinada pela Constituição. Quando se anulasse uma lei, ocorreria uma incompetência,
porque o legislador estaria intervindo no lugar ocupado pelo poder constituinte. Se a lei é contrária à
Constituição, a nova norma deve ser introduzida por via constitucional.

47
A consagração de uma Corte constitucional, para Kelsen, não pode ser centralizada, isto é, uma jurisdição
específica. Não estará confiada a juízes ordinários, como nos Estados Unidos. A ausência da regra do
precedente nos sistemas romano-germânicos multiplica os riscos da jurisprudência, tendo em vista a
interpretação constitucional comum a um conjunto de jurisdições. Apenas uma Corte constitucional única é
competente para pronunciar-se sobre a anulação de uma norma contrária à Constituição, para garantir a
coerência do ordenamento jurídico, através de tribunais que realizam a interpretação constitucional.

A Corte constitucional da Áustria, a alta jurisdição austríaca, instituída pela Constituição de 1920,
representou, com as jurisdições criadas pelas Constituições tchecolosvaca de 1920 e a espanhola de
1931, a primeira e verdadeira aplicação do modelo kelseniano. Esta jurisdição constitucional especializada
é encarregada de controlar a constitucionalidade das leis votadas por assembleias provinciais. A revisão
constitucional de 1929 reforça a sua independência. Após diversas alterações, foi reprimida em 1938,
vítima do nazismo, quando a Áustria foi ocupada pela Alemanha. Foi restabelecida com o fim da guerra,
por uma lei constitucional de 1945, sendo qualificada como Corte constitucional federal, ponto de
referência das demais Cortes constitucionais da Europa.

A implantação do sistema kelseniano de justiça constitucional seria uma das primeiras características das
democracias europeias: a Itália, em 1947, a República federal da Alemanha em 1949, a França em 1958,
Portugal em 1976, a Espanha em 1978 e a Bélgica em 1980.

Os elementos de identificação do modelo europeu, muitas vezes, são apreciados, tendo como paradigma
o modelo americano. Nos estudos de O controle do poder: a justiça constitucional, teoria geral da justiça
constitucional, o modelo americano e o modelo europeu aparecem os trabalhos sobre os caracteres
comuns dos sistemas de justiça constitucional, com destaque para:
 O contencioso constitucional;
 O processo constitucional;
 A ordem constitucional.

O modelo europeu configura-se pelo exercício de um controle concentrado confiado a uma jurisdição
constitucional específica, dispondo sobre o monopólio da interpretação constitucional. Diferentemente do
modelo americano, a diversidade dos sistemas nacionais que adoptam o modelo europeu explica a
coexistência de um controle abstracto e de um controle concreto, mesmo que possa ser bem específico,
no que se refere ao controle por via de excepção e de questão prejudicial de constitucionalidade. No
debate doutrinário podemos destacar: a) controle concentrado exercido; b) por uma jurisdição
48
constitucional específica; c) a existência de um controle abstracto; d) a existência de um controle por via
de acção; e) a autoridade da coisa julgada (autoridade absoluta ou não).

A difusão do modelo europeu tem ocorrido em diversas partes do mundo, onde podemos destacar
algumas de suas práticas jurídico-constitucionais: América Latina – Panamá, Costa Rica, Guatemala,
Equador, Chile, Peru, Bolívia, Colômbia, que tentaram adoptar um sistema de controle concentrado de
constitucionalidade, com influência do modelo europeu; Ásia, África, Coreia do Sul, Tailândia, África do
Sul, países do Maghreb, Constituição de Marrocos, Tunísia, Argélia, Mauritânia, e outros Estados, também
seguiram o sistema jurisdicional constitucional, de conformidade com o modelo europeu; Europa central e
oriental – Polónia, Hungria, Roménia, Bulgária, República Checa, Eslováquia, Eslovénia, Croácia,
República Federal da Jugoslávia, Macedónia, Moldávia, Bósnia-Herzégovine, Lituânia, Rússia, Ucrânia,
Repúblicas Orientais da (ex-U.R.S.S); Jurisdições especiais – Turquia, Andorra, Liechtenstein,
Luxemburgo; Particularidades – Reino Unido, Países Baixos. Certos modelos apresentam particularidades
inerentes ao seu sistema constitucional, como ocorre com o Reino Unido e Países Baixos.

Apesar da diversidade dos procedimentos das variedades de suas características, que ainda são bem
notadas, existem, nos dias de hoje, tendências que procuram demonstrar a aproximação entre os modelos
americano e europeu. Esta aproximação dos modelos americano e europeu de justiça constitucional
ocorre de uns tempos para cá. No entanto, essas diferenças não promovem questões complicadas, no que
diz respeito aos resultados entre os sistemas americano e europeu de justiça constitucional.

Esse sistema procedeu de alguns elementos comuns, no que diz respeito à composição e à organização
das jurisdições, bem como às atribuições comparáveis, principalmente no que diz respeito às técnicas
similares de protecção dos direitos individuais, ressaltando-se aspectos do controle de proporcionalidade e
exigências comuns da legitimidade institucional e social. Os modelos puros, americano e kelseniano
geram proximidades, sendo que o sistema americano consagra, de certa maneira, o controle abstracto das
normas, através dos julgamentos declaratórios e das constatações directas da constitucionalidade das leis
(facial challenges) ou do controle de excesso do poder legislativo (overbreadth). Muitas vezes, os sistemas
americano e europeu produzem efeitos comparáveis que denotam influências paralelas sobre a ordem
jurídica, quanto a constitucionalização do conjunto dos segmentos do direito e sobre a ordem política,
quando se trata de pacificação do debate político, regulação de alternâncias e defesa da minoria política,
desenvolvimento de um catálogo dos direitos fundamentais que definem certos direitos, de liberdade de
expressão, de religião, autonomia da pessoa, despenalização do aborto, garantias fundamentais do
processo assentadas no princípio da igualdade.
49
O sistema de justiça constitucional leva à criação de um verdadeiro fundo comum das democracias
ocidentais, em matéria de direitos e liberdades. Apesar do predomínio dos dois sistemas, fala-se na
existência de sistemas mistos, decorrente da diversidade de transposições, ligadas às adaptações
necessárias, em diferentes quadros nacionais, que conduzem a completar os modelos americano e
europeus (controle abstracto e controle concreto), controle a priori e controle a posteriori. Na Europa os
modelos da Grécia Chypre ou Malte associam o controlo concentrado no controle difuso, daí a qualificação
de sistemas mistos.

Nos países da América Latina ocorre a combinação dos elementos do controle concentrado e do controle
difuso, que traduzem a influência do modelo europeu sobre os sistemas inspirados, originariamente pelo
modelo americano. A experiência sul-africana de justiça constitucional mostra aspectos das tendências à
reaproximação dos modelos. Países de direito misto como a África do Sul conciliam elementos de
common law e elementos do direito romano-germânico. Também os sistemas da Índia e de Sri lanka são
considerados como modelos mistos. Na diversidade classificatória surgem propostas novas que
distinguem os processos concretos e os processos abstractos de justiça constitucional.

5.1. Os caracteres comuns dos sistemas de justiça constitucional

As apreciações sobre os caracteres comuns dos sistemas de justiça constitucional levam as apreciações
sobre a justiça ordinária. Tratando-se das características comuns, apesar das diferenças entre o modelo
americano e europeu, percebe-se a aproximação entre as Cortes constitucionais e as Cortes Supremas
que têm a competência constitucional, ao lado de jurisdições federais inferiores.

A composição das jurisdições constitucionais é um tema que permite a configuração de suas


características, bem como as maneiras de designação de seus membros. A compreensão do significado
de autoridades e do processo de nomeação leva ao entendimento das variantes que surgem das Cortes
constitucionais, conforme mostra Favoreau: nomeação pelo primeiro-ministro dos membros das Cortes
Supremas do Canadá, do Japão, da Suécia, da Noruega; eleição por participação do Bundestag e
Bundesrat; eleição pela assembleia da República por dois terços dos treze juízes do Tribunal
Constitucional de Portugal; os três outros membros são cooptados pelos primeiros e pela assembleia
nacional; nomeação pelo Presidente, com apreciação do Senado para Corte Suprema americana, modelo
igualmente seguido pela Corte Constitucional Checa; nomeação dos membros por parte do Poder
Legislativo e do Poder Executivo (Áustria, oito membros escolhidos pelo Governo e quatro outros por cada

50
assembleia, nomeados pelo presidente da Federação); França, três membros nomeados pelo presidente
da República, três pelo presidente do Senado e três pelo presidente da assembleia nacional; Roménia,
três eleitos pela assembleia dos deputados, três pelo Senado e três pelo presidente.

Surgem designações pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário: Itália – três pelo presidente da
República, três pelo Parlamento, três pela Corte de Cassação, Conselho de Estado e Corte de Contas;
Espanha – quatro escolhidos pelo Congresso, quatro pelo Senado, três pelo Governo, dois pelo Conselho
Geral Judiciário, nomeados pelo Rei; Bulgária – três nomeados pelo presidente da República, quatro
eleitos pela assembleia nacional e quatro eleitos pelas assembleias dos juízes das Cortes Supremas.

Com a ampliação do sistema de justiça constitucional, convém destacar as hipóteses dos Novos Estados
da Commonwealth, especialmente no caso da Ilha Maurício.

Louis Favoreau menciona as grandes linhas de um novo modelo de justiça constitucional, a partir do
estudo do controle de constitucionalidade das leis em pequenos países do hemisfério austral. No caso da
Ilha Maurício, mostra que as linhas que ali surgiram não reproduzem nem o modelo americano, nem o
modelo europeu. A expansão contínua, no mundo do controle de constitucionalidade das leis, ganhou
espaço nos Estados em desenvolvimento, sobretudo com a descolonização, surgindo a experiência
nesses jovens Estados.

Na América Latina, com muitas vicissitudes, o modelo foi implantado, com base no sistema americano.
Nos países da África e nos Estados de criação recente, surgiram várias dificuldades. Em caso como a
Nigéria e Uganda, surgiram várias dificuldades, sendo que, em muitos países africanos, as Cortes
constitucionais e as Cortes Supremas funcionaram com certa reserva, principalmente, tendo em vista os
sistemas políticos autoritários ali implementados. Propõe-se na África o estabelecimento de um controle a
priori próximo do modelo francês, sem possuir a força obrigatória das decisões do Conselho
Constitucional. Os Estados africanos inspiraram-se em novos métodos decorrentes dos principais tipos de
controle existentes, inclusive na aceitação do bloco de constitucionalidade.

O sistema de controlo de constitucionalidade, desenvolvido na Ilha Maurício e em outros Estados do Novo


Commonwealth, dificilmente se insere na tipologia clássica. O controlo de constitucionalidade dos textos
fundamentais do Reino Unido não está ausente do sistema jurídico inglês. Do século XIX aos nossos dias,
o controle de constitucionalidade das leis é utilizado pelos juristas anglo-saxónicos, mesmo no interior do

51
Reino Unido, como na Irlanda do Norte ou nos domínios de colónias britânicas. Procura-se respeitar a
Rule of law, de acordo com os standards fixados pelo conselho privado.

Na evolução histórica da Ilha Maurício, surgem o desenvolvimento e o sistema jurídico, que decorre do
exame da estrutura da Corte Suprema, que tem suas competências em matéria constitucional e o
monopólio do controle de constitucionalidade. Possui a Corte Suprema competências de atribuições
generalizadas contra toda cláusula contrária à Constituição. As modalidades do exercício da competência
da Corte realizam-se por meio de recursos ad-hoc, sendo que a Constituição distingue o controlo por via
de acção, através de dois caminhos, um estabelecido pelo artigo 17 que trata das liberdades fundamentais
e o artigo 83, para o restante da Constituição. Considera-se, também, o controle por via de excepção, nos
termos do artigo 84.

Convém destacar as técnicas de interpretação e de controlo em matéria constitucional, neste modelo, em


que surgem as preocupações com a interpretação constitucional e os conflitos entre o juiz nacional e o juiz
estrangeiro. Dentre os temas aí encontrados, existe a influência do que se denomina linhas de força que
influenciam os juízes em sua interpretação política: o respeito à instituição judiciária, a defesa das
liberdades individuais, o progresso económico, o carácter pluricultural da sociedade mauriciana, a
soberania nacional e o carácter democrático do regime mauriciano.

O Direito Constitucional Jurisprudencial e o exercício do controle de constitucionalidade da Ilha Maurício


tiveram grande desenvolvimento depois de 1964, surgindo diversos estudos que fazem as comparações
com o modelo europeu traçando, também, a protecção dos direitos fundamentais, que contribuíram para
transformar a ordem colonial.

A jurisprudência constitucional, procurou, aí, examinar aspectos do controle da oportunidade, os actos


infraconstitucionais, o princípio da separação de poderes e a jurisprudência constitucional em outros
segmentos do direito como: direito e processo civil, o direito de apelação, o direito de propriedade, o direito
e o processo penal; a presunção de inocência, o princípio da justiça natural e a protecção dos direitos de
defesa, a pena de morte, liberdade fundamental, liberdade de informação; protecção constitucional à
liberdade de informação, protecção contra toda discriminação e o princípio da igualdade, a influência da
common law nas decisões constitucionais, aplicação limitada no Direito Comparado Internacional.

52
5.2. Processo constitucional

Apesar das distinções que existem entre os sistemas mencionados, que decorrem dos aspectos referentes
à Teoria Geral do Processo, das acções e recursos constitucionais ou das sentenças constitucionais,
podemos notar alguns traços comuns sobre as formas de designação, que reflectem sobre a natureza da
justiça constitucional, no que diz respeito a algumas características desses modelos.

A doutrina tem procurado conhecer as características fundamentais dos distintos processos


constitucionais, com a descrição de cada um dos seus procedimentos, e, no mesmo sentido, aparecem os
estudos sobre jurisdição constitucional, ao lado de lições sobre o processo constitucional, também
denominado por alguns autores de Direito Processual Constitucional. Nesses trabalhos são feitas
referências à posição do Tribunal Constitucional e sua composição, organização interna, seguindo com a
descrição das características fundamentais de cada procedimento constitucional.

Nessas especulações são examinadas as questões sobre o próprio processo, os autos e a estrutura de
uma sentença constitucional, com o manejo das compilações jurisprudenciais e o valor dessas mesmas
decisões. Trabalhos de Francisco Caamaño Domínguez, Angel J. Gómez Montoro, Manuel Medina
Guerrero e Juan Luis Requejo Pagés dedicam a exposições sobre temas como: Tribunal Constitucional
como órgão constitucional do Estado, composição e organização; os procedimentos de controlo directo; o
controlo indirecto; os processos de resolução de conflitos constitucionais; os efeitos das sentenças do
Tribunal Constitucional e o recurso de amparo.

Para os exames dos aspectos processuais, torna-se necessária a compreensão da natureza do Tribunal
Constitucional como órgão constitucional do Estado, com composição e organização específica. Nos
diversos modelos do sistema de justiça constitucional, aparece a mesma como complemento e garantia do
Estado Democrático de Direito. Dentre os modelos possíveis apareceu um sistema de justiça
constitucional concentrada, no qual se atribuem as funções próprias da jurisdição constitucional como um
único órgão ad hoc, criado exclusivamente para realizar esta tarefa.

O Tribunal Constitucional passa a ser um intérprete supremo da Constituição, pelo que a compreensão
dos preceitos constitucionais conduz à definição das características da norma e se impõe a todos os
poderes públicos. O Tribunal Constitucional, no âmbito geral de suas atribuições, examina o princípio da
constitucionalidade.

53
Na jurisdição constitucional concentrada, vamos encontrar as preocupações em torno da
constitucionalidade da lei e dos procedimentos de controlo directo. O sistema europeu de controlo de
constitucionalidade incorporou novos espaços jurisdicionais, como a jurisdição de conflitos e a jurisdição
da liberdade. A jurisdição, actualmente, não se reduz ao esquema originário kelseniano, do legislador
negativo, que estabelece o monopólio do Tribunal Constitucional e a sanção de nulidade da lei
inconstitucional. No modelo espanhol, surge a inaplicação pelos juízes ordinários da lei pré-constitucional,
em que toda problemática está vinculada à interpretação conforme a Constituição e a liberdade de se
promover ou não a questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional. A própria tipologia
das sentenças ditadas nos procedimentos de inconstitucionalidade toma afeição de manipuladoras,
interpretativas ou de mera anulabilidade.

As Constituições apresentam diversidades nos procedimentos de controlo directo da lei, sendo que a
Constituição espanhola atribui ao Tribunal Constitucional a competência para conhecer do recurso de
inconstitucionalidade contra leis e disposições normativas por força de lei. A Constituição mencionada não
especifica no texto constitucional a sua natureza preventiva ou repressiva, no que se refere ao controle
directo de constitucionalidade das normas legais.

Deve-se à Lei Orgânica do Tribunal Constitucional a articulação de um sistema combinado de controlo


directo da constitucionalidade da lei, em razão do maior valor político-constitucional, que apresenta certas
disposições normativas infra-constitucionais, tendo em vista a óptica de um novo sistema de fontes
inaugurado pela Constituição de 1978: controle prévio de constitucionalidade dos projectos dos estatutos
de autonomia e das leis orgânicas; controle repressivo ou a posteriori para as restantes normas, com força
de lei; controle prévio sobre a constitucionalidade dos tratados internacionais.

Os sistemas constitucionais contemporâneos, no que diz respeito aos recursos de inconstitucionalidade,


definem os sujeitos legitimados, o objecto de controlo, o cânone de constitucionalidade, relacionando a
Constituição e o bloco de constitucionalidade.

Ao mesmo tempo, esse sistema de jurisdição estabelece o prazo e o lugar de interpretação do recurso.
Nesta perspectiva processual, surgem as questões sobre os requisitos da demanda e da tramitação do
recurso (trâmite de admissão; trâmite de alegações; acumulação de processos; modos de terminação de
processos e a sentença no recurso de inconstitucionalidade).

54
Surgem, também, o controle prévio de constitucionalidade dos tratados internacionais, quando o Tribunal
Constitucional pronuncia-se sobre a conformidade ou não da Constituição, e as estipulações de um tratado
internacional, antes de sua integração no ordenamento jurídico de certo país.

Os processos de controlo da constitucionalidade da lei, o controle indirecto e as sentenças nos processos


de controlo de constitucionalidade examinam as espécies do controle concreto, do controle judicial difuso e
do controle concentrado. As normas objecto de controlo são apreciadas e têm grande importância no
exame das questões pertinentes, quando se examina, também, se sua promoção é uma decisão exclusiva
dos órgãos judiciais. Existem os pressupostos processuais exigidos para promoção da questão de
inconstitucionalidade que indagam: o momento hábil para sua propositura, a previa audiência das partes,
os requisitos formais e a tramitação da questão ante o Tribunal Constitucional. O exame das alegações
das partes e as diversas fases do procedimento são apreciados, inclusive, com as referências às acções
constitucionais específicas.

O Tribunal Constitucional é apreciado como um tribunal de conflitos, em que examinamos a caracterização


do conflito, o conflito político, os sujeitos do conflito, o objecto do conflito, os vícios alegáveis, os actos
impugnados e a tramitação do próprio conflito.

5.3. Jurisdição e Constituição

Os debates em torno do tema levam a concepções sobre jurisdição e constituição, em que, de um lado,
está o dogmatismo e, de outro lado, a politização da justiça e a judicialização da política.

Nessas discussões aparece a preocupação em definir a tarefa essencial do Poder Judiciário, pois
interpretar e aplicar a lei da forma mais favorável é importante para a efectivação dos direitos comuns de
todos. Os direitos fundamentais, que tiveram maior significado no início da Idade Moderna, convertem-se
em um dos indicadores do progresso histórico e núcleo de legitimidade dos sistemas democráticos.
Surgem direitos e exigências que os colocam, desde a sua formação inicial, como instrumento para limitar
o poder absoluto, de conformidade com o processo que permanece aberto para o aperfeiçoamento de seu
conteúdo normativo e das instituições e técnicas que realizam sua efectivação, conhecida como garantias.

Nos dias actuais, não é suficiente declarar os direitos para assegurar a sua protecção, é necessária a
intervenção do Estado e dos organismos internacionais para remover os obstáculos que dificultam sua
realização, acrescentando-se às declarações um amplo sistema de técnicas e instituições que tutelam sua
efectividade. Essas garantias são inerentes a todas as pessoas, umas gerais e outras mais específicas, e
55
consistem em instrumentos jurídicos e institucionais encaminhados para proteger o cidadão frente a um
sistema cada vez mais complexo.

As garantias gerais compreendem as condições políticas que coincidem com os elementos do próprio
estado de direito, como um império da lei, o pluralismo político e a divisão de poderes. O império da lei é
tido como expressão da vontade popular, pelo que requer a existência de órgãos que, institucionalmente
caracterizados por sua independência, têm um poder que permite interpretar e aplicar imparcialmente as
leis, controlar a actuação administrativa e oferecer aos cidadãos a tutela efectiva no exercício de seus
direitos e interesses legítimos.

A função jurisdicional é uma actividade na qual intervêm múltiplos factores objectivos e subjectivos. A
própria formação do intérprete, isto é, do juiz, com seus humores, suas emoções e seus sentimentos, é
compensada através da decisão colegiada.

Das manifestações da jurisdição surgem as sentenças que dependem da objectividade, da congruência,


da gramática da lei, bem como da prestabilidade de sua argumentação e fundamentação. Se a judicatura
é tida como poder, para aplicar as leis, surge um novo sentido, alcance e importância em termos da
Constituição, devido a existência de um conjunto de direitos, princípios e valores aos quais a lei está
sujeita. Não apenas em decorrência da crença, é um direito natural, mas porque a Constituição assim o
estabelece.

A missão essencial da jurisdição não é só ampliar a lei, compreendendo-a como a garantia última e
efectiva de todos os direitos, valores e princípios constitucionais, mas, também, a efectivação de um
controle de legalidade do Poder Executivo.

As modernas Constituições têm introduzido um controle sobre a administração pelos tribunais, sendo que
o jurídico não se circunscreve apenas às disposições escritas, desde que os direitos constitucionais não
são simples normas programáticas não vinculantes, ou direitos fundamentais vazios, mas constitui de
conformidade com prescrição expressa em direitos directamente aplicáveis.

A Constituição instala uma jurisprudência de valores, a liberdade, a igualdade e a própria justiça, que
constitui, ao lado dos direitos fundamentais, um mandato expresso a todos os poderes públicos, sendo
que o juiz deverá transformar esses dados em valores reais e efectivos, removendo os obstáculos que
impedem ou dificultam sua plenitude. O conteúdo material da Constituição, de seu sistema de valores e de

56
sua pretensão de validade, ao lado das competências que os textos constitucionais outorgam aos
tribunais, permite compreender o alcance e a importância actual da judicatura.

Admite-se actualmente que as posições reducionistas dificultam a compreensão e a interpretação


constitucionalmente correcta das normas, para que se possa afrontar os novos tempos e as mudanças. A
função da judicatura consiste em realizar direitos, valores e princípios constitucionais, mediante a
interpretação e aplicação da vontade parlamentar expressa nas leis. Dentre as discussões que surgem na
relação entre jurisdição e Constituição estão aquelas que indagam se o poder judicial, com sua estrutura e
seus meios e com seus actuais procedimentos, poderá assumir, com garantias, este aumento necessário
de suas competências de controlo. Indaga-se, ao mesmo tempo, se pode ele exercer eficazmente seu
poder, em um momento de mudanças vertiginosas.

5.4. A judicialização da interpretação constitucional

Torna-se cada vez mais necessária a análise do fundamento da jurisprudência constitucional pelo
significado que a mesma tem para as novas reflexões sobre o próprio direito. Tradicionalmente, identifica-
se o direito continental como um direito legislado, e o direito anglo-saxão como um direito jurisprudencial
baseado no precedente. Este entendimento vem perdendo a sua importância, principalmente quando
examinamos os tribunais constitucionais continentais. Uma análise do comportamento dos tribunais
constitucionais leva à conclusão de que o fundamento de suas decisões é preponderantemente
jurisprudencial. A aproximação entre o direito continental e o direito anglo-saxão é hoje reconhecida pela
doutrina. Os tribunais constitucionais fundamentam suas sentenças nos precedentes, inclusive, em
decisões de outros tribunais constitucionais. A interpretação das normas constitucionais leva a vários
indicativos sobre a validade e a vigência das mesmas e de seu conteúdo.

Actualmente, os estudos das normas constitucionais partem do conhecimento da doutrina do tribunal


constitucional, objectivando fundamentar as proposições sobre as direcções jurisprudenciais do tribunal
constitucional em relação a uma determinada norma constitucional, que oferece critérios que permitem a
solução de litígios específicos. A jurisprudência dos tribunais em geral, e do tribunal constitucional em
particular, reconhece a necessidade de partirmos de certas regras de interpretação para resolver o conflito
constitucional. A interpretação constitucional refere-se a uma norma concreta, para concluir se a mesma
merece, ou não, protecção constitucional.

57
A interpretação das normas constitucionais, muitas vezes, tece considerações em torno de incertezas da
norma constitucional. A compreensão da validade e das vigências das normas de conteúdo constitucional
relaciona-se com estudo do método de interpretação das mesmas. Ao estudar a norma constitucional, tem
grande importância o conhecimento da doutrina do Tribunal Constitucional, que analisa cada um dos
supostos de fato semelhantes e os que foram submetidos a sua consideração, isto é, os precedentes. O
objectivo é fundamentar as proposições sobre as direcções jurisprudenciais do Tribunal Constitucional, em
seu relacionamento com determinada norma constitucional.

A jurisprudência dos tribunais em geral e do Tribunal Constitucional em particular, parte da compreensão


da utilização das regras de interpretação, mostrando-se infringir ou não algum preceito constitucional. A
interpretação jurisprudencial refere-se necessariamente a uma norma concreta, para resolver se merece
ou não protecção constitucional. O juiz constitucional é, primordialmente, o intérprete, pelo que sua função
concretiza-se na determinação da adequação da Constituição e das normas.

A diferença entre a interpretação da dogmática e a dos tribunais é determinada por seus destinatários
imediatos. O dogmático dirige-se à comunidade universitária ou intelectual, enquanto que as sentenças do
Tribunal Constitucional são aplicadas, em cada caso, pelas partes litigantes. As sentenças do Tribunal
Constitucional, que conhece das constitucionalidades das leis, inovam o ordenamento jurídico. Como
julgador negativo, corresponde ao Tribunal Constitucional resolver se o acto normativo do legislador
vulnerou os limites da Constituição.

As propostas de R. Dworkin, a favor da plenitude do sistema jurídico, e as objecções de R. Alexy,


criticando as resoluções fundadas em irredutibilidades, cobram valor quando se vinculam às normas
concretas e determinadas.

A ambiguidade da norma constitucional tem sido uma permanente invocação da doutrina e da judicatura
constitucional de Dworkin. Dworkin entende que em cada ordenamento jurídico devemos distinguir três
elementos: rules, policies e principles. A determinação dos princípios exige um labor argumentativo para
localizá-los em certo ordenamento jurídico. Para este autor, existe insuficiência da lei e da inviabilidade da
jurisprudência mecanicista e silogística, pelo menos nos casos difíceis.

A criação judicial do direito constitucional tem gerado críticas sobre a judicialização do mesmo. A
dogmática constitucional e a jusfilosofia têm demonstrado preocupações com a crescente judicialização do
direito constitucional. Entende alguns que a justiça constitucional poderá gerar uma ameaça para a

58
liberdade, desde que suas competências como legislador negativo afectam o equilíbrio e a separação de
poderes, basilares na estrutura do Estado Democrático de Direito.

As afirmações de que o direito é aquilo que os tribunais resolvem e de que o Tribunal Constitucional opera
como a espécie de terceira câmara legislativa proporcionam uma ilegítima invasão do Tribunal
Constitucional no Poder Legislativo.

A eficácia da jurisprudência constitucional no que toca ao respeito das decisões dos tribunais ordinários
tem sido objecto de preocupações de estudiosos do Direito Processual, como ocorre com Andrés de la
Oliva, José Almagro Nosete, Guillermo Ormazábal Sánchez e Jesús M. Santos Vijande, que têm
elaborado teses que procuram limitar a crescente influência da jurisprudência do Tribunal Constitucional
nos tribunais ordinários.

A análise descritiva das regras de interpretação utilizadas pelo Tribunal Constitucional espanhol vem
apreciando diversos aspectos desta temática, quando ressaltam o papel da regra da unidade
constitucional, regra da correcção funcional, regra da efectividade constitucional, regra da força normativa
da Constituição, regra da harmonização dos bens constitucionais, regra política, que tem grande
importância na elaboração da judicialização da interpretação constitucional.

5.5. A classificação das sentenças constitucionais

A tipologia das sentenças da Corte Constitucional constitui um tema de grande significado para o tema ora
apreciado. A palavra sentença deriva do verbo sentire (credere, sentire, giudicare).

A doutrina jusprocessualística faz referência à diferença que existe nas sentenças, vistas como a forma
típica do provimento decisório. No âmbito do Direito Processual Civil existe uma precisa disposição de lei
que estabelece as formas que assumem os actos provenientes do órgão judicante. A lei prescreve os
casos em que o juiz deve pronunciar uma sentença.

No que toca às cortes constitucionais, muitas constituições se limitam a falar de uma decisão da corte,
sem qualificá-la como sentença, ordenança ou decreto. A Constituição italiana examina alguns aspectos
referentes à matéria, quando trata da norma constitucional, e o funcionamento da Corte, ressaltando a
Corte jurídica, quando realiza, de maneira definitiva, uma sentença. A sentença é pronunciada em nome
do povo italiano e deve conter indicações dos motivos de fato e de direito que decorrem desta decisão.
Nas diversas classificações que surgem, Mário Montella apresenta a seguinte tipologia: a sentença
59
meramente processual, que deixa sem prejuízo o mérito; a sentença que contenha decisão de
inadmissibilidade; a sentença de cessação da matéria que se contende; a sentença de rejeição; e a
sentença de acolhimento.

A sentença é o modo normal de terminação do processo, sendo que pode apreciar conflitos negativos
suscitados por pessoas físicas ou jurídicas, conflitos suscitados pelo governo, conflitos entre os órgãos
constitucionais do Estado. Na análise do conflito e na determinação de seu objecto, convém destacar o
procedimento e a sentença, bem como os sujeitos legitimados para a propositura dos mesmos.

Diversas acções constitucionais são apreciadas no âmbito da jurisdição constitucional, como o judicial
review, ou o amparo como remédio excepcional. Vários são os direitos susceptíveis de protecção pelas
ações constitucionais, em momentos em que examinamos o objecto da impugnação, a legitimação, os
requisitos prévios, a interposição do recurso e a tramitação do mesmo.

A delimitação dos efeitos das sentenças dos Tribunais Constitucionais tem gerado questionamentos
decorrentes das construções jurisprudenciais ou doutrinárias, inclusive quanto aos efeitos das sentenças
do Tribunal Constitucional e as categorias da coisa julgada. O efeito da coisa julgada constitui um dos
aspectos fundamentais da matéria, quando se fala em sentença definitiva sobre o fundo. Nesse sentido, é
permanente a distinção da coisa julgada formal e da coisa julgada material, bem como acerca da força
vinculante para os futuros processos.

Os efeitos da coisa julgada partem da compreensão de um princípio geral que se expressa no aforismo res
iudicata inter partes, pelo qual a decisão afecta apenas aqueles que participaram da demanda
constitucional. Ressalta-se, também, a vinculação dos poderes públicos e os efeitos erga omnes. Dentre
as classificações das sentenças constitucionais, temos as sentenças desestimativas (de total
desestimação e parcialmente desestimativas ou correctivas), que podem ser positivas ou negativas.
Sentenças estimativas (de total estimação, aditivas, manipulativas e redutivas). A ampla preocupação com
a jurisdição constitucional levou ao surgimento de diversos trabalhos sobre as sentenças constitucionais.

Os estudos das sentenças constitucionais têm provocado várias linhas de investigação sobre a exegese
constitucional, com destaque para a presença das sentenças interpretativas e aditivas.

A defesa directa da Constituição não aparece, nos dias de hoje, como tarefa central do Tribunal
Constitucional, tendo em vista os diversos tipos de procedimentos distintos do recurso directo. As
sentenças interpretativas surgem em procedimentos de controlo abstracto e concreto de
60
inconstitucionalidade, com suas peculiaridades formais, que visam a acomodação de um preceito legal à
Constituição.

Francisco Javier Díaz Revorio demonstra sua preocupação com as sentenças interpretativas e aditivas do
Tribunal Constitucional, apresentando as características e os problemas que decorrem das mesmas. As
sentenças interpretativas surgem da prática dos Tribunais Constitucionais. A ideia aceita para a
compreensão das sentenças interpretativas lança questionamentos sobre as interpretações derivadas de
um texto legislativo, quando um acórdão pronuncia-se sobre o conteúdo normativo de um preceito, sem
afectar seu texto. Toda sentença interpretativa propõe interpretar o texto legal de acordo com a
Constituição.

As classificações e a conhecida distinção entre sentenças interpretativas estimulatórias e


desestimulatórias propiciam análises sobre as sentenças interpretativas desestimatórias quando procuram
entender se um artigo é constitucionalmente interpretado ou se o mesmo é interpretado em um sentido
determinado. As sentenças interpretativas estimatórias dispõem de um preceito legal que é
inconstitucional e é interpretado em certo sentido.

As sentenças interpretativas são tidas como um marco da tipologia das sentenças constitucionais, daí a
preocupação com o conceito, funcionamento, efeitos e problemas principais que decorrem das sentenças
interpretativas.

A apreciação do objecto de controlo de constitucionalidade, de disposição ou norma é um pressuposto de


todas sentenças interpretativas. Todo processo constitucional implica na interpretação da Constituição ou
uma interpretação da disposição legal impugnada. Várias são as consequências sobre o significado das
sentenças interpretativas, e particularmente, das aditivas.

São diferentes as posturas sobre o objecto de controlo, quando relacionamos o problema na Constituição,
na legislação e na jurisprudência constitucional. O Tribunal pode pronunciar-se, tanto sobre a disposição
quanto sobre as normas delas derivadas. Destaca-se, aí, o discernimento do que é certo, e qual é o
concreto objecto desse pronunciamento. A Corte Constitucional, em alguns Estados, fala em declarações
de inconstitucionalidade, referindo-se a normas ou a disposições, mesmo que se pareça tratar de
variações terminológicas.

O texto como objecto de controlo leva ao pronunciamento da Corte, em termos de sentença constitucional,
surgindo diversos questionamentos sobre o objecto de controlo de constitucionalidade como
61
exclusivamente das normas. O Tribunal pronuncia-se sobre uma questão proposta, e essas se referem,
exclusivamente, a uma norma. Surgem daí novas designações sobre as sentenças ordinárias não
interpretativas e as sentenças interpretativas.

As sentenças interpretativas apresentam particularidades sobre o seu conceito, tipologia e efeitos, que têm
grande importância na jurisprudência constitucional, bem como na compreensão dos conflitos e na solução
dos pontos essenciais da jurisdição constitucional. O fundamento e a legitimidade das sentenças são outra
visão intimamente ligada aos efeitos, sendo que, na Itália, na Espanha, na Alemanha e em outros Estados
de jurisdição constitucional, examinam-se as consequências da coisa julgada.

Destacam-se, também, as sentenças manipulativas, redutoras, aditivas e substitutivas. As análises em


torno das sentenças constitucionais são de grande importância para uma reformulação da jurisprudência
constitucional, inclusive, no que diz respeito ao conceito de omissão constitucional, para que possamos
dar à jurisdição constitucional o papel que deverá ter nos dias actuais, sem que opere um desprestígio
para o Poder Legislativo. Convém conciliar a natureza das sentenças constitucionais e a importância de
seu significado que, para alguns, compõem uma espécie de direito vivo, que acompanha as
transformações do Direito Constitucional Contemporâneo.

62
CAPÍTULO VI: ANÁLISE DO MODELO DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL MOÇAMBICANO

6. Tribunal Constitucional e governo de juízes

Para compreender o modelo moçambicano de Justiça Constitucional, é necessário antes gravitar os dois
(modelos) anteriores (americano e europeu).

É opinião largamente aceite a de que a Suprema Corte norte-americana não apenas julga segundo a lei,
mas entra no mérito da política legislativa, praticando então o que foi estigmatizado como “governo dos
juízes”.

Deve-se admitir, naquela máxima, uma carga de veracidade inclusive em sua aplicação ao Tribunal
Constitucional.

A lei e os decretos presidenciais, como actos de governo por excelência, desde que puderam ser
contrastadas pelo Tribunal Constitucional, carrearam a este a inexorável natureza governativa, expressa
por meio de suas decisões.

Outrossim, se se considera a Constituição como um texto aberto, e que justiça e felicidade estarão melhor
asseguradas pelo Direito não com tentativas de defini-las eternamente, mas antes atendendo a um
processo governamental pelo qual suas dimensões sejam especificadas ao longo do tempo (ELY, 1998, p.
89), então é inevitável um órgão capaz de cumprir esse processo e conduzir isentamente às decisões
finais. Se o papel é atribuído ao Tribunal Constitucional 47, tem-se por consequência, que este Tribunal
exerce esse processo governamental.

Pode-se estabelecer a capacidade governativa do Tribunal Constitucional especialmente porque a


separação de “poderes” não pode ser compreendida, como visto, em termos rígidos, e a protecção dos
direitos fundamentais opera mais por força de sua declaração do que da referida separação propriamente
dita. A complexidade do Estado de Direito impede que se proponha e sustente uma visão “míope” da
separação de poderes como limitativa da actuação governativa do Tribunal Constitucional.

Resta indagar se o Tribunal Constitucional pode assumir uma função governativa no sentido estrito
apontado, e em que medida pode fazê-lo.

47 GUERRA FILHO, 2000, p. 102-103


63
Na teoria de Gaudemet, com sua classificação binária, ter-se-ia, no Tribunal Constitucional, o
reconhecimento do que o autor denominou “poder de controlo”, um “poder de oposição política” 48,
contraponto do poder político de acção e, nessa medida, certamente um contrapoder político. Ferreira
Filho, em sua análise das funções do Poder Judiciário, que se pode aplicar, parcialmente, às
funções do Tribunal Constitucional, indica um controle de natureza política49.

Não resta dúvida de que o Tribunal Constitucional deve actuar no âmbito de uma dimensão que se pode
denominar “político”- governativa. Essa caracterização está reconhecida pelos autores50.

6.1. A doutrina do controle de constitucionalidade. Estado de direito e democracia.

Neste diapasão, a ideia de Estado de Direito, um figurino que, no dizer de Garcia de Enterría, garante “a
convivência dentro “de las leyes”; não, porém, quaisquer leis ou normas, apenas e tão-somente aquelas
produzidas “dentro de la Constitución, por la voluntad popular e com garantia plena de los derechos
humanos ou fundamentales”51.

A Constituição assume, pois, o status de marco jurídico a preordenar a actuação dos actores do cenário
político e, neste desenho institucional – ou, ainda, perseguindo sua preservação – situa-se a exigência de
fiscalização e da vigilância quanto ao permanente respeito à Constituição. Sob este aspecto, revela-se o
controle de constitucionalidade como manifestação tangível de sua supremacia, buscando abater os
obstáculos apostos a sua plena aplicação.
Depreende-se do exposto que, num primeiro momento, a teoria do controle de constitucionalidade emerge
com um perfil defensivo52.

Reveste-se de natureza instrumental, um mecanismo engendrado especificamente para a tutela da


Constituição e, consequentemente, da receita democrática adoptada. Em especial, ao longo do período
permeado pelas vicissitudes decorrentes das duas grandes guerras mundiais, a matriz norte-americana do
judicial review53, quando transportada para o mundo europeu, encontrou ali território fértil e propício ao seu

48
1966, apud QUEIROZ, 1990, p. 104
49 Ferreira Filho (1994, p. 12 et seq
50 Cf. FERREIEA FILHO, 2000, p. 4.
51 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo, Princípio de legalidad, Estado material de derecho, y facultades interpretativas y constructivas de la

jurisprudencia en la Constitución, in Revista Espanhola de Direito Constitucional, n. 10, p. 12, 1984.


52 O perfil defensivo, aliás, foi sendo absorvido por força da influência da doutrina alemã. É da Alemanha a origem da expressão “defesa da

Constituição” (Verfassungsschutz).
53 Poderíamos apontar, no presente momento, três diferentes técnicas de controlo de constitucionalidade: a) o modelo clássico do “judicial

review” oriundo da célebre decisão do Chief Justice Marshall e que domina o panorama norte-americano, servindo de padrão, ainda, para o
modelo agasalhado em panorama doméstico; b) o modelo da fiscalização política, adotado em espectro francês; c) o modelo de fi scalização
jurisdicional concentrada em Tribunal Constitucional, fórmula que agrega elementos extraídos de natureza política que vem temperar o padrão
judiciário que se afigura predominante. SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros Editores, 2000,
64
desenvolvimento, em razão da fragilidade e debilidade das democracias constitucionais jovens e
profundamente atingidas por crises de fundo económico e político.

De se evidenciar que, na conturbada Europa dos anos que se seguiram, principalmente, ao segundo
conflito bélico, a inovadora receita do Chief Justice Marshall, sob a perspicaz e pontual intervenção de
Hans Kelsen, resultou na impactante criação da justiça constitucional, uma esfera jurisdicional específica,
incumbida da salvaguarda da Constituição e de sua superioridade. Consubstanciava-se, na realidade,
numa arma de defesa; um mecanismo a garantir a preservação da ordem democrático-constitucional
diante de acções agressivas antidemocráticas e corrosivas em relação à Constituição. Enfim, sua origem e
evolução encontram-se intimamente relacionadas à exigência de se combater crises; figura, pois, como a
expressão normativa de uma necessidade lógica e nessa trilha projecta sua evolução.

Pois bem, hoje, o alargamento do panorama democrático, como anunciado tanto por Robert Dahl, no seu
“La Democrazia i suoi critici”, como também por Samuel P. Huntington, que oferece uma visão optimista
quanto à evolução do processo democrático no “La Tercera Ola. La democratización a finales Del siglo
XX” (Piados, Argentina, 1995), constitui uma realidade. Inobstante o avanço verificado, o teorema
democrático continua trazendo inquietações e, por mais desta vez, a justiça constitucional e a ideia do
controle de constitucionalidade vêm se apresentar como meios hábeis à manutenção do equilíbrio nas
inter-relações sociais e para a preservação da segurança jurídica.

Nesta nova missão, a instituição assume, de certo, papel diferenciado. Uma outra perspectiva, uma outra
dimensão e nesta sua tarefa passa a envolver a responsabilidade pela interpretação constitucional e,
consequentemente, pela aplicação concreta de critérios de interpretação legal resultantes do esforço de
hermenêutica. Resume-se, enfim a uma função orientadora. De uma justiça constitucional defensiva
aporta, no século XXI, na configuração de uma justiça constitucional de orientação.

6.2. O Tribunal/Conselho Constitucional

O Conselho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça,


em matérias de natureza jurídico-constitucional54

no tocante às espécies de controlo de constitucionalidade já idealizados, oferece a seguinte tipologia: a) “controle político – o que entrega a
verificação da inconstitucionalidade a órgãos de natureza política,....como o Conseil Constitutionnel da vigente Constituição francesa de
1958.”; b) “o controlo jurisdicional – generalizado hoje em dia, denominado ”judicial review” nos Estados Unidos da América do Norte, é a
faculdade de que as constituições outorgam ao Poder Judiciário de declarar inconstitucionalidade de lei e de outros atos do Poder Público que
contrariem, formal ou materialmente, preceitos ou princípios constitucionais” e c) “o controle misto – realiza-se quando a constituição submete
certas categorias de leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional, como ocorre na Suíça, onde as leis federais ficam sob controlo
político da Assembleia Nacional e as leis locais sob o controle jurisdicional”. (p. 51).
54 Artigo 241 da Constituição da República de Moçambique de 2004.

65
O sistema de fiscalização da constitucionalidade em Portugal, tal qual o sistema brasileiro, caracteriza-se
pela sua complexidade. Trata-se de um sistema misto, no qual se identificam simultaneamente
características e mecanismos próprios do sistema austríaco de controlo de constitucionalidade
arquitectado por Kelsen e da judicial review desenvolvida no direito norte-americano.

O sistema austríaco de controlo de constitucionalidade se caracteriza, sobretudo, pela aferição da


compatibilidade da lei em tese frente à Constituição, tarefa esta que é atribuída exclusivamente a uma
Corte Constitucional. Essas características lhe rendem denominações, tais quais, sistema abstracto de
controlo de constitucionalidade e sistema concentrado de controlo de constitucionalidade.

A judicial review, por sua vez, se caracteriza basicamente pela aferição da compatibilidade da lei com a
Constituição diante de um caso concreto. A questão acerca da constitucionalidade da norma, nesta seara,
revela-se como uma questão incidental ao julgamento da causa posta pelas partes à apreciação do juízo,
exigindo do magistrado comum, portanto, a tomada de posição no que se refere à inconstitucionalidade
da norma a ser aplicada se pretender julgar o mérito da causa. Em virtude destas características esse
sistema também é denominado de sistema concreto de controlo da constitucionalidade ou sistema difuso
de controlo da constitucionalidade.

O sistema português de fiscalização da constitucionalidade, como já adiantamos, combina ambos


sistemas. Se à primeira vista alguns poderiam supor que desta combinação resulta um sistema de controlo
de constitucionalidade mais eficiente, não é a conclusão a que se chega após um estudo mais detalhado.
Assim como ocorre no sistema brasileiro, uma série de dificuldades surgem em virtude deste arranjo. Tais
dificuldades não se relacionam apenas com a sua compreensão, mas, sobretudo, com o seu
funcionamento. Como veremos existe uma gama de situações no qual o modelo em questão se revelará
insuficiente, ou mesmo, falhado.

NB: Devido a esse percurso, Moçambique adopta um órgão que se designa Conselho Constitucional, com
funções de controlo da constitucionalidade, da legalidade dos actos normativos e administrar a justiça em
matérias de natureza jurídico-constitucional (cf. Nº2 artigo 241º CRM).

66
6.3. O Actual Perfil do Conselho Constitucional de Moçambique

6.3.1. Definição e natureza Jurídica

Como já foi referido, a Constituição de 1990 definia o Conselho Constitucional simplesmente como “o
órgão de competência especializada no domínio das questões jurídico-constitucionais”.

Esta concepção sofreu uma alteração fundamental no actual texto constitucional que define o Conselho
como “o órgão de soberania ao qual compete administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-
constitucional”55.

É de grande relevo a modificação assim operada pois que encerra a ideia de que embora não designado
formalmente por tribunal, o Conselho Constitucional passou a ter a natureza de órgão jurisdicional que se
situa no vértice da pirâmide do sistema de administração da justiça constitucional em Moçambique.

6.3.2. Composição, modo designação e mandato dos membros

Na sua composição o Conselho Constitucional integra sete Juízes Conselheiros, dos quais um (o
Presidente do Conselho) é nomeado pelo Chefe do Estado, nomeação sujeita à ratificação da Assembleia
da República que designa, por sua vez, cinco Juízes segundo o critério de representação proporcional. O
sétimo juiz é designado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial.

Os Juízes Conselheiros são designados para um mandato de cinco anos, passível de renovações
sucessivas não limitadas nos termos da Constituição.

A designação dos Juízes apenas pode recair sobre cidadãos com idade igual ou superior a trinta e cinco
anos e, com pelo menos, dez de experiência profissional na magistratura ou em qualquer actividade
forense ou de docência em Direito.

6.3.3. Estatuto dos Juízes

A propósito da designação da maioria dos Juízes do Conselho Constitucional por órgãos políticos e da
possibilidade ilimitada de renovação sucessiva dos mandatos, existe certa corrente de opinião no sentido

55
Artigo240, nº 1 da CRM/2004.

67
de que este modelo de designação e de mandato dos Juízes comporta o potencial risco de politização da
justiça constitucional.

Porém, sem pretender discordar com os que assim pensam, entendemos que tal risco encontra-se
prevenido e mitigado por um conjunto de garantias que integram o estatuto dos Juízes.

Assim, os Juízes constitucionais gozam, por força da Constituição, da garantia de independência,


inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade e sujeitam-se ao mesmo regime de incompatibilidades
estabelecido para os magistrados judiciais, o qual consiste na impossibilidade de exercer o mandato
cumulativamente com outras funções públicas ou privadas, exceptuando-se as actividades de docência e
de investigação jurídica, de criação, divulgação e publicação científica, literária, artística e técnica,
mediante autorização do próprio Conselho Constitucional.56

Por sua vez, a Lei Orgânica do Conselho Constitucional estabelece medidas que visam especificamente
salvaguardar o exercício do mandato dos Juízes de interferência político-partidária, nomeadamente
interditando-os de exercer cargos partidários e de militância activa em partidos e associações políticas e
de emitir, publicamente, declarações de carácter político. 57 Mais expressivamente, a lei determina a
suspensão do estatuto inerente à filiação em partidos ou associações políticas, durante o período de
desempenho do cargo de Juiz Conselheiro do Conselho Constitucional.58

Complementam este conjunto de garantias os regimes legais de cessação de funções e de


responsabilidade disciplinar, civil e criminal dos Juízes constitucionais.

Com efeito, a cessação do mandato dos Juízes, antes do termo do período ordinário de cinco anos, só
pode ocorrer nos casos de renúncia, aceitação de lugar ou prática de acto legalmente incompatível com o
exercício das funções e de demissão ou aposentação compulsiva decorrente de processo disciplinar ou
criminal59. O exercício do poder disciplinar sobre os Juízes constitucionais é atribuído exclusivamente ao
Conselho Constitucional, a quem compete instaurar o processo, nomear o respectivo instrutor entre os
seus membros, deliberar sobre a eventual suspensão preventiva e julgar em definitivo. 60

Os Juízes, salvo os casos especialmente previstos na lei, não são responsabilizadas pelas suas decisões,
sendo-lhes aplicáveis, mutatis mutandis, as normas pertinentes à efectivação da responsabilidade civil e

56 Artigos 243, nº 2, e 242 da CRM/2004.


57 Artigo 15, nº 1, da LOCC.
58 Artigo 15, nº 2, da LOCC.
59 Artigo 10, nº 1, da LOCC.
60 12 Artigo 12, nº 1, da LOCC.

68
criminal e ao regime de prisão preventiva e foro especial previsto para os Juízes Conselheiros do Tribunal
Supremo.61

6.3.4. Competência

O Conselho Constitucional continua a caracterizar-se, essencialmente, pelo seu poder de fiscalizar e


declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de actos normativos dos órgãos do Estado. No entanto, o
âmbito da sua competência abarca vários outros domínios da justiça constitucional em sentido amplo,
nomeadamente:62
a) Resolução de conflitos de competências entre órgãos de soberania;
b) Verificação prévia da constitucionalidade dos referendos;
c) Verificação dos requisitos legais exigidos para as candidaturas ao cargo de Presidente da
República;
d) Apreciação, em última instância, de recursos eleitorais;
e) Validação e proclamação dos resultados eleitorais;
f) Decisão, em última instância, da legalidade da constituição de partidos e coligações de partidos
políticos, bem como apreciação da legalidade das respectivas denominações, símbolos e siglas e,
ainda, decisão sobre a extinção dos mesmos;
g) Julgamento das acções de impugnação de eleições e de deliberações dos órgãos de partidos
políticos, das acções relativas ao contencioso do mandato dos deputados e das acções
concernentes a incompatibilidades previstas na Constituição e na lei;
h) Fiscalização das declarações sobre incompatibilidades, património e rendimentos dos dirigentes
superiores do Estado e titulares de cargos governativos.63

6.3.5. Modo de funcionamento e de decisão

O Conselho Constitucional funciona sempre em sessões plenárias não estando prevista, por conseguinte,
a sua organização em secções. O plenário reúne-se, ordinariamente, quando for convocado pelo
Presidente, por iniciativa própria, ou a requerimento de um terço, pelo menos, dos juízes em efectividade
de funções.

61 Artigos 11, 12 e 13 da LOCC


62 Artigo 243 da CRM/2004.
63 Competência acrescida pelo nº 3 do artigo 6 da Lei Orgânica, ao abrigo do nº 3 do artigo 243 da Constituição, segundo o qual o Conselho

Constitucional exerce as demais competências atribuídas por lei.


69
O quórum das reuniões plenárias é fixado em dois terços, pelo menos, dos juízes efectivos, sendo as
deliberações tomadas por consenso ou, na ausência deste, pela pluralidade de votos dos juízes presentes,
dispondo o Presidente de voto de qualidade e os demais juízes do direito de lavrar voto de vencido.64

6.3.6. Publicidade das decisões

As decisões do Conselho Constitucional, que assumem a forma de acórdão ou de deliberação, consoante


a matéria do respectivo objecto, são notificadas aos interessados e publicadas no Boletim da República
que é o Jornal Oficial.65

A Lei Orgânica prevê formas específicas de publicidade de certas decisões. Por exemplo, os acórdãos
relativos à verificação dos requisitos legais exigidos para as candidaturas a Presidente da República são
também afixados à porta do Conselho Constitucional e publicados no jornal diário de maior circulação
nacional.66

Para além das formas de publicidade legalmente fixadas, o Conselho Constitucional tem recorrido a outros
meios com vista a tornar as suas decisões cada vez mais acessíveis ao público, tais como à entrega
gratuita de cópias dos acórdãos e deliberações aos órgãos de comunicação social, quando solicitado; a
publicação imediata dos acórdãos e deliberações, emformato electrónico, na sua página oficial da internet
cujo endereço é www.cconstitucional.org.mz; finalmente, a publicação periódica da colectânea
“Deliberações e Acórdão”, cujo terceiro volume está neste momento em processo de edição.

6.4. Fiscalização preventiva (abstracta sucessiva e concreta)

Somente o Conselho Constitucional, nos termos do art. 245 da CRM/2004, tem competência para exercer
a fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas jurídicas67. Esta espécie de fiscalização
abstracta tem como objectivo dificultar ou impedir que uma norma que não seja rígida entre em vigor.
Portanto, ela é levada a efeito antes da norma ter sido promulgada pelo Presidente da República e ter
produzido qualquer efeito jurídico.

64 Artigo 33 da LOCC.
65 Artigos 247, nº 3, da CRM/2004; 32 e 35 da LOCC.
66 Artigos 90, nºs 2 e 3.
67 É importante observar que nunca será objecto do controlo abstracto preventivo de constitucionalidade o diploma legal como um todo, mas

apenas normas que o compõe. Apesar disso, enquanto estiver sendo discutida a constitucionalidade de qualquer norma, fica suspensa a tramitação
do diploma legal.
70
Note-se que, uma vez realizado o controle de constitucionalidade da norma preventivamente, afastam-se
eventuais violações grosseiras e inequívocas, contudo, nada impede que, ao longo de sua vigência, a
norma seja submetida à fiscalização sucessiva, seja abstracta ou concreta.

Não se verifica uma sujeição automática dos diplomas à apreciação do Conselho Constitucional. A
fiscalização preventiva é desencadeada pelos detentores do poder funcional de iniciativa nos exíguos
prazos determinados no texto constitucional.

O Presidente da República pode requerer ao Conselho Constitucional, a apreciação preventiva da


constitucionalidade de qualquer norma que lhe tenha sido enviado para promulgação 68.

A iniciativa não faz precluir o veto político, que pode ser manejado pelo Presidente da República ou pelo
Representante da República. Ao contrário, o exercício do veto político faz precluir a iniciativa de
fiscalização preventiva, a fim de preservar o Tribunal Constitucional do debate político emergente das
razões do veto.

Observa-se que na fiscalização preventiva, a pronúncia de inconstitucionalidade de uma só norma ou de


um só segmento de norma determina a inconstitucionalidade de toda a disposição ou de todo o diploma
legal, não sendo possível como ocorre na fiscalização sucessiva se autonomizar uma norma ou segmento
de norma não inconstitucional.

Note-se que a norma declarada inconstitucional preventivamente pelo Conselho Constitucional, cuja
declaração for afastada pela Assembleia da República, poderá ser reapreciada em eventual controlo
repressivo. Conforme esclarece Canotilho, “o Tribunal Constitucional pode sempre vir a considerar, em
controlo sucessivo, de novo inconstitucionais, as normas já objecto de idêntica decisão em sede de
controlo prévio”69.

Por outro lado, se a pronúncia do Tribunal Constitucional for no sentido da não inconstitucionalidade, os
efeitos produzidos se distinguem conforme se trate de normas legislativas e constantes de acordos
internacionais ou se trate de normas constantes em tratados. Conforme lição de Jorge Miranda, “no caso
de quaisquer normas, excepto normas de tratados, se o Tribunal Constitucional se não pronunciar pela
inconstitucionalidade, o Presidente da República ou o Representante da República deverão promulgar ou
assinar o diploma, a não ser que exerçam de seguida, no prazo constitucional, o veto político. Já no caso

68 n˚1 do artigo 245 da CRM/2004.


69 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª ed. Coimbra : Almedina, 2002.
71
da decisão pela não inconstitucionalidade de norma inserida em tratado, o Presidente da República não
fica obrigado a ratificar o tratado, porquanto a ratificação – ao contrário da promulgação ou da assinatura –
é livre, continua a ser, no Direito português (como em geral em Direito comparado) uma faculdade do
Presidente da República, enquanto titular do jus raepresentationis omnimodoe do Estado nas relações
internacionais”70.

Revela-se importante fazer referência, ainda a título de fiscalização preventiva da constitucionalidade, à


exercida pelo Conselho Constitucional, nos termos da sua competência prevista no artigo 245 da
CRM/2004, sobre referendos convocados pelo Presidente da República. O controlo preventivo dos
referendos, o qual é sempre obrigatório, independente da vontade dos detentores do poder de iniciativa, é
mais abrangente do que o controlo sobre os actos normativos, convenções e tratados internacionais, pois
não se limita a análise da constitucionalidade, mas também da legalidade. Deve-se atentar para a
existência de vícios de qualquer natureza, analisando não apenas o objecto do referendo, mas também às
perguntas e respostas a que serão submetidos os cidadãos. Finalmente, note-se que, conforme o
ordenamento jurídico-constitucional português, o referendo dependendo do resultado que atinja torna-se
vinculativo ou não, criando a obrigação para o Parlamento ou para o Governo de decretar a lei ou aprovar
o tratado ou acordo internacional, cuja matéria foi objecto do questionamento popular.

6.5. Fiscalização abstracta sucessiva

A Constituição da República de Moçambique de 2004 consagrou que ao Conselho Constitucional cabe


“apreciar e declarar a inconstitucionalidade das leis e a ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do
Estado”71, que tem como principal característica não mais a apreciação da inconstitucionalidade como uma
questão incidental a ser superada para que seja possível o proferimento de uma decisão no feito
submetido ao julgamento, mas sim como objecto principal do processo.

Nesta hipótese, o processo constitucional se dirige à fiscalização acerca da constitucionalidade formal ou


material de determinada norma jurídica em tese, resultando em uma decisão com força geral e obrigatória
que vinculará não apenas os órgãos do Poder Judiciário, como também os órgãos dos outros poderes
instituídos.

Logo, neste processo não há partes, não há interesses subjectivos contrapostos, não há um litígio
subjacente. O desencadeamento de um processo de fiscalização concentrada e abstracta se dá

70 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito... Tomo VI, p. 252-253.


71 Al. a) do n ˚ 1 do artigo 243 da CRM/2004
72
exclusivamente na perspectiva de um interesse público e objectivo, razão pela qual a fiscalização
abstracta vincula-se a um poder funcional de iniciativa atribuído a determinados órgãos ou a fracções de
titulares de órgãos do poder político. Somente aqueles que gozam de tal poder funcional de iniciativa
podem requerer ao Conselho Constitucional a apreciação da constitucionalidade ou legalidade de normas
jurídicas.

Assim como no sistema brasileiro em que se identifica a existência de legitimados universais e legitimados
restritos para a propositura das acções do controle concentrado, em Portugal se identifica um poder geral
de iniciativa atribuído a determinados órgãos ou titulares de órgãos e um poder especial de iniciativa
atribuído a certos órgãos e titulares de órgãos, dos quais se exige a vinculação entre o interesse objectivo
de protecção da ordem jurídico-constitucional e um interesse em certa medida particularizado, porém
sempre público.

O processo de controlo concentrado de constitucionalidade não é apenas desencadeado pelos detentores


do poder funcional de iniciativa, também são eles quem fixa o objecto do processo no pedido. É ónus
daquele que desencadeia o controlo de constitucionalidade especificar as normas que pretende sejam
analisadas, bem como apontar quais normas constitucionais entende violadas.

O Conselho Constitucional, contudo, não está adstrito a esta última parte, isto é, não se limita em
confrontar a norma tida como inconstitucional apenas com a norma parâmetro indicada, podendo
fundamentar a sua decisão em normas constitucionais diversas da invocada. Da mesma sorte, é possível
que, a partir da decisão de inconstitucionalidade de uma dada norma, outras normas infraconstitucionais
nela implícita ou contida se revelem inconstitucionais. Nestas hipóteses, portanto, o Conselho
Constitucional, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, deve conhecer das inconstitucionalidades
consequentes, mesmo que não sejam objecto do pedido.

Na fiscalização sucessiva não há prazos como há na fiscalização preventiva, podendo o pedido ser
apresentado a qualquer tempo. Tem poder de iniciativa para desencadear o processo de fiscalização de
quaisquer normas, com base em quaisquer fundamentos.

O controlo abstracto sucessivo pode ser solicitado pelo Presidente da República; Presidente da
Assembleia da República; um terço, pelo menos, dos deputados da Assembleia da República; Primeiro-
ministro; Procurador-Geral da República; Provedor de Justiça e Dois mil Cidadãos72.

72 N ˚ 2 do artigo 244 da CRM/2004


73
Admitido o pedido, o Presidente do Tribunal Constitucional notifica o órgão do qual a norma impugnada
tiver emanado para, querendo, se pronunciar no prazo de 20 (vinte) dias e para o caso de fiscalização
preventiva, no prazo de cinco dias73. Nesta seara, inversamente do que ocorre na fiscalização preventiva,
não é admitida a desistência do pedido 74 e não se suspende a aplicação, vigência ou eficácia das normas
impugnadas. O Tribunal Constitucional, conforme observa Jorge Miranda, pode tampouco adoptar
providências cautelares.

A declaração de inconstitucionalidade tem eficácia erga omnes (Artº 244, CRM, e Artº 66, LOCC).75

Quando se trate de inconstitucionalidade ou ilegalidade por infracção de norma constitucional ou lei


posterior (inconstitucionalidade ou ilegalidade superveniente), a retroactividade alcança somente o
momento de entrada em vigor do parâmetro e não da norma tida como inconstitucional ou ilegal, sem
produzir efeitos repristinatórios. Como limite à retroactividade, contudo, ficam ressalvados, em princípio, os
casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria
penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

6.6. Fiscalização concreta

Na esteira da tradição sobre a Aprova da Lei Orgânica do Conselho Constitucional, consagrou o controlo
difuso, concreto e incidental dos actos normativos, que será sempre, por sua própria essência, sucessivo,
abrangendo não só a inconstitucionalidade, mas também a ilegalidade de qualquer norma 76.

De tal sorte, é atribuída a todo julgador, singular ou colegiado, a competência para fiscalizar a
constitucionalidade das normas, de modo incidental, diante do caso concreto, quer por impugnação das
partes, quer por iniciativa ex officio do julgador ou do Ministério Público. Note-se, pois, que os tribunais e
julgadores singulares não se limitam a deixar de aplicar a norma entendida como inconstitucional,
conforme se poderia supor a partir da leitura, segundo o qual “nos feitos submetidos a julgamento os
tribunais não podem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição 77”.

A competência que lhes é atribuída lhes permite mais do que deixar de aplicar a norma, lhes permite
apreciá-la frente ao texto constitucional. Observa-se que o Tribunal Constitucional também está inserido

73 Artigo 51 da Lei n.º 6/2006 de 2 de Agosto.


74 Artigo 50 da Lei n.º 6/2006 de 2 de Agosto.
75 A expressão erga omnes é usada para indicar que os efeitos de algum acto ou lei atingem a todos os indivíduos de uma determinada população

ou membros de uma organização, para o direito nacional.


76 Artigo 67 da Lei n.º 6/2006 de 2 de Agosto.
77 Artigo 213 da Constituição da República de Moçambique/2004.

74
no âmbito da disposição do artigo 213 da Constituição da República de Moçambique (CRM), podendo
conhecer incidentalmente da inconstitucionalidade ou ilegalidade nos processos em que exerça as suas
competências jurisdicionais.

Note-se que o sistema moçambicano é bastante peculiar, se comparado a maior parte do sistema
português, pois, diante da inconstitucionalidade da norma a ser aplicada no caso concreto, os julgadores
têm competência plena para se posicionar acerca da questão da inconstitucionalidade naquele caso
específico – nunca em tese – e não apenas para admitir o incidente de inconstitucionalidade, remetendo-o
para ser apreciado pelo Tribunal Constitucional.

Apesar disso, a posição do Tribunal Constitucional no sistema moçambicano não é menos relevante, na
medida em que sempre cabe recurso a ele da decisão de qualquer tribunal que aplicar norma
anteriormente julgada por si inconstitucional ou ilegal e, também, na medida em que, quando o Tribunal,
em sede de fiscalização concreta, declara por 3 (três) vezes inconstitucional determinada norma, poderá
ser, prontamente, desencadeado processo de fiscalização abstracta, objectivando declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória e geral.

Observa-se, contudo, que essa passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstracta não ocorre
automaticamente, nem está o Tribunal Constitucional obrigado a fazer, ficando dependente de iniciativa.
Note-se, também, que não é necessário que a norma constitucional considerada como parâmetro nos três
casos em que se posicionou pela inconstitucionalidade seja a mesma. É a norma tida como
inconstitucional que deve se repetir. Da mesma sorte, nada impede que o Tribunal Constitucional declare
apenas um segmento da norma inconstitucional, dando, portanto, uma amplitude menor à declaração da
inconstitucionalidade em abstracto.

São três os tipos de decisões recorríveis ao Tribunal Constitucional:


a. Decisões que recusem a aplicação de certa norma com fundamento em inconstitucionalidade ou em
ilegalidade;
b. Decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o
processe e
c. Decisões que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal
Constitucional. O que fundamenta a recorribilidade de tais decisões é o postulado da supremacia do
Tribunal Constitucional.

75
O Tribunal Constitucional é o órgão especificamente legitimado para exercer a Guarda da Constituição em
última instância. Se a primeira palavra acerca da inconstitucionalidade de determinada norma cabe a
qualquer julgador, a última pertence exclusivamente ao Tribunal Constitucional.

A decisão proferida no recurso, entretanto, não substitui a decisão recorrida. Dado provimento ao recurso,
ainda que parcialmente, os autos retornam ao julgador a quo, a fim de que este reforme a decisão.

É importante salientar que o recurso ao Tribunal Constitucional pode ser directo e, obrigatoriamente o
será, quando se tratar de recurso interposto pelo Ministério Público em virtude da norma cuja aplicação
tenha sido recusada constar de convenção internacional, de acto legislativo ou de decreto regulamentar.
A decisão positiva que resulta do processo de fiscalização concreta da constitucionalidade é:
o julgamento da norma como inconstitucional;
É realizada por qualquer tribunal, mas em casos concretos sub judicio;
Pode ser por via incidental ou por excepção arguida pelas partes;
Pode ser ex officio pelos juízes;
Também é realizada pelo Conselho Constitucional (CC) em sede de recurso restrito à questão da
constitucionalidade de recursos interpostos de decisões judiciais que desapliquem normas com
fundamento em inconstitucionalidade78.

Este comando é de carácter imperativo para os tribunais e de cumprimento obrigatório para os juízes e
tem agora a seguinte redacção: “nos feitos submetidos a julgamento, os tribunais não podem aplicar leis
ou princípios que ofendam a Constituição”79.

A primeira questão que se coloca aos aplicadores da lei é: que actos estão incluídos no objecto da
fiscalização concreta? A questão é importante, pois, no momento da aplicação prática os juízes têm de ter
a certeza de qual o significado jurídico dado pelo legislador aos vocábulos leis e princípios, pois, em
princípio, o que não se incluir na compreensão jurídica de lei e princípio, não deveria ser objecto de
controlo.

É óbvio que devem ser entendidas como leis, em primeiro lugar, as leis em sentido formal, os actos
legislativos da Assembleia da República e os decretos-lei do Governo.

78 cfr. Al.a) do nº 1 do Artº 246 da CRM, e Art. 67, da Lei nº 06/2006, de 2 de Agosto.
79 Artigo 213 da CRM/2004
76
Mas, será que só esses actos normativos primários podem ser objecto de fiscalização concreta pelos
tribunais? Mais uma vez a questão não é de menor importância, nem a resposta é óbvia. Por exemplo, em
vários sistemas jurídicos a fiscalização concreta incide apenas sobre as leis ou actos equiparáveis a leis
stricto sensu.

No caso moçambicano, talvez se deva ter presente que, ao enunciar as competências do Conselho
Constitucional em sede de controlo abstracto, a Constituição refere-se a leis e a actos normativos dos
órgãos do Estado, o que engloba, a meu ver, para além das leis em sentido formal, um conjunto de actos
normativos secundários e terciários, por exemplo, regulamentos e despachos normativos80.

Do catálogo de actos normativos dos órgãos Estado fazem parte as leis da Assembleia da República, as
leis constitucionais, as resoluções com conteúdo normativo, os tratados, convenções e acordos por ela
ratificados; os decretos do Presidente da República; os decretos-lei e decretos do Conselho de Ministros;
os diplomas do Primeiro-Ministro; os diplomas ministeriais e conjuntos, dos Ministros; os actos das
assembleias provinciais, se os houver; e outros actos normativos do Estado.

Parece, portanto, que o vocábulo leis terá sido empregue em termos genéricos para significar actos
normativos dos órgãos do Estado. Se assim for, só podem ser objecto de controlo abstracto no Conselho
Constitucional, é de admitir que não estejam excluídos do objecto da fiscalização concreta realizada nos
tribunais.

Mas, por outro lado, a própria Constituição81 e a Lei Orgânica do Conselho Constitucional82, nas
disposições relativas aos recursos utilizam a expressão norma em vez de leis. Pois bem, uma vez que o
conceito de norma pode não ser restritivo nem limitado à produção normativa estadual, pode-se então
questionar se não serão de incluir no objecto da fiscalização concreta os actos normativos de entidades
situadas fora do Estado.

Não se trata de uma questão académica ou de uma preciosismo dos juristas, pois, a questão coloca-se na
prática: por exemplo, podem os tribunais fiscalizar a constitucionalidade de normas constantes de avisos
do Banco de Moçambique? E as posturas das autarquias locais? E os estatutos das associações
públicas? E os acordos colectivos de trabalho? É verdade que não se trata de leis, no sentido de actos
normativos emanados de órgãos do Estado. Mas, todos eles podem, eventualmente, conter disposições

80Al. a) do n ˚ 1 do Artigo 243 da CRM/2004.


81Artigo 246 da CRM/2004.
82Al. a) e b) do Artº 67 e al.b) do Artº 73 ambos da.Lei nº 6/2006, de 2 de Agosto.

77
que materialmente se configurem como verdadeiras normas, de valor jurídico vinculante, destinadas a
impor padrões de comportamento e a reger a resolução de disputas e conflitos.

Estou seguro de que a falta de previsão específica das diversas situações possíveis e a ambiguidade
conceitual tanto do legislador constituinte como do ordinário, serão superadas quer pelo Conselho
Constitucional, quer pelos tribunais, que irão interpretar, densificar e fixar os conceitos de leis, actos
normativos dos órgãos do Estado e norma e, assim, delimitar por via jurisprudencial com maior precisão o
objecto da fiscalização concreta da constitucionalidade.

Finalmente, talvez valha a pena também referir os actos que, apesar de violarem a Constituição, não
deverão incluir-se no objecto da fiscalização concreta da constitucionalidade. São, entre outros, os actos
administrativos e as decisões jurisdicionais, praticados respectivamente pelos órgãos e entidades do
Estado e da administração e pelos tribunais para resolverem casos individuais e situações concretas.
Tais actos, por não se tratarem propriamente de leis, actos normativos ou normas, não devem estar
sujeitos a fiscalização concreta da constitucionalidade.

6.7. Requisitos processuais subjectivos da fiscalização concreta

A fiscalização concreta da constitucionalidade das normas deve ocorrer, como se depreende dos preceitos
constitucionais e legais atrás citados, “nos feitos submetidos a julgamento os tribunais não podem aplicar
leis ou princípios que ofendam a Constituição83”.

Há, pois, que ter claro previamente o que são tribunais. Não há uma definição de tribunais na nossa
Constituição, mas podemos socorrer-nos da definição que consta da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais:
“Os tribunais são órgãos de soberania que administram justiça em nome do povo” 84. Contudo, porque tal
definição talvez seja muito ampla, impõe-se que se clarifique o conceito.

Na verdade, como tribunais devem ser havidos os órgãos jurisdicionais que têm por função principal a
actividade jurisdicional exercida por juízes que estejam apenas sujeitos à Constituição e às leis e que
gozem das garantias de independência, inamovibilidade e irresponsabilidade. Tais tribunais devem possuir
natureza judicial e não de meros órgãos de composição de conflitos 85.

83 Artigo 213 da Constituição da República de Moçambique/2004.


84 Artigo 1 da Lei nº 24/2007, de 20 de Agosto. Aprova a lei de organização judiciária e revoga a Lei nº 10/92, de 6deMaio.
85 Canotilho, J.J.G. – Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição (Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2003, pág. 284.

78
Desde logo, são tribunais todos aqueles que estão previstos na Constituição, nomeadamente, no Artº 222
e seguintes da Constituição da República de Moçambique/2004, ou seja, os tribunais judiciais,
administrativos, fiscais, aduaneiros e outros. Ora, todos e cada um deles, além do Conselho
Constitucional.

– Que, para efeitos da fiscalização concreta da constitucionalidade, também é um tribunal.


– Têm competência para realizar a fiscalização concreta da constitucionalidade. Por isso, se diz que o
controlo concreto é difuso, por não estar concentrado apenas num dos tribunais.

Por seu turno, para que haja fiscalização concreta é requisito que haja processo em juízo.
Há que precisar que na expressão feitos submetidos a julgamento estão abrangidos não apenas os
processos de jurisdição contenciosa, relativos a litígios já existentes entre partes, mas igualmente os
processos de jurisdição voluntária e as providências, onde haja um caso ou um interesse juridicamente
tutelado a resolver pelo tribunal86, e onde também possam suscitar-se questões de inconstitucionalidade.

Nos casos já submetidos a juízo, os juízes não só podem como, na minha opinião, obrigatoriamente
devem, ex officio, avaliar se a norma destinada a resolver o caso sub judicio está ou não ferida de
inconstitucionalidade, ou seja, se está em contradição com alguma norma ou princípio constitucional, isto
é, se sofre de qualquer vício formal, material ou procedimental.

Nem sempre há um entendimento unívoco do que seja o carácter oficioso da fiscalização da


constitucionalidade efectuada pelos tribunais. Ora, o ser oficioso não quer obviamente dizer que se trate
de um exercício que possa ser feito pelos juízes antes ou sem que haja um feito submetido a julgamento.
Significa que, havendo já processo em juízo, a averiguação da conformidade é obrigatória, oficiosa para o
juiz e independentemente de arguição pelas partes ou pelo Ministério Público, uma vez que para
desaplicar uma norma que considere inconstitucional o juiz não só não depende da vontade das partes ou
do Ministério Público, como a isso está obrigado pela Constituição.

Mas, é claro que as partes e o Ministério Público têm legitimidade processual activa e podem, eles
próprios, levantar a questão da inconstitucionalidade de uma determinada norma, se quiserem prevenir
que venha a ser aplicada no caso concreto em juízo.

86 Idem.
79
6.8. Requisitos processuais objectivos da fiscalização concreta

O primeiro requisito processual objectivo da fiscalização concreta é o de que a questão levantada pelas
partes ou pelo Ministério Público, ou identificada pelo próprio juiz, seja uma questão de
inconstitucionalidade, isto é, que a questão colocada seja a da desconformidade de uma norma com a
Constituição.

Todavia, não basta que no processo se questione a constitucionalidade de uma norma qualquer; é
imprescindível que a norma cuja constitucionalidade se põe em causa tenha a ver com a decisão da
questão sub judicio, que a inconstitucionalidade que se suscita seja a da norma considerada como
relevante para a decisão da causa. A inconstitucionalidade de uma norma que esteja apenas marginal ou
indirectamente relacionada com a decisão do pleito, não parece dever ser objecto de fiscalização concreta.

A fiscalização pode incidir sobre quaisquer normas que sejam relevantes para a decisão, sejam normas
materiais e de direito substantivo, que tenham a ver com o mérito ou o fundo da causa, sejam normas
adjectivas, que tenham a ver, por exemplo, com os meios probatórios ou com os pressupostos
processuais.

Finalmente, ao ser suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma em processo, não pode o juiz
deixar de proferir despacho sobre a questão, fica obrigado a decidir se a mesma procede ou improcede. A
propósito deste despacho, vai ser importante determinar, por exemplo para efeitos de recurso se possui a
natureza de simples despacho interlocutório ou se terá o valor de sentença, como acontece noutros
sistemas.

6.9. Os recursos

A desaplicação de uma norma ex-officio por parte dos juízes, ou a requerimento das partes ou do
Ministério Público, pode dar lugar a recurso para o Conselho Constitucional.

Daí que se diga que a fiscalização judicial concreta assim efectuada, além de ser difusa e oficiosa, é
também incidental.

80
Lendo atentamente a Constituição, nomeadamente o seu Artº 246º87, e os diversos artigos da Lei Orgânica
do Conselho Constitucional, tudo indica que só haverá recurso de decisões positivas de
inconstitucionalidade; não haverá recurso de decisões negativas de inconstitucionalidade.

Pelo modo como esta matéria se encontra regulada na Constituição e na LOCC, parece que só haverá
recurso nos casos de recusa de aplicação de uma norma considerada inconstitucional, ou seja, haverá
recurso apenas de decisões que tenham acolhido e declarado procedente a questão de
inconstitucionalidade levantada.

Não haverá lugar a recurso se os juízes aplicarem uma norma cuja inconstitucionalidade tenha sido
arguida, levantada ou suscitada pelas partes ou pelo Ministério Público, mas não tenha sido considerada
inconstitucional pelo tribunal. Quer dizer, não haverá recurso de decisões que tenham declarado
improcedente a questão de inconstitucionalidade, ou seja que tenham rejeitado a questão de
inconstitucionalidade suscitada.

Há uma clara desarmonia entre a muito provável intenção do legislador constituinte de consagrar um
modelo de controlo da constitucionalidade que incluísse a intervenção do Conselho Constitucional na
fiscalização concreta, em sede de recurso das decisões proferidas pelos tribunais quanto à questão da
constitucionalidade suscitada em processos judiciais, e o conteúdo do nº1 do citado Artº 246º e do Artº 68º
da LOCC.

As referidas disposições impõem a remessa pelos tribunais ao Conselho Constitucional dos acórdãos,
outras decisões e autos onde tenham sido proferidas decisões recusando a aplicação de normas com
fundamento na inconstitucionalidade.

Ora, uma remessa não deveria, em rigor, ser equiparada a recurso; a remessa é obrigatória e, se se
entendesse tratar-se de recurso, seria forçoso concluir que sempre que houver desaplicação de normas
com fundamento em inconstitucionalidade haverá recurso. Não seria lógico falar-se então de alegações88,
notificações, má-fé ou intuito meramente dilatório89 das partes, já que a remessa, que é obrigatória para o
tribunal, seria ela própria um recurso obrigatório e que não carece de ser interposto pelas partes.

87 Conjugado com o artigo 48º da LOCC


88 artº 70 da LOCC.
89 nº 2 do artº 121 da LOCC.

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Em minha modesta opinião, a remessa ao Conselho Constitucional das decisões que desapliquem uma
norma considerada inconstitucional, só faz sentido se tiver por finalidade dar a conhecer ao Conselho
Constitucional a existência de normas cuja conformidade esteja ser posta em causa nos tribunais para
instruírem eventuais processos de declaração de inconstitucionalidade por via do controlo abstracto, a
requerimento de uma das entidades previstas no Artº 244º da Constituição.

Mas, esta interpretação não é a única possível. Se o nº 1 do Artº 246º da Constituição já não estava bem,
a LOCC não melhorou a situação porque estabeleceu na parte final do Artº 68º que a remessa ao
Conselho deve ser feita de imediato e tem efeitos suspensivos.

É surpreendente que uma remessa tenha efeitos que são próprios de recursos. Mais: enquanto a
Constituição exige que o tribunal remeta apenas os acórdãos e decisões, a LOCC manda remeter os
próprios autos, isto é, todo o processo.

É de prever que a aplicação desta norma da LOCC venha a propiciar discussões quer nos tribunais, quer
no Conselho Constitucional.

Pondo de parte a questão da finalidade pretendida com a remessa dos acórdãos e decisões dos tribunais
ao Conselho Constitucional, está claro para mim que o legislador constituinte quis atribuir ao Conselho
Constitucional a competência para conhecer de recursos interpostos das decisões que nos tribunais
judiciais, e outros, desapliquem normas com fundamento em inconstitucionalidade.

Ou seja, quis que o Conselho Constitucional, além de ter a seu cargo o controlo abstracto da
constitucionalidade das normas, por via principal, também interviesse como última instância da fiscalização
concreta da constitucionalidade, por via de recurso. Seria normal fazê-lo, desde logo, no Artº 243º da
Constituição, onde se enunciam as competências daquele órgão.

Contudo, concretizou-o ao dar ao Artº 246º da Constituição a epígrafe recursos. E embora o nº 1, e as


suas duas alíneas, sejam pertinentes à remessa, já do teor do nº2 podemos concluir que o legislador
constituinte quis que das decisões positivas de inconstitucionalidade proferidas pelos dos tribunais
pudesse caber recurso para o Conselho Constitucional.

Perguntar-se-á, então, que tem legitimidade processual activa para recorrer. Uma vez que o Artº 70º se
refere à notificação das partes para apresentarem alegações, é de inferir que haja recursos de parte.
Sendo claro que as chamadas partes principais podem recorrer, ficará por se saber se as partes
82
acessórias ou terceiros directamente prejudicados podem igualmente ser recorrentes. Também me parece
que o Ministério Público também goza de legitimidade para recorrer pelo menos nos processos em que
seja parte.

Quanto ao objecto, das decisões dos tribunais que não apliquem uma norma por a julgarem
inconstitucional, o recurso para o Conselho Constitucional é restrito à questão da inconstitucionalidade.

6.10. Efeitos das decisões de inconstitucionalidade

Nem a Constituição nem a lei se encarregaram de esclarecer quais os efeitos das decisões de
inconstitucionalidade proferidas pelos tribunais nos processos judiciais.

Tenho defendido que, por um lado, a desaplicação por um tribunal, num caso concreto em juízo, de uma
norma por si considerada como inconstitucional, só tem eficácia in casu, não tem eficácia erga omnes. Ou
seja, transitada em julgado, tal decisão tem eficácia limitada ao caso concreto, não vale para outros
processos judiciais, não tem efeitos vinculativos nem constitui precedente a ser seguido por outros
tribunais90.

Tal já era assim, quer para as decisões proferidas em 1ª instância, quer para as decisões tiradas na 2ª
instância, antes da última revisão constitucional e da vigência da actual LOCC.

É certo que a Constituição estabelece que o Conselho Constitucional aprecia e declara, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade das leis e dos demais actos normativos do Estado dos órgãos do
Estado, em qualquer momento da sua vigência91.

Mas, é indiscutível que tal eficácia erga omnes resulta de deliberações de inconstitucionalidade exaradas
no exercício do controlo abstracto e não dos julgamentos dos recursos em fiscalização concreta. A
inserção sistemática do Artº 66º, nº 1, no Capítulo III, da Fiscalização Sucessiva, do Título III, da LOCC,
afasta quaisquer dúvidas que sobre a matéria pudessem antes existir.

Todavia, e apesar do que atrás foi referido quanto à limitação do objecto do recurso exclusivamente à
questão da inconstitucionalidade, importa salientar que a decisão do recurso que for tomada pelo

90 Carrilho, J.N. – “O Conselho Constitucional: algumas achegas”, in Mediafax de 19 a 23 de Março de 2003, Maputo.
91 nº 1 do artº 244 da CRM/2004.
83
Conselho Constitucional constitui caso julgado material e formal no processo, não podendo a questão vir a
ser retomada no processo.

Razões de Ordem

A exposição que acabamos de fazer permite-nos concluir que a emergência de uma jurisdição
constitucional autónoma e especializada em Moçambique é resultado da Constituição de 1990, a qual
adoptou o modelo do Estado Social e Democrático de Direito, consagrou expressamente o princípio da
constitucionalidade das normas jurídicas e instituiu o Conselho Constitucional como órgão de soberania,
de competência especializada no domínio das questões jurídico-constitucionais.

O Conselho Constitucional é definido, nos termos da Constituição vigente, como o órgão especializado na
administração da justiça constitucional, o que lhe confere natureza jurisdicional, ainda que não seja
formalmente designado por tribunal.

A competência do Conselho Constitucional abrange, para além do controlo da constitucionalidade e da


legalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado, outros domínios materiais, tais como conflitos de
competência entre os órgãos de soberania, contencioso eleitoral, do mandato dos deputados, dos partidos
políticos, conflitos de interesses e ética governativa.

O modelo moçambicano de fiscalização da constitucionalidade é misto porque compreende, além dos


controlos preventivo e sucessivo abstracto, concentrados no Conselho Constitucional, o controlo concreto
exercido de forma difusa por todos os tribunais.

A actuação do Conselho Constitucional tem tido maior incidência nos processos eleitorais, sem prejuízo do
progressivo incremento e diversificação dos pedidos de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade
dos actos normativos. Em termos prospectivos, consideramos que a justiça constitucional em Moçambique
poderá evoluir, por um lado, no sentido da sua maior acessibilidade ao cidadão, de modo a tornar-se,
efectivamente, garantidora dos direitos e liberdades fundamentais, por outro, no sentido de contribuir para
uma cada vez maior efectividade das normas constitucionais programáticas através da possibilidade de
controlo jurisdicional das omissões legislativas.

84
CAPITULO VII: O SISTEMA ELEITORAL MOÇAMBICANO, TIPO DE SUFRÁGIO
ELEITORAL E O PAPEL DO CONSELHO CONSITUCIONAL

NB: A SER DESENVOLVIDO PELOS ESTUDANTES, COMO TRABALHO PRÁTICO!

85
Bibliografia Consultada:

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 _______________________. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª ed. Coimbra: Almedina,
2002;
 _______________________. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Coimbra, 2003;
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 Carl Schmitt. “Teoria da Constituição”………..
 Carrilho, J.N. – “O Conselho Constitucional: algumas achegas”, in Mediafax de 19 a 23 de Março de 2003,
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 CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre. Sérgio António Fabris Editor,
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 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. São Paulo, Malheiros Editores, 6ª ed.,
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 Dirley da Cunha Júnior Expressão retirada do livro do professor Dirley da Cunha Júnior na página 85, o
qual retirou do livro de J. H. Meirelles Teixeira página 78.
 Fernando Filgueiras. Justiça Constitucional, Legitimidade e Interesse Público. Revista Brasileira de Ciência
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 Ferdinand Lassalle..................
 Ferreira Filho (1994, p. 12 et seq………
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 GARCIA DE ENTERRÍA, Eduardo, Princípio de legalidade, Estado material de derecho, y facultades
interpretativas y constructivas de la jurisprudencia en la Constitución, in Revista Espanhola de Direito
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 Relatório sobre Moçambique à I Assembleia da CJCPLP, Lisboa, 20 a 22 de Maio de 2010;
 MASCARENHAS, Paulo. Manual de Direito Constitucional, Salvador, 2010;
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 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5ª ed., São Paulo, Revista
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 Proposta por Ferdinand Lassalle no livro “A essência da Constituição”;
 Peter Haberle e Carlos Alberto Siqueira Castro
 S.T.C. de 8 abr. 1981, apud PÉREZ GORDO, 1983, p. 56-7;
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pelas 18H30)
 www.cconstitucional.org.mz;

Legislação:
 Constituição da República de Moçambique – 2004, actualizada pela Lei nº1/2018;
 Constituição da República Popular de Moçambique – 1990;
 Constituição da República Popular de Moçambique – 1975;
 Lei n°06/2006, de 2 de Agosto - Lei Orgânica do Conselho Constitucional (LOCC).
 Lei nº5/2008, de 9 de Julho – Altera alguns artigos da Lei Orgânica do Conselho Constitucional.
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