Você está na página 1de 3

 

O Pão Nosso

Herbert de Souza

Com a força de quem incomoda pela simplicidade de seus argumentos, o sociólogo mineiro desmonta qualquer
desculpa para não encarar a fome no Brasil. Tratamos 32 milhões de pobres –   uma Argentina inteira –   como
estrangeiros, inimigos

Há quase quarenta anos, eu começava minha trajetória de esquerda cristã, para depois percorrer todos os caminhos e
desvios do marxismo, do leninismo e do maoismo, quando publiquei meu primeiro artigo, na
revista francesa Témoignage Cherétien. Chamei-o “Capitalismo e Miséria”. Era 1956 e
naquele tempo a luta contra o capitalismo inspirava-se numa ética humanista, que não O mundo
aceitava a miséria. Ser de esquerda era isso. deu muitas
Ao longo dos anos, as razões para lutar contra o capitalismo foram aumentando, a ética foi voltas.
cedendo espaço para a ideologia. Lutar contra a miséria passou a ser um subproduto da luta
pelo socialismo. No futuro o socialismo acabaria com a miséria, ao fim de um período de
Caíram
convivência inevitável. Restava, como forma de ação, denunciar a responsabilidade do barreiras,
capitalismo na produção da miséria. Mas a convivência acabou por gerar um inconformismo
referências,
verbal e um conformismo prático.
mitos e
O mundo deu muitas voltas. Caíram barreira, referências, mitos e muros. A História não
coube em teorias. As teorias negaram suas promessas. O capitalismo continuou produzindo
muros 
miséria, mas o socialismo avançou sem conseguir eliminá-la. Os sistemas protegiam seus
sócios e eliminavam os demais. Depois de 100 anos de
socialismo e capitalismo, a miséria no mundo aumentou, a economia transformou-se
A num código de brancos e numa fábrica de exclusão racionalizada. A modernidade
produziu um mundo menor do que a humanidade.
humanidade. Sobram bilhões de pess
pessoas.
oas. Não se
modernidade
previu espaço para elas nos vários projetos internacionais e nacionais. No Brasil essa
produziu um exclusão tem raízes seculares. De um lado, senhores, proprietários, doutores. Do outro,
mundo índios, escravos, trabalhadores, pobres.

menor do
Isso significa produzir riqueza pela produção de pobreza. Sendo um modelo econômico
que a sustentado em vícios sociais, o padrão rural da colônia transferiu-se praticamente intato
humanidade  ao país urbano, com pretensões a ser moderno. O Brasil tem uma indústria com duas
caras  –  e
  e a mesma moeda. Moderna na tecnologia, atrasada nas relações de trabalho.
Sua classe média espreme-se entre a ideologia do senhor e as agruras dos pobres. Teme
o destino de um e respeita o poder do outro.

A industrialização brasileira não encurtou o abismo entre pobres e ricos. Os Senhores viraram empresários, mas
continuaram a viver em novas versões da casa-grande. Os escravos viraram trabalhadores, mas continuaram morando
na senzala, em dormitórios feitos para isolar o pobre depois do serviço.

Nos anos 90, aprendemos que, em sessenta anos de industrialização, o Brasil havia gerado três categorias sociais  –  
ricos pobres e indigentes. É como se elas habitassem países diferentes. Existe a minoria rica, branca, sofisticada,
formando uma sociedade mais ou menos comparável à do Canadá. Tem a maioria pobre, negra, silenciosa e resignada,
do tamanho do México. E há 32 milhões de indigentes, uma Argentina dentro do Brasil. Esses 32 milhões são brasileiros
que o Brasil trata como estrangeiros, uma população indesejada, descurada, quase
inimiga.
Como projetar
Este Brasil onde aparentemente não cabem os 150 milhões de habitantes das
o futuro no
estatísticas demográficas é assim por descaso. Com a produção agrícola atual, quadro trágico
poderia alimentar 300 milhões de pessoas. Nada, em sua economia, impede que
sejam gerados agora 9 milhões de empregos de emergência. Se a posse da terra fosse do Brasil de
democratizada de maneira rápida e decidida, abriria lugar para 12 milhões de
hoje? 
 

famílias. Se coisas assim acontecessem, 32 milhões de pessoas que estão passando fome teria comida, pelo menos
comida.

Ser de esquerda é ter pressa de chegar ao futuro. Mas como projetar o futuro no quadro trágico do Brasil de hoje? Os
indigentes indicam a rota de um grande naufrágio social, de uma farsa econômica e de um desastre político. Fome,
miséria e AIDS vão disputar as manchetes da imprensa internacional sobre o país. Fome e miséria porque as pro
produzimos
duzimos
há muito tempo. AIDS porque tem, aqui, a mesma cara da miséria. A minoria rica trata-se, os pobres simplesmente
morrem.

Projetar o futuro é temer ou desejar. Prever também pode ser identificar os desejos e Mudar o
interesses existentes agora, é reconhecer a possibilidade de que os melhores desejos
sejam os desejos dominantes e com isso se transformem na realidade. Pensar o futuro futuro
atrai, desafia e engana. E mudar o futuro depende de mudar a maneira como se pensa o depende de
presente. O futuro começa hoje. Num passado recente, quando o sindicalismo parecia
inteiramente domado pela repressão militar, as greves no ABC paulista desfiaram a
como se
imaginação dos sociólogos e a força policial do governo. No passado ainda mais recente, pensa o
as campanhas da anistia, das eleições diretas, da Constituinte, do impeachment de Collor
presente 
 –  todas
 todas elas mostraram o poder que tem o desejo de mudar a realidade.

Não faltam argumentos para quem imagina o futuro como o presente piorado. Se o
modelo Casa Grande & Senzala prevalecer, não haverá outro recurso senão viver numa prisão de ruas fechadas por
seguranças privadas, em bunkers residenciais. Nesse caso, o futuro brasileiro terá, pelo cinismo e pela indiferença, a
sociedade que a África do Sul fez no passado pelo racismo e pela violência.

E o outro lado? E se o futuro depender da explosão social dos oprimidos? Aí é provável que o sistema atual também
prevaleça. Não é à toa que ele tem antecedentes históricos. Sempre que preciso, a política torturou e matou, as Forças

Armadas
horror reprimiram
à injustiça. sublevações
Deus alegrava a contra
vida dosa ricos.
ordemO da classe
diabo dominante,
metia medo nosaspobres.
IgrejasOensinaram resignação
brasileiro cordial, em vez
produto de
desse
método, é aquele cidadão que ganha salário mínimo e brinca o Carnaval com alegria de fazer inveja ao turista. O Rio de
Janeiro não é Los Angeles.

Pode haver revolta. Mas é improvável que o caminho da mudança no Brasil seja aberto
com explosões sociais. A energia que pode ser usada agora para fazer um futuro diferente Deus
está, aparentemente, em outras fontes de transformação. Porque há mudança
m udança no Brasil. Ela
não corre, mas anda. Não corre, mas ocorre.
alegrava a
vida dos
Seus sinais estão, por exemplo, no melhoramento das cidades em plena crise da
administração federal, no basta à corrupção e no movimento pela ética na política, na ricos. O
emergência de movimentos em favor da mulher, da criança ou da ecologia, no antirracismo. diabo metia
São antídotos contra a cultura autoritária que sempre ditou a receita do desastre social. Eles
estão na confluência de duas tendências. Parte da elite não quer viver na apartheid sul- medo nos
africana. E cada vez mais pobres querem sua cota de cidadania. Essa mar
maréé vai empurrando a pobres 
democracia da sociedade para o Estado, de baixo para cima, dos movimentos sociais para
os partidos e instituições políticas.

É nela que eu hoje acredito. E, por causa dela, encontro-me outra vez com a velha questão
que me levou à militância política: o que fazer com a miséria? Aceitá-la a título provisório? Não
No dá: aquilo que produz miséria simplesmente não pode ser aceito. A condenação ética da miséria
combate é um ponto de partida. Para mim, o que era a luta contra o capitalismo para atacar a miséria
passou a ser a luta contra a miséria para conquistar a democracia.
à fome
há o É preciso começar pela miséria. Essa é a energia da mudança que move a Ação da Cidadania
contra a Miséria e pela Vida, revelada na adesão de pessoas de todas as classes sociais, idades,
germe da tendências políticas e religiosas, parlamentares e prefeitos, empresas públicas e privadas,
mudança artistas e meios de comunicação e, sobretudo, na adesão de jovens à tarefa de recolher e

  distribuir alimento. Essa juventude está descobrindo o gosto de romper o círculo de giz da
do país solidão e abrir o espaço fecundo da solidariedade. Esse mesmo gosto que há quarenta anos se
reservava à militância.

No combate à fome há o germe da mudança do país. Começa por rejeitar o que era tido
t ido como inevitável. Todos podem
e devem comer trabalhar e obter uma renda digna, ter escola, saúde, saneamento básico, educação, acesso à cultura.
 

Ninguém deve viver na miséria. Todos têm direito à vida digna, à cidadania. A sociedade existe para isso. Ou, então, ela
simplesmente não presta para nada. O Estado só tem sentido se é um instrumento dessas garantias. A política, os
partidos, as instituições, as leis só servem para isso. Fora disso, só existe a presença do passado no presente, projetando
no futuro o fracasso de mais uma geração.

Quando eu era cristão e queria lutar contra a miséria, meu dia começava com um Padre-Nosso. Tinha fome de
divindade. Hoje, ainda luto contra a miséria, mas
m as meu dia começa com um P
Pão
ão Nosso. Tenho fome de humanidade.

Você também pode gostar