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Copyright © 2019 by Paulo Alexandre Macedo de Faria

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Aline Macedo

Revisão
Aline Macedo

Fotos
Paulo Alexandre Macedo de Faria

Capa
Aline Macedo sobre foto

CIP - Catalogação na Publicação

FARIA, Paulo Alexandre Macedo de.


Na casa dos espelhos: gentrificação, segregação e o poder
do dinheiro na Vila Olímpia/ Paulo Alexandre Macedo de Faria
– 2019.
264 f. il.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) apresentado a
Faculdade Paulus de Comunicação – FAPCOM, São Paulo, 2019.
Área de Concentração: Livro-Reportagem.
Orientação: Dra. Lilian Crepaldi de Oliveira Ayala.
1. Vila Olímpia. 2. Gentrificação. 3. Ensaios. 4.Segregação.
5. Jornalismo Literário. I. Faria, Paulo. II.Título.

2019
Borboleta Azul Produções
Dedico este livro às memórias de Chico Science
e Sabotage, que foram mais que minha trilha
sonora durante esse período, e funcionaram como
verdadeiros guias nessa jornada.
“A luz da alma não apaga...”
“A cidade se encontra prostituída por
aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares, a
cidade e sua fama vão além dos mares
No meio da esperteza internacional, a
cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos, sem-
pre uns com mais e outros com menos
A cidade não para, a cidade só cresce, o
de cima sobe e o de baixo desce”.

Chico Science
SUMÁRIO

PREFÁCIO.........................................11 GENTRIFICAÇÃO
GENTRIFICÇÃO................................107
INTRODUÇÃO......................................19 A CASA DOS ESPELHOS......................123
PRÓLOGO..........................................25 UM COLISEU NA CAPITAL...................163
APENAS SIGA O DINHEIRO.....................31 PARQUE DO POVO?............................193
O GRANDE ENCONTRO...........................43 MEDO E DELÍRIO NA VILA OLÍMPIA........225
DA LAMA AO CAOS..............................59 AGRADECIMENTOS............................243

8 9
PREFÁCIO

11
A gramática moral da Vila Olímpia

Quando recebi e aceitei o convite para es-


crever este prefácio, tinha uma breve noção
desse desafio.
Ao começar a leitura de alguns dos capítu-
los, fora de ordem, ficou claro quão desafiador
seria prefaciar um livro sobre uma temática tão
complexa, tão urgente e angustiante.
Na verdade, arrisco dizer que não há uma
temática central, não de uma forma conven-
cional. O assunto-chave não está explicitado
em palavras ou passagens claras, definidas e
apresentadas em um ensaio e outro. O livro Na
Casa dos Espelhos – gentrificação, segregação e
o poder do dinheiro na Vila Olímpia não aborda
uma temática, mas sim a raiz de todas as causas
que se conjugam em algumas das formas mais
brutais de violação dos direitos humanos.
E a violação de direitos humanos e civis não
precisa vir seguida de adjetivos. Mas é preciso
acentuar que o que a torna brutal é a normali-
dade com a qual tem sido tratada e perpetuada.
É isso o que acontece com a questão da

13
moradia, um direito humano universal que, A passagem em que o autor cita o contraste
quando violado, faz os outros direitos seguirem entre a quantidade de pontos de ônibus e de
rumo ao desfiladeiro da normalidade, da invisi- helipontos faz travar na garganta um nó descon-
bilidade e do silêncio midiático e político. certante e constrangedor. Nos faz questionar
Paulo de Faria, ao observar e sentir a Vila como foi que o bairro se tornou a materializa-
Olímpia, conseguiu imprimir nos nove ensaios ção dos equívocos de um modelo de desenvol-
deste livro a angústia que a temática da ini- vimento econômico descolado do desenvolvi-
quidade social sempre provoca. Mas ele o faz mento social, do bem-estar, da equidade social
a partir de uma outra perspectiva, não mais a e do princípio da dignidade da pessoa humana.
dos barracos, do esgoto a céu aberto, das ruas Contar a história dos moradores mais an-
de barro, dos morros, das crianças e dos jovens tigos, resgatando suas memórias, além dos do-
sem lazer, acesso à educação e à saúde. cumentos consultados para falar de décadas e
O autor faz o caminho contrário e isso con- séculos passados da cidade, foi uma escolha
fere ao livro um caráter inovador. Quem conhe- certeira do autor para dizer que nenhuma tra-
ce a capital paulista, quem já esteve em diversos gédia social é súbita.
bairros da cidade sabe que a Vila Olímpia não Vila Olímpia não é um fenômeno súbito. Os
parece ser parte do Brasil, uma expressão do prédios espelhados, com um dos metros qua-
próprio Paulo de Faria. Mas é exatamente o Bra- drados mais caros da capital, não foram levan-
sil que a Vila Olímpia representa com maestria. tados de dia para o dia. Tudo foi orquestrado,
Vila Olímpia é o retrato do país que lidera também, com a conivência do poder público
alguns dos piores indicadores sociais, como os que, por cumplicidade, omissão ou apatia, per-
divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geogra- mitiu a especulação imobiliária, a gentrificação
fia e Estatística, colhidos com a Pesquisa Nacio- e a violação do direito de habitar, inclusive na
nal por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Vila Olímpia.
Contínua) Rendimento de Todas as Fontes Ler o livro fora da ordem dos capítulos, o
2018: a renda do 1% mais rico chega a ser 34 que sugiro, contrariando uma sugestão do au-
vezes maior do que a dos 50% mais pobres. tor, permite a surpresa de sentir em cada ensaio
Neste livro, a Vila Olímpia se apresenta que a existência da Vila Olímpia garante, por
como a cartografia da desigualdade, da con- outro lado, a existência, a resistência e a resili-
centração de renda, da riqueza vazia que igno- ência de quem luta por moradia digna.
ra e tenta silenciar seu entorno. Se o poder público municipal garantir a

14 15
permanência no local das duzentas famílias da quando desrespeitadas, geram as lutas sociais.
comunidade do Coliseu, a ser transformado em É a luta da líder da comunidade do Coli-
conjunto habitacional, as contradições da Vila seu, Rosana dos Santos, retratada neste livro,
Olímpia continuarão a provocar um nó na gar- que vai permitir ao Carlos Robson Pereira e a
ganta, mas lembraremos de que toda forma de outros moradores de rua o reconhecimento da
resistência, como dessas 200 famílias, é a prova sua existência e pertencimento à cidade, ainda
de que a luta por reconhecimento é capaz de se que seja nesse espaço vazio dos helicópteros,
estabelecer e se impor à altura da violação que dos prédios espelhados, dos padrões culturais,
se pretende combater. econômicos e sociais e do caos do trânsito.
O livro do Paulo de Faria nos faz lembrar Escrito com sensibilidade, o livro é uma de-
da obra clássica do diretor da terceira geração monstração de respeito à dignidade da pessoa
da Escola de Frankfurt, Axel Honneth, Luta por humana, como no trecho sobre os jovens fre-
Reconhecimento – a gramática moral dos con- quentadores do Parque do Povo. Jogar futebol
flitos sociais, de 2003, como nessa passagem: naquela quadra é seguir lutando por pertenci-
“...quanto mais os movimentos sociais conse- mento e reconhecimento.
guem chamar a atenção da esfera pública para Abordar a Vila Olímpia em um livro de en-
a importância negligenciada das proprieda- saios é ter a coragem de entrar no coração do
des e das capacidades representadas por eles bairro para dizer que quando pensarmos em
de modo coletivo, tanto mais existe para eles desistir de lutar, devemos nos lembrar desses
a possibilidade de elevar na sociedade o valor jovens e das 200 famílias que seguem resistindo
social ou, mais precisamente, a reputação de e acreditando em justiça territorial.
seus membros”.
O livro não fala de movimentos sociais ou
da iniquidade social em uma linha reta. Sua Cilene Victor
narrativa, experimentada no gênero do ensaio, Jornalista, professora da FAPCOM e da UMESP
denuncia o nosso silêncio diante da iniquidade
social, mas também nos faz lembrar de que é
dela que emerge a força dos movimentos so-
ciais, tão bem representados na luta coletiva.
Para Honneth, o amor, o direito e a solidarie-
dade são as três formas de reconhecimento que,

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INTRODUÇÃO

19
Vila Olímpia é um nome que causa curio-
sidade e impressiona muitos paulistanos. O
chamado “Vale do Silício brasileiro” entrou no
mapa do dinheiro em São Paulo especialmente
a partir dos anos 1990 e desde então desponta
como um dos metros quadrados mais valoriza-
dos e caros da metrópole paulistana.
Andar em determinadas partes do bairro
faz sentir-se em outro país. As centenas de lu-
xuosas torres residenciais e, especialmente, co-
merciais fazem parte de um cenário caracterís-
tico de toda a extensão da marginal Pinheiros.
Não é à toa que chegando de trem pela Linha
Esmeralda, os edifícios da Vila Olímpia ganham
destaque maior entre tantos e tantos prédios
que hoje estão à beira do rio.
Este livro parte da ideia de um deslumbra-
mento seguido de estranhamento. A um primei-
ro olhar, tudo parece maravilhoso e lindo, mas ao
mesmo tempo artificial demais. E foi na tentativa
de decifrar o bairro que este livro foi idealizado.
A obra constitui-se de nove ensaios de
jornalismo literário, uns pequeninos, outros
maiores, que buscam trazer de volta a histó-
ria do local e sua constituição, à primeira vista

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incomum. Depois, ao mergulhar mais a fundo do conceito de “imagem retórica da gentrifica-
percebe-se que a Vila Olímpia é um recorte ção”, defendido por Neil Smith e aplicado ao
modelo do processo de gentrificação e desen- exemplo das chamativas São Paulo Corporate
volvimento urbano, que encontrou nas antigas Towers, o novo cartão postal da Vila Olímpia.
várzeas da Vila Olímpia, o terreno perfeito para Vale observar que o ensaio chama-se “A casa
se expandir. dos espelhos”, enquanto a obra intitula-se “Na
Todos os ensaios aqui são independentes e casa dos espelhos”. Um coliseu na capital versa
podem ser lidos de maneira “pinçada”, pois têm a respeito da comunidade do Coliseu, uma fa-
começo, meio e fim. Ao mesmo tempo, a com- vela bem no coração do bairro, entre a estação
pilação foi organizada de tal forma a dar sentido de trem da Vila Olímpia e o templo do luxo JK
conforme a leitura for realizada de modo linear. Iguatemi. A chamada “favela de R$ 50 milhões”
Recomendo que seja lido na ordem de monta- conta com uma história marcada por resistência
gem, pois há uma construção de pensamento “entre as cobras”. Em Parque do Povo? é conta-
e os exemplos usados servirão para completar da a história do antigo local com muitos campos
outros pontos citados em ensaios anteriores, de futebol de várzea, um reduto popular, que se
embora sem menção direta. transformou em um parque elitista e segregador.
O Prólogo serve para situar rapidamente o Por fim, em Medo e delírio na Vila Olímpia,
leitor no contexto do bairro e em algumas pe- faço um relato mais pessoal das impressões,
culiaridades que falaremos. Em seguida, Ape- lembranças e fatos do bairro, usando como
nas siga o dinheiro busca explicar a movimenta- pano de fundo uma ida ao local em um do-
ção do capital em São Paulo, seu deslocamento mingo chuvoso, com direito a uma passagem
do centro histórico da cidade até a marginal do por um antigo clube de bocha da região. Neste
rio Pinheiros. O grande encontro mostra como eu me rendo e uso como referência o inspira-
a Vila Olímpia foi “vítima” do crescimento ace- dor “Medo e delírio em Las Vegas”, de Hunter
lerado dos bairros ao redor e como ela foi im- Thompson, que foi responsável por me dar
pactada com toda a força. Já Da lama ao caos novo fôlego dentro do jornalismo.
é a história em particular da Vila Olímpia. Em O livro não é um manifesto conservador
seguida, Gentrificação trata sobre o conceito e nem um clamor contra as mudanças que o
que dá nome ao capítulo, com explicações e tempo, a economia e a sociedade impõem. É,
exemplos do bairro em estudo. antes de tudo, um relato sobre como um bairro
Adiante, A casa dos espelhos faz a relação pode passar de uma região considerada terrí-

22 23
PRÓLOGO
vel a um dos locais com maior concentração
de renda e luxo. Não é um discurso saudosista,
é sobre como os direitos humanos muitas vezes
são jogados no lixo e as memórias são deixadas
de lado quando o poder do dinheiro intervém
para mudar um local.
Mariana Fix, uma das minhas bases para
esse projeto, resume muito bem a situação ao
lembrar que “tratores não pedem passagem”
quando o assunto é crescimento da cidade. O
livro é um relato de como espaços públicos per-
deram lugar para os muros, cercas e câmeras
da iniciativa privada.
A obra a seguir foi escrita tendo como nor-
te um jornalismo de vivência. No qual o fator
humano não é subtraído do jornalista em nome
de um observacionismo frio ou do mito da im-
parcialidade. Como consequência, tentei me
afastar do academicismo, que cria barreiras tão
elitistas quanto as que serão relatadas no livro.
As ruas falam. Por vezes sussurram, por ve-
zes berram, mas elas se comunicam. Estudar a
cidade é estudar toda a nossa realidade. E pro-
curar saber sobre a história de um local nos faz
entender melhor a forma como o mundo gira e
acontece em nossos dias.

24 25
Os toques agudos do órgão Vox Continental
manejados por Ray Manzarek deram o tom do
que seria o próximo ano. A escala descendente
usada pelo antigo músico do The Doors, depois
acompanhada pela bateria de Densmore, pre-
param o caminho para a frase que resumiria os
meses que estavam por vir: “Dias estranhos nos
encontraram”.
Enquanto a música acontecia nos meus ou-
vidos, eu, sentado no banco atrás das quadras
do Parque do Povo, observava o horizonte com
certa angústia. Estava indeciso se arriscaria en-
trar em um projeto que nunca tinha me apro-
fundado ou se faria algo mais cômodo, sobre
um assunto que já conhecesse melhor. Minha
dúvida estava condicionada a um grupo de me-
ninos que se reunia no local para jogar futebol
no parque, às tardes das quintas-feiras.
Ao meu redor, pessoas correndo, pratican-
do cooper ou jogging. Usavam camisetas com
tecido especial e respiros planejados para que
quem as vestisse sofresse o menos possível. Ou-
tros passeavam com seus belos cachorros... Um
golden retriever aqui, outro labrador acolá; um
fila com uma focinheira também entretinha seu

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dono. Pendurados nos braços, iPods e iPhones do Parque do Povo em que de fato o povo to-
tocavam algum tipo de música estimulante para mava conta. Diferente das roupas uniformizadas
que aquelas pessoas pudessem se sentir motiva- usadas pelas pessoas que corriam pelo parque,
das a continuar correndo, sempre com confor- os meninos que jogavam bola usavam todo tipo
táveis calçados específicos para corrida. Tudo de roupa, desde camisetas de times de futebol,
isso à sombra projetada dos diversos edifícios grande parte delas falsificadas, passando por
residenciais de alto padrão que circundam a camisas polo, até calças jeans ou de moletom.
área verde. Do outro lado, porém, emergia algo Alguns jogavam de chuteira, outros de bota, ou-
como um segundo sol, refletido nos imensos tros de tênis casuais e outro descalços, mesmo
prédios espelhados que começam após o cru- com o intenso calor que a quadra atraía.
zamento com a JK e são parte da característica O futebol ali sobrevive como uma reen-
fundamental dos novos tempos da Vila Olímpia. carnação do antigo espírito varzeano que, du-
O dia estava quente e eu estava quase de- rante décadas, tomou conta do lugar onde é
cidido a sair dali, não esperar mais ninguém o Parque do Povo. Antigos campos de futebol
e mudar de ideia de projeto. Porém, foi nesse existiam ali e pessoas vinham de todos os lados
momento, exatamente às 15h15, enquanto Jim de São Paulo para jogar ou assistir aos times de
Morrison falava sobre seguir em frente ou en- várzea que existiam ali.
contrar uma nova cidade, que eles apareceram. Hoje, assim como grande parte da Vila
A literalmente uma quadra poliesportiva Olímpia, as coisas mudaram. A várzea do rio
de distância, pelo menos 10 garotos surgiram Pinheiros foi substituída pelo concreto, pelos
no horizonte. Com seus chinelos ou chuteiras grandes empreendimentos com seus prédios
surradas vinham descendo as escadas que le- espelhados. O dinheiro chegou à várzea do rio
vavam ao templo sagrado dos amantes do fute- e levou embora o futebol de várzea.
bol. Chegavam rápido, com pressa, e um deles “Por ali tudo mudou, mas eu não posso
trazia consigo uma bola debaixo do braço. moscar”. Foi assim que Sabotage se referiu ao
Um leve sorriso apareceu no meu rosto. bairro do Brooklin, afetado por muitos dos mes-
Arthur, Alemão, Zé, Chape e especialmen- mos processos que atingiram a Vila Olímpia. Da
te Juan vinham já mirando a quadra que seria mesma forma que o rapper percebia o cresci-
usada para o ritual do futebol. mento
mentoluxuoso
luxuosononoentorno
entorno dada
favela do do
favela Canão, na
Jardim
Aquele ritual despretensioso de quinta-feira Edith,Avenida
então na então Avenida
Águas Águas há
Espraiadas, Espraiadas, há
muito o que
reunia todo o tipo de gente. Era a única parte muito o que
perceber perceber
na recente na recente
elitização da Vilaelitização
Olímpia. da

28 29
Vila Olímpia.

APENAS SIGA O
É inquietante andar pelo bairro. As ruas te
desafiam a ouvir suas histórias e perceber que ali
está um padrão para entender as consequências

DINHEIRO...
da chegada do capital a um determinado lugar.
Sabendo ouvir atentamente, ficará nítido o quão
desumanizante pode ser a epopeia da ambição
humana pelo poder que vem do dinheiro.
O convite ao leitor é simples: apenas siga o
dinheiro...

30
31
“Este é o próximo século
No qual os Universais estão à solta
Você pode encontra-los em qualquer lugar
Sim, o futuro foi vendido”.

Damon Albarn

33
em que tudo é governado e regido pelo dinhei-
ro, basta segui-lo, ou tentar segui-lo, para en-
tender como acontecem os processos e quem
está por detrás de grandes eventos e mudanças
na sociedade.
Saindo da terra do Tio Sam e vindo para
São Paulo, podemos falar que a capital paulista
Em 9 de agosto de 1964, os Estados Unidos é uma cidade, digamos, simbólica. Com a devi-
eram impactados com a notícia de que o então da observação das particularidades do dia a dia
presidente Richard Nixon tinha renunciado ao começa a se perceber algumas coisas que po-
cargo máximo do país. Após investigações, que deriam tranquilamente passar por “coincidên-
partiram de dois jornalistas desconfiados com cias”, mas que, na verdade, mostram um meio
um caso de pouca repercussão, ficou provado de pensar e se construir a cidade.
que o então detentor do poder estadunidense O espaço urbano “é socialmente produ-
tinha coordenado um esquema de grampos zido, ou seja, não é dado pela natureza, mas
nos telefones dos rivais na urna. O objetivo era produto produzido pelo trabalho humano”.
conseguir informações confidenciais para fazer Essa explicação é chamada, pelo urbanista
chantagem política. Os dois repórteres do Wa- Flávio Villaça, como “o maior avanço ocorri-
shington Post, Carl Bernstein e Bob Woodward do no campo da ciência da geografia em todos
não se limitaram a versão oficial passada, de os tempos”. Pensar que nada na cidade hoje é
que tinha sido apenas um assalto à sede do par- natural – nem a própria natureza –, mas tudo
tido concorrente. Os jornalistas foram atrás a é concebido na mente humana e transportado
fim de entender o quebra-cabeça que se apre- para a realidade, é um ponto de partida im-
sentava a eles e é nesse contexto que aparece portante para a compreensão de todo esse tra-
um dos mais misteriosos personagens do jor- balho. Muito mais que isso: ele é fundamental
nalismo, o Garganta Profunda, um informante para entender como acontece a vida no caos
anônimo de dentro do FBI, que guiou a caça paulistano.
de Woodward e Bernstein. “Apenas siga o di- Caos esse que começou com a chegada
nheiro” foi o conselho supostamente dado pelo das indústrias a São Paulo. Foi a partir do cresci-
informante e tornou-se uma espécie de mantra mento da industrialização que a cidade começa
para o jornalismo investigativo. Em um mundo a se tornar relevante dentro do contexto nacio-

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nal. As antigas estruturas do plantio e comércio
do café foram gradativamente substituídas pe-
los grandes prédios industriais, especialmente a
partir de 1840. Porém, a cidade não começou
com a industrialização, as elites já faziam di-
O CENTRO ORIGINAL
nheiro e movimentavam a economia por meio São Paulo foi fundada em 1554 e até a me-
da cafeicultura. tade do século XIX, era uma cidade sem grande
A história das elites em São Paulo é a his- estrutura e população. O censo de 1872 aponta
tória dos grandes investimentos onde quer que que a capital paulista tinha apenas cerca de 30
elas estejam. Conforme essa parcela da popu- mil habitantes. A partir desse momento, o mu-
lação se deslocava na cidade, os investimen- nicípio começa a crescer com mais intensidade,
tos em infraestrutura, novas oportunidades de pela importância de rota comercial entre o inte-
emprego, aumento da qualidade de vida, entre rior do estado e o porto de Santos. Além disso,
outras coisas, acompanhavam seus senhores. o plantio de café ainda era a principal fonte de
Podemos pegar para explicar o movimen- emprego e renda.
to do capital (dinheiro) em São Paulo usando Nos primeiros anos do século XX, São Pau-
como guia um elemento conhecido para quem lo contava com cerca de 240 mil habitantes,
vive e trabalha na cidade: a linha 4 amarela do conforme indica o censo de 1900. Vinte anos
metrô, que é a primeira parceria público-priva- depois, quando a cafeicultura começa a per-
da do país para o transporte sob o chão e foi der força e a industrialização já se faz presente
inaugurada em 2010. Vamos usar como ilustra- de maneira enfática, a capital paulista já tem
ção para entender como a via subterrânea mais 580 mil habitantes. A cidade começa a crescer,
moderna do estado segue o traçado do movi- mas, nesse início, a circulação de dinheiro fica-
mento do dinheiro na metrópole paulista. va mais restrita ao centro histórico da cidade.
A grosso modo, a linha 4 amarela sai do O centro, que hoje é chamado de histórico, era
centro da cidade, passa pelo bairro Higienópolis, o meio geográfico dessa então pequena cida-
sobe até a região da Av. Paulista, começa a descer de e era demarcado pelo chamado Triângulo
passando pelos Jardins e tem suas paradas mais Central, que compreendia as ruas Direita, XV
importantes na Avenida Faria Lima e no Rio Pi- de Novembro e São Bento. De acordo com o
nheiros. Esse é o caminho e o movimento básico falecido historiador Nicolau Sevcenko, essas
do dinheiro na maior cidade da América Latina.

36 37
três ruas formavam o “núcleo articulador da comportava as mansões das elites cafeeiras de
vida da cidade” e ali estavam concentradas as São Paulo, e começou a chamar a atenção de
principais fontes de renda e emprego, especial- empresários. Por isso, com a queda da impor-
mente nas áreas financeiras e de comércio. tância do café para a economia paulista, muitas
Por isso, até hoje, essa região da cidade os- dessas famílias vendem seus terrenos e casas
tenta prédios altos e uma urbanização de con- para que comece a se construir um novo cen-
creto, pois a verticalização sempre foi vendida tro financeiro da cidade.
como o “futuro” e como a “modernidade”. Por E aqui vale uma explicação muito impor-
mais que hoje estejam malcuidados, os prédios, tante. Quando falamos em “centro”, não nos
há muito tempo atrás, representavam o poder referimos especificamente ao centro geográfico
econômico do local. Edifícios que hoje são ab- da cidade. Nas palavras da urbanista Mariana
solutamente populares, ou estão abandonados Fix, “centralidade, que é, em verdade, não um
ou ocupados, já foram residência de muita gen- fato, mas um processo social, uma imposição
te rica que tinha seus negócios pela região. espacial de poder econômico e político”. Ou
Aos poucos, o Triângulo Central começou seja, o que a autora quer nos dizer é que o cen-
a ter companhia devido ao crescimento da ci- tro de uma cidade é visto como o lugar onde
dade. A partir desse ponto, o centro começa existe a maior movimentação de dinheiro. A
a ficar maior e mais importante, aí aparecem expressão “imposição espacial” é muito válida,
as avenidas São João e Ipiranga, como vias pois mostra a forma que o poder do dinheiro
importantes, e várias outras. O sentido aqui é atua na criação de novos centros.
claro: conforme a cidade prosperava, mais ela Com o crescimento da Avenida Paulista,
crescia. Por isso, ela precisava se expandir. não demorou para a região ficar conhecida
como “o novo centro” de São Paulo. Pois o que
mais importava em questão de quantidade de
dinheiro e de negócios “relevantes” para o Bra-
SOBE O MORRO... sil e para o mundo estava ali.
Muitas empresas deixaram o centro históri-
É somente a partir da década de 1960 que co da capital e começaram a se mudar para o
a Avenida Paulista começa a ganhar impor- “novo centro”, o qual tinha uma estrutura ur-
tância como lugar de negócios. A via localiza- bana e, principalmente, edifícios mais moder-
da em um dos pontos mais altos de São Paulo nos, que atendiam melhor às necessidades das

38 39
empresas que começavam a enxergar o mer- mentos nacionais e internacionais para que
cado internacional como algo importante para toda aquela área alagadiça se tornasse um local
ganhar destaque. propício para moradia e negócios. Centros em-
Em pouco tempo, a Avenida Paulista torna- presariais começaram a surgir ali, novas e im-
-se não apenas o centro financeiro de São Pau- portantes vias como a Avenida Brigadeiro Faria
lo, mas também seu cartão postal. A cada ano Lima e a Engenheiro Luís Carlos Berrini, dentre
que passava, novos prédios eram construídos outras, aparecem no horizonte de quem queria
sobre antigas residências dos barões do café. novos lugares para levar sua empresa.
Porém, a epopeia Paulista não durou por Por isso, na nossa ideia da linha 4, deixa-
tantos anos como se imaginaria. mos a estação Paulista, passamos pela Oscar
Freire e Jardins, locais já frequentados pelas
elites, e chegamos à região da Avenida Faria
Lima e da Marginal Pinheiros. Com o traçado
DESCE O MORRO… praticamente completo fica claro o movimen-
to do capital em São Paulo: sempre no sentido
Saímos do centro histórico de São Paulo na sudoeste. Não para a zona leste, ou para a nor-
linha amarela. Passamos pela Luz, pela Repú- te, e nem mesmo para a sul. Mas, é nesse meio
blica, começamos a subir o morro e passamos entre o Rio Pinheiros e a Avenida Paulista que
pelo Higienópolis, um dos exemplos mais sórdi- o capital financeiro de São Paulo ganha força e
dos de como a elite paulistana sempre segregou tenta transformar a antiga cidade cafeeira em
e fugiu da presença dos pobres. Ela criou uma um tipo de nova cidade global.
pólis (cidade) higienista somente para si, na Seguindo o dinheiro é possível entender
qual a “gente diferenciada” não era bem-vinda. como a região desvalorizada da várzea do Rio Pi-
Passando pelo Mackenzie e Higienópolis, che- nheiros transformou-se no “novo centro” da me-
gamos ao “novo centro” da Avenida Paulista. trópole. Muitos dos entusiastas desse movimento
Porém, percebeu-se que os preços dos ter- de expansão afirmaram que, conforme crescia os
renos na luxuosa avenida eram muito altos para investimentos na região da Marginal Pinheiros,
construir novos prédios e novos endereços para “uma nova cidade” crescia dentro de São Paulo.
as empresas. A Paulista permaneceu por mais alguns anos
Ao mesmo tempo, porém, a região do rio como o principal centro financeiro da cidade, e
Pinheiros vinha recebendo altíssimos investi- a tendência que começava a ser apontada na

40 41
O GRANDE
década de 1970 se deu efetiva principalmen-
te a partir dos anos 1990, quando a Marginal
Pinheiros ultrapassou a Av. Paulista em metros

ENCONTRO
quadrados de estoque útil de escritórios. A par-
tir de então vieram diversas obras com parceria
público-privada que trouxeram ainda mais in-
vestimentos para essa região sudoeste de São
Paulo, que hoje é absoluta e soberana como o
principal polo de negócios talvez do Brasil.
A história da movimentação do dinheiro é a
história de como os bairros “melhoram” confor-
me chegam novos investimentos. Mas, também,
é a história de como bairros ficam “decadentes”
quando o investimento é tirado de um local. O
exemplo para isso é simples, basta uma rápida
comparação entre os prédios novos e a qualida-
de das vias, além da infraestrutura em bairros
do quadrante sudoeste com o centro histórico.
O centro não morreu, contrariando o que
dizem algumas pessoas. Ele está mais vivo do
que nunca, mas sua ocupação hoje é popular,
diferente da época “áurea” da região, que era
recheada de pessoas endinheiradas andando
por entre os então luxuosos edifícios.
A linha amarela do metrô liga essa parte es-
quecida pelas elites ao novo mundo de torres es-
pelhadas, pessoas engravatadas, apressadas, es-
tressadas e de muito dinheiro rolando. Viajar pela
linha quatro é viajar pela história de como São
Paulo se desenvolveu de maneira desigual e com
uma ligação especial entre o Estado e as elites

42 43
“Quem tá de cima não vai olhar pra baixo
Livre de todo mal, não pode nos salvar
As leis não chegam tão alto
Não vão parar o progresso
E nem guardar o passado
A toda sorte de especulações semestrais”

China

45
drão e dinheiro que surgiam pelo entorno.
Quatro bairros ou localidades são determi-
nantes para isso e eles criam dois eixos de movi-
mentação que têm a Vila Olímpia como o meio
disso tudo. Trata-se do eixo de negócios Faria
Lima – Berrini e do eixo residencial/cultural Mo-
rumbi – Ibirapuera.
Um dos grandes erros de qualquer geração
que não vê algo ser construído ao longo dos anos
é a tendência a achar que tudo que existe sem-
pre existiu daquela forma. Uma das coisas que
o estudo de temas relacionados ao urbanismo FARIA LIMA – BERRINI
traz é a necessidade de se situar na história para
A Avenida Brigadeiro Faria Lima é, hoje, o
entender, pelo menos parte, dos processos que
principal centro financeiro de São Paulo. Con-
conduziram uma região a ser como ela é hoje.
sequentemente, um dos mais importantes do
No caso da Vila Olímpia não é diferente.
país. A construção da via começou em 1968 e
Muitas pessoas que vão pela primeira vez ao
a entrega da via duplicada aconteceu em 1970.
bairro – como foi o meu caso –, impressionam-
Durante esse período de ditadura militar no
-se com a quantidade de prédios modernos e
Brasil, havia um esforço para se vender uma
de pessoas engomadinhas rumo aos seus luxu-
imagem positiva e próspera financeiramente
osos escritórios. Mas aquela parcela mínima de
para o mundo, com a ideia clara de combater
São Paulo tornou-se o que é hoje por diversos
o “fantasma do comunismo” que supostamente
motivos. Aqui vale olhar para alguns deles.
rondava o Palácio do Planalto com João Gou-
A Vila Olímpia é, literalmente, fruto de um
lart, o famoso Jango.
grande encontro de quatro pontos em desen-
O traçado original da Faria Lima ligava o
volvimento da cidade de São Paulo. Ela foi a ví-
Largo da Batata, até então um centro popular, à
tima inevitável de um processo de crescimento
Avenida Cidade Jardim. Porém, no plano apro-
que a observou, cercou e, por fim, deu o bote.
vado em 1968 já se previa a extensão da aveni-
Rendidos em uma enorme e rica encruzilhada
da. Fato que só veio ocorrer 25 anos depois de
os moradores da cercania não puderam defen-
concluída a primeira parte. A rua larga e quase
der-se das ondas de asfalto, prédios de alto pa-
completamente reta, situada em um local que

46 47
se desenvolvia, para receber mais investimen- Avenida Hélio Pellegrino.
tos e novas empresas do exterior, começou a Mas lá não é o único ponto que prospera
tornar-se um ponto importante para a cidade. em São Paulo no fim dos anos 1970.
Durante o meio dos anos 1970 e o começo Você, leitor, já ouviu falar na Bratkelândia?
dos anos 1980, grande parte das empresas fi- Quase com certeza sim, mas talvez não com
nanceiras já tinham deixado o centro da cidade esse nome. Bratkelândia é o apelido dado à
e subido até a Avenida Paulista. Com o esgo- Avenida Engenheiro Luis Carlos Berrini. Essa
tamento imobiliário do local, devido a quase denominação vem do arquiteto Carlos Bratke,
todos os terrenos já terem construções, viu-se um dos donos da incorporadora Bratke-Collet.
que seria importante procurar novos polos de Ele e seus outros dois sócios são os principais
expansão. Com isso, o capital desce o longo responsáveis por transformar uma rua “no meio
morro em que se encontra a Paulista e chega do nada” ou “que ligava nada a lugar nenhum”,
à área baixa da cidade: a das várzeas do Rio de acordo com relatos, em uma das mais im-
Pinheiros. Ao chegar por ali encontrara uma portantes vias de negócios de São Paulo.
avenida pronta, esteticamente bonita e social- Até os anos 1970, a região da Berrini era
mente higienizada. Além de tudo, perto das um local bastante popular e desvalorizado, as-
vias expressas da Marginal Pinheiros. sim como a Vila Olímpia. Até 1995, depois da
Ao passar do tempo, várias empresas co- consolidação da avenida como um centro fi-
meçam a deixar a Paulista e instalam-se na ex- nanceiro, havia pelo menos 68 focos de favelas
tensão da “antiga Faria Lima”. A extensão da nas intermediações, especialmente na antiga
via aconteceu em 1995, dentro de uma políti- Avenida Água Espraiada, que hoje se tornou a
ca pública chamada Operações Urbanas, que Avenida Jornalista Roberto Marinho.
nada mais são que a remodelação de um bairro A partir de 1975, a Bratke-Collet come-
para receber investimentos da iniciativa priva- çou a incorporar terrenos baratos na região da
da, que dará “a cara” da região. Berrini para começar a investir em prédios ali.
Essa extensão marcou a verdadeira e literal “Com o crescimento do setor terciário nos anos
entrada da Avenida Faria Lima no bairro da Vila 60 e 70, aumentou muito a demanda por esse
Olímpia. Até então ela só ia até a Avenida Cida- tipo de edifício”, escreveu Carlos Bratke nos
de Jardim. Depois da obra de prolongamento, Cadernos Brasileiros de Arquitetura, em 1985.
ela cortou quase metade da Vila Olímpia para Esse “tipo de edifício” citado por Bratke refe-
se encontrar com a também recém-construída re-se aos chamados “prédios inteligentes”, com

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demandas especiais para comportar escritórios e começava a atrair cada vez mais empresas
de empresas. para seus terrenos. Porém, para abrigar pesso-
Com isso, a Bratke-Collet começou um pro- as dessa nova classe econômica chegando, era
cesso de expansão de suas ideias e formas pela necessário que houvesse bairros residenciais
então deserta avenida. O arquiteto e urbanista, por perto.
Eduardo Nobre aponta que entre 1975 e 1989,
a empresa de Bratke “conferiu certa homoge-
neidade na região, que lhe valeu o apelido de
‘Bratkelândia’”. Nesse período foram construí-
dos 30 prédios pela empresa e 15 estavam em
MORUMBI – IBIRAPUERA
construção até 1990. O desenvolvimento e urbanização de
A estratégia de valorização do local por pontos mais distantes do centro de São Paulo
parte da Bratke-Collet foi a seguinte: construir aconteceram em momentos parecidos. Pode
edifícios em diversos pontos da avenida, com se colocar os anos 1950 como marcantes para
atenção especial para o começo e o fim dela. grande parte da região sudoeste de São Paulo,
O objetivo disso era claro e simples: demarca- que ainda era composta por chácaras e gran-
ção de território para valorização do terreno ao des loteamentos. Era o caso, por exemplo, do
redor. Ou seja, dificilmente alguém se atreveria Morumbi.
a investir na avenida se não tivesse planos de Hoje, o bairro é considerado uma das por-
construir algo de um padrão, no mínimo, equi- ções mais nobres da capital paulista e conta
valente. com uma das médias de renda mais altas da ci-
A avenida ficou conhecida por sediar im- dade com R$13.802 de renda mensal por domi-
portantes empresas estrangeiras. Fato possibilita- cílio. Além disso, o Índice de Desenvolvimento
do especialmente após a construção do Centro Humano (IDH) do bairro é o 13º mais alto entre
Empresarial São Paulo (CENESP), na região do todos os distritos paulistanos. O local é conheci-
Jardim São Luis, perto do Capão Redondo, na do pela grande presença de mansões e prédios
metade dos anos 1970. A chegada desse empre- de alto padrão. Um verdadeiro berço esplêndi-
endimento ajudou a colocar São Paulo e a região do para as elites paulistanas.
sul/sudoeste na mira de grandes companhias. A história do bairro remonta a uma enor-
Dessa forma, a Berrini despontava como me área que começou a ser loteada nos últi-
outro importante centro financeiro da cidade mos anos da década de 1940. Os lotes da região

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eram grandes e isso ajudou a atrair várias famí- águas do córrego do Sapateiro, que nasce na
lias ricas, que viram a oportunidade de cons- Vila Mariana, perto da atual favela Mauro Car-
truir suntuosas casas e mansões para si mesmas. dim e deságua no Rio Pinheiros. As águas do
O Estádio Cícero Pompeu de Toledo, o “Es- Sapateiro eram abundantes e até hoje alimen-
tádio do Morumbi”, casa do São Paulo Fute- tam o lago do Parque do Ibirapuera. Porém,
bol Clube começou a ser construído em 1952, há muito tempo, o pequeno rio tinha as águas
quando a região ainda contava com muitas e vermelhas devido ao matadouro da Vila Maria-
muitas terras sem uso. As fotos da construção na (que hoje se transformou na Cinemateca),
do palco do futebol mostram enormes áreas onde funcionava um curtume, por isso o nome
vazias ao redor. O estádio atuou como um ver- de Sapateiro.
dadeiro chamariz para as elites, pois aquele era Com o passar dos anos e o fechamento do
um dos maiores e mais modernos estádios do matadouro, as águas tornaram-se poluídas pelo
Brasil, e o país estava cada vez mais se apai- escoamento de esgotos irregulares. Fato que
xonando pelo esporte. A mudança do Palácio predomina até hoje.
dos Bandeirantes (sede do Governo do estado Da mesma forma que grande parte dessa
de São Paulo) para a região, em 1965, também região paulistana, o bairro do Ibirapuera era
ajudou a configurar o bairro como um centro uma grande chácara, loteada em 1922. A partir
dos ricos. de então começou a receber as primeiras famí-
A década de 1980 é marcante para o Mo- lias para morar ali. De forma semelhante aos
rumbi, pois foi quando a verticalização atingiu outros bairros, a década de 1950 foi determi-
o bairro com maior força. No período entre nante para a urbanização do local. Em especial
1985 e 2004, o Morumbi foi o bairro com mais destaca-se a criação da Avenida Santo Amaro,
lançamentos, tanto de total de imóveis, quanto que substituiu a antiga estrada de Santo Amaro,
de unidades habitacionais. Foram 741 imóveis, já nos anos 1960.
com 32.062 unidades. A maior parte dessa ex- Aos poucos, começaram a serem constru-
pansão (59,9%) se deu entre 1985 e 1994, com ídos ali importantes pontos que marcariam o
19.211 unidades lançadas, segundo dados da bairro. Em 1954, são inaugurados o Parque do
Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio Ibirapuera e o Monumento às Bandeiras, em
(Embraesp). 1955 é construído o Obelisco em homenagem
Já no outro lado desse eixo, o bairro do aos “heróis da revolução de 1932”. Em 1957,
Ibirapuera era um grande brejo. Ele recebia as chega o Ginásio Estadual, depois chamado sim-

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plesmente de Ginásio do Ibirapuera. Em 1968, o centro da cidade por meio da Avenida Briga-
em plena ditadura militar, é inaugurado o Pa- deiro Luís Antônio, que tangencia o parque, ou
lácio Nove de Julho, sede da Assembleia Le- pela Avenida 23 de Maio.
gislativa de São Paulo, que permaneceria um
bom período desativada após a instauração do
Ato Institucional 5 (AI-5), em 1969. O Instituto
de Cardiologia Dante Pazzanese foi inaugurado
em 1970.
O GRANDE ENCONTRO
Tudo isso o que foi citado não corresponde Citamos quatro pedaços de São Paulo, em
em nada à habitação e moradia. Mas mostra a que cada um tem uma importância por si só
outra face do desenvolvimento e valorização na atual configuração da loucura metropolita-
imobiliária. Aparelhos culturais são fontes de na. Mais que importância, cada uma exerce um
aumento de preço de terra como poucas outras papel na cidade. Porém, o que essas coisas têm
coisas em uma cidade. Sempre que algum can- em comum?
to da metrópole começa a contar com diversas As quatro amostras têm a Vila Olímpia
opções de lazer, cultura e saúde, o aumento de como passagem quase inevitável. E mais do que
valor do terreno da região é inevitável. isso, são movimentos convergentes de expansão.
Por isso, o Ibirapuera não é exatamente De um lado, vindo do Largo da Batata, vem a
um bairro residencial como o Morumbi, nem Faria Lima. No sentido oposto, vem a Berrini,
financeiro como as avenidas Berrini e Faria de encontro. No outro ponto, o Morumbi quer
Lima, porém, as pessoas que conseguem morar atravessar as barreiras do rio sentido centro,
na região precisam desembolsar uma grande enquanto, do outro lado, o progresso do centro
quantidade de grana, pois a valorização do lo- chega à Vila Mariana, desce para o Ibirapuera
cal é vertiginosa. Os poucos que moram por ali e começa a ir sentido Rio Pinheiros. O que está
representam, quase que na totalidade, setores no meio desse grande encontro de movimentos
da elite paulistana. do progresso do capital? A Vila Olímpia.
Além disso, e, talvez um dos aspectos mais Vale um pequeno exercício de imaginação
importantes, é o fato de o Ibirapuera ser um aqui. Se você parar no meio do bairro da Vila
ponto de ligação importante entre o Morum- Olímpia, suponhamos que na própria Rua das
bi e Itaim para regiões da cidade como a Vila Olimpíadas, com uma bússola na mão, o nor-
Mariana, Saúde, Jabaquara e, especialmente, te apontará para o Largo da Batata, a origem

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da Faria Lima1. Ao sul, haverá a grande reta de do Estado de São Paulo, que passa por baixo da
quase três quilômetros da Berrini. À oeste, es- Avenida Santo Amaro e sai próximo ao Parque
tão as mansões e as favelas do Morumbi. Sem Ibirapuera. Por fim, o complexo Ayrton Senna
erro, ao leste estará o espetáculo das águas do passa por baixo do Parque Ibirapuera e dá duas
lago do Parque Ibirapuera. opções ao motorista: Vila Mariana, à esquerda,
Esses dois eixos ganharam vias de ligação ou Aeroporto de Congonhas, à direita. Dessa
importantes. O Morumbi para o Ibirapuera, por forma, o Corredor Sudoeste faz a ligação de um
exemplo, é ligado por uma obra viária chama- bairro nobre a outro em menos de 10 minutos.
da “Corredor Sudoeste”. Ela consiste de cinco No outro eixo, entre Faria Lima e Berrini, o
túneis em três complexos consecutivos, e liga fim das duas avenidas está relativamente pró-
o bairro do Morumbi ao Ibirapuera. A entra- ximo. Mas as vias estão deslocadas entre si. A
da, para quem vai da área residencial para a Berrini está mais perto da Marginal Pinheiros,
do parque, fica na Avenida das Magnólias, por enquanto a Faria Lima está mais acima, dentro
meio de um acesso confuso pela Marginal Pi- da Vila Olímpia. Por isso, foram construídas no-
nheiros. Essa galeria subterrânea foi a primeira vas vias para fazer essa ligação. O caminho que
do Brasil a passar por baixo do leito de um rio. atende a parte dessa tarefa é a Rua das Olimpí-
No outro extremo, quem sai do Ibira sentido Rio adas, que foi alargada nos anos 1990 para com-
Pinheiros, passa por dois túneis antes de chegar portar o maior fluxo de carros que passariam
ao último, que se divide em dois com uma saída por ali. Sair da Berrini, pegar a Rua Funchal,
para o Morumbi e outra para a Cidade Univer- entrar na Gomes de Carvalho, continuar pou-
sitária. No sentido para o parque, quando a luz cos metros até a Rua das Olimpíadas e subir a
começa a aparecer denunciando o fim do pri- nova Rua Michel Milan já faz o motorista cair di-
meiro complexo, o motorista dá de cara com os reto no final da Avenida Faria Lima. Para subir
prédios espelhados da Vila Olímpia. Ele está na na Avenida Hélio Pellegrino ou virar à esquerda
Avenida Juscelino Kubitschek. para via principal fica fácil e rápido.
Adiante há o outro complexo de túneis, E curioso notar que falamos aqui de duas
dessa vez o Complexo Viário Tribunal de Justiça grandes obras de mudança de perfil do bairro.
E elas visam, quase que exclusivamente o carro
particular. Os ônibus começaram a tomar para
1 No traçado original, depois ela foi estendida até o si essas vias e incorporaram aos seus itinerários,
cruzamento com a Avenida Pedroso de Morais. mas esse “progresso” pretende beneficiar os

56 57
DA LAMA AO CAOS
motoristas de automóveis próprios, o público
principal de todos os bairros elitizados do redor.
Esses caminhos se tornaram pontos im-
portantes exatamente por serem vias “rápidas”
– com aspas mesmo, porque a sobrecarga de
trânsito na região é absurda, mesmo fora do ho-
rário de pico.
Quem sai da Berrini e quer ir, por exemplo,
ao parque Ibirapuera, passará pela Vila Olím-
pia. Da mesma forma, quem deixar o Largo da
Batata, em Pinheiros, sentido Morumbi contará
com o caminho da Faria Lima, e provavelmente
escolherá a Avenida Juscelino Kubitschek para
pegar o túnel Jânio Quadros, que passa sob o
Rio Pinheiros, na Vila Olímpia. A magnitude das
obras que cercaram e desfiguraram o bairro fi-
zeram dele um caminho quase que obrigatório
das elites paulistanas da zona sul e sudoeste.
A Vila Olímpia é refém e cúmplice de to-
das as mudanças que aconteceram a partir do
grande encontro.

58 59
“Cidade hoje é casa abaixo
É prédio que não acaba mais
Sou prato feito de esquina
Por quilo é a puta que pariu”

Tatá Aeroplano

61
automóveis que passará por ali até à noite. Um
período de rápida observação me fez contabili-
zar três homens de camisas azuis que tropeçaram
nas esburacadas calçadas do bairro, enquanto
duas mulheres quase meteram a cara em um fio
desencapado que descia do aglomerado de ca-
bos de redes telefônicas bem ali na frente.
Era 7h50 da manhã quando parei minha O bairro em estudo situa-se na região sudo-
caminhada e sentei no muro ascendente, na este da cidade de São Paulo. A capital paulista
entrada do Millennium Office Park, na Rua Fun- é, por sua vez, a maior cidade do Brasil desde a
chal, bem no coração da baixa Vila Olímpia. década de 1960 e tornou-se a maior metrópole
O tal office park é um estilo de arquitetura de da América do Sul. Com uma população de 11
prédios de escritórios importado dos Estados milhões de habitantes em 1.509 km², a cidade
Unidos e da Inglaterra. A estrutura conta com está dividida em 31 subprefeituras e 96 distri-
edifícios baixos, de três a cinco andares, com tos. A Vila Olímpia é um dos bairros do distrito
estacionamentos bastante arborizados ao redor do Itaim Bibi, que por sua vez, é um dos distri-
e com um tratamento especial para o paisagis- tos da subprefeitura de Pinheiros.
mo. Foi diante desse condomínio que, sentado Não há um consenso pleno entre os estu-
no muro, despluguei meu fone de ouvido do diosos sobre os limites do bairro. Por isso, base-
celular e pausei a música. O amanhecer na Vila ando-me em alguns estudos, faço o recorte de
Olímpia é um fato curioso. Enquanto os raios quatro grandes avenidas: a Juscelino Kubitschek,
de sol começam a se chocar contra os prédios a dos Bandeirantes, a Santo Amaro e a Nações
espelhados do São Paulo Corporate Towers, e Unidas (Marginal Pinheiros). As extremidades li-
contra as torres do complexo JK, há muitas pes- gadas pela Avenida Santo Amaro são muito mais
soas correndo na rua. Quase a totalidade delas distantes entre si do que se comparada a parte
ouve música ou podcast enquanto se exerci- da Marginal Pinheiros. Por isso, ao olhar as linhas
tam, antes de começar mais um dia de traba- que traçam os limites da cercania, percebe-se
lho. A suave brisa da manhã balança as folhas que o bairro tem a forma parecida com a de um
das muitas árvores da região e traz alívio para a funil, que deságua no rio Pinheiros.
respiração. Em poucos minutos, respirar come- A Vila Olímpia de hoje é um caos urbano
çará a ficar mais difícil pelo grande número de e reflete bem os delírios de poder das elites do

62 63
sistema capitalista em uma cidade sem a devi- três córregos. Mas, na Vila Olímpia tudo tem
da preparação para receber tais mudanças tão início no final do século XIX e para lá é que de-
bruscas. O antigo bairro de pequenas chácaras vemos voltar.
se transformou em um dos mais movimentados Nessa época, São Paulo era uma cidade
e cobiçados metros quadrados da metrópole predominantemente rural. Enquanto o municí-
paulistana. A lama da várzea do Rio Pinheiros e pio começava a se configurar como metrópole,
dos córregos foi quase toda embora permitindo com o crescimento das indústrias e a diminui-
a chegada de um novo público, um novo perfil ção da atividade cafeeira, tem-se por natural o
de morador e frequentador. Em suma, a história movimento de expansão da área central. Os ar-
da Vila Olímpia é uma epopeia da lama ao caos. redores do centro “velho” eram compostos por
muitas chácaras e grandes planícies verdes. Es-
ses terrenos planos eram bastante comuns em
áreas de várzea dos rios, como o Pinheiros.
CHÁCARA ITHAIM A região que hoje é conhecida como o
Itaim Bibi era uma enorme área verde e perten-
“Quando eu cheguei isso aqui era tudo cia à família Couto de Magalhães. O patriarca
mato”. Normalmente é essa a frase que espe- era o general José Vieira Couto de Magalhães,
ramos ouvir quando conversamos com pesso- que além de ser amigo do antigo Imperador
as que moram em uma determinada região há Pedro II, conta com uma história de provocar
muitos anos. No caso da Vila Olímpia, a frase é os brios em qualquer bom biógrafo. Em sua
bastante acertada, mas não é suficiente. Pala- vida envolvem-se episódios como Guerra do
vras como “brejo”, “charco”, “lama” e “alaga- Paraguai, viagens a diversos países para estu-
mento” são bastante comuns no vocabulário do do, fluência em, no mínimo, sete idiomas, in-
antigo morador do outrora acanhado bairro. ternação em sanatório, diretoria no Banco de
Assim como grande parte da região às mar- São Paulo e tantas outras coisas. Um dos pontos
gens do Rio Pinheiros, a Vila Olímpia era uma que merece destaque é que ele já foi presidente
grande várzea. Só que nesse recorte específico de quatro províncias1 no Brasil imperial: Goiás
do bairro havia muitas chácaras com planta-
ções de flores, de frutas e de verduras. Havia
um clima verdadeiramente bucólico na região, 1 Título dado diretamente pelo Imperador, que
que contava com um grande rio e pelo menos escolhia entre o Partido Conservador e o Partido

64 65
(1862-1864), Pará (1865-1866), Mato Grosso por 50 metros, criando assim, pequenas cháca-
(1866-1868) e São Paulo (1889). Como o cargo ras.
vinha de indicação direta do Imperador, expli- Os interessados apareceram e começaram
ca-se a amizade do oficial militar com o manda- a comprar os loteamentos. Na parte mais longe
tário português. do rio Pinheiros, diversos imigrantes da Sicília
A área total da fazenda de Couto de Maga- fizeram suas residências depois de sair do tradi-
lhães era de 120 alqueires. O valor convertido cional bairro do Bixiga, na região central. Já a
dá cerca de 5.808.000 m², ou um equivalente a porção mais próxima do rio Pinheiros contava
825 campos de futebol. E foi mais ou menos no com pouca procura, pois os constantes alaga-
centro dessa área que ele construiu o casarão mentos, tanto do afluente principal, quanto dos
que abrigava sua família. A casa, já destruída e córregos menores que corriam por ali, serviram
restaurada, funcionou como o Sanatório Bela para afugentar muitos potenciais interessados.
Vista e hoje encontra-se sob o opulente vão li- Entretanto, imigrantes portugueses à procura
vre espelhado do edifício Pátio Victor Malzoni, de locais baratos a fim de se estabelecerem, vi-
a sede do Google na América Latina e do BTG ram uma boa oportunidade nessa região desva-
Pactual. Em 2019, a casa tornou-se sede do Ins- lorizada e começaram a instalar-se por ali.
tituto Casa Bandeirista. Com as primeiras chácaras surgindo, ob-
Com a morte do general, a posse da ter- servou-se a necessidade de transitar entre elas
ra foi para seu filho, José Couto de Magalhães. para chegar ao destino. Por isso, entre 1910 e
Nesse ponto entra uma figura importante: Bibi. 1920 surgem as primeiras ruas do local. Eram
Esse era o apelido do irmão do general e foi ele caminhos de terra batida e com muito mato ao
o responsável pelo começo dos loteamentos da lado. Aos poucos, a região começava a ter im-
imensa área em chácaras menores. Em 1907, portantes locais de plantio e cuidado de flores,
Bibi comprou a posse da terra de seu falecido peras, verduras e frutas em geral. Elas eram cul-
sobrinho e deixou seu filho, Arnaldo Couto de tivadas para subsistência e para um pequeno
Magalhães, fazer a separação da área com in- comércio local.
tuito de vendê-la a interessados. A maioria dos Com o passar dos anos, um pedaço mais
terrenos tinha medidas definidas em 10 metros ao norte da antiga chácara Ithaim começou
a se desenvolver, enquanto a região mais ao
sul (onde hoje é a Vila Olímpia) permaneceu
Liberal. Couto de Magalhães fazia parte dos liberais. com menos apelo e movimentação. Um dos

66 67
disparos para que começasse a se mexer na in- das Flores, já no começo do século XX. Essa
fraestrutura do local foi uma grande enchente terra ficava no que viria a ser a parte alta da
que ocorreu no rio Pinheiros em 1929, a qual Vila Olímpia, bem ao lado da antiga estrada de
atingiu muitas terras de moradores. A partir Santo Amaro (hoje avenida).
desse momento, viu-se que seria difícil convi- Policarpo era uma figura conhecida na
ver e prosperar dentro da cidade com o rio sel- região, a qual também contava com diversos
vagem como era. Por isso, a década de 1930 portugueses e brasileiros de baixa renda. Aos
é marcante para a história da região, pois, foi poucos, ele cresceu com a venda das flores e
quando começaram as obras de retificação do comprou outras propriedades e terras. Sua po-
Rio Pinheiros. O marco inicial da obra é 1938 pularidade misturava-se ao seu estilo excêntri-
e a conclusão do enorme projeto, que afetou co, pois, conforme o relato de um antigo mora-
drasticamente a região, só seria completada em dor da região, seu pai foi amigo de Policarpo, o
1958, ou seja, 20 anos depois. imigrante português levava lanches nos bolsos
e os comia no almoço para não gastar dinheiro.
A Chácara das Flores teve seu início quan-
do a família de Policarpo mudou-se de Funchal,
CHÁCARA DAS FLORES em Portugal, para São Paulo. A parte de cima
do enorme terreno ficou com Policarpo, en-
O mais importante pedaço de terra para quanto que a parte de baixo, que ia até o Rio
entender a origem e crescimento da Vila Olím- Pinheiros, foi dada ao irmão dele. A chácara do
pia é a Chácara das Flores. Das muitas que sur- irmão era destinada ao plantio de batata e ver-
giram no começo do século XX, a das Flores duras, além da venda de leite. Acontece que o
conta com uma história que se confunde com irmão de Policarpo era casado e o nome de sua
as origens do bairro em estudo. esposa era bastante sugestivo: Olímpia.
Para isso, precisamos falar de Policarpo Aos poucos, conforme as duas fazendas
Corrêa, um português de Funchal, na Ilha da prosperavam, os habitantes do local come-
Madeira, que desembarcou no Brasil no fim do çaram a chamar a parte baixa do terreno de
século XIX para trabalhar e viver. Ele, morador “Chácara da dona Olímpia”. Com o tempo, as
da Rua Augusta durante vários anos, comprou terras começaram a atrair mais pessoas e o sta-
um pedaço de terra de Arnaldo Couto de Ma- tus da região passou de área de chácaras para
galhães (o filho de Bibi) e montou a Chácara vila: a Vila Olímpia, com a Rua Funchal, sendo

68 69
um dos mais importantes pontos. Ainda assim, o clima da época era de ver-
Nessa época, a cidade como um todo era dadeiro bucolismo, quase uma vida ideal do
muito diferente, mas o centro já tinha traços campo. Mesmo naqueles dias, o choque era
do que viria a ser a pauliceia desvairada. En- grande de quem vinha de partes já urbaniza-
tretanto, a região da Vila Olímpia continuava das de São Paulo. É o caso de Guiomar, filha
como um tipo verdadeiro de cidade pequena do antigo morador Acácio. Em entrevista ao
do interior. Seu acesso não era dos mais fáceis sociólogo Dan Levy, ela conta que estranhou
devido às poucas ruas de entrada no bairro, e muito a paisagem e a rotina do local quando se
quem passasse por ali não deixaria de reparar mudou do centro da cidade para a Vila Olím-
na lama, uma constante companheira de quem pia, em 1925. “Eu, minha mãe e meus irmãos
viveu o começo do subúrbio. Afinal, ainda esta- estranhamos muito o lugar, mas era lindo por-
mos falando de muito antes das obras de retifi- que tinham as vacas, tinham os cavalos, tinham
cação do Rio Pinheiros. os boiadeiros que passavam com as vacas assim
Além disso, há dois córregos que delimi- rente. Era uma vida gostosa de se viver”.
tam o bairro e um que o atravessa. O Córrego Um relato desses em 2019 pode causar risa-
do Sapateiro nasce na Vila Mariana e deságua das a quem escuta ou lê, porque a Vila Olímpia
no Pinheiros, porém, o caminho dele passa por de hoje é o absoluto e completo oposto de qual-
onde hoje é a Avenida Juscelino Kubitschek. Já quer tipo de bucolismo e de vida campesina.
o Córrego Traição tem sua fonte no Jabaqua- Outro fato contribuiu para o lugar passar a
ra e também despeja sua água no Pinheiros, ser considerado como uma vila: a região é uma
hoje ele está embaixo do traçado da avenida passagem importante da zona sul para o centro,
dos Bandeirantes. No meio do bairro, vindo que era o principal ponto comercial, cultural e
também do Jabaquara, há o Córrego Ubera- financeiro de São Paulo.
binha, que, pasmem, também está encoberto
pelo asfalto, o da Avenida Hélio Pellegrino. É
importante entender que esses córregos vira-
vam verdadeiros rios quando chovia, por isso,
as enchentes causavam temor e tremor nos ha-
SÃO PAULO CRESCE LOUCAMENTE
bitantes da época, pois a região ainda contava O crescimento da cidade de São Paulo é
com a serpente fluvial do Pinheiros, um rio de um ponto importante para entender a urbani-
grandes proporções. zação da Vila Olímpia. Assim como o bairro em

70 71
questão, São Paulo já foi uma cidade pequena, mil pessoas que vieram tentar uma nova vida.
com grande parte do seu território sendo área Além disso, o crescimento das indústrias é
rural. Para ter uma ideia, o censo de 1872 apon- bastante notável. O marco inicial do progresso
ta que São Paulo tinha apenas 30 mil habitan- industrial em larga escala no estado de São Pau-
tes. Dezoito anos depois, em 1890 o número de lo acontece em 1900, com a determinação das
moradores mais do que dobra e vai para 65 mil. tarifas alfandegárias, a principal fonte de renda
No intervalo de 10 anos é realizado o último do Governo, de cunho protecionista, ou seja,
censo do século XIX, em 1900, e a quantida- que dava maiores incentivos para fábricas na-
de de gente tinha praticamente quadruplicado. cionais. O primeiro censo industrial, realizado
São Paulo entrou no século XX com 240 mil ha- em 1907, mostra que existiam 314 estabeleci-
bitantes. No primeiro censo do século XX, o de mentos industriais, com 22.355 trabalhadores.
1920, a capital já contava com 580 mil habitan- Treze anos depois, em 1920, o número cresceu
tes. O primeiro milhão foi alcançado em algum para 4.145 indústrias com 83.998 empregados.
ano entre 1920 e 1940, quando a metrópole Em 1940, a economia paulista já era dependen-
registrou 1.326.261 pessoas. A década de 1960 te das indústrias, que somavam 14.225 fábricas
marca o momento em que São Paulo ultrapas- com 272.865 operários. Grande parte das indús-
sa a quantidade de gente do Rio de Janeiro e trias paulistas concentrava-se na capital e isso
torna-se o maior centro populacional do Brasil, fez com que a cidade começasse a inchar, pois
com 3.825.351 habitantes. havia emprego e o crescimento era vertiginoso.
Esse crescimento é explicado por vários fa- Por isso, São Paulo começou a ser vendida
tores: um deles é a imigração europeia para o para o resto do Brasil como a cidade do dinhei-
Brasil. Incentivado pelo Governo do estado de ro. Especialmente a partir da década de 1950,
São Paulo para suprir a mão de obra escrava o fluxo de pessoas que saíram do Nordeste para
negra, o número de imigrantes atinge os 400 recomeçar a vida no Sudeste é altíssimo. Esse
mil no estado paulista nos últimos anos da dé- fenômeno cresceu na década de 1930, mas era
cada de 1890. Já em 1910, há cerca de 350 mil essencialmente rural, enquanto a partir do meio
pessoas de fora do Brasil chegando ao estado do século o destino dos migrantes passou a ser
de São Paulo. Em 1922 são cerca de 280 mil as metrópoles, e São Paulo era o principal obje-
imigrantes. O último grande pico de estrangei- tivo. Estima-se que apenas na primeira metade
ros em terras paulistas se dá após o fim da Se- da década de 1950, houve pelo menos 750 mil
gunda Guerra Mundial, com pelo menos 250 deslocamentos internos para São Paulo, grande

72 73
parte deles nordestinos. Foi assim que surgiu, São Paulo, durante a gestão de Antônio Carlos
por exemplo, a comunidade do Coliseu, na Vila de Assumpção. Mais tarde naquele ano, já sob
Olímpia. Ela foi originalmente formada por pes- o comando do prefeito Fábio da Silva Prado,
soas da Bahia, de Alagoas, do Pernambuco e foi criado oficialmente o distrito do Itaim Bibi. A
de Minas Gerais. E é a única das comunidades oficialização da região diante da administração
existentes ali que resiste até hoje. pública ajudou a acelerar o processo de urba-
Porém, o centro de São Paulo já vivia uma nização dali. Novas vias foram abertas, em es-
concentração muito grande no fim dos anos pecial a partir dos anos 1940 até 1960, e nessa
1940, por isso, fez-se necessário que as indús- época começa a entrar em cena um elemento
trias buscassem novas acomodações fora da que seria protagonista no crescimento de São
centralidade. Quanto mais baratas as terras, Paulo: o carro automotivo.
melhor seria para o dono da fábrica, pois pode- O carro representava a ideia de moderni-
ria montar seu galpão com investimento inicial dade e desenvolvimento, por isso, as ruas de
bem abaixo ao de outras regiões concorridas. toda a cidade, que aspirava à grandeza, tinham
Conseguem imaginar qual lugar entra em cena que levar em conta os automóveis particulares
com todas essas transformações na forma de que passariam por ali. As ruas de terra batida
trabalho? Sim, a Vila Olímpia. começam a dar lugar aos logradouros de para-
Por ser uma região alagadiça e com pouca lelepípedo, que anos mais tarde seriam substi-
infraestrutura urbana, os terrenos valiam pou- tuídos por asfalto.
co. Além disso, a configuração de chácaras era No centro da cidade, que crescia vertigi-
ideal, pois uma chácara pequena equivale a um nosamente, o carro já era um protagonista e
terreno razoavelmente grande. Por isso o bairro mostrava a face urbanizada mais nobre da me-
apareceu como uma alternativa viável para vá- trópole. Porém, para que esse fenômeno se tor-
rias fábricas devido à perspectiva de construir nasse geral foi necessário que a cidade também
um galpão grande. Ao mesmo tempo, porém, tivesse estruturas para comportar essa nova de-
representava certo risco, pois a região ainda manda. Por isso, na década de 1930, o então
era de difícil acesso e as enchentes poderiam prefeito de São Paulo, Francisco Prestes Maia,
colocar tudo a perder. idealizou o chamado “Plano das Avenidas”. Tal
Um ponto importante da história do Itaim projeto previa o crescimento da cidade a partir
Bibi acontece em 1934, quando as terras do de grandes avenidas com vias expressas, que
bairro são legalmente doadas à Prefeitura de ligariam pontos distantes do município. Há vá-

74 75
rios exemplos de importantes vias da metrópo- local ainda era ruim e os córregos começaram
le que foram construídas a partir desse plano, a ser canalizados depois de 1960. Essa década
como a Nove de Julho, a Tiradentes, a 23 de marca as obras que colocaram os pequenos
Maio e várias outras. afluentes do Sapateiro e o Traição sob cimento.
Foi nos anos 1960 que a região do Itaim e Anos depois, nasceriam as avenidas Juscelino
Pinheiros começa a ganhar maior visibilidade. Kubitschek e dos Bandeirantes, sobre os dois cór-
Muito se deve à inauguração da Avenida Fa- regos, respectivamente. Esses ribeiros, somados
ria Lima, antiga Rua Iguatemi, que teve a cons- ao Uberabinha, que cortava uma região central
trução iniciada em 1968, e à chegada do novo do bairro e só viria a ser canalizado nos anos
modo do comércio, que começava a tomar 1990, eram fontes constantes de alagamentos.
conta de países capitalistas: o shopping center. “A única lembrança da Vila Olímpia que
Nesse caso, em 1966, é inaugurado o Shopping eu tenho é das bacias da minha mãe boiando
Center Iguatemi, considerado o primeiro desse quando chovia e alagava tudo”, contou Fátima
tipo de estabelecimento no Brasil. Moreira, de 73 anos. Hoje, moradora de Itatiba,
O plano de alongar a Faria Lima vinha de ela disse ter vivido na Vila Olímpia quando era
um projeto de lei de 1968. É importante notar pequena, embora não conseguisse se lembrar
que muitas obras e projetos de expansão da ci- do ano vivido ali.
dade foram feitos ou idealizados no período da Paulina Soares, de 74 anos, chegou à Vila
ditadura militar, que, em tese, para se livrar da Olímpia em 1946, quando tinha apenas um
imagem de um suposto “comunismo”, preten- ano de idade. Ela conta que morou em uma
dia dar ares e feições mais modernas e ostensi- chácara até seus oito anos na parte alta da Vila
vas ao principal polo financeiro do país. Olímpia, na Rua Comendador Miguel Calfat. O
Ainda sobre o Plano das Avenidas, Nadia pedaço de terra ia da altura da Rua Clodomi-
Somekh afirma que “havia forte motivação ro Amazonas até a Rua Attílio Inocenti. Pauli-
econômica por trás do plano”. A arquiteta e na lembra-se de como era o entorno do bairro.
diretora do Departamento do Patrimônio His- “Antigamente aqui, eu lembro que eu tinha oito
tórico (DPH), da prefeitura de São Paulo, em anos de idade, aqui embaixo era só lago. Lagos
entrevista ao Nexo, completa dizendo que “o e chácaras de verduras e flores. Tudo aqui era
plano construiu uma cidade para vender mais lago”. Patrícia, a filha de Paulina, não hesita e
automóvel”. diz que “aqui é tudo de água embaixo. Agora é
Na Vila Olímpia, porém, a infraestrutura do tudo concreto, tanto que quando chove o ne-

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gócio sobe”. Mãe e filha trabalham em negócio
próprio na Rua Chilon. Crislú Estética é o nome
do local de serviço delas que se apropriou da
casa em que Paulina morou durante 20 anos.
Enquanto colocava o dorso da mão na FAVELAS E CASAS POPULARES
altura do queixo, Marizete dos Santos, de 53 Yolanda, dona de um modesto restaurante
anos, moradora da comunidade do Coliseu no local, chegou para morar na região nos anos
lembra-se: “água aqui ó. Era lama, água, bre- 1960 e lembra-se que começou a trabalhar “fa-
jo. Ninguém queria esse pedaço”. É importante zendo macarrão para a Vila Olímpia inteira”.
se lembrar da descrição do começo deste en- Ela conta que era comum haver casas com
saio sobre o formato da Vila Olímpia ser o de um caldeirão no portão da frente e as galinhas,
um funil. Acontece que a favela do Coliseu fica abundantes na região, eram mortas e cozidas
exatamente no meio da parte mais “fina” desse ali mesmo, na rua. “Eu sou de uma São Paulo
funil, ou seja, além de estar mais perto dos três muito legal, todo mundo queria morar aqui na
córregos (Traição, Sapateiro e Uberabinha), cidade”, disse a moradora, que se diverte ao
o terreno da comunidade está a cerca de 100 lembrar que naquela época “São Paulo só tinha
metros do Rio Pinheiros, conhecido pelo terrí- três ladrões: o Meneghetti2, o Bandido da Luz
vel cheiro a qualquer hora do dia. A moradora
Mônica dos Santos, de 43 anos, cuida dos com-
putadores da sede da comunidade e diz que
as enchentes diminuíram quase por completo,
mas reclama que hoje a Vila Olímpia como um
todo está infestada por pernilongos, fato que
não existia antes. “Hoje tem muito pernilongo. 2 Gino Meneghetti foi criminoso italiano que atuou
Antigamente não tinha, hoje tem muito, muito, em São Paulo em meados da década de 1920 até o
muito, na região todinha da Vila Olímpia, por fim dos anos 1950, sendo preso e fugindo várias ve-
causa do rio poluído. Antigamente, minha mãe zes. Especializou-se em assaltar residências luxuosas
lavava roupa no rio, olha eu fiquei besta, putz e sem que houvesse contato com os moradores. Seu
modo soturno de agir rendeu-lhe uma aura de mis-
hoje é isso aí”.
tério e de lenda. Entre 1967 e 1968, o extinto jornal
“Notícias Populares” fez uma série de 57 capítulos
sobre a vida do italiano.

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Vermelha 3e o Sete Dedos4”. construção das casas populares, especialmen-
Nesse período de crescimento da cidade te para os empregados das fábricas. É possível
várias indústrias deixam as regiões mais cen- andar hoje pelas ruas do bairro e reparar, em
trais e começam a se instalar em bairros mais alguns pequenos trechos, várias casinhas gemi-
periféricos. Aqui vale dizer que nessa época nadas em uma determinada extensão das ruas.
a Vila Olímpia fazia parte da periferia de São Exemplos disso estão nas ruas Quatá e Fiandei-
Paulo (apenas um pequeno exemplo de como o ras. Tais casas eram simples e, como estavam
crescimento da metrópole é dinâmico na clas- situadas em um ambiente desvalorizado, eram
sificação dos bairros). Com isso, começaram a bastante populares. Tal estética é digna de uma
aparecer algumas fábricas no bairro, como a vila operária, como em diversos cantos de São
de sabonetes da Phebo, a de sorvetes Gelato e Paulo, como no entorno da Avenida Santa
a de fotografias Kodak. Com a expansão desse Marina e no Tatuapé. Ela representa o char-
tipo de atividade, a cercania começou a atrair me particular de uma história cada dia mais
os operários dessas indústrias. A partir dos anos distante. E, curiosamente, a pequena amostra
1950 a Vila Olímpia ganha definitivamente um desses sobradinhos geminados na rua Fiandei-
aspecto residencial popular, sem nenhum tipo ras ganhou a companhia de um vizinho pra lá
de apelo elitista. de luxuoso. Trata-se do Cyrela by Pininfarina,
Isso deu origem a dois fenômenos: o das um empreendimento da construtora brasileira
favelas, que apareceram a partir de 1950 e a Cyrela com a assinatura do escritório de design
Pininfarina, da Itália, responsável pelo desenho
dos carros da Ferrari, dentre outros artigos de
3 José Acácio Pereira da Costa ficou conhecido luxo. Ao lado das antigas casas populares, que
como Bandido da Luz Vermelha pelos assaltos que hoje têm diversos usos diferentes – uma escola,
cometia em São Paulo nos anos 1960. Era conheci-
alguns pequenos comércios –, está essa torre
do por usar lanternas com facho de luz vermelho
para intimidar as vítimas. Ele foi assassinado em um residencial com apartamentos que variam de
bar de Joinville, SC, em 1998, tempos depois de R$ 1.5 milhão (o de 46 m²) a mais de R$ 3 mi-
deixar a prisão. lhões (o de 94 m²).
Por outro lado, as favelas começaram a
4 Benedito Lima Cesar, o “Sete Dedos”, foi um cri-
surgir especialmente pelo mesmo motivo das
minoso que atuou especialmente nos anos 1950 em
São Paulo e foi responsável por mortes de policiais casas populares, mas abrigavam pessoas em
e fugas mirabolantes da prisão. condições ainda menores de dinheiro e renda.

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Havia pelo menos três favelas no bairro. Hoje conhecida como Favela JK. Durante a década
sobrou uma que não durará muito tempo, pois de 1980, a comunidade ocupava uma área de
a Prefeitura já liberou a construção de um con- 3.050m², com cerca de 250 barracos ocupados
junto habitacional no mesmo local para os mo- por 1200 famílias, perto da Attílio Innocenti. No
radores de lá: a do Coliseu, também conhecida fim dos anos 80, durante a gestão de Jânio Qua-
como favela Funchal. dros, a comunidade foi removida para a obra do
Havia ainda duas outras comunidades exis- Bulevar JK, que teve começo, mas foi interrom-
tentes. Uma na beira do córrego Uberabinha pida pela gestão seguinte, de Luiza Erundina.
(atual Avenida Hélio Pellegrino), na altura da Nesse ponto, já é possível observar o ca-
Rua Ribeirão Claro. Fernando Stickel, artista ráter excludente do “progresso”. Com claro
plástico morador dessa parte do bairro, lem- propósito higienista, as duas favelas próximas a
bra-se da presença do ajuntamento popular e importantes, e novas, avenidas foram removi-
relata uma história de violência de lá. “Nos pri- das praticamente na mesma época e seus habi-
meiros 15 dias, eu tô um dia jantando na minha tantes tiveram que se virar para encontrar uma
mesinha improvisada e eu escuto pá, pá, pá... nova moradia em uma cidade que crescia cada
tiro. Aí eu saio no portão, devagarinho, e eu vez mais. É como se “de uma hora para a ou-
olho assim, tem um corpo na esquina. Onde tra” sumissem dois pontos de pobreza. Fato que
hoje seria a esquina da Hélio Pelegrino com a traz a valorização da terra e dos imóveis cada
Ribeirão Claro. Ali tinha uma ponte por cima vez mais luxuosos que começavam a aparecer.
do córrego. Naquela esquina da ponte, ou seja, Quem não tinha dinheiro para resistir a tais mu-
de onde sai a favelinha tinha um corpo ali no danças perdeu o que possuía com a chegada
chão. Liguei pra PM, ‘ó, tem um corpo aqui’. do asfalto, mas quase ninguém estava prepara-
Quarenta minutos depois apareceu um fusqui- do para o que estava por vir.
nha, pegaram o corpo, jogaram dentro do fus-
quinha e foram embora. Esse foi o bairro como
eu conheci a Vila Olímpia”. Essa favela do Ube-
rabinha seria removida já nos anos 1990, com a
construção da Avenida Hélio Pellegrino.
O BOOM IMOBILIÁRIO NO MUNDO
A outra comunidade surgiu no canteiro das A década de 1970 em todo o mundo repre-
obras da construção da Avenida Juscelino Ku- senta um período de muitas mudanças. A ideia
bitschek, antigo córrego do Sapateiro e ficou do Estado de Bem-Estar Social já começava a

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apresentar suas primeiras crises, abrindo cada Enquanto o globo assistia a uma nova for-
vez mais o espaço para o liberalismo econômi- ma de arquitetura surgir com força, uma bom-
co (chamado de neoliberalismo) e para a atua- ba foi lançada bem ao lado do Capão Redondo,
ção das companhias privadas. O papel do Esta- em 1977. Nesse ano, foi finalizada a construção
do na regulação da economia já era visto com do Centro Empresarial São Paulo (CENESP). O
suspeita. Aqui no Brasil, vive-se, nesse período, conjunto de seis torres baixas trazia para o Bra-
sob a ditadura militar, que, além das interven- sil o modelo de “prédio inteligente” adaptado
ções nas liberdades individuais de expressão, às novas demandas das empresas globais. E foi
foi um forte motor para expansão e consolida- ele o grande chamariz para todo um investi-
ção do capitalismo brasileiro. mento na região da Marginal Pinheiros. A partir
Nessa época, o mundo, o Brasil e São Pau- daí começam a surgir vários tipos de edifícios
lo começaram a viver uma nova forma de ur- que, com alguns anos de “atraso”, tomariam
banização. O crescimento, que já era grande, conta da Vila Olímpia.
tornou-se ainda maior e desenfreado. A indús- Nos anos 1980, as enchentes ainda eram
tria da construção civil ganha força em todo o constantes no bairro, especialmente, por causa
mundo, e o processo de verticalização ganha do córrego Uberabinha, na alta Vila Olímpia. O
um forte sopro em suas velas. Um levantamen- artista plástico Fernando Stickel, dono da Phar-
to feito pelo jornal O Estado de S. Paulo aponta mácia Cultural, na Rua Nova Cidade, tem 70
que 1/4 dos imóveis da capital paulista foram anos e chegou à Vila Olímpia no final de 1985.
construídos nos anos 1970. O título da matéria Ele conta que à época a região era um “bairro
já é bem sugestivo “São Paulo é uma cidade residencial fechado” por haver poucas vias de
dos anos 70: 1/4 dos imóveis é daquela déca- acesso e não na ideia de algo privativo. Segun-
da”. São mais de 760 mil construções dessa do seu relato, quando chovia a água subia mais
época entre os mais de três milhões de imóveis de um metro e as casas já tinham “truques”
cadastrados na Prefeitura. para evitar que o líquido entrasse nas residên-
É nessa época que a Vila Olímpia adquire cias. “Todo o bairro era planejado. Ou tinha es-
“uma nova paisagem”, de acordo com o soció- cadinha, ou tinha comporta com borracha, ou
logo Dan Levy. A vila já começa a ter um aspec- tinha rampa, todo mundo tinha algum truque”,
to mais de bairro e aponta para tendências que conta o artista, que lançou, em 2006, um livro
afloravam pelo mundo: a da verticalização e a de fotos sobre a Vila Olímpia.
mudança de paradigmas do emprego. “A coisa era séria, não era uma coisa para

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brincar com essa história de enchente”, disse Sti- vieram no espaço entre 95 e 2004. Foram 100
ckel. A reação do pai do artista ao ser informado lançamentos imobiliários nesse intervalo de
que o filho moraria na Vila Olímpia explica bem tempo. Fato que alavancou o pedaço de terra
a fama que o bairro tinha na cidade de São Pau- para o 11º bairro com mais lançamentos imobi-
lo: “‘Ah, você é louco, vai morar num lugar que liários e 10º entre os que lançaram mais unida-
tem enchente, que tem favela’. Eu falei ‘ih, pai, des residenciais. Porém, a área da Vila Olímpia
eu tiro isso de letra, eu morei no East Village, em é bem menor que Morumbi, Butantã, Moema,
Nova Iorque, que tá cheio de traficante, pra mim Jardins, Pinheiros e Jabaquara, alguns dos bair-
isso não tem problema nenhum’. Aí ele chorou, ros que estão à frente do caso em estudo.
como todo pai chora, e me deu a grana pra eu Curiosamente, enquanto a Vila Olímpia
comprar”, relatou o homem. lançava mais unidades de residência, a densi-
Os anos 1980 foram decisivos à mudança da dade populacional do bairro começa a abaixar,
Vila Olímpia. O mercado imobiliário já identifica- ou seja, havia menos pessoas morando em uma
va a potencialidade da região por conta do cres- maior quantidade de unidades habitacionais.
cimento e acumulação de dinheiro dos entornos Mas na prática, o que isso quer dizer? Com o
(Berrini, Morumbi, Ibirapuera, Moema, Itaim Bibi aumento do preço da terra causada pela verti-
e mais). Aquele pedaço da terra da Vila Olímpia calização, vieram novos perfis de pessoas para
parecia esquecido no meio do crescimento das o bairro. O cidadão de classes mais altas come-
outras regiões nobres. Além disso, a Vila Olímpia ça a descobrir a Vila Olímpia porque ainda era
está a cerca de quatro quilômetros do aeropor- relativamente mais barato que muitos locais
to de Congonhas, com acesso fácil pela Avenida próximos e estava igualmente perto do centro
dos Bandeirantes, que já existia na época. Por financeiro entre as Avenidas Faria Lima e Ber-
isso, investiu-se também na região com a aposta rini. Menos pessoas e maior número de prédios
de que ela cresceria e se valorizaria a exemplo em área de valorização indicam que a concen-
dos outros pontos próximos. tração de capital ali está crescendo.
Por isso, segundo dados da Empresa Bra- Com mais pessoas endinheiradas ali, a Pre-
sileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp), feitura começou a olhar com um carinho maior
a Vila Olímpia, no período entre 1985 e 2004 para a região e aprovou um projeto que seria
contou com o lançamento de 6.251 unidades a mudança drástica para a cercania, celebrada
habitacionais, mas 74,1% delas (4.633) aconte- pela elite e pelos empresários e alvo de críti-
ceram entre 85 e 94. Os outros 25,9% (1.618) cas e resistência das camadas mais pobres. Em

86 87
1995, após anos de debate, é aprovada a Ope- no para que a iniciativa privada possa investir
ração Urbana Consorciada Faria Lima. seu dinheiro sem nenhum risco. Porém, com
isso, muitas vezes, as obras são feitas sem levar
em conta o morador de classes populares que
habitava a região.
OPERAÇÕES URBANAS Yolanda, de 86 anos, conta que quando co-
meçaram os rumores sobre a extensão da Fa-
As Operações Urbanas Consorciadas são ria Lima, muito se dizia sobre a casa dela ser
um instrumento para a transformação do as- afetada pelas obras. Houve diversos abaixo-as-
pecto e da infraestrutura de determinados pon- sinados, vários tipos de protestos para resistir às
tos da cidade. Entram aqui as tão famosas par- obras da Prefeitura em parceria com a iniciativa
cerias público-privada, que têm aparecido em privada. Mas Yolanda tentou uma forma dife-
todo oomundo
mundocomocomonova
novasuposta solução
“suposta” para
solução rente. Segundo seu relato, ela foi direto falar
os problemas
para da metrópole.
os problemas da metrópole. com o arquiteto Júlio Neves, o idealizador de
Em 1995, depois de anos de debate entre o toda a obra das Operações Urbanas, conhecido
poder público e a sociedade, e diversas audiên- como o “Niemeyer de Paulo Maluf ”. Ela foi ao
cias nos órgãos públicos, o projeto foi finalmen- escritório de Júlio para saber se sua casa seria
te aprovado. O Prefeito de São Paulo era Paulo afetada pelos planos de expansão da avenida.
Maluf, e usou as Operações Urbanas como um Seu medo não era sem justificativa, já que na
grande folheto de suas obras, que depois seria inauguração da “Nova Faria Lima”, em 1996,
incorporado ao mito do “rouba, mas faz”. um levantamento da Folha de S. Paulo mos-
De maneira bem resumida, as operações trou que ocorreram 374 desapropriações (101
urbanas funcionam da seguinte maneira: o no trecho da Avenida Pedroso de Morais até o
mercado imobiliário identifica um local com Largo da Batata; 166 no pedaço da Avenida Ci-
potencial grande de valorização, e o Poder Pú- dade Jardim até a Juscelino Kubitschek; e 107
blico faz o investimento inicial para melhorar as entre a JK e a Hélio Pellegrino).
estruturas das vias, criar novas ruas, melhorar O custo das obras foi quase 1/10 do valor
a circulação do local, canalizar córregos, e re- das desapropriações necessárias. À época, o
fazer a parte estética do bairro usando, muitas Poder Público investiu R$12 milhões na cons-
vezes, um padrão internacional de urbanismo. trução das vias, enquanto o gasto estimado com
O Poder Público, literalmente, prepara o terre- as 374 desapropriações foi de R$100 milhões. E

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todo esse investimento inicial se dá por conta em caixa para melhorias de trechos da cidade
do Estado, que cria as condições para que a ini- sobre as Operações Urbanas. O termo “adicio-
ciativa privada faça suas obras visando apenas nal construtivo” não é à toa, pois, de acordo
o próprio bem-estar e aumente a segregação com o Plano Diretor, quem compra um terre-
contra a classe popular já existente. no pode construir uma área equivalente à do
Yolanda conta que se sentiu como uma rai- pedaço de terra. Por exemplo, se você adquire
nha com a recepção do escritório do riquíssimo um solo de 10x30m é permitido que se construa
arquiteto, que foi um dos diretores do Museu uma área total de 300m². Em áreas de possí-
de Arte de São Paulo (MASP) por vários anos. vel valorização, a Prefeitura vende esse Cepac,
“Só faltou o tapete vermelho”, lembrou-se a que configura uma possibilidade de construir a
moradora de mais de meio século do local. Ela mais do que a lei pontua. Só que isso é feito
contou que foi recebida com muita atenção a partir de um pagamento adicional por par-
pelo próprio Júlio Neves, que garantiu que a te do comprador. Ou seja, quer construir um
casa dela não estava no traçado das desapro- prédio maior nesse pedaço de terra em valori-
priações para a abertura da avenida. zação? Ok, mas pague o proporcional disso, já
É importante entender a forma de arreca- que você usará mais os serviços de zeladoria da
dação de cursos da Operação Urbana Consor- cidade e a infraestrutura urbana.
ciada Faria Lima. Trata-se do título de Certifica- O dinheiro arrecadado com a venda das
do de Potencial Adicional Construtivo (Cepac). Cepacs vai direto para o caixa da Prefeitura,
Esse elemento foi visto por muitas pessoas como que usa esse montante para investir nas melho-
a salvação das obras urbanas porque, em tese, rias da região. Tal método foi visto como uma
o gasto da remodelação seria da iniciativa pri- alternativa muito boa para o crescimento da
vada. Ou seja, seria uma obra que “beneficiaria metrópole, pois, em teoria, não gastaria dinhei-
a todos”, mas quem pagaria seriam as empresas ro público, já que as empresas interessadas nas
não estatais. Em resumo: o método foi vendido construções maiores é que pagariam por isso.
como algo que o cidadão comum não pagaria Todavia, as coisas não funcionam exatamente
por isso. A iniciativa privada aproveitou o ense- assim. Pois para que haja interesse das empre-
jo para vender sua imagem positiva e altruísta. sas privadas no investimento, o Poder Público
E aqui começam as mentiras. tem que fazer um investimento inicial muito
O Cepac é um título vendido pela Prefeitu- pesado para uma “arrumação básica” do local,
ra de São Paulo no intuito de conseguir dinheiro para reduzir os riscos daquela região “não dar

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certo”, facilitando, assim a recepção de novas a construção de habitação para as pessoas que
companhias e corporações. foram removidas dos locais e que isso só veio
Acontece, porém, de acordo com os ur- a ser colocado em pauta nas operações mais
banistas João Whitaker e Mariana Fix, que “no recentes, como a Água Branca. “O que mudou
caso das CEPACs a ‘mina’ só renderá se os in- nas operações mais novas? Você tem um plano
vestimentos públicos urbanos forem condicio- de ação que é aprovado e hierarquizado. A pe-
nados pelos interesses do mercado imobiliário. gadinha é que você tinha a habitação antes no
Pelos interesses sobre uma pequena parte da ci- plano, mas ela estava em último. Então agora,
dade, pois 70% de São Paulo é economicamen- na Água Branca, por exemplo, que já é um mo-
te excluída e não faz parte do mercado”. Nesse delo novo, tem que fazer habitação primeiro.
ponto, chega-se à questão sobre a qual já fala- E qual foi o resultado? Operação Água Branca
mos: o plano da época da ditadura militar de quase não vende Cepac”.
“embelezar” a metrópole paulista e, para isso, A fala da professora demonstra com clare-
escolheu-se o eixo que sai do centro sentido za a forma de expansão e de “melhoramento”
sudoeste. A Vila Olímpia encontra-se no meio da cidade: os interessados querem que o local
desse complexo, um dos mais privilegiados com fique mais apropriado para si próprios e não
investimentos públicos em São Paulo. para a população.
A renovação urbana pretendida pela Ope- Com a introdução desse modelo da Cepac,
ração Urbana atingiu fortemente a Vila Olím- a Vila Olímpia tornou-se um local diferente. A
pia, pois até antes disso, a Faria Lima não che- partir desse momento existia um incentivo do
gava até o bairro e acabava na avenida Cidade próprio Poder Público para a construção civil.
Jardim. Tanto que passar a pé pelo novo trecho E como quem pagava por isso era a iniciativa
da avenida nos faz observar a grande diferença privada, nada mais justo, na ótica deles, que o
dos prédios para o resto dela. bairro se tornasse o quintal particular de seus
A operação foi vendida como um impor- interesses econômicos. Mesmo que, para isso,
tante modo de trazer estabilidade “social”, agravasse a desigualdade no local e a segrega-
porém, a professora de planejamento urbano ção da camada mais baixa da população.
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da A Operação Urbana Faria Lima foi um “su-
Universidade de São Paulo (FAU-USP), Luciana cesso absoluto” na época e agitou o mercado
Royer explica que não havia uma determina- imobiliário de uma forma poucas vezes vista
ção clara de direcionamento do dinheiro para em São Paulo. A partir de então, a tendência

92 93
que já existia de verticalização do local se es- rego Uberabinha, a canalização do afluente e
tendeu e continuou crescendo. O mesmo le- a construção da Avenida Hélio Pellegrino, que
vantamento do Estadão que apontava cerca de poucos anos mais tarde se ligaria à “nova Faria
1/4 dos imóveis paulistanos sendo da década Lima”, uma nova possibilidade se abriu para a
de 1970, aponta que na baixa Vila Olímpia as chegada de pessoas ao bairro. As novas vias trou-
construções foram edificadas principalmente a xeram novos carros, novas pessoas e novos cos-
partir dos anos 1980, com foco especial para a tumes. Perto do ano 2000 a Vila Olímpia come-
década de 1990 e depois do ano 2000. A alta çou a ganhar fama pelos bares, boates e baladas.
Vila Olímpia, porém, foi a que sofreu menos O bairro crescia, mas os grandes terrenos e
com o assédio das construtoras e incorporado- galpões permaneceram em várias partes e isso
ras, pois uma parte significativa do bairro ainda facilitou a entrada de várias baladas. Fernando
conta com construções mais antigas de casas e Stickel descreve essa época como um verdadei-
sobrados mais simples. ro inferno. “Nessa esquina aqui, na Hélio Pele-
grino com a Ribeirão Claro, tinha quatro bares.
E aqui, onde é esse prédio aqui do lado, tinha
uma boate. Bom, tinha dias que eu não conse-
CAOS INSTAURADO guia chegar em casa. Eu morava nesse prédio
aqui [em frente à janela da Fundação Stickel],
Muita coisa se passou na Vila Olímpia para prédio cinza. Tudo travava aqui. De noite, os
ela ter o aspecto de hoje. Um aspecto estranho, carinha para o carro, ficava tomando cerveja
deve-se notar. De um bairro quase estritamen- com a cerveja em cima do carro, ligava o som
te residencial nasceu um dos mais importantes alto. Aí o outro quer passar, não tem como pas-
polos financeiros de São Paulo. Por estar entre sar”, conta o artista plástico. Ele também obser-
a Avenida Faria Lima e a Avenida Luis Carlos va as mudanças que ocorreram nos estabeleci-
Berrini, os empreendedores da cidade se apro- mentos com o passar dos anos, adaptando-se
veitaram de sua localização privilegiada e vi- à nova demanda empresarial local. “Essa fase
ram uma oportunidade única de crescimento. foi uma fase muito ruim, porque não tinha só
A Operação Urbana já tinha tirado os entraves uma boate, era uma boate por quarteirão. A
para a chegada de novos edifícios e a infraes- volta toda aqui tinha boate. Várias dessas bo-
trutura já estava melhor. ates viraram bufê. Então você anda aqui pelos
Com a derrubada da favela à beira do cór- quarteirões, você vai ver que tem muito bufê,

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porque são sempre espaços grandes”. O acesso ao bairro sempre foi um desafio
Em 2001, o então Governador de São Pau- para os moradores e trabalhadores. Em 1993,
lo, Geraldo Alckmin participou pessoalmente pouco tempo antes das Operações Urbanas,
da inauguração da estação Vila Olímpia, da havia apenas uma linha de ônibus, que passava
Companhia Paulista de Trens Metropolitanos pela Rua Ramos Batista e ia até a Rua General
(CPTM) e afirmou que cerca de um milhão de Osório, na região da Santa Ifigênia, no centro de
pessoas seriam beneficiadas com a nova esta- São Paulo. Com o passar dos anos o transpor-
ção. O ponto foi o último das sete novas esta- te coletivo chegou timidamente à região, mas
ções entregues na linha esmeralda dos trens. para ter uma ideia, em 2009, de acordo com
Vale lembrar que a partir dos anos 1990, o Go- um levantamento da Folha de S. Paulo, a Vila
verno comprou os famosos “trens espanhóis” Olímpia tinha mais helipontos (estacionamen-
para a linha em questão. Isso representava uma to de helicópteros) do que pontos de ônibus.
clara modernização do precário sistema de Eram 25 locais específicos para o transporte aé-
trens na cidade e já apontava para uma valo- reo, contra 24 paradas dos veículos terrestres.
rização do local. Foi a primeira linha e ter esse Além do elitismo que essa mensagem passa,
tipo de sofisticação, enquanto as outras linhas percebe-se o quanto o bairro cresceu desorde-
permaneciam com trens muito antigos. A inten- nadamente e sem planejamento prévio.
ção, de acordo com Mário Covas, o idealizador Em 2005, chega uma das principais âncoras
do projeto, era dar um “padrão de Metrô” ao para investimento internacional: a Villa Daslu. O
ramal ferroviário ao lado do Rio Pinheiros. centro de artigos de luxo, considerada a “Meca
A estação da Vila Olímpia é o quinto ponto dos estilistas” e também chamada de “templo do
mais movimentado da Linha 9 Esmeralda. De luxo” foi muito importante para atrair um novo
acordo com dados oficiais da CPTM, apenas Pi- público para o local. A loja contava com 20mil
nheiros (126.869), Santo Amaro (94.563), Gra- m² e chegou a ter 700 funcionários em seu auge.
jaú (73.007) e Osasco (61.614) movimentaram Mas a aparente opulência durou pouco, já que
mais gente que a Vila Olímpia, no mês de outu- no mesmo ano a presidente da empresa, Eliana
bro de 2019, que teve, em média, 39.083 pas- Tranchesi foi presa na “Operação Narciso”, que
sageiros por dia útil. Um número bem superior investigava denúncias de sonegação fiscal da
de outros importantes pontos financeiros e de loja das elites. A alta influência – e dinheiro – de
serviço da linha como o Morumbi (30.539) e a Tranchesi trouxer
trouxe um novo padrão de consumo
Berrini (23.919). para a região. A loja fechou alguns anos depois,

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mas a semente já tinha sido plantada. Pois bem, O bairro mexe com o imaginário de diver-
ao lado do antigo prédio da Daslu, no mesmo sos estudantes de comunicação, especialmen-
terreno, nasceu um dos shoppings centers mais te publicitários. Já que lá estão concentradas
elitistas de toda São Paulo: o JK Iguatemi, que muitas das grandes agências de publicidade
costuma receber visitas ilustres como Fausto Sil- tanto brasileiras, quanto estrangeiras. Podemos
va e Neymar (ambos acompanhados por segu- citar as conhecidas Publicis e WMcCann. Além
ranças), e conta com as mais caras marcas de disso, a MullenLowe, a SunsetDDB e a DPZ&T.
roupas e utensílios domésticos. Nada mais apropriado para profissionais de pu-
Muitas empresas viram que a Vila Olímpia blicidade que um bairro que se sustenta pela
despontava como um lugar interessante e come- venda de sua própria imagem.
çaram a levar seus escritórios para lá. O endere- Com todos esses novos profissionais na
ço de muitas grandes e importantes empresas, área, muitos deles de passagem, surgiram diver-
de diversos ramos, é na Vila Olímpia, hoje em sos hotéis no bairro para atender à demanda
dia. É possível fazer uma longa lista com as com- de pessoas que vêm de outros estados do Brasil
panhias que se instalaram há não muito mais de e, principalmente, para pessoas de fora. Hotéis
uma década na região. Santander, Microsoft, de alto padrão tomam conta da Vila Olímpia,
WTorre, Amazon, Parmalat, Motorola, Decolar, como o Estanplaza, o Mercure e o Radisson, três
Cyrella, Johnson e Johnson, Votorantim, MRV hotéis de alto padrão, na baixa Vila Olímpia,
Engenharia, Camargo Corrêa... A lista é longa. com a diária mais barata custando R$550 em
Além de tudo, as mais importantes redes sociais um deles. Na alta Vila Olímpia há, também, o
têm seus quartéis-generais no Brasil, ali na Vila internacional Blue Tree Premium, bem ao lado
Olímpia. O Facebook, Twitter e o Google estão da chamada “esquina da riqueza”, entre a Fa-
na região e controlam grande parte dos aces- ria Lima e a JK. Mas o mais impressionante de
sos de redes sociais on-line entre os brasileiros. todos eles é, com certeza, o complexo do Gran
Conteúdo de jornalismo esportivo e transmis- Mercure e o Hotel Pullman. Eles estão localiza-
são de jogos também tem forte presença por dos na Rua das Olimpíadas, bem próximos ao
ali, pois o novo escritório do recém-importado Shopping Center Vila Olímpia e contam com
DAZN (chamado “Netflix dos esportes”) fica na dois imensos edifícios em que o luxo é perce-
região do Shopping Vila Olímpia, além da Tur- bido da rua. A estrutura dos hotéis permite que
ner (dona do Esporte Interativo e da TNT) e a haja diversas reuniões de negócios dentro do
produção dos canais Fox em São Paulo. próprio hotel. Sua vista e localização são atrati-

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vas para diversas personalidades. Por exemplo, Guimarães, Dody e Jaime Sirena, donos da
durante a Copa América de 2019, disputada no incorporadora Emoções. Na festa de inaugu-
Brasil, a seleção brasileira de Tite, com todas as ração do condomínio, em 2014, o “Rei” come-
suas estrelas internacionais (incluindo Neymar, morou a entrada ao ramo imobiliário: “Quan-
que não jogou por lesão, mas acompanhou o do menino, achava que seria caminhoneiro ou
grupo) ficaram hospedados no Gran Mercure. arquiteto. Até hoje, faço meus desenhos. Hoje,
Não era raro ver entradas ao vivo da SporTV na realizo o sonho de entrar para o mercado imo-
frente do luxuoso e gigante complexo de hotéis. biliário com um edifício com o nome de uma
Em 2019, a Microsoft deixou a Avenida de minhas músicas. Para mim, é uma alegria,
Luis Carlos Berrini e mudou-se para um dos uma emoção muito grande”, disse o cantor à
mais modernos e chamativos empreendimen- Veja São Paulo.
tos de alto padrão da Vila Olímpia: o São Paulo Chegadas “triunfais” como essas, de edifícios
Corporate Towers. A empresa estadunidense vistosos e exuberantes fizeram com que grande
de Bill Gates faz esse movimento e só confirma parte da mídia abraçasse a “nova cidade” que
uma tendência que se estende por muitos anos: nascia às margens do Rio Pinheiros. Esse termo
a da concentração de empresas globais em um foi usado pela Veja São Paulo para referir-se à
local geográfico específico e com prédios mais tendência de valorização e chegada de capital
adaptados às demandas de tecnologia. estrangeiro para a região da antiga várzea do
Além disso, diversos condomínios residen- afluente. “Prédios arrojados e uma atração atrás
ciais de
ciais de alto
alto padrão
padrãobrotavam
brotavam nonahorizonte.
região. ÉÉ da outra fazem explodir a região da Marginal Pi-
o caso, por exemplo, do condomínio Horizon- nheiros e Berrini”, dizia o subtítulo da matéria de
te, na Avenida Juscelino Kubitschek. O impres- capa da “Vejinha” de 13 de setembro de 1995.
sionante empreendimento misto (residencial e Outra matéria, dessa vez do Estadão, referia-se à
empresarial) é um dos mais vistosos edifícios da modernização da área da Avenida Juscelino Ku-
região e conta com 39 andares (o mais alto da bitschek como “O triunfo da JK”. São incontáveis
avenida), 266 apartamentos e 80 unidades para os exemplos de como a imprensa, e mais especi-
empresas. O custo do projeto foi de cerca de ficamente a paulistana, louvou o tal “progresso”
R$100 milhões. O edifício foi construído pela do local, mesmo que ele tenha sido responsável
incorporadora de um personagem peculiar na por vários desabrigados e tenha mudado com-
história da música brasileira: Roberto Carlos, pletamente não apenas o cenário, mas a forma
em associação com os empresários Ubirajara de interação social entre os habitantes. O papel

100 101
da mídia é fundamental na venda de uma ideia e lugares que resistiram ao assédio das construto-
essa ideia tem encontrado repouso no imaginá- ras e incorporadoras continuam como peque-
rio de muitas pessoas sobre um ideal de vida em nas casas. Mas grande parte delas não é usada
uma metrópole. A prova disso está no desconhe- mais para residência pessoal, antes se observou
cimento da história do local que muitas pessoas uma mudança de uso e várias casas tornaram-
apresentam. Uma pesquisa informal realizada -se comércios adaptados.
com 129 pessoas apontou que apenas 13 delas Por esse crescimento constante, a Vila
(10%) sabiam que a Vila Olímpia já tinha sido um Olímpia, de terra desvalorizada e rejeitada pas-
bairro de classe média baixa, ou até mesmo, po- sou a ser um dos mais cobiçados e caros metros
bre. As outras 116 (90%) não tinham sequer ideia quadrados da cidade de São Paulo. Estima-se
de mudança no agora conhecido bairro. que, em média, um metro quadrado no bairro
A baixa Vila Olímpia foi a mais afetada pe- valha cerca de R$12 mil para a compra.
las Operações Urbanas e é a que sofreu maior
densificação. A maioria das empresas interna-
---
cionais e grande parte dos megaempreendi-
mentos estão na região que fora a mais desvalo-
rizada no passado. Um levantamento divulgado Dificilmente a dona Olímpia, esposa de Po-
pelo sociólogo Dan Levy aponta que existe uma licarpo Corrêa, acreditaria no que se tornou a
clara diferença entre o perfil de moradores da sua antiga e mansa chácara. O bairro mudou.
baixa e da alta Vila Olímpia. De acordo com Talvez ela até ficasse um tanto ofendida ao sa-
ele, “os habitantes entre 25 e 49 anos (perfil do ber que a cercania agora é chamada pelos jo-
morador jovem), concentram-se mais na Baixa vens empreendedores de “Vilompa”.
Vila Olímpia, e os habitantes entre 50 a 89 anos A finalidade deixou de ser o abrigo de uma
(perfil do morador antigo), concentram-se mais casa e tornou-se negócio, ou business,
business na lin-
na Alta Vila Olímpia”. Por isso, é muito mais fá- guagem vilolimpiense. Na Vila Olímpia o que
cil você encontrar um morador antigo da re- importa é fazer negócio, correr dinheiro por
gião em uma casa térrea ou um sobrado, en- meio de contatos estrangeiros. O bairro de
quanto os mais jovens procuram condomínios arquitetura “moderna”, conforme muitos cha-
fechados e prédios altos. mam, te faz olhar para cima e contemplar os
O bairro torna-se um importantíssimo pon- milhares de espelhos que fazem com que o bair-
to financeiro e de serviços de São Paulo. Muitos ro receba iluminação e calor em dobro nos dias

102 103
quentes. Olhar para cima, porém, pode causar se são ruins nem importam se são boas. A cida-
alguns acidentes pelas absurdamente esburaca- de se apresenta centro das ambições para men-
das calçadas. Talvez, os ossos do ofício de se digos ou ricos e outras armações. Coletivos,
negociar na Vila Olímpia sejam com os custos automóveis, motos e metrôs. Trabalhadores,
de um mecânico para o carro, já que dificil- patrões, policiais, camelôs. A cidade não para,
mente se trafega em uma rua sem buracos. Isso a cidade só cresce. O de cima sobe e o de baixo
quando as vias não estão parcialmente fecha- desce”.
das para obras durante o horário de expediente Curiosamente, esse crescimento desenfrea-
das pessoas. Quebra, arruma, racha, conserta... do pode trazer algumas coincidências bisonhas
Dessa forma, a Vila Olímpia dá uma sufocante – ou nem tanto assim. É um bairro que sugere
sensação de eterna reforma de um bairro que mensagens, mas não as afirma.
não quer parar de se aperfeiçoar para receber A “Nova Faria Lima” termina na esquina
mais dinheiro estrangeiro. da Hélio Pellegrino. Bem ao lado do começo
Em pelo menos uma coisa o morador de da nova via há uma pequena praça – hoje cui-
rua, Carlos Robson, de 35 anos, e a dona de res- dada pela parceria público-privada –, denomi-
taurante caseiro, Yolanda, de 83 anos, concor- nada Praça Júlio Conceição Neves. Na hora, a
dam: “tem muita gente mal educada aqui”. Os referência que vem à cabeça é o arquiteto res-
dois, com realidades completamente distintas, ponsável pelo projeto da “Nova Faria Lima” e o
apontam para algo notório dos novos tempos mais curioso disso tudo é que a rua que começa
do bairro: a paciência com as pessoas diminuiu, após essa praça chama-se Rua Nova Cidade. Pa-
enquanto a distância aumentou, criando verda- rece uma mensagem clara de uma homenagem
deiras ilhas com um único e exclusivo interesse,: ao homem que fez tudo acontecer e a ideia de
aumentar seus números de produção e influên- se criar uma nova São Paulo na Vila Olímpia.
cia para continuar ganhando mais dinheiro. Porém, uma breve pausa na emoção e uma pes-
O saudoso recifense Chico Science escre- quisa rápida apontam que o tal do Júlio da pra-
veu, em 1994, algo que poderia resumir a his- ça, não é o arquiteto, e a Rua Nova Cidade já
tória e o panorama atual, não apenas da Vila existia pelo menos desde a década de 1960.
Olímpia, mas de toda São Paulo: “O sol nasce A Vila Olímpia é um bairro difícil de
e ilumina as pedras evoluídas, que cresceram entender...
com a força de pedreiros suicidas, cavaleiros
circularam vigiando as pessoas, não importam

104 105
GENTRIFICAÇÃO

107
Seria previsível, e até clichê, começar um
ensaio sobre gentrificação perguntando: “gentri
o quê?”. O fato é que esse modelinho ajuda a
criar certa empatia com o leitor que não co-
nhece nada sobre o assunto. É como se o escri-
tor dissesse: “ei, está tudo bem, o termo é difícil
mesmo”. Por isso, não escondo minha tentação
de usar essa fórmula. Mas, além de tudo, seria
uma cópia de um dos primeiros resultados do
Google para o termo “gentrificação”.
De fato, trata-se de uma palavra complica-
da em sua articulação. O conceito teórico tam-
bém não é exatamente dos mais fáceis, mas a
prática da gentrificação pode ser observada a
olho nu em grandes cidades como São Paulo,
e, de forma acentuada, na Vila Olímpia.
O termo “gentrificação” é uma versão
portuguesa para gentrification. Essa palavra foi
usada pela primeira vez pela socióloga inglesa
Ruth Glass, em 1964, para falar sobre o movi-
mento de substituição de classes em alguns be-
cos de Londres, chamados de mews. Esse tipo
de construção na Inglaterra antiga entre os sé-
culos XVII e XIX abrigava a classe trabalhadora

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mais pobre da cidade e vários empregados de enobrecer um local, e gentrificação é o nome do
pessoas que montavam estábulos nessas rua- processo de expulsão dos pobres de uma região
zinhas. A faixa central dessas pequenas vias ti- da cidade para a chegada de pessoas mais ricas.
nha um canal de escoamento de água que os Mas não se trata apenas da chegada de
cavalos usavam para beber. Sendo assim, as uma nova classe por si só. O estabelecimento
modestas residências desses becos eram popu- de gente com maior poder aquisitivo em uma
lares e desvalorizadas, por causa da sujeira e região traz consigo os hábitos de consumo de-
mau cheiro. Além de tudo, os moradores e suas les. Como, desde sempre, os ricos procuram
casas ficavam escondidos da face principal da se diferenciar dos pobres – especialmente pela
metrópole, seguindo à risca a regra higienista estética –, um endinheirado não terá o mes-
que determina que os pobres fiquem longe dos mo tipo de consumo que um pobre. Por isso, a
pontos mais importantes de uma cidade. vendinha simples da esquina começa a perder
Com o tempo, e a chegada do automóvel força, pois, caso se mantenha fiel ao público
particular, os cavalos e as carroças deixam Lon- mais popular vai perder clientela, pelo fato de a
dres. Os mews, antiga moradia das classes mais maioria dos pobres estarem deixando o bairro.
baixas, começam a se transformar em um pon- Para sobreviver, o dono da mercearia, da pada-
to interessante para artistas e pessoas “descola- ria e da farmácia aumenta os preços. Com mais
das”. Por ser um local de baixo valor imobiliário, dinheiro entrando é importante que se faça
aos poucos, os novos moradores mudam a cara uma reforma para parecer mais bonito ou hi-
dessas vilinhas. Reconstroem as casas, aumen- giênico, e enquadrar-se às demandas do novo
tam-nas e trazem consigo hábitos diferentes e público. Quando se percebe, os valores dos ser-
mais dinheiro. A gentrificação, observada por viços já aumentaram muito. E não apenas da
Ruth Glass, deu-se pela chegada de uma classe tal vendinha, mas de toda a região que “não
mais rica a um lugar originariamente popular e quer ficar para trás”. Por isso, o custo de vida na
desvalorizado. Os pobres foram expulsos pelo região aumenta consideravelmente, pois prati-
poder de compra dessa nova classe que mi- camente tudo está mais caro, do mercado ao
grava para lá e tiveram que achar lugares mais posto de gasolina. Do boteco ao cabeleireiro.
afastados do centro para viver. Da farmácia à livraria.
Gentry é a palavra em inglês que denota O custo de vida se eleva, a inflação do país
pessoas “bem-nascidas” ou de origem nobre. sobe e o salário do trabalhador popular conti-
Por isso, gentrificar significa, a grosso modo, nua a ser insuficiente para bancar uma vida em

110 111
regiões com maior concentração de pobreza, região, pois o bairro era um reduto de antigos
quem dirá em uma área que era pobre e tor- imigrantes portugueses, que vieram ao Brasil
nou-se nobre. para tentar ganhar a vida nas indústrias. Além
disso, é formada por migrantes do Nordeste do
país, que desceram a São Paulo em busca de
uma condição mais digna. Com o passar dos
IDENTIFICANDO A TAL DA GENTRIFICAÇÃO anos, a Vila Olímpia caracterizou-se como um
bairro popular e de classe média baixa. Até que
Algo importante de notar desde já é que a partir dos anos 1970, com as obras de melho-
a gentrificação não surgiu nos anos 1960. Ela ria da infraestrutura do bairro começa a chegar
foi observada e teorizada nesse período, mas um novo público. Especialmente após as Ope-
demarca um modo de expansão comum das ci- rações Urbanas de 1995, o terreno começou a
dades capitalistas. Para ser considerada gentrifi- valorizar e atrair pessoas com poder aquisitivo
cação, e não apenas renovação urbana, o pro- maior. Duas favelas foram removidas da região
cesso segue algumas características específicas. para obras viárias. Os imensos prédios de escri-
Há pelo menos quatro pontos a serem ob- tórios e as opulentes torres residenciais come-
servados no andamento do enobrecimento de çam a dar as cartas do novo visual e dos novos
um local para ser considerado gentrificação. O frequentadores do bairro.
primeiro deles é exatamente a questão da subs- O segundo ponto diz sobre a uniformiza-
tituição de classes mais pobres por outras eliti- ção das pessoas que chegaram à região. Isso é
zadas. Em seguida, deve-se notar se as pessoas comprovado por uma simples caminhada pelas
que chegaram ao bairro ou região têm estilos partes mais residenciais do bairro. Com a valo-
de vida e características culturais parecidas. O rização do local, surgiram vários tipos de equi-
terceiro ponto é a transformação do aspecto vi- pamentos culturais como teatros, cinemas e
sual do bairro, a conhecida mudança da “cara” houve a transformação do Parque do Povo. Os
de um local. O último tópico, uma mudança no moradores de lá se aproveitam dessas opções
uso do solo, em que novos papéis e funções são de lazer elitizado. Grande parte dos moradores
dados a antigas construções e terrenos. trabalha nas empresas ao entorno. O perfil so-
Na Vila Olímpia é possível observar esses cial é bastante claro, pois, de acordo com da-
quatro pontos. dos do Centro de Estudos da Metrópole (CEM),
Houve uma mudança dos moradores da 87,5% da população da Vila Olímpia é branca,

112 113
e a média de renda mensal do bairro como um sofisticação que o público demanda.
todo (contando com os moradores da favela
do Coliseu) é de R$11.596,65 por domicílio.
Levando em conta que o rendimento de mui-
tos da comunidade do Coliseu é de um salá-
rio mínimo, às vezes até menos, o valor pode
NOVO CENTRO DAS ELITES
ser entendido como uma média que coloca os Um termo que causa certa polêmica quan-
rendimentos mais altos e mais baixos na mes- do se trata de gentrificação é a “expulsão dos
ma prateleira, tornando-os discrepantes entre pobres”. Há uma tendência a se negar a exclu-
si. Para contrastar com esse número, podemos são das pessoas de baixa renda e muitas vezes
pegar o exemplo da Brasilândia, bairro popular o argumento usado é o de que “quem escolhe
da zona norte de São Paulo. Ali a renda média sair são eles” ou “ninguém colocou uma arma
mensal por casa é de cerca de R$1.963,39. na cabeça deles e falou para saírem de lá”. E
A mudança do visual do bairro é, talvez, o aqui está um ponto muito importante, pois a
caso mais gritante da transformação da região. expulsão, muitas vezes, não é fisicamente vio-
As antigas casas térreas e alguns sobrados sim- lenta. Ela ocorre por meios mais sutis, em que
ples da região foram demolidos e deram lugar a pessoa percebe que sua renda mensal já não
a prédios espelhados de escritórios ou residen- comporta os gastos básicos de uma família na
ciais de alto padrão (e valor). região valorizada. Além disso, a nova feição
A mudança do uso do solo também é bas- que um bairro em processo de gentrificação
tante característica. Em determinadas partes da ganha faz com que a população pobre sinta-se
cercania, a Prefeitura não autorizou a constru- deslocada e perca o elemento de identificação
ção de prédios e as pequenas casas geminadas com a região.
permaneceram. Mas, quase nenhuma delas É o que acontece nas ruas da Vila Olímpia,
hoje é para fins residenciais. As ruas Chilon, Mi- pois com os comércios caros, qualquer pessoa
nistro Jesuíno e outras estão infestadas dessas que não esteja trajada de acordo com o que
casinhas que se tornaram pontos comerciais. se espera do local recebe um olhar torto, no
Hamburguerias gourmet, bombonieres, restau- mínimo. A gentrificação tende a acabar com os
rantes, clínicas de estética, barbearias, cabelei- espaços públicos e ergue muros para preservar
reiros, há muitas opções de comércio para as o patrimônio e paz da iniciativa privada. Cria
pessoas que trabalham ali. Tudo com a devida barreiras, às vezes físicas, às vezes invisíveis,

114 115
mas todas elas perceptíveis. esse é um privilégio que uma parcela muito pe-
Há o caso, por exemplo, do Shopping JK quena da população pode ter. Por se tratar de
Iguatemi, um dos maiores templos de luxo e um centro financeiro, a região concentra um
de compras das elites paulistanas. A cerca de número grande de empregos. Os mais pobres
200 metros do local há a favela do Coliseu, um têm que se contentar em fazer longas viagens
símbolo de resistência e luta contra a gentrifi- para chegar à “Meca do dinheiro paulistano”,
cação. Muitos moradores relatam que basta se enquanto vários executivos, empresários e em-
aproximar do shopping para que os seguranças preendedores podem se dar ao luxo de chegar
do local já olhem torto. Caso entrem no estabe- em seus escritórios a pé, com uma caminhada
lecimento, são inevitavelmente seguidos pelos de dez minutos.
guardinhas. Dessa forma, cria-se uma sociabilização
Nesse ponto, percebe-se uma das conse- centrada apenas em um local, pois concentra
quências mais nefastas da gentrificação: a se- trabalho, moradia e lazer, as três grandes ins-
gregação e a discriminação. Mesmo presentes tituições de um paulistano da gema. Assim, o
na região desde os anos 1950, os moradores da rico não precisa passar por setores afastados e
Coliseu perderam o direito de andar em liber- mais pobres da cidade e continua criando den-
dade no pátio das elites. Direito de ir e vir está tro de si uma imagem manca da cidade.
decretado tanto na Constituição Federal Brasi-
leira, quanto na Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos, mas ali essas leis parecem ter
pouco valor, quando comparadas às bolsas da
Prada, ou aos cintos de mais de R$10 mil de
GENTRIFICAÇÃO E IDEOLOGIA
Ermenegildo Zegna. Muitos críticos dos estudos sobre gentrifi-
No circo particular das elites, o pobre é cação afirmam que falta “isenção” quando se
sempre suspeito. fala do tema, pois supostamente só se aborda
A Vila Olímpia deixou de ser um bairro de “o lado ruim” da questão e se esquece das me-
chácaras para se tornar um importante centro lhorias gozadas por todos que vivem ali. Quem
financeiro de São Paulo. Sendo assim, a cres- critica quase sempre fala em “liberdade” para
cente construção de edifícios residenciais do os investimentos e para as escolhas de se che-
mais alto padrão faz sentido, pois ninguém gar a um novo local.
quer morar longe de seu local de trabalho, mas A questão é que a isenção ou a falta dela

116 117
não muda a realidade, muitas pessoas perdem mais importante de tudo, coloca a pobreza de-
suas casas, perdem a possibilidade de sobrevi- las como um empecilho à melhoria da cidade,
ver em um local chamado de seu. pois se onde morasse não fosse pobre, aquele
Para que os empreendedores achem me- lugar também seria “bom”.
nos resistência aos seus planos para um trecho Essa ideia não foi parar na mente de uma
da cidade, é necessário que se venda a ideia de pessoa de baixa renda por acaso, mas é parte de
gentrificação como algo bom. E o primeiro pas- um processo que visa trazer submissão à clas-
so para eles, obviamente, é nunca citar o termo se popular para diminuir a resistência. A partir
em estudo. Cria-se um eufemismo, de acordo disso, a mídia entra como um aliado poderoso
com Neil Smith, e a expressão muitas vezes das elites (até porque os meios de comunicação
usada é “regeneração urbana”. Além de ser tradicionais são controlados por elas), pois as
de mais fácil compreensão, essas duas palavras grandes transformações urbanas sempre ven-
combinadas parecem muito menos agressivas dem uma imagem de felicidade, de uma família
do que o palavrão que estamos vendo aqui. completa sorridente em seus apartamentos lin-
“Essa parte aqui é boa”, é uma fala comum damente mobiliados e tantas outras coisas.
de muitas pessoas ao se referirem a porções A gentrificação foi observada por Ruth Glass
mais ricas da cidade. Mas a pergunta é: boa como uma anomalia na cidade. Algo que acon-
para quem? Aqui caímos em um importan- teceu meio que “por acaso”, pela oportunidade
te, delicado e sutil tema ideológico. O “bom” do momento de mudanças na sociedade. Po-
é sempre o padrão tipificado por aquilo que o rém, hoje, esse processo se tornou um modelo
dinheiro construiu. Claro que regiões mais ricas padrão de “melhoria” de uma metrópole.
contam, em tese, com ruas menos esburacadas, Muito disso se dá porque até metade dos
um sistema de saneamento funcional, mais ár- anos 1970, “as instituições financeiras não se
vores, calçadas retas e tantas outras coisas que mostraram interessadas por investimentos im-
elevam o valor e a qualidade de vida. Acontece portantes em zonas ainda consideradas ‘deca-
que lugares como esses são, via de regra, alta- dentes’”, de acordo com o Neil Smith. A partir
mente exclusivos – digo no sentido de excluir e do fim dos anos 1970, ocorre uma mudança na
segregar mesmo. A pessoa pobre que fala que tendência de mercado, pois se percebeu que
tal lugar é bom, automaticamente, coloca-se “revitalizar” áreas populares trazia lucro e era
a uma posição de inferioridade, pois o bom é bastante rentável.
sempre inatingível para a realidade dela. E, o Desde então, os promotores imobiliários

118 119
começaram a ganhar nova importância e per- Por isso, não assusta que uma das pessoas
cebeu-se que derrubar obras antigas, construir que trabalham na Associação Colmeia tenha
novos edifícios e casas do zero fazia com que a dito que “a região da Vila Olímpia estava aban-
região valorizasse ainda mais. Com a região va- donada”, para justificar o movimento de eno-
lorizada, o imóvel recém-construído é alvo de brecimento do local, mesmo que essa visão seja
uma consequente valorização ainda maior, pois desmentida por vários moradores do bairro.
atuou como “ponta-de-lança” em um processo
similar ao do desbravamento de um local. Ou
seja, foi o “pioneiro” em uma região.
Acontece que o tal “pioneirismo” também
configura uma ideologia torta, pois ele é exclu-
NÃO SOBROU MUITA GENTE, NÃO...
dente com o que já havia ali. As palavras de Relatos do artista plástico Fernando Stickel,
Neil Smith são valiosas nesse contexto. “O ter- de 70 anos, e de Yolanda, de 83, têm uma coisa
mo ‘pioneiro urbano’ é tão arrogante quando a em comum: o fato de que praticamente todos
noção original de ‘pioneiro’, visto que ele trans- os conhecidos do bairro saíram de lá a partir
mite a ideia de uma cidade que ainda não é so- dessa “nova ordem” que tomou conta do local.
cialmente habitada; assim como os americanos Stickel relata que amigos, conhecidos e al-
nativos, a classe trabalhadora urbana de hoje gumas indústrias, não conseguiram manter-se
é vista como menos do que social, como uma na “nova Vila Olímpia”. “De frente, do outro
simples parte do meio físico”. lado da minha rua, tinha um cara que tinha
Existe aqui uma tentativa de impor clara uma loja e foi embora. Tinha uma fulana, que
hierarquia, como se os de cima da pirâmide dis- tinha uma confecção, foi embora. Tinha a For-
sessem: “o mais importante é a nossa obra, pois matex, que eu conhecia, faliu, foi embora. O
nós temos não apenas dinheiro, mas um plano Fausto, que era um fotógrafo, que morava em
específico para esse local. Foda-se que você já uma vilinha, fundos com meu terreno, foi em-
estava aqui. Agora as regras são outras”. É qua- bora. Essa turma mais próxima que eu tô te fa-
se uma versão do século XXI de Maria Antonie- lando foi todo mundo embora. É... Não sobrou
ta, quando supostamente teria dito “se não têm muita gente, não”.
pão, que comam brioches”, a respeito da misé- Por motivos assim, a idosa não hesita em
ria francesa. Para contextualizar em um meme falar que a Vila Olímpia “mudou para pior”,
de nossos dias é o famoso “eles que lutem”. mesmo comentando que gosta muito da nova

120 121
arquitetura espelhada que surgiu pelo bairro.
Os grandes prédios e os vastos jardins são vistos
como algo “muito bonito” pela senhora.
Quando a cidade é tratada como merca-
doria, despreza-se quem vive nela. Diminui-se
a importância da identificação de um morador
com o bairro, menospreza-se a história e ainda
segrega, fazendo o histórico residente sentir-se
desconfortável ou fora de seu ambiente.
A gentrificação é o modo de expansão das
cidades que têm se curvado ao liberalismo eco-
nômico, em que a “concorrência” e a ilusão
do “livre mercado” são os atores principais na
exclusão de quem tem menos poder – leia-se
dinheiro –, para resistir às investidas ferozes do
mercado imobiliário.

122
A CASA DOS
ESPELHOS

123
“Verde, verde, verde neon, torres do novo mundo
Esculpidas em céus acinzentados vinte quatro horas
Eu escorrego pelo teto de vidro para Hollywood”

Damon Albarn

125
mundial. Os vidros espelhados envolvem toda
a estrutura dos dois prédios e absorvem 70%
do calor da luz do sol que incide diretamente
no edifício desde o amanhecer até perto das 17
horas. Além disso, para que os empresários do
local possam trabalhar em paz – apenas com os
ruídos das teclas do computador batendo frene-
Andar pelas ruas, agora largas, da parte bai- ticamente e as conversas em inglês, espanhol e
xa da Vila Olímpia traz uma sensação um tanto até mandarim –, os vidros SunGuard AG43 ate-
quanto estranha. A iluminação natural da luz nuam até 40 decibéis dos sons de fora, e deixam,
do sol, potencializada pelos milhares de vidros assim, as pessoas focadas apenas em seus afaze-
espelhados das torres de negócio, às vezes pro- res, por vezes distraídos pela paisagem de fora.
porciona mais do que a própria luz: traz consigo O projeto dos arranha-céus foi feito em
um calor em dobro, como um verdadeiro tipo parceria entre o escritório de arquitetura bra-
de casa dos espelhos a céu aberto. Essa sensa- sileiro Aflalo & Gasperini com o conceituado
ção se dá para quem está na rua. Não é o caso, Pelli Clark Pelli, dos Estados Unidos. São duas
por exemplo, de quem trabalha na São Paulo torres (Norte e Sul), além de um prédio com
Corporate Towers, um megaempreendimento centro de convenções e outro edifício técnico.
imobiliário que se tornou o “novo cartão pos- Ao todo, são 258.000 m² de área construída.
tal” da Vila Olímpia. Um cartão postal bastante As torres capturam até o olhar desatento
caro por sinal, pois se estima que o custo da e forçam o mais distraído dos passantes a mi-
construção do complexo inteiro tenha girado rar para cima e contemplar, com certo estar-
em torno de 500 milhões a 750 milhões de dó- recimento, as duas estruturas azul escuro, que
lares, o que daria algo entre R$ 2 e R$ 3 bilhões. começam a mostrar sinais das lâmpadas dos es-
As duas imponentes “esculturas”, conforme critórios ligadas conforme a luz do sol começa
descreve o próprio site do empreendimento, a cair.
podem ser vistas até mesmo da estação Jagua- Mais do que chamar a atenção, o megaem-
ré da CPTM (a cerca de 8km dali). Elas chamam preendimento passa uma mensagem clara: “há
a atenção e demarcam um território. As “torres riqueza aqui”. E é exatamente essa prosperida-
gêmeas da Vila Olímpia” contam com o que de que permitiu que a construção dos edifícios
existe de mais fino e sofisticado na arquitetura seguisse um padrão de excelência e recebesse

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o selo Leed. O Leed é um sistema de avaliação ele traz a quem trabalha lá. Mesmo em um lu-
de edifícios sustentáveis ao redor do mundo, gar cheio de prédios “equivalentes”, as torres
que vai desde o projeto até a construção. Por do São Paulo Corporate Towers destoam das
meio de diversos requisitos que devem ser pre- demais e destacam-se. É um verdadeiro espetá-
enchidos, cada empreendimento soma pontos culo a céu aberto. Espetáculo esse que aparece
conforme cada um dos parâmetros é completa- no processo de espetacularização da vida, dessa
do. O SPCT1 recebeu a pontuação máxima e foi vez aplicada à arquitetura, que é um dos mais
considerado um platinum 3.0 pela U.S. Green expressivos modos de demonstrar poder. O po-
Building Council (Conselho de Construção Ver- der citado não é bélico, nem físico. O poder que
de dos Estados Unidos). prédios como o SPCT trazem é o do status.
Muitas dessas coisas descritas até aqui po- Durante alguns meses, trabalhei na torre
dem não fazer muito sentido para quem lê e – também espelhada – que sai de dentro do
pouco conhece da área. E aqui, começamos a Shopping JK Iguatemi, exatamente ao lado do
observar alguns pontos importantes. Apesar de Parque do Povo. Em um dia após o expedien-
não ter claro o que cada uma dessas coisas re- te, fui ao parque para ver o pessoal jogar fu-
presenta, o fato de um selo de reconhecimento tebol nas quadras. Conversando com um dos
internacional – e em especial dos Estados Uni- frequentadores, o Juan, falei que trabalhava ali
dos –, ter sido imputado à obra dá a ela mais na região. Ele perguntou onde, eu apontei para
credibilidade e atratividade para o mercado fi- o lado e indiquei um dos prédios do complexo
nanceiro estrangeiro, que está sempre à procu- JK. Ele imediatamente me olhou e falou “nos-
ra de novos lugares para ostentar poder. Com sa, você é mó boy então”. Respondi que não e
esses clientes “satisfeitos”, fica fácil vender a expliquei que eu era apenas um estagiário pro-
obra para o grande público como algo revolu- veniente de Pirituba. Continuamos conversan-
cionário, bonito e bom para a cidade, ou seja, do e falamos de outras coisas, mas a questão já
só positividade, sem efeitos colaterais. tinha sido posta sobre a mesa: ele me imaginou
O empreendimento é considerado mega como sendo parte da elite exatamente por tra-
não apenas pelas proporções enormes, mas balhar em um local que parece ser destinado
pelo luxo característico e pelas facilidades que para contemplar ricos empresários. Não era o
meu caso. Felizmente, talvez.

1 Sigla para São Paulo Corporate Towers.

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falar em demasia, mas por ora a constatação
BOM PARA O MERCADO IMOBILIÁRIO acima é suficiente.
Embora não seja visível por fora, uma sim-
Não é à toa que esse empreendimento tor- ples olhada no site do SPCT avisa que o em-
nou-se o novo cartão postal da Vila Olímpia, preendimento todo conta com impressionantes
também não é à toa que é possível vê-lo de tão 60 – sim, sessenta – elevadores. São 22 em cada
longas distâncias. Sua localização não foi esco- torre, mais 16 no prédio de convenções. Temos
lhida a olho. Antes, a SPCT é um dos grandes aqui um “exagero” clássico que, se fosse colo-
exemplos do que se pode chamar de arquite- cado em palavras, seria claramente um argu-
tura do espetáculo, que leva a uma ideia de- mento bombástico. Números altos, sejam eles
fendida por Neil Smith: “a imagem retórica da de andares, de elevadores e, especialmente, de
gentrificação”. dinheiro, atraem quem se prontifica a buscar
Entender o que é “retórica” é muito impor- uma instalação para sua empresa no “Vale do
tante. Não quero me prender muito nisso, mas Silício2 brasileiro”.
seria irresponsabilidade passar batido. Retóri- Diante da atual ditadura do capital, presen-
ca, em palavras simples, refere-se ao modo de te na Vila Olímpia de modo claro, quem tem
se vender uma ideia por meio de argumentos, dinheiro tem a oportunidade de ostentar esse
muitas vezes, vazios e “bombásticos”, como de- dinheiro. Porém, mais do que sobre a grana em
fine o dicionário Houaiss. Em um sentido mais si, a verdadeira ostentação observada é a do po-
otimista, refere-se à arte de argumentar bem, der. A socióloga Sharon Zukin denomina gran-
mas na acepção de Smith é essa ênfase gran- des centros financeiros, como é a Vila Olímpia,
diosa e exagerada para convencer alguém.
O site oficial do empreendimento vende o
local como sendo “mais que um prédio, uma 2 Vale do Silício é uma região do estado da Califór-
escultura”, grande parte da argumentação des- nia, nos Estados Unidos, com grande concentração
te ensaio encontrará remanso nessa frase, pois de empresas de tecnologia e inovação. É considera-
a imagem retórica da gentrificação vende a do o maior polo criativo e um dos principais polos
financeiros do mundo. Empresas como Facebook,
ideia de uma verdadeira experiência artística.
Twitter, Google, HP, Apple, Netflix, Samsung, Intel,
A arte, porém, foi apropriada pelo capitalismo dentre tantas outras. A sede de várias dessas em-
de forma singular e tornou-se, em grande par- presas na América Latina está na Vila Olímpia ou
te, elitista e excludente. Sobre isso, poderíamos na Faria Lima, como o Google, Twitter e Facebook.

131
130
como “paisagens de poder”. Não é preciso falar não sejam esses”.
muito sobre a relação entre dinheiro e poder, Esse padrão é vendido fortemente pelo
porque no capitalismo (o sistema baseado no movimento da globalização. Mas antes de pros-
crescimento pelo dinheiro), quem tem dinheiro seguir, é necessário lembrar o que é e quais as
tem poder. Talvez seja por motivos como esse implicações da globalização.
que, no alto de seus 14 anos, Mc Zói de Gato,
então morador da Vila Natal, uma comunidade
no Grajaú, falava: “eu não quero buxixo, eu só
quero dinheiro”. Dinheiro traz poder e esse po-
der é imposto por meio de realizações que só o
MAXIMIZAR UMA AMOSTRA
dinheiro consegue financiar. Portanto, percebe- O que é globalizar? É tornar algo específico
-se aqui um grande círculo vicioso. de um local disponível para o ‘globo’, para o mun-
A arquiteta e urbanista, Luciana Royer, pro- do. Globalizar implica tomar algo como padrão e
fessora da Faculdade de Arquitetura e Urbanis- reproduzi-lo em escala maior, com pequenas va-
mo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), riações e adaptações. Não se pode exportar toda
explica, em termos simples, o motivo desse tipo a complexidade de uma cultura, por isso, expan-
de obra ser uma prática comum em nossos de-se pedaços e amostras de uma sociedade. A
dias. “Arquitetura do espetáculo faz aumentar globalização, muitas vezes, ignora o local onde
o valor da terra, faz aumentar o que pode ser ela está chegando e tenta reproduzir no novo ter-
construído, o que pode ser usado, [ela segrega] ritório um tipo da cidade globalizante.
quem pode usar. Esse é um papel preponderan- Trabalhemos com exemplos. Os prédios es-
te de dizer: ‘aqui é um lugar de coisas caras, de pelhados são parte essencial da arquitetura esta-
gente chique’”. Tais obras surgem de maneira dunidense de centros financeiros. Para mostrar
imponente e seguem uma concepção de es- que “um pedaço” dos Estados Unidos está aqui
tética e de beleza bastante particular. Prédios no Brasil, cria-se um prédio com características
modernos não se fazem somente com espelhos. similares aos de lá e coloca-o em pleno territó-
Há diversos casos de arquitetura bastante atual, rio paulistano. É um pedaço do exterior aqui.
sem que a parte visual do edifício faça qualquer Por isso, é tão comum ouvir as pessoas dizendo:
referência a esse padrão adotado. Como afir- “nossa, a Vila Olímpia nem parece São Paulo”.
ma Royer: “Você pode fazer melhorias urbanas Exatamente por que a arquitetura do local não
e trabalhar com outros padrões de beleza que foi pensada para endossar os traços caracterís-

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ticos de uma cidade brasileira. Lembram-se do podemos, então, entender a questão como ma-
apelido da Vila Olímpia? “O Vale do Silício bra- ximização de uma amostra.
sileiro”. Pois é, a ideia é exatamente essa. Vamos exemplificar. Quando se fala em
Só que a globalização não atua somente Nova Iorque – tenho usado recorrentemente a
da parte estética e cultural. O grande motor cidade estadunidense, pois ela já está fortemen-
de toda a globalização é o dinheiro, é o poder te cravada no imaginário popular do paulista-
do capital. Por isso, devemos ir mais a fundo e no –, qual a primeira imagem que nos vem à
perguntar: se tais traços da arquitetura não são cabeça? Provavelmente, de uma cidade prós-
frutos da cultura brasileira, quem trouxe esse pera, cheia de prédios e arranha-céus. Porém,
modelo para cá? E quando isso aconteceu? deve-se perguntar: seria Nova Iorque inteira
inteira
Nova Iorque é vista, por muitos brasilei- assim? Ou a imagem que temos de Nova Ior-
ros, como uma cidade padrão. O dinamismo, que é apenas de Manhattan? E os distritos mais
a prosperidade e o “tudo funcionar” dos princi- periféricos como o Brooklyn (hoje bastante
pais centros financeiros da cidade deixam mui- hipsterizado), Queens e Bronx? Poucos pensam
tos paulistanos cheios de inveja. E foi especial- nos bairros do subúrbio nova-iorquino quando
mente por lá, e em Chicago, que começaram o município é citado e isso não se dá por acaso.
a aparecer os primeiros grandes prédios com Cria-se uma imagem manca, unilateral e idea-
acabamento espelhado ou envidraçado. Por lizada de toda a metrópole. Como consequên-
volta da década de 1950, durante os chamados cia, é desenvolvido um tipo de platonismo por
“anos de ouro” dos Estados Unidos, as grandes uma cidade imaginária, pois baseia-se em ape-
companhias começaram a ter suas sedes em nas um pequeno recorte dela.
prédios com esse padrão. Em pouco tempo, Da mesma forma que a partir dos anos 1980
durante aquela década e a seguinte, o prédio a Avenida Paulista tornou-se o cartão-postal de
espelhado tornou-se sinônimo de local corpo- São Paulo, hoje, sem nenhuma dúvida, a paisa-
rativo e de modernidade. gem vendida ao mundo como São Paulo é a pon-
Uma palavra-chave para se entender a co- te Octávio Frias de Oliveira, a conhecida Ponte
mercialização desse tipo de arquitetura é exa- Estaiada da Avenida Jornalista Roberto Marinho
tamente a expressão “padrão”. Padrão porque que, inclusive, é o cenário dos jornais regionais
essa é a forma de expansão da globalização. da Rede Globo de televisão. A região conta com
Lembrando-se da ideia de que globalizar é tor- os chamativos prédios do Centro Empresarial
nar algo particular em um fenômeno mundial, Nações Unidas (CENU), além da sede brasileira

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do World Trade Center3, dentre outros. prédios megalomaníacos, as empresas privadas
E o que essas coisas têm em comum? ajudam, com seu capital acumulado, a cuidar
Tanto a Paulista quanto o eixo Berrini-Vila melhor da região onde estão inseridas, tornan-
Olímpia são centros financeiros da capital de do, assim, o entorno visualmente mais “bonito”,
São Paulo. Dificilmente a Ponte Estaiada sobre ou bem cuidado, para ser mais preciso.
o Rio Pinheiros se tornaria cartão-postal se es-
tivesse inserida em outro contexto da cidade.
Por exemplo, há outra ponte estaiada em São
Paulo: a Governador Orestes Quércia, que liga
a Avenida do Estado à Marginal Tietê. E por
VOCÊS DA MÍDIA!
que ela não virou um ponto “turístico”? Um Nesse ponto entra um componente impor-
dos motivos é porque ela está localizada fora tante de toda essa química que é o desenvolvi-
da centralidade financeira. O centro geográfi- mento urbano: a mídia. Os produtos audiovi-
co da cidade e a parte mais ao norte de São suais como filmes, novelas, séries e quaisquer
Paulo não contam com prédios de arquitetura outras produções que trabalhem com a ima-
moderna e contundente, nem estão localizadas gem, como ponto de partida, têm uma parcela
como sedes de grandes empresas multinacio- de participação nessa ideia da imagem retórica.
nais. Não há alto dinheiro sendo desenvolvido Vamos lembrar de alguns pressupostos básicos
e rodado ali. O apelo daquela região se dá de aqui: nenhuma produção audiovisual do mun-
uma forma mais cultural, devido ao sambódro- do atual funciona sem a bússola do dinheiro.
mo e ao centro de convenções Anhembi, mas Para se produzir, gravar e rodar uma película
não financeiro. E é importante entender que é é necessário investimento financeiro. E a finali-
no centro financeiro que a ostentação aconte- dade de cada uma dessas produções é ganhar
ce de forma mais eloquente, porque além dos mais dinheiro. Isso é bastante claro, mas de fun-
damental importância para a compreensão de
todo o processo.
3 Esses dois megaempreendimentos imobiliários Se falarmos em Hollywood e suas imensas
para negócios foram construídos sobre a antiga fa-
produções culturais, veremos que cada uma
vela do Jardim Edith. Houve morte de criança da
comunidade devido a um acidente com os tratores delas expõe e vende um estilo de vida. Nos
na hora das remoções. Para saber melhor do caso, filmes, pessoas bem-sucedidas passeiam pelas
conferir “Parceiros da exclusão”, de Mariana Fix. calçadas da Times Square e entre os milhares

136 137
de prédios corporativos dos Estados Unidos. realidade urbana para se alcançar esse ideal.
Por mais que algumas obras denunciem e ques- Só que para isso, é necessário que a imagem
tionem esses valores impostos pela cultura esta- da gentrificação seja continuamente vendida
dunidense, é fato que as paisagens urbanas dos como algo da ordem natural das cidades.
centros financeiros dos Estados Unidos mexem
com a cabeça do brasileiro, e em especial do
paulistano. Não são poucos os que têm uma
visão distorcida da realidade da cidade devido
ao que já falamos da percepção “manca” de
ROBSON À SOMBRA DOS GIGANTES
metrópole. As obras culturais, hoje presas à va- Exatamente ao lado do empreendimento
lorização comercial, atuam como janelas para da São Paulo Corporate Towers há uma peque-
um novo mundo unidimensional. A realidade na praça entre as ruas Funchal e Senegâmbia.
passada na tela não tem a profundidade, o ca- A Funchal é uma das mais impressionantes vias
lor e as nuances de uma vida real e o mundo da da Vila Olímpia e é um dos principais pontos
ilusão vende que a riqueza se expressa em uma de concentração de prédios espelhados, de alto
vida rodeada de luxo. padrão do bairro. Nessa dita pracinha, realmen-
As palavras do falecido geógrafo Neil Smi- te muito pequena, ficou, durante alguns meses,
th são importantes nesse contexto: “Do mesmo o morador de rua Carlos Robson Pereira. À
modo que a televisão popular faz as massas sombra dos enormes prédios, ele montou uma
acreditarem que as vidas das pessoas ricas e cé- minúscula estrutura para poder dormir. Robson
lebres representam a norma social à qual todo usava alguns plásticos pretos longos para fazer
mundo pode aspirar, a gentrificação produz uma cobertura da sua cabana, e com cordas
uma paisagem urbana que veicula as mesmas finas amarrava as pontas do plástico em uma
aspirações. Nessa paisagem aparentemente árvore, de um lado, e num poste de luz, do ou-
democrática, a extraordinária desigualdade do tro. Além disso, usava uma daquelas grades de
consumo exprime o poder redobrado das clas- separação de público como uma das paredes.
ses que fizeram a linguagem da ‘gentrificação’ Com alguns cobertores de feltro, completava as
chegar ao primeiro plano”. partes que faltavam da sua habitação. Ele mo-
A relação fica explícita nesse trecho ante- rou ali durante poucos meses, bem no coração
rior: a mídia vende um ideal de vida e a gen- da rua, ao lado da luxuosa obra em estudo.
trificação é uma das formas de apropriação da Em um dos dias que eu andava pela Rua

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Funchal, mais exatamente em 22 de maio de mudar para a Coliseu. Enquanto ele contava
2019, massacrado pelo calor do dia, potenciali- sua história, um verso, de novo do Sabotage,
zado pelos reflexos dos prédios ao redor, reparei ecoou na minha cabeça “pra quem nasceu na
que a cabana de Robson não estava mais lá. De sul, sofrimento é evidência”. E é exatamente so-
longe vi o homem em pé ao lado do local onde bre essa região que o homem fala, como sen-
costumava dormir e aproximei-me para falar do uma das maiores felicidades da sua vida: a
com ele. Queria saber se algo tinha acontecido. oportunidade de ter vivido na mesma época
Robson mal me olhava, falava baixo, estava que Ayrton Senna.
cabisbaixo e com os olhos marejados. Ele con- “Ele era brasileiro mesmo”, fala Robson so-
tou que estava ali quando o “rapa” chegou e bre o maior ídolo. O rapaz disse ter presenciado
levou todas as suas coisas embora. De acordo a euforia e aglomeração que aconteciam em
com o morador de 35 anos, a Polícia Militar e seu bairro quando o lendário piloto brasileiro ia
a Guarda Civil Metropolitana fizeram essa ação até lá para competir. “Senna morreu para dar
e tomaram do homem as poucas coisas que ti- orgulho para a gente”, diz o homem, em um
nha. Ele vivia ali, pois não conseguiu dinheiro dos poucos momentos de sorriso de nossa con-
para alugar um barraco na comunidade do Co- versa. “Ó, até arrepia”, falou quando me mos-
liseu. Segundo seu relato, ele viveu uma parte trou o braço, que tinha poucos pelos, mas que
de sua vida ali na favela ao lado. estavam, de fato, arrepiados. Porém, em pou-
“Quando eu voltava lá pra casa, comenta- cos segundos, a tristeza dele volta ao lembrar
va: ‘O crime, jão? Profissão de cão, embosca- que nasceu no mesmo dia que Senna faleceu,
da’. Dizia que o crime é sempre uma arapuca mas 10 anos antes. Robson deixava a infância
armada”. Essa frase dita por Sabotage, lançada quando viu a sua maior referência de brasileiro
em um álbum póstumo de 2016, 13 anos de- ser morto por um acidente em Ímola, na Itália.
pois de sua morte, poderia, muito bem, estar Com a cabeça abaixada, Robson, já sem casa,
na boca de Robson, quando contou que aos 16 só conseguiu falar “é um dia triste”. O dia de
anos foi preso. “Roubava e matava”, lembra-se seu nascimento tornara-se, talvez, um dos dias
o homem, amedrontado. Os 19 anos na cadeia mais tristes de sua vida.
fizeram com que ele fosse abandonado pela es- Tudo isso à sombra do São Paulo Corpora-
posa, junto com os quatro filhos. te Towers.
Carlos Robson conta que cresceu na zona Não é apenas nessa região da Funchal que
sul, perto do autódromo de Interlagos, até se há essa ostentação de poder, há outros pontos

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de concentração de capital no caótico bairro. bilhões de patrimônio. Ele é o segundo maior
A esquina da Avenida Brigadeiro Faria Lima bilionário do país, atrás apenas de Jorge Pau-
com a Juscelino Kubitschek é mais um exemplo lo Lemann, um dos donos da AmBev, além do
simbólico da relação entre paisagem urbana e Burger King e da marca de produtos alimentí-
poder, não à toa é chamada por alguns urba- cios Heinz. O BTG Pactual, por outro lado, tem
nistas como “a esquina da riqueza”. Nos quatro como principal acionista André Esteves, de 50
cantos do encontro entre as avenidas há quatro anos, preso pela Operação Lava-jato em 2015 e
agências de bancos diferentes: Santander, Itaú, absolvido em 2017. Hoje, Esteves não é mais o
Caixa Econômica Federal e Bradesco, além das presidente do banco, mas é o maior financiador
sedes do Banco Safra, do Deutsche Bank e do das ações, com cerca de 68% dos ativos da insti-
Banco do Brasil. Pouco mais ao lado, cerca de tuição financeira. Com R$ 20,75 bilhões em seu
400 metros na Faria Lima, há o imponente pré- patrimônio pessoal, o banqueiro é o sexto maior
dio do Google, que também é a sede do BTG bilionário do Brasil. Mesmo vivendo em Singa-
Pactual, o maior banco de investimentos inde- pura e cuidando de outros negócios, Eduardo
pendente da América Latina, de acordo com a Saverin, um dos fundadores e principais acionis-
revista Forbes. tas do Facebook, ao lado de Mark Zuckerberg,
O que tudo isso tem em comum é o dinhei- ocupa a quarta posição entre os bilionários tu-
ro, pois por mais que aquela região não seja piniquins. Com R$43,16 bilhões em sua conta e
exatamente um centro comercial, a Vila Olím- apenas 37 anos, Saverin é visto como um exem-
pia tornou-se um importantíssimo centro finan- plo de jovem empreendedor do Brasil.
ceiro para a manutenção do capitalismo em E qual seria a relação de Eduardo com a
São Paulo. Antigamente, diziam que São Paulo Vila Olímpia? O escritório do Facebook no Bra-
pararia se a Avenida Paulista acabasse, hoje, sil está localizado a 500 metros da tal “esquina
essa realidade está contida na Vila Olímpia e na da riqueza” da Vila Olímpia. Sua presença é no-
extensão da Faria Lima. tada pelo enorme e moderno prédio espelhado,
O Banco Safra e o BTG Pactual são geridos que não é exclusivo da rede social. No mesmo
por dois dos 10 maiores bilionários brasileiros, local está o Credit Suisse, banco de investimen-
segundo a lista divulgada em setembro de 2019 tos da Suíça, o qual atravessa um escândalo so-
pela revista Forbes. Joseph Safra, um libanês bre espionagem com direito a vice-presidente
naturalizado brasileiro, de 81 anos, é o atual de operações demitido. Em outubro de 2018,
dono do Banco Safra, e conta com R$95,04 a instituição afirmou que a eleição de Jair Bol-

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sonaro ao cargo máximo do executivo brasi- uma série de políticas que pretendiam “tirar o
leiro poderia fazer com que o dólar voltasse a gesso” do capital e deixá-lo mais livre para al-
R$3,50. A previsão foi falha, pois, desde então, çar novos voos. Nesse caso, literalmente, pois
a moeda estadunidense só subiu. O nível mais o Brasil, sob a dura tutela dos militares, vivia
baixo alcançado foi R$3,65 em janeiro de 2019. um aparente florescer econômico e parecia ser
Dez meses depois, o dólar atingiu os R$4,14. um terreno perfeito para a expansão do capital
estadunidense na América Latina. Foi em 1977
que o Centro Empresarial São Paulo, em San-
to Amaro, foi inaugurado e recebeu empresas
CAPITAL DO MUNDO como Black & Decker, American Express e tan-
tas outras. O complexo conta com seis torres de
Isto nos faz lembrar de uma coisa importan- escritórios, em um terreno de 2,2 milhões de
te, pois nesse ponto é necessário que voltemos metros quadrados e foi o grande chamariz para
ao que falávamos sobre globalização. Um termo que os investimentos, já frequentes na região
usado por alguns economistas para especificar a sudoeste de São Paulo, fossem aumentados.
globalização é mundialização do capital, ou seja, Por São Paulo já ser uma potência econômica
o quebrar das barreiras geográficas para a am- dentro do Brasil, a possibilidade de expandir
plificação da abrangência do dinheiro. É quando redes e marcas para os consumidores brasilei-
muitas empresas começam a abrir suas filiais em ros chamava a atenção dos outros países. Eram
outros países, com estratégias específicas para novas oportunidades de negócios e, com isso,
expansão da sua marca. É quase como se o capi- mais dinheiro em fluxo.
tal não pudesse ficar contido dentro de um país, Uma característica importante é que essa
mas antes, tivesse se tornado como um fogo que mundialização aparece em uma época em que
vai tomando conta de uma floresta. E enquanto o capital já não está totalmente “preso” às in-
houver combustível, haverá queimada. dústrias, mas os serviços começam a despontar
Essa mundialização do capital acontece, como tendência de negócio, exatamente por
em especial e em larga escala, a partir dos anos poder ser mais “móvel”. Com o fim da neces-
1970. Os Estados Unidos viriam a sofrer com a sidade presencial das indústrias, começa a se
recessão econômica entre 1974 e 1975, que le- desenvolver que permite um deslocamento
vou ao declínio do chamado “Estado de bem maior e mais rápido do dinheiro. E essa mobi-
estar-social”. A partir de então, começou-se lidade permite que o capital atravesse oceanos

144 145
e busque investidores nos diversos cantos do banização de um trecho específico da cidade.
mundo. Porém, as empresas estrangeiras dificil- Tudo isso tem sido falado porque foi exatamen-
mente se instalarão em locais com pouco apelo te a forma como tudo aconteceu na Vila Olím-
financeiro e com infraestrutura urbana ruim. É pia. É quase como um jogo de futebol: para que
exatamente nesse ponto que entra um fator de- haja uma partida de futebol profissional hoje
cisivo em toda essa mistura: o Estado. em dia, os gramados têm de atender padrões
O Poder Público é determinante na atração mínimos de altura, hidratação e tantas outras
de capital internacional para o país. É o Estado variáveis. Os jogadores (verdadeiros donos do
o responsável pela criação de condições pro- espetáculo) só entram em cena se o relvado
pícias para que essas empresas vejam a cidade estiver dentro desses padrões, ou o jogo po-
como uma opção boa para sua expansão. Por derá perder potencial de emoção e qualidade.
isso, as obras de canalização de córregos, reti- Como as gramas não se cortam sozinhas, há a
ficação de rios, construção de avenidas, pon- necessidade de um jardineiro específico, que
tes, viadutos, túneis, a extensão do transporte cuide da grama, irrigue constantemente e faça
público, tudo isso é competência do Estado. A o corte para que fique na altura correta. Den-
melhoria necessária para que “inglês veja” e tro deste exemplo, o Estado seria o jardineiro,
decida investir, devido aos poucos riscos, tem enquanto os jogadores, no papel da iniciativa
como principal agente de transformação o Po- privada, determinados pelo trabalho prévio de
der Público. Porém, pensamentos como esse outra pessoa, entram para fazer o espetáculo
levaram a uma sinuca de bico, pois em deter- para, assim, gerar mais renda para seus clubes
minado momento alegou-se que o Estado não e emissoras de transmissão.
tinha mais dinheiro para investir em obras tão É com esse cenário em mente que voltamos
gigantes e tão dispendiosas. Cria-se aí a necessi- à Vila Olímpia. Os megaempreendimentos de
dade de uma “parceria”. hoje em dia, muitos deles localizados no bair-
Quem teria esse dinheiro para investir? A ro, são como grandes pontos de exploração do
iniciativa privada. E nesse ponto o Estado en- capital. A economista Mariana Fix explica que
tra como “sócio” das iniciativas privadas para esses megaprojetos passam a receber as gran-
a reurbanização e para as obras de melhorias des corporações estrangeiras em países fora do
urbanas. Isso leva a uma participação maior de eixo principal do capitalismo.
empresas, controladas por poucas pessoas, no Começa a se delinear na sua cabeça, leitor,
poder de decisão dos rumos e do futuro da ur- uma ideia de demarcação de território? Pois es-

146 147
ses megaprojetos têm exatamente essa ideia de na cidade de acordo com a estratificação so-
serem vistosos, de chamar a atenção e de mos- cial”, afirma o geógrafo Wendel Henrique. Para
trar um estilo de vida supostamente superior. colocar em termos simples, a ideia é que quan-
Para isso, mais do que propagandas, anúncios e to mais rico você for, mais acesso à natureza
publicidade de produtos, poucas coisas funcio- dentro da cidade você terá.
nam mais que o marketing da arquitetura, ou, A natureza tornou-se um componente im-
como tem sido chamado, o city marketing. portantíssimo na valorização imobiliária, e isso
Como seria possível uma empresa próspe- não vem de hoje. Os primeiros indícios de que
ra, rica, eficiente e positiva se instalar em lugar as partes e áreas verdes da cidade seriam vol-
com uma arquitetura “ultrapassada”, “feia” e tadas para uma elite deram-se a partir do sécu-
que não refletisse a modernidade que o mundo lo XIX, quando jardins e parques começaram
vende como o ideal? Por causa de uma facha- a ser construídos por agentes imobiliários com
da espelhada atribui-se esforço, suor e trabalho a intenção de aumentar a valorização em cima
duro às empresas que conseguiram “conquis- do seu produto: a terra. “A natureza na cidade
tar” tal status. passa a ser uma ‘isca’ ou uma imagem/símbo-
lo”, escreve Henrique, que explica haver pelo
menos dois motivos para que isso: a questão
estética (de ostentação de poder) e a questão
NATUREZA REFÉM higienista (devido ao alto índice de poluição de
uma cidade industrial).
Seria possível fazer uma extensa lista de Não é à toa que as avenidas Faria Lima
grandes empreendimentos imobiliários que e Hélio Pellegrino contam com tantas árvores
tomam conta da parte baixa da Vila Olímpia e plantadas, além de parcerias com empresas
uma das características mais marcantes de vá- para que cuidem de determinadas praças ou
rios deles é a presença da natureza. Pois é, nada pedaços do logradouro. Em um trecho da Faria
pode parecer mais contraditório do que uma Lima, perto da Avenida Cidade Jardim,existe
natureza voltada para uma elite econômica agora uma tal de “Floresta Urbana”, fruto de
de um país. Todavia, esse é um dos modos de uma parceria entre a Prefeitura e uma empre-
funcionamento da urbanização em São Paulo: sa privada, que conta com algumas espécies de
“cria-se uma diferenciação espacial da natureza plantas e pequenas árvores em uma diminuta
praça. Uma bonita placa gaba-se pelo termo

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“Floresta Urbana” e isso é curioso pois qual- de Rafael Pelli, um dos donos da companhia,
quer ajuntamento arbóreo em outras partes é estabelecer “uma nova aspiração aos prédios
não cuidadas pelo capital privado é chamado comerciais em São Paulo”. Bom, é curioso fa-
de matagal, mas como o city marketing precisa lar de aspiração em um contexto empresarial
ser feito, dá-se o nome de “Floresta Urbana”. A e financeiro tão marcado pelo uso de cocaína
questão capital é a intervenção do ser humano por vários de seus executivos para “aguentar o
para controlar e/ou “domar” a natureza dentro tranco”. Mas deixemos isso para lá.
dos seus delírios urbanos. Pelli não esconde que os beneficiados pelo
O São Paulo Corporate Towers é um dos empreendimento serão os frequentadores de
maiores exemplos de como a natureza na me- lá ao dizer que “a experiência única e marcan-
trópole tornou-se fator excludente. Além da te dos prédios será chegar a eles todos os dias,
vistosa carcaça espelhada, que captura o olhar muito diferente de chegar a um típico prédio
a longas distâncias, o empreendimento conta comercial urbano, onde as pessoas irão encon-
com uma vasta gama de espécies de árvores e trar um oásis verde e sombreado localizado em
plantas: são “mais de 170 espécies nativas da uma região comercial cada vez mais densa e ur-
Mata Atlântica”, de acordo com o site do local, banizada. Para São Paulo, a forte conexão com
e um total de mais de 700 árvores dentro dos parques e jardins é o maior responsável por pro-
38.000 m² da área do complexo. A parte ajardi- porcionar um ambiente natural que contrasta e
nada ocupa impressionantes 18.000 m², o que alivia o ambiente urbano”. As palavras do arqui-
dá 47% da base do terreno voltada para jardins, teto deixam uma coisa clara: o alívio vindo da
árvores e plantas. “conexão com parques e jardins” estará restrito
O paisagismo foi feito pela Balmori Asso- àqueles que trabalharem por lá. A beneficiada
ciates, gerido por Diana Balmori, ex-esposa de não será a metrópole, mas sim alguns poucos
um dos fundadores da Pelli Clark Pelli, empre- felizardos que conseguirem um emprego na
sa responsável pela arquitetura do empreen- agência WMcCann, ou nos canais Fox, ou na
dimento. O que a Balmori Associates e a Pelli XP Investimentos, ou na Microsoft, ou no ban-
Clark Pelli têm em comum? Ambas as empresas co francês PNB Paribas, dentre tantas outras fa-
são dos Estados Unidos e chegaram com status mosas empresas e corporações baseadas ali. O
de reconhecimento mundial para fazer o pro- morador de rua, Robson, ou os moradores da
jeto dos prédios e da jardinagem local. A ideia favela do Coliseu nem podem chegar perto da
do empreendimento completo, nas palavras entrada do local sem receberem os olhares in-

150 151
O PODER E O MEDO DE PERDER
vocados de cada um dos muitos seguranças em
cada uma das três entradas do complexo.
Existe um discurso que impera em grandes
metrópoles do mundo capitalista atual e vincula Apesar de o episódio III de Star Wars (A
a natureza nas cidades à qualidade de vida. Por vingança dos Sith) ser odiado em larga escala e
trazer mais qualidade de vida, o produto fica criticado por muitos fãs saudosos da trilogia ori-
mais caro. É quase uma aceitação de que a vida ginal, um diálogo entre o então Senador Palpa-
na cidade é para os condenados, pois, se quiser tine e o então Jedi, Anakin Skywalker vem a ca-
ter uma vida boa, com algo tão abundante no lhar em uma discussão sobre poder. Até porque,
mundo como é a flora, será necessário abrir a vale lembrar, tudo o que falamos até aqui sobre
carteira – ou as carteiras – para ter acesso a isso. a tal imagem retórica da gentrificação está abso-
Quem não tem dinheiro que fique com os efei- lutamente conectada com poder, que vem com
tos das construções feitas por eles mesmos. A o dinheiro na nossa realidade terráquea.
natureza atua como um tipo de proteção para Em um momento chave para a sedução
os males que os próprios construtores, arquite- de Anakin, que se deslocaria para o lado escu-
tos e engenheiros causaram na vida das cida- ro da Força e se tornaria o mítico Darth Vader
des. Um exemplo claro disso tudo que falamos (desculpem o spoiler), o Senador, por meio de
está no Panamby. O bairro na outra margem do uma conversa bem conduzida, entra na cabe-
Rio Pinheiros planejado para ser ocupado por ça do jovem aprendiz para mostrar o quanto
uma restrita elite paulistana e conta com “uma ele poderia ser útil ao lado obscuro. Com tom
das mais altas taxas de área verde por habitante professoral, Palpatine diz: “lembre-se de seus
da cidade”, o que não representa nenhuma sur- primeiros ensinamentos, Anakin. ‘Todos aqueles
presa nesse contexto discutido até aqui. que ganham poder têm medo de perdê-lo’. Mes-
Dessa forma, vemos que a natureza assu- mo os Jedi”.
me status de refém dentro da metrópole. Quem De fato, o maior medo de quem tem o
tem acesso a ela é quem tem poder financeiro poder é perder essa supremacia. No caso do
para poder vencer o cinza imposto pela urbani- mundo atual do capitalismo, quem tem dinhei-
zação insana de São Paulo. ro teme perder esse dinheiro. A perda do poder
muitas vezes implica em uma perda de todas as
perspectivas de vida. Perde-se a si mesmo. Po-
demos citar os casos de suicídios generalizados

152 153
que ocorreram com a quebra da Bolsa de Nova da Daslu com a sede da Johnson & Johnson.
Iorque, em 1929, e também trazer para nossa A bandeira da Espanha tremula ao lado da
realidade recente e citar o confisco da poupan- bandeira do Brasil e à do estado de São Pau-
ça operado pelo governo Collor no início dos lo, bem ao lado do Parque do Povo, na Margi-
anos 1990. Houve diversos relatos de pessoas nal Pinheiros e deixa claro que o terreno ali é
que não viram mais nenhuma saída para sua controlado pelo dinheiro de fora do país. Tal-
vida, porque grande parte de seus investimen- vez vale lembrar que no ano 2000, o Santan-
tos tinha ido por água abaixo. Como a inflação der comprou o Banco do Estado de São Pau-
subia loucamente, não havia sentido em ter lo, o Banespa, que na época foi considerada a
guardado o dinheiro físico, pois ele perderia segunda privatização mais cara da história do
valor, às vezes no período de um dia. Brasil. Os espanhóis pagaram R$7,05 bilhões
Porém, a cada ano que passa os investido- pelo banco estatal. A demissão dos funcioná-
res e empresários começam a achar novas es- rios do Banespa ocorreu aos poucos, mas foi
tratégias para que não venham quebrar, para cruel e contínua.
continuar tendo o fluxo de dinheiro passando Eu, particularmente, lembro-me bem desse
pelas suas contas, dia após dia. Muitas vezes, período porque minha mãe trabalhava no Ba-
tal “estratégia” dá-se pela exploração dos traba- nespa, no qual ela entrou por concurso público,
lhadores, que se submetem a condições terrí- assim como todos seus colegas. Do setor dela
veis de trabalho por precisar de um salário para restaram poucos, embora ela tenha sido uma
continuar sobrevivendo. dessas pessoas. Muitos amigos e colegas de tra-
Um caso marcante é o do banco Santan- balho não conseguiram empregos depois dessa
der. A instituição financeira espanhola conta onda de demissões, outros tantos se renderam
com uma estrutura grande e diversificada na ao PDV (Pedido de Demissão Voluntária4) e fi-
Vila Olímpia. Assim como o Deutsche Bank
e o Banco Safra, a sede do Santander fica no
bairro, bem em frente ao São Paulo Corporate 4 Estratégia adotada pelo Santander que oferecia
Towers. Sua enorme torre espelhada está situ- premiações de salários e plano de saúde da Cabesp
ada dentro do complexo JK, que conta com o por mais um tempo, caso eles escolhessem pedir
demissão. O pedido “voluntário” acontecia porque
prédio do banco, além de duas outras torres
ninguém sabia se seria demitido pelo banco ou não.
comerciais, o shopping de luxo JK Iguatemi e Para não correr o risco e ter alguma reserva por
o Teatro Santander, que divide o antigo espaço mais algum tempo, a maioria deles optava pela op-

154 155
caram sem o direito ao seguro-desemprego. o Santander está entre as sete empresas que
Houve conhecidos que entraram em depres- mais adoecem funcionários no Brasil.
são, enfrentaram processo de divórcio na famí- A Folha de S. Paulo complementa esse grave
lia, e tantos outros malefícios que a política da dado ao dizer que, segundo o Ministério Público
privatização trouxe. do Trabalho, em 2014 o banco registrou uma
O diretor da FEEB (Federação dos Empre- média de dois afastamentos por dia de emprega-
gados em Estabelecimentos Bancários) do Rio dos entre acidentes e doenças mentais. Como se
Grande do Sul, Ademir Wiederkehr, à época não bastasse, 26% dos funcionários afastados por
afirmou que entrou na justiça pela forma incle- esses motivos no Brasil, entre 2012 e 2016, eram
mente com que os funcionários da antiga estatal empregados do banco espanhol.
vinham sendo tratados. “Estamos denunciando Todas essas práticas apontam para um de-
a forma desumana e vexatória utilizada pelo sespero pela produtividade e pelo lucro. Não
banco para demitir. É um absurdo o que este é segredo que trabalhadores satisfeitos não só
grupo espanhol está fazendo no Brasil. Após ter valorizam a instituição como produzem mais.
adquirido o Banespa durante a farra das privati- Entretanto, no mundo competitivo do capitalis-
zações, o Santander prova que não tem respon- mo, vale a lei da exploração sob uma fachada
sabilidade social com o povo brasileiro”. democrática e humanitária.
Porém, as maneiras cruéis de se tratar fun- Isso pode ser traduzido pelo modo com que
cionários não acabaram em 2000. Recentemen- o Santander realiza suas operações com seus
te, em setembro de 2019, o banco espanhol foi funcionários na Vila Olímpia. Em 2014, a revista
condenado pela Justiça do Trabalho a pagar Exame publicou uma matéria para mostrar a su-
R$274 milhões de indenização por dano moral posta modernidade da nova casa da instituição
coletivo. Isso porque a instituição assediou mo- financeira. Lê-se na abertura do artigo: “A sede
ralmente os funcionários da empresa ao colocar do Santander na Avenida Juscelino Kubitschek,
metas inatingíveis e abusivas na produção, além em São Paulo, parece ter sido projetada para que
das cobranças exageradas sobre os trabalhado- os cerca de 6 mil funcionários que trabalham ali
res. Dados do Correio Braziliense5 afirmam que precisem se ausentar minimamente durante o

ção de “demissão voluntária”.


assédio moral aos funcionários”, de 09 de setembro
5 “Santander é condenado a pagar R$ 274 mi por de 2019.

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horário comercial. Sem sair de lá, é possível se com videogames, mesas de ping-pong, cerveja
consultar com o médico ou dentista, passar no de graça, salas para descanso e tantas outras
cabeleireiro, malhar, fazer compras, lavar roupas coisas que, a uma primeira vista, parecem valo-
e, é claro, ir ao banco”. rizar o trabalhador, mas que, na verdade, criam
Não sei você percebeu o truque dessa fra- um método velado e polido de aprisionamento
se. A ideia de trazer atrações e serviços para do contribuinte. Podemos citar como exemplo,
dentro do local de trabalho obriga o trabalha- o Twitter, a Google e a rede de escritórios We
dor a permanecer no ambiente do emprego Work, todos eles situados na Vila Olímpia.
por todo o período. As chamadas “máquinas
anti urbanas” entram exatamente nesse ponto.
Por estarem localizadas em prédios muito além
de comerciais, e, por trazer toda a estrutura de
pequenos serviços no local, a empresa faz com
O DILEMA DE MAQUIAVEL
que o trabalhador tenha o menor contato possí- Um dos mais importantes tratados sobre po-
vel com a cidade durante sua estadia no bairro lítica de todos os tempos, “O príncipe”, de Nico-
de trabalho. A ideia dessas máquinas anti urba- lau Maquiavel traz em si alguns dilemas. E um
nas é fazer com que o trabalhador fique preso dos principais dele é sobre a questão de o prín-
dentro da estrutura e do ambiente empresarial cipe absolutista ser ou parecer virtuoso. Para fins
para que possa viver intensamente essa reali- políticos e de conquista de território, espaço e
dade de produção desenfreada. Tais métodos prestígio, o autor italiano insiste que é necessário
têm sido vendidos como o futuro do trabalho e que o governante aprenda a “a fingir qualidades
várias empresas modernas já entenderam que que não se tem”, conforme uma explicação do
isso pode servir para deixar o empregado mais jornalista político Ruan de Sousa Gabriel.
perto e superficialmente mais satisfeito com os Claro que pegar o conteúdo de uma obra
“mimos” oferecidos a eles. política escrita em 1532 e aplica-la a um contex-
Grandes empresas e coworkings6 contam

companhias. Cada empresa ou empresário aluga


6 Coworking é um método de locação para empre- uma sala ou um local em um prédio e passa a poder
sas e startups, que conta com uma área em comum trabalhar de lá e aproveitar a estrutura que os cen-
em que é possível que haja interação entre diversas tros de coworking oferecem.

158 159
to urbano brasileiro do século XXI pode ser uma bson incomodava mais que ao desperdício do
tremenda falha na argumentação, mas como recurso máximo de vida de qualquer ser vivo,
exemplo (e dada a realidade da política brasilei- a água. E tudo isso, a sombra dos prédios com
ra sob o “conservadorismo fálico” de Jair Bolso- selo Leed de construção sustentável.
naro) a comparação pode fazer sentido. Desde o dia que Robson teve sua peque-
Existe um esforço enorme, potencializado na estrutura levada pelas autoridades do Esta-
e divulgado pela publicidade, de fazer com que do, só o vi uma vez, de longe, andando perto
as empresas estrangeiras pareçam inofensivas da calçada da favela do Coliseu. À época, ele
às realidades brasileiras. Nenhuma empresa ou me contou que um grupo de bolivianos viu a
corporação de fora chega ao Brasil sem um ver- situação dele e tinha providenciado a compra
dadeiro interesse financeiro. Ao se ocuparem de uma barraca de camping, que ainda estava
de grandes empreendimentos – ou das máqui- para chegar.
nas anti urbanas, como falamos –, elas segre- Parecer virtuoso é um imperativo de nossos
gam e erguem um muro entre quem pode estar dias. Em dias de desmonte sistemático da de-
ali e quem não pode. mocracia, os fortes espelhados fazem com que
O caso de Carlos Robson explica bastante o pedestre veja apenas o reflexo de si mesmo
isso. Sua permanência não era tolerada ao lado e dos outros prédios espelhados em sua facha-
dos prédios de mais de R$2 bilhões. A presença da. É como se quem está lá dentro não quisesse
de um morador de rua desvaloriza o “monu- ser identificado pelo seu trabalho. Não à toa, a
mento” e faz com que o visual da cidade se tor- grande maioria desses prédios não conta com
ne “feio e sujo”. Por isso, a pressa em tirá-lo dali. janelas, apenas espelhos e mais espelhos, que
Não se vê a mesma pressa, porém, para conser- aumentam aasensação
sensaçãodedeisolamento que
isolamento doacon-
que
tar o vazamento de água exatamente ao lado tece nas cidades.
acontece nas cidades.
de onde Robson dormia. O derramamento do A necessidade de se vender como algo
líquido ocorre, pelo menos, desde abril de 2018 bom para a cidade faz com que empresas, jun-
e até outubro de 2019 não tinha sido resolvido. to com escritórios de arquitetura, engenharia e
O jornal Metro publicou a denúncia das pes- incorporadores apelem para a arquitetura do
soas que frequentavam a região, pois além do espetáculo. E o espetáculo, conforme diz Guy
desperdício de água constante por mais de um Debord, “não é um conjunto de imagens, mas
ano e meio, a calçada e a rua estavam sofren- uma relação social entre pessoas, mediada por
do erosões. A ideia é clara: a pobreza de Ro- imagens”. Se não houvesse êxito no método de

160 161
UM COLISEU
se apresentar a internacionalização da econo-
mia como algo positivo, dificilmente veríamos
esse espetáculo espelhado a céu aberto que é a

NA CAPITAL
Vila Olímpia.
Entender que são as relações humanas que
alimentam o espetáculo é determinante se qui-
sermos decifrar os grandes centros financeiros
do mundo para entender os caminhos que a
elite traça em busca de continuar tendo cada
vez mais, enquanto a classe popular e trabalha-
dora passa a ter cada vez menos.

162 163
“A lei das ruas é rude e faz você aprender
Proceder pra vencer, pra crescer, prevalecer”.

Sabotage.

165
pela cena em que os investigadores intimida-
vam o rapaz e deu pouca atenção para o que
acontecia, apenas continuou me levando para
o fundo do terreno, onde fica a sala de Mônica.
Mônica Maria dos Santos tem 43 anos e
nasceu já na comunidade do Coliseu. Ela é fi-
lha de uma das primeiras pessoas a chegar e
“Vai tomar no cu! Vai querer mexer com
fundar a favela. Com mãe e pai baianos, ela
tráfico, é? Vai se foder”, gritava um policial civil
relata que, assim como em muitos casos, eles
para um garoto – provavelmente menor de ida-
saíram do interior da Bahia e desceram rumo a
de –, que ficou de cabeça baixa, enquanto seu
São Paulo. A capital paulista era vista como “a
braço era segurado pelo guarda que berrava
cidade do dinheiro”, de acordo com Mônica.
em um dos becos da comunidade do Coliseu.
Ideias semelhantes a essas eram disseminadas
Eram dois agentes civis: o que estava dentro da
em larga escala no Nordeste a partir dos anos
estreita rua e o que já estava fora do beco, no
1930. Enquanto essa parte do Brasil vivia com
calçamento principal da favela. Ambos usavam
uma economia estagnada e já era sub cuidada
um grande e vistoso distintivo metálico segu-
pelo Estado, a região sudeste parecia florescer
rado por uma corrente também de metal. O
como um paraíso em que todos viviam de ma-
que estava do lado de fora portava uma pistola
neira digna e com dinheiro no bolso. A migra-
Colt.45 prateada, que reluzia mesmo com o dia
ção dos nordestinos para São Paulo aumentou
com muitas nuvens. Mais do que reluzir, a arma
ainda mais depois da década de 1950, durante
de fogo parecia trazer silêncio à comunidade,
o governo Vargas. E foi exatamente nessa épo-
que continuou seus afazeres normalmente. En-
ca que surgiu a comunidade do Coliseu.
quanto o rapaz, suspeito de tráfico de drogas,
A parte baixa da Vila Olímpia era um enor-
era segurado pelo policial, uma senhora estava
me terreno pantanoso, ou um grande brejo,
ao lado do oficial como que intercedendo pelo
conforme mostram vários relatos tanto de histo-
jovem. Não foi possível acompanhar o desfecho
riadores como de antigos moradores locais. No
dessa história, pois eu estava sendo conduzido
pequeno espaço do bairro passam pelo menos
por um dos moradores à presença de Mônica,
quatro córregos: o do Sapateiro (Av. Juscelino
que cuida da área dos computadores da comu-
Kubitschek) e o Traição (Av. dos Bandeirantes),
nidade. O homem que me levava até lá passou
que delimitam os extremos da vila; e entre es-

166 167
ses dois afluentes há ainda os córregos Uberaba despercebida na região. Apesar dos constantes
e Uberabinha, que nascem no Jabaquara e se esforços para jogar para debaixo do tapete os
fundem no meio de Moema, até desaguar no efeitos da desigualdade na metrópole e “ma-
Rio Pinheiros. Hoje estão localizados embaixo quiar” uma realidade ideal onde os pobres não
da atual – e nova – Avenida Hélio Pelegrino. são bem-vindos, não é possível andar pela Vila
Circundada por rios e córregos, era natural que Olímpia sem perceber os ultrajantes contrastes
o terreno vivesse constantemente alagado, já de um lugar que se transformou e se adaptou
que muitas partes da terra eram, literalmente, para comportar quem faz o dinheiro acontecer.
várzeas. Olhando o mapa da Vila Olímpia é Embora a designação oficial da Vila Olím-
possível perceber que o bairro é em formato de pia seja a zona oeste de São Paulo, por muito
um funil: o recorte da cercania se dá entre as tempo a região era vista como parte da zona
avenidas Juscelino Kubitschek, dos Bandeiran- sul. O rapper Sabotage, morador da favela do
tes, Santo Amaro e a Marginal Pinheiros. Acon- Canão, no Brooklin, conhecia a Vila Olímpia,
tece que na parte alta (com a Santo Amaro) a tanto que a cita na música chamada exatamen-
distância é muito maior entre as duas avenidas te “Na Zona Sul”. Uma das frases agudas vindas
(JK e Bandeirantes) do que em comparação à direto do olhar observador de Sabotage era
Marginal Pinheiros. Explico isso: se você andar “na zona sul, conheço um povo todo inibido,
na Santo Amaro, da Bandeirantes até a JK, vai tanta promessa e enrolação, acaba nisso”. Se
percorrer cerca de 2.7 quilômetros, sendo que estivesse vivo e em contato com moradores da
se você anda entre esquina das duas avenidas Coliseu, é difícil pensar que o Maestro do Canão
pela calçada da Marginal Pinheiros o percurso não descreveria os moradores da comunidade
diminui para cerca de 700 metros. com essa música.
Bem na ponta da parte mais fina desse funil
está a comunidade do Coliseu. Não são poucos
os que trabalham na Vila Olímpia há tempos e
nem sabem da existência desse conjunto de ca-
sas em estado precário. Diferentemente dos al-
OS “MAIORES” E OS “MENORES”
tos e imponentes prédios espelhados que circun- “Eles são maiores que a gente” é a frase
dam o delimitado terreno, a comunidade está que sai da boca de Mônica, enquanto uma go-
escondida do olhar público e do trabalhador co- teira da calha do telhado de plástico pingava no
mum da Vila Olímpia. Mas a pobreza não passa chão em frente à sede da comunidade e o sol

168 169
evaporava a água que tinha caído do céu cerca faz o pagamento para essas pessoas com o di-
de 40 minutos antes. “Eles” são os donos das nheiro obtido nas Operações Urbanas, mas a
empresas que abarrotam a Vila Olímpia. A mo- responsabilidade de achar um lugar novo para
radora da Coliseu diz que as únicas interações morar é do próprio morador necessitado. “Tem
que os moradores da comunidade costumam famílias no Capão Redondo, no Jardim Ângela.
ter com “eles” é que muitas pessoas residentes Famílias inteiras que nasceram aqui e tiveram
na favela trabalham em restaurantes e comér- que ir pra esses bairros porque não possuem
cios da região. condições de alugar na Vila Olímpia. Tem que
Hoje, a comunidade do Coliseu abriga 200 ser longe mesmo”, contou Rosana dos Santos,
famílias. Há cerca de dois anos eram 277, mas a líder da comunidade.
esses 77 núcleos familiares foram removidos Não conseguir lugar para morar perto do
do terreno, pois as casas estavam em péssimas bairro causa sérias implicações para os mora-
condições e tinham risco de cair. Essas famílias dores. Marizete Santos, de 53 anos, nasceu, li-
que deixaram a Coliseu recebem auxílio-alu- teralmente, dentro da favela e contou que foi
guel da Prefeitura de R$500 por mês para pagar morar um período fora de lá, mais ao sul, na
sua estadia em outro local. Recebem ou deve- região de Interlagos. Ela disse que lá se sentiu
riam receber, já que há relatos de que o órgão mais vulnerável e mais exposta à violência, coisa
público atrasou os pagamentos de vários mora- que não acontece na Coliseu. “Eu aqui não sou
dores. Ricardo Silva, que é de uma das famílias roubada. Agora vai sair daqui e ir pra periferia
que tiveram que deixar a parte do trás do ter- para ver se eu não sou roubada, moço? Por isso
reno da comunidade, falou que assim que eles que eu gosto disso aqui. Eu já morei lá em In-
saíram de lá a prefeitura só depositou as duas terlagos e fui roubada duas vezes. Uma vez no
primeiras parcelas da ajuda de custo. As outras ponto de ônibus levaram minha bolsa com um
não tinham caído e eles já sofriam ameaças de celularzinho badarósca. Ah, mas eu corri atrás
despejo. “Estamos devendo o aluguel. Tive que desse ladrão, chorando, óia que doidice”, con-
falar com o dono da casa pra esperar um pou- tou Marizete, que trabalha como vendedora
co, ter paciência. Além disso, tenho que pagar ambulante na Rua Gomes de Carvalho, a via de
água, luz, gás, alimentação, e os custos são al- acesso à estação de trem da Vila Olímpia. Além
tos”, contou o limpador de vidros ao site Vai de disso, a mulher relata que uma das vantagens
Pé. Esse relato de Ricardo é de 2017, menos de de se morar ali no centro financeiro está princi-
cinco meses depois das remoções. A Prefeitura palmente em não depender do transporte pú-

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blico. “Só de não você não ter que ir pra peri- dela e dos relatos de moradores, percebi a im-
feria, pegar aqueles busão lotado, aqueles trem portância de uma pessoa que representa a co-
lotado, aquelas greve. A gente não pega nada munidade como Rosana faz. Filha de Amazina
disso. Nós todos trabalhamos aqui do lado. 70% de Jesus, uma das fundadoras da comunidade,
trabalha aqui perto”, explicou a moradora. Rosana foi responsável pela criação da sede da
A líder da comunidade, Rosana Maria, de favela. “Essa associação surgiu com a Rosana.
50 anos, é uma pessoa que conta com o apoio, Ela viu a necessidade dos moradores e pensou
admiração e respeito das pessoas que moram ‘ah, vou fazer alguma coisa’. Aí foi nessa que
ali. Em um dia que fui lá para conversar com ela foi atrás dos empresários da região para ver
ela, entrei pela rua e caminhei até o fim do ter- se poderia tá montando essa... A gente chama
reno, onde fica a sede da comunidade. Môni- de sede. Aí começou só a sede com os com-
ca estava lá e me disse que a Rosana estava na putadores e hoje nós fazemos festas. Começa
parte da frente, perto do restaurante da dona na Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das
Regina Alves. Dei meia volta, saí da sede e co- Crianças, aí vem o Natal, a confraternização
mecei a andar no caminho contrário para pro- que é para a comunidade inteira”, é o que con-
curar por Rosana. No meio da caminhada fui ta Mônica, responsável pelo cuidado dos com-
abordado por um jovem, que, com tom intimi- putadores do local.
dador, perguntou: “Quer o quê aqui, mano?”. Formada por nordestinos e pelos filhos
Eu respondi que procurava pela Rosana. No destes, a comunidade do Coliseu é um verda-
mesmo momento o semblante e a desconfian- deiro ponto de resistência na região. As gestões
ça do rapaz caíram por terra. Mudou da inti- de Paulo Maluf (1993 a 1996) e de Celso Pitta
midação para um tom amistoso, chegou perto (1997 a 2000) tentaram remover a comunidade
de mim e falou “ó, ela tá ali na frente, perto do seu local diversas vezes, mas os moradores
daquele beco ali. Ela tá com uma criança no resistiram. A intervenção da Defensoria Pública
colo”. Agradeci o cara e voltei a andar. Atrás de do Estado conseguiu barrar os planos de des-
mim percebi o homem voltando para o beco e pejo. A Vila Olímpia é, hoje, um dos locais mais
ele falou alto para o grupo de mais quatro rapa- caros de São Paulo para se comprar terreno.
zes que observara meu pequeno diálogo com o O metro quadrado no bairro está avaliado em
morador. “Tá suave. Ele é lá da Vila Olímpia”, cerca de R$12 mil, de acordo com um levan-
gritou o jovem para seus amigos. Naquele mo- tamento da Imovelweb, publicado na revista
mento, mais do que pela leitura de entrevistas Exame. O terreno da Coliseu mede 4.638 m².

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Uma conta simples confirma o dado revelado ter sido esquecido.
em diversas reportagens: o pedaço de terra da
comunidade está avaliado em cerca de R$55
milhões. O antagonismo e a necessidade de re-
sistência ficam claros.
Desde 1995, quando começou a Opera-
URUBUSERVANDO A SITUAÇÃO
ção Urbana Faria Lima, prometeu-se aos mora- “Ô, Josué nunca vi tamanha desgraça,
dores da comunidade que o local da moradia quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”,
deles seria transformado em um conjunto de gritava Chico Science com a sua Nação Zumbi,
prédios residenciais para os próprios habitantes em 1994, ao olhar o mau trato para com os po-
da favela. No plano municipal de habitação de bres no Recife, no centro, nas periferias ou nos
2010, durante o mandato de Gilberto Kassab, manguezais. Hoje, o cenário parece não ter mu-
constava a construção de moradias populares dado e esse padrão é observável em quase to-
para os habitantes da Coliseu. Em 2014, duran- dos os pontos em que a pobreza reina no Brasil.
te o mandato de Fernando Haddad na Prefeitu- Na Vila Olímpia, a presença dos urubus é literal.
ra, R$40 milhões foram liberados para a cons- Não é necessário muito tempo de observação
trução da COHAB Coliseu. À época, o petista ao céu para perceber as aves de rapina sobre-
prometeu “derrubar o muro da vergonha que voando, não apenas a Coliseu, mas também o
divide a cidade pobre da rica”. Uma matéria Rio Pinheiros e, principalmente – pasme! –, os
d’O Estado de S. Paulo, de 4 de abril de 2014, grandiosos megaempreendimentos imobiliários.
reportou que a medida frustrou moradores das Um dia em especial, uma cena simbólica
classes mais altas da região e, especialmente, o chamou a minha atenção. Caminhava pela
mercado imobiliário, que via no local uma pos- Avenida JK, sentido Marginal Pinheiros, e ob-
sibilidade estratégica de lucros astronômicos. A servei que um urubu dava seus voos por cima
construção da COHAB estava prevista para co- dos prédios dali. Em um instante, ele parou e
meçar em agosto daquele ano. Como se já não pousou exatamente no ponto mais alto do em-
bastasse o fatídico 7x1 da Copa do Mundo, que preendimento de escritório Atrium VII – a “li-
ocorreu em julho, os meses de agosto, setem- nha” Atrium está presente em vários pontos da
bro, outubro e os seguintes reservariam apenas Vila Olímpia, ao total são nove desses prédios
a ilusão para os habitantes da favela. Mais uma de escritórios em cada ponto do bairro, cada
vez o projeto que mudaria a vida deles parecia um com um número. O urubu pousou onde

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encontrou algum tipo de podridão e ficou lá, oficial foi promovido a coronel pelo comando
majestoso, como que observando o bairro de geral da Polícia Militar de São Paulo.
um de seus pontos privilegiados. Quase como Rosana afirma “não dá para confiar na po-
um Homem-Aranha quando parava para des- lícia”. Uma voz conservadora e com preconcei-
cansar nos arranha-céus nova-iorquinos, mas tos logo diria que Rosana não confia na polícia
diferente do herói, a ave não pretendia salvar porque ela tem algo a esconder. Mas, a reali-
ou proteger ninguém. dade dentro de uma comunidade é bem dife-
“Urubu” é um termo usado para descrever rente. Ela disse saber que na Coliseu existe o
algumas profissões. Desde jornalistas a policiais. tráfico de drogas, mas aponta para uma prática
Geralmente, profissões que exploram a desgra- comum das polícias militares no país: o forja-
ça de maneira desumanizada, ou até mesmo a mento de provas. “Você vê que às vezes eles
quem contribui para que a desgraça se solidifi- trazem droga de lá de fora e põe num menino
que recebem a incômoda alcunha. É de senso que não tem nada a ver, aí o menino vai preso.
comum que as favelas são os principais pontos Já aconteceu aqui várias vezes. Então quando
das biqueiras (local de venda de drogas), mas, você vê muita revolta na comunidade que ma-
muitas vezes, tal argumento é usado como des- tou fulano ou que levou fulano preso, aí tem”.
culpa para ações violentas contra inocentes. Na hora, é impossível não se lembrar de
Vale lembrar o caso em que o então novo co- casos emblemáticos de forjamento e injustiça
mandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias que aconteceram na mesma época, como os
Aguiar), um dos grupos policiais mais violentos de Amarildo Souza, que até hoje está desapa-
e truculentos de São Paulo, defendeu que o tra- recido após ser levado pela polícia em 14 de
tamento deveria ser diferente em bairros mais julho de 2013; e de Rafael Braga, catador de
pobres e lugares mais ricos. “É uma outra reali- recicláveis, que foi preso perto de um protes-
dade. São pessoas diferentes que transitam por to em junho de 2013, por portar um frasco de
lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. desinfetante. “Gambezinho faz acerto, depois
Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na pe- mata na crocodilagem. Absurdo, não me iludo,
riferia], da mesma forma que ele for abordar no subúrbio dinheiro sujo constantemente nos
uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de trai no futuro”, já clamava Sabotage em 2001,
São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai fato que é reiterado por Rosana: “Às vezes, eles
ser respeitado”, disse, em 2017, Ricardo Augus- entram daquele jeito que você viu até para pe-
to Nascimento de Mello Araújo. Em 2019, esse gar dinheiro”. A líder comunitária faz questão

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de lembrar algo óbvio: grande parte dos mora- à comunidade, um rapaz homossexual, que faz
dores da comunidade, a maioria deles trabalha- programas, relatou um caso, no mínimo curio-
dores, não compactua com o crime. “Morador so, que tinha acabado de ocorrer. “Fui presa...
nenhum vai ficar revoltado por causa de bandi- Um bofe, querida, chamou a polícia para mim,
do. Não fica. Porque eles não gostam também. eu fui fazer programa com ele no apartamento
Do jeito que os de fora não gosta a gente tam- dele. Quando eu tô saindo, na portaria, dois ca-
bém não gosta”. ras de preto: ‘vai, mão pro alto’. O bofe que eu
Estima-se que o narcotráfico movimente saí era policial e eu não sabia. E eu com a bolsa
cerca de R$17 bilhões por ano no Brasil. Núme- cheia de celular. Agora tô em livre. Saí casada
ros altos como esses dificilmente teriam como da cadeia e o bofe caiu”, contou ele para depois
principais financiadores os mais pobres e Rosa- sair como que desfilando comunidade adentro.
na não deixa esse ponto passar batido. “Quem
sustenta o tráfico não é pobre, é rico! Eles estão
lá nas suas mansões, sabe, as suas casas maravi-
lhosas lá fora e são eles que sustenta o tráfico de
droga. Então é muito complicado quando só vê
MUROS PARA SEPARAR
a polícia entrando no morro, entrando nas fa- Com o crescimento das cidades e a descen-
velas e esquece de entrar no Alphaville. Que tá tralização do capital, hoje, a ideia de periferia
cheio de ladrão lá, tem igual”, disse a moradora versus centro já não corresponde tão bem à
indignada. Marizete, irmã de Rosana, relata a realidade como até antes dos anos 1980, espe-
época que trabalhou na casa da família Matara- cialmente. Como explica a antropóloga Teresa
zzo, como empregada doméstica. Eles tinham Caldeira em seu livro Cidade de
Pires do Rio Caldeira de
um apartamento no Itaim Bibi e não era raro muros: “São Paulo é uma região metropolita-
Muros:
acontecer festas ali. “Ela [a patroa] falou que na na mais complexa, que não pode ser mapeada
época que ela era pequena, nas festas, a coca- pela simples oposição centro rico versus peri-
ína era servida numa bandeja maravilhosa de feria pobre. Ela não oferece mais a possibilida-
prata com canudo de prata”. de de ignorar as diferenças de classes; antes de
Usar a força bruta e a autoridade conferi- mais nada, é uma cidade de muros com uma
da pelo Estado para encobrir atos errados ou população obcecada por segurança e discrimi-
que trariam “vergonha” para os policiais é uma nação social”. O caso da Coliseu se encaixa per-
prática comum. Durante uma das minhas visitas feitamente nessa questão, já que uma pequena

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faixa de terra com mais de 700 moradores de sociação dos crimes que acontecem na região
baixa renda está encrustada em meio a muitos ao povo da favela do Coliseu. O “senso comum
prédios luxuosos com fachadas espelhadas de elitista” regado de muito preconceito velado faz
escritórios, além dos hotéis, shoppings centers com que a comunidade seja o alvo preferido
e aos condomínios residenciais de altíssimo pa- de acusações sobre quem teria roubado uma
drão. E, sim, a delimitação de terra da Coliseu é bolsa, um celular ou até mesmo uma bicicleta.
exatamente feita por muros. Marizete demonstra-se irritada com isso. “Tudo
O nome da rua que dá a identificação da o que acontece de ruim aqui na Vila Olímpia
comunidade é mais antigo do que o proces- é nóis que paga os pato. Tudo. ‘Ah é lá da fa-
so de gentrificação que atingiu à Vila Olímpia vela’. Quando fui cortar o cabelo, tinha os co-
como uma bomba. Ainda assim, algumas “coin- mentários lá no salão ‘ah, roubaram o celular
cidências” do destino chamam atenção. A fa- de fulano lá na esquina’. ‘Ai, vai lá na favela’.
vela permanece como um verdadeiro coliseu Uma delas roubaram lá na marginal a bolsa,
romano. A comunidade está no nível da rua e uma amiga minha do salão aqui da esquina, ela
está totalmente cercada por prédios. À esquer- veio na favela chorando, desesperada, para ver
da, a e-Tower e o prédio Sky Corporate. À di- se foi daqui. Tudo acham que foi aqui, cara”,
reita os prédios do condomínio de escritórios conta a moradora.
Millennium, além das torres empresariais com- A valorização descontrolada da Vila Olím-
plexo JK, o prédio do Santander e o da John- pia trouxe, por consequência, mais dinheiro e
son & Johnson. À frente, os muitos edifícios da mais pessoas portadoras desse dinheiro. Como
Rua Funchal. É quase como se esses prédios a fama começa a se espalhar pela cidade, é
fossem a arquibancada da arena, na qual os até “natural” que mais pessoas fiquem de olho
mais abastados assistem aos pobres sobrevi- e vão aos grandes centros financeiros para
vendo. Separados por muitos metros de altura, praticar roubos e furtos. Não seria natural se
além de muros e os famosos vidros espelhados houvesse uma mínima busca por oportunida-
das edificações. des mais iguais e ganhos mais próximos, mas
Muros servem para criar separação. Para ao contrário, a desigualdade só cresce a cada
mostrar que nem todos são bem-vindos em de- dia e atinge a pior série da história recente do
terminados locais. E essa discriminação não é no- país. De acordo com o estudo “A escalada da
vidade na vida dos moradores da comunidade. desigualdade”, feita pela Fundação Getúlio Var-
Um exemplo muito claro é a constante as- gas (FGV), a desigualdade de renda só cresce a

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17 trimestres consecutivos, ou seja, o rico tem trabalho por serem taxados de “vagabundos” e
ficado mais rico e o pobre mais pobre, há qua- outrosdisparidades
outras disparates faz com que muitas pesso-
tro anos e três meses consecutivos. “Ele quer as coloquem outro endereço da região em suas
aquilo que não tem e você tem e ostenta, é por aplicações para emprego.
motivos assim que a vida fica violenta”, dizia o
rapper Pregador Luo, no início dos anos 2000.
E esse fato é reiterado por Rosana, que re-
lata a época em que trabalhou como conselhei-
ra tutelar e lidou com menores de idade que
“Ó, PEQUENINA COLISEU”
vinham de longe para roubar as pessoas na Vila A comunidade do Coliseu parece estar em
Olímpia. “Eu lembro que muitas vezes eu ia na um mundo paralelo à Vila Olímpia. Enquanto
delegacia levar os meninos pro abrigo que eles milhares e milhares de pessoas com suas cami-
vinham de Franco da Rocha, em uma perua sas azuis tomam conta das ruas falando alto so-
cheia, eles vinham com um simulacro1 pra rou- bre seus negócios, empreendimentos e supos-
bar aqui na região”, conta Rosana. O raciocínio tos sucessos, o que reina nas ruas é o barulho
é simples: ir pegar de quem tem muito, em um dos carros, dos aviões passando a cada cinco
lugar que concentra quem tem muito, ou que minutos e de pessoas falando. Ao chegar à es-
parece ter muito. quina da Rua Coliseu, onde vários táxis estão
Viver com preconceito constante por cau- estacionados esperando passageiros, é possível
sa de sua condição social faz com que muitas perceber a movimentação na comunidade.
pessoas que moram na favela mintam sobre Ao entrar, tudo parece mudar. O clima frio
seu endereço para poder conseguir um empre- e arrogante dos frequentadores da Vila Olímpia
go na região. Com muitos restaurantes e locais começa a dar lugar a algo mais próximo
próximoeehumano.
festivo.
de serviços, a Vila Olímpia comporta diversos Conforme você passa às primeiras casas da co-
trabalhos de menor remuneração e menor es- munidade, o som altíssimo começa a chegar aos
pecialização acadêmica, que, na maioria das seus ouvidos. Um forrozão tocava a todo volume
vezes, são preenchidos pelos moradores da co- em um bar lá, quase no final do terreno, e fazia a
munidade. Mas o medo de não conseguir um trilha sonora para todas as interações entre pes-
soas ali, sob o sol que brilhava forte e as folhas
das árvores que voavam devido ao do vento que
1 Arma falsa, “de brinquedo”. derrubava as folhas das árvores no calçamento.

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Muitas pessoas estavam sentadas do lado Porém, com a mudança de contexto do
de fora das suas casas, em banquinhos de plásti- bairro, as novas gerações da Coliseu também
co e conversavam, jogavam papo fora, e socia- foram afetadas. Um exemplo disso é o fim da
lizavam sem interesse, diferente do que ocorria Folia de Reis, uma tradição da comunidade.
na selva de pedra da Vila Olímpia. Por ser uma Trata-se de uma festa realizada todo 6 de janei-
comunidade formada por nordestinos migran- ro, para celebrar os três reis que foram visitar
tes que mantiveram o orgulho de lá, a Coliseu Jesus Cristo após seu nascimento, de acordo
respira vida. com a tradição católica. É uma festa de cará-
Com o tempo, muitas coisas mudaram e ter popular realizada no Brasil e que acontecia
as lembranças aparecem com força nos relatos todo ano na comunidade do Coliseu.
das pessoas daquele lugar. “Nóis tinha nossas “Era gostoso também as culturas que o pes-
bicicletas e brincava lá na rua, pegava todo soal nordestino trouxe, que tinha a cultura de
mundo e brincava lá na rua – que a gente fala folia de Reis aqui. Oh, não tem mais... Quando
‘ruona’. A gente brincava, pegava bicicleta, por eu vejo na televisão falo ‘nossa, que saudade’.
quê? Não passava carro, passava poucos, pas- Os homens iam com aqueles pratos de ferro,
sava mais era essa linha de ônibus. Só uma li- chocaio. Eles iam cantando e a pessoa tinha
nha, hoje tem várias”, conta Mônica. A “ruona” que tá com a porta fechada, aí eles iam can-
a qual ela se refere é a Rua Funchal. tando... Como é que é, me ajuda aí Marizete”,
Rosana não hesita em afirmar que sente falta falou Rosana, ao passo que Marizete emendou
de outros tempos, quando o bairro era mais tran- a música cantada por eles. “‘Ô de casa, ô de
quilo e não era frequentado pelos engravatados fora, menino vai ver quem é, são os cantador
das empresas. “Ah, eu sinto falta assim, na ver- de Reis’, ia de porta em porta assim”, lembra-se
dade mudou em todos os lugares. Eu sinto falta Marizete. “E a pessoa abria, e aí entrava. E era
de brincar na rua, de não ter tanto carro igual um forró. Aí tinha coisa pra comer, aí saía dessa
tem hoje. A gente andava muito de bicicleta. As e ia pra outra. E era a noite todinha assim, as
facilidades, né, a locomoção era mais fácil. Hoje criança tudo atrás, os pais que fazia... ai, moço,
o bairro é trânsito em cima de trânsito. Muita que saudade. Onde que tem isso hoje? Não
gente. Se você vem cinco horas e você para ali tem mais. Até esqueci as músicas que cantava,
[cruzamento da Rua Coliseu com a Funchal] é aí dançava o puladinho, ai, moço é muito dao-
um formigueiro. Uns indo pra estação, outros pro ra, muito. A gente se divertia muito aqui, viu?”,
ponto de ônibus, é muita gente na área”. relata, com muita nostalgia, Rosana.

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A líder da comunidade não cansa de falar rios prefeitos de São Paulo que fizeram questão
sobre as felicidades de outra época, que ficou de comentar sobre a situação, mas que pouco
para trás e parece inatingível. Ela diz que hoje agiram quanto a isso.
os moradores ainda são felizes, mas não como Como já foi falado, em 2014, a Prefeitura
antigamente. liberou R$ 40 milhões para construção de um
Marizete e Rosana também se lembraram condomínio voltado aos habitantes daquela pe-
de uma música composta por um dos mora- quena rua. O projeto foi bastante comentado,
dores da comunidade já falecido. Trata-se do mas parece ter caído em esquecimento. Até que
“Samba da Coliseu”. Embora não conseguis- em 2017, durante a gestão-relâmpago de João
sem lembrar-se da letra completa, os sorrisos Dória na Prefeitura, o projeto voltou à pauta.
apareciam conforme os poucos versos volta- Bruno Covas deu prosseguimento ao pro-
vam à memória delas. “‘Ô Funchal querida, pe- cesso e no dia 27 de agosto de 2019, saiu a pu-
quenina Coliseu. Ô Funchal querida, pequeni- blicação no Diário Oficial de São Paulo com a
na Coliseu. O sonho da minha vida é cantar um aprovação para a “execução de obras de cons-
samba meu. O sonho da minha vida é cantar trução de empreendimento Habitacional de in-
um samba meu’, mas tem mais parte”. Nisso, teresse social e de uso misto, denominado CO-
Marizete entrou para completar mais um tre- LISEU”, lê-se na publicação oficial.
cho da canção: “Jacaré virou sapato, tá nos pés Ao todo serão três prédios voltados para
dos marajás, saiu Fernando Collor e sobrou pro os moradores da favela e que ocuparão toda
Itamar”. Nesse momento, todos que estavam a extensão da diminuta rua que cruza com a
na roda caíram na gargalhada e Marizete disse Funchal. As obras serão realizadas pelo con-
com todo orgulho do mundo: “Nosso samba!”. sórcio Lemam-Habitem e o valor total do con-
trato de mais uma parceria público-privada é
de R$34.656.592,65. Os R$34 milhões desse
empreendimento custarão cerca de 57 vezes
UMA NOVA COLISEU menos que os quase R$2 bilhões investidos na
construção das luxuosas torres do São Paulo
Desde 1995 vem sendo prometido que a Corporate Towers.
Coliseu deixaria de ser uma favela e se transfor- O prazo da construção é de 24 meses (dois
maria em um conjunto de prédios para habita- anos) após o início das obras. Em outubro de
ção dos moradores da comunidade. Foram vá- 2019, a remoção das casas e a preparação do

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terreno ainda não tinham começado e a maio- isso, vai mudar totalmente a vida de todos”.
ria dos moradores se divide entre ansiedade e João Dória tem uma política e uma visão
medo dessa nova fase da vida que está por vir. de mundo bastante higienista, isso pode estar
“Eu tô ansiosa. Demais, demais. Ao mesmo por trás do forte interesse da urbanização e
tempo que eu tô ansiosa, ao mesmo tempo eu construção de um conjunto habitacional que,
não quero, sabe? Aqui não vai mais ser favela, com certeza, valorizará o local. No mundo do
vai ser a Alfavela”,
Alfavela falou Marizete, com seu hu- mercado imobiliário, favelas são fatores cons-
mor característico. tantes de desvalorização de uma região. Mais
Já Mônica diz que a espera para que essa que pensar na qualidade de vida dos morado-
obra começasse é angustiante, pois já são mais res, a decisão da cúpula tucana parece apon-
de 24 anos ouvindo promessas. “Para mim essa tar para uma política higienista, pois a Coliseu
espera foi cansativa. Você esperando uma coisa permanece como um dos únicos pontos de
e nada de acontecer, mas agora vai e estamos pobreza explícita e aparente da região. Com a
ainda ansioso. Nem saiu mas já tamo ansioso construção dos edifícios, além de seguir a linha
para a volta”, diz Mônica. A volta refere-se ao de verticalização que assombra à Vila Olímpia
fato de que para que comecem as obras, todos desde os anos 1980, ainda marcará o fim dos
os moradores da comunidade precisarão deixar barracos e das casas visualmente malcuidadas.
o local e achar um outro ponto da cidade para Além disso, será uma forma de fazer mais
morar, pelo menos durante dois anos (previsão de mil pessoas entrarem como contribuintes re-
de tempo para a construção do local). gulares para a arrecadação municipal. Essa nova
Os residentes receberão uma ajuda de oportunidade que os moradores terão será atre-
R$500 da Prefeitura, o chamado auxílio alu- lada ao pagamento das contas básicas, que não
guel. Porém, diferentemente da vida que eles existiam até então para os residentes dali.
levam na Coliseu, esse período fora de lá e a Não faltam exemplos de como existe uma
consequente volta aos novos prédios reserva- vontade eterna de se separar ricos e pobres. Um
rão coisas que a maioria deles nunca precisou caso simbólico e próximo da Vila Olímpia é o
se preocupar. “Querer sair a gente quer para caso da favela do Jardim Edite. Para a constru-
voltar para um lugar melhor, mas lá fora vai ser ção da Avenida Água Espraiada, a atual Avenida
uma coisa, uma coisa mais complicada, mais Jornalista Roberto Marinho, a Prefeitura remo-
complexa, porque hoje nóis num paga água, veu parte da comunidade que ficava ali. Isso só
não paga luz e lá fora vamos ter que pagar tudo foi possível porque um grupo de 122 empresá-

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rios criou um grupo que arrecadou R$8 milhões lino Kubitschek com a Rua Atílio Innocenti, e
para comprar ajudar nos custos da remoção, outra na atual Avenida Hélio Pellegrino com a
além de comprar um terreno a 15km dali para a rua Ribeirão Claro. As duas últimas sumiram do
construção de um conjunto habitacional. mapa por conta da expansão imobiliária e da
A valorização do local foi de 20% a 30% criação de ruas sobre os córregos. A Coliseu,
no preço da terra, mas um consultor imobiliá- porém, resistiu bravamente por vários anos em
rio entrevistado por Mariana Fix afirmou que a um dos pontos mais valorizados dentro da pró-
valorização poderia chegar a até 100% com o pria Vila Olímpia. E agora eles poderão morar
passar dos anos. O resultado é que muitas pes- em uma estrutura melhor e o mais importan-
soas saíram de lá. Algumas famílias foram para te, na área que sempre foi usada por eles. Não
a zona leste, outras para o Jardim Educandário, precisarão sair de lá e abandonar o bairro com
outras deixaram a região e foram para as mar- todas suas histórias e lembranças. Isso para a
gens da represa Billings e montaram o Jardim tristeza de muitos empreendedores que viam a
Edith II. possibilidade de mais um arranha-céu no local.
Dessa forma, a Prefeitura consegue juntar A relação entre favelas, pobres, elite e clas-
o “útil” ao “agradável”, aos olhos deles. Pois, se média no Brasil é confusa e complexa. Pois a
fará, de fato, com que a qualidade de vida das classe média, mais perto dos pobres, tem pavor
pessoas se eleve, ao dar lares arejados, com a pobre, quase como uma grande multidão de
mais espaço e sem riscos primários à saúde, Caco Antibes. Mesmo estando longe do ganho,
mas também eliminará um dos últimos traços da renda e do estilo de vida das elites, é notório
de pobreza evidente em um dos bairros mais ver a classe média de São Paulo tratando os po-
nobres e valorizados da capital paulistana. bres como menos que gente.
Moradores de comunidades normalmente Exemplos disso não faltam, mas vale tra-
vivem com o preconceito proveniente de uma zer à memória o caso do incêndio na favela do
elite raivosa e gananciosa, que sempre busca Jaguaré, em junho de 2019. A comunidade fi-
expandir seus territórios e seus marcos. Por isso, cava embaixo de uma das pontes do bairro e
a comunidade do Coliseu é um dos grandes queimou nas chamas por cerca de duas horas.
exemplos de resistência urbana. O fogo causou destruição completa da comuni-
Até o começo da década de 1990, havia dade e afetou pelo menos 150 pessoas, que mo-
pelo menos três comunidades na região: a pró- ravam em 40 barracos. Apesar de muitos seres
pria Coliseu, outra na altura da Avenida Jusce- humanos terem perdido tudo o que tinham, ou-

190 191
PARQUE
tros seres automobilizados passavam pela Mar-
ginal Pinheiros e buzinavam em comemoração
ao fogo que consumia tudo o que via pela fren-

DO POVO?
te. Pessoas gritavam e celebravam a desgraça
de outras que moravam ali. Um caso clássico e
horripilante da cultura do ódio que vem sendo
pregada a cada dia, em que o pobre é menos do
que um ser humano. E a grande reclamação de
muitos paulistanos não foi sobre a falta de aten-
ção aos direitos básicos de um ser humano, mas
foi porque a o trânsito na região pioraria muito.
A Coliseu resistiu e resiste. E além de ser
um dos poucos lugares em que há fraternidade
entre os habitantes dessa “nova Vila Olímpia”,
ela permanece como um estandarte de que
resistir é preciso em uma cidade que cada dia
mais se volta para que as elites se sintam con-
fortáveis e longe de qualquer traço de pobreza.
A cidade é de todos e deve ser para todos.

192 193
“Vamos passear no Parque
Deixa o menino brincar
Fim de Semana no parque
Vamos passear no Parque
Vou rezar pra esse domingo não chover”.

Racionais MC’s e Negritude Jr.

195
se apropria de locais com características espe-
cíficas, transforma o ambiente, mata o que res-
tava de vida do povo e continua usando um
nome de fachada com apelo popular para pa-
recer democrático. É quase como “o que vocês
faziam aqui é lindo, por isso vamos manter o
nome como uma homenagem, mas a partir de
É realmente curioso como em uma metró- agora as coisas serão diferentes”.
pole do porte de São Paulo as coisas podem O Parque do Povo é um antigo local muito
adquirir novos significados. Antigos brechós, tradicional, pelos campos e times de futebol de
lugares de roupas velhas e baratas, tornaram-se várzea, os quais sobreviveram por ali a partir do
locais caros e com apelo hipster. O antigo mata- começo da década de 1930. Nessa época, o Rio
douro da Vila Mariana tornou-se a Cinemateca Pinheiros não era retificado22como é hoje. Em
e a Rua do Fauvismo1, na Brasilândia, é mar- especial, esse trecho que tangencia a Vila Olím-
cada por cores escuras e pouco vibrantes. No pia era conhecido pela sua intensa sinuosida-
caso da gentrificação que ocorreu na Vila Olím- de. Para colocar em termos simples: ele parecia
pia, com todas as suas implicações, o parque uma enorme serpente em movimento, cheio
Mário Pimenta Camargo, também conhecido de curvas. Curvas estas que viriam a ser destru-
como Parque do Povo, é mais um exemplo de ídas com o avanço da urbanização. Para quem
ressignificação e permanece no limite do bairro nasceu e cresceu na selva de pedra, pensar na
como uma grande ironia. imagem do rio assim pode ser um exercício e
É difícil continuar chamando o parque tanto de imaginação.
como sendo “do povo”, sendo que a atual es- As áreas de terra que ficam às margens
trutura foi meticulosamente planejada para dos rios são chamadas de “várzeas”. E antes de
destruir uma das máximas expressões da cultu- progredir, creio que vale uma ressalva talvez
ra popular: o futebol de várzea. Estamos diante
do lado sádico-brincalhão da gentrificação, que

2 Retificação é o termo usado para as modificações


1 Movimento artístico de pintura do início do sécu- no curso dos rios. É o processo de deixa-lo reto. Não
lo XX, que era conhecido pelo uso de cores fortes e tem a ver com a ideia de “ratificar”, que é confirmar
“violentas”, como diz E. H. Gombrich. ou validar algo.

196 197
óbvia, mas importante: futebol de várzea não Ao adentrar no atual “Parque do Povo”
quer dizer algo desorganizado, mal feito ou de existe uma clara impressão de você ter entrado
baixa qualidade: refere-se, sim, a um dos mais em um portal que te leva para outra cidade.
importantes meios de propagação e sedimen- Há quem diga que dentro do parque a sensa-
tação da cultura futebolística. O esporte era ção que você tem é a de quem está em Nova
praticado em terras planas, alagadiças e desva- Iorque. Com todas as proporções resguardadas,
lorizadas pelo mercado imobiliário, localizadas a comparação até faz sentido. Assim como o
perto dos rios. Refere-se ao local em que era Central Park, em Manhattan, o Parque do Povo
jogado e não a uma característica depreciativa. é contornado por diversos empreendimentos
Para entender o motivo do futebol de várzea imobiliários. De um lado, os luxuosos prédios
se proliferar como fenômeno nacional nas cida- residenciais do Itaim Bibi. Do outro, depois da
des e seu forte apelo popular, vale a explicação Avenida JK, os arrogantes edifícios de escritó-
de José Magnani e Naira Morgado, no artigo rios espelhados da Vila Olímpia. Diferentemen-
“Tombamento do Parque do Povo: futebol de te da maioria dos parques que contam com
várzea também é patrimônio”: “A circunstância casas ao seu entorno, que em geral ficam um
de extensas áreas ao longo dos rios permane- pouco afastadas da área verde, os altos prédios
cerem submersas em determinadas épocas do da região estão muito próximos – à distância de
ano impedia sua urbanização, o que garantia, uma estreita rua –, e se impõem, fazendo ques-
na estiagem, o uso para o lazer”. Trata-se, aqui, tionar, de cara, a denominação do parque.
de algo sazonal e que era aproveitado porque a Parques que se situam em centros financei-
infraestrutura do local não tinha sido adaptada ros das cidades capitalistas globalizadas tendem
para receber empreendimentos imobiliários. a ter aspecto similar. Os prédios espelhados são
A retificação do rio foi agressiva e não tra- parte fundamental da estética urbana de locais
tou de apenas colocar a água entre paredes, de grande acúmulo de capital. É a tal da unifor-
mas foi responsável por uma mudança brusca mização causada pela globalização, que conta
no próprio traçado. Tanto que a área que hoje com uma forma particular de se apresentar e
é o Parque do Povo ficava na outra margem do vender um estilo de vida melhor que os outros.
Pinheiros. Com as obras de retificação, que du- Voltando à várzea, o primeiro clube de fu-
raram de 1938 a 1958, o pedaço de terra foi tebol amador a se instalar no Parque do Povo foi
deslocado para o lado que está hoje. o Marítimo FC, formado por um grupo de bar-
queiros imigrantes portugueses, que ganhava a

198 199
vida retirando areia do rio Pinheiros. O clube não apenas fisicamente, mas também em sua
fundado em 1928 instalou-se na área alagadi- reputação. Vale recordar que até então a Vila
ça para jogar bola em 1934. A partir daí vários Olímpia era um bairro em que a massa popu-
clubes começaram a aparecer. Eles pegavam lacional era composta, em grande parte, pela
pedaços daquela terra para fazer seu próprio classe trabalhadora assalariada das indústrias.
campo. Com o crescimento e a popularização Por vezes, descrita como “abandonada”, a cer-
do local, foi necessário que se construísse uma cania estava longe de ser o luxuoso amontoa-
estrutura básica para que os frequentadores fi- do de edifícios de hoje. A parte baixa da Vila
cassem mais à vontade e tivessem opções de Olímpia toda era considerada uma grande vár-
comida e bebida, além de banheiros e vestiá- zea e, por isso, antes das obras de canalização
rios. Assim apareceu um elemento fundamen- dos córregos, o terreno do local era bastante
tal dos clubes varzeanos: os bares. alagadiço e desvalorizado. Isso levava para lá
No futebol amador de várzea, sem a exi- quase que exclusivamente pessoas da classe po-
gência e cobrança do profissional, muitas vezes pular, estas encontravam no futebol de várzea
a prática do esporte é quase uma “desculpa” do Parque do Povo uma das possíveis formas de
para que muitos amigos possam confraternizar. distração para a dura realidade.
O bar torna-se uma espécie de alma do clube, Porém, não eram apenas os moradores da
além do fato de que a renda do boteco, muitas região que frequentavam o antigo Parque do
vezes, representa a única fonte de dinheiro da Povo. Pessoas de vários bairros e regiões de
própria agremiação, sem que seja necessário São Paulo tinham encontro marcado no anti-
o investimento pessoal dos jogadores, que, em go reduto da várzea. É o caso de Osmar Silva,
sua maioria, são de classes menos abastadas e também conhecido como Almirão. Hoje com
que não podem se dar ao luxo de manter um 33 anos ele conta que começou a frequentar
clube de futebol com seu próprio e valioso di- o Parque do Povo ainda muito criança, acom-
nheiro. Ou seja, o parque funcionava, mais do panhado de seu pai. Ambos saíam da Pompeia
que ponto de prática esportiva, era um local de e iam até a Vila Olímpia de ônibus, todos os
sociabilização e de convivência. Traços cada vez domingos, às 7 horas da manhã. Seu pai joga-
mais perdidos em uma cidade como São Paulo va no Esportivo Futebol Clube e foi campeão
e, principalmente, em bairros que são alvo de do torneio local em 1990. Quando cresceu um
gentrificação, como é o caso da Vila Olímpia. pouco mais, Osmar começou a ir para jogar
Dessa forma, o Parque do Povo cresceu também. Seu pai jogava “com os adultos” e ele

200 201
“com as crianças”. “Aquilo era vida. Hoje não chegou na linha de fundo, sentei-lhe um sarrafo.
tem mais isso” e “daora demais aquela época, Ele gritou ‘ah, mas não precisava disso’. O cara
saudades”, diz ele, em tom saudoso, sobre o lu- subiu assim”, falou Amaral, aos risos, enquanto
gar que foi um marco da sua infância e que o colocava a mão quase na altura do peito.
ensinou muito sobre o futebol.
A região do Parque do Povo era um reduto
popular. Yolanda, de 83 anos, mora há 55 anos
na Vila Olímpia e tem um modesto restaurante
em sua casa, na Rua Ministro Jesuíno Cardoso.
MONOPÓLIO, BRIGAS E O CANTO DO RIO
Ela lembra que, aos sábados, havia uma feira Grande parte da extensão da várzea do rio
livre ali. “Tinha uma feira muito boa”, diverte-se Pinheiros pertencia à companhia Light & Power.
a idosa. Ela trabalha no restaurante apenas com Foi essa a empresa que trabalhou na retificação
seu filho. Enquanto ela fica no balcão, anotan- do rio. Depois de pronto, os terrenos próximos
do pedidos dos clientes, o filho, Amaral, prepa- ao leito ficaram como propriedade desse grupo
ra as refeições para quem chega. Ele lembra- canadense. Ao total, 21 milhões de metros qua-
-se da existência dos clubes Canto do Rio e do drados pertenciam à Light. A área do Parque
Marechal Floriano, porém, não fazia parte de do Povo foi passada, tempos depois, ao Instituto
nenhum deles. Ele ia jogar lá e apenas usava o de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários
campo. “A gente formava [os times] ali na hora, (IAPC), que depois viraria IAPAS, e que seria re-
sempre tava cheio de gente e ia formando”, re- batizada como INSS décadas depois. Em 1954,
lembra o homem. “Jogava pra dar umas porra- um clube dali, o Marechal Floriano FC, conse-
das nos caras. Levantava. Pegava por baixo as- guiu a autorização da IAPC para cuidar do ter-
sim e levantava. Uma maravilha!”, conta, com reno. Com esse acordo, a área ficaria livre para
bom humor, Amaral, que não deixou passar a o uso esportivo. A concessão, porém, acabou
oportunidade de dar uma dessas levantadas em em 1987, quando um pedaço do terreno preci-
um antigo gerente dele. “Teve até um negócio sou ser desapropriado para uma obra da Telesp,
gozado, uma vez nós fizemos um ‘solteiros e ca- antiga companhia de telefonia de São Paulo.
sados’ da Camargo Corrêa, porque eu trabalhei Durante e após esse período, porém, o terreno
na Camargo e tinha um gerente que me enchia foi sendo passado e vendido para outras com-
o saco. Choveu pra caramba! No dia seguinte panhias: estima-se que cerca de 70% do terre-
nós estávamos marcando um jogo. Ah, bicho, no pertencesse às construtoras: Paranapanema

202 203
e Urbatec, além da Associação Nossa Senhora dado em 1º de janeiro de 1941 e até hoje conta
do Bom Parto. As muitas dívidas contraídas por com a reunião de seus diversos membros da-
essas empresas resultaram na perda do terreno quela época. Atualmente, a sede do clube foi
para a Caixa Econômica Federal. mais para o sentido da zona sul, perto da antiga
A década de 1960 representou o auge dos Águas Espraiadas e atual Avenida Jornalista Ro-
times de futebol de várzea no Parque do Povo. berto Marinho, na Vila Cordeiro. No momento
Em 1962, havia 14 clubes na área de 150 mil atual são feitos casamentos, festas de aniversá-
m². Um desses clubes era o Canto do Rio, time rios e reuniões regadas a pagode, samba e feijo-
no qual Antonio Bernardo Soares jogava e aju- ada. Na época que a agremiação ficava no Par-
dou a manter durante muitos anos. Hoje com que do Povo havia diversos movimentos sociais
78 anos, Antonio Bernardo é um morador an- que ajudavam as pessoas necessitadas da Vila
tigo da Vila Olímpia. Ele morava na antiga Rua Olímpia. A filha de Bernardo, Patrícia, lembra:
Heloísa, hoje Avenida Juscelino Kubitschek, e “Eles tinham um projeto lá que eles pegavam
foi no bairro que ele conheceu Paulina Soares, as crianças da comunidade e soltavam pra vida
com quem se casou há 51 anos. Vivem juntos de profissional. Eles davam uma profissão para
até hoje. Bernardo é juiz de boxe e é chamado os meninos da comunidade. Era um trabalho
em muitos lugares como “o maior árbitro de humanitário. Aí saía jogador pro Corinthians,
boxe do Brasil”. Além disso, é o presidente fun- Palmeiras”. Como um dos membros importan-
dador do Conselho Nacional de Boxe (CNB) e tes do Canto do Rio, Antonio já foi presidente
representante da Organização Mundial de Boxe do clube, que, na época, administrava todo o
(OMB) no Brasil. Grande parte da sua paixão local do Parque do Povo. O processo que levou
pelos esportes começou a ser desenvolvida ali à expulsão dos clubes, quando a área se trans-
onde era o Parque do Povo. É com muito orgu- formou no elitista “parque do povo” de hoje,
lho que a esposa, Paulina Soares, de 74 anos, deixou Bernardo bastante chateado, de acordo
na Vila Olímpia há 73, fala do marido: “ele vai com a própria filha. “Meu pai ficou muito triste
entrar no livro do Guinness como o que fez mais com todo o processo, porque era deles, né? A
lutas no mundo. Sete mil e não sei quantas aqui Prefeitura pegou. Deram um pagamento para
no Brasil e sete mil e não sei quantas fora! Olha ele, mas nada fora do normal perto do que eles
só que beleza! Maravilhoso. Ele é um homem tinham. Tinha gente morando lá no terreno.
bom, graças a Deus”. Pra tirar foi duro, família com filho, tudo. Meu
O Grêmio Desportivo Canto do Rio foi fun- pai sofreu muito e foi nessa época aí. Porque

204 205
é um clube muito antigo deles. Clube de ho- o estudo, os jogadores se trocavam debaixo de
mens, de futebol, pegavam crianças carentes um pinheiro e outra pessoa, que não estivesse
da região para ajudar. Tudo da Vila Olímpia, em campo, cuidava das roupas que ficavam ali.
tem um monte de menino aí que virou jogador A estruturação maior dos locais de consumo
de futebol”. como os bares, além da casa do zelador, vesti-
O time do Canto do Rio, de 1968, é lembra- ários e banheiros, começou, em especial, após
do até hoje por diversos moradores da região a aprovação para o Marechal Floriano cuidar
e antigos fãs do futebol. A escalação contava do local. Com a segurança de que aquela área
com Valter, Passarinho, Japonês, Taturana, Tu- seria cuidada por eles e para eles, houve mais
cano, Clóvis, Luisinho, Bertinho, Balinho, Mas- confiança para realizar pequenos investimentos
sao e Dino. O treinador era Manezinho e con- que ajudavam os clubes.
tava com Helio, Sunao e Cabralzinho no banco O antigo parque contava com muitos clubes
de reservas. Tucano era o apelido de Antonio e times, que iam desde nomes sérios da região
Bernardo, marido de Paulina Soares. Em entre- até brincadeiras como o Clube do Mé, Grêmio
vista ao jornal Folha de S. Paulo, o ex-jogador Esportivo Itororó, Mocidade Futebol Clube e
Silvio Barlette, o Pavão, hoje com 69 anos, fala tantos outros. O Clube do Mé, inclusive, conta-
de uma das peculiaridades de jogar por ali: “Se va com uma reputação que atravessava os limi-
alguém chutasse um pouco mais forte, a bola ia tes do Itaim e da Vila Olímpia. Personalidades
parar no Rio Pinheiros”, algo inimaginável le- como Rivellino e o ”Divino” Ademir da Guia
vando em consideração que hoje há duas pistas apareciam ocasionalmente por lá para jogar. E,
da Marginal Pinheiros passando entre o parque como se não bastasse, as festas da agremiação
e o rio. contavam com nomes como o de José Bispo
O Canto do Rio era uma associação impor- Clementino dos Santos, o lendário sambista Ja-
tante para a vida do Parque do Povo. Paulina melão. Além disso, o Parque do Povo funciona-
conta que seu marido e os jogadores do time va como um imã para times que perdiam suas
tinham que carpir os campos, arrancar todos áreas da prática esportiva, especialmente por
os matos sobressalentes para poder jogar ali. causa do crescimento da urbanização em São
Além disso, as entrevistas que ocorreram du- Paulo. Aos poucos, com o crescimento da Vila
rante o processo de tombamento do local con- Olímpia e a incorporação das várzeas às partes
tam como era a informalidade que dava vida chamadas produtivas da capital, viu-se a neces-
ao cotidiano da agremiação. De acordo com sidade de conservar o Parque do Povo como
um verdadeiro espaço para o povo.
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Tombamento e elitização
Curiosamente, em 1987, quando o time
Marechal Floriano precisou sair do local para
Tombamento e elitização
um verdadeiro espaço para o povo. oficial de tombamento aconteceu um ano de-
pois, em novembro de 1988. O processo todo
Tombamento e elitização foi marcado por brigas. Os proprietários do lo-
Curiosamente, em 1987, quando o time cal tentaram forçar a saída dos clubes de lá e
Marechal Floriano precisou sair do local para colocaram a área em leilão. O principal inte-
dar espaço ao empreendimento da Telesp, co- ressado na compra do terreno foi a construtora
meçaram os pedidos para tombar o parque. Mendes Jr, que tinha a intenção de construir um
Nessa época, a infraestrutura urbana da região shopping enter no local. Nesse período foi for-
já sofrera ou começava a sofrer algumas modi- mada uma comissão para combater os planos
ficações e melhorias. A maioria dos córregos já da iniciativa privada de resgatar o local nunca
tinha sido canalizado, restava apenas o Ubera- utilizado até então, isso em conjunto com a As-
binha, que viria a ser colocado em galerias no sociação Amigos do Parque do Povo. À época,
começo dos anos 1990 e que se transformaria a delegação foi formada por dois membros de
no que hoje é a Avenida Hélio Pellegrino. Po- cada uma das instituições que resistiam ali: oito
rém, o córrego do Sapateiro (atual Avenida JK) clubes de futebol, além de um circo3 e o teatro
e o córrego Traição (atual Avenida dos Bandei- VentoForte.4 As minúcias do processo podem
rantes) já tinham virado importantes vias para ser conferidas em dois artigos detalhados sobre
carros e as inundações na região já tinham di- todo o período: “Tombamento do Parque do
minuído drasticamente. Além disso, o merca- Povo: futebol de várzea também é patrimônio”,
do imobiliário já começava a se voltar para a de José Magnani e Naira Morgado, e “Parque
Vila Olímpia como um lugar promissor, desde do Povo: um patrimônio do futebol de várzea
que houvesse as devidas obras na infraestrutu- em São Paulo”, de Simone Scifoni.
ra urbana. Diante de tudo isso, seria necessário
preservar a cultura popular na área verde que
estava ameaçada. 3 Circo-Escola Picadeiro, chegou ao Parque do
Nesse momento, o Conselho de Defesa do Povo em 1984 e hoje se encontra em Osasco.
Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico de São Paulo (CONDEPHAAT) entrou 4 Teatro VentoForte chegou ao Parque do Povo
em 1984 e permanece lá até hoje. O dramaturgo
em ação e começaram os estudos das carac-
argentino Ilo Krugli morreu, aos 88 anos, no dia 7
terísticas do local para seu tombamento e pre- de setembro de 2019. E é lembrado como um dos
servação. A ordem para o começo do processo principais artistas para o teatro infantil.

208 209
Em 1995, depois de muitas idas e vindas até difícil tentar associar esse jornalismo para a
do processo, o tombamento foi publicado no comunidade com o conteúdo do texto em ques-
Diário Oficial de São Paulo, quando a cidade tão. Parece mais uma assessoria de imprensa do
encontrava-se sob a gestão de Paulo Maluf. O órgão público, do que uma prestação de ser-
documento publicado em 6 de junho de 1995 viço para o cidadão. Ele dispara frases como
dava especial atenção para a prática do futebol a “transformação da área ocupada ilegalmente
de várzea. Lê-se na publicação: “O objetivo do há anos em um espaço de lazer para a popu-
tombamento é a preservação da base material lação”. À época, o parque ainda era do povo.
para a realização das atividades culturais e de Provavelmente as sombras dos edifícios que já
lazer ali desenvolvidas, com destaque para a começavam a circundar o parque ofuscaram a
histórica prática do futebol de várzea e ativida- vista e cegaram Dimenstein, que sob a égide de
des culturais, assim como promover a manu- jornalismo para a comunidade ataca a própria
tenção do parque e incentivar a melhoria da comunidade, que era a principal beneficiária
qualidade ambiental de São Paulo”. daquele que se configuraria um oásis em meio
A publicação do tombamento representava aos delírios nova-iorquinos da elite paulistana.
uma aparente e importante vitória para o povo, O então secretário da coordenação das subpre-
pois seu local de práticas desportivas seria pre- feituras, Andrea Matarazzo, soltou uma frase
servado e a cultura popular teria o incentivo e que se tornou emblemática e deu todo o tom
a preservação do próprio poder público. “Mas da retórica de Dimenstein: “O nosso objetivo
o tombamento foi desrespeitado pela prefeitura é devolver o Parque do Povo ao cidadão pau-
após a reforma”, disse Simone Scifoni à Folha listano, que até hoje era refém de um pequeno
de S. Paulo. grupo de privilegiados e oportunistas, que vinha
Em agosto de 2006, uma nota da mesma utilizando um dos espaços mais nobres de São
Folha, escrita pelo então colunista do jornal Paulo em benefício próprio”. Fica clara na fala
Gilberto Dimenstein, noticiava que a Prefeitura de Matarazzo que o problema é a localização
de São Paulo passaria a administrar de manei- do uso. “Um dos espaços mais nobres” é o argu-
ra oficial o Parque do Povo. Para além disso, a mento que pesa para chamar os que utilizavam
nota do jornalista, que viria a ser o fundador o local para a prática – respaldada pelo processo
do portal Catraca Livre, assusta. Dimenstein era de tombamento da própria Prefeitura – de “pri-
colunista do jornal e fazia parte de uma editoria vilegiados e oportunistas”. A nota de Dimenstein
chamada “jornalismo comunitário”. É curioso e cita os estabelecimentos comerciais do espaço

210 211
público, como se o que houvesse lá fossem lojas de caminhada; estações de ginástica; sanitários;
de luxo e artigos excludentes, mas, tratava-se de roteiros botânicos e jardim sensitivo (jardim em
bares e pequenas vendinhas que serviam para forma de labirinto, composto por espécies or-
alimentar quem estivesse ali dentro. namentais e medicinais que estimulam olfato,
A invasão da Prefeitura e o desrespeito com tato e visão)”, de acordo com o site da Prefeitu-
a prática do futebol de várzea, apregoado ofi- ra de São Paulo. Realmente, a parte visual e as
cialmente 11 anos antes, começou em janeiro diversas opções de atividades chamam atenção
de 2006, quando a operação chamada “Abre- à primeira vista. Porém, uma observação mais
-Alas” foi responsável por “interditar todas as cuidadosa começa a explicar algumas coisas.
atividades comerciais que eram desenvolvidas Na área destinada às crianças nota-se um
no parque. Na sequência, foram derrubados os padrão social. Em todas as tardes passadas ali
muros, as cercas e os alambrados que dividem para observação, não havia nenhuma criança
a área interna do Parque do Povo”, escreveu negra brincando nos brinquedos bem cuidados
Dimenstein na Folha. O início do fim do futebol do playground. A única presença de pessoas
de várzea no Parque do Povo se deu, de ma- negras ali era das babás, reconhecidas pelas
neira mais acelerada, sob a gestão de Gilberto roupas brancas, usualmente destinadas aos em-
Kassab. No mesmo texto de Dimenstein lê-se: pregados domésticos. Vale lembrar que esta-
“Atualmente, em todas as áreas onde não há mos falando de “um dos espaços mais nobres”
pendências judiciais estão sendo removidas as de São Paulo, de acordo com o então secretá-
edificações. Os campos de futebol, por exem- rio Andrea Matarazzo. Segundo dados da Se-
plo, estão sendo aterrados”. cretaria Municipal de Promoção da Igualdade
Após essa ação da Prefeitura, o local passou Racial (SMPIR), o distrito de Pinheiros (onde
por uma grande reforma e foi reinaugurado em está localizada a Vila Olímpia) é a subprefeitura
28 de setembro de 2008. O “novo Parque do com menor concentração de população negra,
Povo” conta com “três quadras poliesportivas, com apenas 7,3%. Ou seja, é o subdistrito “mais
sendo uma delas com marcação especial para branco” de São Paulo. A comparação é feita
esportes paraolímpicos; aparelhos de ginástica com o bairro de Parelheiros, que concentra
de baixo impacto; banheiros, entrada do par- 67,1% de população negra. Com a área “livre”
que, aparelhos de ginástica de baixo impacto e da camada popular, o Parque do Povo tornou-
áreas de circulação acessíveis às pessoas com -se o quintal particular dos moradores dos pré-
deficiência; parquinho infantil; ciclovia; pista dios de alto padrão da região, coisa que não

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acontecia com a antiga estrutura varzeana. versas restrições e isso é observável em muitos
O apelo elitista do local e sua proximida- exemplos. Já que temos abordado o futebol,
de estética com parques dos Estados Unidos e usemos o caso do esporte profissional que mais
dos grandes centros financeiros da Europa fa- movimenta pessoas no nosso país. O futebol
zem com que o novo “Parque do Povo” seja um brasileiro sempre foi conhecido por sua paixão
dos principais pontos turísticos de vários estran- em demasia e pelo fervor da torcida. Com o pro-
geiros que desembarcam aqui no Brasil. Dois cesso de midiatização do esporte e a crescente
exemplos mais simbólicos são a presença do enxurrada do padrão europeu tomando conta
ator estadunidense, Arnold Schwarzenegger e nas terras tupiniquins, observaram-se diversas
do ex-Beatle, Paul McCartney. Ambos estiveram restrições que ajudam a entender o fenômeno
pelos relvados da área verde em suas passagens da elitização. Hoje, por exemplo, se um jogador
por São Paulo. O ex-Governador da Califórnia marcar um gol ele é proibido de tirar a camisa
passeou de bicicleta saindo da ponte estaiada na comemoração ou de, até mesmo, abraçar
na Avenida Jornalista Roberto Marinho, pegou os integrantes da torcida que ficam à beira do
a ciclovia da Berrini, passou pela Rua Funchal gramado. Caso faça isso, será punido com car-
e foi para o Parque do Povo, onde foi alvo de tão amarelo. Se reincidir na mesma partida, o
algumas fotos de curiosos. atleta será sumariamente expulso de campo. O
Já o músico inglês esteve presente no par- argumento para punição de quem tira a camisa
que em pelo menos duas ocasiões: em novem- é que nesse momento de exposição máxima, os
bro de 2010 e no último mês de março de 2019. patrocinadores perdem a oportunidade de os-
Na última passagem, o cantor e baixista postou tentar a imagem e a marca, que certamente es-
uma foto em seu Instagram ao lado de uma das tarão estampadas nos jornais, revistas e sites no
mais irônicas obras do “Parque do Povo”: uma mesmo dia, ou na manhã seguinte. A CBF, em
estátua de um executivo, engravatado, com uma 2017, promulgou que “as comemorações não
maleta na mão e segurando um guarda-chuva. podem ser excessivas”, pois, em tese, colocaria
em risco a integridade física (segurança) dos jo-
gadores e torcedores. A obsessão por seguran-
ça é uma das principais características das so-
RESTRINGIR PARA ELITIZAR ciedades modernas de cidades metropolitanas,
conforme afirma Teresa Pires do Rio Caldeira,
A elitização é sempre acompanhada de di- em seu livro “Cidade
Cidade de de Muros.
muros”. Fatos assim

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comprovam muitos comentários de jornalistas lítica higienista e elitista nas praças do futebol.
e estudiosos do esporte bretão quando afirmam Para afastar grandes públicos e diminuir a in-
que o futebol é um espelho da sociedade. tensidade das vibrações, fez-se um recorte so-
Quando coloco esse ponto não quero ser cial: os pobres já não seriam mais prioridade,
– ou parecer – negligente com a questão da se- pois traziam consigo riscos de morte, por isso,
gurança dos estádios e das ruas. É exatamente acompanhado de todo um processo de midiati-
pela falta de planejamento de uma segurança zação do esporte os ingressos começam a ficar
inclusiva que ocorreram os maiores desastres mais caros, criando impedimento financeiro
da história do esporte. Como exemplos, pode- para muitos apaixonados. Desde então, cadei-
mos citar a morte de 96 torcedores do Liverpo- ras começaram a aparecer em setores popula-
ol no estádio Hillsborough, em 1989, quando, res do estádio, que obrigaram a cada torcedor
por negligência das autoridades, o estádio do ter seu espaço delimitado para acompanhar o
Sheffield Wednesday superlotou e muitas pes- time do coração.
soas foram esmagadas e pisoteadas. Tal desastre A segurança precisa ser pensada, mas de
marcou uma nova era nos jogos de futebol do uma forma que não seja excludente com as ca-
país inventor do futebol. No Brasil, houve um madas mais populares da sociedade. A tal da
caso similar, mas sem mortos. Na final da Copa “obsessão” por segurança citada por Caldeira
João Havelange, realizada em 2000, o Vasco, se mostra, além de tudo, um ótimo produto dis-
comandado por Romário, recebeu o São Ca- cursivo. Uma das plataformas retóricas de Jair
etano no São Januário para a disputa da taça. Bolsonaro durante sua campanha política, que
Aos 21 minutos de jogo, o alambrado do estádio culminou com a eleição do ex-militar ao pos-
cedeu e as pessoas começaram a cair dentro to de Presidente da República, foi exatamente
do gramado. A enorme pressão em cima das a questão da segurança. Ao todo, no segundo
barras de ferro combinada com o mau estado turno, 57.797.847 pessoas compraram o discur-
de conservação da mítica casa cruzmaltina fez so de Bolsonaro, que é um dos principais expo-
com que 12 metros da grade viessem abaixo, entes públicos desse fanatismo por segurança.
levando consigo torcedores desesperados, que Seguindo essa ideia, um exemplo óbvio
fugiam de uma briga nas arquibancadas. O re- do futebol está nas modernas arenas. Com es-
sultado foi: 168 pessoas feridas, sendo três delas truturas de dar inveja a qualquer europeu, as
em estado grave. Episódios como esses foram modernas arenas são vistas, por muitos, como
a desculpa perfeita para implementar uma po- verdadeiros cemitérios do futebol. Uma das ex-

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plicações é que ela exclui o torcedor de baixa estão sempre abertos a todos, mas a verdade é
renda, pois os ingressos não costumam sair por que o pobre sempre será visto como um intru-
menos de R$60 para uma única partida, mui- so na área. Diversas restrições acompanharam
tas vezes sem atrativo. Para assistir a uma final essa nova fase do antigo Parque do Povo. Rosa-
de campeonato, uma pessoa não desembolsará na Maria dos Santos, moradora e líder da co-
menos de R$100, ou seja, praticamente 1/10 do munidade Coliseu, uma favela encravada entre
salário mínimo atual do Brasil. Caso um indiví- os prédios de luxo da Vila Olímpia, cresceu ten-
duo com renda mais baixa consiga tais ingres- do o Parque do Povo como um lugar de lazer,
sos, provavelmente se assustará com o padrão tanto que ela fazia parte de um time de futebol
europeu de torcida, que prefere assistir às parti- feminino que jogava na antiga estrutura do par-
das sentada e, muitas vezes, incomoda-se caso que. Na época do tombamento, ela relata que
alguém à sua frente levante. O Maracanã ainda colheu muitos nomes para o abaixo-assinado
é um dos grandes templos do futebol mundial, para que aquele local fosse preservado e conta
mas perdeu grande parte do seu apelo popu- das medidas restritivas dos dias modernos. “Eu
lar com a reforma para a Copa do Mundo de peguei muita assinatura na escola para hoje ser
2014, quando a “geral”5 foi destruída para dar um parque elitizado. Como que numa cultura
lugar às cadeiras que o “padrão Fifa” exige. A brasileira nos parques não pode empinar pipa?
restrição aqui não é clara no sentido de “pobres Não pode andar de skate”, indagou Rosana. Ela
não entrarão aqui”, mas se dá pela criação de diz que já foi barrada de entrar no parque com
dificuldades – nesse caso financeiras – para que crianças da comunidade para fazer um pique-
o povo faça parte do espetáculo. nique, pois não tinha avisado antes a adminis-
Este exemplo citado é parecido ao que tração local.
ocorre no “Parque do Povo”, cujo nome oficial “Eu levei as crianças daqui, era término
agora é Mário Pimenta Camargo6. Os portões de férias, então consegui uma pessoa e ela deu
toda a comida: bolo, refrigerante, salgadinho,

5 Área sem assentos, em que os torcedores ficavam


de pé e o ingresso era muito acessível. 4 mil itens, entre quadros, móveis, prataria, porcela-
nas e livros. Ele dirigiu o Museu de Arte de São Pau-
6 Mário Pimenta Camargo foi um advogado, ban- lo (MASP) e trabalhou no Museu de Arte de Nova
queiro e colecionador de artes plásticas. Viveu en- Iorque. Mais um personagem desassociado da vida
tre 1929 e 1996. Sua coleção contava com cerca de popular que existia no Parque do Povo.

218 219
aí a gente fez um piquenique. Aí nós tinha que “Era só eu lá brigando, porque o resto era tudo
ter avisado”, fala, em tom inconformado. “Fui almofadinha. Só eu lá, no meio das cobra. Mas
barrada porque eu tinha que ter avisado... no eu não deixava eles me engolir não. Nossa, eles
Parque do Povo. Eu falei ‘tá, tô avisando ago- me achavam encardida e eu era mesmo”, conta
ra’. Eu falei assim ‘vocês não pode me mandar Rosana, com uma mistura de riso e tristeza. Ela
embora porque é público aqui, não é? Não vou conta que era “muito bocuda” e não aguentou
sair, vou continuar brincando’. Eu não podia muito tempo ali. Disse que “eles deram graças
correr na grama e brincar de queimada com a Deus quando eu não quis mais”.
as crianças. Ah, mas eu brinquei mesmo assim.
Nossa senhora, aquele dia eu passei raiva de-
mais, mas fiz eles passar raiva comigo também.
Eu falei ‘eu vou fazer tudo o que eu posso aqui
dentro, só não posso destruir nada, mas brincar
RESQUÍCIOS DE UMA VÁRZEA PERDIDA
eu posso’”. Parques, em tese, são lugares de intera-
Rosana conta que depois desse episódio, ção, porém, áreas verdes em locais mais nobres
candidatou-se e foi votada para ser uma das trouxeram a ideia de um “lazer contemplativo”,
conselheiras da administração do parque. A como é o caso do Parque Burle Marx. Esse lo-
experiência, porém, foi traumática. “Eu briguei cal é situado dentro do bairro planejado do Pa-
muito, deu certo não. ‘Eu vou sair senão eu te- namby, do outro lado da Marginal Pinheiros. A
nho um infarto aqui dentro’”, falou a moradora cercania é, de fato, uma das áreas mais caras
da favela do Coliseu, desde que nasceu, há 50 do estado de São Paulo e concentra morado-
anos. Ela conta que os enfrentamentos com os res da elite paulistana. É visto como mais nobre
outros conselheiros, todos de classe alta, eram que o Morumbi, que fica ao lado, e o próprio
constantes. “Aquelas pessoas que moram ali, Itaim Bibi ou Moema. Lá não é permitida a pre-
que entram pro conselho, eles falam que o Par- sença de vendedores ambulantes, bicicletas ou
que do Povo é o quintal da casa deles. Eu falei “pessoas que agridam a moral e os costumes
‘se é da sua é da minha também, você não vi- dos usuários do parque”, conforme relata uma
nha aqui eu vinha, eu já frequentava’”. A mu- entrevista concedida a Mariana Fix, autora do
lher era o único ponto de resistência dos menos livro “Parceiros da exclusão”. Essa lógica atra-
favorecidos economicamente, de poder e influ- vessou o rio e caiu como uma bomba no Par-
ência política, entre a elite branca do Itaim Bibi. que do Povo. O novo centro de lazer conta com

220 221
muitas árvores e um extenso gramado propício que teve com os “almofadinhas” do conselho
para deitar e observar a natureza ao redor. do parque. E é curiosa a ironia de não querer
Restou apenas um campo dos 14 que existi- que usuários de maconha frequentem o par-
ram no auge do parque. Envolvido por grades, o que, que está situado na Avenida Henrique
local era o gramado onde jogava o Clube do Mé. Chamma,
Chamma, 420420 –– referência a quem
entenda quem ler. ler. A pre-
A preocu-
Trata-se de uma área sagrada para os amantes ocupação com os ”maconheiros” é tão
pação com os “maconheiros” é tão grande grande
do futebol. Afinal, não é todo dia que você pode que o sistema de segurança do parque funciona
jogar em um local em que já pisaram Rivellino e muito bem contra quem quer consumir a erva
Ademir da Guia. Na verdade, essa oportunidade ali dentro. Um relato anônimo conta que em
não existe mais, já que esse campo, cercado com algumas ocasiões já foi abordado pelos guardas
alambrados está desativado. É, talvez, a única do local quando terminava de bolar um base-
parte do Parque do Povo que está sem os devidos ado. De acordo com a pessoa, os seguranças
cuidados. Os portões trancados a cadeado impe- “brotavam do nada”, perguntavam se era ma-
dem que se realize qualquer tipo de atividade ali conha e diziam que tinham visto tudo pelo mo-
dentro. Permanece como um pequeno elefante derno sistema de câmeras. “Vai embora ou a
branco, quase como muitas arenas construídas gente vai chamar a viatura”, contou a pessoa
para a Copa do Mundo de 2014, que hoje não sobre a abordagem dos vigias. Inclusive, não é
recebem jogos e estão abandonadas, a despeito incomum ver viaturas andando dentro do par-
do altíssimo gasto na construção ou das refor- que, seja da Guarda Civil Metropolitana ou até
mas. A antiga cancha do Clube do Mé hoje está mesmo da Polícia Militar.
sem traves e com o gramado quase na altura dos No lugar onde ficava o campo de futebol
joelhos, enquanto o gramado central do parque, do Canto do Rio, existem, agora, três quadras
para as pessoas deitarem, permanece muito bem poliesportivas, as quais representam uma pe-
cuidado. “É uma tristeza ver um pedaço da nos- quena esperança e uma nostalgia para quem
sa história cercado, sem atividade”, diz Antonio viveu ali por tantos anos jogando bola. O fute-
Bernardo, do antigo clube Canto do Rio, que so- bol – não como negócio, mas como prática do
nha em poder administrar o relvado solitário. povo – tem o poder de resistir. Ao entrar no par-
“Sabe por que não é liberado o campo? que pelo portão principal, ouvem-se conversas,
‘Porque vai vir muito maconheiro’, sendo que sobre negócios, sobre reuniões infindáveis, car-
os maconheiro é os filho deles. Falei na cara ros de luxo e as puladas de cerca dos executivos
dele”, expressou Rosana, sobre uma das brigas da região. Tudo isso, ao inconfundível sotaque

222 223
paulistano “moquense”. Porém, conforme se

MEDO E DELÍRIO
vai andando para dentro do complexo, rumo
às quadras, o cenário fonético começa a mu-
dar. Chegando às planícies de concreto com

NA VILA OLÍMPIA
traves nas extremidades a afluência do sotaque
nordestino aparece com força. Pessoas com ca-
misas de futebol falsificadas ou não, trabalha-
dores dos restaurantes da região, entregadores
de aplicativos, moradores da Coliseu e tantos
outros começam a se soltar. Ali é o lugar deles.
Ali é o lugar de resistir com o esporte. Sob os
olhares atentos dos seguranças à caça dos ma-
conheiros, alguns deles conseguem, entre uma
jogada e outra, correr até a linha de fundo para
dar um trago escondido no “fininho”. Quem
corre com seus tênis especiais, bermudas de
tactel, camisas com respiros personalizados,
contador de passos, medidor de batimentos do
coração e um fone de ouvido ligado ao iPhone
preso no braço não passa por ali. Mas, mesmo
quem chega com roupas arrumadas e próprias
para jogar futebol ali é bem recebido pelo povo
que toma conta das quadras, pois o que impor-
ta é só a bola, é só o jogo.
Nas quadras, o espírito da várzea sobre-
vive, mesmo que trôpego e ofegante. É mais
que uma homenagem aos velhos tempos: é a
oportunidade de mostrar que a vida popular é
pulsante e não pode ser contida pelo concreto
que tentou levar a alma do futebol embora.
Nas quadras o parque continua tendo um
dono: o povo.
224
225
“Compaixão? Não por mim. (...) Este lugar
é como o Exército: aqui vale a ética do tuba-
rão – devorar os feridos. Numa sociedade fe-
chada, na qual todos são culpados, o único
crime é ser pego. Num mundo de ladrões, o
único pecado capital é a burrice”

Hunter Thompson

227
Quando estava na altura do Largo da Ba-
tata, por mais que minha cabeça não estivesse
trabalhando os 100% das condições normais,
reparei que do lado de fora alguns pingos co-
meçavam a marcar o vidro do ônibus como
chicotadas. Estava chovendo.
Não era uma forte chuva, mas era um chu-
Aquele dia começou cedo para um do- visco considerável. Eu já estava ali e sentia mi-
mingo. Precisamente às oito horas manhã meu nha cabeça começar a enxergar tons diferentes
despertador tocou e à minha cabeça apareceu e reparar a movimentação natural da cidade de
apenas um pensamento: preciso ir à Vila Olím- uma forma mais complexa. Não havia o por-
pia. O tempo em Pirituba estava nublado, meio quê voltar atrás, iria na chuva mesmo. Os dias
friozinho, um dia verdadeiramente propício anteriores estiveram bem abafados e deixaram
para ficar em casa lendo ou assistindo a algum aquela sensação de calor na rua, por isso, eu
jogo de futebol. Mas pensei que essa era uma não carregava blusa. Tinha comigo apenas uma
rotina comum aos domingos e valia a pena ten- camisa xadrez por cima da minha camiseta,
tar mudar o programa. Decidi que arriscaria além de uma calça jeans já meio rasgada e um
ver como era a Vila Olímpia em um domingo All Star branco, que se tornaria cinza-chumbo
como aquele, que não prometia muita coisa. ao final do dia.
Por isso, comi alguma coisa em casa, prepa- Presenciar a Vila Olímpia em um domingo
rei-me e saí sem guarda-chuva, até porque tinha é um fato curioso. Ainda mais em um domingo
acabado de perder mais um quatro dias antes. chuvoso como aquele. A impressão é a de que
Fui até o ponto de ônibus e esperei pelo grande os antigos moradores só têm o bairro de volta
monstro verde. Vinte minutos depois chega o em dias assim. Grande parte das ruas fica deser-
busão. A linha 958P saía do Jardim Nardini e ia ta e poucos carros passam. Em dias de chuva,
até Itaim Bibi, porém, em julho de 2019, hou- nem os moradores do local saem para passear
ve uma alteração no itinerário de vários ônibus com seus belos cachorros. Nas calçadas, ape-
e eles deixaram de se chamar Itaim Bibi para nas pessoas com objetivos acadêmicos, como
atender por Vila Olímpia. Propício, eu diria, pois eu, e gente que vive no próprio olho da rua.
reflete bem a tentativa de dar uma visibilidade Observei isso enquanto tomava chuva na
ainda maior a esse centro financeiro paulistano. Rua Quatá, que sai da Avenida Santo Amaro e

228 229
termina pertinho do Shopping Vila Olímpia. Ti- te para atrair um novo público, mais exigente,
nha combinado com meus amigos de mandar criando um movimento em cascata que por fim
algumas mensagens de voz para me lembrar trará mais investimentos, e, por conseguinte,
de algumas situações e impressões específicas. novos prédios de alto padrão. Com isso, mu-
Quando me dei conta de que aquele parecia da-se a cara do bairro e seus frequentadores.
outro bairro, falei isso para os meus amigos, Um prédio como o Seed funciona como uma
com a cabeça explodindo. Bem nessa hora, verdadeira semente, que muitas vezes germina
quase que para me contrariar, passou um carro somente alguns anos depois.
jogando água em tudo o que existia ao lado. Foi Até porque a Rua Quatá chama a atenção
por pouco que não me encharquei mais ainda. pelo grande número de casinhas e sobradinhos
A Rua Quatá é um exemplo bastante inte- geminados, na parte mais baixa da via. Passar
ressante do que se tornou a Vila Olímpia. Per- por essa porção depois do cruzamento com a
to da Santo Amaro há diversos prédios novos, Rua Nova Cidade deixa tudo muito claro. En-
residenciais de alto padrão, pois essa parte já quanto as Sementes se espalham pelas partes
é quase divisa com Moema. Um deles me cha- mais altas, na outra porção mais abaixo a gran-
mou a atenção, e chama-se Seed, da incorpora- de maioria das pequenas casas ostentam placas
dora Gamaro. Seed, em inglês, significa semente de “vende-se”, apenas à espera de uma propos-
e o duplo sentido daquilo ficou claro. Isso pelo ta gorda de um incorporador imobiliário.
fato de que talvez essa seja a construção com Muitas outras dessas casas já passaram a par-
mais presença de verde que eu já tenha visto te do “vende-se” e já mostram placas de constru-
no bairro. Em frente à portaria havia muitas toras e incorporadoras, como a Bolsa de Imóveis
plantas, árvores e samambaias, além do fato de Di, a Lucio, dentre várias outras. Para essas, o
cada apartamento contar com um considerável fim está próximo. As histórias das famílias daque-
jardim suspenso, que fazia o prédio ser um cha- le lugar serão varridas junto a estrutura da casa,
mativo ponto verde na rua. que já se tornou “antiquada” aos novos padrões
Mas, para além disso, a semente parece ser dessa esquizofrênica Vila Olímpia.
um literal grão urbano. Explico isso: uma das tá- Naquele domingo, minha cabeça, minhas
ticas do mercado imobiliário é “forçar” a valori- costas e minha mochila já estavam castigadas
zação de uma área por meio da construção de pela chuva, mas eu não conseguia parar e sen-
empreendimentos de alto padrão em regiões tia que precisava andar mais para conhecer o
com menos investimentos. Isso se dá exatamen- bairro. Saí da Quatá e entrei mais no miolo do

230 231
bairro. Parei na Rua Ministro Jesuíno Cardoso, derna pela privacidade e segurança.
que tem uma configuração relativamente simi- O outro ponto é a Rua Ferreira de Sousa.
lar à da Quatá, mas com várias peculiaridades. Eu já procurava por esse logradouro há algum
Essa rua, cruzamento da Avenida Faria Lima tempo, pois tinha ouvido um relato de dona
e que encontra um dos corações do bairro, a rua Paulina Soares dizendo que já morou nessa rua.
Ramos Batista, conta com alguns prédios impo- Mas por algum motivo eu não a encontrava de
nentes, como o The One, onde está localizada a jeito nenhum. Até que vários dias depois, repa-
Turner Group (dona do Esporte Interativo, TNT, rei que a Rua Ferreira de Sousa se tornou uma
CNN, Cartoon Network e mais), além do Edifí- ruela sem saída, sem passagem para carros e
cio Miss Silvia Morizono, um prédio que lembra com muitas câmeras. Ela fica exatamente entre
o monólito do filme 2001, de Stanley Kubrick. os prédios The One e o Silvia Morizono, escon-
Para além desses, há várias casinhas durante dida e sempre em total sombra por causa dos
toda a rua. Mas não há praticamente nenhum arranha-céus que cobrem qualquer possibilida-
morador nessas residências, pois quase todas de de a luz solar chegar até ali.
sofreram aquilo que se chama de mudança de A Ferreira de Sousa tornou-se um dos pon-
uso. Ou seja, lugares que eram usados como ca- tos prediletos para dois tipos de trabalhadores.
sas, transformaram-se em comércios. São vários Na parte mais perto da Ministro Jesuíno, vários
e vários restaurantes nessa pequena rua. Todos executivos e trabalhadores dos prédios ao re-
eles fechados no domingo chuvoso. dor juntam-se lá para fumar um cigarro e con-
A Rua Ministro Jesuíno reserva pelo me- versar sobre dinheiro e futilidades. Alguns deles
nos dois aspectos curiosos. Um deles é a pre- quase são atropelados por rapazes de bicicleta,
sença de pelo menos três vilinhas, ou seja, ruas que passam a milhão rumo ao fundo da via,
sem saída com várias casas no cruzamento da perto dos muros. Ali se concentram muitos ra-
rua em questão. Mas com uma particularidade pazes que trabalham com entregas. Rappi, Ja-
bastante segregadora: todas elas são fechadas mes, Uber Eats, iFood, várias empresas repre-
por portões de aço e só podem ser acessadas sentadas naquelas caixas presas às costas dos
mediante a confirmação feita por interfone. Ou homens. A maioria deles se junta lá no fundo
seja, curiosos não são bem-vindos ali. Trata-se para dar um peguinha em um baseado antes
pequenas áreas residenciais em que há o esfor- de voltar à rotina desumana dos entregadores
ço para não haver contato com as pessoas que de aplicativos, que já foi registrada em diversas
passam. É a tal da obsessão da sociedade mo- reportagens. Riscos altos, ganhos baixos.

232 233
Outro ponto importante da Vila Olímpia é te, disputar o campeonato municipal. O quadro
a Rua Clodomiro Amazonas, já na parte alta do de avisos mostrava que a excursão saíra da Vila
bairro. A parte de cima da cercania conta com Olímpia pontualmente às 7 horas da manhã.
muito menos prédios que a parte baixa, exata-
mente por ser mais longe do eixo de negócios da
Marginal Pinheiros. Ali a verticalização não é tão
violenta e ainda é possível enxergar o céu sem
fazer tanto esforço. A importante via, porém,
FRAGMENTOS DE UM BAIRRO
ultrapassa os limites do bairro e liga a Rua Ta- Olhar aquele bairro sob a melancólica chu-
bapuã, no Itaim Bibi, a Avenida Hélio Pellegrino. va intermitente que caía fez-me pensar sobre
Naquele domingo de manhã, enquanto an- quão louca é São Paulo. Ver aquelas pessoas ali,
dava, fui até a esquina da Hélio Pellegrino com tranquilas, comprando pastéis na pequena feira
a Avenida Santo Amaro, onde tem um Burger da Rua Hélion Povoa, não lembrava em nada
King, que traz uma carga nostálgica para mim. aquele caos cintilante que os homens de cami-
Foi saindo de Pirituba e indo até essa lanchone- sa azul e o pessoal dos negócios impunham du-
te que eu tive meu primeiro contato com essa rante a semana.
região. Quando ia de carro e muito me agrada- Também não parecia o mesmo lugar que
va ir lá aos sábados à noite com meus amigos. concentra um dos mais bizarros tipos de trân-
À época, aquele BK era a única loja de rua da sito durante a semana: o de patinetes. Eles já
franquia e o esforço valia a pena. Cerca de cin- tinham voltado como “febre” no começo dos
co ou seis anos depois, eu me vejo na frente do anos 2000, e depois praticamente sumiram por
restaurante, com quase tudo vazio, poucas pes- muitos anos. Há pouco tempo, porém, o pau-
soas passando. Era um cenário muito diferente. listano parece ter redescoberto os patinetes e
Um pouco abaixo dali, há o Clube da Co- agora os usa a todo tempo. Em especial na Vila
munidade da Vila Olímpia, um local com duas Olímpia, porque ele, diferentemente da bicicle-
canchas de bocha, que reúne alguns idosos aos ta, não cobra praticamente nenhum esforço de
domingos. Eles assistiam ao jogo do Palmeiras quem está conduzindo, por isso, os tais dos ho-
na televisão, comiam uma porção de torresmos mens das camisas azuis usam-no com tanta fre-
e tomavam uma lata de Skol. Naquele dia, o quência. É capaz de a pessoa que guia chegar
clube estava menos movimentado porque os ao seu destino sem nenhum suor, nem mesmo
jogadores tinham ido à Vila Diva, na zona nor- com a famosa pizza debaixo do braço.

234 235
As bicicletas também são comuns no cená- receber um sorriso “cordial” e desconfiado de
rio da Vila Olímpia. Aquele domingo de manhã, algum segurança. As câmeras estão por todos
porém, não reservava quase nenhuma delas. os lados. Nos finais de semana, as atenções
Eram poucos os corajosos que deixavam suas para elas são ainda maiores pelo medo cons-
casas para pedalar no bairro quase todo plano. tante que as pessoas carregam de terem seus
No domingo, os únicos rastros de que há gente patrimônios depredados ou roubados.
usando as bikes, são as muitas bicicletas, e tam- As construções, por outro lado, não param
bém patinetes, espalhados por todos os cantos de acontecer. O barro em esquinas luxuosas de-
do bairro. Muitos desses veículos, usados por nuncia que há mais alguma construção aconte-
“gente civilizada”, são deixados em cima do tra- cendo por perto. Basta olhar ao redor e você
jeto especial para cegos e no meio das calçadas, achará. Uma andada despretensiosa como
atrapalhando pedestres. A Avenida Faria Lima aquela de domingo revelava várias gruas para-
é o ponto de todo o bairro que mais concentra das, além de vários tapumes e placas de metal
o uso dessas bikes e patinetes. que apontam que algo está sendo modificado
Porém, muitos que usam esse serviço da ali dentro. Na simpática e diminuta Rua Chilon
iniciativa privada são os rapazes que ficam pa- já existe um condomínio residencial de alto pa-
rados no fundo da Rua Ferreira de Sousa. Mui- drão pronto e habitado. Há outro em processo
tas vezes, uma bike do Itaú é usada pela em- de exposição das maquetes e decorados. Trata-
presa iFood para entregar o pedido de alguma -se do VN Millennium Faria Lima, um conjun-
hamburgueria gourmet da região, por exemplo. to de duas torres, que deve se tornar um dos
É um delírio de terceirizações. prédios mais altos da região e impressiona pela
“Delírio” é uma palavra que define bem a quantidade de áreas comuns e privadas, com
Vila Olímpia. Toda a fama do bairro na atua- quadra de tênis, piscina, lavanderia, cozinha
lidade deve-se a ideias muitas vezes delirantes gourmet e tantas outras coisas. “Uma cidade”,
e, essencialmente, elitistas. Os enormes empre- como me disse uma antiga moradora da rua.
endimentos deixam claro que há um perfil de Além desses dois empreendimentos na
pessoas que podem ter acesso a determinados Chilon, há outra construção acontecendo na
lugares. As construções de lá pouco serviram rua. Um muro de metal indica a obra sendo
ou se atentaram para trazer vida, convivência realizada. Nessas chapas metálicas está afixada
e hospitalidade em meio aos imensos prédios uma pequena placa, que informa o número das
espelhados. Há poucos lugares para ficar sem casas que foram demolidas para a construção

236 237
do novo empreendimento. O projeto derru- nos de 50 metros dali. Exatamente na frente. A
bou as casas número 333, 335, 341, 351, 357, Hillsong é um caso curioso. Com a gourmeti-
361 e 367. Um total de sete casinhas que foram zação, gentrificação e a chegada dos hipsters,
demolidas para que a Vila Olímpia continue a experimentada pelo bairro, dificilmente uma
receber o novo público padrão gourmet, ou pa- igreja de caráter popular teria espaço ali. As-
drão Fifa, ou qualquer padrão internacional. sembleia de Deus, Igreja do Evangelho Qua-
Depois de almoçar e colocar minha per- drangular e nem mesmo as Batistas têm muito
na para descansar depois de quase três horas lugar ali. Mas a Hillsong tem. A Hillsong é uma
andando sem interrupções, combinei com um igreja australiana, que fez muito sucesso no
casal de amigos que passaria lá na casa deles meio dos anos 2000 com seus grupos de louvor.
para visita-los. Como estava pelas imediações O Hillsong Live e o Hillsong United fizeram gi-
da Rua Gomes de Carvalho, peguei um lanche gantescas turnês mundiais para divulgação dos
no Shopping Vila Olímpia, que parecia vivaz, álbuns, venderam milhões de CDs e ditaram o
diferente do tempo chuvoso e melancólico que novo estilo de louvor para muitas igrejas espe-
reinava lá fora. cialmente a partir de 2005.
Porém, voltei à rua, onde me sinto mais à A Hillsong tornou-se uma marca global.
vontade. Quando já estava quase na esquina Igual a uma empresa, ela conta com filiais ao re-
com a Rua Funchal, olhei para trás para ver a dor do mundo: Londres, Nova Iorque, e vários
via, os prédios e as pessoas, no meu fone de outros. Ao total a igreja se faz presente em 25 pa-
ouvido soaram as palavras de Black Alien: “No íses. Com apelo jovem e um investimento altíssi-
ano dois mil pra frente, homens do passado, mo, a instituição é conhecida como a “igreja dos
pisando no futuro, vivendo no presente”. Fez famosos”. Em março de 2019, o jogador Alexan-
todo sentido. dre Pato, do São Paulo Futebol Clube, se batizou
À minha esquerda reparei que pelo menos lá. Justin Bieber, Kaká, Bruna Marquezine e ou-
cinco pessoas acomodavam seus cobertores, sa- tros já deram o ar da graça em alguma Hillsong.
colas e papelões para se proteger da chuva e do Em 2014, a Hillsong arrecadou R$228 milhões
vento que começava a esfriar. Eles estavam em na Austrália e R$285 milhões ao redor de todo
frente à entrada de uma agência da Caixa Eco- o mundo. Cifras livres de impostos. Apenas uma
nômica Federal, que era protegida por um muro. igreja “global” poderia sobreviver no coração do
Os membros da Hillsong Church pareciam bairro que quer se vender como “global”.
não reparar naquela cena que acontecia a me- Passei pela frente da Hillsong, parei ao lado

238 239
do Wendy’s, que já não existe mais e agora abri- eu ainda precisaria comprar a cerveja. É bem
ga o primeiro Mc Donald’s da baixa Vila Olím- como dizem por aí: tem que saber chegar e sair.
pia, e reparei mais uma vez em todas as constru- Hesitei, olhei para os lados, pensei em conferir
ções ao meu redor. Muitos quilos de concreto e como era o Parque do Povo sobre chuva, mas
vidro. Árvores plantadas de acordo com a von- a verdade é que já era a hora de ir embora da
tade humana. Pessoas tentando dormir na rua, Vila Olímpia.
outras passando correndo para fugir da chuva
que não parava. Vi a riqueza como um fogo de-
vorador tomando cada ponto daquele bairro.
Quase como Midas e seu toque de ouro,. Assimassim
funcionam os empreendimentos imobiliários.
Nessa hora, lembrei-me de Rosana Maria
dos Santos, a líder da comunidade do Coliseu:
“O pessoal rico acha que a gente incomoda eles,
mas não. É eles que incomoda a gente porque
a gente chegou primeiro. Eu cheguei primeiro
que eles, é eles que incomoda a gente. Tiraram
nossos eucaliptos, aqui era cheio de eucalipto,
aqui na comunidade”.
Os eucaliptos foram tirados, os rios retifica-
dos, os prédios construídos, os pobres expulsos,
as casas demolidas, as árvores plantadas, as
ruas abertas...
Ah, Vila Olímpia, o que será de ti?

***

O relógio já marcava cinco horas da tar-


de, eu sabia que meus amigos me esperavam e

240 241
AGRADECIMENTOS

243
Em primeiro lugar, agradeço aos meus
pais, Marina Macedo de Faria e Paulo de Faria
Filho, por todo o apoio e sustento nesse perío-
do. Sem vocês absolutamente nada disso teria
sido possível.
Agradeço à minha orientadora Lilian Cre-
paldi pela ajuda nesse período, e especialmen-
te por ajudar a despertar o cronista e escritor
em mim.
Agradeço imensamente a diversos pro-
fessores e dou destaque para Rogério Tineu,
com as aulas de economia que mudaram mi-
nha vida e Wagner Belmonte, que sempre lu-
tou para mostrar um jornalismo mais humano.
Além disso, ambos foram muito importantes na
concepção de todo esse trabalho. Além da pro-
fessora Cilene Victor, uma incansável defenso-
ra dos direitos humanos.
Agradeço a todos os mestres que tive des-
de o Colégio Hebrom, passando pelo Canello
Marques, Faculdades Rio Branco, Anhembi-
-Morumbi, Teológica Batista e especialmente
da FAPCOM.
Agradeço a todos os colegas de sala, que

245
foram fundamentais em diversos momentos di-
fíceis enfrentados. Uma menção especial à Dé-
bora Idelfonso, que me ajudou com o nome e
a capa do livro.
Um agradecimento especial aos meus ami-
gos do grupo Transtornelson, que foram impor-
tantes para assegurar risadas e bons rolês pela
cidade. Destaco aqui Amadeu Capistrano, Le-
onardo Berr, Jackson Quirino, Ricardo Bizão,
Thiago Kuhn, Felipe Almeida, Lucas Dalfré e
Ingryd Rosa.
Agradeço à Bruna Nascimento, Felipe Es-
renko, Eduardo Verdugo, Geraldo Junior, Ale-
xandre Sinato, Luciana Royer, Ermínia Marica-
to, Izabella Machado, Letícia Coelho e tantos
outros que estiveram por perto ou ajudaram
pontualmente.

Esse trabalho tem algo de vocês também.


Muito obrigado!

246
Esta obra foi composta pela produtora editorial
independente Borboleta Azul em novembro de 2019.

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