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Teatro político na cozinha popular do Sol

Nascente, por moradia digna e o fim do


capitalismo

Por Camila Araujo

Foi a primeira vez que presenciei o teatro do oprimido. Eu estava falando com o
companheiro João Marques, morador do trecho 1 do Sol Nascente, sobre o
capitalismo. Sobre como o sistema que organiza a nossa vida produz pobreza,
fome, desigualdade, destrói os biomas, pois faz parte de sua lógica pautada pela
acumulação de capitais e pelo lucro. Enquanto um pequeno grupo de pessoas
ganha, um outro grupo, composto pela maioria da sociedade, perde. O período da
pandemia mostrou isso. Em dois anos, que atravessaram a crise sanitária até maio
de 2022, 573 novos bilionários surgiram no mundo, segundo um estudo da Oxfam.
Já a renda de 99% da população caiu durante o mesmo período. Como na música.
É que o de cima sobe e o de baixo desce. Bom xibom, xibom, bombom. Dá pra dizer
que os dez homens mais ricos do mundo têm mais riqueza do que os 40% mais
pobres juntos. Totalmente irracional.
Nossa conversa foi então interrompida pelo início da cena proposta pelo Laboratório
de Teatro Político e Reforma Agrária (LATERA), dirigido pela artista Julie Witzel,
para a plenária do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos
(MTD). Eu estava ali, num sábado, dia 26 de agosto, a convite do movimento para
fazer uma cobertura fotográfica. Embora a conversa com João estivesse muito boa
– “isso que você tá falando realmente faz sentido”, me dizia ele – eu precisei
levantar para fotografar o espetáculo.

O teatro do oprimido, vale resgatar, é um método teatral elaborado pelo alagoano


Augusto Boal, nos anos 1970, em que o espectador não é um ser passivo,
contemplativo. É um agente de mudança que se envolve com a peça, e por ela é
transformado. Esse teatro não quer apenas proporcionar o conhecimento da
realidade concreta mas sua transformação, pela emancipação dos oprimidos, pela
vitória da classe trabalhadora – em outras palavras, o poder nas mãos do povo. É
um teatro militante. O LATERA, projeto da Escola de Teatro Político e Vídeo Popular
do DF (ETPVP), propõe o estudo teórico-prático do teatro militante, da agitação e
propaganda, em que o público não só participa mas também se conscientiza. Vai
desenvolvendo consciência de classe e o sentimento de pertencimento à luta. Como
explicou a companheira Rayssa Aguiar Borges, “o teatro de agitprop tem o desafio e
a beleza de, na urgência da demanda, com pouco tempo e pouco recurso material,
levantar cenas que dialoguem de forma sincera e potente com a coletividade”.

Uma síntese do que vimos neste dia na Cozinha Comunitária do MTD. no trecho 3
da comunidade Sol Nascente, localizada na Ceilândia-DF – é, a propósito,
considerada a maior favela do Brasil. A cena foi apresentada por volta das 17h. Em
seguida, antes do início do Arraiá previsto para às 18h, uma cerimônia de batismo
da Cozinha foi realizada pelos militantes do MTD, encabeçada por Tobias. O local
passa agora a ser chamado de Cozinha Popular Mara Maria de Jesus, em
homenagem à militante Mara, moradora da comunidade, primeira integrante do
quadro profissional do coletivo, quando a cozinha ainda era uma padaria, a Pão
Nosso, e grande entusiasta das atividades no local, que faleceu cerca de um mês
antes.
Na cena, Rayssa e Beatriz são personagens que representam a burguesia diante da
luta por moradia. Elas são mulheres ricas e brancas sentadas à frente de uma TV –
que nada mais é que uma cartolina branca vazada no meio. O público está atrás do
aparelho, bem perto, todo mundo acomodado sob a tenda azul da plenária. O chão
é de terra e do céu, nublado, caem algumas gotas d’água. Há uma bandeira do
Brasil que poderia ter sido colocada de forma proposital como parte do cenário.
Afinal, tudo que ela representa são interesses históricos de uma classe dominante.
As personagens estão ouvindo no noticiário que uma nova ação de despejo está
sendo promovida em uma ocupação urbana na cidade. É uma situação verossímil,
aqui em Brasília (Mapeamento Nacional de Conflitos pela Terra e Moradia apontou
em fevereiro deste ano que ao menos sete mil famílias do Distrito Federal são
atingidas por conflitos, despejos ou estão ameaçadas de serem despejadas), lá na
minha longínqua Bauru, no interior de São Paulo (o Tribunal de Justiça de São
Paulo registrou 487 ações de despejo e 183 ações de reintegração de posse em
Bauru entre 20 de março até agosto de 2021, informou reportagem do Jornal Dois),
e para todo lado deste país. Morar com dignidade não é uma garantia para a classe
trabalhadora no capitalismo. A especulação imobiliária vai abocanhando todo o
perímetro urbano de um município, forçando a expansão de seus limites. E você
pode ser o próximo. Um dia tem um teto. No outro, sobram os destroços das
paredes do seu patrimônio pessoal, construído com muito trabalho suado. A polícia
atua como agente de manutenção do poder da classe dominante, a fim de garantir
“ordem e progresso” para esta classe. Se atrapalha o interesse privado da
burguesia, não pode haver moradia. No papel a lei garante moradia para todo
indivíduo. A prática, critério da verdade, é outra.
O ator brasiliense Thalisson, morador da Fercal, encena o mordomo da casa
daquelas duas mulheres brancas e ricas. Ele, um homem preto, serve as patroas
com taças – azuis de plástico, que simbolizam taças caras – e uma garrafa de vidro
originalmente usada para servir suco de uva da marca Aurora – sim, aquela
envolvida com trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul –, que
representa um espumante, um vinho, ou que remeta a uma bebida cara qualquer.
Enquanto isso, ele vê pela sua comunidade sendo despejada. Ele se inquieta e se
preocupa. Imaginamos a angústia e ansiedade que está passando na cabeça
daquele rapaz. Parte do público que está assistindo já viveu situações parecidas e
interage com a cena. Ele precisa voltar para casa para cuidar de suas coisas. Que
não são apenas coisas, afinal. É o canto seguro que ele tem no mundo. O lugar
para o qual ele pode chegar e voltar sempre que precisar de um descarrego. É seu
conforto, sua vida, e tudo que conquistou. Aqui temos a questão da classe
atravessada pela questão racial. Afinal, todas as formas de opressão que
vivenciamos hoje estão conectadas. O capitalismo, este sistema da acumulação, de
classes sociais, se vale das opressões – gênero, raça, sexualidade, etc – para
subjugar pessoas.
O servente das mulheres que representam a burguesia pede então licença para sair
mais cedo. As mulheres, sabendo de sua situação, hesitam em liberá-lo. Alguns
momentos a menos de trabalho durante aquele dia significa prejuízo para elas,
embora na prática não fará a menor diferença sua ausência por menos de um dia.
Mas, por menor que seja esse “prejuízo”, no sistema capitalista tudo é pautado pela
lógica do dinheiro, da acumulação, do lucro. As relações sociais e humanas também
são atravessadas por isso. Quanto mais a gente tem, mais a gente quer ter. O
capitalismo ensina a ganância. Não nascemos “naturalmente” assim. Isso não
existe. A gente aprende a ser ganancioso a todo custo, pois se trata de uma
determinação histórica. Não é uma questão moral, trata-se apenas da lógica
inevitável do sistema capitalista.

Por fim, eles negociam: ele voltará no sábado para compensar aquela parte do dia
não trabalhada. Na sequência, ele liga para seu pai, personagem encenado por
Nilson Rodrigues da Silva, que também é um servente naquela casa. O pai capina o
jardim da burguesia. É possível vê-lo desde o início da peça. Ele está segurando
uma enxada no gramado atrás das mulheres, do lado de fora da tenda azul.
O filho questiona o pai sobre o despejo e pede para que ele também vá embora
para ajudar a cuidar de sua comunidade. Mas a personagem de Nilson hesita. Será
que a classe que me subordina não ficará irritada? Será que esta classe não vai me
dispensar? A fila de desempregados é grande e eu logo posso ser substituído. Em
Marx, esse é o exército industrial de reserva. Os desempregados, os desalentados,
os desamparados. Eles existem e fazem parte da lógica do sistema capitalista. Os
desempregados ajudam os capitalistas a manterem os salários mais baixos. Afinal,
se existe uma fila de famintos, eu, burguesia, posso pagar menos pois há uma
infinidade de pessoas que topam se submeter a salários baixos para não morrer de
fome.
Pai e filho voltam para a comunidade. Lá, eles se juntam com seus camaradas.
Quem são seus camaradas? O próprio público, moradores do Sol Nascente,
militantes do MTD, parceiros do movimento. Esse é o teatro político, esse é o teatro
do oprimido. Eles se fortalecem para lutar. Eles gritam e convocam todos os seus a
soltarem suas vozes. Essa é uma das partes mais bonitas e envolventes de toda a
cena. A plateia, que a todo momento participou da apresentação, identificando-se
com os personagens, dando risadas, revoltando-se, agora está de pé e de punhos
erguidos.
Juntos, clamam por dignidade e gritam: “Aqui está o MTD. O povo organizado tem
muito poder”. A mensagem central é: organizar a luta para que possamos avançar
juntos na construção de uma sociedade socialista, uma sociedade que torne
obsoleta a degradação promovida pelo capitalismo, que torne obsoleta a fome, o
desemprego, a miséria, a degradação do meio-ambiente. Somente superando o
capitalismo, poderemos viver com dignidade. Essa é a mensagem da cena. A
primeira vez que me deparei na prática com o teatro do oprimido.

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