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Esquerda e direita dirigem o mesmo trem colonialista,

diz quilombola Antônio Bispo


Autor de 'A Terra Dá, a Terra Quer' afirma não ver diferenças entre Lula e Bolsonaro
quando o assunto é mineração em terras de quilombos

28.mai.2023 às 20h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2023/05/29/)

Marina Lourenço (https://www1.folha.uol.com.br/autores/marina-lourenco.shtml)

SÃO PAULO Colonizar um povo é como adestrar um boi. Ambas ações consistem
na remoção da identidade, mudança de território e condenação do modo de
vida alheio. Essa é a associação que Antônio Bispo dos Santos, também
conhecido como Nêgo Bispo, faz em "A Terra Dá, a Terra Quer".

Lançado nesta segunda (29), o livro desmancha conceitos como ecologia,


desenvolvimento e decolonialidade (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2023/05/montagem-de-o-
guarani-com-indigenas-inflama-debate-sobre-colonialismo.shtml) —a contraposição ao pensamento de

perspectiva colonialista e eurocêntrica.

O autor propõe o que chama de contracolonialismo, que seria a recusa de um


povo à colonização, o que, segundo ele, é praticado há séculos por africanos,
indígenas e quilombolas (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/03/quilombos-ainda-sao-invisiveis-em-
meio-a-desigualdades-sociais-do-pais.shtml).
O escritor Antônio Bispo dos Santos, autor de 'A Terra Dá, a Terra Quer' - Alexia Melo

Nascido na comunidade Saco do Curtume, no Piauí, Bispo ganhou notoriedade


em movimentos sociais, na década de 1990, quando chegou a se filiar a partidos
políticos, que abandonou anos depois. Desde então, se voltou para a defesa dos
povos quilombolas.

Nesta entrevista, o autor comenta conceitos do novo livro, a polarização política


no país (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/09/polarizacao-politica-e-o-maior-medo-de-executivos-em-
2023.shtml), a relação do presidente Lula (PT) com os quilombos e programas como

Minha Casa, Minha Vida (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/05/governo-mudara-selecao-de-projetos-


do-minha-casa-minha-vida.shtml).

Em "A Terra Dá, a Terra Quer", o sr. critica o colonialismo e se opõe à


chamada decolonialidade, termo cada vez mais usado em contraposição ao
pensamento colonial. Em vez disso, fala em contracolonialismo. Por quê? Só
pode ser decolonizado quem foi colonizado. Qualquer pessoa que se sinta
colonizada pode lutar para ser um decolonial.
Mas decolonialidade é uma teoria, não trajetória. Nunca existiu um movimento
decolonial que tenha atuado de forma resolutiva em prol de um povo. O
contracolonialismo é diferente. Os quilombos não foram colonizados.

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O povo da academia que se diz progressista e só lê autores europeus, sim,


precisa se decolonizar.

O sr. também diz preferir usar ‘colonialismo’ a ‘racismo’. É bom discutir


racismo, mas ele é apenas um dos elementos colonialistas. Quando se fala em
racismo, habitualmente as pessoas pensam na sociedade eurocristã. O
colonialismo vai além disso. É para todas as vidas existentes.

Como combater o colonialismo? Não queremos matar os colonialistas. Por


isso, falo ‘contracolonialismo’. É uma fronteira que estamos estabelecendo
entre nós e a sociedade eurocristã monoteísta.

[O extinto quilombo dos] (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/05/aca-inene-ajudou-a-formar-


quilombo-dos-palmares-para-resistir-a-escravidao.shtml)Palmares (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/05/aca-

inene-ajudou-a-formar-quilombo-dos-palmares-para-resistir-a-escravidao.shtml)poderia ter destruído o Recife,

mas não devemos destruir nada. Nossa proposta é dizer: 'Vivam do jeito de
vocês e viveremos do nosso, mas, se porventura, perceberem que o nosso é
bom, nos deixem ensinar'.

Além do contracolonialismo, o sr. destrincha o conceito de cosmofobia, que


seria uma desconexão entre a humanidade e a natureza. Se opondo a essa
lógica, diz, então, que não é humano, mas sim, quilombola. Em termos
práticos, o que quer dizer? O povo eurocristão monoteísta tem medo do
próprio Deus, da natureza, do cosmo. É tanto medo que tem dificuldade de se
relacionar com rios, terra, vento —daí a palavra ‘cosmofobia’.

Em Gênesis, quando Adão e Eva estavam no caminho do Éden, interagiam com


tudo, não precisavam trabalhar, se submeter a uma ordem externa. Mas Deus
humaniza eles, cria o terror e diz que a terra será maldita porque comeram o
fruto proibido. É a Bíblia que cria os seres humanos —e quem está fora dela é
selvagem.

Nós, quilombolas, convivemos em harmonia com as demais vidas. Os quilombos


são lugares de relacionamentos. As cidades, de civilizações. Precisamos
animalizar a humanidade e desumanizar a animalidade.

Como assim? Só os humanos usam a linguagem escrita. Nós, outros seres, nos
comunicamos de outras formas, inclusive sonora. Passamos a vida ouvindo esse
povo das escrituras dizer que não sabemos ler. Ora, os humanos não sabem
falar.

Ainda nessa linha de escrita versus oralidade, o sr. diz que em comunidades
quilombolas as histórias são passadas de boca em boca, sem nenhuma
monetização. Por que decidiu se tornar escritor? Não sou escritor. Sou uma
pessoa que escreve para estabelecer uma fronteira entre os saberes. Sou um
lavrador que também lavra palavras.

Quando a escola escrita chegou à nossa comunidade, no fim dos anos 1960,
nosso povo se recusou a participar, mas ao ver que perderia tudo se continuasse
assim, colocou as crianças para estudar a linguagem das escrituras. Entrei na
escola para isso.

Me tornei um tradutor da comunidade. Não vou negar que sei falar e escrever
muito bem. Mas decidi escrever somente três livros [dois foram lançados]
porque sou mesmo da oralidade.

Ao traçar uma relação entre favelas e quilombos, o sr. critica programas


como o Minha Casa, Minha Vida e o antigo Fome Zero, os classificando como
colonialistas. Não há nada neles para elogiar? Nada é apenas bom ou apenas
ruim. O problema desses programas é que tiram das pessoas o direito de
arquitetar, compor e plantar o que querem. Claro, melhor ter Fome Zero do que
deixar morrer de fome. É melhor ter o Minha Casa, Minha Vida do que ficar na
rua. Mas não são coisas para festejar. São para escapar.

O Minha Casa, Minha Vida tirou a laje das favelas. As casas são pequenas, não
têm quintal. As pessoas ficaram confinadas, sem festa.

No Piauí, o Fome Zero (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/fome-zero-completa-20-anos-com-


retrocesso-em-indicadores.shtml) foi lançado em Guaribas [município que, na época, era

considerado um dos mais pobres do país]. Nunca houve debate com as pessoas
de lá. Falavam que ali era pobre porque não tinha nem restaurante nem hotel,
mas gente rica não precisa disso.

O sr. também critica alguns discursos ambientalistas. O que o levou a isso?


Tem muito ambientalista que vive nas cidades mas quer consertar a floresta. É
engraçado. As cidades estão alagadas, cheias de lixo, mas querem mexer onde
não sabem viver.

O livro traz a ideia de que, na prática, não há diferença entre gestão de


esquerda e de direita. Nos últimos anos, o Brasil entrou numa crescente
polarização política. Como analisa isso? A direita e a esquerda são
maquinistas que dirigem o mesmo trem colonialista. Escolher o vagão permite
decidir os passageiros com quem você vai viajar. Mas a viagem é a mesma, vai
para o mesmo caminho.

É preciso uma mudança estrutural. Cabe a nós, quilombolas e indígenas, extrair


tudo o que pudermos deste Estado para criar nossas próprias estruturas.

Lula não fez reforma agrária favorável aos agricultores familiares porque não
teve coragem. Fez reforma agrária para o agronegócio. Ele diz que acabou com a
fome do povo e fará isso de novo. Ora, o que acabou, acabou. Se voltou é porque
não acabou.

E quanto à gestão Bolsonaro? Não tive a oportunidade de extrair tanto dele,


mas pude conhecer melhor o Estado e certas pessoas. Foi um governo sem
máscaras, literalmente —nem contra Covid nem política.
Também serviu para quebrar alguns intermediários. Tinham setores da
esquerda que nunca protagonizavam a própria vida mas queriam mexer na
nossa.

Para nós, quilombolas, foi o momento de preparar nossas defesas e refletir.


Agora, ninguém trata Lula igual das outras vezes.

Há semelhanças entre Lula e Bolsonaro? Qual a diferença entre Bolsonaro e


um governo que autoriza a mineração em território quilombola sem cumprir os
protocolos da Convenção 169? Do ponto de vista da mineração, não há
diferença. Quem manda são as mineradoras.

O que quero dizer é que, sim, Bolsonaro e Lula são diferentes, mas essas
diferenças não são tão favoráveis.

O que Lula fez para o povo quilombola? Criou o quê? Qual é o nosso espaço de
poder dentro deste governo? Pergunto porque é dos amigos que a gente deve
cobrar o melhor acolhimento.

Apesar de hoje dizer que direita e esquerda caminham juntas para o mesmo
destino, o sr. já foi filiado ao PSB e ao PT, considerados de esquerda. O que
fez se desvincular desse meio? Atuei em movimento sindical, partido e
movimentos sociais por um bom tempo. Ao contrário da minha criação, me
deparei com um conhecimento todo escriturado. Tentaram me convencer de
que a sociedade era composta por duas classes, a trabalhadora e a patronal. Eu
nasci e me criei na roça, numa comunidade quilombola. Como lavrador, nunca
fui ou tive patrão.

Também diziam que os quilombos são formados por povos que fugiram da
escravidão. Isso é muito pouco. [Na época da escravidão] Você podia fugir e
aceitar trabalhar na condição dos colonos, mas não foi o que aconteceu com os
quilombolas. Os quilombos continuam resistindo ao sistema como um todo.

Desde então, qual sua relação com a política? A última vez que votei foi em
1996, e em 1998, me desvinculei do movimento sindical. Hoje participo de uma
mobilização para estruturamos a nossa comunidade. Essa é a nossa grande luta
de defesa.
RAIO-X | ANTÔNIO BISPO DOS SANTOS, 63
É membro da comunidade Saco do Curtume, no Piauí, onde atua em defesa dos
povos quilombolas. Seus livros lançados são "Colonização, Quilombos, Modos e
Significações" e "A Terra Dá, a Terra Quer".

A TERRA DÁ, A TERRA QUER


Preço R$ 49,41 (112 págs.) Autoria Antônio Bispo dos Santos Editora Ubu; Piseagrama

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