SORTEIO

EXPRESSO/YAMAHA JOGOSSORTIDOS
“JORNAL EUROPEU
GANHE UMA
YAMAHA XSR125
+ BLUSÃO
HOJEGRÁTIS
DO ANO” + CALÇAS
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SAIBA MAIS EM
EXPRESSO.PT

Fundador: Francisco Pinto Balsemão 12 de agosto de 2022

2598 O €4,50

Diretor: João Vieira Pereira

Diretores-Adjuntos: David Dinis,
Martim Silva, Miguel Cadete e Paula Santos
Diretor de Arte: Marco Grieco

www.expresso.pt

24h Inflação já obriga Seca pode Conflitos de

levar ao interesses:
fecho de consultor de
Fogo posto
na serra da Estrela
mais de metade piscinas
municipais
Medina sem
fiscalização
Arderam mais de 10 mil hec-
tares na serra da Estrela,
naquele que é já o maior in-
cêndio do ano. Começou na
dos portugueses Governo prepara novas Ministro contratou

a cortar compras
Covilhã, no sábado, e esten- medidas para anunciar Sérgio Figueiredo sem
deu-se a Manteigas, Guarda no fim do mês. Todo impor exclusividade.
e Gouveia, numa zona que o país está em seca Não há controlo de
é Património Mundial da severa ou extrema conflitos de interesses
UNESCO. A PJ tem fortes
suspeitas de que teve mão Há centenas de aldeias já Sérgio Figueiredo foi contra-
criminosa. P5 abastecidas por camiões- tado como consultor externo
-cisternas. Agravamento da ao Ministério das Finanças e
situação em todo o país obri- sem regime de exclusivida-
Gasoduto em ga comissão governamental de. Os eventuais conflitos de
Portugal, diz Scholz > 57% das famílias reduzem gastos > Compras a preparar novas medidas interesses entre o trabalho
O chanceler alemão Olaf
Scholz defende a construção nos supermercados limitadas ao essencial > Venda para reduzir consumo de
água. Quanto ao consumo
para o Estado e o privado
serão avaliados pelo próprio
de um gasoduto desde Por-
tugal, passando por Espanha
de bens alimentares em queda desde fevereiro de energia, ambientalistas já
pedem regresso do teletraba-
e pelo ministério, sem garan-
tia de transparência e escru-
e França, para abastecer o > Apoios são “claramente insuficientes” P20 lho e medidas estruturais. P16 tínio público. P10
resto da Europa. E, assim,
reduzir a dependência do gás
natural russo. “Seria um alí-
vio gigante para a situação
Supremo SEF
atual”, fez notar numa con-
ferência de imprensa.
obriga TAP SEMINARISTAS
Carta contra a pagar TAMBÉM investiga
Bolsonaro
A Universidade de São Paulo
€50 milhões FORAM ALVO juntas
acolheu ontem a leitura da
“Carta às brasileiras e aos
aos pilotos DE ABUSOS de Lisboa
brasileiros em defesa do Es-
tado democrático de Direi- Denúncias
to”, texto apartidário, subs- Em causa está um erro em Portugal Há centenas de
crito por cerca de um milhão na fórmula de cálculo isolam D. Manuel imigrantes registados
de pessoas, que responde às de salários e subsídios Clemente. na mesma morada.
críticas do Presidente Jair de férias que se Comissão SEF suspeita de auxílio
Bolsonaro à credibilidade das arrasta desde 2010 E6 Independente diz à imigração ilegal
urnas eletrónicas. não a Marcelo.
‘Explicador’ sobre Em causa está a emissão de
a polémica P6e8 atestados de residência com
Pandemia de A VIDA dados falsos, destinados à
Langya “é pouco
provável” CLANDESTINA legalização de estrangeiros
em Portugal. O SEF está a
O virologista Pedro Simas DAS 29 investigar se três juntas de
diz que o vírus identificado TESTEMUNHAS Lisboa estão implicadas ou
na China em 2018, e do qual
foram registados 35 casos PROTEGIDAS apenas a ser usadas por re-
des de auxílio à imigração
R30 ilegal. Indigentes são pagos
em quatro anos, não tem
transmissão humana. Pro- para confirmar moradas. P19
voca sintomas semelhantes
aos de uma virose e não são
conhecidas fatalidades.
Deficientes O que
Abono de família
mínimo de €600
militares os talibãs
O Governo anunciou quinta- desesperam fizeram ao
-feira um reforço do abono de
família, fixando o valor mí- com atrasos A OPINIÃO DE Afeganistão P24
nimo a atribuir por filho em
600 euros anuais, indepen-
dentemente da idade, e criou
nas próteses DANIEL OLIVEIRA,
PEDRO MEXIA,
uma prestação adicional para HENRIQUE RAPOSO, A tensão
as crianças em situação de ISABEL MOREIRA E
AGUIAR-CONRARIA em Taiwan
FOTO NUNO FOX

pobreza extrema. Ex-combatentes

mutilados na guerra E O HUMOR
Integram esta edição semanal, além deste
estão revoltados por
falta de respostas do
DE R.A.P. pode atingir
corpo principal, os seguintes cadernos:
ECONOMIA, REVISTA E Laboratório Militar P12 Portugal E10

CRÉDITO ANTECIPAÇÃO DE SUBSÍDIOS PRR PORTUGAL 2030 Saiba mais em cgd.pt

Avance.
A Caixa antecipa os subsídios PRR.
O apoio financeiro na gestão da sua atividade corrente.
Caixa Geral de Depósitos, S.A., registada junto do Banco de Portugal sob o n.o 35.
2 PRIMEIRO CADERNO
A Semana
Por Martim Silva
mgsilva@expresso.impresa.pt
MORRER NA ÁGUA
Portugal continua com
um registo negro. Foram
registadas 88 mortes em meio
aquático. Esta é a pior
contabilidade dos últimos seis
anos, de acordo com o
Observatório do Afogamento
da Federação Portuguesa
de Nadadores Salvadores.
TRUMP DE VOLTA
O ex-Presidente dos EUA
voltou em força às notícias.
Depois de ter sido alvo de
buscas domiciliárias pelo FBI,
na Florida, esteve em Nova
Iorque para depor num
processo em que é suspeito
de vários crimes. Mas o
ex-Presidente dos EUA
invocou a Quinta Emenda da
Constituição norte-americana
para não responder às
perguntas, voltando
a queixar-se de perseguição.
VITÓRIA PARA BIDEN
Ainda nos EUA, o Senado norte-
-americano aprovou o plano do
Presidente Joe Biden sobre o
clima e a saúde. Uma vitória do
democrata, a três meses das
eleições intercalares no país.
1,65
metros de génio puro.
Morreu esta semana
Fernando Chalana, um dos
maiores jogadores do futebol
nacional, aos 63 anos.
A sua prestação no Euro 84
ficará para sempre
na nossa memória
Tensão na Ásia
CHINA-TAIWAN Há décadas que o conflito China-Taiwan é um
barril de pólvora, com tensão permanente. Esta semana, depois
da visita da americana Nancy Pelosi ao território reivindicado por
Pequim, e como se já não bastasse tudo o que estamos a viver em
2022, o regime chinês intensificou as manobras militares de con-
trolo do estreito e de cerco a Taiwan. FOTO NOEL CELIS/GETTY IMAGES
JOÃO VIEIRA PEREIRA VOLTA A OCUPAR ESTE ESPAÇO A PARTIR DE 19 DE AGOSTO
MEDINA CONTRATA
Fez correr muita tinta a
contratação do antigo diretor
de informação da TVI
Sérgio Figueiredo para
consultor do Ministério
das Finanças, com um salário
equiparado ao de ministro.
WHATSAPP DISCRETO
Quer sair discretamente
de um grupo do WhatsApp
sem que todos notem?
Vai ser possível. O anúncio
foi efetuado por Mark
Zuckerberg, CEO da Meta
(empresa detentora do
Facebook, WhatsApp,
Instagram e Messenger),
que revelou que “novos
recursos de privacidade
estão a chegar ao WhatsApp”.
PASSAPORTES PODEROSOS
A definição do melhor
passaporte do mundo é feita
com base no critério do
número de países a que
permite aceder sem visto. Este
ranking é liderado pelo Japão,
cujo passaporte dá livre acesso
a 193 Estados do planeta.
BA.5
A linhagem BA.5 da variante
Ómicron é responsável por
97% das infeções registadas
em Portugal, segundo o mais
recente relatório do Instituto
Ricardo Jorge sobre
a diversidade genética
do vírus SARS-CoV-2.
IGREJA EM XEQUE
D. Manuel Clemente é o líder
da Igreja Católica em
Portugal. Mas a forma como
esta (não) tem gerido a
polémica dos abusos sexuais
por membros do clero é uma
mancha que urge limpar.
Expresso, 12 de agosto de 2022
As crescentes denúncias de casos de abusos por membros do clero e eventuais
Duelo encobrimentos reabriram a ferida sobre o papel da hierarquia da Igreja
Isabel Rita
Figueiredo Carvalho
Diretora do Secretariado Gabinete de comunicação
Nacional das Comunicações dos jesuítas portugueses
Sociais da Igreja
A hierarquia da Igreja está a saber
reagir aos casos de abusos do clero?
SIM NÃO
Falar de convicções implica a determi- O abuso sexual é um crime he-
nação da procura. É o que tem acon- diondo que destrói a vida dos que
tecido desde que a expressão “abuso dele são vítimas. Não só na hora do
sexual de menores” se cruzou com a vida da Igreja abuso, mas para sempre. O profundo respeito pela
Católica. Ao abuso, acrescentou-se a dimensão do en- dor dos que sofreram abusos por parte de padres,
cobrimento por parte de membros da hierarquia da religiosos ou leigos da Igreja Católica leva-me, por
Igreja, isto é, perante a denúncia ou mesmo a suspeita, isso, a ser cautelosa na resposta. Saber que muitas
ocorreu o encobrimento que perpetuou no tempo o dra- das vítimas foram duplamente maltratadas por mem-
ma de uma violação física, de uma relação prepotente, bros da Igreja a que pertenço, pois não só abusaram
de um crime. É verdade que a noção de crime e a sua mas também ocultaram o crime e protegeram os
penalização têm sofrido uma evolução que nos gratifica abusadores, leva-me a um exercício de humildade e
enquanto Humanidade. E que exige chegar à efetivação penitência. Contudo, arriscaria dizer: “Sim, a Igreja
de uma tolerância zero e transparência total, em tudo está a fazer o seu trabalho.” E acrescentaria logo a
o que diga respeito à proteção de menores e pessoas seguir: mas ainda há muito por fazer.
vulneráveis em contexto de Igreja. Hoje, as dioceses têm comissões para acolher
Foi este o caminho iniciado por Bento XVI e convic- denúncias, os colégios, paróquias e movimentos
tamente exigido pelo Papa Francisco. É este o cami- têm ou preparam sistemas internos de prevenção,
nho que está a ser percorrido pela Igreja Portuguesa. formação e denúncia, e as regras do Vaticano são
Com naturais dificuldades. Mas a verdade é que a claras no que diz respeito a reportar às autorida-
Igreja Católica respondeu ao Papa e, em Portugal, a des civis todas as suspeitas, a suspender o alegado
primeira Comissão de Proteção de Menores foi cons- abusador, e a colocar no centro de toda a atua-
tituída no Patriarcado de Lisboa, em abril de 2019, ção a proteção da vítima. Uma tolerância zero a
sendo que, ao dia de hoje, todas as todo e qualquer abuso e a todo
dioceses têm as suas comissões em e qualquer ocultamento. Diria
funcionamento, de forma autóno- A Igreja tem feito que temos hoje mecanismos para
ma, mas coordenada, discreta, mas um esforço para prevenir a ocorrência de abusos
cumpridora das regras estabeleci- e, caso estes ocorram — sabemos
das. Desde então, diversas estrutu-
corresponder ao que a sua prevalência na socie-
ras da Igreja Católica trabalharam que ela própria dade é elevada, em especial na
na elaboração e implementação de se propõe e ao que família — sejam denunciados e
manuais de procedimentos para a sociedade lhe pede protegidas as vítimas.
fazer frente a situações de possí- Contudo, sabemos que a cria-
veis abusos. A título de exemplo, ção de sistemas de prevenção e
falamos da Companhia de Jesus, A criação de sistemas atuação não vale por si, tem de
dos Maristas ou do Corpo Nacional de prevenção ser enraizada numa profunda
de Escutas. e atuação tem de ser mudança de mentalidade. Sendo
Seria imprudente pensar que a Igreja um corpo com milhares
assim se resolvem os problemas. enraizada numa de fiéis, o caminho é longo, com-
Porque a natureza humana não profunda mudança plexo e lento e não sei se algum
se controla no exercício da auto- de mentalidade dia estará acabado. Estamos,
ridade, muito menos na liberdade contudo, a fazê-lo.
implícita da proposta de vida da Além da prevenção e atuação
Igreja Católica a todos os crentes, estejamos a falar em casos recentes, hoje a Igreja portuguesa é cha-
de leigos ou sacerdotes. A que devemos acrescentar mada a olhar para o seu passado e a confrontar-se
o facto de que, à responsabilidade acrescida da orde- com a verdade da sua história. Tal como ocorreu
nação de um padre, não se soma a certeza inabalável noutros países, e na linha do que pede o Papa Fran-
da retidão de vida. Mas o esforço existe e a criação de cisco, a Igreja só conseguirá recuperar a confiança
uma Comissão Independente a que se junta o Grupo e a credibilidade e reconciliar-se com o passado
de Investigação Histórica para o estudo dos Arquivos quando conhecer a sua verdade e for capaz de cui-
das Dioceses são sinais evidentes de uma decisão que dar das vítimas que provocou, pedindo-lhes perdão
deve merecer respeito por parte de toda a sociedade e atendendo às suas necessidades. Para isso, além
que, durante décadas, pactuou num silêncio consenti- das comissões já referidas e de outros serviços
do sobre este crime. para acolher vítimas — como o Serviço de Escuta
À tolerância zero aos abusos e aos encobrimentos, criado pelos jesuítas em 2021 —, os bispos criaram
acrescenta-se a questão da transparência e, também a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos
aqui se joga de uma forma séria, o esforço que a Igreja Sexuais, que está a recolher testemunhos e a fazer o
tem feito para corresponder ao que ela própria se pro- levantamento de casos. As dioceses e congregações
põe, a sociedade lhe pede e a comunicação social lhe estão a colaborar nesse processo.
exige. Esforço esse que tarda em conseguir os resultados Tal como numa família ninguém deseja desenter-
desejados. Mas assim como os comunicados breves não rar um passado negro e doloroso, também na Igreja
significam ocultação de factos, nem os títulos agressivos este processo suscita resistências e é delicado. O
traduzem ataques pessoais, estou convicta de que sere- contributo dos media tem sido, por isso, relevante.
mos capazes de mais e melhor. Não existem alternativas, Apesar das dificuldades e do longo caminho a per-
não se querem outros caminhos. Pôr em causa esta de- correr, acredito que é um caminho necessário e sem
terminação é colocar-se num patamar de superioridade retorno, em nome das vítimas, e do qual a Igreja
moral que a todos nos deve incomodar. sairá mais livre e verdadeira.
Expresso, 12 de agosto de 2022
Os abusadores são criminosos, mas os cúmplices do silenciamento é que têm de responder publicamente
Finalmente, o manto diáfano dos cardeais
Daniel Oliveira
danieloliveira.lx@gmail.com
A
autoridade clerical, a impuni-
dade garantida pelo segredo
e a proteção hierárquica de
quem se habituou a ser um
Estado para lá do Estado podem aju-
dar a explicar a dimensão dos abusos
sexuais de menores na Igreja Católi-
ca. Talvez o celibato e a abstinência
sexual dos padres não ajudem, em
alguns casos, a formar pessoas psico-
lógica e moralmente saudáveis. Talvez
a abertura do sacerdócio às mulheres
permitisse criar relações de poder me-
nos propícias aos abusadores. Mas os
católicos que se sentem chocados com
estas revelações têm, antes de tudo, de
pôr a mão na sua consciência. Nada
disto é surpresa. Porque o permitiram
durante tanto tempo? Porque tiveram
os denunciantes, fossem vítimas, fami-
liares ou outros padres, de lidar com
a indiferença ou incompreensão das
suas comunidades? Com tanto ativis-
mo para reprimir o sexo consentido
entre adultos livres e impedir que se
fale de sexualidade na escola, porque
não se mobilizaram mais católicos
para protegerem as crianças do abuso
na sua própria Igreja?
O abuso sexual de menores pode
acontecer em qualquer instituição.
Mas, talvez por serem menos cen-
tralizadas, em poucas se tornou tão
evidente um encobrimento tão gene-
ralizado, sistemático e ao mais alto
nível. E esse é o verdadeiro escândalo.
Seguindo o padrão global, vários bis-
pos portugueses no ativo são suspeitos
de terem recebido denúncias claras,
de as terem ignorado, de não as terem
encaminhado para as autoridades e
de tentarem resolver eles o proble-
ma, transferindo ou protegendo o
abusador, como se a lei não passas-
se a porta da Igreja. A forma como
abandonaram o seu rebanho é a cruz
que carregarão o resto da vida. Como
qualquer casta, acreditaram que era
a sua lei que julgaria os seus crimes.
E nem essa funcionou. Os abusado-
res são criminosos, talvez doentes.
Mas os cúmplices do silenciamento,
no topo da hierarquia, é que têm de
responder publicamente. Qualquer
cardeal ou bispo que tenha recebido
uma denúncia credível e, para além de
qualquer procedimento interno, não
tenha feito tudo para a poder trans-
mitir às autoridades não está apenas
em dívida com a justiça divina, está em
dívida com a justiça dos homens. Não
tem de responder perante os católicos,
mas perante todos nós.
Algumas das histórias que nos che-
gam têm décadas. E como alguns dos
homens que as esconderam conti-
LIBERTE-SE DA ROTINA
E AGARRE A LIBERDADE.
nuam no topo da Igreja, não há razão
para acreditar que as coisas estão
diferentes. Nem sequer foi o Papa que
começou qualquer revolução. Ele será
a sua consequência. E, como se viu pe-
las suas primeiras reações a casos que
beliscavam pessoas da sua confiança,
não totalmente voluntária. Porque a
Igreja não tem o poder político, so-
cial e económico do passado, deixou
de ser opaca a mozeta que encobria
os ombros e os pecados de bispos e
cardeais. E os seus crentes são mais
autónomos. Mesmo os mais frágeis
dependem mais de apoios de um Es-
tado distante e burocrático (isso nem
sempre é mau) do que da caridade
condicional do poder religioso. E é
por isso que, tendo a Igreja de res-
ponder ao apelo do Papa Francisco e
virar-se para os pobres, essa vocação
deve ser feita com os seus próprios
Com tanto ativismo
para reprimir o sexo
consentido entre
adultos livres e impedir
que se fale de sexualidade
na escola, porque
não se mobilizaram
mais católicos para
protegerem as crianças
do abuso na sua
própria Igreja?
PRIMEIRO CADERNO 3
FOTO GABRIEL BOUYS/AFP VIA GETTY IMAGES
meios. Não pode continuar a resultar interno da Igreja: “A psicologia de donar o centro da Igreja e o oferecer
de uma externalização das funções elite acaba por gerar dinâmicas de às suas comunidades.
sociais de um Estado que, para se divisão, separação, ‘círculos fechados’ Não espanta que seja entre os ca-
desresponsabilizar, se transformou que desembocam em espiritualidades tólicos mais conservadores, sempre
numa das principais fontes de finan- narcisistas e autoritárias, nas quais, prontos a julgar a conduta sexual de
ciamento público da Igreja. Porque em vez de evangelizar, o importante toda a gente, que surgem os discursos
esse retrocesso civilizacional devolve é sentir-se especial, diferente dos de- mais desculpabilizadores da hierar-
o poder sobre os mais vulneráveis a mais, deixando assim em evidência quia. Não são incoerentes. A moral
uma estrutura confessional pouco que nem Jesus Cristo nem os outros sexual repressiva que defendem de-
escrutinada e, pelo menos hoje, sem interessam verdadeiramente. Mes- pende da cultura de ocultação, recal-
vocação democrática. E isso deixa-os sianismo, elitismos, clericalismos são camento e infelicidade onde medra
ainda mais vulneráveis. todos sinónimos de perversão no ser toda a miséria moral. E, sendo da
Para além de se entender com o eclesial.” Igreja antes de serem de Deus, não
julgamento dos tribunais e da opi- Não chega mudar as pessoas, é pre- suportam um Papa que, segundo as
nião pública, a Igreja tem pela frente ciso mudar a Igreja. E é por isso que suas próprias palavras, “colocou no
um desafio interno que ultrapassa os este terramoto não resulta dos crimes coração da sua reforma a luta contra
abusos sexuais. Que passa, como de- dos abusadores ou das falhas morais o clericalismo e os padres todo-pode-
fendeu o padre jesuíta Thomas Reese, dos que os protegeram. Resulta de rosos a quem falta a humildade”. Não
por ser voluntariamente implacável séculos de clericalismo que desabam sou crente e defendo um Estado laico,
consigo mesma, investigando tudo, num tempo em que este poder bruto e coisa que, como se vê pelo temerário
punindo os culpados e indemnizando implacável já não é tolerável. Um po- envolvimento do Presidente da Repú-
as vítimas, para não ficar as próxi- der que só se quebra se o clero aban- blica nesta polémica ou a opacidade
mas décadas a defender-se de cada dos encargos públicos na Jornada da
escândalo que julga esquecido na Juventude, ainda não foi conquista-
consciência dos abusadores e no so- São séculos de da. Mas preocupa-me que, no lugar
frimento das vítimas. Para recuperar clericalismo que da milenar Igreja Católica, cresçam
a credibilidade, precisa de quebrar algumas igrejas-empresa vendedoras
os laços de proteção clerical que ali- desabam num tempo de uma espiritualidade de autoaju-
mentaram o monstro. O desafio é em que o abuso e o da rápida e pragmática que tão bem
existencial e foi resumido pelo Papa encobrimento já não são casa com os novos tempos. Há um
quando, depois de uma visita ao Chile sentido de comunidade que partilho
em que defendeu um bispo acusado
toleráveis. A Igreja não com os católicos. Desejo, por isso, que
de encobrimento, se apercebeu do tem o poder do passado este processo não enfraqueça mortal-
seu erro de avaliação, mandou fazer e deixou de ser opaca mente a Igreja. Mas para o evitar os
uma investigação, foi esmagado pelos a mozeta que encobria católicos precisam da radicalidade de
resultados, chamou os bispos chile- Francisco e de Jesus. Numa Igreja de
nos ao Vaticano e, aceitando umas os ombros e os pecados poder e riqueza, terão de escavar bem
quantas renúncias, entregou-lhes de bispos e cardeais fundo a sua matriz evangélica para a
uma carta. Nela recentrou o debate reencontrar.
COM O EXPRESSO HABILITE-SE A GANHAR UMA YAMAHA XSR 125
E O EQUIPAMENTO NECESSÁRIO PARA SE FAZER À ESTRADA.
Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, de 05.07.2022. “Prémio não convertível em dinheiro”
Concurso Publicitário nº 3/2022 - “Expresso Yamaha XRS 2022, autorizado por despacho do Sr.
PASSO 1 PASSO 2
A Revista do Expresso
EDIÇÃO 2598
12/AGOSTO/2022
Deixar
de ser
quem era
Desde 2003, 104 pessoas entraram
para o programa de proteção de testemunhas.
INSIRA ESTE CÓDIGO E
Ameaçadas por colaborarem com as autoridades,
HABILITE-SE A GANHAR UMA YAMAHA foram obrigadas a abrir mão de tudo o que tinham antes.
XSR125. VÁ A CODIGO.EXPRESSO.PT. Há 29 que se mantêm ainda hoje na sombra
O CÓDIGO DEVE SER REBATIDO
DURANTE ESTA SEMANA Por Hugo Franco e Joana Pereira Bastos
INSIRA
HABIL
XSR12
O CÓD
DURA
USE O CÓDIGO QUE ESTÁ INSIRA O CÓDIGO EM
NA CAPA DA REVISTA CODIGO.EXPRESSO.PT
DO EXPRESSO
4 PRIMEIRO CADERNO
ALTOS
Marcelo Rebelo
de Sousa
Presidente da República
Em entrevista, revelou o óbvio: que
a direita, ao culpabilizá-lo por dei-
xar governar António Costa, esta-
ria a perder votos. Que assim dei-
xava o centro para o PS. E que, por
conseguinte, não chegará ao poder
se mantiver essa estratégia. Cla-
ro que se vê a ele próprio como o
polo aglutinador da política portu-
guesa. Mas, se as coisas são mesmo
assim...
Ana Mendes
Godinho
Ministra do Trabalho
e Segurança Social
Quando se torna claro que a infla-
ção começa a punir severamente
os mais desfavorecidos, a ministra
aumentou o valor mínimo do abo-
no de família para 600 euros. E
ainda criou uma prestação adicio-
nal para os casos de pobreza ex-
trema. Será suficiente?
E BAIXOS
Fernando
Medina
Ministro das Finanças
Ao trocar favores com o ex-diretor
de informação da TVI, abriu a por-
ta a toda e qualquer decisão injus-
tificada, inadequada ou imprópria
do seu cargo. Parece escapar ao
escrutínio que é próprio da demo-
cracia. Ainda há tempo para fazer
marcha-atrás.
D. Manuel
Clemente
Cardeal-Patriarca
A gestão que tem vindo a fazer dos
casos de pedofilia no seio da Igre-
ja Católica tem sido tão desastro-
sa que a bondade da criação das
comissões de monitorização e in-
quérito foi completamente inverti-
da. As tentativas de encobrimento
revelam uma vontade de fugir ao
passado e à verdade que já não são
aceitáveis. E que vão contra as pré-
dicas do Papa.
Carlos
Moedas
Presidente da Câmara
Municipal de Lisboa
O Ministério Público abriu um in-
quérito a um dos seus vereado-
res por abuso de poder sem que
o presidente da maior câmara do
país tenha esboçado um esclare-
cimento aos munícipes, aos par-
tidos da oposição ou à comunica-
ção social.
No Name
Boys
Claque do Sport
Lisboa e Benfica
Quando uma claque de um clube
português se associa a uma cla-
que de um clube croata para pro-
vocar motins num jogo em Guima-
rães, isso quer dizer que os laços
entre hooligans são mais fortes do
que julgávamos. Ou que estamos
perante o crime organizado, sem
que as autoridades consigam res-
ponder.
Miguel Cadete
mcadete@impresa.pt
EM DESTAQUE
Caso DJ Kamala
Moedas em silêncio,
juristas divididos
Especialistas dizem que
houve “mau uso de poderes”
por parte do vereador
Ângelo Pereira
O Ministério Público (MP) confirmou
esta semana que está a investigar a
autorização concedida pela Câmara
Municipal de Lisboa para uma festa
no Parque Florestal de Monsanto
durante a situação de alerta de in-
cêndios, que o Expresso noticiou na
edição da semana passada. A queixa
que motivou a abertura do inquérito
foi feita por um funcionário da autar-
quia, que quis manter o anonimato
por receio de “represálias por parte
de Carlos Moedas e da sua equipa”, e
foi encaminhada para o MP pelo PS
e pelo Livre.
Carlos Moedas, contudo, mantém-
-se em silêncio sobre o tema e, às
perguntas do Expresso sobre se man-
tinha a confiança no vereador Ângelo
Pereira, que deu a autorização, se
sabia dessa mesma autorização e se
tinha aberto algum processo interno
de averiguação, o presidente da Câ-
mara não respondeu.
Em causa está a festa DJ Kama-
la 360, que teve lugar no dia 20 de
julho, na Tapada da Ajuda, quando
vigorava o despacho do Governo que
proibia a realização de eventos nas
O Cartoon de António (Des)Equilíbrios II
Guimarães No Name
Boys nos ataques
Três membros da claque do
Benfica proibidos de entrar em
estádios participaram nos
distúrbios ao lado dos croatas
Entre os 23 membros da claque ben-
fiquista No Name Boys, identificados
pela PSP a seguir aos episódios de
violência da terça-feira à noite no
centro histórico de Guimarães por
‘ultras’ portugueses e croatas do
Hadjuk Split, havia três que estavam
proibidos de entrar em recintos des-
portivos por terem um histórico de
violência no futebol.
De acordo com uma fonte policial,
ainda não existem certezas se estes
zonas florestais devido ao elevado
risco de incêndio.
A autorização do vereador com a
tutela dos Espaços Verdes, Ângelo
Pereira, foi concedida depois de pe-
dido de “exceção” por parte do DJ.
Na queixa, que motivou a abertura
do inquérito pelo DIAP de Lisboa,
Ângelo Pereira é visado pelo crime
de “abuso de poderes”, com o quei-
xoso a sugerir “manifesta ilegali-
dade” na autorização concedida e
a abrir a porta a que tenha havido
“outros” eventos autorizados nas
mesmas condições.
Questionados pelo Expresso, três
juristas especialistas em Direito Ad-
ministrativo levantam dúvidas sobre
a tipificação do crime, que exige pro-
va de “dolo”, ao mesmo tempo que
defendem estar perante um “mau uso
dos poderes funcionais” ou “uso des-
viante” e eventual “desrespeito pelo
despacho do Governo e formalidades
Para o jurista João
Gaspar Simões pode
existir motivo para um
inquérito e “eventual
perda de mandato”
três adeptos entraram no Estádio
D. Afonso Henriques para ver o jogo
para a Liga Conferência entre o Vi-
tória e o Hajduk Split ou se se deslo-
caram até àquela cidade apenas para
participar nos distúrbios liderados
pelos croatas. “Em muitas situações,
estes adeptos acabam por ir aos lo-
cais onde decorrem os jogos, mesmo
não indo ao estádio. Ou porque há
fan zones, ou para a festa, ou para
a violência. Muitos já perceberam
que há falhas no sistema de controlo
das interdições e acabam por arris-
car. Para os grupos organizados de
adeptos, os bilhetes deviam ser no-
minais”, defende uma fonte policial.
essenciais”. “Este mau uso dos pode-
res, por si só, não preenche o tipo de
crime [de abuso de poderes], uma vez
que é necessário que este mau uso
seja determinado por uma intenção
específica de dolo ou obtenção de
benefício ilegítimo por terceiro”, diz
o advogado Dantas Rodrigues, da
sociedade com o mesmo nome, subli-
nhando que, se se provar que a auto-
rização foi concedida em benefício de
terceiro, então sim, “poder-se-á falar
do crime de abuso de poder”.
Para o constitucionalista e pro-
fessor na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa Eduardo
Correia Baptista, “não basta uma
mera ilegalidade” para ser crime de
abuso de poder, “é preciso que a ile-
galidade tenha sido cometida com
um dolo específico”. “É necessário
que o decisor tenha conhecimento da
ilegitimidade/ilegalidade do evento e
que o tenha autorizado precisamente
com a intenção de beneficiar o reque-
rente”, diz.
Perda de mandato?
Para o jurista e especialista em Di-
reito Administrativo João Gaspar
Simões pode existir motivo para um
inquérito ao abrigo da Lei da Tute-
la Administrativa e para, em tese,
“eventual perda de mandato”.
“Independentemente do seu enqua-
dramento penal, parece consubstan-
ciar um quadro de evidente ilegalida-
de e violação de diversos princípios
da atividade administrativa, revelan-
do uma intervenção do poder público
municipal desgarrada das regras ele-
mentares de qualquer procedimento
administrativo”, diz em resposta ao
Expresso, depois de analisar os factos
em causa e apelidando a autorização
Há uma semana, a PSP revelou
que havia 244 adeptos proibidos de
aceder a recintos desportivos na tem-
porada 2022-2023 sob pena de pra-
ticarem o crime de desobediência.
Invasão premeditada
Os No Name Boys mantêm uma rela-
ção de proximidade com os adeptos
do Hajduk Split desde os anos 90.
As autoridades suspeitam que croa-
tas e portugueses combinaram com
bastante antecedência esta ‘invasão’
a Guimarães.
Na quinta-feira, o Ministério da
Administração Interna (MAI) reve-
lava que a investigação preliminar
da PSP concluiu que, apesar de os
adeptos da equipa do Hajduk Split
terem sido acompanhados por ele-
mentos da polícia croata, “há indí-
cios de que organizaram a sua che-
gada ao país de forma a não serem
detetados pelas autoridades e que os
incidentes ocorridos ontem à noite
Expresso, 12 de agosto de 2022
do vereador ao pedido “excecional”
do DJ de “um aparente simulacro de
procedimento administrativo”. Mais:
“Não só a festa não é uma urgência
como, em rigor, não faz sentido pedir
uma exceção a um regime excecional
de restrição”, adianta ainda, acres-
centando que “excecionar o regime
excecional é torná-lo inútil e atuar
como se este não existisse”.
Na única resposta enviada pela Câ-
mara ao Expresso sobre o caso, na
semana passada, a autarquia afir-
mava que o “evento não dependia da
autorização” da Câmara Municipal
de Lisboa, tendo sido solicitado ape-
nas uma “avaliação dos riscos” para a
sua realização.
“A emissão do parecer para a rea-
lização do evento foi precedida de
uma visita conjunta entre o Instituto
Superior de Agronomia (ISA), a or-
ganização do evento e dos serviços
municipais do espaço”. Além disso, a
Câmara de Lisboa referia que as con-
dições meteorológicas de 20 de julho
fizeram com que se determinasse a
“não existência de risco elevado de
incêndio rural”.
Acontece que, como o Expresso
escreveu na altura, o ISA fez depen-
der a autorização de uma autoriza-
ção prévia da Câmara — que surgiu
através da autorização do vereador
Ângelo Pereira, via e-mail. Carlos
Moedas não esclarece se sabia, na
altura, que o seu vereador tinha dado
a autorização a título “excecional”
nem se mantém a confiança no au-
tarca, que é também líder da distrital
de Lisboa.
Depois das notícias, a Câmara tirou
do seu site as notícias relativas ao
prolongamento do estado de alerta.
Rita Dinis
rdinis@expresso.impresa.pt
em Guimarães foram preparados
com elevado grau de premeditação,
com participação de membros de
pelo menos um grupo organizado de
adeptos nacional”.
Verificou-se que apenas um peque-
no grupo de adeptos organizou a sua
deslocação com conhecimento das
autoridades, entrando em Portugal
por via aérea, tendo os restantes
“contado com o apoio de membros
de claques associadas a clubes portu-
gueses para a organização das suas
deslocações e estada”, alertou tam-
bém o MAI.
Depois deste caso de desordem pú-
blica também a envolver uma claque
portuguesa, para além dos croatas,
“a PSP irá adotar medidas de vigi-
lância sobre os membros dos grupos
organizados de adeptos portugueses
que possam protagonizar situações
de alteração da ordem pública”, re-
feriu o MAI.
Hugo Franco
hfranco@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
Trump
e caso FBI
“Temo
pelo Estado
de Direito”
O professor catedrático
de Direito Criminal da
Universidade do Ohio,
Joshua Dressler, explica
a gravidade da atualidade
P Trump diz que está a ser alvo
de perseguição política. O Pre-
sidente Joe Biden tem de autori-
zar um mandado de busca?
R Para este caso específico não
há precedentes, mas é plausível
que Biden realmente não tenha
sido informado das buscas. Em
primeiro lugar, não há nenhuma
lei que obrigue as autoridades fe-
derais a informarem o Presidente
de qualquer ação em preparação
ou em curso. Em segundo lugar,
o procurador-geral, Merrick Gar-
land, é conhecido pelo seu pânico
em ver o seu departamento asso-
ciado a qualquer favoritismo ao
Presidente. Num caso criminal,
o Departamento de Justiça [DOJ]
não costuma avisar que vai pro-
ceder a buscas. Note-se que foi
Trump quem as divulgou, para
aumentar as doações.
P Quais podem ser as conse-
quências para Donald Trump?
R É um caso difícil para a acu-
sação. Só a existência do man-
dado demonstra que um juiz fe-
deral está convencido de que há
“fundamento substancial” para
acreditar que o FBI encontraria
provas de natureza criminosa
no local abrangido pela busca. É
um bom princípio para qualquer
investigação, porém está longe
de atingir o patamar do que será
necessário para que qualquer pro-
curador aceite deduzir acusação
e levar Trump a julgamento. Não
vão querer avançar a menos que
tenham provas além de uma “dú-
vida razoável”, porque afinal é de
um antigo presidente que se trata.
Apenas um jurado pode pôr em
causa o veredicto unânime que os
procuradores seriam obrigados
a obter.
P Os apoiantes de Trump não
parecem nada preocupados
com todos estes casos contra
o ex-Presidente. Ele ainda pode
concorrer de novo à presidência
dos Estados Unidos?
R Estamos a viver algo que nunca
vivemos. Sim, parece que Trump
acredita que pode beneficiar elei-
toralmente do facto de ter sido
alvo de uma busca. Dir-me-ão que
isto é contraintuitivo em qualquer
mundo racional, mas não estamos
a passar por um período racional.
Trump é um excelente demagogo
e muita da sua base vê o apoio ao
ex-presidente como uma espécie
de crença religiosa, que os defi-
ne. É também por isso que uma
condenação de Trump é impro-
vável. Digo aos meus alunos que
em todas estas décadas de ensino
nunca vi motivos para duvidar da
robustez do Estado de Direito,
agora sim, posso dizer que temo
pela sua permanência no futu-
ro. Está a ficar mais difícil votar,
principalmente para as minorias
que tendem a votar democratas,
sejamos honestos. Além disso, se
algumas das pessoas que Trump
está a apoiar para cargos, como
o de secretário de Estado, ven-
cerem, teremos um problema
sério nas próximas presidenciais
porque estas pessoas continuam
a defender que Trump venceu as
eleições em 2020.
Ana França
afranca@expresso.impresa.pt
Ver mais na pág. 29
Incêndio Combate falhou nas primeiras horas
e a orografia do terreno complicou a atuação nos dias
seguintes. Ardeu já 10% da área do Parque Natural
Serra da Estrela com
o maior fogo do ano
O
Carla Tomás
maior incêndio
registado este ano
em Portugal con-
tinua a lavrar sem
descanso na serra
da Estrela, criando
uma mancha negra
naquela que era a
grande mancha
verde no centro do país. Em seis dias
consumiu mais de 10 mil hectares
(ha), o que equivale a cerca de 13%
da área ardida este ano em espaços
rurais. Desde o início do ano já ar-
deram 74.304 hectares no território
continental, segundo dados do Insti-
tuto de Conservação da Natureza e
das Florestas — ICNF.
Na tarde desta quinta-feira, o fogo
não parecia pronto a ceder. Às 14h18
de 11 de agosto, dados do satélite
“Modis Aqua” da NASA analisados
pelo investigador José Miguel Car-
doso Pereira, do Centro de Estudos
Florestais do Instituto Superior de
Agronomia, davam conta de “uma
área preocupante de chamas na ca-
beça do fogo”, a norte de Manteigas.
Isto mesmo com os sapadores flores-
tais e a força especial de bombeiros
a tentar delimitar um perímetro de
25 quilómetros com retroescava-
doras para travar o incêndio que se
estendeu entre os concelhos da Co-
vilhã, Manteigas, Gouveia e Guarda
e chegou ao de Celorico da Beira
no final da tarde. O fogo começou
na madrugada de sábado no lugar
de Garrocho, na Covilhã, e a Polícia
Judiciária está a investigar indícios
de fogo posto.
A meio da tarde de ontem, o segun-
do comandante da Autoridade Nacio-
nal de Emergência e Proteção Civil
(ANEPC), Miguel Cruz, dava conta
de que estavam no terreno 1500 ope-
racionais, cerca de 400 viaturas e 14
aeronaves, que iriam “continuar a
trabalhar afincadamente”, tendo em
conta a evolução da situação meteo-
rológica e as “oportunidades” criadas
para atuar. Até então registavam-se
Bombeiros tentam travar chamas num
dos flancos do fogo no Parque Natural
11 feridos, 26 pessoas deslocadas de
suas casas por segurança e danos em
dois veículos e duas casas. A meio da
tarde, as chamas atingiram um aglo-
merado de casas devolutas na aldeia
Quinta da Taberna, na Guarda, aca-
bando por atingir uma casa habitada.
As forças de bombeiros e sapadores
não conseguiram dar conta do fogo
nas primeiras horas e a orografia do
terreno complicou a atuação nos dias
que se seguiram, indicam ao Expres-
so várias fontes. “Tenho informação
de que as faixas de gestão de combus-
tível não terão sido aproveitadas para
ações de combate quando podiam ter
sido em alguns momentos”, diz Car-
doso Pereira, lembrando que “numa
área protegida como esta não se po-
dem fazer caminhos ‘a laser’ como
alguns parecem pensar, porque assim
restaria muito pouco da natureza que
ali se protege”. Segundo o especialis-
ta, tendo em conta que o Parque Na-
tural teve o último grande incêndio
em 2005, muito combustível se foi
acumulando. A melhor forma de evi-
tar o que agora sucedeu é “fazer fogo
controlado de baixa intensidade em
pequenas parcelas, quando o tempo
permite”.
Cardoso Pereira também critica o
facto de, apesar de se falar no assunto
desde 2004 e constar do atual plano
de gestão integrada de fogos rurais,
“continua a não haver a especializa-
ção de funções para que uns protejam
as casas e aldeias, que são obviamen-
te a primeira prioridade, e outros
protejam a floresta e a natureza”.
“FORAM IDENTIFICADAS
SITUAÇÕES QUE
PODERÃO NECESSITAR
DE AJUSTAMENTOS
OPERACIONAIS”,
ADMITIU O MAI
PRIMEIRO CADERNO 5
NO FIM ERA
O VERBO
PRÉMIO REI DOS ASPIRADORES
“O primeiro-ministro
é um bom mata-borrão,
FOTO MIGUEL PEREIRA DA SILVA/LUSA
é muito rápido a sugar
as coisas”
Marcelo Rebelo de Sousa
Presidente da República, sobre António
Costa, em entrevista à CNN
PRÉMIO SUPERCOLA 3
“A direita cometeu
um erro que nunca
percebi: os sucessivos
líderes da direita
descolavam de mim
em vez de colarem
a mim, descolaram
ostensivamente
de mim. Quem é que
se colava a mim?
O primeiro-ministro
e o PS”
Idem
PRÉMIO THE WALKING DEAD
“A instrumentalização
é total e descarada.
Usa-se o morto
[D. Pedro] para aclamar
o vivo [Bolsonaro]”
João Teixeira Lopes
Sociólogo, ex-dirigente do Bloco de Esquerda,
sobre a exposição pública no Porto e a ida
ao Brasil do coração de D. Pedro
PRÉMIO AMIGOS DO CORAÇÃO
“Se o coração fosse
para Cuba ou
Venezuela, talvez
não causasse tantos
pruridos, mesmo que
a relíquia seja repulsiva
para almas mais dadas
à mitificação de
‘heróis’ cool como
Che Guevara”
Rui Moreira
Presidente da Câmara Municipal do Porto
Até ontem ardeu cerca de 10% da PRÉMIO OFTALMOLOGISTA
área do Parque Natural da Serra da DO ANO
Estrela, incluindo o Vale Glaciar que “Estou totalmente
integra o Geopark classificado como
Património Mundial da UNESCO. focado em ser ministro
Pelo caminho foram devastadas áreas da Cultura e é uma boa
de paisagem protegida, bosques de ideia que todos os
faias, bétulas e castanheiros cente-
nários, mas o balanço das perdas de
membros do Governo
biodiversidade só será apresentado estejam focados
pelo ICNF depois de estancado o fogo em governar
e avaliados os prejuízos totais da área e não em alimentar
protegida. Estima-se que várias espé-
cies da fauna em risco de extinção, especulações”
como a víbora-cornuda, ou espécies Pedro Adão e Silva
de escaravelhos que apenas existem Ministro da Cultura, sobre rumores
na serra da Estrela, possam ter sido que o colocam na lista de futuros
sucessores de António Costa
afetados.
O presidente da Câmara Munici-
PRÉMIO QUEM AVISA AMIGO É
pal da Covilhã acionou o plano de
emergência na segunda-feira e este “É uma pessoa
foi ratificado esta quinta, informa ao que Costa queria
Expresso Vítor Pereira. Entretanto, ter a seu lado e, se
foi já elaborado um plano de atuação
na área de 3500 hectares ardida no estivesse há mais tempo
concelho que passa por inventariar a seu lado, já seria
prejuízos, operacionalizar a venda falado para candidato
da madeira ardida ou criar um banco a sucessor”
alimentar para os animais, e avançar
com a estabilização de solos. O autar- Paulo Pedroso
ca reconhece que de pouco serviram Ex-dirigente do PS
as faixas de contenção e gestão de
combustível e caminhos que foram PRÉMIO TORRE E ESPADA
criados nesta área protegida desde DA MUSEOLOGIA
2017. O fogo galgou tudo e apesar de “É difícil não ver nos
alguns percalços com os meios aéreos museus nacionais
(com três Canadair inoperacionais a
meio da semana), certo é que, diz, “a
uma área de enorme
água que chegaram a deitar em algu- falhanço”
mas situações rapidamente se trans- Joaquim Oliveira Caetano
formou em vapor”. E, acrescenta, Diretor do Museu Nacional de Arte Antiga
“como me disse um bombeiro, com a
terrível carga térmica existente nos PRÉMIO É PRECISO TER FÉ
solos neste ano de seca, este é um “Fernando Medina
incêndio que tem de ser combatido à
unha no terreno”.
irá preparar-se melhor”
O Conselho de Ministros aprovou
esta quinta-feira a aquisição de 81
Francisco Assis
Presidente do Conselho Económico
veículos para combate a incêndios
rurais, “de forma a aumentar a ca-
e Social (sede das negociações
da concertação social entre parceiros
e Governo), sobre a contratação
pacidade operacional da ANEPC” do antigo administrador da TVI
com recurso a financiamento do Sérgio Figueiredo como consultor
PRR, mas não sabe quando estarão pelo ministro das Finanças
operacionais.
ctomas@expresso.impresa.pt
José Cardoso
jcardoso@expresso.impresa.pt
6 PRIMEIRO CADERNO
ABUSOS NA IGREJA
Abusos chegaram ao Papa e não é certo que Francisco segure um cardeal tão desgastado
Rosa Pedroso Lima
O Patriarcado de Lisboa aguarda a con-
firmação formal da permanência de D.
Manuel Clemente à frente da diocese de
Lisboa, depois de, na passada semana,
o cardeal ter apresentado ao Papa, em
audiência privada, o seu pedido de re-
núncia. As notícias do encobrimento de
casos de abusos de menores no Patriar-
cado levaram o núncio apostólico em
Lisboa a participar a Roma a situação
do cardeal e um parecer negativo do
representante do Vaticano pode pesar
na decisão do Papa. O destino de D.
Manuel — que faz 75 anos a 16 de julho
de 2023 e já tinha anunciado a intenção
de sair, depois da Jornada Mundial da
Juventude, marcada para o próximo
ano — está nas mãos do Papa. E pode
ter uma resolução já este mês.
“D. Manuel entrará como patriarca
de Lisboa no próximo Consistório, mas
poderá voltar afastado de funções”, dis-
se ao Expresso fonte do Patriarcado.
A agenda do Vaticano confirma a rea-
lização de um Consistório Ordinário
Público para o próximo dia 27 de agosto,
em Roma, e esse encontro — onde vão
“Existe no ar uma
angústia relativamente
à opacidade que
se mantém na Igreja”,
diz Nuno Caiado
receber a insígnias os 21 novos cardeais
anunciados em maio — será a ocasião
para o Papa decidir se D. Manuel Cle-
mente permanece em funções ou se é
antecipado o seu pedido de renúncia,
que deveria ser formalizado quando
fizer os 75 anos, a menos de um mês da
Jornada Mundial. Os Consistórios tive-
ram uma pausa forçada de dois anos,
devida à pandemia, e são um momento
solene de renovação da Igreja. No pró-
ximo Consistório está confirmada a pre-
sença do cardeal-patriarca de Lisboa.
Os casos que envolvem o Patriarcado
de Lisboa sucedem-se e agravam o des-
gaste de um cardeal que há muito vinha
dando sinais de cansaço. Em finais de ju-
lho, D. Manuel Clemente foi o primeiro
a assumir pertencer a “outro tempo” e
que “a mentalidade, a maneira de viver,
Onda de choque
na Igreja isola
patriarca
de conviver e de interagir”, assim como
“toda a parafernália moderna de co-
municação”, exigiam “um bispo mais
jovem” para comandar os destinos da
diocese. De então para cá, com o seu
nome a ser envolvido em vários casos de
omissão no seguimento de queixas de
abusos, a situação do cardeal só piorou.
O núncio apostólico (representante
da Santa Sé em Portugal) reportou
a Roma as notícias que nas últimas
duas semanas vieram a público e que
envolviam o cardeal. E se é certo que a
transmissão desta informação faz par-
te das funções de um núncio, o certo
também é que a mensagem diplomá-
tica representou uma nota negativa ao
desempenho do cardeal, e esta infor-
mação chegou ao Papa antes mesmo
da audiência privada que Francisco
concedeu a D. Manuel Clemente.
Fogo amigo e inimigo
No interior da Igreja, a revelação dos
sucessivos escândalos de abusos de
menores já provocou por todo o mun-
do várias ‘vítimas’ entre a hierarquia
eclesiástica. E o atual núncio, D. Ivo
Scapolo, não escapou à polémica. Em
2019, altura em que veio do Chile para
Lisboa, o seu nome era apontado como
um dos responsáveis pelo gigantesco
processo de encobrimento dos abusos
sexuais praticados pelo clero no Chile,
que dariam origem à inédita decisão
do Papa Francisco — tomada depois de
uma visita ao país — de demitir toda a
Conferência Episcopal chilena.
A denúncia de Scapolo sobre os es-
cândalos que envolvem o patriarca de
Lisboa podem ser lidos como “uma
forma de remissão” das falhas passa-
das, segundo fonte próxima do Patriar-
cado. Mas provam também que no caso
dos abusos da Igreja “nada é preto e
branco”, como refere Nuno Caiado. O
primeiro subscritor da carta aberta aos
bispos portugueses, que, em finais de
2021, pediu uma “investigação profun-
da e independente” aos abusos cometi-
dos pela Igreja, admite que houve “uma
evolução positiva”, mas que “há ainda
um grande caminho para trilhar” pela
Igreja portuguesa.
“Existe no ar uma angústia relativa-
mente à opacidade que se mantém na
Igreja”, diz Nuno Caiado ao Expresso,
considerando que “há ainda uma insu-
ficiente autoperceção da Igreja em rela-
ção a este problema”. Se é verdade que
“um ou outro bispo se mostra aberto à
verdade”, o certo é que “essa abertura
não é totalmente partilhada por toda
a hierarquia e por todo o clero”, diz o
primeiro signatário da carta, que juntou
perto de três centenas de católicos na-
quilo que foi considerado “um grito de
alerta” para uma intervenção da Igreja.
Alguns sectores da Igreja reagem ao
assunto como se de um ataque con-
certado se tratasse. “Os sectores anti-
clericais — que sempre existiram e vão
existir — apanham a boleia destas notí-
cias”, reconhece Nuno Caiado. “Mas o
problema, para mim, está nas munições
que a Igreja lhes vai dando”, conclui.
Do lado da hierarquia, as respostas
surgem nas várias notas que vão sen-
do publicadas, nomeadamente no site
do Patriarcado de Lisboa. Primeiro, o
Conselho Presbiteral (uma espécie de
senado da diocese, que representa todos
os padres e tem a missão de aconselhar
o bispo) e, um dia depois, o Diaconado
Permanente reafirmaram a sua posição
de apoio a D. Manuel Clemente, apesar
da “tristeza” com que foram recebidas
as sucessivas notícias sobre os casos
de abusos cometidos na diocese. Esta
Alguns sectores
da Igreja reagem
ao assunto como
se de um ataque
concertado se tratasse
quinta-feira, foi a vez de o secretaria-
do permanente do Conselho Pastoral
Diocesano (que junta padres e leigos,
representantes dos vários sectores e
vigararias da diocese) também emitir
um comunicado manifestando o “desejo
mais sincero de que ele continue a sua
missão de patriarca de Lisboa”.
O padre José Manuel Pereira de Al-
meida, membro do secretariado perma-
nente do Conselho Presbiteral, assume
que a tomada de posição pública surgiu
da necessidade de manifestar “solidarie-
dade” com D. Manuel Clemente, numa
altura em que “parecia que toda a ques-
tão dos abusos se concentrava em torno
da cabeça do patriarca”.
O padre não tem dúvidas de que a
Igreja “tardou muito a fazer alguma
coisa de jeito e de forma organizada” no
FOTO NUNO BOTELHO
combate ao escândalo dos abusos, mas
que “foi dado um salto em frente” com
a criação da Comissão Independente.
Agora, “é hora de promover um deba-
te mais fundo sobre o clericalismo em
Portugal, que é a raiz de todos os abu-
sos de poder”. José Manuel Pereira de
Almeida também reconhece “um grave
problema de comunicação” por parte da
Igreja, que só tem agravado a confiança
dos católicos e da sociedade em geral
nas instituições religiosas em Portugal.
O bispo auxiliar de Lisboa e coorde-
nador da Comissão Diocesana para
os abusos cometidos pela Igreja, D.
Américo Aguiar, escusou quaisquer co-
mentários. Apenas disse o que fez em
relação ao caso de abusos reportado na
última edição do Expresso: “Solicitei
ao padre que os denunciou que nos fa-
cultasse informações sobre as queixas
apresentadas.” A Comissão Diocesana
não foi informada das denúncias e o
denunciante só fez chegar informação
à Comissão na noite de quarta-feira,
quase uma semana depois da revela-
ção feita pelo Expresso.
Silêncio dos outros bispos
O presidente da Conferência Episco-
pal Portuguesa (CEP), D. José Orne-
las, por se encontrar de férias, não
respondeu ao Expresso. A CEP tem,
aliás, mantido o silêncio, no que é visto
como falta de solidariedade para com o
que se passa com D. Manuel Clemente.
“A solidariedade para com o senhor
D. Manuel Clemente não pode tirar
férias… Não compreendo o silêncio da
Conferência Episcopal Portuguesa!
Sobre máscaras, suspensão de cele-
brações, peregrinações, funerais sem
família, etc., etc., e outras coisas afins
não faltaram notas e comunicados;
sobre sensibilização contra incên-
dios, idem, e bem, etc., etc. E perante
este ‘ataque vergonhoso’ à pessoa do
senhor cardeal-patriarca D. Manuel
Clemente nem uma palavra da CEP
ou do seu conselho permanente?!”,
escrevia há dias nas redes sociais o
padre António Pires, da diocese de
Bragança-Miranda, um sacerdote que,
em 2016, denunciou abusos por parte
de um colega a duas adolescentes às
quais mandava fotografias de cariz se-
xual. Esse sacerdote foi julgado e con-
denado a 20 meses de pena suspensa.
rlima@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
>>
Comissão
Independente
diz não
(para já)
a Marcelo
Investigação aos abusos
da Igreja portuguesa
pode prolongar-se,
mas responsáveis dizem
que vão cumprir os prazos
Apesar de tomar “boa nota” das
palavras do Presidente da Repúbli-
ca antes e depois da reunião com a
Comissão Independente que está a
estudar as suspeitas de abusos se-
xuais na Igreja, Pedro Strecht diz
que a missão desta entidade termina
mesmo em dezembro, “como estava
previsto desde o início”.
Ainda antes do encontro com os
membros da Comissão, Marcelo
Rebelo de Sousa lançou o “desafio”
de o trabalho “continuar” depois de
dezembro e durante a conversa, se-
gundo o “Observador”, terá sugeri-
do que pelo menos alguns membros
continuassem o trabalho numa nova
comissão que fosse entretanto criada.
Pedro Strecht, coordenador dos
trabalhos, agradece “com sincerida-
de” as palavras do Presidente, mas
garante que a Comissão Indepen-
dente “sente que está ao seu alcan-
ce cumprir o prazo acordado com a
Conferência Episcopal Portuguesa
(CEP) quando esta lhe pediu o estudo
científico que tem vindo a desenvol-
ver, com entrega de relatório até ao
final deste ano e apresentação públi-
ca em janeiro de 2023”.
Contactada pelo Expresso, a CEP,
que teve a iniciativa de entregar
a uma Comissão Independente o
estudo dos casos de abuso sexual
na Igreja, garante que “mantém a
calendarização acordada em rela-
ção ao trabalho da Comissão Inde-
pendente, com entrega do relatório
final à CEP em dezembro, seguida
da sua apresentação pública em
inícios de janeiro”.
Conferência Episcopal
garante que “mantém a
calendarização acordada
com a comissão
independente”
A ideia de prolongar a investigação
a 80 anos de abusos cometidos por
membros da Igreja Católica portu-
guesa — intervalo de tempo que a
Comissão Independente se propôs
analisar — esteve, porém, sempre
em cima da mesa. Logo no momento
em que foi nomeado para a tarefa,
o coordenador da Comissão, Pedro
Strecht, assumiu ter dúvidas quanto
ao prazo de um ano para a conclusão
dos trabalhos. “Mas num ano pode-
mos dizer se chega ou se é preciso ter
outros estudos, em que moldes ou
temas”, disse em conferência de im-
prensa. Alguns responsáveis da Igre-
ja também questionaram a escassez
de tempo para o desenvolvimento da
investigação, mas Strecht respondeu
nunca afastando a hipótese de de-
senvolver “outros estudos que se lhe
possam vir a seguir no futuro”.
A consulta direta dos arquivos das
dioceses e das paróquias tem decor-
rido, mas com algumas resistências
que dificultam o trabalho das equipas
de investigação. O porta-voz da CEP
assumiu que o tema do alargamento
dos trabalhos da Comissão Indepen-
dente ainda não foi submetido à apre-
ciação dos bispos portugueses, que
reunirão em conselho permanente
no próximo mês de setembro. Em
novembro, um mês antes da apre-
sentação do relatório da Comissão,
reunir-se-á a assembleia plenária
da CEP, altura em que poderá ser
aprovada a extensão do prazo dos
trabalhos da Comissão Independente
nomeada pelos representantes da
hierarquia católica portuguesa.
R.P.L. e Rui Gustavo
Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 7
8 PRIMEIRO CADERNO
ABUSOS NA IGREJA
Investigação Casos suspeitos ocorreram em dioceses do Norte e do Sul do país e
os alegados violadores continuam no ativo. Igreja quer ouvir padre que denunciou
à comissão independente 12 casos suspeitos de abusos de outros sacerdotes
Menores abusados
no seminário. Hoje,
alguns são padres
E
Hugo Franco e Rui Gustavo
ntre as vítimas de abuso e
assédio sexual de padres
nos últimos 40 anos en-
contram-se seminaristas
que, na altura dos crimes,
eram menores de idade.
Alguns deles vieram a
tornar-se padres, outros
desistiram do seminário,
traumatizados com o que sofreram às
mãos de sacerdotes mais velhos.
Há pelo menos dois padres — hoje com
idades próximas dos 40 anos e que inte-
gram atualmente uma diocese do Sul do
país — que entre os anos 80 e 90 terão
sido vítimas de um sacerdote que é um dos
muitos nomes investigados pela Comissão
Independente para o Estudo dos Abusos
Sexuais contra Crianças na Igreja Católica
Portuguesa. Ambos não quiseram falar
ao Expresso, mas vários ex-acólitos e es-
cuteiros que foram alvo do mesmo padre
revelam um relacionamento “pouco sau-
dável” entre o alegado abusador e os dois
abusados. “Um dos seminaristas era um
verdadeiro escravo do padre. Mas nunca
se queixou das investidas. Nem nos admi-
tia nada do que se passava.” Outra teste-
munha conta que o padre tinha um grande
“ascendente” sobre os dois seminaristas.
“Era uma mistura estranha de namorado
e pai deles. Estavam sempre juntos, e creio
que eles sempre o protegeram das suspei-
tas que já existiam na altura.”
Tal como acontece com muitas outras
vítimas de pedofilia, estes ex-seminaris-
tas, hoje sacerdotes, nunca avançaram
com qualquer tipo de queixa, nem no
seio da Igreja nem no Ministério Público.
“Mantiveram-se em silêncio, talvez por
medo ou por receio de não subirem na
hierarquia da Igreja. Ou simplesmente
por a dada altura terem sido coniventes
com tudo o que se passava”, acrescenta
a mesma fonte, que acompanhou todo o
processo.
O Expresso sabe que estes dois casos
não são únicos. À Comissão Independen-
te, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro
Strecht, chegou também uma denúncia
sobre um padre de uma diocese do Norte
do país, que ainda se encontra no ativo,
que terá abusado de ex-seminaristas me-
nores que se tornaram, nalguns casos, pa-
dres. A queixa foi remetida ao Ministério
Público, que estará a investigar o caso.
Reunião no Patriarcado
Joana (nome fictício a pedido da própria),
mãe de um ex-seminarista, revela que o
filho, então com 17 anos, foi abusado por
Inácio, que era há 20 anos padre na zona
oriental de Lisboa. O nome do sacerdote
já chegou há algum tempo ao conheci-
mento da Comissão Independente e faz
parte da lista de 12 párocos suspeitos
de abusos que um padre denunciante
revelou há dois meses à equipa de Pedro
Strecht, tal como avançou o Expresso na
última edição (ver caixa).
O então seminarista tinha sido convi-
dado por Inácio para passar férias numa
casa no Algarve. Os pais autorizaram a
viagem, nunca imaginando que aquele
homem, em quem tanto confiavam, pu-
desse entrar durante a noite, despido, na
cama onde o filho dormia. “Só soubemos
do episódio alguns meses depois, pois
percebemos que o nosso filho não andava
bem. Contou-nos que repeliu o pároco,
mas foi obrigado a regressar a casa com
ele de carro por não ter dinheiro para vir
de autocarro.” O rapaz era seminaris-
ta nos Olivais, mas viria a desistir desse
“sonho”, traumatizado com o episódio
passado no Algarve.
Joana decidiu não ficar calada, queixan-
do-se por escrito a Jorge Ortiga, quando
este era presidente da Conferência Epis-
copal Portuguesa. Em abril de 2010, o
próprio Ortiga respondeu por carta à
paroquiana, garantindo que tinha diri-
gido as “informações” nela contidas ao
então cardeal-patriarca de Lisboa, José
Policarpo. E concluía na missiva: “Sei que
ele dará o seguimento mais oportuno.”
Poucas semanas depois de receber a
carta assinada por Jorge Ortiga, Joana foi
contactada para ir ao Patriarcado. “Numa
Padre denunciante
revelou 12 casos
Na última edição, o Expresso revelou
que o padre Cardoso (nome fictício)
testemunhou presencialmente na
Comissão Independente liderada
por Pedro Strecht e partilhou um
conjunto de documentos relativos
às suas suspeitas sobre situações de
abuso sexual de crianças e jovens
praticadas por 12 padres. Dos
indícios que recolheu nos últimos 40
anos, os principais visados eram
sobretudo três párocos: Inácio,
Nuno e Alberto (por motivos legais,
o Expresso não publica os seus
apelidos), todos eles ligados à
diocese de Lisboa. Já o tinha feito,
embora na altura não tivesse
disponível o mesmo manancial de
informação, em reuniões no
Patriarcado e no Departamento de
Investigação e Ação Penal de Lisboa
em 2013. O Expresso sabe que a
Igreja quer ouvi-lo agora. Em
conversa com o Expresso na semana
passada, o padre denunciante
referiu: “No início estava
desconfiado da Comissão
Independente. Depois percebi que
não havia motivos para isso. Os
nomes de Pedro Strecht, Daniel
Sampaio e Laborinho Lúcio
deram-me confiança. E algumas
pessoas incentivaram-me a ir depor.”
Não tem dúvidas de que chegou “a
hora da verdade e da autenticidade”.
E desafiou a Igreja: “Vamos ser
transparentes em tudo.” H.F.
Expresso, 12 de agosto de 2022
reunião de três horas com o cónego Álva-
ro Bizarro, relatei tudo o que sabia sobre
o assunto.”
Alguns anos mais tarde, Joana viria a ser
recebida, juntamente com o marido, pelo
atual cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel
Clemente. Na audiência, diz ter voltado a
relatar os abusos de que o filho teria sido
alvo. “O senhor cardeal mostrou-se muito
preocupado com o assunto e disse-nos
que o padre já tinha sido afastado, não
tendo qualquer atividade na Igreja.” Só
que a paroquiana tinha esperança que o
patriarca de Lisboa chamasse também o
filho para perceber, na primeira pessoa,
os detalhes dos alegados abusos sexuais.
Mas tal nunca veio a acontecer, para seu
desgosto. “A bem da transparência na
Igreja, seria importante que Manuel Cle-
mente ouvisse o testemunho de uma das
muitas vítimas deste padre”, critica.
O gabinete de comunicação de Manuel
Clemente confirma a existência desta
reunião com o casal de paroquianos. “O
atual patriarca de Lisboa recebeu os pais
da alegada vítima de abusos no decorrer
da investigação prévia ordenada pelo seu
antecessor.” Mas não adianta se ouviu, ou
não, a alegada vítima, hoje com quase 40
anos. “Os procedimentos canónicos, mes-
mo a investigação prévia, estão sujeitos a
segredo de ofício, pelo que não é possível
responder a esta questão.”
390 denúncias de abusos
Em maio de 2013, o Patriarcado abriu
uma investigação prévia a Inácio, que foi
então comunicada à Congregação para a
Doutrina da Fé, no Vaticano. Dois anos
depois, Roma deu instruções para averi-
guar se o padre tinha intenção de pedir
a dispensa do cargo e, em caso negativo,
autorizava o Patriarcado a expulsá-lo.
Só que o gabinete de Manuel Clemente
alegou que de 2015 a 2019 não conseguiu
contactar o padre suspeito, por este se
encontrar fora do país.
Algo que algumas fontes próximas do
processo consideram estranho: “Inácio
viveu quase sempre no Algarve desde que
saiu de Lisboa. E nunca saiu das redes
sociais”. Esta semana, o Patriarcado rea-
firma que nada sabia sobre o paradeiro do
sacerdote durante aqueles quatro anos.
Em maio de 2020, ou seja, sete anos
depois da abertura do processo na Igre-
ja, Inácio pediu dispensa do sacerdócio
e hoje é padre numa igreja evangélica.
Depois de uma denúncia às autoridades
da Rede de Cuidadores, liderada por Ca-
talina Pestana, o suspeito chegou a ser
também investigado pelo Ministério Pú-
blico e Polícia Judiciária pelo mesmo tipo
de suspeitas, mas o caso foi arquivado há
nove anos. O Expresso tentou contactar
o padre, sem sucesso. Em 2013, confron-
tado sobre o mesmo assunto, limitou-se a
responder: “Não percebo porque o meu
nome aparece nessas informações.”
Sem adiantar casos concretos, Pedro
Strecht revela ao Expresso que, ao longo
dos oito meses de atividade, a Comissão
Independente recebeu 390 depoimentos
relativos a alegados abusos sexuais de
padres sobre menores. Destes, 17 foram
encaminhados para o Ministério Público.
Entretanto, quatro destas novas denún-
cias já foram arquivadas pela Justiça.
hfranco@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
P&R
Os membros da Igreja
têm obrigação legal de
comunicar às autoridades
civis as suspeitas de
abuso sexual de que
tenham conhecimento?
Não. Ou melhor, quase nunca.
De acordo com Paulo Sá e
Cunha, especialista em Direito
Penal, “só os funcionários
públicos são obrigados a
participar crimes de que
tenham conhecimento.” Mas
há uma exceção: “Se os
membros do clero estiverem a
desempenhar um cargo numa
instituição pública”, como é o
caso, por exemplo, da Santa
Casa da Misericórdia, “já são
equiparados a funcionários
públicos e estão obrigados por
lei a denunciar crimes de que
tenham tido conhecimento no
desempenho das suas
funções.” E há mesmo padres
que são funcionários públicos,
como alguns capelães
hospitalares e militares. Quem
ocultar as suspeitas pode
incorrer num crime de
favorecimento pessoal,
punível com multa ou três
anos de prisão.
Os crimes de abuso
sexual de menores
podem prescrever?
Sim. Este tipo de crimes —
contra a liberdade e
autodeterminação sexual —
são puníveis com um máximo
de 10 anos de prisão. O prazo
de prescrição é de 10 anos a
contar do momento em que
foram cometidos. Há, no
entanto, uma exceção: este
prazo pode ser aumentado se,
Dos EUA a Espanha, casos
abalam Igreja em todo o mundo
Investigações recentes
denunciam décadas
de agressões sexuais a
menores cometidas e
ocultadas dentro da Igreja
A primeira bomba a envolver
um escândalo de abuso sexual
de crianças por padres católi-
cos rebentou há 20 anos, em
Boston, nos EUA. Em 2002,
uma equipa de jornalistas de
investigação do diário “The
Boston Globe” — equipa Spotli-
ght — decidiu apurar as suspei-
tas de que a cúpula da Igreja
de Boston estaria a encobrir
casos de pedofilia a envolver
sacerdotes católicos. A investi-
gação tornou evidente que este
era um problema sistémico e
tentacular na Igreja.
Ao longo de seis centenas de
artigos, publicados durante
um ano, foi denunciado que
só em Boston havia quase 80
padres que tinham cometido
abusos sexuais sobre meno-
res e que tinham sido prote-
gidos pela Igreja Católica. O
modus operandi habitual era
transferir esses clérigos da
paróquia onde teriam cometi-
do os crimes para outra, onde
mantinham os mesmos crimes.
As vítimas eram caladas com
ameaças, dinheiro e outras for-
mas de intimidação, a envolve-
rem políticos, tribunais ou a
própria imprensa.
Este escândalo deu origem
ao filme “Spotlight — Segredos
Revelados”, vencedor do Ós-
FOTO NUNO FOX
car de melhor filme em 2016,
e sabe-se agora que foi apenas
a ponta de um grande novelo
de silêncios e abusos sexuais,
que se continua a desfiar e a
na altura da prescrição, a
vítima não tiver ainda
completado 23 anos. “Mas
como esta regra dos 23 anos
só foi [estabelecida] por uma
reforma de 2007, pode haver a
interpretação de que só se
aplica aos crimes cometidos
depois desta data”, frisa Sá e
Cunha. Estes crimes são
públicos e não dependem de
queixa.
O que é que acontece
aos padres que são alvo
de suspeitas?
Em abril, o presidente da
Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP) defendeu
que os padres só devem ser
afastados em caso de
acusações pelo Ministério
Público. Contudo, cada bispo
vai gerindo de forma diversa.
Há padres afastados de
funções pastorais assim que
há uma queixa, como
aconteceu recentemente com
um padre de Lisboa que foi
afastado do trabalho na
paróquia e num colégio devido
a uma queixa sobre troca de
mensagens num grupo de
WhatsApp. Há padres que são
afastados do desempenho
público de funções e enviados
para mosteiros, como
aconteceu com um padre de
Vila Real condenado a uma
pena suspensa em 2016.
O Papa Francisco mudou
a orientação sobre
o que a Igreja deve fazer
quando recebe queixas?
O atual Papa tem levado a cabo
várias mudanças na orientação
da Igreja nestes casos. Uma
das principais foi a obrigação
de os bispos comunicarem às
autoridades civis quando têm
conhecimento de casos que
podem configurar crime. Em
envolver milhares de vítimas
abusadas por padres católicos
em vários países. O problema
é estrutural e está a obrigar a
uma reflexão interna.
Na Europa, as denúncias de
pedofilia na Igreja proliferam
e remontam a muitas décadas
de agressões sexuais de padres
católicos sobre menores, que
contaram com a cumplicidade
de toda a estrutura religiosa.
Alemanha, Irlanda, Espanha
ou França são alguns dos paí-
ses envolvidos neste escândalo.
O caso mais recente vem da
Alemanha. Quase duas cente-
nas de padres alemães terão
alegadamente abusado de 610
No final do ano passado,
o Papa Francisco expressou
publicamente a sua
“vergonha” pela “longa
incapacidade da Igreja” em
gerir estes abusos sexuais
crianças. Estas conclusões são
o resultado de um relatório
independente divulgado este
ano. Os peritos terão avaliado
denúncias de pedofilia entre
1945 e 2020 e acredita-se que o
número real de vítimas poderá
atingir as seis mil. O caso tem
ganho ainda piores contornos,
já que há indícios de que o Papa
emérito, Bento XVI, possa ter
encoberto alguns destes abu-
sos na Alemanha, na época em
que foi arcebispo de Munique
e Freising, entre 1972 e 1982.
Estas notícias têm feito tre-
mer o Vaticano. Foi no final do
ano passado que o Papa Fran-
cisco expressou publicamente
PRIMEIRO CADERNO 9
2019, foram dadas 21
indicações às dioceses. Foi o
fim da “cultura de silêncio”
usada durante décadas pela
Igreja como mecanismo de
defesa. “Os Estados têm
medidas coercivas e um modus
operandi diferente e que é
importante e necessário. Nós
[Igreja] temos de agir de
maneira compatível e
complementar, porque falamos
de comportamentos que são
crimes e que têm de ser
sujeitos à jurisdição civil”, disse
na altura o arcebispo Charles
Scicluna, secretário-adjunto da
Congregação para a Doutrina
da Fé, o organismo
responsável pelo tratamento
de casos de abuso à luz do
Direito Canónico. Nessas
medidas de 2019 está a
obrigação de criação de
Comissões Diocesanas para o
tratamento e
acompanhamento de casos de
abusos, com o Papa a
recomendar que devem “gozar
de uma certa autonomia em
relação à autoridade
eclesiástica local”, ou seja, em
relação ao bispo. Na diocese de
Lisboa, a Comissão é presidida
por um bispo auxiliar. No ano
passado, o Papa fez mais uma
reforma, com uma alteração
no Código de Direito Canónico
em que a pedofilia passa a ser
considerada um “delito contra
a dignidade humana” e a ter
penas canónicas mais pesadas,
incluindo a expulsão do
sacerdócio. Também alargou
os períodos de prescrição dos
crimes e indemnização para as
vítimas. E já este ano alterou a
estrutura interna da
Congregação para a Doutrina
da Fé, separando questões
doutrinárias de questões
disciplinares.
Eunice Lourenço e R.G.
a sua “vergonha” pela “longa
incapacidade da Igreja” em
gerir estes abusos sexuais. As
suas declarações foram feitas
após a publicação de um rela-
tório, feito por uma comissão
independente, sobre os 216
mil casos de violência sexual
cometidos pela Igreja Católica
francesa, desde 1950, contra
menores. De acordo com os
autores desta investigação, os
dados são “esmagadores” e
não passam de “uma estima-
tiva mínima” sobre o alcance
destes crimes praticados du-
rante os últimos 70 anos.
Já em 2018, o Papa Francis-
co implorou “o perdão do Se-
nhor” pelas agressões sexuais
cometidas na Irlanda por pa-
dres católicos quando visitou
este país. Em causa estão as
denúncias de mais de 14.500
pessoas vítimas de abuso se-
xual por padres na Irlanda, só
desde 2002. A hierarquia da
Igreja irlandesa é acusada de
ter encoberto centenas de sa-
cerdotes autores destas agres-
sões desde 1980.
Também no final de 2021 o
jornal “El País” fez chegar ao
Papa e aos bispos espanhóis
as denúncias de 600 casos de
abuso de menores, que deve-
rão envolver milhares de ví-
timas. Na sequência disso, a
Igreja espanhola abriu a inves-
tigação a 251 membros do cle-
ro. Este parece ser só o início
de um furacão de casos, depois
de décadas e décadas de silen-
ciamento e impunidade nos
bastidores da Igreja Católica
em todo o mundo.
Bernardo Mendonça
bmendonca@expresso.impresa.pt
10 PRIMEIRO CADERNO
POLÍTICA FINANÇAS
Conflitos de interesses de consultor
de Medina sem fiscalização
Consultor não tem exclusividade com Ministério das Finanças. Escrutínio público não será possível
Rita Dinis
O novo “consultor estratégico” de Fer-
nando Medina para a “definição, im-
plementação e acompanhamento de
políticas públicas” foi contratado pelo
Ministério das Finanças em regime
de prestação de serviços sem exclu-
sividade e a sua conduta e conflitos
de interesses não serão fiscalizados
por ninguém a não ser pelo próprio
Ministério das Finanças, na qualidade
de entidade que o contrata. Não sendo
formalmente membro do gabinete de
Medina nem titular de alto cargo pú-
blico (nem sequer equiparado), Sérgio
Figueiredo, ex-diretor de Informação
da TVI, não fica, assim, abrangido por
qualquer obrigação declarativa (de
registo de interesses ou declarações
patrimoniais), inviabilizando o escru-
tínio público, e fica apenas sujeito à
obrigação contratual de não incorrer
em conflitos de interesses. “Como se
controla? Não há forma de controlar”,
diz Susana Coroado, presidente da
ONG anticorrupção Transparência
Internacional e autora do livro “O
Grande Lóbi: Como se Influenciam as
Decisões em Portugal”.
Primeiro, porque Sérgio Figueiredo,
apesar de ter um contrato de dois anos
para trabalhar junto do gabinete de
Fernando Medina na “auscultação
dos stakeholders relevantes na eco-
nomia portuguesa” (onde se incluem
empresas dos vários sectores, parcei-
ros sociais, sindicatos e Administração
Pública), não está sujeito a nenhuma
obrigação declarativa. Na última alte-
ração ao Regime do Exercício de Fun-
ções por Titulares de Cargos Políticos
e Altos Cargos Públicos, feita em 2019,
foi adicionado ao leque de titulares
de cargos políticos que estão sujeitos
a essa obrigação declarativa aqueles
que assumem funções de “consulto-
res mandatados pelos Governos da
República e Regionais em processos
de concessão ou alienação de ativos
públicos” (era o caso de Diogo Lacerda
Machado ou de António Borges). “Sér-
gio Figueiredo não se encaixa em nada
disto: tem uma obrigação declarativa
igual à de um empregado de limpeza
contratado para prestação de serviços
no Ministério das Finanças”, acrescen-
ta Susana Coroado.
O Expresso questionou o Ministério
das Finanças sobre como garante o
Governo que ficam salvaguardados
eventuais conflitos de interesses e
como assegura o ministério a trans-
parência da ação do consultor, bem
como se o tipo de consultoria contra-
tada não configura um procedimento
de lobby, mas não obteve resposta.
“O dever de sigilo e o respeito pelo
regime de incompatibilidades estão
previstos contratualmente”, respon-
deu apenas o gabinete de Medina. De
facto, o contrato que será assinado
esta sexta-feira prevê que o ex-jor-
nalista se “abstém de exercer outras
atividades ou funções de natureza
profissional, públicas ou privadas,
com caráter regular ou esporádico,
independentemente de serem ou não
remuneradas, que configurem uma
situação de conflito de interesses”.
Mais: obriga o contratado ao “dever
de notificar” o Estado português “de
qualquer conflito emergente” durante
os dois anos em que desempenhar fun-
ções. Contudo, não estando integrado
em qualquer legislação, fica ao critério
do próprio notificar o ministério do
que entender ser conflito de interesses
e a avaliação da situação será feita
pelas Finanças.
Socialistas incomodados
Fonte socialista contactada pelo
Expresso defende que parte da dú-
vida sobre os eventuais conflitos de
Medina foi comentador da
TVI quando esta era dirigida
por Sérgio Figueiredo
FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
interesses poderia ser dissipada se
o contrato impusesse um regime de
exclusividade, negada pelo próprio.
Em resposta ao Expresso, Sérgio Fi-
gueiredo defendeu a não-existência
de exclusividade, pelo facto de ser um
prestador de serviços.
Apesar de a situação de contratação
de um consultor político de forma
externa não ser habitual e ter dado
“Sérgio Figueiredo tem uma
obrigação declarativa igual
à de um empregado
de limpeza”, diz
Susana Coroado
geralmente polémica, a prática de
contratação de consultoras para es-
poradicamente fazerem uma ava-
liação de políticas públicas sem ser
em regime de exclusividade não o é,
relembra o mesmo socialista. Pro-
blema: o objeto contratual previsto
no contrato de Sérgio Figueiredo é
“muito, muito vasto”, admite a mesma
fonte. Os serviços previstos no contra-
Expresso, 12 de agosto de 2022
to para o ex-jornalista e ex-presidente
da Fundação EDP vão desde “prepa-
ração de estudos e propostas, nomea-
damente através da auscultação dos
stakeholders relevantes na economia
portuguesa”, a “definição, implemen-
tação e acompanhamento de políticas
públicas e medidas a executar” até
à “monitorização” dessa mesma im-
plementação. Além disso, os serviços
que o Estado espera que Figueiredo,
na qualidade de consultor externo,
preste ao ministério passam ainda
pelo “aconselhamento nos processos
internos de tomada de decisão”.
“Quanto mais amplo é o objeto do
contrato maior é o espetro de conflitos
de interesses a ter em conta”, nota a
mesma fonte. E quem fiscaliza? Quem
contrata. No PS, de resto, a contra-
tação foi comentada à boca pequena
como sendo mais uma contratação
“política”, para fazer “gestão política e
comunicacional”, do que propriamen-
te uma contratação “técnica”. Com
o país a banhos, o assunto motivou
críticas de toda a oposição e o Chega
pediu mesmo a presença do ministro
no Parlamento. Medina, que até agora
tinha passado pelos pingos da chuva,
viu-se a braços com dias quentes. A
polémica apanhou o PS de surpresa,
mesmo entre alguns socialistas alinha-
dos com Medina: “Não percebo nem
o objetivo nem as razões da contrata-
ção”, diz um deputado.
Sendo uma contratação política,
defenderam alguns socialistas con-
tactados pelo Expresso, teria de ter
sido para um cargo interno, sujeita
às regras (e ao salário) dos nomeados
para cargos públicos. Uma ideia que
junto dos próximos do ministro é reco-
nhecida como um possível erro. Mas
o que mais preocupações levantou no
Terreiro do Paço foi o salário de Sérgio
Figueiredo e a forma como o assunto
foi noticiado, até por ser sensível po-
liticamente, dada a relação entre os
dois: Figueiredo contratou Medina
para comentar na TVI em 2015 e pos-
teriormente, de acordo com a revista
“Sábado”, e foi Medina a contratar
a empresa de Figueiredo para uma
campanha da autarquia de Lisboa a
que ainda presidia.
O objetivo era garantir que Figuei-
redo não terá um salário superior ao
do ministro, apesar de grande parte
da imprensa ter noticiado o contrário.
As contas podem ser feitas de diversas
formas, tendo em conta os diferen-
tes componentes de cada salário e o
número de prestações mensais que
cada um recebe. Na prática, o valor
total pelos 24 meses de contrato será
de €139.990 brutos, o que dará um
salário bruto mensal de €5832 brutos,
sem IVA, superior ao do ministro; se
TC ainda não validou a conta for anual, uma vez que um
declarações de rendimentos governante recebe 14 meses, acaba
por ser inferior.
Se nas Finanças houve uma tenta-
Mais de quatro meses após a tomada de posse, as declarações de tiva de conter os danos da polémica,
rendimentos dos membros do Governo não foram ainda validadas pelo no Governo houve uma diligência
Tribunal Constitucional (TC). Isto apesar de o Executivo ter menos 20% para dar garantias de que não há pro-
de governantes face ao anterior. Resultado? Não é possível ainda blemas com o escrutínio ao caso. No
consultar os documentos na quarta secção do tribunal liderado por briefing do Conselho de Ministros
João Caupers. Só a partir de setembro, na melhor das hipóteses. desta quinta-feira, o secretário de Es-
“Nesta fase, o Tribunal Constitucional está a terminar a validação das tado da Presidência do Conselho de
declarações entregues, sendo expectável que o processo fique Ministros, André Caldas, respondeu
concluído em breve”, disse fonte oficial do Palácio Ratton ao Expresso, o mesmo às diferentes perguntas: que
que tinha pedido para consultar a declaração de Fernando Medina. o assunto não tinha sido abordado
Questionado sobre se existem declarações em falta ou que tenham no Conselho de Ministros. Contudo,
sido entregues fora do prazo, o TC recusou responder antes de o quis deixar duas garantias. Primeiro,
processo estar concluído. Em causa está o facto de os titulares de que não há uma duplicação de tarefas
cargos políticos terem de entregar junto do TC, no prazo de 60 dias a com a entidade do Estado, a PlanApp,
contar da “data do início do exercício das respetivas funções, a que faz planeamento e avaliação de
declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e políticas. “Não há necessariamente
cargos sociais”. No Parlamento, só 23 dos 56 membros do Executivo é uma sobreposição das atividades
que entregaram o seu registo de interesses dentro do prazo limite, deste serviço” com a prestação de
como noticiou o “Público”. Segundo a Lei nº 25/95, de 18 de agosto, serviços de Sérgio Figueiredo. Segun-
cabe ao TC “receber e organizar o registo das declarações de do, que, caso entenda, o Tribunal de
património e rendimento de cargos políticos, bem como proceder à Contas pode fiscalizar esta prestação
sua análise e fiscalização”. Uma vez que o Governo tomou posse a 30 de serviços.
de março, todas as declarações de rendimentos deveriam ter sido Com Liliana Valente
entregues até 30 de maio. Liliana Coelho rdinis@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
RENTRÉE
Festa do Pontal Regresso ao calçadão
de Quarteira terá a governação socialista
como alvo. Nos bastidores, despontam
os homens do presidente e tenta
conter-se o “desconforto” parlamentar
Um
governo
na sombra
do PSD
U
Hélder Gomes
m novo líder entro-
nizado em congres-
so há pouco mais de
um mês, um discre-
to governo-sombra
em formação e uma
bancada parlamentar
ainda com alguns fo-
cos de “desconforto”.
Cinco anos depois, a Festa do Pontal
regressa este domingo ao calçadão de
Quarteira, no Algarve. É a reunião da
família social-democrata na tradicional
rentrée política do PSD. Mas o inevitável
apelo à união não esconde uma casa por
arrumar, sobretudo no Parlamento, e
reforça a tese da constituição de um
quartel-general forte em torno do líder.
Como habitualmente, o ponto alto
é a intervenção do presidente, agora
Luís Montenegro. Será um discurso
de “oposição forte ao Governo”, mas
também incluirá “propostas concretas
para o país”, apontando “caminhos para
a governação”, antecipa Hugo Soares,
secretário-geral do PSD, ao Expresso.
No entanto, “como é evidente”, não
se espere a apresentação de “um pro-
grama de governo”. Aliás, o dirigente
não deixa de anotar, “com regozijo”, o
que designa como “uma inversão muito
curiosa na política portuguesa”: “Há
uma expectativa maior em saber quais
são as posições do PSD do que propria-
mente as de quem governa o país, ainda
por cima com maioria absoluta.”
Este regresso ao Pontal cumpre “uma
das promessas de Montenegro”, a de
“aproximar o PSD dos seus militantes
e simpatizantes” e transformá-lo num
“novo PPD, um partido mais popular
junto das pessoas”, prossegue Hugo
Soares. De resto, nas últimas semanas,
Montenegro tem apostado numa pre-
sença assídua em feiras e no tal contacto
de proximidade. Este domingo será “a
expressão máxima da união”, havendo
a expectativa de a festa receber “muitas
centenas” ou até “acima de um milhar
de pessoas”, refere o secretário-geral.
O contacto mais próximo com a popu-
lação é entendido como a afirmação de
um novo estilo de liderança, que rompe
com o do seu antecessor, Rui Rio. Con-
tudo, também há quem se queixe que “a
coisa anda muito fechada e controlada”
em vários dossiês, incluindo nas audi-
ções internas sobre o novo aeroporto. O
vice-presidente Miguel Pinto Luz tenta
pôr água na fervura. “A seu tempo, o
PSD tomará uma posição e pela voz do
próprio líder”, assegura ao Expresso.
“Se fosse o PSD antigo, se calhar já tinha
tomado uma posição. Somos sérios na
oposição que fazemos”, reforça.
Homens de confiança
Fontes ouvidas pelo Expresso sinalizam
que se está a perfilar cada vez mais um
núcleo duro de homens de confiança
de Montenegro, eventualmente des-
guarnecendo a articulação com uma
bancada parlamentar que ele não es-
colheu — e de que não faz parte como
deputado —, mas onde impôs um novo
líder. Esse núcleo duro coincide, como
seria expectável, com os membros da
Comissão Política Nacional, com re-
latos nos bastidores de atribuição de
pastas pelos seis vice-presidentes. Não é
público quem ficou com que competên-
cias, mas as conferências de imprensa
recentes de Pinto Luz sobre energia e
de Paulo Cunha sobre segurança têm
sido lidas como indicativas das pastas de
cada um. Já para António Leitão Amaro
ficará a pasta do Orçamento, um tema
que irá entrar na discussão política a
partir de setembro. Paulo Rangel, como
eurodeputado, assumiria os Assuntos
Europeus e os Negócios Estrangeiros,
ainda que já tenha falado publicamente
sobre Proteção Civil, Saúde e regionali-
zação. Sendo o primeiro dos vice-presi-
dentes, entende-se a maior abrangência
de temas que aborda.
“É evidente que cada membro da Co-
missão Política Permanente terá sobre
ele algumas responsabilidades que têm
a ver com as suas próprias apetências”,
diz ao Expresso fonte próxima da di-
reção, que desconhece se Montenegro
comunicará formalmente à imprensa
uma eventual “distribuição de pelou-
ros”. Por outro lado, a constituição dis-
creta de um governo-sombra deixa na
penumbra uma bancada formada por
alguns deputados que ainda se sentem
desconfortáveis com a imposição de
um novo líder parlamentar, Joaquim
Miranda Sarmento, e a redistribuição
dos vice-presidentes da bancada e dos
coordenadores e vice-coordenadores
das comissões parlamentares. Acresce
que na elaboração da lista dois deputa-
dos foram convidados e, à última hora,
desconvidados por alegada pressão das
distritais.
Em rigor, em apenas três meses, o
PSD passou de ter uma liderança da
bancada parlamentar apoiada por 92%
dos seus deputados para uma outra que
não chegou aos 60%. A composição
da bancada é a mesma, os rostos da
liderança é que mudaram: Paulo Mota
Pinto, indicado por Rio, foi substituído
por Miranda Sarmento, escolhido por
Montenegro. O “desconforto” com um
processo que, apesar de “legítimo”, foi
Luís Montenegro tem
apostado numa presença
assídua em feiras e no
contacto de proximidade
FOTO SÉRGIO AZENHA/LUSA
DATAS
12 DE AGOSTO, INICIATIVA LIBERAL
Festa A’gosto da Liberdade, na Praia
da Rocha, com o lema “Libertar
Portugal do Bloco Central”.
25 DE AGOSTO, CHEGA
Rentrée do partido de André Ventura
no Casino de Vilamoura.
25-28 DE AGOSTO, PS
Acampamento de Verão da JS, na
Praia de Santa Cruz. Encerramento
com António Costa.
26-28 DE AGOSTO, BE
Fórum Socialismo, em Coimbra.
Arranque com a sessão
internacionalista “A Europa dos Povos”.
29 DE AGOSTO-4 DE SETEMBRO, PSD
Universidade de Verão, com a ex-líder
do CDS Assunção Cristas, o antigo
presidente do PSD Marques Mendes e
o socialista Francisco Assis entre os
oradores. Em Castelo de Vide.
2-4 DE SETEMBRO, PCP
Festa do “Avante!”, na Quinta
da Atalaia, no Seixal.
7-11 DE SETEMBRO, PS
Academia Socialista, com a JS e os
eurodeputados do PS, na Batalha.
No último dia, António Costa discursa
no Mercado de Sant’Ana, em Leiria.
“desnecessário” é apontado por alguns
parlamentares ao Expresso. Um deles
chega mesmo a afirmar que se vai “no-
tar muito a ausência de deputados” no
Pontal. Outro diz não se recordar, em
edições anteriores da festa, de “tanta
pressão” para os deputados confirma-
rem a sua presença.
Para o regresso da atividade par-
lamentar em setembro é necessária
“uma boa articulação” entre os vice-
-presidentes da bancada, os coorde-
nadores das comissões e os restantes
deputados. Sem isso, dificilmente se
conseguirá “uma verdadeira oposi-
ção forte”, vaticinam. Mas também há
quem, apesar do “desconforto”, defen-
da que é preciso “dar tempo e não pre-
judicar” as novas lideranças, tanto do
partido como do grupo parlamentar.
Dar tempo para a nova direção se “afir-
mar” e para se perceber o resultado da
“mudança de estratégia”, para “uma
oposição mais vocal e acutilante”. Na
rentrée parlamentar, a discussão do
Orçamento do Estado para o próximo
ano é vista como “muito importante”,
sendo necessário “perceber onde o
partido vai apostar”.
hgomes@expresso.impresa.pt
PRIMEIRO CADERNO 11
IL prevê
“desgraça”
na
Educação
Liberais são os primeiros
a lançar o novo ano
político. Degradação dos
serviços públicos deve
dominar discurso do líder
Prefere não lhe chamar rentrée,
porque ainda não foi de férias.
Mas o líder da Iniciativa Libe-
ral (IL), Cotrim Figueiredo, será
efetivamente o primeiro a inau-
gurar esta sexta-feira a nova tem-
porada política, dois dias antes
da tradicional festa do Pontal, do
PSD. A segunda edição da festa
A’gosto da Liberdade terá como
palco a Praia da Rocha, junto à
Fortaleza de Santa Catarina, em
Portimão, onde o momento alto
será a intervenção de João Co-
trim de Figueiredo.
O discurso, ao que o Expresso
sabe, será marcado pela denún-
cia de degradação dos serviços
públicos — desde o caos nas ur-
gências à falta de professores —,
com críticas ao Governo e ainda
farpas ao bloco central. Mas não
só. A ênfase na Educação pren-
de-se com o início do próximo
ano letivo dentro de semanas —
uma “pequena desgraça” — ante-
cipa a IL, com a previsão de falta
de professores numa parte signi-
ficativa de turmas e a preparação
das jornadas parlamentares do
partido, agendadas para 19 e 20
de setembro, sob o mesmo tema.
A nível da Saúde, Cotrim de
Figueiredo deverá abordar o
caos nas urgências nos últimos
meses, nomeadamente nos ser-
viços de ginecologia/obstetrícia
de vários hospitais, e atacar as
opções do Executivo sobre o
SNS. Aliás, durante a manhã
desta sexta-feira, o líder dos
liberais reúne-se com a presi-
dente do conselho de adminis-
tração do Centro Hospitalar
Universitário do Algarve, Ana
Varges Gomes, para debater as
dificuldades da contratação de
médicos, assim como o estado
em que se encontra o projeto
do Hospital Central do Algarve.
A mensagem do líder da IL terá
ainda como foco outra questão
mais curiosa: a valorização da Ad-
ministração Pública. Será de es-
perar que insista na necessidade
de recolocar o Estado ao serviço
das pessoas, através de trabalha-
dores mais motivados, melhor
avaliados e mais bem remune-
rados. Mas também uma Admi-
nistração Pública mais reduzida,
longe dos 741 mil funcionários
públicos atuais, um recorde da
última década. E que promova a
cultura de mérito e evite “nomea-
ções por compadrio”.
Já no plano mais político, o li-
beral deverá voltar a tecer duras
críticas à “propaganda” do PS e
aos entendimentos do bloco cen-
tral, depois de António Costa ter
estado reunido durante mais de
três horas no primeiro encontro
com Luís Montenegro, o novo
líder do PSD. Contra a “lógica
do bipartidarismo”, apontará o
dedo às políticas dos sucessivos
governos do PS e PSD nos últi-
mos 48 anos. Porque “se há res-
ponsáveis pelo país estar assim,
é por causa dos dois partidos do
sistema”, atira fonte do partido.
De olhos postos na Festa do Pon-
tal, Cotrim de Figueiredo deverá
seguir, no domingo, o discurso
do novo líder: com mais “curio-
sidade” do que “expectativas”,
admite. “Gostava de contar com
um parceiro não socialista e que
fosse reformista. Coisa que o
PSD parece que deixou de que-
rer ser há muito tempo”, diz ao
Expresso.
Liliana Coelho
lpcoelho@expresso.impresa.pt
12 PRIMEIRO CADERNO
DEFESA
Atrasos nas próteses deixam deficientes
militares em “prisão domiciliária”
Há mutilados da guerra meses à espera de material. Continuam a sentir-se tratados como “carne para canhão”
Texto Vítor Matos
Fotos Tiago Miranda
O furriel Carlos Fanado foi
o único sobrevivente do últi-
mo grande ataque do PAIGC
na Guiné-Bissau, já no fim da
Guerra Colonial. A emboscada
apanhou-o no dia 22 de março
de 1974, a um mês e dois dias do
25 de Abril: “Os que iam comigo
na viatura morreram todos... eu
perdi as duas pernas.” Numa,
foi amputado acima do joelho.
Na outra, usa uma bota “de ca-
racterísticas muito especiais”,
feita por medida na Alemanha.
“Assim que fiquei amputado
mandaram-me para a Alema-
nha e estive lá um ano para me
porem a andar”, recorda. Aos
71 anos, desde janeiro que está
limitado às muletas, quando o
médico do Hospital das Forças
Armadas lhe prescreveu uma
nova ida à Alemanha para refa-
zer o encaixe da prótese. Mas o
processo não avançou ao longo
de oito meses e este bancário
reformado, a viver em Cas-
cais, não sabe nem como nem
quando será resolvido. “Estou
nisto... não sei nada da minha
vida. Tenho de andar de mule-
tas, com problemas de coluna —
para não falar dos psicológicos
—, e recusam-me o tratamento
a que tenho direito”, desabafa,
com irritação, impaciência e
revolta: “Fui como carne para
canhão, mandado para lá, estive
três anos no Hospital Militar
e agora estou nesta situação
porque os senhores militares
me recusam assistência.” O Or-
çamento do Estado tem previs-
to €20 milhões anuais para os
deficientes das Forças Arma-
das e apresenta como objetivo
“apoiar a saúde, a qualidade de
vida, a autonomia e o envelhe-
cimento saudável de antigos
combatentes e, em concreto, de
deficientes militares, por forma
a prevenir a sua dependência,
precariedade, isolamento e ex-
clusão”. Mas o Expresso falou
com quatro ex-combatentes e
todos têm queixas semelhan-
tes, que garantem ser inéditas:
meses à espera de substituição
ou reparação de próteses, sem
que o Laboratório Militar lhes
dê um prazo. O desespero é de
tal ordem que um dos ex-mili-
tares com que o Expresso falou,
para além dos que são citados
neste artigo — e que preferi-
mos não identificar dado o tipo
de declarações —, ameaça com
atentados a políticos que ele en-
tenda terem responsabilidade
na situação.
Francisco Janeiro, presiden-
te da delegação de Lisboa da
Associação dos Deficientes das
Forças Armadas (ADFA), diz
ter uma lista de quase 30 ex-
-combatentes com problemas
urgentes de falta de próteses,
cadeira de rodas, espaldares
para o banho, aparelhos audi-
tivos ou baterias para cadeiras
elevatórias: “Até 2019 isto não
acontecia. Justificam que agora
tem de ser tudo orçamentado
e cabimentado. Até há dois ou
três anos o médico prescrevia
e mandava as pessoas para as
casas [especializadas em pró-
teses]. Agora dizem que não
O Laboratório Militar
não dá prazos aos
ex-combatentes para
lhes fornecer próteses
ou botas ortopédicas:
ficam remetidos à cama
ou à cadeira de rodas
há dinheiro.” Este responsável
teve uma reunião, na segunda-
-feira, no Laboratório Militar,
onde lhe terão dito “que estão
à espera de cabimentação or-
çamental”. E lamenta: “Somos
feridos da guerra colonialista,
perdemos lá tudo, os pés, as
mãos, os braços, os olhos... e
o Governo português não quer
saber de nós para nada. Há pe-
didos feitos desde 2021 que não
estão a ser satisfeitos.”
Eram 21h15 do dia 9 de junho
de 1971. Nesse minuto, num
bombardeamento que fez mor-
tos e feridos na Guiné-Bissau,
Augusto Silva Matos perdeu as
duas pernas. Ficou amputado
acima dos joelhos. “Até agora,
nunca tinha tido problemas em
arranjar as próteses”, comenta
ao Expresso. Há dois meses que
ambas as próteses precisam de
arranjo. “Eles disseram-me: ‘O
melhor é você esperar, que isto
está muito mau, o seu remédio
é esperar.’” Este operário têxtil
reformado, de Barcelos, conta
que antes bastava a prescrição
médica para poder consertar
ou comprar as próteses. Hoje,
uma vida já de si difícil — a que
se juntam outros problemas de
saúde — tornou-se num inferno:
“Estou na cama ou vou para a
cadeira de rodas. Já caí duas ve-
zes, porque o pé esquerdo não
se segura.” A raiva transparece
na conversa com o Expresso:
“Quando fui chamado para a
tropa apresentei-me, senão ti-
nha a GNR à porta, e já tinha
duas filhas pequenas. Agora
para me arranjarem uma pró-
tese é isto...”
O presidente da direção da
ADFA, coronel Santa Clara
Gomes, diz que “as verbas or-
çamentadas correspondem ao
necessário”, mas “o problema
é como são administradas”.
Um dos entraves tem a ver
com as verbas do Orçamento
do Estado para os deficientes
serem misturadas, no Institu-
to de Ação Social das Forças
Armadas (IASFA), com as con-
tribuições dos militares para
o seu subsistema de saúde (a
ADM), que é suborçamentado
e está em défice permanente.
A ADFA defende a separação
do apoio social aos deficientes
— obrigatório para o Estado
—, para não se confundir com
as contribuições dos militares
para a ADM. Outro “nó górdio”
são os procedimentos contra-
tuais ou “embrulhadas adminis-
trativas”, como Santa Clara lhes
chama: é preciso o Laboratório
Militar fazer concursos para
o fornecimento das próteses,
alguns ficam desertos, depois
passa-se a ajuste direto. Feitas
as adjudicações, há os plafonds
para cada um dos fornecedores,
que se esgotam, o que obriga à
abertura de novos procedimen-
tos. “Um deficiente militar à
espera de uma prótese está em
prisão domiciliária”, lamenta.
Moçambique. No dia 6 de
março de 1972 uma mina re-
bentou a perna direita ao al-
feres miliciano comando José
Marto Dias. Foi amputado
abaixo do joelho. Em fevereiro
deste ano o médico do Hospi-
A revolta leva
um antigo combatente
mutilado a ameaçar
políticos que
apareçam na
sua terra ou
a fazer um atentado
Expresso, 12 de agosto de 2022
Carlos Costa (à esquerda) espera há oito meses por umas
botas ortopédicas. José Marto Dias (em cima) desespera
desde fevereiro por um encaixe para a prótese. O processo
de Carlos Fanado (em baixo) está parado desde janeiro
tal das Forças Armadas pres-
creveu-lhe um novo encaixe,
porque o coto começava a ficar
ferido: “O médico mandou a FRASES DE REVOLTA
proposta de encaixe para o La-
boratório Militar e está lá até “Um deficiente
hoje.” Entretanto, também se
partiu a prótese que usava para militar à espera de
fazer a hidroginástica, uma uma prótese está em
atividade que não funcionou prisão domiciliária”
durante a pandemia. Este an-
tigo bancário, de 75 anos, anda Coronel Santa Clara Gomes
Presidente da Associação dos
agora “o mínimo possível” com Deficientes das Forças Armadas (ADFA)
a prótese que o magoa. “Tenho
dores nas costas pela falta de
movimento e já nem tenho a
ajuda da hidroginástica para “Estou na cama ou
compensar. Sempre que pre- vou para a cadeira
cisei nunca tive problemas”, de rodas. Já caí duas
sublinha. Tudo mudou: “No
início do ano era porque não
vezes porque
havia orçamento. Agora não o pé esquerdo
sei o que é...” não se segura”
Augusto Silva Matos
Angola, 1970, junto à frontei- Ex-combatente com
ra com o Congo, Carlos Cos- as pernas amputadas
ta, mais tarde funcionário das
Finanças, foi ferido por uma
mina no mato. Acabou por não “Fui para a Guiné
ser amputado, mas tem um pé
rígido e sem mobilidade. Para como carne para
andar precisa de botas ortopé- canhão, e agora
dicas feitas à medida. O par que estou nesta situação
tem hoje está roto, estragado e
já não o consegue usar. As bo-
porque os senhores
tas gastam-se depressa. Foi ao militares me
médico no dia 2 de janeiro, que recusam assistência”
lhe passou a requisição para um Carlos Fanado
par novo. Até hoje. Tem 75 anos Ex-combatente com
e está à espera há oito meses. as duas pernas amputadas
“Neste momento estou quase
inválido para andar”, diz ao Ex-
presso. Também nunca lhe ti- “Somos feridos
nha acontecido. “A justificação
que me deram no Laboratório da guerra, perdemos
Militar é que estão à procura lá tudo, os pés,
de novos fornecedores. Não me as mãos, os braços,
convence...”
O Expresso questionou o Es-
os olhos... e o
tado-Maior-General das Forças Governo não
Armadas (EMGFA), responsá- quer saber de nós.
vel pelo Hospital das Forças Ar- Há pedidos desde
madas, que teve de se articular
com o Exército, do qual depende 2021 que não estão
o Laboratório Militar, mas não a ser satisfeitos”
foi possível receber as respostas Francisco Janeiro
até ao fecho desta edição. Presidente da delegação
vmatos@expresso.impresa.pt de Lisboa da ADFA
Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 13

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14 PRIMEIRO CADERNO
ESTRATÉGIA
Marcelo antevê ciclo um ano mais curto
O ciclo de ação do chefe de Estado termina em setembro de 2025, quando perde o poder de dissolução da AR
Textos Vítor Matos
Marcelo Rebelo de Sousa já as-
sumiu ser “para levar a sério” a
jura de António Costa de ficar
aos comandos do Governo até
ao fim da legislatura, quando
disse acreditar que este não vai
para Bruxelas antes de acabar o
mandato, admitiu ao podcast de
Francisco Pinto Balsemão “Dei-
xar o Mundo Melhor”. Mas uma
coisa é ficar. Outra são os tempos
políticos. E, nas contas de Marce-
lo, o analista — que toda a vida fez
o exercício de testar o calendário
para definir a sua própria atua-
ção —, o ciclo da ação de Belém
termina, de facto, um ano antes
das legislativas, em setembro de
2025, quando o Presidente da
República perde os poderes de
dissolução da AR. E se António
Costa deve ter obra consolidada
antes do verão de 2026, porque
as legislativas serão realizadas
em outubro eventualmente com
outro líder socialista à cabeça do
partido, isso também lhe encurta
a margem de manobra na reta
final do mandato.
Na visão ‘macro’ de Belém so-
bre os anos que se avizinham
— uma eternidade cósmica em
política —, o ano de 2025 será
o mais decisivo. Entretanto, as
europeias de maio de 2024 vão
servir de barómetro para se
perceber em que grau os elei-
tores vão castigar a maioria e
para testar a liderança de Luís
Montenegro pela primeira vez
numa eleição muito livre para
os eleitores, que colocam ao PSD
o desafio de recuperar os votos
que lhe fugiram para a direita,
para o Chega ou para a Inicia-
tiva Liberal. Para Marcelo, um
resultado de 32% a 34% já seria
bom para os sociais-democratas
se lançarem para as legislativas.
O ano seguinte será politica-
mente mais forte, marcado por
decisões partidárias, pela defini-
ção do perfil de candidatos presi-
denciais, em que se vai perceber
de forma mais clara quem avan-
ça. Uma discussão que o Presi-
dente também já fez acelerar ao
passar a ideia de que, ao receber
Augusto Santos Silva e André líder do PS. Nesse momento,
Ventura, estava a receber dois Costa sai do Governo e passa os
candidatos à sua sucessão. Mas comandos à número dois Maria-
2025 será assim o ano que vai na Vieira da Silva? Nesse caso,
ajudar a definir as estratégias falhava a jura de cumprir o man-
eleitorais para os combates de dato até ao fim. Ou o novo líder,
2026: não só nas presidenciais uma vez eleito, sai do Governo
de janeiro como nas legislativas para se dedicar ao partido e ao
e autárquicas do último terço do ciclo seguinte, seja Pedro Nuno
ano. Com uma questão em aber- Santos, Mariana Vieira da Silva,
to que será decisiva para lançar Fernando Medina, Ana Catarina
o ciclo seguinte: quando é que Mendes ou Pedro Adão e Silva?
António Costa será substituído Em qualquer dos cenários, a
na liderança do PS? reta final do mandato de António
Costa e do próprio Governo seria
A SUCESSÃO mais limitada politicamente. Em
Quando, Pedro Nuno? teoria, no entanto, numa fase em
que o Presidente cessante não
Se o PS seguir o calendário ofi- pode dissolver o Parlamento, o
cial, o congresso para decidir primeiro-ministro teria mais li-
o futuro do pós-costismo deve berdade de ação. Em 1995, quan-
realizar-se em 2025. É claro que do Cavaco Silva deixou a lideran-
os partidos têm sempre manei- ça do PSD e o partido escolheu
ra de os adiar e de realizar con- Fernando Nogueira, o Presiden-
gressos extraordinários, mas o te Mário Soares vetou a promo-
futuro líder socialista precisará ção do então ministro da Defesa
de tempo para se consolidar e a vice-primeiro-ministro e teve
preparar a disputa do outono o impulso de dissolver, uma ten-
de 2026. Um congresso do PS tação que apanhará Marcelo de
realizado nos últimos três meses mãos atadas pela Constituição
de 2025 cairia numa fase em (os Presidentes não podem dis-
que o Presidente já não pode solver a Assembleia nos últimos
dissolver o Parlamento e servi- seis meses de mandato). O que
ria para aclamar um candidato preferirá Costa: adiar o mais pos-
presidencial — que poderá ser sível a sucessão, arriscando uma
Augusto Santos Silva. Resta guerra interna no Governo en-
saber o que fará António Cos- tre os potenciais candidatos, ou
ta, que em algum momento do fechar o processo relativamente
seu mandato terá de sobrepor cedo para as feridas poderem
a chefia do Governo com outro sarar ao longo de 2026?
O ‘pica-balões’ não pica Medina (mas ficou surpreendido)
O Presidente da República aqui apoiou António Costa),
descreve a sua ação avisou para os problemas de
preventiva como a daquele liderança e sobreposições
que pica os balões antes que que pode esconder o Estatuto
cresçam demais, para evitar do SNS (aqui criticou) e
um estoiro maior. Na tentou esvaziar o protesto de
entrevista ao podcast de zelo dos profissionais de
Francisco Pinto Balsemão, saúde que assinam escusas de
Marcelo voltou a sublinhar o responsabilidade nos
conceito: “As declarações que hospitais onde entendem não
faço são todas intencionais e ter condições. “Isso não vale
visam picar balões.” Nas nada juridicamente”, disse na
últimas semanas tentou entrevista de ontem,
picar o balão da polémica da quinta-feira, à CNN Portugal.
Endesa com o Governo (e No entanto, apesar dessa
Entre todas estas questões em
aberto, sobressai uma certeza.
Apesar de Pedro Nuno Santos
estar fragilizado por causa do
puxão de orelhas público de An-
tónio Costa e do ato de contri-
ção pelo ‘Aeroportogate’, con-
tinua a ser o mais bem colocado
dirigente socialista para liderar
o partido no próximo ciclo e o
que vai lançando as suas semen-
tes nas estruturas. Se a maior
parte do aparelho já é composto
de ‘pedroninismo’, o aspirante
a líder terá a oportunidade de
reforçar o seu peso nas eleições
internas que terão lugar até ao
final deste ano para as federa-
ções distritais e concelhias.
PRESIDENCIAIS
Concorrência espreita
Para Marcelo, o ano de 2025 tra-
rá um fator de concorrência adi-
cional. Enquanto procurará uma
forma de sair de cena em alta,
terá na praça pública a competi-
ção e eventuais críticas dos possí-
veis ou assumidos candidatos ao
cargo. Na área do PS, Augusto
Santos Silva já se posicionou, de-
pois de ter mantido essa hipótese
em aberto em entrevistas à Re-
nascença, à RTP e ao Expresso.
Do ponto de vista da análise feita
em Belém, uma candidatura do
presidente da Assembleia da Re-
pública deve procurar agregar a
esquerda, dada a polarização de
“responsabilidade acrescida,
que justifica até, às vezes,
aquilo que alguns
consideram uma
sobre-exposição, que é estar
lá a picar o balão e a
controlar preventivamente”,
o Presidente não vai a todas.
É o caso da polémica desta
semana da contratação do
jornalista e economista
Sérgio Figueiredo para
consultor de Fernando
Medina no Ministério das
Finanças. Embora em Belém
Expresso, 12 de agosto de 2022
O Presidente gosta de testar
Santos Silva com o Chega no Par-
lamento, isto apesar de o antigo
ministro dos Negócios Estrangei-
ros não ter sido um entusiasta da
‘geringonça’ e de representar um
PS mais moderado ou à direita do
que o de Pedro Nuno Santos. De
resto, os debates parlamentares
e a fricção de Ventura com o nú-
mero dois do Estado são aprecia-
dos em Belém como “cénicos” e
não são para levar a sério senão
como pontos de apoio para pre-
sidenciais e legislativas.
Nas análises do Presidente,
não está excluído o cenário de
uma eventual candidatura do
almirante Gouveia e Melo, que
já apareceu numa sondagem
muito à frente de Luís Marques
Mendes ou de Paulo Portas nas
intenções de voto. Se Marcelo
conjetura que André Ventura
avaliará uma candidatura em
função do que o atual chefe da
Marinha fizer, o almirante só
deve ponderar essa possibilida-
de se o centro estiver ameaçado,
ou seja, caso o líder do Chega
tenha reais possibilidades de
ser eleito.
ANTÓNIO COSTA
O “mata-borrão”
otimista
Se o PSD não está satisfeito por
continuar a ver Marcelo cola-
do a Costa, como escreveu o
se considere que Marcelo
não se pode andar a
pronunciar sobre todas as
nomeações — algo em que
um ministro das Finanças
deve ter muito cuidado —, o
Presidente ficou
surpreendido com o estatuto
ministerial de Sérgio
Figueiredo por via do salário
equivalente ao de ministro.
Marcelo não deverá, em
princípio, falar do caso, mas
isso depende sempre da
dimensão que o balão ganhar.
o calendário para definir
a sua própria atuação
FOTO PAULO NOVAIS/LUSA
“Observador” esta semana, o
Presidente não percebe muito
bem o ponto de vista da direção
social-democrata, por entender
que até foi muito duro na rea-
ção ao estatuto do SNS (embora
depois tenha estado ao lado do
Governo na polémica do preço
da eletricidade com a Endesa).
A leitura do Presidente após a
sardinhada da semana passada
em Alfama, com o primeiro-
-ministro, foi de que o socia-
lista está otimista sobretudo
do ponto de vista orçamental
e económico, apesar de o Go-
verno parecer politicamente
desgastado mesmo em início
de mandato.
O facto de Marcelo ter classi-
ficado Costa como um “mata-
-borrão” na entrevista que foi
transmitida esta quinta-feira
pela CNN Portugal — “mas
um bom mata-borrão” —, que
absorve rapidamente as crises
e “é muito rápido a sugar as
coisas”, deixa a entender que o
Presidente continua a confiar
que, apareça o que aparecer,
Costa terá jogo de cintura para
aguentar o Governo (vide a cri-
se com Pedro Nuno Santos).
Mesmo com os cenários de in-
certeza causados pela guerra
na Ucrânia ou pela inflação,
o chefe do Governo tem uma
boa folga orçamental (depois
de sete meses em duodécimos),
vai acelerar o PRR até ao fim do
ano (ver texto ao lado) e quase
poderá escolher se tem défice
ou superávite.
Nas sondagens pessoais que
vai fazendo quando se rodeia de
gente nas praias, no supermer-
cado ou em restaurantes (onde
perde tempos infinitos a tirar
as inevitáveis selfies), Marcelo
lê nos portugueses com quem
fala que ainda estão a reagir de
forma muito razoável à situa-
ção que estão a viver. Mas, em
tempos tão conturbados como
estes, a rigidez do calendário
pode ser enganadora. Tudo
pode mudar num instante. A
ação do Presidente também
depende muito da eficácia do
“mata-borrão” de São Bento...
vmatos@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
‘BAZUCA’
Governo
lança regime
especial para
acelerar PRR
O Presidente da República tem
pressionado a equipa de António
Costa com prazos. Novo pacote
legislativo em setembro
Liliana Valente
Uma das palavras de ordem
da rentrée do Governo vai ser
“urgência”. No caso, “urgência”
para acelerar a execução de
obras do Plano de Recuperação
e Resiliência (PRR), aceleração
que tem sido um dos pedidos
mais veementes do Presidente
da República ao Governo. Qua-
tro meses depois da pressão
pública de Marcelo Rebelo de
Sousa, que recebeu na altura os
partidos políticos para sinalizar
a preocupação com os atrasos na
execução do PRR, o Executivo
vai apresentar várias alterações
legislativas, que passam por uma
nova mudança no Código dos
Contratos Públicos (CCP) para
a criação de um novo regime es-
pecial que permite a adjudicação
de uma obra desde a sua conce-
ção à execução num só concurso,
mexidas nos licenciamentos am-
bientais e a aceleração de proce-
dimentos administrativos.
Se a execução do PRR já era
difícil, mais ficou com a guerra
na Ucrânia, apertando prazos,
dificultando o acesso a matérias-
-primas e encarecendo as exis-
tentes e aumentando a dificul-
dade de encontrar mão de obra.
Apesar de a Comissão Europeia
ter admitido a revisão de metas
intermédias para o desembolso
das tranches do PRR, não do pra-
zo final de conclusão em 2026,
estão milhões de euros em risco.
Por isso a ordem é para, de novo,
mexer nas diversas leis que pos-
sam criar entropias e entraves e
criar um “pacote de simplifica-
ção administrativa”, que conhe-
cerá a luz do dia em setembro.
A proposta do Governo que
pode ter mais impacto passa por
uma nova alteração ao CCP. Na
anteproposta de lei, que está em
consulta pública até ao dia 16 de
agosto, está previsto um “novo
regime de conceção-constru-
ção especial”, ou seja, um novo
modelo que permite que em
apenas um concurso seja adju-
dicada uma obra desde o seu
planeamento à construção, re-
duzindo o número de concursos
para uma só empreitada e, como
consequência, uma compressão
dos prazos totais.
O apressar das obras é o ob-
jetivo identificado na antepro-
posta de lei a que o Expresso
teve acesso, que diz que esta
alteração pretende possibilitar
“a eliminação de dispêndios de
tempo e recursos desnecessá-
rios”. Não é a primeira vez que
o Governo tenta implementar
um regime desta natureza, mas
tem conhecido várias críticas,
nomeadamente do Tribunal de
Contas, que considerava que au-
mentava os riscos de “conluio”.
Agora, o Governo admite que
não vai tão longe quanto estava
previsto e que esta não é uma
proposta fechada, querendo ain-
da trabalhar com a Ordem dos
Arquitetos, uma das entidades
que mais dúvidas e críticas teve
sobre o modelo.
PRIMEIRO CADERNO 15
Gente sobre o espaço e a vida para lá da
Terra era genuíno: a desfrutar das
suas habituais férias no Alto Minho,
o ex-líder do PSD tem partilhado no
Astérix e Obélix
com César
Twitter vários fun facts do espaço.
Primeiro foi uma explicação gráfica
sobre os anos-luz; depois foi uma
imagem do tempo nublado que se
E se ele “cava” dali? Manuel Pi-
fazia sentir em Marte. Não tendo
conseguido reformar a Terra, estará
Rui Rio a pensar tentar a sua sorte
noutro planeta?
nho, o ex-ministro da Economia de
Sócrates que está em prisão domi-
ciliária, pediu para ser aumentado
o raio da sua pulseira eletrónica de
Cortesias interpartidárias Joa-
quim Miranda Sarmento, o novo
líder parlamentar do PSD, fez 44
JORNADA Na visita que fez, na
semana passada, aos terrenos
onde irá decorrer a Jornada
modo a poder descontrair cuidando
da sua horta. Gente sabe de fontes
judiciais sempre bem informadas
que o juiz está com dúvidas, por-
anos há dias. E recebeu centenas
de mensagens no seu perfil de Fa-
cebook. Entre elas, uma do secretá-
rio de Estado dos Assuntos Fiscais.
Mundial da Juventude (JMJ), o
Presidente da República estava
imparável na sua tentativa de
desanuviamento do clima entre
que o ex-ministro está a pedir mais “Parabéns! Um abraço”, escreveu Governo e Câmara de Lisboa.
liberdade para poder cavar. Ora, o António Mendonça Mendes, num Mas nem todas as piadas caíram
risco é Manuel Pinho não só cavar as gesto de cortesia interpartidária, bem. A dada altura disse não
suas couves e batatas, como poder que Gente quer salientar. Mas Gen- ter dúvidas sobre o sucesso da
“cavar” dali. Gato escaldado... te também ficou a pensar se terá JMJ e a boa colaboração entre as
sido o secretário de Estado a re- Câmaras de Loures e Lisboa, até
E o E.T. sou eu? Rui Rio, irónico comendar a António Costa o livro porque os respetivos presidentes
como só ele, dizia muitas vezes e
com orgulho, que era um “extra-
“Reforma das Finanças Públicas em
Portugal”, de Miranda Sarmento,
“parecem o Astérix e o Obélix”.
Gente bem viu os sorrisos
terrestre da política”, um “E.T. que usado pelo primeiro-ministro para amarelos de ambos, em especial
vinha lá do Norte e que não perce- atacar o líder da bancada laranja no de Ricardo Leão. E Marcelo, seria
Nesta proposta o Governo não bia nada disto”. Afinal, o interesse debate do estado da nação. César? FOTO ANA BAIÃO
se concentra nas questões de
transparência destes contratos,
um assunto que valeu um veto
do Presidente da República em
2020. Ultrapassadas essas dú-
vidas presidenciais, o Executivo
foca-se em acelerar os concur-
sos para responder à outra exi-
gência de Marcelo, que pedia
ao mesmo tempo celeridade e
transparência, para evitar que
ao PRR fosse associada a ideia
de corrupção.
Na prática, com a terceira al-
teração em dois anos ao CCP, o
que o Governo quer é permitir
que este novo modelo especial se
aplique a mais casos, apesar de o
regime existente se manter para
obras de especial complexidade
técnica. A previsão é que tenha
um maior impacto nas obras de
habitação pública com finan-
ciamento do PRR, um braço
do plano português a cargo do
Ministério das Infraestruturas
e Habitação que ultrapassa os
€2,7 mil milhões.
Regime existente
mantém-se para
obras de especial
complexidade técnica
Na proposta que fez sair para
consulta pública, o Governo
estabelece que os critérios
de adjudicação de uma obra
avaliados pelos júris dos con-
cursos têm de ser objetivos e
que os critérios de valorização
estética e funcional, de caráter
subjetivo, devem ser discutidos
depois, já com o vencedor do
concurso no âmbito do con-
trato. Contudo, cria também
uma salvaguarda para garan-
tir a qualidade arquitetónica
das obras: o vencedor terá de
apresentar três propostas e
caso nenhuma seja adequada
o adjudicatário pode cancelar
o concurso.
Esta revisão do CCP faz ain-
da alguns ajustes à legislação,
depois de um procedimento de
infração da Comissão Europeia,
desde uma limitação dos ajustes
diretos (apesar de apertar o cer-
co na lei, pode não ter impacto
prático relevante) e acrescenta
mudanças ao abrigo da Agen-
da do Trabalho Digno, para se
mexer apenas uma vez no CCP.
Esta medida junta-se à legisla-
ção excecional de revisão de pre-
ços de empreitadas de obras pú-
blicas, mas mais virão na rentrée
política do Governo. Também
em consulta pública está uma
anteproposta de lei que prevê
a eliminação de “licenças, auto-
rizações, atos e procedimentos
desnecessários, simplifican-
do a atividade das empresas e
contribuindo para incentivar o
investimento pela redução dos
encargos administrativos e dos
custos de contexto”, e haverá
mais alterações a procedimen-
tos administrativos.
lvalente@expresso.impresa.pt
16 PRIMEIRO CADERNO
SO CIEDADE SECA
Ministérios
preparam
mais restrições
no uso de água
Fecho de piscinas e restrições nas
regas são hipóteses. Todo o país
está em seca severa ou extrema
Texto Carla Tomás
Fotos Rui Duarte Silva
Só dentro de 12 dias é que a Co-
missão Permanente de Preven-
ção, Monitorização e Acompa-
nhamento dos Efeitos da Seca,
que envolve os Ministérios do
Ambiente e da Agricultura, se
voltará a reunir para avaliar as
medidas propostas em junho e
anunciar novas soluções para
enfrentar a seca severa (55%)
e extrema (45%) em que está a
totalidade do território de Por-
tugal continental.
O Expresso apurou que há
uma reunião da referida Comis-
são marcada para 24 de agosto e
só então serão anunciadas novas
medidas para enfrentar o pro-
blema. Estas podem passar pelo
fecho de piscinas e fontanários
municipais ou pela redução de
lavagens de ruas e de rega de
jardins e ainda por mais apro-
veitamento de águas residuais
tratadas.
Com rios, albufeiras e furos a
secar e enquanto se aguardam
decisões, já há autarcas a tomar
medidas à la carte. Já lá vamos.
Primeiro há que explicar o cená-
rio em que vivemos.
No início do mês, o Instituto
Português do Mar e da Atmos-
fera (IPMA) informou que 100%
do território se encontrava em
seca meteorológica severa ou
extrema e que o mês passado
foi o julho mais quente dos últi-
mos 92 anos, com a temperatura
máxima a chegar a uma média
de 33,16°C — uma anomalia de
+4,44°C. Simultaneamente, cho-
veu menos 78% do que o valor
normal para o mês, o que, a jun-
tar à evapotranspiração, deixou
parte do território com níveis
de humidade no solo abaixo de
10%.
Neste cenário não é de estra-
nhar que as 60 bacias hidrográ-
ficas monitorizadas em Portugal
registem uma descida dos níveis
de água armazenada. Dados do
Sistema Nacional de Informação
de Recursos Hídricos indicam
que 26 albufeiras têm disponi-
bilidades hídricas abaixo de 40%
do volume total, sendo que em
situação crítica estão as bacias
do Barlavento algarvio (11,4% do
volume total) e do Lima (17,4%).
Esta realidade já obrigou a con-
dicionar a produção hidroelétri-
ca na maioria das barragens e a
suspendê-la nas do Alto Raba-
gão, Lindoso e Vilar de Tabuaço.
Torneiras sem água
Apesar das campanhas de sen-
sibilização para que todos ado-
tem pequenos gestos para evi-
tar o desperdício de milhares
de litros de água — fechando
a torneira quando se lava os
dentes, reutilizando água ou
evitando lavar carros e quintais
à mangueirada e encher pisci-
nas —, a verdade é que estas
práticas estão longe de estar
generalizadas. Mas há muni-
cípios que já avançaram com
restrições no uso de água.
Os 16 concelhos do Algarve
vão fechar as piscinas muni-
Vilar, em Moimenta da Beira, uma das maiores
albufeiras do país, está transformada num quase
deserto, e é agora possível transpor os 9 km
da barragem de carro. À direita, o descarregador
de superfície da Faia (Sernancelhe) está a seco
cipais e Loulé antecipou-se à
decisão da Associação de Mu-
nicípios (AMAL), tendo já en-
cerrado as piscinas cobertas
do concelho. “Isto permite no
final do mês poupar água que
dá para satisfazer o consumo
médio de 96 agregados fami-
liares”, explica ao Expresso o
autarca Vítor Aleixo. “Há al-
deias no interior algarvio onde
a água não chega já à tornei-
ra.” O autarca teme que surjam
tensões sociais, quando se olha
para a rega nos pomares de
citrinos. No caso dos campos
de golfe, já se utilizam águas
residuais tratadas.
Também em Lisboa as águas
tratadas da ETAR de Beirolas
regam o Parque das Nações e a
Câmara quer estender o proje-
to a outras ETAR e jardins da
cidade, e ainda utilizar água
não potável do aqueduto para
rega. Mas ainda não fechou as
piscinas que se enchem com
água que vem de Castelo de
Centenas de
localidades e freguesias
do país estão a ser
abastecidas por
camiões-cisterna
Bode. No Porto aposta-se em
plantas menos exigentes e em
sistemas de rega automatiza-
dos. E o município conseguiu
reduzir as perdas de 54% em
2006 para 14,8%.
Em Bragança, a autarquia já
acionou medidas preventivas,
que passam pela redução dos
tempos de rega dos espaços
verdes ou aplicação de reduto-
res de água nas torneiras e nos
autoclismos dos equipamentos
municipais e pela execução de
novos furos artesianos para as-
segurar o fornecimento de água
nas localidades cujas captações
secaram, indica o presidente
E
da Câmara, Hernâni Dias. “É a
pior seca de que há memória”,
diz. Para evitar o agravamento
da situação, numa altura em
que cresce a população flutuan-
te com a chegada de emigrantes
e turistas, o transporte de mais
de 6000 m3 de água potável é
assegurado em autotanques,
que saem da cidade para servir
3900 habitantes de 114 aldeias
ou lugares do concelho.
Não se sabe ao certo quantas
localidades e freguesias do país
estão a ser abastecidas por ca-
miões-cisterna, mas fonte da
Agência Portuguesa do Ambi-
ente diz que “são centenas”.
Na Comunidade Intermunici-
pal (CIM) do Alto Minho, já se
assumiu a possibilidade de se
cortar a água durante a noite
em vários municípios.
Em junho, o Governo assegu-
rava que Portugal tinha água
para abastecer a população
durante dois anos, mas há con-
celhos, como o de Carrazeda de
Ansiães, que podem ficar sem
água já em setembro.
Com Isabel Paulo
ctomas@expresso.impresa.pt
Desespero Populações mais afetadas fazem o
que podem para conseguir arranjar mais água
Rios secos,
água cortada,
regas
suspensas
Amadeu Araújo
m Alcoutim, às primei-
ras horas da manhã ainda
se regam os jardins com
água pública. O Guadiana
mostra-se robusto, Ode-
leite tem 56 mil metros
cúbicos na barragem, mas
a ribeira é um fio de água. No outro
lado do Algarve, no Barlavento, a ba-
cia hidrográfica está no mínimo, com
a Albufeira da Bravura a 11% da sua
capacidade total. Alentejo acima, a la-
voura continua a safra, a vindima está
em curso e a água do Alqueva mantém
os campos verdes. É preciso subir à
Beira para perceber o desespero das
populações. O Dão, rio que alimenta
o Mondego, está a meio vau. A ribeira
de Coja não tem pinga de água.
Em Forninhos, no concelho de
Aguiar da Beira, “a água foi cortada
durante a noite”, conta Agostinha Coe-
lho. Na manhã de terça-feira, Agos-
tinha conseguiu encontrar um poço
para se abastecer. Mas a bomba do
trator recusa-se a trabalhar. “Precisa-
mos de água, vamos trocar de bomba
e encher o pote.” O pote é um depósito
de plástico, aramado, com um metro
cúbico de capacidade. Estão por todo
o lado. Em cima de carrinhas, nos tra-
tores, à porta das casas, nas obras, nos
aviários, nas hortas.
A falta de água no concelho “é inqui-
etante”, explica o vereador Fernan-
do Pires. Com 300 aviários, “a maior
fonte de rendimento das populações,
há quem já não receba frangos”. O
concelho “abandonou as antigas cap-
tações de água desde que a barragem
foi construída e em anos de seca dei-
xou de ter alternativas”.
A Barragem da Fumadinha fica do
outro lado da aldeia. No caminho, um
depósito de cimento escorre copio-
samente água para a terra. Ninguém
fechou a torneira, que refresca o dia
com 39°C. Mais potes de água junto
BALDES, CÂNTAROS
E POTES, TUDO SERVE
PARA TRANSPORTAR
ÁGUA. E SE O RIO RECUA,
PUXAM-SE PARA
A FRENTE BOMBAS
E MANGUEIRAS
Expresso, 12 de agosto de 2022
às vinhas e pomares. A barragem tem
água, mas o regolfo está ressequido. O
abastecimento está a ser “racionado”
e as antigas captações “recuperadas”,
descreve Fernando Pires.
A falta de água no Dão sente-se em
Mangualde. “Estamos a usar seis ca-
miões-cisterna para transportar 500
mil litros de água ao dia e abastecer 13
localidades”, revela Marco Almeida,
presidente da autarquia.
Já em Viseu, que utiliza a mesma Bar-
ragem de Fagilde, a falta de água não
preocupa. Na Avenida Europa foi insta-
lado um parque aquático, que acumula
900 mil litros de água.
As vindimas estão a chegar “e vai
ser precisa muita água”, reconhece
Manuel Cordeiro, presidente da Câ-
mara de São João da Pesqueira, já no
Douro. O concelho, tal como Foz Coa
e Meda, é abastecido pela Barragem de
Ranhados, “onde estão 800 mil metros
cúbicos, se forem escorridas as lamas
do fundo, o chamado volume morto”.
Com um gasto mensal de 200 mil me-
tros cúbicos, “em setembro vamos
deixar de ter água”, avisa.
Autotanques vão às aldeias
Tal como noutros concelhos, a popula-
ção no verão duplica, devido ao regres-
so dos emigrantes, mas “isso não foi
tido em conta nos estudos”, esclarece.
Sem respostas do Estado, “a autarquia
chegou-se à frente”. Noite e dia há uma
equipa a reparar perdas de água na
rede pública, foram suspensas as regas
e cortado o abastecimento gratuito.
Apesar dos constrangimentos financei-
ros. o concelho está a recuperar “todas
as captações e a fazer novos furos no rio
Torto”, explica o autarca.
A seca nota-se em todos os socalcos.
As vinhas estão amarelas, tombadas.
Em Sarzedinho a vindima será sacrifi-
cada. Mas há um plano, “já em testes”,
para aproveitar as águas residuais que
saem das estações de tratamento. Será
esta a água das vindimas, “gasta em
grandes quantidades nas lavagens das
adegas”. Outro plano é um transvase,
“ainda em estudo”, a partir da Barra-
gem de Ourosinho.
O Expresso questionou o Ministério
do Ambiente sobre a intenção de cons-
trução de transvases entre barragens,
mas não recebeu resposta até ao fe-
Expresso, 12 de agosto de 2022
cho desta edição. Também a Agência
Portuguesa do Ambiente (APA) não
confirmou se tenciona usar o volume
morto das albufeiras ou aproveitar
águas residuais. Através do seu gabi-
nete de imprensa, limita-se a informar
que foram tomadas medidas ao longo
do ano, as últimas das quais anuncia-
das após a reunião de 21 de junho da
Comissão Permanente de Prevenção,
Monitorização e Acompanhamento dos
Efeitos da Seca. Desde então não houve
mais nenhuma atualização.
No rio Távora (concelho de Tabua-
ço), “uma elétrica manteve as turbi-
nas da Barragem do Vilar a funcionar
até finais de maio e a água da albu-
feira foi esvaziada para a instalação
de painéis solares em 20 hectares”,
contam empresários, população e
fontes da autarquia. Os 15% de água
que sobram mostram uma terra a
ficar árida. A barragem tem nove
quilómetros de comprimento e capa-
cidade para 100 milhões de metros
cúbicos. O paredão, de 58 metros de
altura, está seco e os aviões de comba-
te a incêndios deixaram de abastecer
aqui. É possível atravessar de carro a
barragem, os banhistas passaram a
curiosos que vêm ver o “novo deser-
to do Távora”, lamenta Rita Lopes,
habitante da Faia. Falta água, res-
tam as mangueiras. “Se a água recua,
avançamos os canos da bomba para
regar”, explica outro morador.
Na Lapa, onde nasce o Vouga, a Fonte
dos Clérigos secou, o rio vai à mingua,
e em Sátão a autarquia construiu uma
conduta entre dois açudes e fez três no-
vos furos. “Cem mil euros de investimen-
to”, confirma o presidente da câmara.
Com o Vouga a secar, em São Pedro
do Sul há autotanques dos bombeiros
a abastecer aldeias e piscinas fechadas.
Um fio de água que vai mantendo a
população na expectativa das chuvas,
“poucas, e só na segunda quinzena de
agosto”, aponta o climatologista Mário
Marques. Após três anos sucessivos
de seca, seriam precisos “três meses
de chuvas para repor a normalidade”.
Lima, Ave, Minho e Douro, “onde os
espanhóis reduziram o caudal ao míni-
mo”, são as regiões mais afetadas. Tal
como a Beira e o Algarve.
O autarca de São João da Pesqueira
reconhece que o país “improvisa muito
e planeia pouco”. Mas prefere ser “oti-
mista” e acreditar que a seca servirá
para alertar “a população para utili-
zar melhor este recurso” e para que o
Governo “planifique melhor sistemas
alternativos de abastecimento”. No
fundo, que sejam desenhados planos
“ajustados à escassez” em que as po-
pulações já vivem.
sociedade@expresso.impresa.pt
Energia: medidas de curto
prazo serão insuficientes
Portugal só apresenta
plano para reduzir gastos
energéticos no fim do mês.
Ambientalistas pedem
mudanças estruturais
Com a crise energética e a crise
climática a entrarem-nos pela
porta adentro e os preços a dis-
pararem, reduzir consumos e
melhorar a eficiência será uma
inevitabilidade. E enquanto a
vizinha Espanha já apresen-
tou um conjunto de medidas
— como apagar a iluminação de
edifícios públicos ou de mon-
tras comerciais durante a noite
ou limitar a temperatura do ar
condicionado em escritórios,
cinemas e centros comerciais —
em Portugal aguarda-se que a
Agência para a Energia (ADE-
NE) as elabore até final de
agosto, para o Governo decidir.
Ao Expresso, o presidente
da ADENE, Nelson Lage, ape-
nas adianta que foram pedidos
“contributos a mais de 50 en-
tidades de todos os sectores” e
que “as medidas conjunturais
e estruturais implicam articu-
lação com os municípios” e a
aprovação final do Governo.
Estão a ser preparadas cam-
panhas de sensibilização para
poupança de eletricidade e de
gás e, para já, “não estão a ser
equacionadas multas”.
A pensar na “segurança ener-
gética” da União Europeia, os
Estados-membros devem di-
minuir em 15% o consumo até à
primavera de 2023. Portugal só
Em deverá cortar 7% por ter “fra-
Forninhos, cas interconexões”. A medida
Aguiar de Bruxelas (não vinculativa
da Beira, por enquanto) entrou em vigor
Agostinha esta terça-feira e visa criar uma
Coelho “almofada” para a eventual ru-
procura tura no fornecimento de gás
água para russo. Vários países estão já a
encher um tomar medidas.
depósito de Por cá, enquanto se aguarda
mil litros, um decisões, as associações am-
oitavo das bientalistas pressionam. En-
necessidades tre as medidas de aplicação
diárias dos mais rápida, a Zero, uma das
aviários que ouvidas pela ADENE, propõe
garantem reduzir a iluminação pública
o sustento (salvaguardando questões de
da aldeia segurança) ou a aposta no tele-
trabalho para reduzir o tráfego
e gastos de combustíveis; mas
também campanhas para in-
formar as pessoas sobre como
podem poupar energia calafe-
tando janelas ou beneficiar de
sistemas de água quente solar
nas habitações (ver caixa). “A
energia mais barata e limpa é
aquela que não se gasta”, su-
blinha a ambientalista Susana
Fonseca, lembrando que “re-
duzir o desperdício alimentar
ou tomar duches mais curtos
também permite poupar água
e energia”.
Em termos estruturais, a
aposta na reabilitação de edi-
fícios, para torná-los mais con-
fortáveis termicamente, e a
instalação de soluções de água
quente solar e de produção de
energia renovável descentra-
lizada, são outras soluções.
Delas é adepto o especialista
em energia António Sá da Cos-
ta. No seu caso, conta, a colo-
cação de dois painéis solares
térmicos no telhado do prédio
onde vive em Lisboa permi-
tiu-lhe “amortizar o investi-
mento em quatro anos e ter
água quente para banhos de
um agregado de quatro pes-
soas, sem custos nos próximos
26”. E lamenta que Portugal
tenha um quinto dos painéis
solares térmicos por habitante
comparado com a Alemanha,
quando regista o dobro das
horas de sol. Segundo Catari-
MEDIDAS E
RECOMENDAÇÕES
Sugestões da Zero
^ Reduzir a iluminação
pública, de monumentos
e lojas.
^ Limitar ar condicionado
a 18/19°C no inverno e 25/26°C
no verão.
^ Promover o teletrabalho
e reuniões digitais.
^ Melhorar a frequência e
fiabilidade dos transportes
públicos nas áreas
metropolitanas.
^ Acelerar programas de
reabilitação de edifícios para
torná-los mais confortáveis
do ponto de vista térmico.
^ Incentivar a instalação de
painéis de água quente solar
e a produção de energia
renovável descentralizada.
Propostas de municípios
^ Lisboa vai substituir 16 mil
luminárias de rua para reduzir
o consumo de 17,2 GWh para
5,2 GWh e apostar na eficiência
energética dos edifícios
municipais e em produção
fotovoltaica descentralizada.
^ O Porto vai substituir 26 mil
luminárias, elevando para 90%
a tecnologia LED na rua e
poupando €1 milhão por ano;
e prevê a produção
fotovoltaica em 29 coberturas
de edifícios municipais.
^ Leiria vai desligar a
iluminação de fontes
e monumentos municipais
e reduzir a intensidade
da iluminação pública.
PRIMEIRO CADERNO 17
na Freitas, diretora municipal
do Ambiente na Câmara de
Lisboa, está a ser feito um es-
tudo sobre o potencial solar
das coberturas na cidade.
João Joanaz de Melo, dirigen-
te do GEOTA e coordenador do
estudo “Estratégia energética
alternativa”, considera que “as
soluções que o Governo tem
apresentado são o equivalente
a tratar um cancro com uma
aspirina”. O professor da Uni-
versidade Nova de Lisboa lem-
bra que há anos que se fala em
medidas estruturais e defende
que “a única forma de o país se
precaver perante as tensões in-
ternacionais e a crise climática
é apostar na eficiência energé-
tica”. Num país onde 70% das
habitações estão longe de ser
climaticamente confortáveis
e 20% das pessoas vivem em
pobreza energética é preciso
subir a fasquia dos investimen-
tos. “Com medidas de incentivo
adequadas, que passam por de-
duções fiscais, é possível gas-
tarmos menos 23% da energia,
em todos os sectores, de forma
economicamente viável e com
ganhos de conforto”.
Critico dos programas de
apoio Edifícios + Sustentáveis
(que chegou a 106 mil candida-
tos) e do Vale Eficiência (que
chegou a menos de 20 mil fa-
mílias entre 800 mil com tarifa
social), Joanaz de Melo defende
que os investimentos têm de ser
outros. Nas suas contas, para
ajudar a melhorar a casa de três
milhões de famílias seriam ne-
cessários “entre 600 milhões e
mil milhões de euros por ano”,
dinheiro que podia ser conse-
guido “limpando um quarto das
distorções de mercado”, que
resultam, por exemplo, dos sub-
sídios atribuídos às empresas
de produção de energia. “Só
depende da vontade política”,
reforça. “É estúpido baixar ar-
tificialmente o preço da ener-
gia, quando o inteligente seria
aplicar esse dinheiro na ajuda a
tornar as casas e os transportes
públicos mais eficientes”.
Além da guerra e da crise dos
combustíveis fósseis, a seca que
assola 44% da Europa está a
travar a produção de outras
fontes que contribuem para o
‘mix energético’ europeu e naci-
onal. França já tem metade das
centrais nucleares paradas por
problemas técnicos, incluindo a
falta de água para arrefecer os
reatores. Por cá, a seca fez re-
duzir a produção hidroelétrica,
que em junho representou ape-
nas 12,7% do total de energia
distribuída e pouco mais de um
quarto dos GWh originada por
esta fonte no mesmo período
em 2020. C.T.
18 PRIMEIRO CADERNO
SAÚDE
José Fragata é um dos homens
da transplantação em Portugal.
Deixará de exercer dentro
de um ano, quando fizer 70
José Fragata Médico-cirurgião e professor universitário
“O SNS está preso
pela ideologia política”
Textos Joana Ascensão
Foto Ana Baião
Às portas da jubilação enquanto pro-
fessor catedrático na Universidade
Nova de Lisboa e a um ano de abando-
nar os corredores do serviço que o viu
crescer, o cirurgião José Fragata escre-
veu “A Reforma Necessária do Sistema
de Saúde Português”. É o seu primeiro
livro “de opinião” e versa sobre o que
deve ser o SNS no futuro — e sobre o
que será se nada for feito.
P No livro que lançou recentemente
diz que o SNS precisa de uma reforma.
É uma prescrição para o diagnóstico
que faz?
R O SNS vive uma crise de mudança
e de falta de adaptação. E se não está
bem, não vai ficar melhor. Eu digo no
livro que a saúde não é pública nem
privada. O SNS está preso pela ideolo-
gia política. Mesmo quando a oposição
a este Governo esteve no poder, não
conseguiu nunca uma reforma.
P O SNS como António Arnaut o criou,
universal e tendencialmente gratuito,
deixou de fazer sentido?
R Não. A filosofia que inspirou o SNS
está mais atual do que nunca, sobre-
tudo nesta fase de vacas magras. Foi
algo absolutamente revolucionário,
inspirou-se no sistema inglês, ou seja,
financiado pelos nossos impostos, em
que há uma tentativa de equidade,
porque, fiscalmente, os que ganham
mais pagam mais. O que se passa é
que o sistema não se foi adaptando às
novas realidades. Mudou a medicina,
mudou a demanda tecnológica, mu-
dou a exigência da sociedade, mas o
Estado continua a ser o financiador, o
prestador, o regulador e o fiscalizador.
P Mas durante anos funcionou. É pre-
ciso financiar essa adaptação?
R Os nossos impostos pagam 59% da
despesa em saúde. De onde estão a ser
pagos os outros 41%? Do seu e do meu
bolso, sem se escolherem gradações
sociais ou económicas para o fazer.
Aquilo que deveria ser um sistema de
equidade neste momento já se trans-
formou num sistema de desigualdade.
Há vários problemas e um deles é de
financiamento. É preciso encontrar
um modelo, se calhar mais bismarckia-
no, ou seja, baseado na mutualidade
em seguros, para pagar a diferença
que neste momento nos sai do bolso.
P Segundo o diagnóstico que faz, um
dos problemas prende-se com o facto
de o valor dos impostos em Portugal,
apesar de equilibrado com o rendi-
mento, ser mais baixo do que o des-
pendido noutros países. O problema
não são os baixos salários?
R Pois, temos o problema dos baixos
salários. Nesta Lei de Bases [da Saú-
de], o Governo está a tentar colocar
alguns pensos rápidos na gestão e ou-
tros na remuneração. Eu continuo a
pensar que deveríamos pensar numa
reforma mais profunda. Portugal gas-
ta com a saúde um pouco mais de 10%
do PIB. Está em linha com a OCDE.
Mas são 2900 euros por cada cidadão.
A Alemanha gasta 6700. O erro está
em pretender com este valor que o
PRECISÁVAMOS DE
UMA INSPIRAÇÃO
REFORMISTA QUE
NÃO TEMOS VISTO
NESTA TUTELA
BASEAR O SISTEMA
EM TAREFEIROS
E HORAS
EXTRAORDINÁRIAS
É UM MAU PRINCÍPIO
sistema seja tendencialmente gratuito
e de acesso universal.
P Teríamos de duplicar o valor?
R Sim. Nos países nórdicos pratica-
mente não há medicina privada, mas o
Estado coloca lá o dinheiro suficiente
para que funcione. Como eu não estou
a pensar que o Estado português tenha
capacidade e queira colocar na saúde
muito mais do que coloca, teremos de
pensar em medidas alternativas, como
uma grande ADSE, por exemplo.
P Não será um custo acrescido para
as pessoas?
R Poderá ser para os empregadores. O
Estado tem um papel absolutamente
imprescindível. Mas diria que podíamos
ter menos Estado e melhor Estado.
P A maior autonomia dos hospitais
não o convence?
R Talvez este novo modelo possa vir
a corrigir algumas coisas. Mas com a
autonomia tem de vir o financiamento.
O Estado é muito mau a partilhar po-
der. Durante muito tempo a saúde teve
dupla tutela: das Finanças e da Saúde.
P Foi positivo este acordo para um
maior pagamento das horas extra?
R Quando uma empresa não está bem,
não é injetando mais capital que re-
solvemos o assunto. Qualquer gestor
medíocre sabe isso. Basear o sistema
em tarefeiros e horas extraordinárias
é sempre um mau princípio. É caro.
No serviço onde eu trabalho tenho três
salas de operações. Duas estão a funcio-
nar, uma não tem pessoal. Para respon-
der à lista de espera, foi-nos autorizado
— e bem — um programa de produção
adicional pago a preço de ouro. Acha
normal termos funcionários a trabalhar
a 20 euros à hora e depois pagar-lhes, a
seguir, 100 euros à hora? São pensos rá-
pidos que se vão descolar rapidamente.
P Vê com bons olhos a criação da es-
pecialidade de Urgência?
R Não vejo que seja de uma necessi-
dade absoluta, mas não tenho nada
contra. Penso ser mais importante
que as populações encontrem as ra-
zões para não irem à urgência. Eu vim
de um regime em Inglaterra em que,
quando no bloco me morria algum
doente, o primeiro telefonema que eu
fazia era para o médico de família, e só
o segundo era para o médico legista.
Os médicos de família devem ser os
gate-keepers.
P Diz que temos médicos em excesso
e enfermeiros em falta. O problema
da obstetrícia poder-se-ia resolver
com a intervenção mais autónoma dos
enfermeiros especialistas?
R Eu acho que há muitas tarefas que
poderiam ser subtraídas à atividade
médica, mas com disponibilidade mé-
dica pronta. O que estamos a assistir
neste momento com o tema das ma-
ternidades vai ameaçar a sustentabili-
dade de amanhã.
P O que acha do cargo de novo dire-
tor-executivo do SNS?
R Vai dar mais entropia ao sistema.
P Porque é que a ‘saúde a metro’ é
perigosa?
R A saúde tem de ser centrada nas pes-
soas. Quando nós ouvimos os governan-
tes dizerem que fizemos mais 40 mil
cirurgias, 30 mil consultas, 25 mil atos
médicos ou de enfermagem, isso a mim
não me diz nada. Gostava de saber se
eles eram precisos, se foram bem feitos
e se causaram satisfação.
P A ministra da Saúde está a fazer um
bom trabalho?
R Uma coisa é o que os ministros que-
rem fazer e outra é o que conseguem
fazer. Nós tivemos uma resposta bas-
tante razoável na pandemia. Esperaria
que a ministra Marta Temido tivesse
aproveitado a maioria absoluta e, so-
bretudo, o dinheiro que aí vem para
promover uma reforma da saúde mais
robusta. Acho que precisávamos de
uma inspiração reformista que não
temos visto nesta tutela.
P Quem poderia ser essa pessoa?
R Há por aí pessoas com ideias, mas
não são políticas. Isso é um problema.
jascensao@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
“Os jovens
médicos
são
orientados
para a
produção”
É um dos homens da transplanta-
ção em Portugal, responsável pelo
Centro de Referência de Transplan-
te Pulmonar, no Hospital de Santa
Marta, em Lisboa, e único no país.
Em 2023, terminará a carreira.
P Passaram 44 anos desde que en-
trou no SNS. Lembra-se dos primei-
ros passos?
R Entrei para os hospitais em ja-
neiro de 77. Quando sair do sec-
tor público, em julho do ano que
vem, já terei 45 anos de serviço.
Isto é uma enorme viagem de
descobertas, de boas realizações,
com um saldo muito positivo e
não menos trabalhoso. Só que a
reforma para o sector público,
quer seja na universidade quer
seja no hospital, é inexorável.
Agora pode pedir-se para ficar
mais dois meses. Mas eu nunca
gostei de estar a prazo em nada.
E também por uma questão de
solidariedade geracional. As pes-
soas que vieram depois de mim
devem ter a sua oportunidade.
Agora, alguém com o meu passa-
do dificilmente se reforma. Neste
último ano, quero deixar as coi-
sas arrumadas.
P Fica descansado com o legado
que deixa às novas gerações?
R Muito descansado. Um dos gran-
des alívios que tenho é de ter treina-
do umas quatro ou cinco gerações
de cirurgiões. Mesmo quando eu
não estou no serviço, faz-se tanto
ou melhor do que aquilo que se faz
quando eu cá estou.
P A forma como os médicos mais
novos olham para o SNS é diferente
da sua e dos seus contemporâneos?
R É, e por razões várias. As pes-
soas de hoje não se movem pelos
mesmos interesses nem têm a
mesma dedicação desinteressada
que alguns de nós na altura tínha-
mos. Sou pai e avô e respeito mui-
to a evolução das gerações. Isto
não desabona nada a elas. Mas
hoje a sociedade move-se pelo ruí-
do e pelo imediato. As carreiras
foram negligenciadas. Os níveis
salariais são baixos e há assime-
trias escabrosas. Por exemplo, um
tarefeiro pode ganhar facilmente
quatro vezes mais do que aquilo
que ganha um médico dos qua-
dros. Depois, há uma sobrecarga
com trabalho que leva ao bur-
nout. Qualquer médico jovem é
orientado para a produção e não
lhe é dado nem tempo livre nem
tempo para estudo e investiga-
ção. Eu colaborei em inúmeras
teses de doutoramento pela mera
possibilidade de colaborar e pela
experiência. Hoje a sociedade
está muito virada para a rapidez
e há muito ruído de fundo. Mas a
experiência não se lê na internet.
Leva tempo.
P Tantos anos a mexer no coração
dos outros foi um privilégio?
R A confiança é dos valores mais
em risco hoje em dia. Os doentes
confiarem-me o coração deles é
realmente um privilégio. Ou o fí-
gado, ou a vesícula, o que quer que
seja. Se bem que o coração tem
aqui uma conotação. É curioso. O
professor Lobo Antunes, um bom
amigo, já desaparecido, dizia sem-
pre: “Eu não percebo porque é que
eles ficam tão ligados a si pelo co-
ração quando eu é que lhes mexo
na cabeça.”
Expresso, 12 de agosto de 2022
IMIGRAÇÃO
SEF investiga três juntas
de freguesia em Lisboa
Em causa está a emissão de atestados de residência com dados falsos.
SEF apura se juntas estão implicadas ou a ser usadas por redes de imigração
Hugo Franco,
Marta Gonçalves
e Raquel Moleiro
Pelo menos três juntas de
freguesia do concelho de Lis-
boa estão na mira do Serviço
de Estrangeiros e Fronteiras
(SEF) devido a esquemas frau-
dulentos para a obtenção de
autorização de residência para
imigrantes. O Expresso apurou
que em causa está a emissão de
várias centenas de atestados
de residência verdadeiros mas
com dados falsos. Esses docu-
mentos, passados pelas juntas,
são depois apresentados pelos
cidadãos estrangeiros junto do
SEF como prova de que têm
uma determinada morada fixa
em Portugal, requisito obriga-
tório para que possam legalizar
a sua permanência no país.
A ação das juntas está a ser
investigada num processo
sobre uma rede de auxílio à
imigração ilegal que usa faci-
litadores. A troco de dinheiro,
disponibilizam aos imigrantes
moradas e acompanham-nos
aos serviços na altura do pe-
dido do atestado de residência
como testemunhas de que os
cidadãos estrangeiros habitam
habitualmente no endereço
apresentado. Nestes casos, em-
bora o documento emitido seja
verdadeiro, a informação que o
integra é falsa.
O esquema não é novo, mas
começou a saltar à vista das
autoridades, com dimensão
crescente, quando no sistema
do SEF meia dúzia de mora-
das, em três freguesias espe-
cíficas, surgem, num mesmo
espaço temporal, como a casa
de centenas de imigrantes.
A investigação em curso visa
agora esclarecer qual é o pa-
pel das juntas neste esquema
criminoso: se estão apenas a
ser usadas pelas redes de au-
xílio à imigração ilegal, que se
aproveitam da impossibilidade
fiscalizadora dos serviços, ou
se há elementos envolvidos ou
coniventes.
“As juntas não têm competên-
cias para investigar, mas, iden-
tificando a recorrente repetição
de moradas e das testemunhas,
podem denunciar as suspeitas
às autoridades”, explica uma
fonte do processo. “Por norma,
raras são as que questionam a
informação que está a ser de-
clarada”, adianta outra fonte do
SEF. E é por isso “normal” que
alguns dos endereços apresen-
tados, e já atestados pelas jun-
tas, correspondam “a uma sala
de um edifício de escritórios, a
uma garagem ou uma loja”.
Se o poder local não coloca
questões, também o escrutínio
efetuado pelo SEF “é muito resi-
dual”, devido “à escassez cróni-
ca de efetivos, sendo impossível
efetuar deslocações a todas as
moradas”, garante um inspetor.
Há moradas com mais
de uma centena de
atestados emitidos.
Algumas são garagens,
lojas ou escritórios
À porta das juntas
deambulam indigentes
que testemunham as
residências a troco de
dinheiro. Redes mais
sofisticadas trabalham
com advogados
Porém, sempre que um ende-
reço se destaca pela repetição,
basta uma simples consulta aos
registos para apurar quantas
pessoas estão certificadas como
residentes. “Temos moradas
com mais de 100 pessoas re-
gistadas. Isto é literal. Ao ponto
de a Autoridade Tributária, por
exemplo, já ter feito uma parti-
cipação ao Ministério Público”,
adianta a mesma fonte.
Recentemente, pelo menos
uma das três juntas em inves-
tigação anunciava ter batido o
recorde de atestados emitidos.
Foram milhares de documen-
tos em cerca de 10 meses, a
maioria solicitada para fins de
legalização em Portugal.
Contactado pelo Expresso,
o SEF, sem especificar enti-
dades, assegura que estão em
curso investigações “no âmbito
dos crimes da sua competência
(designadamente auxílio à imi-
gração ilegal) com utilização de
documentação fraudulenta”.
Testemunhos a €100
Os cidadãos portugueses po-
dem pedir atestado de resi-
dência através do portal das
Finanças ou via Segurança So-
cial Direta, online e sem custos.
Mas os estrangeiros precisam
de se dirigir à junta de freguesia
da área de residência e, nes-
tes casos, os requisitos variam
consoante o local. Na zona de
Lisboa é quase sempre exigi-
do um documento físico que
comprove que a pessoa mora
em determinada morada. No
entanto, em alternativa, essa
exigência pode ser substituída
pelo testemunho de duas pes-
soas que vivam na freguesia. A
partir daqui os esquemas ilegais
podem ser dos mais variados.
De acordo com a investigação
do SEF em curso, as testemu-
nhas pagas podem ser habitual-
mente encontradas nas imedia-
ções das repartições municipais
e “é por demais evidente que
Casos em investigação
estão concentrados nas
freguesias com mais
imigrantes FOTO NUNO FOX
têm aumentado exponencial-
mente”, atesta uma fonte do
processo. “Sabendo da procura
por este tipo de serviço, indi-
víduos alcoólicos, semi-indi-
gentes, passam os seus dias à
porta das juntas de freguesia,
onde abordam os cidadãos com
‘pinta’ de estrangeiros, tendo
já alguns clientes que se diri-
gem a eles diretamente. Por
este tipo de ‘serviço’ cobram
normalmente entre €10 e €20
por cada assinatura, sendo raro
o dia em que não apareçam na
junta várias vezes a testemu-
nhar”, adianta.
Para clientes “mais sofisti-
cados”, as redes de facilita-
dores não trabalham na rua,
mas ligam-se a escritórios de
advogados, solicitadores, con-
tabilistas ou prestadores de
serviços de “assessoria” que
lhes encaminham os clientes.
“Nestas situações, os valores
cobrados aos imigrantes são
normalmente um pouco mais
elevados, podendo já rondar os
€50 ou €100.”
O Expresso sabe que gran-
de parte dos estrangeiros que
recorrem a estas redes de au-
xílio à imigração ilegal nem
sequer vivem em Portugal,
mas noutros países europeus
onde não conseguiram obter
a legalização, deslocando-se
à capital apenas para tratar
de documentos. “Com as al-
terações que têm vindo a ser
gradualmente introduzidas,
é perfeitamente possível um
indivíduo conseguir obter um
título de residência em Portu-
gal e adquirir a nacionalidade
portuguesa ao fim de cinco
anos, tendo apenas de vir uma
vez ao país para recolher as im-
pressões digitais e tirar a foto
do primeiro título de residên-
cia junto do SEF”, explica um
inspetor. “Tudo o resto pode
ser feito por interposta pessoa,
assim haja dinheiro para pagar
os serviços.”
hfranco@expresso.impresa.pt
PRIMEIRO CADERNO 19
O FUTURO DO FUTURO
O real valor
do cocó
Nos dejetos de um milhão de pessoas há
quase 13 milhões de euros em metais e muito
adubo. Será desta que o WC muda?
Nem o mais poderoso autoclismo vence a aritméti-
ca: se um humano produz, por dia, pelo menos 250
gramas de cocó, então os atuais sete mil milhões
geram 1,75 mil milhões de quilogramas de fezes
por dia. A mesma lógica aponta para 5,6 mil mi-
lhões de litros de xixi, se cada humano verter 0,8
litros em 24 horas. O somatório é manifestamente
desagradável: “Mandamos bens escassos para o
mar”, diz António Oliveira, presidente da Oli, uma
empresa de equipamento sanitário. No cocó há
nutrientes agrícolas, como azoto, fósforo, cálcio,
sódio ou potássio, e também ouro e prata. Segun-
do a Sociedade Americana de Química, um milhão
de pessoas podem evacuar o correspondente a
13 milhões de dólares (cerca de 12,7 milhões de
euros) em metais num ano. Ciente do desperdício,
a Oli juntou esforços com as Universidades de
Aveiro e de Coimbra num projeto de investigação
que recolhe urina para fertilizantes.
O mote está dado, mas o WC do futuro exige
tempo e regras. “Obriga a virar do avesso infraes-
truturas domésticas”, lembra o líder da Oli. Na
Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universi-
dade Nova de Lisboa (FCT-UNL), a investigadora
Fernanda Pedro fez as contas tendo como ponto
de partida a água, que supera 80% dos resíduos
domésticos e é o veículo de transporte de fezes,
urina e champô, por exemplo. E deparou-se com
um desafio: na União Europeia estudam-se cir-
cuitos separados e o reaproveitamento de águas
domésticas, mas faltam soluções para detergentes
usados, cabelos e bactérias, como a Legionella.
Além disso, as pessoas habituaram-se a não pen-
sar no assunto depois de puxar o autoclismo. Esse
hábito não faz sentido para metade da população
mundial, que vive com redes sanitárias precárias
— e que seguramente dá as boas-vindas à sanita
criada pela Fundação Gates para converter cocó
em cinzas. Nos EUA há esgotos, mas a lógica co-
mercial engendrou sistemas que convertem resí-
duos em água de rega e gás com a ajuda de bac-
térias. Sendo promissores, os WC futuristas não
substituem as estações de tratamento de águas
residuais (ETAR), que são menos onerosas a tratar
esgotos de cidades, indústria ou agropecuária, que
conta com suínos e bovinos que produzem 8 e 14
vezes mais dejetos do que os humanos.
Em Portugal, há estações de tratamento que
produzem biogás, lamas fertilizantes, comple-
mento de cimento e água de rega. Os exemplos são
auspiciosos, mas óleos, antibióticos e derivados
de combustíveis que vêm com as águas da chuva
tornam complexo o tratamento, apesar de haver
estações de outros países que garantem potabi-
lidade. “Essa água potável tem custos elevados,
mas pode ser viável onde há escassez”, estima
Fernanda Pedro. Em contrapartida, as aplicações
de valor acrescentado criam oportunidades. “Em
Singapura, bebi uma cerveja muito boa feita de
águas residuais tratadas”, recorda Sílvia Montei-
ro, investigadora do Instituto Superior Técnico
(IST). No IST, os dejetos são vistos como recurso
“potencialmente inesgotável”, mas também são
usados para monitorizar droga ou pandemias na
população, explica Ricardo Santos, investigador
do Instituto. “Chamam-nos o CSI das águas re-
siduais”, lembra. Todos os dias a humanidade se
debruça sobre o problema.
Hugo Séneca
sociedade@expresso.impresa.pt
20 PRIMEIRO CADERNO Expresso, 12 de

Angelina Almeida
e o filho trouxeram
do supermercado
dois sacos de compras,
sem carne nem peixe,
por quase 30 euros

H FAMÍLIAS REDUZEM
á já alguns meses que Ange-
lina evita ir ao supermerca-
do e encomenda tudo pela
internet. O objetivo é não
cair na tentação de levar
para casa algo que não é

essencial. Perante a esca-
lada de preços dos últimos
seis meses, forçou-se a uma
nova rotina de compras, muito mais pla-
neada e onde só entra mesmo o necessá-
rio. Reduziu o que põe no carrinho, esco-
lhe sempre o mais barato, quase tudo de
marca branca, e só volta a fazer compras
depois de esgotar o que há na despensa.
Salmão e dourada já não chegam à mesa
e picanha só em dias de aniversário.
“Está tudo muito mais caro. O preço de
um pacote de esparguete quase duplicou
e dois sacos de compras, sem carne nem
peixe, chegam facilmente aos 30 euros”,
lamenta Angelina Almeida, assistente
social de 47 anos, que vive em Lisboa com
o marido, de 52, e o filho, de 9. Antes,
a família costumava fazer uma grande
compra por mês, que custava entre 200
e 250 euros. Em abril, já com os preços a
subir, as mesmas compras custaram-lhes
quase 400 euros. “Percebemos que era
insustentável. A partir daí, começámos a
comprar só online, de quinze em quinze
dias, e em menor quantidade. Programa-
mos muito mais o que cozinhamos, para
que não haja sobras que acabem no lixo,
e só pedimos mesmo o essencial. Em vez
de repormos o que acaba, vamos até ao
limite do que temos. Se nos apetece mas-
sa mas já não há, não vamos comprar.
Comemos arroz”, explica.
A família de Angelina espelha as alte-
rações de padrões de consumo provoca-
das pela subida acentuada da inflação
– que chegou aos 9,1%, o nível mais alto
dos últimos 30 anos. E na alimentação
é ainda mais elevada (13,9%), obrigando
os portugueses a mudar de hábitos para
encolher a conta de supermercado. Os
dados do INE mostram que a quantida-
de de bens alimentares comprados pe-
las famílias está a cair desde fevereiro,
tendo recuado 0,4% em junho face ao
mesmo mês de 2021. A escolha prefe-
rencial de marcas brancas, a redução da
quantidade de bens adquiridos em cada
COMPRAS AO ESSENCIAL
Inflação na alimentação chegou aos 13,9% e obrigou portugueses
a mudar hábitos de consumo. Vão mais vezes ao supermercado,
mas trazem menos coisas. Optam sobretudo por marcas brancas
e cortam em tudo o que não é imprescindível
Textos Joana Pereira Bastos e Raquel Albuquerque Foto Ana Baião Infografias Carlos Esteves
dências identificadas por consultoras, nos supermercados. Neste momento, o
associações de consumidores e cadeias custo de um cabaz básico de 63 produ-
de supermercados. tos essenciais – que inclui, por exemplo,
“Antes, a maioria dos portugueses leite, queijo, manteiga e fiambre, arroz,
ia ao supermercado fazer a compra do farinha, massa e açúcar, além de car-
mês. Agora vão mais vezes, mas trazem ne, peixe, frutas e legumes – chega aos
muito menos coisas. Planeiam mais o €211,24, mais €28 do que há seis meses,
que precisam e estão mais atentos às quando começou a guerra na Ucrânia.
promoções”, resume Ana Guerreiro, Só na última semana, aumentou mais
porta-voz da Deco Proteste, que monito- quatro euros. Por categorias, o peixe e
riza diariamente a evolução dos preços a carne sofreram os maiores aumentos,
com subidas que atingiram 22% e 17%,
respetivamente.
57% DAS FAMÍLIAS COMPRAS MAIS PENSADAS
ESTÃO A VIGIAR Perante esta escalada, já em maio 40%
dos portugueses inquiridos num estudo
MAIS OS GASTOS, da Deco admitiam estar a cortar nos bens
alimentares não essenciais, como álcool,
COMPARANDO doces e salgados. Também os produtos
de higiene e drogaria estão entre os que
PREÇOS, EVITANDO registam as maiores quebras. “As vendas
de alguns produtos não essenciais têm
DESPERDÍCIOS E decrescido”, confirma o Pingo Doce. E
FAZENDO MAIS LISTAS
mesmo nos produtos básicos, as famílias
estão a cortar na quantidade.
de formatos maiores e um aumento
da ida às nossas lojas, mas com uma
compra menor em cada visita”, revela
Helena Guedes, diretora comercial do
grupo Dia. A “retração nas quantida-
des vendidas” é igualmente apontada
pelo Auchan. Em geral, as famílias
viram-se forçadas a controlar de forma
mais apertada o que levam para casa,
para poupar na fatura. “Existe uma
redução da compra por impulso e uma
rotina de compra mais organizada”,
corrobora o Lidl.
De acordo com a Nielsen, consultora
especializada na área do consumo, 57%
das famílias portuguesas estão agora
a “vigiar cuidadosamente os seus gas-
tos, comparando ainda mais os preços,
evitando desperdícios e fazendo mais
listas de compras”. A venda dos chama-
dos bens de consumo rápido – os mais
vendidos nos supermercados, como
alimentação e higiene – já recuou 0,3%
no primeiro semestre deste ano.
Mas apesar de estarem a levar para
casa menos produtos, “o valor médio
da compra [de supermercado] mante-
da Associação Portuguesa de Empresas
de Distribuição (APED), Gonçalo Lobo
Xavier. “Nitidamente, as pessoas estão
a fazer uma gestão muito mais rigoro-
sa do seu orçamento e a alterar o seu
consumo em função das promoções. Se
numa semana há promoção de carne de
porco, é essa que consomem”.
É preciso recuar até novembro de
1992 para encontrar uma escalada do
custo de vida semelhante à atual. Nas
BEBIDAS
ALCOÓLICAS, DOCES,
SALGADOS,
PRODUTOS DE
HIGIENE E DROGARIA
ESTÃO ENTRE OS
QUE MAIS CAÍRAM

DE COMPRAS EM VENDAS
compra e a quebra de vendas de produ- “Notamos uma maior compra de for- ve-se mais ou menos igual, devido ao
tos não essenciais são as principais ten- matos mais pequenos em detrimento efeito da inflação”, diz o diretor-geral
agosto de 2022
CONSUMO
INVESTIGAÇÃO
últimas duas décadas, a inflação man-
teve-se baixa, pelo que muitos portu-
gueses não têm memória nem nunca
sentiram os preços a subir de forma
tão acentuada. A experiência prévia
dita a rapidez da reação: “Consumi-
dores que sentiram anteriormente
reduções do poder de compra provo-
cadas por inflação tendem a responder
mais rapidamente com algum freio ao
consumo, enquanto as gerações mais
jovens podem demorar mais a alterar
hábitos”, explica Raquel Barbosa Ri-
beiro, especialista em Sociologia do
Consumo.
Nestas alturas, a retração do consumo
“manifesta-se através da concentração
do esforço financeiro em bens alimen-
tares e habitação e no adiamento de
compras de bens duráveis e diminuição
dos gastos em lazer, cultura e educa-
ção”, explica. Em todas estas áreas, e
também no vestuário e calçado, já há
um recuo na procura, que tão cedo não
deverá retomar. Até porque se prevê
que os preços continuem a subir.
“Nos próximos meses, a pressão pro-
vocada pelo aumento da fatura ener-
gética e de outros custos de produção
continuará a ter consequências na
subida de preços da maioria dos bens
alimentares”, avisa o diretor-geral da
APED, Gonçalo Lobo Xavier. O presi-
dente da Confederação dos Agricul-
tores de Portugal, Eduardo Oliveira e
Sousa, corrobora: “Os custos de pro-
dução dispararam de forma descon-
trolada, pelo que não há alternativa ao
aumento dos preços. E essa tendência
de subida não tem fim à vista, pelo me-
nos enquanto não estabilizar o preço
da energia e dos combustíveis”.
PREÇOS AINDA VÃO SUBIR MAIS
Pedro Brinca, economista e professor
na Nova SBE, estima que os preços
dos produtos alimentares comecem
a descer dentro de seis meses. Mas o
problema vai muito além da conta do
supermercado. A fatura do gás e da
eletricidade subiu mais de 35% no últi-
mo ano e prevê-se que aumente ainda
mais no início de 2023. As despesas
com transportes estão 13% mais caras
e os encargos com a habitação, que já
cresceram 2,8%, deverão disparar com
a subida das taxas de juro. “Tudo isto,
em conjunto, significa uma diminuição
do rendimento disponível”, frisa.
Perante este cenário, Pedro Brinca
considera que os apoios dados às famí-
lias mais carenciadas – como o subsídio
de 60 euros, que foi atribuído por duas
vezes, para ajudar no cabaz alimentar
– são “claramente” insuficientes. “Isso
vê-se através de uma métrica simples:
enquanto o rendimento disponível
dos portugueses diminui, o Estado
acumula receitas fiscais extraordiná-
rias bastante acima do que estava no
Orçamento do Estado”, critica.
Também a Deco Proteste lamenta a
falta de apoios e defende que uma redu-
ção, mesmo que transitória, do IVA dos
bens essenciais “seria fundamental para
trazer, já no imediato, algum alívio às
famílias”. Até porque muitas começam
a já não ter onde cortar, pondo em risco
a alimentação básica. Na casa de Angeli-
na Almeida, por exemplo, o esparguete
e o atum, que antes comprava de marca,
já foram substituídos pelos mais bara-
tos do mercado. As frutas e legumes já
não são trazidos do supermercado, mas
da pequena loja de bairro, com preços
mais em conta. E a ementa familiar já
sofreu as alterações possíveis.
“Já não temos grandes hipóteses de
substituição de alimentos, até porque
temos uma criança em casa. Já compra-
mos só marcas brancas e os produtos
mais baratos, portanto não há muito
por onde cortar. Preocupa-me bastan-
te se os preços continuarem a subir”,
desabafa.
jbastos@expresso.impresa.pt
PRIMEIRO CADERNO 21
EVOLUÇÃO DO PREÇO DE UM CABAZ ALIMENTAR BÁSICO*
Em euros
Ana Guerreiro
€211,24 Porta-voz da Deco Proteste
“É fundamental
206
197
188
179
baixar o IVA nos
170
23 2 9 16 23 30 6 13 20 27 4 11 18 25 1 8 15 22 29 6 13 20 27 3 10
bens essenciais”
FEV. MAR. ABR. MAI. JUN. JUL. AGO.
*Cabaz definido pela Deco Proteste e composto por 63 produtos alimentares essenciais
CARNE PEIXE
Em euros. Variação em % Em euros. Variação em % P Segundo um inquérito reali- P Já em maio, 40% das famí-
+22% zado em maio, 73% dos portu- lias diziam não ter margem
60 60
gueses dizem ter sido forçados financeira para enfrentar um
a fazer alterações nos seus há- agravamento da crise. Depois
40 +17% 40
bitos de consumo devido à subi- disso, as principais categorias
da dos preços. Que alterações de produtos, como o peixe e
20 20
foram essas? a carne, continuaram a subir.
R A alimentação tem sido uma Já se nota algum agravamento
0 0
das esferas mais afetadas pela de carências alimentares nas
inflação, com mais de metade famílias acompanhadas pela
23 FEV. 10 AGO. 23 FEV. 10 AGO.
dos inquiridos a escolher mar- Deco?
cas mais baratas no supermer- R A nossa preocupação tem
cado, como as ‘marcas brancas’ sido desenvolver ferramentas
MERCEARIA FRUTA E LEGUMES (53%), e com 40% a cortarem que permitam aos consumi-
Em euros. Variação em % Em euros. Variação em % nos produtos alimentares que dores terem toda a informa-
não entendem como essenciais, ção disponível para poderem
60 60
como é o caso das bebidas al- poupar e gerir melhor o orça-
+12% coólicas, dos doces e dos sal- mento familiar, como ajudar
40 40
gados. A segunda área em que no planeamento das compras,
os portugueses mais fizeram dizer qual o supermercado mais
+6% ajustes foi a da mobilidade: barato em cada zona, etc. Não
20 20
metade dos inquiridos revelou temos números em detalhe so-
0 0
usar menos o carro e 35% di- bre o agravamento das carên-
zem ter a preocupação de fazer cias alimentares, mas, face ao
23 FEV. 10 AGO. 23 FEV. 10 AGO.
uma condução mais económica. aumento dos preços, infeliz-
As atividades sociais, culturais mente é inevitável que esteja a
e de lazer também sofreram acontecer.
LATICÍNIOS CONGELADOS uma redução, assim como a
Em euros. Variação em % Em euros. Variação em % compra de produtos de lazer e P Os supermercados confir-
de vestuário, que foi posta em mam que as pessoas estão a
15 15 +9% compasso de espera ou que foi fazer compras mais pequenas.
+10% mesmo cancelada. Quanto à É sinal de que as famílias tive-
10 10
educação, um em cada dez in- ram mesmo de cortar no que
quiridos admite que tem passa- levam para casa?
5 5
do por mais dificuldades quan- R Sim. Só levam mesmo o es-
to ao pagamento das despesas sencial. Antes iam ao super-
0 0
de educação dos filhos. mercado e faziam a compra
do mês, agora vão mais vezes
23 FEV. 10 AGO. 23 FEV. 10 AGO.
P Ou seja, há mesmo uma dete- mas trazem muito menos coi-
rioração significativa das con- sas. Planeiam mais o que pre-
dições de vida provocada pela cisam e estão mais atentas às
OS PRODUTOS QUE MAIS SUBIRAM DESDE O INÍCIO DO ANO inflação. promoções e às campanhas de
R Sem dúvida. A única área em descontos.
que os portugueses se dispõem
a fazer menos ajustes é a da P Os lucros de grandes em-
saúde. Não estão a adiar con- presas de distribuição, como
sultas, seja de que área for, ou a a Jerónimo Martins e a Sonae,
+42% +42% +35% +32% +30% pôr a saúde em segundo plano.
Pelo contrário, estão a fazer
dispararam este ano. Os super-
mercados estão a aproveitar-se
FARINHA FINA ÓLEO CEREAIS FRANGO BIFE DE
PARA BOLOS ALIMENTAR PERU alterações e ajustes em todo o da guerra para subir os preços
orçamento familiar para que mais do que o necessário?
pelo menos a saúde não fique R Não temos dados que nos
prejudicada. permitam afirmar isso, uma
vez que a composição dos pre-
ços tem inúmeras variáveis. O
que para nós é claro é que o
+30% +27% +27% +26% +26% COMO POUPAR NO
esforço deve ser de todos, con-
sumidores, marcas, produtores
POLPA DE SALMÃO BOLACHA SALSICHAS LOMBO SUPERMERCADO e Governo. O que temos estado
TOMATE MARIA DE PORCO
a ver é que os consumidores é
que estão a pagar a fatura, mas
^ Fazer uma lista de compras é preciso um trabalho conjunto,
PESO DE CADA CATEGORIA AUMENTO DOS PREÇOS é a melhor forma de evitar que comece pelo Governo.
NO CUSTO DO CABAZ POR CATEGORIA despesas adicionais. Pense
Em % Var. homóloga do Índ. Preços Consumidor em julho (%) nas refeições que vai preparar P Tabelando preços?
Laticínios Gás durante a semana e traga R Sim, por exemplo. E sobre-
Congelados 6 36,2 só o que realmente necessita. tudo a nível de impostos. Face
Peixe a esta conjuntura, baixar o IVA
7 Eletricidade
Fruta e 34 ^ Compare os preços dos nos bens essenciais, ainda que
35,6
legumes produtos por quilo, litro ou temporariamente, seria funda-
Alimentação
12 unidade. As ‘marcas brancas’ mental para trazer já no ime-
13,9
% Transportes
Habitação
2,8
12,9
permitem poupanças que
podem chegar aos 30%.
^ Esteja atento a campanhas
diato algum alívio às famílias.
P Há uns meses, a Deco alertou
os consumidores para algumas
Carne
de descontos e consulte os práticas ilegais a que as marcas
Mercearia folhetos para saber quais as podem recorrer nesta altura
18
22 promoções da semana. para compensar o aumento do
custo de produção, como a re-
^ Em casa, verifique os prazos dução do tamanho ou da quan-
SUBIDA DOS PREÇOS NO MÁXIMO DESDE 1992 de validade, para evitar tidade das embalagens. Têm
Taxa de variação homóloga do Índice de Preços no Consumidor, em % desperdícios. Na despensa alguma indicação de que isto já
e no frigorífico, coloque à esteja a acontecer?
Julho 9,1 frente os produtos com R A ‘reduflação’ não é ilegal,
8
prazos mais curtos. desde que a informação no ró-
tulo esteja correta, mas muitas
4
^ O comércio tradicional vezes o consumidor sente-se
é uma boa opção para enganado com estas subidas de
0
comprar frescos, já que preço porque acha que estão
habitualmente é possível disfarçadas. Não recebemos
-4
encontrar produtos mais qualquer reclamação sobre este
1992 1995 2000 2005 2010 2015 2020 2022 baratos. Além disso, tema, mas aconteceu em vários
têm boa oferta de países europeus, nomeadamen-
FONTE: DECO PROTESTE E INE produtos nacionais. te em Espanha.
22 PRIMEIRO CADERNO
INCLUSÃO
Férias São 26 crianças — a muitas delas já foi dada sentença de morte — que por duas semanas se separam dos pais e vão
dormir em tendas e mergulhar na piscina da colónia Dom Maior, onde, além de brincadeira, “há verdadeiramente inclusão”
“Viver a vida é
espetacularmente
espetacular”
Texto Marta Gonçalves
Fotos Ana Baião
O
“ quê? Não perce-
bi.” A rapariga alta,
colar dourado ao
pescoço e saia de
ganga, com o olhar
focado no nada, pa-
rece confusa. “Sou
eu e o Dinis”, insis-
te a menina mais
pequena, de longos cabelos ondulados
castanhos, enquanto lhe agarra nas
mãos e as guia até ao peito. Quando os
dedos tocam no estampado da t-shirt
amarela, continua: “Aqui está o Dinis
e aqui estou eu.” Geralda tem 15 anos
e é cega. Laura tem oito e uma sensibi-
lidade fora do normal para lidar com a
diferença. “Ah! Já estou a ver.”
As duas são parte do grupo de 26
crianças e jovens que integram a co-
lónia de férias Dom Maior, uma quin-
zena de atividades organizada pela
associação que lhe dá nome. Qual-
quer sócio que ao longo do ano tenha
acompanhamento terapêutico nesta
organização sem fins lucrativos pode
inscrever-se gratuitamente. Depois
são aceites irmãos, primos ou amigos
dos sócios. “É importante que estes
outros meninos que são conhecidos
ou familiares também venham, por-
que não queremos aqui só crianças
com deficiência, queremos inclusão.
É importante que quem tem defici-
ência aprenda com quem não tem,
e vice-versa. É um dar e receber”,
diz Sofia Terceira, coordenadora da
colónia, cofundadora da Dom Maior
e mãe da Laura, do Dinis, de 14 anos
e com uma doença neurológica rara,
e de Gonçalo, de 23 anos, que é um
dos monitores voluntários no campo
de férias.
Há crianças com paralisia cerebral,
autismo, atrofia muscular espinhal, ce-
gueira, doenças raras e cancro. Há ou-
tras tantas completamente saudáveis.
“NÃO SE IMPORTAM SE
[A OUTRA CRIANÇA] NÃO
ANDA OU FALA. NÃO DÓI,
NÃO SE PEGA, NÃO É
FEIO. PERCEBEM QUE SÓ
É DIFERENTE”, DIZ SOFIA
“Sobretudo nesta altura não ha-
via oportunidades para o nosso filho
Dinis. E se não havia respostas para
ele, também não existiam para outras
crianças”, explica Paulo Rosa, marido
de Sofia e também fundador. Assim
nasceu a ideia de transformarem o
terreno da sua casa, nos arredores de
Lisboa, numa colónia. Montam tendas,
enchem insufláveis, há balizas, tram-
polim e piscina de bolas e de água. De
fora apenas chegarão convidados, para
tornar os dias mais especiais: atletas
que hão de dar aulas ou artistas que
hão de ensinar a arte do circo.
“É só diferente”
Anocas foi a última a ser aceite na
colónia. As inscrições já estavam fe-
chadas e não havia lugar para mais
pessoas. “A mãe pediu-nos muito e
a verdade é que não sabemos como
será para o ano”, conta Sofia. Anocas,
Ana, de nome próprio, tem 16 anos e
um cancro na cabeça. Está em fase
terminal.
Anda vaidosa com a t-shirt amarela
vestida, vezes sem conta passa a mão
pela estampagem do seu nome. “Ano-
cas”. Gosta de mostrar a quem acaba
de conhecer que o seu cabelo é mais
comprido de um lado do que do outro
e que pintou as unhas das mãos e dos
pés, uma de cada cor. Uma azul, ou-
tra vermelha, azul e vermelha, azul e
vermelha. Diz aos outros o quanto são
bonitos e assegura que também ela o
é. “Estou a amar estar aqui. Eu amo
viver.” É nas frases que solta sem aviso
que desarma cada um que já conhece
a sua história. Nem Paulo, nem Sofia,
nem nenhum outro monitor sabe o
que responder. Demoram sempre uns
segundos, até que acaba por sair um
“ainda bem que gosta” ou um “fico
feliz por estares a gostar de cá estar”.
“Viver a vida é espetacularmente es-
petacular”, continua Anocas.
“Vamos fazer um círculo”, grita uma
das monitoras. Na roda todos dançam
ao ritmo da música. Bruna e Bianca
vão dando passinhos tímidos até es-
tarem aos pulos; Dinis, Madalena e
Luísa conduzem as suas cadeiras elé-
tricas com o manípulo; João Paulo é
dos mais extrovertidos, sempre aos
saltos; Cláudia dá aos braços e deixa
as rodas deslizarem, enquanto Camila
pega ao colo Gonçalo, de 7 anos e com
paralisia cerebral, que se começa a
abanar ao som da música; Diogo, Raul
e Kaué são os mais pequenos e mal se
veem no meio de tanta gente; Leonor
empurra a cadeira de Lara para o meio
da pista de dança improvisada.
“Não há miúdo algum que não brin-
que com a Lara. Tem uma paralisia
cerebral e não fala. Não há nenhum
deles que passe e não lhe faça uma
festa ou lhe dê um beijinho. Acho isso
delicioso. Não se importam se não
anda ou não fala. Percebem que é só
isto, que só é diferente”, diz Sofia.
ESTE É O PRIMEIRO ANO
EM QUE AS T-SHIRTS
SÃO TODAS DA MESMA
COR. “SE SOMOS PELA
INCLUSÃO, TEM DE SER
TUDO IGUAL”
Expresso, 12 de agosto de 2022
Lara Henriques, 14 anos, é um terço
dos trigémeos de Vanda Silva. Depois
de uma gestação de trigémeos, que
nasceram muito prematuros e em que
nenhum sobreviveu, Vanda voltou a
engravidar. Novamente três bebés,
uma vez mais dois meninos e uma
menina. “Eles foram os dois para os
cuidados intensivos, ela para os inter-
médios. Sempre a evoluir, eles tiveram
uns quantos problemas. Aos dois me-
ses, ela apanhou uma meningite que a
deixou assim. Disseram que o futuro
era muito negro.” Suspeita-se que te-
nha sido resultado de uma bactéria
hospitalar. Passou tanto tempo em
hospitais com a Lara que os primeiros
passos dos dois gémeos só os viu em
fotografias ou vídeos que os avós dos
meninos lhe mandaram. “No primeiro
ano de vida, só o mês de agosto é que
ela não precisou de ir para o hospital.”
Descanso para os pais
É à distância que Vanda vê a filha a
começar a colher abraços e carinhos
das monitoras e dos novos amigos. He-
sita entre voltar a entrar na garagem
transformada em discoteca ou sair
discretamente. Aproxima-se de Lara,
passa-lhe a mão pelo cabelo e beija-lhe
a testa. Ao ouvido, sussurra-lhe algo
que é só para elas as duas.
Na colónia, os pais têm entrada bar-
rada. Podem ir até ao portão levar
alguma coisa, telefonar ou fazer video-
chamada, mas não há pai, mãe, avó
ou avô que entre ali. “Também é bom
para eles, que se afastam do mundo
da reabilitação. Muitos destes pais são
cuidadores 365 dias por ano e estão
numa exaustão gigante”, diz Paulo.
Agora que Vanda deixa a filha e volta
para casa, tem outros dois adolescentes
que requerem atenção. Os próximos
dias são só deles. “Durante todo o ano
dedicamos muito tempo à Lara e, en-
quanto ela está aqui, temos mais tempo
com eles. Já no ano passado fomos fazer
coisas que não conseguimos fazer com a
Lara. Aproveito para lhes dar o que não
consigo dar o ano inteiro.” Hão de ir a
um parque de atividades radicais. Lara
só voltará a casa daqui a duas semanas.
mpgoncalves@expresso.impresa.pt
 Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 23

PROJETOS EXPRESSO CANCRO

Comer 75% a 80% da maior parte dos cancros são causados por fatores associados ao estilo de vida, pelo que a nutrição
assume um papel cada vez mais relevante, seja na prevenção, seja na melhoria do tratamento dos doentes oncológicos

Não há cancro que goste

de uma boa alimentação

T
Textos Tiago Oliveira

er uma dieta equili-

brada faz parte dos
pergaminhos de
qualquer rotina que
se queira saudável,
e tal princípio assu-
me um papel ainda
maior quando pen-
samos naquela que
é a segunda maior causa de morte em
todo o mundo: o cancro.
De acordo com a Liga Portuguesa
Contra o Cancro, aproximadamen-
te um terço de todas as mortes por
cancro estão relacionadas com a ali-
mentação e atividade física e 75% a
80% da maior parte dos cancros são
causados por fatores associados ao
estilo de vida. “Um equilíbrio certo
de nutrientes (proteína, gordura, hi-
dratos de carbono, fibra, vitaminas
e minerais) permite que o corpo seja
capaz de desempenhar funções vitais
e corrigir erros que podem conduzir
a cancro”, esclarece Marta Carriço,
nutricionista da Fundação Champali-
maud e coautora do livro “Comer para
prevenir e enfrentar o cancro”. Seja
na prevenção, seja no pós-diagnóstico,
parece claro que “a nutrição pode ser
determinante no percurso de uma
pessoa com cancro”, aponta.
Na fase de tratamento, “a nutrição
tem um impacto muito grande na sua
eficácia, no prognóstico e na quali-
dade de vida”, sintetiza Ana Paula
Leite, diretora do Serviço de Nutrição
do IPO de Coimbra. “É frequente os
doentes estarem desnutridos no mo-
mento do diagnóstico e, de um modo
geral, todos os tratamentos usados
em oncologia agudizam essa fragilida-
de.” Por isso qualquer plano terá que
ser personalizado e deve focar-se em
“minimizar os sintomas da doença,
melhorar a adesão aos tratamentos e
minorar os seus efeitos secundários”,
entre outros objetivos.
Segundo diretivas “internacionais”,
realça Joana Gante, nutricionista no
Hospital CUF Coimbra, “um doente
que receba um diagnóstico de can-
cro deverá ser reencaminhado para a
consulta de nutrição, idealmente até
quatro semanas após o diagnóstico”.
É assim que “a intervenção nutricio-
nal deve ser incluída numa aborda-
gem multidisciplinar, que permitirá
obter resultados significativamente
superiores no acompanhamento des-
tes doentes”. Sem esquecer que há
espaço para melhorar, “desde logo
através de uma maior integração de
nutricionistas nos hospitais e centros
de saúde, de forma a aproximar os
rácios de camas por nutricionista”, o
que se enquadra num estudo da Or-
dem dos Nutricionistas, que estima
serem necessários cerca de mais 800
nutricionistas no SNS.
Paula Ravasco é coordenadora da
pós-graduação em Nutrição em On-
cologia do ICS da Universidade Ca-
tólica Portuguesa e acredita “que a
educação em nutrição para os mé-
dicos é escassa”, além de ainda não
estar incluída “nos cuidados de saúde
padrão”. Há dados a mostrar que, por
exemplo, “a malnutrição aumenta
em 20% os custos de hospitalização,
representando um aumento de €200
a €1500 por doente”.
Por outras palavras, se a alimen-
tação “não for controlada”, pode
contribuir “para a perda de peso, al-
teração da composição corporal, des-
condicionamento físico e instalação de
deficiências nutricionais, todos com
forte impacto nas atividades do dia
a dia”, além de poder mesmo “invia-
bilizar terapêuticas médicas propos-
Uma dieta rica em
frutas e hortícolas,
por exemplo, é
importante para
combater qualquer
tipo de tumor
FOTO GETTY IMAGES
tas”, defende a diretora do Serviço
de Nutrição e Alimentação do IPO
do Porto, Paula Alves. Sem esquecer
que as lições aprendidas ao longo da
luta não devem ser logo descartadas.
“Nos doentes considerados curados é
importantíssima” a contínua “adoção
de uma alimentação equilibrada e pru-
dente, tendo por base os princípios do
padrão alimentar mediterrâneo” para
prevenir reincidências. Tudo sempre a
girar à volta do equilíbrio.
toliveira@impresa.pt
TENHO CANCRO.
E DEPOIS?
A SIC Notícias e o Expresso
lançaram um site — www.
tenhocancroedepois.pt —
dedicado ao cancro. Ao longo
do ano, a plataforma recolherá
a opinião de médicos, doentes e
especialistas sobre os desafios
de uma doença que afeta cada
vez mais pessoas. O projeto tem
o apoio da Médis e da Novartis,
além da colaboração da Liga
Portuguesa contra o Cancro
e da Sociedade Portuguesa de
Oncologia.
O que anda
o TCED a fazer
Após o atraso provocado pela
pandemia, a Estratégia Nacional de
Luta contra o Cancro para 2021-2030
foi apresentada a 1 de julho, e está
assente em quatro grandes pilares:
prevenção, deteção precoce,
diagnóstico e tratamento, e
sobreviventes. O plano foi o tema do
mais recente “Vamos Falar?”, evento
do Tenho Cancro. E Depois? (TCED)
que juntou especialistas e
associações de doentes para debater
e questionar o representante da
Coordenação Nacional para as
Doenças Oncológicas, Nuno Sousa. O
objetivo? Perceber as prioridades do
programa e como é que ele pode
responder às reivindicações e
aspirações da comunidade, com
Nuno Sousa a garantir que, “ao
desenhar esta estratégia”, foram
atendidos “os objetivos colocados
pela Comissão Europeia” no Plano
Europeu de Luta contra o Cancro.
Houve também espaço para um novo
“Checkup Seguro” (filme explicativo
sobre tópicos ligados ao cancro),
dedicado à importância da atividade
física para a recuperação do doente
oncológico e já estão a ser
preparadas mais iniciativas. É estar
atento ao site do TCED (cujo link está
no texto em cima) e às plataformas
sociais do Grupo Impresa.

AS PRIORIDADES QUE TEMOS

REDUZIR A OBESIDADE MINIMIZAR OS PREVENÇÃO DA REATIVAÇÃO
ILUSTRAÇÕES CARLOS MONTEIRO

Mais de 65% dos portugueses EFEITOS NOCIVOS “Os doentes oncológicos

vivem com excesso de peso, DOS TRATAMENTOS submetidos a tratamentos
segundo um estudo da Um plano de nutrição com intenção curativa e
Universidade de Lisboa, e personalizado permite aos que se encontram livres da
naquele que é o terceiro doentes sofrerem menos com doença” devem ter “bons
país europeu com maior os efeitos secundários dos hábitos de vida”, que passam
prevalência de obesidade, de tratamentos e beneficiarem por “um adequado peso
acordo com a OCDE, isso é de uma melhor qualidade corporal, manterem-se
fundamental para “aqueles de vida. Ou seja, para Ana fisicamente ativos e terem
tipos de cancro em que a Paula Leite, “proporcionar uma alimentação equilibrada”.
alimentação e o estilo de vida acompanhamento nutricional Metas de saúde, válidas para
têm um papel preponderante”, aos doentes oncológicos é todos, que, aponta Paula
como é “o caso dos localizados aumentar-lhes as hipóteses de Ravasco, são essenciais para
na região da cabeça e do suportarem os tratamentos “a reintrodução do doente
pescoço, gastrointestinais, da com menos sofrimento” e “de na sociedade ativa” e evitar
mama ou da próstata”, explica terem maior probabilidade de ao máximo que o cancro
Paula Alves. cura ou controlo da doença”. reapareça.
 24 PRIMEIRO CADERNO
INTERNACIONAL AFEGANISTÃO
Reportagem Um ano após a reconquista
de Cabul pelos talibãs, a pobreza agravou-se
e as liberdades desapareceram. Mesmo assim,
ninguém tem saudades dos ocidentais
A estrada
que não vai
a lado
nenhum
Francesca Borri
S
em Herat
e quiser algo realmen-
“ te afegão, veja isto”,
diz o negociante de
sucata, entre capace-
tes e outros artigos
militares britânicos.
E entrega-me um
guia da Lonely Pla-
net: “1973. The Hi-
ppie Trail” (O Trilho Hippie), a viagem
terrestre à Índia de jovens europeus.
Este tipo de viagens esteve na origem
da Lonely Planet.
Ao entrar vinda do Irão, Herat é a
primeira paragem afegã. Continua
plena de luzes e cores. De vida. Herat
é o que o Afeganistão teria sido sem as
suas incontáveis guerras. No entanto,
a primeira criança que se vê não tem
livros na sua mochila, tem plástico.
Homem afegão mostra
a cicatriz da operação
em que vendeu um rim
para poder comprar comida
para alimentar a sua família
FOTO WAKIL KOHSAR/AFP/GETTY IMAGES
Não está a regressar a casa depois da
escola, está a remexer no lixo. Porque
a guerra aqui ainda não acabou, ape-
nas mudaram as armas.
Quando os americanos chegaram,
em 2001, um em cada três afegãos
passava fome. Quando se retiraram,
há um ano, passa fome um em cada
dois. E agora, com as sanções contra
os talibãs, 95% da população está abai-
xo do limiar de pobreza.
Imaginamos o Afeganistão como ter-
ra atrasada, violenta, de miséria sem
fim. Mas a rua ao lado da Jami Masjid,
a Mesquita de Sexta-feira, conta uma
história diferente. É uma fila de anti-
quários. E tudo é afegão.
“A nossa ruína foram os estrangei-
ros”, diz Riza Habibi. Ao dizer estran-
geiros refere-se aos soviéticos, em
1979. “O Afeganistão era espantoso.
Especialmente Herat, um dos oásis
mais surpreendentes da Rota da Seda
e, mais tarde, a Florença do nosso Re-
nascimento. Herat sempre foi ponto
de encontro de artistas. E de artistas
mulheres.”
Habibi está rodeado de prataria, ta-
petes, pedras preciosas. E duas garra-
fas: o Afeganistão é famoso pelas uvas
e já o foi pelo vinho. “Os islamitas
apelam a um regresso às tradições.
Às origens. Mas quem decide quais
são as origens?”, pergunta, enquanto
o seu filho mostra um rubab, espécie
de alaúde, fecha a porta e começa a
tocar. Agora é proibido e corre o risco
de ser preso.
Dez milhões de bombas
ainda estão por rebentar
Nas velhas polaroides, raparigas de
calções sorriem no bar do Hotel Beh-
zad. “Era mesmo ali”, diz Mahdi Sakhi,
de 61 anos, apontando para um poste
de iluminação. “Dançávamos até ao
amanhecer.” O filho, que tem 19 anos,
contempla-me. Nunca conheceu um
ocidental que não fosse soldado. Está
de muletas porque pisou uma mina
terrestre.
As bombas que não explodiram são
cerca de 10 milhões. Restos de uma
guerra travada após o 11 de Setembro
para capturar Osama bin Laden — que
acabou por ser morto no Paquistão
—, por causa de atentados levados a
cabo por cidadãos da Arábia Saudita,
dois países estreitamente aliados dos
Estados Unidos.
É isso a NATO vista a partir daqui.
Para cada um dos nossos mortos há
um nome, uma imagem, um recorte de
jornal. No entanto, para as vítimas afe-
gãs não há sequer um número. Nunca
chegaram a ser contadas.
Entretanto, o Pardees, o outro hotel
popular, ainda existe. Mas agora é sede
do município de Herat e no portão
vê-se a bandeira dos talibãs. Ninguém
tinha previsto a fuga do Presidente,
Ashraf Ghani. É provável que nem
mesmo os talibãs, que voltaram ao
comando de um dia para o outro.
Um ano depois desse dia 15 de agos-
to não parecem ter ideias claras. As
escolas femininas estão fechadas, por
exemplo, mas até o porta-voz do grupo
islamita, Suhail Shaheen, tem duas
filhas a estudar em Doha.
Como vai ser o Governo? Haverá
eleições? Um Parlamento? E os tribu-
nais? Ou a economia? Por enquanto,
existem apenas decretos. Caberia aos
ulema, os peritos do islão, explicar o
que é um emirado.
AS BOMBAS QUE NÃO
EXPLODIRAM SÃO
CERCA DE 10 MILHÕES.
RESTOS DE UMA
GUERRA TRAVADA
APÓS O 11 DE SETEMBRO
PARA CAPTURAR
OSAMA BIN LADEN
A COMUNIDADE
INTERNACIONAL
CONDENOU
OS DECRETOS SOBRE
O HIJAB. OS AFEGÃOS
NEM TANTO
Quando por fim se reuniram, em ju-
nho, declararam apenas que os afegãos
têm o direito de viver à maneira afegã.
Só se ganhou na segurança
“Há uma conquista que todos reco-
nhecemos: a segurança”, diz Gholam
Karimi, vendedor de fruta nas redon-
dezas. “É a primeira vez que os nossos
filhos veem Herat: vivíamos numa casa
barricada”, afirma. De facto, é impres-
sionante: muitos afegãos andam pela
cidade com o Google Maps.
Agora tiram uma selfie não só no
castelo, ou no bazar, ou em qualquer
outro dos 780 sítios que levaram à in-
clusão de Herat na lista de Património
Mundial da UNESCO, mas também ao
lado de uma casa de cimento incarac-
terística, a casa de Ismail Khan, um dos
senhores da guerra habilitados pelos
americanos. Herat era o seu feudo. Os
talibãs forçaram-no ao exílio.
Expresso, 12 de agosto de 2022
Também o teatro conhecido por
Shakespeare foi arrasado, mas já foi
há cinco anos. “Aqui trata-se sobre-
tudo da pressão social”, diz um dos
atores, que virou motorista de táxi.
“Herat tinha uma mentalidade muito
aberta, mas agora todo o Afeganistão
é muito conservador, e os talibãs são
o seu espelho. Não introduziram nem
impuseram a burca. Fora de Cabul,
o uso é generalizado. Na verdade, as
mulheres não usam burca, limitam-se
a permanecer em casa.”
A comunidade internacional con-
denou os decretos sobre o hijab. Os
afegãos nem tanto. “Ou melhor, nós
condenámo-los, mas isso não é proble-
ma. Os talibãs deveriam concentrar-se
na economia. Todas as mulheres usam
hijab.” E suspira: “Quem me dera que
fossem apenas dos talibãs!”
É que aqueles que realmente im-
portam são os mashran. Os anciãos.
E os decretos sobre o tipo de vestuário
são, na verdade, meras recomenda-
ções. “Essa é que é a questão. Nunca
se compreende o que é permitido e o
que não o é”, defendem duas jovens,
de 26 anos, usando saltos de 12 centí-
metros debaixo do traje preto até ao
tornozelo, no Fifty-Fifty, o restaurante
de comida rápida com o melhor ham-
búrguer da cidade, onde em tempos se
podia comer o melhor kabuli: carne,
arroz e passas, o prato típico afegão.
Os rapazes estão à esquerda, as ra-
parigas à direita, divididos por uma
parede. O mesmo se passa no parque
vizinho. Nas antigas polaroides estão
todos juntos, em carruagens puxadas
por cavalos. Agora entram em dias
alternados. “E isto não é o islão”, di-
zem elas. “Aqui todos conhecemos
o Corão. Somos todos muçulmanos.
Talvez sejam os talibãs quem não
sabe, para misturarem muçulmanos
com pastunes e os seus costumes.”
Todos os talibãs são pastunes. Mas os
pastunes representam apenas 42% da
população afegã. “Agora é o nosso pai
que é responsável por nós. Nós não. É
por isso que não nos veem a andar na
rua”, dizem as raparigas que conver-
sam com o Expresso. “Já nem sequer
somos livres para ser presas.”
Nove em cada dez dólares
foram mal gastos
Ainda assim, ninguém tem saudades
dos americanos. Nem dos italianos.
Herat estava sob o seu controlo. Aqui
gastaram 46 milhões de dólares em
projetos civis e militares. “Mas olhe
à sua volta”, diz Zalmay Safa, chefe
do Departamento de Cultura. “Acha
que uma cidade como Herat precisa
das organizações não-governamentais
para cavar poços? Em todo o caso,
porque é que eu deveria considerar o
que construíram? Vamos falar antes do
que destruíram.”
Em especial porque por cada dólar
bem gasto, afirma, nove foram desper-
diçados ou roubados. Depois lê a lista
de iniciativas italianas que encontrei
online. “O serviço de ambulâncias sim,
está ativo. O 102. Mas o minarete não.
Nunca foi restaurado. O aeroporto
nunca foi aumentado. O caminho de
ferro para o Irão não, não há cami-
nho de ferro. A estrada... mas não está
acabada. Porque está na lista? Não vai
para lado nenhum.”
Cinquenta anos depois, os europeus
continuam a vir a Herat. Mas para com-
prar um rim. Longe do centro, a cidade
desmorona-se. De casas de mármore a
casas de pedra, e depois casas de betão,
de tijolo e de lama. E também restos de
casas de lama. Um enxame de crianças
descalças e sujas junta-se à nossa volta,
esperam que sejamos talibãs. Esperam
que lhes demos pão.
Quarenta afegãos já venderam um
rim aqui. Por 2600 dólares (€2500).
No Loqman Hakmin, centro de trans-
plantes dirigido pelo médico Farid
Ahmad Ejaz, que estudou em Itália e
ainda gostaria que o país lhe financias-
se um centro de oncologia. Pede-me
que faça apelo a donativos dos leitores.
Foi preso por tráfico de órgãos e liber-
tado sob fiança.
“Agora tenho dores em todo o
lado”, conta Ali, de 19 anos. Foi com
ele que correu pior. “Vendi a minha
vida”, diz. Depois da cirurgia ne-
nhum médico o visitou. Pede esmola
para pagar os tratamentos. E sobre
os estrangeiros afirma: “Só queriam
os nossos rins.”
internacional@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
SOMÁLIA
Seca extrema provoca fome aguda
Fome em África não é facto inédito, mas há forte contribuição das alterações climáticas
A água é um bem escasso na aridez da Somália pela qual as pessoas são obrigadas a percorrer quilómetros até às fontes FOTO YASUYOSHI CHIBA/AFP/GETTY IMAGES
Texto Cristina Peres
Infografia Carlos Esteves
O aeroporto de Mogadíscio
fervilha. A maioria dos passa-
geiros aguarda ordem de em-
barque num dos vários voos
esgotados que estão de parti-
da para destinos domésticos.
Guriel, Baidoa, Kismayo, todo
o território da Somália se tor-
nou demasiado perigoso para
viajar por terra e só o faz quem
não tem alternativa. Ou por ser
demasiado pobre para voar ou
para ter consigo o que valha a
pena ser extorquido num dos
postos de controlo que cobrem
os cruzamentos do território. A
surpresa está garantida, porque
podem ser postos de controlo
dos islamistas Al-Shabaab, do
exército, de outras milícias ou
de bandidos locais.
Um voo na companhia Rene-
gade Air custa relativamente
mais do que um voo interna-
cional entre, digamos, Frank-
furt e Nairobi. A Somália cum-
pre o tantra “países badass têm
companhias aéreas badass”,
como comenta a repórter da
agência noticiosa alemã DPA
que descreveu ao Expresso a
situação vivida no aeroporto da
capital somali.
Fome no Corno de África
Imagine viver permanen-
temente com sede e estar a
quilómetros da fonte de água
mais próxima. Imagine ter 11
anos, sofrer de má nutrição e
ser a única pessoa da família
ainda capaz de andar todos os
dias uma hora em cada senti-
do carregando ao ombro uma
lata com 10 litros de água no
regresso.
Os vídeos de angariação
de fundos das organizações
não-governamentais que con-
seguem permanecer e dar
assistência humanitária no
território, como é o caso do
International Rescue Commit-
tee, recorrem a qualquer argu-
mento aproximativo, como este
aqui descrito, no fito de captar
a atenção dos doadores para
os milhares de mortes que se
anunciam na Somália.
As secas e as inundações
completam a miséria em que
vive a Somália há três décadas.
Desordem, anarquia, ausên-
cia de instituições e terrorismo
definem um Estado falhado
numa zona do globo onde as
consequências das alterações
climáticas se abatem com in-
tensidade. Uma estação de chu-
vas falhada em 2011 provocou
a maior fome do século XXI.
Morreram 250 mil pessoas,
metade das quais crianças.
Tudo se encaminha para uma
repetição deste modelo quando
14 milhões de pessoas na Etió-
pia, Quénia e Somália estão
em risco de sofrer fome severa,
acompanhada de falta de água.
Na Somalilândia, a região autó-
noma no Norte do país, não cho-
ve desde abril de 2021. O Cor-
no de África está a passar pela
maior seca em quatro décadas.
É impossível semear, não há
nada para colher, o gado morre
à fome. Só um Governo firme
e reconhecido em todo o país
poderia conceber planos para
um futuro quando se anunci-
asse à população o impensável:
a pastorícia, base do modo de
vida somali desde sempre, está
a deixar de poder ser praticada.
O Governo somali controla
apenas pedaços do território,
que nem sequer são contí-
guos. A desordem e o caos têm
evoluído na forma, porém man-
tendo a população vulnerável
a milícias jiadistas que não
hesitam em fazer-se explodir
nos mercados e outros lugares
muito frequentados.
Os ocidentais que entram no
país instalam-se em complexos
com muros de betão de muitos
metros de altura, rematados
por arame farpado, ou perto
POPULAÇÃO AFETADA PELA SECA
Em percentagem
IÉMEN
JIBUTI
SOMALILÂNDIA
N
200 KM
ETIÓPIA
Baidoa
QUÉNIA
21% 30
Kismayo
de instalações governamen-
tais ou de bases militares. A
circulação é completamente
limitada a veículos blindados
e armados. Os campos de des-
locados internos espalham-se
nas imediações das cidades e
vilas, nunca longe da presença
dos insurgentes, que controlam
grande parte do território.
Milhões sem recursos
O Norwegian Refugee Council,
uma das organizações não-go-
vernamentais com presença
contínua na Somália pratica-
mente desde a queda do dita-
dor Mohamed Siad Barre, acre-
dita que sem uma intervenção
rápida haverá “centenas de
milhares de mortes”.
No presente, há sete milhões
de pessoas com dificuldade em
Golfo de Aden
Guriel
SOMÁLIA
Oceano
Índico
MOGADÍSCIO
% DA POPULAÇÃO AFETADA
PELA SECA EM JUNHO DE 2022
40 50 60 73%
FONTE: OCHA
encontrar alimentos para so-
breviver, o equivalente a mais
de 40% da população somali.
A terra ressequida e infértil
atirou primeiro dezenas, de-
pois centenas e agora milha-
res de pessoas, que ainda há
pouco tinham vidas normais e
até prósperas, para os campos
de deslocados internos. Perto
de 200 mil campos destes têm
vindo a ser montados ao lon-
go dos últimos meses à volta
das cidades para alojar o total
de 2,9 milhões de desalojados
existentes no país.
Baidoa, por exemplo, apesar
de ser a terceira maior cidade
da Somália, é um lugar de ruas
não-pavimentadas e poeiren-
tas, onde o transporte de mer-
cadorias é feito pela força dos
animais. Que trabalho pode um
lugar assim oferecer ao núme-
ro crescente de deslocados que
ali chega?
Números das Nações Unidas
estimam que só no Sudoeste
do país exista um quarto de mi-
lhão de pessoas em fuga da seca
e que o número de crianças so-
frendo de má nutrição chegue a
1,4 milhões até ao final do ano.
As dificuldades são vividas
de forma diferente consoante
os clãs a que se pertence num
país fortemente estratificado
por eles. Os clãs mais abastados
e poderosos dispõem de mais
recursos disponíveis no territó-
rio e na diáspora, por isso têm
mais capacidade de acolher os
parentes menos afortunados.
Os que pertencem a clãs menos
importantes estão condenados
a rumar aos campos, onde os
recursos são limitados. A prin-
cipal razão pela qual a ajuda
humanitária no país acaba con-
finada e menos se aventura no
território é a crescente falta de
segurança.
Esta veio para ficar e é ve-
lha de três décadas. Como se
lê numa reportagem do jornal
“The Telegraph”, as secas rara-
mente causam fomes severas
só por si. As estações de chuva
falhadas encontram um país
desestruturado, cujo planea-
mento agrícola soçobrou à de-
vastação da guerra civil.
A Somália chegou a autos-
sustentar-se e viu cair em 60%
a produção de cereais desde
1989. A maioria dos alimentos
básicos, como arroz, massa e
óleo alimentar, são importa-
dos, deixando os consumidores
vulneráveis à escassez determi-
nada pelas flutuações de pro-
dutos e preços dos mercados
internacionais.
A guerra na Ucrânia tem aju-
dado a precipitar estes fatores,
um acréscimo de dificuldades
na vida dos somalis. Sem uma
solução política para o país, os
avisos são lançados com o ala-
rido da emergência.
cperes@expresso.impresa.pt
PRIMEIRO CADERNO 25
BREVES
NUVEM AMEAÇADORA
SOBRE O IRAQUE
POLÍTICA Um po-
deroso líder xiita
iraquiano deu uma
semana aos tribu-
nais do país para dissolverem o
Parlamento. Muqtada al-Sadr
não detalhou possíveis conse-
quências se o pedido não for
atendido, mas à sua ordem mi-
lhares de apoiantes invadiram
o Parlamento a 30 de julho. O
Iraque realizou eleições legisla-
tivas há dez meses, mas os par-
tidos ainda não se entenderam
para aprovar um novo Governo.
56
horas foi a duração dos mais
recentes bombardeamentos
israelitas à Faixa de Gaza. O
cessar-fogo entrou em vigor
às 23h30 de domingo (hora
local). Desta vez, o alvo não
foi o Hamas, que controla o
território palestiniano, mas a
Jihad Islâmica, que é apoiada
pelo Irão. As forças de defesa
de Israel dizem que 1100
rockets foram disparados na
direção do país e que 200
caíram dentro do território
palestiniano. Foram mortas
45 pessoas, 15 delas crianças
RÚSSIA REJEITA
PLANO SUÍÇO
MEDIADOR O Governo suíço
traçou um plano para servir de
mediador nas negociações entre
a Rússia e a Ucrânia, e Mosco-
vo acusa agora a Suíça de ter
abandonado a sua reconhecida
neutralidade para defender as
sanções ocidentais que recaem
sobre si desde a invasão da
Ucrânia. Berna e Kiev tinham
acordado que a primeira repre-
sentaria os interesses da segun-
da junto da Rússia. O MNE rus-
so declarou essa possibilidade
inaceitável na conjuntura atual.
“O QUE PODIA
SER NEGOCIADO
FOI NEGOCIADO,
E AGORA ESTÁ
NUM TEXTO FINAL”
Josep Borrell
Alto representante da União Europeia
para os Negócios Estrangeiros
e a Política de Segurança, referindo-se
às negociações relativas à reativação
do acordo internacional sobre
o programa nuclear do Irão, que
duraram mais de um ano, em Viena.
O texto final está a ser apreciado
em Washington e em Teerão.
PARA ONDE VAI O LIXO
ATIRADO AO MAR?
ESA A cada minuto, o equivalen-
te a um camião cheio de plásti-
co é despejado no oceano. Para
estudar o problema, a Agência
Espacial Europeia (ESA) lide-
ra um projeto para rastrear o
percurso do lixo. “Numa versão
high-tech de enviar mensagens
em garrafas, colocaram-se nas
águas da Indonésia protótipos
de boias rastreáveis” feitas de
madeira, diz a ESA. São usadas
ainda imagens da Terra para
detetar áreas de acumulação
e prever o movimento do lixo.
26 PRIMEIRO CADERNO Expresso, 12 de agosto de 2022

GUERRA NA UCRÂNIA

Civis enviam drones turcos para Kiev

Os drones Bayraktar têm ajudado a consolidar a influência geopolítica da Turquia por todo o mundo
José Pedro Tavares
Correspondente em Ancara O Presidente Erdogan
rubrica um drone
FOTO MURAT CETINMUHURDAR/
Várias campanhas de crowd- /GETTY IMAGES
funding — angariação de fun-
dos através da internet — têm
reunido milhões de euros para
comprar os famosos drones
militares turcos Bayraktar, a
fim de ajudar no esforço de
guerra ucraniano. Em troca,
a Baykar, a empresa que os fa-
brica, tem doado as armas à
Ucrânia, enviando os donativos
para organizações humanitá-
rias e utilizando as campanhas
como estratégia de marketing
e publicidade.
A Ucrânia tinha comprado
dezenas de drones Bayraktar
(porta-estandarte, em turco)
antes da guerra, que foram uti-
lizados com muito sucesso nas
primeiras semanas da guerra
contra alvos russos. Desde que,
logo no início do conflito com a
Rússia, o comandante das for-
ças armadas ucranianas, Vale-
rii Zaluzhnyi, publicou imagens
dos Bayraktar a destruir carros
de combate russos, o drone tur-
co passou a ser tema comum
em todos os salões ucranianos.
“O Bayraktar trouxe-nos novo
fôlego — bem-vindos ao infer-
no!”, escreveu o general na sua
conta de Twitter. Foram drones
Bayraktar que lançaram os mís-
seis responsáveis por afundar
o “Moskva”, o cruzador russo
afundado em abril passado.

“Os Bayraktar do povo”

Num ápice, a sociedade civil
mobilizou-se para tentar com-
prar mais drones. Na Ucrânia,
uma estrela da TV, Serhiy Pry-
tula, organizou uma campa-
começarem campanhas seme-
lhantes. A Polónia promoveu a
campanha “Bayraktar para a
Ucrânia” no fim de junho, en-
quanto na Noruega foi criada
“O programa de desenvolvi-
mento de drones na Turquia
surgiu da frustração pela difi-
culdade em obter equipamen-
tos de outros países”, escre-
2016 com Sümeyye Erdogan, a
filha mais nova do líder turco.
Um catálogo extenso
é agora nosso cliente”, disse
Bayraktar numa entrevista à
Reuters há umas semanas.
O preço de um TB2 depen- BAYRAKTAR
de do número de estações de

nha chamada “Os Bayraktar
do povo”, que conseguiu em
poucos dias quase €20 milhões.
Na Lituânia, um país com 2,6
milhões de habitantes, uma
campanha patrocinada pelo
Governo e organizada por um
canal de televisão online (Lais-
ves TV) angariou mais de €5
milhões em apenas quatro dias
para comprar um drone para a
a “Noruegueses dão um Bay-
raktar aos ucranianos”, e no
Canadá a diáspora ucraniana
lançou há dias a “UhelpUkrai-
ne”, que quer reunir 7 milhões
A sociedade civil
mobilizou-se para
tentar comprar
veram Soner Cagaptay e Rich
Outzen na revista “Foreign
Affairs”. Perante as barreiras
para obter drones americanos
ou israelitas para combater os
separatistas curdos do PKK,
Ancara optou por desenvolver
um programa próprio.
Os primeiros drones foram
produzidos em 2012, e o TB2
entrou pela primeira vez em
Como pretende fazer da Tur-
quia uma potência mundial,
Erdogan tem promovido uma
indústria militar autónoma.
A Turquia já produz carros
A Turquia já produz
carros de combate,
tanques e aviões, e os
27
comando portáteis, sistemas
de comunicação e armamento
que tem. A unidade básica cus-
ta cerca de €1-2 milhões, com a
versão mais completa a atingir
€5 milhões. Apesar das limi-
tações, os Bayraktar são três a horas de voo, 25 mil pés
quatro vezes mais baratos que de altitude, autonomia
outros drones. Os americanos de 150 km. O TB2
Reaper, por exemplo, têm uma leva quatro mísseis
autonomia dez vezes superior

Ucrânia. O ministro da Defesa
lituano, Arvydas Anusauskas,
empenhou-se pessoalmente
na campanha e apresentou o
drone numa cerimónia pública
na base aérea de Siauliai, em
junho, perante milhares de pes-
soas, muitas das quais tinham
feito doações para comprar a
arma. “Isto não vai mudar a
drones para enviar
para a Ucrânia
de dólares canadianos para
comprar um drone a tempo
do dia da independência da
Ucrânia, em 24 de agosto.
Desde há algum tempo
que forças armadas de todo
ação em 2016 nas montanhas
do sudeste da Turquia, reve-
lando-se uma arma eficaz.
Este drone permitiu às forças
armadas turcas expulsar os
guerrilheiros curdos do seu
território e matar muitos dos
seus dirigentes, dando a Anca-
ra uma vantagem nunca antes
alcançada.
drones são a bandeira
mais conhecida
de combate, tanques e aviões
próprios, e os drones Bayrak-
tar são a bandeira mais co-
nhecida de um sector cada vez
mais poderoso. Numa publi-
cação recente na rede social
22
e voam ao dobro da velocidade.
A Baykar, sediada num vas-
to complexo nos arredores
de Istambul, com parques e
instalações desportivas para
os mais de 2000 empregados,
consegue produzir 200 TB2 países compraram o
por ano. E está a desenvolver Bayraktar, da Albânia ao
a nova versão, o TB3, com asas Paquistão e à Arábia Saudita
dobráveis, que poderá ser lan-

guerra, mas é um gesto sim-
bólico da nação lituana para os
ucranianos”, disse.
A resposta da Baykar foi ines-
perada: “Vamos enviar quatro
drones sem custo e doar esses
fundos às pessoas em necessi-
dade na Ucrânia.” Estes exem-
plos levaram outros países a
o mundo querem comprar o
drone turco que tem mudado
o destino de várias guerras. O
TB2 Bayraktar, um drone não
pilotado, é capaz de carregar
bombas guiadas a laser e é su-
ficientemente pequeno para
ser transportado num pequeno
camião.
Os TB2 são produzidos por
uma empresa liderada por Sel-
çuk Bayraktar, um engenhei-
ro turco com pós-graduações
feitas nos EUA, no conceitua-
do Massachusetts Institute of
Technology (MIT), e que é gen-
ro do Presidente Recep Tayyip
Erdogan. Bayraktar casou em
Instagram, Bayraktar disse
que 93% dos componentes do
TB2 já são manufaturados na
Turquia.
Os TB2 tornaram-se também
um valioso trunfo diplomático,
usado com frequência pelo Pre-
sidente para promover o país e
a sua agenda. “O mundo inteiro
4
çado a partir de porta-aviões.
Do catálogo consta um drone
com duas hélices, o Akinci, que
voa a 40 mil pés, e está em de-
senvolvimento um protótipo
para um jato não pilotado, o
Kizilelma, e um drone-helicóp- guerras foram influenciadas
tero, o Cezeri. pelo TB2 Bayraktar: Síria,
internacional@expresso.impresa.pt Líbia, Etiópia e Azerbaijão

Zaporíjia é “muitas entidades internacionais que

Chernobil juntas”
A central de Zaporíjia
não está desativada
como Chernobil em 1986.
Armamento pesado
“tem de ser retirado”
Os morteiros que choveram no
fim de semana passado sobre
a central nuclear de Zaporí-
jia, a maior da Europa e uma
das maiores do mundo, fize-
ram regressar às nossas tele-
visões o medo de um desastre
nuclear devastador — não só
para a Ucrânia e para os seus
vizinhos como para todo o con-
tinente. “Não seria um segundo
desastre como o da central de
Chernobil, Zaporíjia é muitas
Chernobil juntas”, avalia ao Ex-
presso o major-general Arnaut
Moreira. O militar diz não con-
seguir saber, com toda a certeza
quem terá disparado os mortei-
ros sobre uma zona tão sensível
sem ter acesso a relatórios de
até agora não tiveram autoriza-
ção para visitar a central.
Quem teria mais a ganhar
com essas ações? Moscovo, no
entender de Arnaut Moreira.
“A tomada de Zaporíjia servi-
ria para que a Rússia pudesse
abastecer de energia territórios
ocupados e com um ataque de
‘falsa bandeira’, a Rússia pode
argumentar que os ucranianos
destruíram as próprias linhas de
alta-tensão e agora vão ficar sem
eletricidade, por culpa própria.
Por outro lado, pode ter-se dado
o caso de as forças ucranianas
terem tentado atingir as forças
russas estacionadas na margem
sul do Dniepre terem acertado
na central por engano”.
Como em outros incidentes
graves, como o ataque à prisão
em Donetsk no fim de julho,
onde morreram cerca de meia
centena de presos de guerra
ucranianos, Rússia e Ucrânia
apontam o dedo uma à outra.
A Rússia pediu uma reunião
do Conselho de Segurança da
ONU, para abordar a situação
na central que fornece energia
a quatro milhões de pessoas, e
o diretor-geral da Agência In-
ternacional de Energia Atómi-
ca (AIEA), o argentino Rafael
Grossi, deverá participar por
videoconferência.
O major-general chama
a atenção para o desenvolvi-
mento operacional e para as
prioridades das forças milita-
res russas, o que pode ajudar a
explicar por que razão os rus-
sos domiciliaram tanto arsenal
pesado na central: “Daquela
posição, a Rússia pode atingir
vários pontos do território
ucraniano com a certeza de
que a Ucrânia não vai retaliar
e correr o risco de desencadear
um enorme desastre nuclear
no seu próprio território.” E
só vê uma solução: a desmili-
tarização de toda a área. “Nem
sequer estou a defender que
a Rússia tem de abandonar o
terreno, mas é preciso retirar
o armamento pesado. A ONU
tem de intervir, não pode espe-
rar por resoluções do Conselho
de Segurança porque a central
não pode tornar-se um alvo.”
A semana ficou ainda marca-
da por um ataque à base aérea
de Saki, na Crimeia. Novas ima-
gens de satélite divulgadas pelo
“Guardian” mostram pelo me-
nos oito aviões russos destruí-
dos. A Ucrânia não reivindicou
o ataque oficialmente, mas um
membro do gabinete do Pre-
sidente ucraniano, Volodymyr
Zelensky, disse que o ataque
tinha sido orquestrado pelas
Forças Especiais. Se assim for,
este incidente representa uma
escalada acentuada das hostili-
dades, já que não existem no-
tícias de ataques ucranianos à
Crimeia, anexada pelos russos
ilegalmente em 2014.
Ana França
afranca@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
CHINA-TAIWAN
Pequim deixa a
“reconciliação”
em lista
de espera
O lançamento de um Livro Branco
sobre reunificação usa a palavra
“pacífica” mais de 50 vezes
António Caeiro
Menos de uma semana depois
de ter cercado militarmente
Taiwan, o Governo chinês lan-
çou esta quarta-feira um Livro
Branco sobre a reunificação da
China onde a palavra “pacífi-
ca” aparece mais de 50 vezes.
A ameaça do uso da força — diz
o documento — “não visa, de
forma alguma, os compatriotas
chineses em Taiwan” e só ocor-
rerá como “último recurso”. É
o primeiro livro do género em
mais de duas décadas e difere do
tom adotado pela imprensa ofi-
cial a propósito da “provocadora
visita” a Taiwan da presidente da
Câmara dos Representantes dos
EUA, Nancy Pelosi. Um jornal
de língua inglesa de Hong Kong,
o “South China Morning Post”,
considerou-o “relativamente
cordial”.
As manobras que decorre-
ram até domingo no estreito de
Taiwan foram as maiores desde
o fim da guerra civil chinesa,
em 1949, com mísseis balísticos
a sobrevoarem a ilha pela pri-
meira vez.
Na segunda-feira, quando a
China iniciou novos exercícios
militares na região, o “Global Ti-
mes”, tabloide do grupo Diário
do Povo, o órgão central do Par-
tido Comunista Chinês (PCC),
adiantou que “até à reunificação
as manobras não irão parar”.
Objetivo: “ensaiar a operação
reunificação-pela força”. Os co-
mandos militares anunciaram,
entretanto, que o Exército Popu-
lar de Libertação (nome oficial
das Forças Armadas chinesas)
“completou com sucesso várias
missões” e “testou eficazmente
as capacidades de combate das
tropas”. A tensão parece ter di-
minuído.
Ação de “forças externas”
“Trabalharemos com a maior
sinceridade e envidaremos os
maiores esforços para alcançar
uma reunificação pacífica […] As
diferenças no sistema social não
são um obstáculo”, proclama o
Livro Branco. Vista de Pequim, a
Rivalidade e Taiwan
A
curta visita de Nancy
Pelosi, presidente da
Câmara dos Repre-
sentantes dos EUA,
a Taipé no início do mês e
as suas palavras públicas de
apoio à democracia constitu-
cional de Taiwan clarificaram
um ponto, mas tal está a impe-
dir-nos de perceber um facto
essencial.
discórdia é fomentada por “for-
ças externas” que “exploram a
questão de Taiwan para conter
a China”.
Depois da reunificação — ga-
rante o Governo chinês —, “o
sistema social e o modo de vida
de Taiwan serão plenamente
respeitados e a propriedade pri-
vada, crenças religiosas, direitos
legais e interesses do povo de
Taiwan serão plenamente pro-
tegidos”. É uma aplicação do
princípio “um país, dois siste-
mas”, seguido em Hong Kong e
Macau, com resultados que até
agora não seduziram a maioria
dos “compatriotas de Taiwan”,
a ilha onde se refugiou o antigo
Governo chinês depois da pro-
clamação da República Popular
da China (RPC), há 72 anos. As
O embaixador chinês
em Paris perguntou
na TV “porque é que há
20, 30 anos, a maioria
da população de
Taiwan era a favor
da reunificação
e agora é contra?”
principais forças políticas locais
também nunca aceitaram aque-
la fórmula, alegando que Taiwan
não é uma colónia.
Apenas a Santa Sé e mais 13
Estados mantêm relações diplo-
máticas com Taiwan, sede de um
arquipélago com 23 milhões de
habitantes que continua a osten-
tar o nome de República da Chi-
na (sem o adjetivo “popular”).
Para Pequim, trata-se de uma
província chinesa. Na prática,
é independente, com moeda e
Forças Armadas próprias.
Durante cerca de 40 anos
viveu sob lei marcial. Era uma
ditadura, dirigida pelo generalís-
simo Chiang Kai-shek, fervoroso
anticomunista que se conver-
teu ao cristianismo. Depois de
morrer, em 1975, sucedeu-lhe o
filho, Chiang Ching-kuo, que no
final da década de 80 começaria
a abrir a ilha ao pluralismo. A
abertura coincidiu com a trans-
Guerra
e Paz
Miguel Monjardino
guerraepaz.expresso@gmail.com
Para começar, tornou eviden-
te que o que define a relação
entre Pequim e Washington
desde há alguns anos é a rivali-
dade. Todavia, Pequim, Taipé e
Washington têm defendido que
continuam a apoiar o princípio
de “Uma só China”. Se assim é,
como explicar então a retórica
política usada por essas capi-
tais e a campanha de coerção
formação de Taiwan numa das
mais dinâmicas economias asiá-
ticas, sobretudo no sector eletró-
nico, indústria em que continua
a ser uma grande potência. Pre-
sidente, Governo e autarquias lo-
cais são hoje eleitos por sufrágio
direto. No continente, o “papel
dirigente” do PCC permanece
um “princípio cardeal”.
Mao Zedong, o fundador do
PCC e primeiro Presidente da
RPC, chegou a admitir a “inde-
pendência” de Taiwan em 1936.
Referindo-se à vizinha Coreia,
que o Japão convertera numa
colónia, Mao disse que se os
coreanos desejassem “romper
as cadeias do imperialismo ja-
ponês”, os comunistas chineses
dariam “uma entusiástica ajuda
à sua luta pela independência”.
E “a mesma coisa se aplica a Tai-
wan”, acrescentou. (A ilha fora
anexada pelo Japão em 1895.)
Mais tarde mudou de opinião,
militar e comercial da China
contra Taiwan? A resposta é
que, por razões diferentes, os
três países estão a redefinir o
entendimento e as fronteiras
da expressão “Uma só China.”
Este é o facto essencial.
Para Xi Jinping e o Partido
Comunista da China (PCC) é in-
tolerável que Taiwan continue,
de facto, a ser um país indepen-
dente, democrático e bem-suce-
dido do ponto vista económico.
Em Portugal, continuamos a
elogiar a paciência estratégica
chinesa. Na realidade, o hori-
zonte temporal de Xi Jinping é
bem mais curto do que pensa-
mos. Os problemas demográ-
ficos e económicos da China
são reais. É possível que até ao
final da década Pequim atinja
o ponto máximo da sua ascen-
são. A janela de oportunidade
mas em 1972, quando recebeu
Nixon em Pequim, indicou que
não tinha pressa em alcançar a
reunificação: “Podemos esperar,
talvez até uma centena de anos.”
Pequim menos paciente
A atual liderança mostra-se
menos paciente. Desde que Xi
Jinping ascendeu ao topo da hie-
rarquia, em 2012, a separação
tornou-se quase uma questão
existencial. As pressões para
“acelerar o processo de reuni-
ficação” aumentaram, acom-
panhando o crescente poderio
económico e militar da RPC. “A
China já tem capacidade para li-
bertar Taiwan”, afirmam alguns.
O próprio general Qiao Liang,
coautor de “Guerra sem Restri-
ções”, um ensaio divulgado há
cerca de década e meia no Oci-
dente como “o plano mestre da
China para destruir a América”,
histórica do líder chinês é curta.
Neste contexto, o apoio conti-
nuado de Washington a Taiwan
ao nível político e militar é com-
pletamente inaceitável para o
PCC. A campanha de coerção
no estreito de Taiwan, uma das
principais artérias comerciais
mundiais, visa obrigar Taipé
e Washington a recuarem. É
duvidoso que tal aconteça.
Tsai Ing-wen, Presidente de
Taiwan, e os seus conselheiros
são cautelosos. O problema es-
tratégico de Taipé é encontrar
formas de diminuir a sua vul-
nerabilidade em relação a uma
China muito mais poderosa e
confiante. Taiwan não parece
ter a menor vontade de fazer
parte de uma China governa-
da pelo PCC liderado por Xi
Jinping. As escolhas de Tsai
Ing-wen têm sido no sentido
parece um moderado. “O obje-
tivo final da China”, defendeu
Qiao Liang em 2020, “não é a
reunificação, mas concretizar
o sonho do rejuvenescimento
nacional, para que os 1400 mi-
lhões de chineses possam todos
ter uma vida boa”.
Segundo uma sondagem rea-
lizada no primeiro semestre pela
Universidade Chengchi, de Tai-
pé, apenas 1,3% dos habitantes
de Taiwan são a favor da reunifi-
cação “o mais depressa possível”
e só 5,1% desejam a independên-
cia “o mais cedo possível”. Mais
de um quarto (28,6%) prefere
“manter indefinidamente o sta-
tu quo”, outros tantos querem
“decidir mais tarde” e 25,2%
optam por “manter o statu quo
tendo em vista avançar para a
independência”.
“A reunificação pacífica só
pode ser alcançada através de
consulta e discussão em pé de
de clarificar a importância de
Taipé ao nível tecnológico, co-
mercial, estratégico e político
dentro da sua interpretação
da expressão “Uma só China.”
As suas relações com Tóquio e
Washington têm sido decisivas
neste processo.
Na capital norte-americana,
Taiwan é visto como essencial
para a manutenção de uma
ordem regional favorável aos
interesses e valores dos EUA
e dos seus aliados. Joe Biden
tornou isto claro várias vezes
desde o início do seu manda-
A verdade é que a
expressão “Uma só
China” sempre foi
ambígua desde 1972
PRIMEIRO CADERNO 27
Um miradouro em
Taiwan com vista
para as manobras
militares em curso
na região FOTO HECTOR
RETAMAL/GETTY IMAGES
igualdade”, reconhece o Livro
Branco. “Estamos prontos para
nos envolvermos com todas as
partes” em “formas flexíveis de
consulta e discussão”.
Na semana passada, o em-
baixador chinês em Paris, Lu
Shaye, perguntou na TV “por-
que é que há 20, 30 anos, a
maioria da população de Tai-
wan era a favor da reunificação
e agora é contra?”. Devido à
“muita propaganda antichine-
sa” feita pelo Partido Democrá-
tico Progressista, da Presidente
Tsai Ing-wen, disse. “Depois da
reunificação, vamos fazer uma
reeducação. Estou certo de que
a população de Taiwan se torna-
rá de novo favorável à reunifi-
cação e patriótica”, rematou o
embaixador chinês. Não é bem
o que diz o novo Livro Branco,
mas a reunificação também não
é para amanhã.
internacional@expresso.impresa.pt
to. A Casa Branca apressou-se
a clarificar que Washington
não tinha mudado de posição
sobre o seu entendimento do
que significa “Uma só China.”
A expressão sempre foi ambí-
gua desde 1972. Dito isto, pa-
rece-me evidente que, tal como
acontece em Pequim e Taipé, a
Administração Biden e o Con-
gresso também modificaram
o seu entendimento sobre o
tema. Em Tóquio a situação é
semelhante.
Tudo isto resulta da profun-
da alteração do contexto estra-
tégico. O período que vivemos
é muito diferente do de 1972. A
China e os EUA também mu-
daram imenso. A rivalidade
entre Pequim e Washington
está no seu início. Quais serão
as suas regras e entendimen-
tos? Convém saber.
28 PRIMEIRO CADERNO
BRASIL 200 ANOS
Maria da Paz Trefaut
Correspondente em São Paulo
O
brasileiro tem complexo
de vira-lata. A expressão
foi cunhada por Nelson
Rodrigues nos anos 50.
O escritor e dramaturgo
definiu por “complexo
de vira-lata” a inferiori-
dade em que o brasileiro se coloca,
voluntariamente, face ao resto do
mundo. “É um narciso às avessas, que
cospe na própria imagem. Eis a ver-
dade: não encontramos pretextos pes-
soais ou históricos para a autoestima.”
Esse sentimento de desvalorização,
muito difundido no imaginário bra-
sileiro, é ancestral e está presente
desde a origem. Na história, faz parte
do senso comum achar que se o Brasil
tivesse sido colonizado pela Inglater-
ra seria um país de primeiro mundo,
a exemplo dos Estados Unidos. Claro
que quem pensa assim jamais avalia
o resultado da colonização inglesa na
Índia, Uganda ou Jamaica. Apenas
lamenta ter cabido ao gigante lati-
no-americano a herança de um país
menos desenvolvido da Europa.
É curioso que essa perceção se te-
nha alterado nos últimos 10 anos, com
a emigração de brasileiros ricos para
Portugal e a chegada de empresá-
rios e expatriados de multinacionais.
Agora, Portugal é a Europa que fala a
nossa língua. Um porto seguro onde
é possível andar à noite nas ruas sem
medo de ser assaltado e onde a vio-
lência encontra punição nas leis e
num Estado de direito que parece não
existir no Brasil.
“Acho que Portugal virou o lugar
onde a gente pode ir, ter paz, segu-
rança, civilidade. É como se fosse a
casa da nossa avó, um país ideal para
a nossa aposentadoria. É uma Europa
que nos acolhe”, diz ao Expresso a
médica e psicoterapeuta gaúcha San-
dra Adams, que tem consultório em
Porto Alegre. “Tenho pacientes que
se mudaram para Lisboa e contam
que há outro uso do espaço público,
andam à noite sozinhos nas ruas, algo
impensável aqui. Nos últimos quatro
anos, especialmente, o Brasil virou
um faroeste e vemos que Portugal é
um lugar onde não se incita ninguém
a resolver os problemas com armas.”
Independência
“É como
se fosse a casa
da nossa avó”
Com os migrantes brasileiros
em Portugal a mudar de perfil,
o conhecimento sobre o país ultrapassa
estereótipos de outras eras
O trânsito entre os dois países tem-
-se intensificado nos últimos anos.
Isso é bastante presente no ensino,
com professores universitários que
dão aulas aqui e lá e com o intercâm-
bio de alunos que davam preferên-
cia a outros países europeus. “Tenho
cada vez mais alunos que encaram
Portugal como opção para estudar”,
conta Teresa Chaves, professora de
História e coordenadora da Móbile,
AGORA, PORTUGAL
É A EUROPA QUE FALA
A NOSSA LÍNGUA.
UM PORTO SEGURO
ONDE É POSSÍVEL
ANDAR À NOITE
NAS RUAS
escola secundária da classe alta de
São Paulo. “Essa maior procura para
fazer a faculdade em Portugal é esti-
mulada pela escola.”
Conta que muitas vezes os adoles-
centes chegam com uma visão muito
ultrapassada de Portugal. “Transmi-
tem a perceção dos pais e avós, que
olham para o país como colonizados
ofendidos, sem qualquer orgulho da
história. São provenientes de extratos
muito ricos, formados nessa valoriza-
ção do hiperconsumismo, onde o que
importa é o crescimento económico
e o grande modelo são os Estados
Unidos. Mas quando falo do Portugal
contemporâneo, ficam surpresos ao
saber que há uma solução política
que inclui o Partido Socialista e que
dá certo.”
Teresa salienta que a sua visão de
Portugal mudou muito. “Lembro que
quando o visitei pela primeira vez era
um país muito conservador. Acho que
hoje permite uma vida progressista e
tolerante com a diversidade. Tenho
amigos gays que se mudaram para lá e
perderam o medo que sentiam aqui.”
Essa cultura voltada para a tolerân-
cia a arquiteta e urbanista Margareth
da Silva Pereira, professora da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro,
consegue vê-la nas cidades que o Bra-
sil herdou dos portugueses. “Tivemos
violência no período colonial, mas não
só. Os portugueses nos deram um
amor muito grande pelas cidades. Se
percorrermos a costa brasileira por
Belém, São Luís, Recife, Salvador, se
analisarmos as cidades implantadas
no litoral, nossa primeira fronteira,
é muito forte o prazer de estar jun-
to. E os portugueses não nos deixam
esquecer que viver em cidades é um
exercício de convivência, de viver com
a diferença. Pena que esse alargamen-
to de mundos se esteja perdendo aqui,
com o individualismo crescente.”
Ao mesmo tempo, recorda que há
faculdades de Arquitetura no Brasil,
por exemplo o campus de São Carlos,
da Universidade de São Paulo, onde
o curso de História da Arquitetura
Brasileira começa no século XX. “Há
faculdades de Arquitetura que não
estudam o que se chama ‘período co-
lonial’, entre aspas. Iniciam o ensino
como se o Brasil tivesse começado
com a formação da República.”
O historiador português Nuno Gon-
çalo Monteiro, que já deu aulas em
universidades brasileiras e conhece
bem o país, vai mais longe: “Os gran-
des intelectuais do Brasil do século XX
pensam muito fora da ascendência
portuguesa, imputando a essa herança
uma espécie de coisa maléfica. Essa
dimensão existe alinhada com uma
visão sempre negativa do catolicismo,
em comparação com as culturas pro-
testantes. A escola da Universidade
O TRÂNSITO ENTRE
OS DOIS PAÍSES
TEM-SE INTENSIFICADO
NOS ÚLTIMOS ANOS.
ISSO É BASTANTE
PRESENTE
NO ENSINO
Expresso, 12 de agosto de 2022
FOTO YASUYOSHI CHIBA/AFP VIA GETTY IMAGES
A estátua do Cristo
Redentor, no Rio de Janeiro,
iluminada com as cores da
bandeira portuguesa durante
o Mundial de futebol de 2014
de São Paulo é formada nesse tipo de
ideologia.” Por outro lado, considera
que a historiografia portuguesa não
reconhece o papel do país na escrava-
tura e no tráfico de escravos.
Independentemente de questões
mais académicas, o interesse da elite
empresarial pensante por Portugal
é crescente. O carioca Rui Campos,
dono da Livraria da Travessa, uma
rede com 12 lojas, abriu a sua primei-
ra filial em Lisboa. “Não tínhamos
projeto de expansão ultramarina, mas
é impressionante como Lisboa tem
mudado e se tem tornado uma cidade
cosmopolita. O país cada vez melhora
mais, com uma realidade política que
nos causa inveja. Veja o Presidente
Marcelo Rebelo de Sousa, um homem
de letras, um democrata.”
A Livraria da Travessa fica no Prín-
cipe Real, no Palácio Castilho, junto
a outras lojas brasileiras. Campos
gosta de compará-la, enquanto es-
paço, ao Rick’s Café, de Humphrey
Bogart, no filme “Casablanca”, onde
se juntam expatriados e saudosos.
“Os brasileiros que moram em Lis-
boa sentem-se em casa na livraria,
que se tornou ponto de encontro, de
conversa. Mas o público principal é
composto por portugueses que vão
em busca das novidades do mercado
editorial brasileiro.”
O interessante, diz, é que os portu-
gueses admiram a diversidade edito-
rial brasileira e o trabalho gráfico
feito aqui. “Já eu penso o contrário,
vejo as edições portuguesas e fico
encantado com o tipo de papel, os
formatos, descubro sempre editoras
maravilhosas, milhares de novidades.
Vejo que esse intercâmbio a cada dia
aumenta e acho que a chegada da
Travessa ajuda e estimula essa troca.”
Há um reverso desse sonho, que é
a experiência real de estudantes que
fizeram intercâmbio em Portugal.
Principalmente mulheres falam de
assédio moral, desrespeito e xeno-
fobia. Dizem que há uma visão cris-
talizada da brasileira como mulher
fácil. Por medo, nenhuma aceitou dar
entrevista ao Expresso fora do ano-
nimato. Mas existe um grupo no Ins-
tagram, “Brasileiras não se calam”,
com denúncias de discriminação e
tratamento recebido por mulheres de
diferentes classes sociais.
internacional@expresso.impresa.pt
 Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 29

EXPRESSO.PT O podcast “Brasileiros, que Tal?” DESCODIFICAD OR

apresenta entrevistas da jornalista Christiana Martins
a propósito dos 200 anos da independência do Brasil

Itamar Vieira Júnior Escritor

“Não depositamos Buscas a Trump.

todas as nossas E agora?
esperanças nas eleições” Donald Trump levou documentos que deveria
ter deixado na Casa Branca quando perdeu a reeleição,
e o FBI foi a sua casa buscá-los. O que dizem?
Que crimes poderá Trump ter cometido?
Em que outros processos estará envolvido?

1 Oo FBI
que procurava
nas buscas
que fez à mansão
de Trump na Florida?
Documentos sensíveis que o
ex-Presidente trouxe da Casa
Branca no fim do seu mandato.
A própria advogada de Trump,
Christina Bobb, confirmou que
os investigadores estavam
à procura de “material
potencialmente secreto”. O FBI
esteve dentro da mansão de
Mar-a-Lago cerca de 10 horas,
ainda segundo Bobb.

2 Osobre
que sabemos
o conteúdo
FOTO UENDEL GALTER

dos documentos?

FOTO FABRICE COFFRINI/GETTY IMAGES

Christiana Martins
Autor de “Torto Arado”, ven-
cedor do Prémio Leya 2018 e
do Prémio Oceanos de 2020,
o maior sucesso de vendas li-
terárias no Brasil nas últimas
décadas, Itamar Vieira Júnior,
43 anos, já vendeu mais de 350
mil exemplares do outro lado do
Atlântico e está traduzido em 15
idiomas. Nasceu em Salvador, é
doutorado em estudos étnicos e
africanos e funcionário público
no INCRA, organismo estatal
que aplica a reforma agrária no
Brasil, tendo por isso já recebido
ameaças de morte. Conversou
com o Expresso para o podcast
“Brasileiros, que Tal?” e não se
esquivou a confrontar os portu-
gueses com o legado que deixa-
ram aos brasileiros.
P A situação pode não se resol-
ver com as eleições?
R Sim, vamos precisar de nos
conciliar para que este país vol-
te a um mínimo de normalida-
de. Não depositamos todas as
nossas esperanças nas eleições.
Vai precisar de muito tempo,
diálogo e compreensão para
pensar um projeto de país que
diga respeito a todos. Não sei
como se vai fazer, mas o início
precisa ser imaginado e talvez
seja essa mudança de governo
que se impõe como imperiosa
a todos nós.
P Quando olhamos para o ra-
cismo no Brasil falamos de Por-
tugal?
R É inevitável, Portugal tem
responsabilidade no processo
de colonização, não só do Bra-
necem aqui, mas também em
Portugal. O exemplo da atriz
brasileira [insultada em Lisboa]
é uma pequena amostra do que
Portugal ainda precisa avançar
para superar este passado que
nos desonra e ofende a todos,
inclusive aos portugueses.
P É necessário rever a chegada
dos portugueses ao Brasil? Falar
em invasão e não em descobri-
mento?
R Acredito que sim, é preci-
so contar a história de outra
maneira. Sempre foi contada
pelos vencedores. Quero fazer
uma convocação: que não nos
coloquemos em oposição por-
tugueses e brasileiros, porque
este é um momento da história
em que podemos nos olhar com
uma certa igualdade, em que
A execução do mandado de
busca representa uma escalada
significativa na investigação
de vários meses por parte do
Departamento de Justiça (DOJ,
em inglês). A Administração
Nacional de Arquivos e Registos
(NARA) já havia retirado da
residência de Donald Trump 15
caixas com material pertencente
à Casa Branca, conforme
noticiou o “Washington Post”. O que quer que faça, Donald Trump permanece nas notícias
Isto depois de os advogados
do ex-Presidente terem levado como discriminação laboral). fiel a Trump apenas se solidifica
o caso até o Supremo para Há rumores de que o DOJ possa nestes momentos em que o
tentar impedir a entrega deste mesmo vir a levar Trump ao seu ídolo é atacado pelas elites
material. Sem sucesso. A única banco dos réus por suspeitas de e pelo “sistema”. A CNN tem
coisa que já se sabe é que, envolvimento na organização outra sondagem que mostra que
entre os documentos, há várias da insurreição de 6 de janeiro, Trump ainda é “bem visto” por
comunicações presidenciais, cujo objetivo declarado foi 80% dos republicanos — “muito
incluindo as “cartas de amor” impedir a certificação de Joe bem visto” por cerca de 50%.
enviadas por Trump ao líder Biden como Presidente. Esse
norte-coreano Kim Jong-un
— expressão do próprio
ex-Presidente — bem como
passo ainda não foi dado. Há
outro caso, também com ligação
às tentativas de Trump e da
6 Trump pode
concorrer mesmo
que seja condenado?
uma carta do antigo Presidente sua equipa em subverter os
Barack Obama para o então resultados das eleições, que está A Constituição mantém o
Presidente Trump. atualmente a correr perante princípio de que os eleitores
um Grande Júri em Atlanta, decidem quem os representará,

P Traduza Brasil e os brasilei-

ros?
R O Brasil é terra de esperança.
Acredito que somos frutos da
esperança de muita gente que
aportou aqui durante séculos.
Aqui já estavam os povos origi-
nários e depois veio a imensa
diáspora africana. Todos chega-
ram por motivos diferentes, nem
todos de maneira espontânea,
mas conservaram os sonhos e
acredito que este país ainda há
de se tornar o melhor sonho de
todos os que aqui estiveram.
P Como está o país?
R O Brasil está numa encruzi-
lhada. Existe um projeto colo-
nial e é muito interessante que
quando falo sobre isso vejo al-
guns portugueses incomodados,
mas o colonialismo diz respeito
ao nosso passado comum. É cla-
ro que o Brasil está independen-
te há 200 anos e houve um longo
percurso para se descolonizar e
de facto não aconteceu porque
as elites brasileiras permitiram
que a colonização chegasse aos
nossos dias. Quando falo de co-
sil, mas das ex-colónias de Áfri-
ca, e acredito que a revisão do
passado é importante para nós,
mas também para Portugal.
Faz parte de um avanço civili-
zatório que deve ser feito em
comum. Vejo um interesse ge-
nuíno de Portugal em conhecer
esta história. É claro que, como
o Brasil, há pessoas interessa-
das e outras não. Mas esse avan-
ço só será possível se Portugal
estiver connosco. As estruturas
do legado da escravidão perma-
QUANDO FALO DE
COLONIALISMO,
FALO DE NÓS,
COLONIZADORES
DE NÓS MESMOS
PORTUGAL
PRECISA
não nos falamos com acusações,
mas precisamos fazer um esfor-
ço conjunto para compreender
a história.
P O que sente quando dizem
que fala “brasileiro”?
R Esta é uma questão muito
relevante. É um ponto crucial
para todos nós. Esse debate
tem de ser bem pensado ou
pode derivar em xenofobia.
A língua portuguesa nos une,
mas não é única, ela ganhou
densidade e profundidade em
cada fração de terra em que é
falada. É importante ter a di-
mensão exata de que a língua
portuguesa é diversa e que car-
rega os sonhos, as característi-
cas, a formação de cada um dos
seus falantes. É aí que reside a
riqueza dessa língua. As difi-
culdades não são um obstáculo
a que possamos nos compreen-
der, a língua é elástica, flexível,
vai-se adaptando à necessidade
dos falantes.
P Reconhece-se como falante
de português?
R Sim, essa é a minha língua,
embora não fale nem escreva
3 Trump vai ter de ir
a tribunal? Acusado
de que crimes?
O DOJ não falou ainda sobre
qualquer acusação específica.
Há duas questões principais.
Uma são os estatutos federais
que tratam do manuseio de
material sensível, uma vez que
há uma lei que proíbe a remoção
e retenção não-autorizadas
de documentos confidenciais,
especificamente; outra é a Lei
de Registos Presidenciais, de
1978, aprovada no rescaldo
do escândalo das escutas ao
quartel-general dos democratas,
autorizadas por Richard
Nixon — hoje conhecido como
Watergate. A legislação exige
que os presidentes preservem
todo o material historicamente
relevante do seu tempo no cargo
— desde registos telefónicos e
resumos de segurança nacional
a e-mails e notas escritas
à mão — e que os entreguem
ao Arquivo Nacional.
4 Que outros
processos correm
na Justiça contra
no estado da Geórgia. Os
cidadãos chamados para avaliar
provas devem decidir se Trump
tentou ou não influenciar os
resultados das eleições neste
estado quando telefonou
ao secretário de Estado da
Geórgia, Brad Raffensperger,
a 2 de janeiro de 2021, para
que este lhe “arranjasse” os
votos em falta para reverter
o seu resultado eleitoral. A
gravação da chamada chegou
ao “Washington Post”. Há
ainda três processos movidos
por membros das forças de
segurança que estiveram no
Capitólio no dia do ataque
e vários por alegada gestão
danosa do conglomerado
empresarial da família.
5 Trump ainda tem
milhões de eleitores
e está a considerar
concorrer de novo
à presidência.
É imune a danos
reputacionais?
Não é, mas a sua base continua
firme como granito. Uma
sondagem do Instituto de
desde que o candidato tenha
nascido nos Estados Unidos,
tenha pelo menos 35 anos e
resida há pelo menos 14 anos
no país. O cadastro não é um
fator de eliminação, e estar sob
investigação também não.
7 Trump é por vezes
acusado de estar
a tentar controlar o
aparelho de Estado.
Isto é verdade?
Sem vencer as eleições
presidenciais, o caso torna-
-se mais complicado, mas
não é teoria a intenção de
Trump despedir milhares de
funcionários públicos que
não lhe sejam leais, os que
normalmente transitam de uma
Administração para outra. Há
uma ordem executiva assinada
para esse efeito, mas depois
Trump perdeu as eleições e
Biden revogou-a. No site de
investigação política Axios é
possível ler um texto de Jonathan
Swan, baseado em dezenas de
entrevistas com funcionários
da Administração Trump, que
explica a ideia. Resumidamente,

AVANÇAR PARA
lonialismo, falo de nós, coloniza- no português europeu, mas [a Siena College para o “New York a intenção seria afastar milhares
dores de nós mesmos. O Brasil variante do português do Bra-
Donald Trump? Times” mostra que, enquanto de trabalhadores com funções

chega aos 200 anos de indepen-
dência com um governo colonia-
lista, escolhido por estas elites
que permanecem, os oligarcas
deste país. Talvez em nenhum
momento tenhamos tido tanta
consciência dos nossos males,
que o Brasil precisa superar
para ser o país do futuro.
SUPERAR ESTE
sil] não é um dialeto, porque é
falada e escrita por mais de 200
PASSADO QUE milhões de pessoas. Os meus li-
vros publicados em Portugal não
NOS DESONRA passaram por nenhuma revisão,
o que prova que há possibilidade
de a gente se comunicar de ma-
neira compreensível.
camartins@expresso.impresa.pt
São muitos, de naturezas
diferentes e em estágios de
desenvolvimento distintos. No
site de uma organização para a
transparência na Justiça, a Just
Secutiry, estão descritos 22,
mas os autores avisam que os
menos graves não estão na lista
(e os menos graves são coisas
49% dos republicanos dizem que
vão escolher Trump de novo nas
primárias, 47% estão prontos
para escolher outro nome e
deixar Trump no passado. Por
outro lado, continuam a ser
publicados estudos, ensaios,
artigos académicos, sondagens
que nos mostram que a base
tangencialmente políticas,
muitos posicionados no “meio”
das hierarquias dos serviços
públicos, e substituí-los por
outros, fiéis a Trump. Essa lei,
conhecida como “Anexo F”,
chegou a estar em vigor
durante um mês.
Ana França
30 PRIMEIRO CADERNO Expresso, 12 de agosto de 2022

VERÃO

O
AS DICAS DO FELNER alho pode dar-nos um
almoço de sonho ou
Ricardo uma tragédia familiar.
Há uns anos, tive uma
Dias Felner prova impressiva disto. Calha-
ra-me cozinhar a roupa-ve-
lha do Natal, depois da tarefa
Cuidado ter sido prosseguida pelo Tio
Dante, durante décadas. O Tio
com o Dante fazia a roupa-velha com
o esmero de um ourives e era
enxovalhado. Tudo por causa
dos alhos velhos.
Desde então que sou um es-
quisitinho do alho e que acho
que a melhor altura para fazer
roupa-velha não é no Natal, mas
agora, a partir de julho, quan-
do aparecem os alhos novos.
Falemos deles como falamos
de lavagante. Os alhos novos
são insuperáveis, sumarentos,
receita icónica do chefe espa-
nhol Sergi Arola: corta-se longi-
tudinalmente e barra-se numas
torradas — a ideia é deixar só
o sumo do alho na superfície;
depois, faz-se o mesmo com um
tomate aberto ao meio; por fim,
deita-se um fiozinho de bom
azeite e flocos de sal.
O alho novo cru picado fica
igualmente brilhante numa la-
Já quando os for cozinhar
deve ter atenção ao germe,
disse isto e uma pessoa ralhou
comigo com a autoridade de
aquele veiozinho no centro. Os
chefes da TV costumam dizer
uma engenheira alimentar e o
tom de uma mãe a mandar o
para se tirar sempre o germe, filho arrumar os Lego. Que era
em parte porque os chefes da um ignorante e um irresponsá-
TV têm de dizer coisas, em vel: “O germe tem uma subs-
parte porque os chefes já não
descascam mais alhos e em
tância que é nociva. Deve ser
sempre retirado”, protestou.
parte porque alhos sem germe
são, de facto, menos amargos.
Nunca encontrei evidências
disto, nem na literatura, nem

alho, essa bajulado por isso.

Quando herdei o posto, des-
cascaram-se toneladas de alhos
maravilha e ninguém estranhou o odor
dos bolbos, envelhecidos e ama-
relados. Tias e primos picaram
tudo e atiraram tudo para den-
tro do panelão. Eu cuidei das
couves e dos brócolos, do pon-
to de cozedura do bacalhau e
das batatas, da quantidade de
pimenta branca e de vinagre,
de que não pegava ao tacho e
não acabava em papa. No final,
ficou uma bosta. A roupa-ve-
lha sabia a trapo mofento e o
neogourmet da família acabou
ligeiramente picantes e doces.
Devemos procurá-los nos mer-
cados, nas feiras da província,
na merceeira que traz coisinhas
da terra e os vende em tranças.
São pequeninos, são duros e
danados para pelar, mas não
há nada que não transformem
em coisa saborosas, não fossem
bons transmissores de umami.
Para aproveitar ao máximo
as qualidades dos alhos novos é
preciso usá-los crus. Podemos
só picá-los num prato de bom
azeite virgem extra de azeitona
galega, para ensopar em pão ou
no que for. Ou então, usando a
garada de ovas grelhadas ou a
terminar um bife ou umas bata-
tas assadas ao murro, com salsa
ou coentros picados.
Acontece que se trata de um
produto sazonal, como são os
alperces ou o subsídio de fé-
rias. Os alhos novos acabam e,
a partir de outubro, novembro,
temos de tomar cuidado. Antes
de os comprar, é preciso apal-
pá-los, dente a dente. Os moles
são logo descartados. Outro tes-
te obrigatório é cheirar: snife
os seus alhos. Se tiverem um
aroma a armário de pensão,
esqueça.
José Avillez, por exemplo, é
um intransigente do germe e a
verdade é que a comida dele é
elegante e equilibrada.
Das minhas experiências, de-
pende. Com os alhos de verão,
nunca tiro o germe: se forem
mesmo novos, não têm sequer
germe. No resto do ano, se for
para usar cru, por exemplo,
numa maionese, tiro o germe.
Mas, se for para um refogado
de feijoada à transmontana, já
posso picar em bruto, sem tirar
o germe (caso seja pequeno).
Há uns tempos, numa reu-
nião de cozinheiros amadores
no intestino. O que o germe dos
alhos velhos faz é amargar ligei-
ramente a comida, sobretudo se
não for cozinhado.
De resto, nunca teremos esse
problema com os fantásticos
alhos novos. Há só uma ques-
tão. Alhos novos são pequenos
e têm uma película autocolante
e é preciso gestos minuciosos
para os despirmos. Devemos,
contudo, lembrar-nos que um
dentinho de alho novo, portu-
guês, tem mais sabor do que
três gomos dos velhos, espa-
nhóis.
Eu pelo-me por eles.

ONDE COMER ONDE DORMIR

Noélia & Jerónimo Conversas de Alpendre

Clássicos: “Arroz de carabineiros”, Uma cabana No Rules e a casa
“Tapa de muxama de atum” e “Arroz no topo de uma alfarrobeira são
de limão com corvina e amêijoas”. apenas algumas das possibilidades
Tel. 281 370 649 de alojamento.
Cabanas de Tavira Tel. 910 035 704
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Especialidades de tacho como “Galo Farmhouse of the Palms
do campo estufado”, “Ensopado de O quarto mais procurado
javali” ou “Feijoada de búzios”. continua a ser o nº 4, onde se pode
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Paderne fitando a paisagem do barrocal
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Prove os prodigiosos cozinhados
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Em busca de um Algarve
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Do receituário tradicional, com A partir de €150
apresentação cuidada, destacam-se
“Ovos de codorniz com chouriça de Hotel Rural Quinta do Marco

(quase) desconhecido Monchique”, “Javali com ameixa” e

A par das serranias de Monchique e do Caldeirão, o barrocal algarvio
é um vasto território preservado e que guarda alguns segredos
Paulo Brilhante
Território de fusão entre o mar e a ser-
ra, o barrocal algarvio caracteriza-se
pelos barrancos ou barrocas suaves,
que moldam a paisagem decorada
por alfarrobeiras, amendoeiras, fi-
gueiras, oliveiras e laranjeiras. É, a
par das zonas serranas de Monchique
e do Caldeirão, uma área menos co-
nhecida e marcada pela ruralidade.
Com apoio da Via Algarviana, que
atravessa a região desde o Cabo de
São Vicente até Alcoutim, existem
300 km de caminhos, a maioria pela
serra, devidamente assinalados, para
fazer a pé ou de bicicleta. A Rota das
Árvores Monumentais, composta por
três circuitos, é uma das sugestões
para Monchique, com pontos de in-
teresse tanto na vila como na Foia,
o ponto mais alto do Algarve, onde
pode relaxar na esplanada da food
truck Alecrim. Na zona sul da serra
de Espinhaço de Cão, a albufeira da
barragem da Bravura é considerada
uma das mais bonitas da região. Na
margem esquerda do rio Arade, o Sítio
das Fontes de Estômbar é uma espécie
de praia fluvial. Com água pura de
nascente a alimentar a piscina, a Tapa-
da do Gramacho é um local certo para
desligar. A poucos minutos merece
visita (e provas) um novo produtor de
vinhos de nome Arvad.
Considerada por muitos um dos últi-
mos segredos do Algarve, Alte é uma
EVENTOS
Procissão no mar
Em honra de Nossa Senhora da
Orada, em Albufeira, a 14 de agosto,
pode assistir e participar na procissão
no mar, com barcos de pesca e de
recreio devidamente engalanados.
Verão em Tavira
No centro da cidade, esta iniciativa de
verão prolonga-se até dia 17 de agosto,
com muita animação e iniciativas. No
dia 11 atua Diogo Piçarra e a última
noite conta com Dino D’Santiago.
Feira Medieval
Até 20 de agosto, o centro histórico de
Silves faz uma viagem no tempo para
recriar a história do período medieval
da antiga capital do Reino do Algarve.
Mar-Me-Quer
Na zona ribeirinha de Portimão, entre
11 e 14 de agosto decorre o festival
Mar-Me-Quer que conta com
atuações de Diogo Piçarra e Richie
Campbell. Dia 12 há Neo Run.
Rota do Petisco
Entre 14 de setembro e 16 de outubro,
221 estabelecimentos de 11 municípios
algarvios vão ter petiscos e doces
regionais com bebida incluída por €3.
“Secretos de porco com migas”.
Tel. 282 911 149
Monchique
Preço médio: €25
Tasca do Petrol
Cozinha serrana onde o porco é rei,
dos petiscos aos substanciais, como
o “Cozido de couve”.
aldeia quase intocada no sopé da serra Tel. 282 955 117
do Caldeirão, já no concelho de Loulé. Monchique
A rota segue de Alte até Salir, com pas- Preço médio: €20
sagem pela Paisagem Protegida Local
da Rocha da Pena, ideal para observa- A Ribalta
ção de aves como a águia de Bonelli. Prove os pratos do barrocal, como a
Para conhecer em Benafim existem “Sopa fria arjamolho”, o “Xerém
800 hectares movidos a agricultura com berbigão” e a “Galinha
biológica. Na Quinta do Freixo, além cerejada”. Obriga a reserva.
de 15 quartos, pode até ser pastor das Tel. 963 692 569
ovelhas de raça Campaniça, típica da Algoz
região. Rume em direção à refrescan- Preço médio: €25
te Fonte da Benémola, percorra os
trilhos assinalados e encante-se com O Charneco
a ribeira de Menalva. No centro de Apenas ao jantar, com reserva
Loulé espreite os banhos islâmicos ou obrigatória. Menu de degustação
visite as galerias da mina de sal-gema. com o melhor do Algarve tradicional.
Com a Loulé Criativo pode agendar Tel. 282 431 113
workshops dedicados ao artesanato, Estombar
gastronomia e arte. Com vivência da Preço médio: €35
serra e do barrocal, São Brás de Al-
portel assume também o estatuto de Cafézique
capital da cortiça, com possibilidade Leandro Araújo mostra criatividade
de visitar uma fábrica e loja. Para uma com a “Ostra da ria Formosa em
caminhada ou para desbravar trilhos tártaro sobre um folar de Chaves”,
em BTT, o local certo é o Parque da e o “Arroz de ferrado”, com lula
Fonte Férrea, situado no sopé da serra grelhada e torresmos do rissol.
do Caldeirão. A despedida pode ser Tel. 289 043 931
feita no miradouro do Alto da Arro- Loulé
teia, com vista para o mar, serra e para Preço médio: €35
o barrocal que se alarga em direção a
Tavira e a Alcoutim, com o Guadiana Cantarinha do Guadiana
a servir de fronteira. Aproveite para “Javali no barro” e os peixes do rio
uma justificada paragem na Mercea- em pratos como o “Ensopado de
ria da Aldeia, no interior tavirense, ou enguias” são destaques da ementa.
ainda em Olhão, nas Salinas do Grelha Tel. 281 547 196
para flutuar como no Mar Morto. Vila Real de Santo António
pbrilhante@impresa.pt Preço médio: €20
Em agosto aproveite para
participar na apanha de alfarroba.
Aproveite o restaurante e o espaço
da enorme propriedade.
Tel. 281 971 500
Santa Catarina
da Fonte do Bispo
A partir de €155
Tapada do Gramacho
Com água pura de nascente a
alimentar a piscina, este é o local
ideal para desligar do dia a dia.
Oferece seis quartos e três
apartamentos com estadia
mínima nos meses de verão.
Tel. 919 667 048
Estombar
A partir de €160
Casa Modesta
São oito quartos com redes
de pesca a fazer de cortinas,
alguns com kitchenette e uma
açoteia privada.
Tel. 289 701 096
Moncarapacho
A partir de €140
Morgado do Quintão
Quinta dedicada à produção
de vinho em modo biológico,
na casa principal há quatro
quartos, sala de estar, cozinha
e biblioteca. Pode optar por uma
das três villas com piscina.
Tel. 965 202 529
Lagoa
A partir de €200
Quinta do Freixo
Na transição entre o barrocal
e a serra algarvia surge esta
propriedade, com lagos, minas
e um ambiente bucólico.
Tel. 289 472 185
Benafim
A partir de €70
Expresso, 12 de agosto de 2022
Ensaios de verão
A realidade
deficiente
Mario
Vargas
Llosa
Escritor peruano, Prémio Nobel da Literatura,
escreve sobre a realidade do “inconsciente”
A
ntes da Segunda Guer-
ra Mundial, a capital do
Império Austro-Húngaro,
Viena, era uma das capi-
tais mais interessantes da
Europa. Tanto do ponto
de vista das artes plásticas
como das criações científicas universitá-
rias, era uma das cidades mais criativas
do Velho Continente. Somente no campo
económico, para designar um, os seus
pensadores haviam assumido um libera-
lismo radical que defendia os postulados
libertários, levando-o a um extremo radi-
cal e sem concessões. E noutros domínios,
na mesma Viena, havia nascido um pouco
à margem da publicidade, por explícito
desejo dos seus membros, a Associação
Psicanalítica Vienense (que depois pas-
sou a chamar-se Associação Psicanalítica
Internacional), que teria um desenvolvi-
mento polémico e discutível, ao mesmo
tempo que conquistava cidades e países
de maneira relativamente clandestina. Os
membros desta associação, nos anos se-
guintes, persistiram, a começar pelo seu
líder, o dr. Sigmund Freud, que acabava
de realizar o seu velho sonho, ser membro
docente na universidade em que havia
estudado, graças a dois padrinhos pode-
rosos: Hermann Nothnagel e Richard
Von Krafft-Ebing, os quais o propuseram
como professor extraordinário, algo com
que ele sempre havia sonhado.
Ora bem, enquanto, do ponto de vis-
ta oficial, Viena florescia de maneira
genuína, do ponto de vista popular a
influência do vizinho nazismo, sobretudo
no ódio manifesto aos judeus, causa-
va verdadeiros estragos e permitia aos
oportunistas açambarcar posições que
cada dia tinham mais afinidade com a
ordem política.
Não há dúvida de que se trata de um
fenómeno interessante. Ao mesmo tem-
po que na rua se tornava cada vez mais
presente o preconceito nazi contra os
judeus, na mesma cidade um grupo de
cientistas do mais alto nível discutia so-
bre uma dimensão nova da vida que até
então não parecia ter a repercussão que
teria nos anos seguintes; uma ordem
nova, representada pelo inconsciente,
que escapava a todo o universo vital re-
presentado por tudo o que era conhecido
até então: uma ordem feita de sonhos
reprimidos, fantasias de sonhos incon-
fessáveis e verdades caprichosas; ou seja,
a realidade desse inconsciente sempre
inesperado, que criava uma distância
radical entre a cultura oficial e um grupo
quase clandestino de médicos que reivin-
dicavam, como uma realidade central da
vida individual e como factos indiscutí-
veis da experiência humana, teorias e
realidades de difícil comprovação.
Ainda que os factos culturais tenham
sempre uma origem relativa, não é arbi-
trário dizer que o fenómeno psicanalítico
nasceu em Viena, de onde era oriundo o
primeiro presidente da associação que
o propugnava e onde, embora não fos-
sem dessa terra a maioria dos membros
daquela associação, é evidente que a tal
realidade ou irrealidade representada
pelo inconsciente surgiu ao mesmo tem-
po que uma sociedade concreta estava
prestes a ceder politicamente a uma dou-
trina fanática e elementar feita de pre-
conceitos e falsificações de vasta origem,
a mesma sociedade em que as artes e as
ciências haviam prosperado extraordi-
nariamente graças a uma política oficial
aberta e que oferecia uma oportunidade
às vozes e aos inventos novos.
Embora até agora haja cientistas que
põem em dúvida a sua existência, conti-
nua a ser sua natureza algo devastador
que implica uma realidade que não exis-
te. Em todo o caso, aquela frustração dei-
xou de existir e, de facto, a sua vigência
relativa já faz parte das nossas vivências.
Dir-se-ia que aqueles que menos a nota-
vam no passado se resignam a aceitar
a sua evidência, ainda que, no fundo,
duvidem dela.
Embora nascido apesar da
incompreensão de muitos
cientistas, o “inconsciente”
está ali, junto de nós,
e boa parte dos ensaios
mais audazes do nosso
tempo autorizam-no
e supõem-no
O certo é que, embora nascido apesar
da incompreensão de muitos cientistas,
o “inconsciente” está ali, junto de nós, e
boa parte dos ensaios mais audazes do
nosso tempo autorizam-no e supõem-no.
A realidade foi-o justificando e dando-lhe
uma verdade, embora muitos cientistas
ainda se neguem a dar-lhe o seu sentido,
sempre que o tenha, seja muito, pouco ou
nada. O seu impreciso nascimento teve
a ver com essa condição de realidade a
meias que é a sua? Seguramente, mas
esse é um tema difícil, e a tal ponto que
muitos ainda se negam a tocar-lhe.
Em todo o caso, o facto é que, nasci-
do num momento difícil e controverso,
ainda só existe a meias, como uma re-
ferência, sem que a sua existência con-
vença muitos, como a noite ou o dia, e só
seja aceite a meias quando não há outro
remédio e em casos sempre extremos
como uma verdade que se impõe de ma-
neira excecional e sempre escorregadia.
A sua aceitação será sempre chamativa,
como se nisso desempenhasse um papel
importante o facto de que nascera em
Ruy Castro
Matar ou
morrer por
Bolsonaro
A
menos de dois meses das
eleições no Brasil, há uma
certeza por aqui: a de que
as coisas podem esquentar.
Tudo indica que Jair Bolsonaro está
preparando um absurdo, um grande
absurdo, maior do que tudo o que co-
meteu até hoje — algo tão impensá-
vel que porá contra ele até sectores
que ainda o apoiam no Congresso
e nas Forças Armadas. Só que fará
isto de caso pensado. A intenção é
justamente provocar uma medida,
vinda não se sabe de onde, que o
ILUSTRAÇÃO MÓNICA DAMAS
impeça de concorrer às eleições. Isso
insuflará o seu discurso de que só
assim, tirando-o do caminho, é que
conseguem derrotá-lo. E servirá de
chamada à briga de seus violentos
seguidores — os quais, graças à cam-
panha armamentista que ele sempre
promoveu fanaticamente, detêm
hoje um poder de fogo maior que o
das Forças Armadas. (Sim, há hoje
circunstâncias discutíveis, num grupo no Brasil mais armas fora do que
que nunca chega a ser aceite por todo o dentro dos quartéis.)
mundo, já que esse grupo se dividiu e até Ao contrário do então Presiden-
desapareceu, embora deixasse muitas te dos EUA Donald Trump, que se
marcas da sua célebre existência. achava em condições de enfrentar
Quem acredita hoje em dia que o in- Joe Biden nas eleições americanas
consciente seja a matéria secreta de que de 2020, Bolsonaro sabe que já
são feitos os seres humanos, que essa perdeu. Afinal, desde o dia em que
seja a sua realidade primeira? Poucas tomou posse declarou guerra aos
pessoas, ainda que boa parte da ciência artistas, intelectuais, estudantes,
se subordine a ela e encontre nela a sua empresários, juristas, cientistas, am-
última justificação. Tem de ver nele o bientalistas, vítimas da covid, jovens,
seu destino mais íntimo? O facto de que mulheres, gays, indígenas, nordesti-
nascera em Viena num momento em nos, negros e pobres, o que significa
que estava indicado para desaparecer, parte esmagadora do eleitorado.
varrido por um acontecimento em que Se de há muito os números não lhe
toda a verdade científica era abolida por estão favoráveis, a campanha eleito-
uma realidade fanática e excludente, ral, que só agora está começando,
condenada a morrer ao fim de poucos os tornará pior ainda. Ao vê-lo pela
anos. Outra verdade menos visível se televisão, patético, descabelado e
imporia seguramente em sua substitui- aos gritos e palavrões atacando o
ção. Se o “inconsciente” tivesse nascido adversário, seu descontrole ficará
em Inglaterra ou em França, não haveria claro até para os papalvos que ainda
tantas dúvidas como no facto de que acreditam nele.
nascera em Viena. A sua existência está Bolsonaro sabe que pode ser der-
condicionada pelo próprio lugar do seu rotado inclusive no 1º turno da elei-
nascimento. ção. É por isso que não pode espe-
A verdade é que, apesar de tudo, nin- rar por um 6 de janeiro, como ficou
guém se atreve a negá-lo abertamente. conhecida a invasão do Capitólio,
O ceticismo que o fustiga não costuma em Washington, pelas hordas de
dar a cara, pois há demasiados casos em Trump. Bolsonaro precisa de um 6
que se justifica. Em todo o caso aí está, de janeiro antes de 2 de outubro, dia
atrás de muitos aspetos da vida que o da eleição. Talvez a 7 de Setembro,
denunciam ou supõem, ainda que nou- data da Independência. Talvez antes.
tros aspetos a sua existência exponha É difícil imaginar algo ainda mais
uma dúvida integral, já que não é tão absurdo do que os crimes que ele
evidente como o são as estrelas ou as já cometeu no Brasil, contra a vida
pedras, ou seja, uma qualidade na qual humana, as leis, as instituições, a flo-
outras realidades se impõem. A verdade resta, o decoro, o dinheiro público.
dele é oblíqua e avizinha-se da verdade Mas Bolsonaro, ou algum génio da
de maneira indireta, como se dependesse estratégia por trás dele, é inesgotá-
de súbito, aferrada a outras realidades vel. De algum antro de seu cérebro
das quais fosse parte integrante. O “in- doentio sairá um plano capaz de nos
consciente” é, assim, uma realidade da deixar atónitos.
qual cabe sempre duvidar, como se a sua Há dias, lançou a ideia de trans-
origem remota fizesse parte dela e a sua ferir para a orla da praia de Copa-
condição fosse sempre precária. cabana o desfile militar do dia 7 de
E, no entanto, a verdade é que sem Setembro, realizado há quase 80
ela a liberdade dos seres humanos seria anos na Avenida Presidente Vargas.
menos possível. O extraordinário que há Esta avenida no centro do Rio tem
nela é que não está em nenhuma outra 4 km de extensão e pista com 80
parte. Somos isso que significa sempre metros de largura, e foi aberta em
indeterminação? Sem dúvida que é pos- 1944, pelo ditador Getúlio Vargas,
sível, e também o é que seja o seu nasci- de propósito para tais monumen-
mento, em circunstâncias tão difíceis, o talismos. É ladeada por edifícios de
que dissimula a sua condição aberta e 30 andares, de empresas ou do Go-
livre, enquanto ao redor dela se come- verno, que ficam fechados no dia do
tiam todos os excessos da barbárie, uma desfile. E, mesmo que ficassem aber-
qualidade que a Europa, negando-se a si tos, só um tiro de revólver, disparado
mesma, admirava que tivesse padrinhos de uma de suas janelas, atingiria
de tão alto nível. A realidade do “incons- alguém lá em baixo. Já na charmosa
ciente” é essa verdade que não é segura, e elegante Avenida Atlântica, em
e que, no entanto, estará ali sempre para Copacabana, ladeada de prédios de
se recorrer a ela em última instância, apartamentos em estilo neoclássico
quando já não caiba outra existência ou Art Déco, um doméstico coquetel
senão a sua. Molotov, atirado lá de cima, faria um
estrago em dezenas de soldados no
Miami, agosto de 2022 desfile e provocaria uma tragédia
PRIMEIRO CADERNO 31
na multidão de banhistas, turistas e
populares no passeio. E quem se in-
teressaria por um ato de tal nature-
za? Qualquer um — principalmente
um bolsonarista, por saber que um
ato de terrorismo praticado ali daria
pretexto a uma intervenção militar
em nome da “segurança nacional”.
A ideia de botar tanques, blinda-
dos e canhões com suas esteiras de
lagartas para rodar pela orla de Co-
pacabana já parecia descalabro sufi-
ciente. Mas ainda não é. Está sendo
obstada por Eduardo Paes, prefeito
do Rio, e é mal vista até pelos milita-
res. Bolsonaro terá de vir com algo
muito mais bombástico. E virá.
Alguns leitores poderão ver nessa
afirmativa um exagero. Será? Há
um ano, também se achava exagero
dizer que Bolsonaro estava se prepa-
rando para um golpe de Estado com
o apoio das Forças Armadas. Hoje,
a especulação sobre se haverá ou
não tentativa de golpe está presente
de tal forma nos jornais, revistas,
televisão e redes sociais que a ideia,
pode-se dizer, foi desmoralizada.
Até os empresários e banqueiros já
se manifestaram contra ela — sem
falar nas ameaças de sanções parti-
das do próprio governo dos Estados
Unidos. Neste momento, supõe-se
que os militares não pegarão boleia
numa aventura de Bolsonaro.
Portanto, se um golpe parece
agora impraticável, Bolsonaro terá
de partir para algo mais sério: uma
guerra civil. Ele não tem mais nada
a perder. Sua derrota na eleição lhe
renderá a subsequente perda de
imunidade jurídica, um tsunami de
processos e 600 anos de cadeia para
ele e seus filhos. Sua única saída é
criar uma situação em que, impedi-
do de concorrer, possa dizer-se ele
próprio vítima de golpe, o que fará
levantar seus seguidores armados e
levar o país à guerra civil.
Ao contrário do então
Presidente dos EUA
Donald Trump, que
se achava em condições
de enfrentar Joe Biden
nas eleições americanas
de 2020, Bolsonaro
sabe que já perdeu
Alguns querem saber se tenho
informações privilegiadas para
afirmar isso. A resposta é não, mas
é claro que tenho: do próprio Bol-
sonaro. Em seus discursos diários
pelas províncias, muitos dos quais
nem ficamos sabendo — mas sua
militância, sim —, Bolsonaro prega
a luta armada com todas as letras.
O inimigo a ser exterminado é, por
enquanto, um ente indeterminado,
os que querem “roubar a liberda-
de do povo”. Mas quem são eles
e liberdade de quê? Não importa.
A cada frase, Bolsonaro é ovacio-
nado com salivações pavlovianas
por seus fanáticos. Supõe-se que,
ao receber uma ordem mais direta
sobre quando e contra quem atirar,
essa massa tirará do armário seus
fuzis lubrificados e municiados, e
marchará para o confronto.
Há 20 anos, o então deputado Jair
Bolsonaro já dizia numa entrevista
de TV, hoje facilmente disponível
na internet: “Através do voto não
vai mudar nada neste país! Nada!
Absolutamente nada! Só quando
nós partirmos para uma guerra civil!
Se vai morrer gente inocente, tudo
bem! Em toda guerra morre gente
inocente!”
Bolsonaro era um ingrato ao dizer
isso. O voto já mudara sua vida, de
uma triste obscuridade roceira para
a afluência das “rachadinhas” — o
salário que seus funcionários fan-
tasmas, contratados com dinheiro
público, recebiam e lhe repassavam
— e dos imóveis comprados com di-
nheiro vivo, impossível de rastrear.
No futuro, o voto e uma sequência
de acasos lhe dariam também a
Presidência do Brasil. Mas a ideia
da luta armada como solução final
para se eternizar no poder nunca
lhe saiu da cabeça.
Hoje, Bolsonaro sabe que não tem
alternativa. É chamar os inocentes
para matar — ou morrer — por ele.
32 PRIMEIRO CADERNO
TRIBUNA ENTREVISTA
Cláudia Neto Jogadora de futebol
“A JOGADORA
PORTUGUESA TEM
DE AMBICIONAR MAIS”
Alexandra Simões de Abreu
Jogou em Espanha, Suécia, Alemanha
e Itália, conquistou 10 títulos, esteve
em duas finais da Liga dos Campeões
e está de regresso ao futebol portu-
guês, onde esta semana se estreou a
jogar na Supertaça pelo Sporting. A
internacional portuguesa, de 34 anos,
que no ano passado deixou a seleção
para dar lugar às mais novas, não tem
dúvidas de que só daremos o salto se os
clubes investirem também em trazer
jogadoras estrangeiras com qualidade.
P Porque se veio embora da Fiorentina?
R Estava muito saturada de estar lon-
ge da família, dos amigos, do meu país.
Como fiquei sem objetivos, porque até
então regia-me por ganhar títulos e
isso não aconteceu quando cheguei à
Fiorentina, desmotivei-me. A minha
ideia era regressar a casa.
P O que a fez optar pelo Sporting?
R Qualquer jogadora gosta de jogar
num dos grandes. Sou sportinguista.
Assim que pisei na Academia e tive o
primeiro contacto com o clube, per-
cebi logo que é especial, com pessoas
especiais, e que iria sentir-me em casa.
O meu objetivo é recuperar um pouco
daquela alegria que perdi na Fiorenti-
na. Quero voltar a ganhar, a ser feliz a
jogar e a estar motivada. Julgo que o
Sporting vai dar-me tudo isso.
P O futebol feminino português está
muito diferente daquele que deixou
há 15 anos?
R Há uma diferença abismal. As con-
dições são muito melhores e mes-
mo o futebol está diferente. Hoje há
pessoas muito mais competentes a
trabalhar no futebol feminino. No
Sporting temos condições, há uma
academia com tudo.
P As condições do Sporting estão ao
nível da Fiorentina ou do Wolfsburgo?
R Do Wolfsburgo talvez não, mas te-
mos tudo ali para podermos ser aquilo
que quisermos.
P Do que viu de Portugal neste último
Europeu, esperava mais?
R Estavam lá as melhores seleções da
Europa, obviamente para Portugal se-
ria sempre difícil. Mas a seleção esteve
bem, bateu-se bem, fez boas exibições.
Os resultados não acompanharam as
exibições, é nisso que temos de dar
um passinho à frente. Já não chega só
as boas exibições, os resultados têm de
acompanhar.
SEMPRE QUIS SAIR
CEDO DA SELEÇÃO,
PARA DEIXAR
O MEU LUGAR
ÀS MAIS NOVAS
P Para isso acontecer o que é preciso?
R Talvez mentalidade. Estamos a
crescer, já ouço isso há 10 anos, mas a
mentalidade tem de mudar, temos de
começar a acreditar mais em nós. A
própria jogadora portuguesa também
tem de ambicionar mais. O nosso cam-
peonato é semiprofissional. A jogado-
ra tem de acreditar que consegue fazer
melhor e chegar a outros patamares,
tem de sair para melhores campeona-
tos para evoluir, porque a seleção só
tem a ganhar com isso.
P Essa busca de clubes maiores e me-
lhores não acontece por uma questão
de comodismo? Por medo? Falta de
oportunidades?
R É difícil responder a essa pergunta,
mas tudo depende dos teus objetivos,
daquilo que ambicionas. Há jogadoras
que têm ambição, outras não. Uma
jogadora que quer crescer e chegar
a outro nível, ficar no campeonato
português se calhar não é suficiente.
É nisso que têm de pensar, que para
atingir outros patamares é preciso um
bocadinho mais de exigência.
P Que os clubes portugueses ainda
não têm?
R Ainda não têm por nem todos serem
profissionais. As condições que temos
no Sporting outras equipas não têm.
P Tem de haver um esforço maior da
própria FPF também?
R O esforço tem de ser de todos.
P A FPF disse que em 2024/2025 to-
dos os clubes da I Liga têm de ter rel-
vados naturais. Isto já não devia ser
uma realidade?
R Claro. Vamos esperar que aconteça
mesmo. Mas também passa muito pela
jogadora querer as condições, não é só
pedir, é mostrar que quer. Tem de par-
tir muito de nós, demonstrar primeiro
e pedir depois. Só quando tivermos
realmente resultados é que as pessoas
nos irão dar seja o que for. Temos de
incutir essa mentalidade ganhadora
e profissional às miúdas. Têm que ser
profissionais, porque no masculino
um miúdo com 16, 17 anos já é mega-
profissional.
P Com essa idade eles já recebem
salários, que as mulheres ainda não
recebem.
R Mas para mim isso não é o mais
importante. O importante é o gosto
pelo futebol e perceber que, se forem
profissionais, irão ter essas condições
mais tarde. Elas têm de perceber que
são realidades diferentes que não se
podem comparar.
P A discrepância salarial entre o fu-
tebol masculino e o feminino não a
choca?
R Choca, porque eles ganham dema-
siado, ganham o que ninguém ganha.
Dificilmente vamos igualar as coisas,
porque os homens têm salários extra-
terrestres.
P O futebol feminino não conseguiu
alcançar a visibilidade do masculino
por ter começado mais tarde ou por
não ser um futebol tão atrativo?
R Pode ter a ver com ambas as coisas
e porque é um bocado cultural: os ho-
mens é que jogam. Depois tem a ver
com a visibilidade que se dá ao futebol
feminino. É um conjunto de coisas.
P Como se consegue dar a volta?
R As pessoas envolvidas têm de conti-
nuar a trabalhar e focadas em ajudar
no crescimento. As próprias jogadoras
O EUROPEU FOI
EXCELENTE. PARECE
QUE COMEÇARAM
A ACREDITAR QUE A
MULHER SABE JOGAR
Expresso, 12 de agosto de 2022
FOTO SPORTING CP
têm de ter a responsabilidade de serem
cada vez mais profissionais, porque faz
toda a diferença. Apostar cada vez mais
na formação é importantíssimo. Os
grandes clubes têm de investir, porque
a Liga portuguesa não pode ser feita só
de portuguesas, têm de vir jogadoras
de fora com qualidade para dar mais
intensidade e mais competitividade à
nossa Liga. Essa mistura da portugue-
sa, jogadora da formação, com outras
jogadoras de qualidade que vêm de
fora é que pode ajudar a dar este salto
de competitividade de que precisamos.
P Porque decidiu no ano passado não
representar mais a seleção?
R Fisicamente já me sentia muito can-
sada e percebi ser o momento de dei-
xar. Sempre quis sair cedo da seleção,
para deixar o meu lugar às mais novas,
e vê-las agora na seleção a dar cartas
deixa-me superfeliz. Penso que fiz um
trajeto muito bom na seleção, mas,
quando sentimos que é o momento,
temos de ter a coragem de sair.
P Durante o Europeu alguma vez sen-
tiu que ainda podia ter dado o seu
contributo e ser uma mais-valia na
seleção?
R A minha ideia era deixar a seleção
após este Europeu, mas como não nos
qualificámos deixei logo. Só estivemos
neste Europeu porque aconteceu a
guerra, que ninguém estava à espera,
e fomos chamadas para substituir a
Rússia. Não ia voltar atrás, nem queria.
Senti-me bem em deixar a seleção e
fiquei megafeliz por elas. Eu ajudei,
elas estiveram lá também com a minha
ajuda, porque fiz o apuramento todo.
P Revê-se em alguma jogadora da
seleção?
R A Andreia Jacinto tem muita qua-
lidade e pode vir a ser uma grande
jogadora. Obviamente, com algumas
características diferentes das minhas,
mas, por ser média, acho que tem mui-
ta qualidade, gosto muito dela.
P Este Europeu foi um ponto de vira-
gem para o futebol feminino?
R Sim, foi um excelente Europeu,
com muita visibilidade, as pessoas
gostaram daquilo que viram. As joga-
doras já tinham qualidade antes, mas
agora parece que começaram a acre-
ditar mais que a mulher sabe jogar.
P A FIFA considerou-a uma das 15
melhores médias do mundo. O que
significou para si?
R Vale tanto como um título.
aabreu@expresso.impresa.pt
Expresso, 12 de agosto de 2022
FERNAND O CHALANA
Diogo Pombo
Fernando Chalana sua, está
vestido à civil e sem chuteiras,
mas sua. É apanhado a “acar-
retar” areia — é esse o verbo
usado para o descrever em casa
dos pais, onde goza de uma
folga, à segunda-feira, com 21
anos e incontáveis dribles já fei-
tos no Benfica. Carrega sacos
de minerais pulverizados em
grânulos para “as centenas” de
pombos que nutre. É o hobby
predileto pelo qual renega idas
ao cinema e horas no sofá dian-
te da televisão, dedicando-lhe
de bom grado a atenção que o
leva a um café no Lavradio para
jogos de cartas entremeados
com conversas columbófilas
com Manuel Bento, este despi-
do de luvas e ostentando igual
fartura de bigode.
O retrato de um dia sem
treino, em 1980, feito pelo se-
manário “Se7e”, descrevia um
homem parco, recatado e hu-
milde. Ainda um jovem adulto,
Chalana não tinha pudores em
escancarar as persianas da vida
pessoal, que contrastava, aos
gritos, com a sua extroversão
incontrolável num campo de
futebol, onde a arte da revienga
que ostentava nas simulações
de corpo já o faziam andar de
boca em boca como um fenó-
meno. “Estou há sete anos no
Benfica, mas, como fui sempre
um jogador da casa, fiquei mui-
tas vezes para trás no montante
dos contratos. O que hoje rece-
bo dá para sustentar a família
e fazer algumas economias,
embora seja muito inferior ao
que, geralmente, recebem os
futebolistas profissionais, mes-
mo em clubes pequenos, como
o Amora ou o Académico de
Viseu”, dizia então.
Chalana tinha quatro títulos
conquistados pelo clube da
Luz, incluindo dois dos seis
campeonatos que ganharia. A
simplicidade no trato, a ternura
nas ambições, o resguardo na
personalidade, tudo coincidia
com o teor de quase todas as
memórias contadas acerca do
antigo futebolista que morreu
na quarta-feira, aos 63 anos.
“Foi sempre uma pessoa de
bem, muito digna. Respeita-
dor, tratava bem as pessoas”,
recorda António Manuel Fras-
co, referência do FC Porto en-
quanto Chalana o foi no Ben-
fica. Trocavam abraços a cada
reencontro. “Era muito agra-
dável e acessível”, acrescenta,
embora o ateste como alguém
“reservado” que “não era de
muitas falas”. Compreende-se,
a bola comunicava por ele.
Dono de ambidestria descara-
da, muitos o julgavam canhoto
quando não houve um penálti
na carreira que não tenha ba-
tido com o pé direito. Enganou
adeptos e adversários ao fingir
que ia sair com a finta para um
lado só para a levar para o ou-
tro, num estilo sem artifícios
de evasão a corpos que deixa-
va sentados na relva. “Ele era
imprevisível, imaginativo, era
um jogador fabuloso. Não se
sabia o que ele ia fazer”, elogia
Frasco. A única garantia seria a
de que faria “coisas incríveis”,
recorda Álvaro Magalhães,
companheiro de tantos anos
na ala esquerda do Benfica,
com quem combinava jogadas
antes das partidas. As palavras
que lhe sobram para exaltar o
futebolista são as que não lhe
chegam no elogio à pessoa.
“Faleceu um irmão. É um ho-
mem bom que parte”, lamenta
quem coloca Chalana a par de
Eusébio e Cristiano Ronaldo no
terraço do futebol português.
Deixou 311 jogos em 13 épocas
no Benfica, onde se estreou com
17 anos e 25 dias, o mais jovem
da história até então. Trouxe
a precocidade do Barreirense,
clube da terra que o pôs a trei-
nar com os seniores, tinha ele
14 anos e já uma aptidão para
UM GÉNIO SIMPLES
Partiu um homem bom, humilde e recatado que enganou toda
a gente no campo com simulações cheias de ambidestria. Fernando
Chalana foi um dos melhores jogadores portugueses da história
O farto bigode foi a marca de água constante em Chalana, que fez 13 épocas e conquistou seis campeonatos
no Benfica, período durante o qual até conheceu Ramalho Eanes, antigo Presidente da República
forjar o bilhete de identidade. para ludibriar adversários, já
Garantia não sentir nervos em eram de outros tempos.
campo e, depois de se retirar, Como no Europeu de 1984,
continuou a relevar a importân- onde Portugal caiu no pro-
cia de um futebolista ter prazer longamento das meias-finais
a jogar. O adeus foi em 1991, no contra a França, jogo em que
Estrela da Amadora e na segun- Chalana deixou duas assistên-
da divisão. Os joelhos livres de cias para os golos de Jordão,
lesões, que lhe davam soltura enquanto Jaime Pacheco cor-
ria em funções mais obreiras
para o deixar driblar. “Sempre
que lhe passávamos a bola era
Ganhou seis diferente de todos, era genial.
campeonatos em 13 Era daqueles jogadores que,
épocas no Benfica e foi entre passar a bola a ele ou a
outro, passávamos a ele, por-
o destaque da seleção que sabíamos que dali saía coisa
no Europeu de 1984 boa”, conta o então jogador do
FC Porto, adversário mas ad-
mirador de quem já chamavam
‘Pequeno Genial’. Os gauleses
apelidaram-no de ‘Chalanix’
quando, feito o Campeonato da
Europa, o Bordéus pagou o ba-
lúrdio de 300 mil contos (€7,3
milhões na equivalência atual,
segundo a Pordata) ao Benfica,
dinheiro que serviu para se ter-
minarem as obras do terceiro
anel do Estádio da Luz. Fez 27
jogos e dois golos pela seleção.
Reformado o jogador que se
fundia com a mulher, Anabela,
em entrevistas e fotos, sempre
com ela a interceder por ele e a
serem a mesma voz, Fernando
Chalana retornou ao Benfica a
meio dos anos 90. Queria “en-
PRIMEIRO CADERNO 33
Opinião
Pedro Adão
e Silva
Um tempo
que não
volta
T
endo eu nascido nos
anos 70 e feito parte
fundamental do meu
processo formativo
no velho terceiro anel, nunca
apagarei da memória as ar-
rancadas únicas do Chalana,
a fletir da esquerda para o
centro. Fui, além disso, um
dos muitos portugueses que
ficou indelevelmente marcado
pelo Euro 84, uma epopeia
que teve Chalana como prota-
gonista central e que termina-
ria numa derrota épica com a
França. Essa geração de ouro
do futebol português veria em
seguida as suas ambições frus-
tradas, no Mundial do México,
por um dirigismo anacrónico
e autoritário. Demoraríamos
décadas a voltar a ter um con-
junto de talentos comparável
ao dos anos 80.
Um dos critérios mais exatos
para apurar a qualidade de um
futebolista é pedir a opinião
aos seus colegas. Chalana era
unanimemente considerado
pelos pares o mais talentoso
da sua geração. O Carlos Ma-
nuel conta sempre que, sob
pressão, quando em campo
não sabiam o que fazer com
a bola, a devolviam ao Cha-
lana. Pier Paolo Pasolini, que
era praticante empenhado de
futebol e adepto fervoroso do
FOTO ALAIN DE MARTIGNAC/ICON SPORT/GETTY IMAGES
Bolonha, dividia os jogadores
entre prosadores e poetas.
Chalana seria um poeta mal-
dito, alguém com uma capaci-
dade monstruosa para fintar
e que fazia de cada jogada um
momento de subversão de to-
dos os códigos, uma ameaça
à natureza coletiva do jogo.
Ele era impossível de parar e
fazia o futebol parecer fácil. A
sua marca distintiva era a con-
dução da bola em progressão
vertical, naquele jeito ligeiro
em que bastavam os movimen-
tos do corpo e a ausência de
um pé dominante para deixar
adversários para trás.
Foi com grande tristeza que
fui acompanhando a degrada-
ção da sua saúde e com enorme
nostalgia que recebi a notícia
da sua morte prematura. O
desaparecimento de Chalana
marca o fim de uma era que já
não regressa, o tempo em que
os jogadores tinham um víncu-
lo longo aos clubes, formando
FOTOS ARQUIVO A CAPITAL
identidades fortes, que expli-
cam a paixão clubística persis-
tente. Mas, mais importante,
um tempo em que os jogadores
eram, simultaneamente, ídolos
de massas e prolongamento
das suas origens sociais.
O futebol é hoje um espetá-
culo global televisionado e a
oferta competitiva tem uma
qualidade incomparável, mas
sinar” miúdos, ficar na forma- é impossível não guardar nos-
ção. Por duas vezes foi adjunto talgia de um período em que
de José Antonio Camacho e os plantéis eram formados por
não gostou de treinar a equipa homens que eram espelho do
principal entre a saída do espa- seu meio social, sem lingua-
nhol e a chegada de um substi- gens formatadas. A minha pai-
tuto. “Foi terrível”, admitiu ao xão pelo futebol radica numa
Expresso em 2011, incisivo nas infância em que os ídolos eram
palavras simples como o era na do Barreiro, um grupo no qual
simplicidade dos dribles. Taira, se destacava o talento singular
outro internacional privilegia- de um jogador franzino, de bi-
do por coincidir com ele no rel- gode de inclinação popular e de
vado, falou-nos de “um génio uma simplicidade desarmante,
com uma humildade do outro com fintas saídas do futebol de
mundo”. Mas não, foi deste rua. Um génio que, nas suas
mundo, e benditos aqueles que forças e nas suas fraquezas, era
a testemunharam. um português comum.
Com Hugo Tavares da Silva
dpombo@expresso.impresa.pt Ministro da Cultura, benfiquista
34 PRIMEIRO CADERNO
Marta Temido
contrata o ator
Fernando Luís da
série ‘Médico de
Família’ para
assessor do
Ministério da Saúde
Depois de Fernando Medina contra-
tar o jornalista Sérgio Figueiredo
para o assessorar na difícil tarefa de
descobrir “Quem, Onde, Quando e
Porquê” vai cobrar mais impostos, a
colega Marta Temido contratou hoje
o ator Fernando Luís, que tem uma
vasta experiência a fingir que é mé-
dico, para a assessorar no SNS, onde
Marta Temido tem uma vasta expe-
riência a fingir que é ministra. Fer-
nando Luís vai também assessorar o
MAI, ao qual aconselhou a trocar to-
dos os polícias que querem aumen-
tos salariais por pastores-alemães
que ficam satisfeitos com uma lata
extra de ração e uma galinha de bor-
racha que chia quando é mordida.
De referir que Augusto Santos Silva,
que em tempos considerou Sérgio
Figueiredo “o ayatollah de Barcare-
na”, considera-o agora “o Papa Fran-
cisco de Porto Salvo”. V.E.
PCP lembra que
casa de férias de
Putin nunca foi
alvo de buscas
da polícia russa
O PCP acompanhou as buscas do FBI,
à mansão da Florida de Trump, atra-
vés dos alertas no telemóvel de Ber-
nardino Soares. Depois de reunirem
FUNÇÕES DE
SÉRGIO FIGUEIREDO
CARTA-BRANCA
PARA AFUNDAR
BANCOS COM
RODAPÉS DE
NOTÍCIAS
E COMPOR
GRAVATA
DE MEDINA
EM CASO DE
BANCARROTA
Sérgio Figueiredo foi
contratado como consultor
de políticas públicas e
para explicar a
Fernando Medina o que
é tal coisa. Na lista de
tarefas que o ex-
comentador da TVI
atribuiu ao antigo
diretor de
informação da TVI,
constam a
organização do torneio
de paintball dos antigos
alunos do ISEG, amonas
a bancos com recurso a
títulos em rodapé,
fashion adviser e personal
shopper de gravatas do
ministro das Finanças ao
anunciar a bancarrota e o
montante da ajuda externa e
ser chefe de estado-maior da
Armada quando Gouveia e
Melo meter baixa médica
para se candidatar a Belém.
O PS entende que “o
ordenado de ministro de
4.767 euros até é
poucachinho e o Figueiredo
até vai dar lucro se se
lembrar de um sítio fixe
para fazer o novo
aeroporto”. M.B.
Durão
Barroso
de 1976
A China vai invadir Taiwan?
Talvez sim Talvez nunca
A reunificação é inevitável e China,
Taiwan e Nancy Pelosi voltarão a ser
um único país. O revisionismo
imperialista pequeno burguês
parasitário de acólitos do capital
será trucidado pelo glorioso exército
chinês superiormente comandado
pelo Presidente Xi num movimento
em pinça que nada ficará a dever à
invasão de Alcochete. Aconselho
Francisco Penim a comprar um
capacete e a ver preços de voos para
a Ásia. O Durão Barroso de 1976
esmagará o Durão Barroso
chauvinista e nacionalista de 2003
da Cimeira das Lajes!
Economistas
recomendam
Se não aconteceu, podia ter acontecido taxas aduaneiras
Nº 32 SÉRIE II O DIRETOR: LUÍS PEDRO NUNES
para travar
entrada de novos
vírus asiáticos
mais informação, nos rodapés les; 2) Vladimir Putin tem Numa carta aberta dirigida aos líde-
do Canal 11, os comunistas um ou dois defeitos, res europeus, um grupo de 100 econo-
emitiram uma curta nota em
que chamam a atenção
mas a polícia russa
nunca lhe foi bater à
mistas recomenda a aplicação urgen-
te de taxas aduaneiras de 20% para
para três factos: “1) porta da dacha/palá- travar os novos vírus de origem ani-
Trump está em perma- cio no Mar Negro; 3) mal vindos da Ásia. Uma medida que,
nente Modo Alerta Trump pode ter leva- garantem, deve ser suficiente para
CMTV e num sério em- do para casa 15 caixas evitar a propagação. De qualquer for-
baraço com a PJ lá de- com documentos, ma, o Governo português já deixou o
mas consta que Pau- SEF de prevenção. Como explicou o
lo Portas tem pape- ministério da Administração Interna
lada do Ministério em nota enviada ao INIMIGO PÚBLI-
da Defesa na gara- CO: “Destacámos dois funcionários
gem que pede me-
ças ao acervo de fo-
do SEF especializados em imigração
ilegal de origens exóticas para esta-
tocópias de Pedro
Guerra”. M.B.
rem particularmente atentos a estes
vírus. Todos os que chegarem com
passaportes duvidosos ou manifes-
tem comportamentos suspeitos de-
vem ser remetidos ao país de origem
no prazo máximo de 24 horas.” A.P.
Cofre de Trump
que o FBI rebentou
era do mesmo
modelo do cofre da
mãe de Sócrates
O INIMIGO falou com o criminólogo
Hernâni e sabe que os apoiantes de
Trump, à porta da mansão da Florida,
gritaram ao FBI “à Ericeira buscar o
Sócrates não vão vocês!”. Em Palm
Beach, também se garante que o FBI
implodiu o cofre que Trump comprou
por ser do mesmo modelo do cofre
em que a mãe de José Sócrates guar-
dava as notas de escudos onde depois
o filho ia abastecer-se de euros. O Sr.
Hernâni também avança que o FBI de-
sembarca hoje em Lisboa para fazer
buscas na roulote de Trump no cam-
pismo da Caparica. M.B.
Filmagens de
‘Velocidade Furiosa’
em Portugal
suspensas porque
os catalisadores de
todos os automóveis
foram roubados
A rodagem do filme “Velocidade Fu-
riosa” prossegue em Portugal, mas foi
suspensa esta semana quando se des-
cobriu que todos os automóveis usa-
dos nas filmagens tinham sido alvo do
famoso “rei dos catalisadores”, recen-
temente libertado pela justiça e que,
ainda por cima, quando estava preso
juntou-se ao larápio conhecido como
“o grão-duque das centralinas” e ao
temido líder da máfia russa conheci-
do como “o czar dos espelhos retrovi-
sores”. A produção de “Velocidade Fu-
riosa” decidiu, por isso, contratar o
cineasta português Pedro Costa que
Expresso, 12 de agosto de 2022
Winnie-
-the-Pooh
Desde que a Internet se lembrou
que eu e Xi Jinping parecemos
dois irmãos separados à nascença
numa novela da Rita Pereira,
passei a sentir uma ligação
mediúnica com ele que já foi
comprovada por um grande
mestre africano com consultório
no Cacém. E posso garantir que
nunca passou pela cabeça do meu
tropa Xi pedir aos seus generais o
12, o 14, o 39, o 41, o 78 e 96 do
menu de estratégias de invasão do
Taiwan. Se Xi aterrar amanhã em
Taipé, mudo o meu nome para
Paddington. M.B.
não precisas de automóveis e vai fil-
mar Vin Diesel a apanhar um autocar-
ro sobrelotado para o bairro social da
Musgueira, onde trabalha como bate-
-chapas e a mãe está viciada em sni-
far Super Cola 3. V.E.
Espanhol roubou
7 mil presuntos
do trabalho e
já lhe chamam
“Ricardo Salgado
do fumeiro”
A polícia espanhola deteve um cida-
dão gatuno de presuntos que causou
um rombo de cerca de 500 mil euros
em presuntos na empresa de presun-
tos onde trabalhava a palmar pre-
suntos. Já conhecido, pela imprensa
da especialidade, como “Ricardo Sal-
gado do fumeiro” ou “Vale Azevedo
do jamón”, o meliante foi despedido
sem apelo, nem agravo, nem morce-
las de produtividade, aguarda julga-
mento e declarou ao IP que “se sou-
besse o que sei hoje, tinha roubado
um banco. Ao contrário dos presun-
tos, é coisa que não dá cadeia”. M.B.
CAMPOS DE EDUCAÇÃO
POLÍTICA 2022
Juventude Costista
Pesca à linha de projetos do PRR
com Mariana Vieira da Silva e
tiro aos pratos e a Francisco
Assis com Eurico Dias. Workshop
de revogação de despachos de
Pedro Nuno. Glamping / estímulo
da natalidade socialista. Atelier
de fuga desordenada a perguntas
sobre a Operação Marquês.
Universidade do PSD
Como reconhecer Montenegro
numa praia cheia de sósias de
Rui Rio. Leitura comparada
dos orçamentos de Passos
chumbados pelo Constitucional.
Manhã de surf no Canhão da
Nazaré para oposicionistas
internos. Semana de campo de
guerrilha anticomunista pelo
furriel Cavaco Silva.
Verão liberal
Adjudicação simbólica da
empreitada de desmantelamento
do Estado. Liberalização
da posição de missionário.
Lançamento da campanha de
privatização de Marta Temido.
Arraial liberal com preço da
sardinha estabelecido em Wall
Street. Não dispensa a consulta
do prospeto.
Festa do Avante!
Ação pedagógica sobre a
invasão da Rússia pela Ucrânia.
Focus group: Zelensky é um
clone de Hitler feito num
laboratório da Área 51 no
Nevada? Análise geoestratégica
do bloqueio a todos os portos da
Rússia pela marinha ucraniana
com sofisticadas gaivotas a
pedais. M.B.
Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 35
CONTEÚDO PATROCINADO

a noite no posto, como o meu

Camisola OPINIÃO compadre Armando Vara. Por
alternativa Por
isso decidi pedir ao senhor juiz
que me deixasse ir andando pelo
do Benfica Manuel menos até ao poço para regar
Pinho os tomates e um bocado mais
tem elétricos além para regar os melões que
lisboetas e edição PRECISO DE ALARGAR O RAIO
se vão espalhando mais para
longe e, quando os colhesse,
premium vem com DA PULSEIRA ELETRÓNICA deixar-me montar na carroça e
ir entregando as hortaliças e os
carteirista incluído PARA ENTREGAR CABAZES nabos aos senhores da Quinta
DE PRODUTOS HORTÍCOLAS da Marinha e da Quinta do
O equipamento alternativo do Benfi-
ca desta época tem uma linda home-
EM TODO O PAÍS Lago que encomendam cabazes
pela internet não sei como, que
nagem aos elétricos da capital, a quem cuida dessas coisas é a
maioria deles em filas de meia-dúzia Amigos, estava lendo o “Borda minha mulher que percebe dos
por estarem bloqueados por um car- D’Água” sobre a melhor altura computadores e até ajuda o
ro mal estacionado. O kit premium à para podar as nespereiras meu compadre Ricardo Salgado
disposição dos adeptos é o mais rea- quando peguei no serrote, fui-me a vender o arroz que cultiva na
lista e vem com 30 turistas nórdicos, dirigindo ao fundo do quintal Comporta. Bem, tenho de ir
o obrigatório carteirista do elétrico 28 e, antes de chegar à árvore, andando para cavar uns regos
e um voucher para visitar a fonte para aquela maquineta parecida a na minha horta e apanhar uns Populares, ficando ainda fanáticos
onde Madonna, quando cá teve domi- um temporizador de rega que espinafres e umas batatas para Peixes-aranha que por causa dos chefs que desmem-
cílio fiscal, atirou uma trotineta. M.B. prenderam no meu tornozelo
desatou a guinchar como um
entregar ao meu compadre picaram 700 bram peixes para fazer ceviches em
José Sócrates, que precisa bares da moda e pelos chefs que dei-
porco na matança e quando de encomendar o meu cabaz banhistas no Algarve tam uma sardinha de barriga para
Estudo revela que dei por ela tinha os tipos da enquanto não o deixam ir cuidar
radicalizaram-se por baixo num prato e torturam-na nas
GNR andando aqui na quinta da roça que tem ali para os lados costas com o maçarico de queimar
os vikings não a ameaçar que ainda passava de Pernambuco. V.E. causa das milhares o leite-creme. Já José Milhazes con-
sidera que os peixes-aranha estão
eram altos e loiros de sardinhas ao serviço dos esturjões russos. V.E.
com olhos azuis e de Copenhaga concluiu que afinal também que os vikings não salta-
assassinadas nos
que não usavam os vikings não eram louros e altos, vam dos barcos com berros aterro- Santos Populares Limitação de
nem tinham olhos azuis, sendo na rizadores porque eram surdos-mu-
capacetes com realidade do tamanho médio dos dos e que nem sequer saíam dos Mais de 700 pessoas foram picadas energia nos
cornos mas com cantores do Coro de Santo Amaro
de Oeiras, morenos como o Nuno
barcos porque, como eram atarra-
cados, não tinham pé na rebenta-
este ano por peixes-aranhas no Al-
garve e o especialista em terrorismo edifícios públicos
antenas de caracol Rogeiro depois de sair do solário e ção, bem como que os avançados Nuno Rogeiro acha que estes podem vai começar
com olhos vulgares que não diziam nórdicos Magnusson, Stromberg e ter sido radicalizados pela maneira
Um estudo genético da Universida- nada quando entrevistados pelo o Manniche do Benfica eram na rea- como os humanos assassinam as desligando os
de de Cambridge e da Universidade Daniel Oliveira. O estudo concluiu lidade parecidos ao Miccoli. V.E. suas primas sardinhas nos Santos
dispensadores de
senhas de todas
EXCLUSIVO IP RAIO-X as repartições e
DA VIVENDA DE DONALD TRUMP Lojas do Cidadão
O que o FBI encontrou na casa de Palm Beach
O ministro do Ambiente e da Ação Cli-
Closet igual ao de Cláudio
Ramos que Melania viu na mática, Duarte Cordeiro, anunciou
revista “Mundo Columbófilo” que os edifícios públicos vão mesmo
e mandou copiar
Praia de desembarque Torre do Shrek (sex room, poupar energia, nomeadamente des-
de cubanos a que Trump
chama “Fonte da Telha”
pombais/área columbófila, ligando-se da corrente todas as má-
estação dos CTT) quinas de senhas das repartições de
Quiosque de
raspadinhas atendimento ao público e os ecrãs que
Masmorras de criação de
grunhos em cativeiro para dizem qual é o número da senha que
invasão do Congresso vai ser atendido a seguir, sendo estes
(“Little Kremlin”)
Relvado onde foram vistos substituídos por uma fotografia do
pela última vez quatro Réplica exata de metade
da Praça de Touros de ecrã porque, de qualquer maneira, os
agentes do FBI alegadamente
atacados por orcas Salvaterra de Magos números nunca avançam. Os milhares
de utentes que esperam nas filas para
serem atendidos na Loja do Cidadão
devem passar a fazê-lo pedalando
Solário que Trump numa bicicleta estática, cuja energia
comprou em segunda
mão a Paulo Portas
Placas de azulejos na cinética é depois acumulada por gera-
Piscina com o entrada “Vivenda sonho
formato do pénis de nós dois” e “Grab
dores que servem para assar sardi-
de Kim Jong-un them by the pussy” nhas quando Marcelo Rebelo de Sou-
sa e António Costa vão jantar fora
Garagem igual
à do Estádio juntos. V.E.
Parque de
do Bessa estacionamento
gerido pela Mini Avenida
BragaParques da Liberdade
- A la Georgina
Rodriguez Equipa oInimigoPúblico
“Se não aconteceu… podia
Toca dos esquilos Tico e ter acontecido!” O Inimigo Público
Teco com aspirador central Parque de campismo é um suplemento satírico,
para recolha dos pelos com para acolher eventual sendo todo o seu conteúdo ficcional.
que Trump faz a franja visita do grupo Diretor Luís Pedro Nunes
parlamentar do Chega Redação Alexandre Parreira,
Vizinho lusodescendente Luís Pedro Nunes, Mário Botequilha,
Casa de praia do avô que usa uma ventoinha para
de José Sócrates que Vítor Elias Cartoon Nuno Saraiva
empurrar o fumo da sardinha Projeto gráfico @oinimigo_pronto
enriqueceu no volfrâmio assada para a casa de Trump
Editor online João Martins
Fotografia Getty Images e arquivo pessoal
O INIMIGO PÚBLICO é um projeto
@oinimigo_pronto
conjunto Expresso/Produções Fictícias/
M.B.
Farol de Ideias através de O Estado do Sítio
36 PRIMEIRO CADERNO Expresso, 12 de agosto de 2022

Editorial&Opinião
Editorial A inflação pode tornar-se A Igreja e a nossa deferência ampla
uma questão política e extravasar
o seu impacto para a guerra na Ucrânia
vista a proteger “os seus”, de de qualquer confissão religiosa, o número de audiências parla-
culpabilização das vítimas, e de mas sim a deferência excessiva mentares a organizações cató-
despreocupada transferência para com a IC num Estado laico, licas é gigantesco. Porquê? Em

A inflação territorial dos agressores. O que

já foi denunciado em Portugal
numa Comissão, que é da Igreja,
que é importante para explicar
por que razão é tão difícil falar do
que quer que seja que manche a
nome de quê? A Constituição
consagra a separação das igrejas
e do Estado, mas não houve um

e a Ucrânia
causa dor, mas não surpresa,
exige empatia, foco nas vítimas
Isabel Moreira e zero deferência.
sociedade@expresso.impresa.pt
A questão do privilégio da IC é
imagem da IC ou por que razão único tema dos aqui enunciados
em Portugal aceitámos que por em que não tenha sido convoca-
aqui a história era diferente e da a debater com representantes
nada havia a investigar. da Igreja que já explicaram ao

O
s católicos que conheço
desejam o apuramento
de toda a verdade (pos-
A guerra na Ucrânia fez disparar o preço da energia, sível) em matéria de
despertando uma inflação adormecida há 30 anos. Isto abusos sexuais no seio da Igreja
é, um acontecimento político da maior gravidade levou Católica (IC). É-lhes insupor-
ao descarrilar da economia. Os efeitos desta convulsão tável imaginar o encobrimento
estão aí: aumento do preço da carne, do peixe, dos bens de alegados abusos sexuais de
de primeira necessidade. Outras formas de apertar o cinto menores em termos similares
foram já adotadas em Espanha, França ou Alemanha, ao que se passou na Irlanda, nos
onde estão previstos cortes no consumo de eletricidade, Estados Unidos, no Brasil, em
água, ou na velocidade permitida nas autoestradas. Eis Espanha, na Bélgica ou em vá-
a nova austeridade, agora decretada pela geopolítica e rios países da América do Sul.
não por uma qualquer troika. O inverso será ainda mais A realidade endémica é conhe-
imprevisível: e se o aumento do preço da cebola em Valongo cida e relatórios como o Child
afetar o conflito criado por Putin? Caso o aumento do custo Rights International Network
de vida tenha um impacto negativo no Ocidente, é provável explicam o que sabemos, isto é,
que o apoio concedido ao regime de Zelensky comece há uma longa história de obs-
a esmorecer. Num cenário em que os países da União trução e não cooperação com
Europeia deixem de apoiar Kiev, como fizeram até agora, a justiça por parte da IC com
tudo seria mais complicado. Até aqui, na ponta esquecida.
uma questão funda. É um tema
gigantesco e falar dele, e das suas
consequências, não é querer
abolir a instituição. Custa muito
ler das regras “daquele tempo”
e “deste tempo” “instituídas
pela IC”, como se a IC vivesse à
margem da lei, dando instruções
internas, num ou noutro sentido.
Em debates públicos, é comum
ouvir — se que nada temos a ver
com a organização interna de
uma confissão religiosa. Mas
podemos questionar o facto de
haver uma confissão religiosa
com enorme intervenção no es-
paço público que consegue uma
espécie de lugar automático na
construção dialética da Lei da
República. Não está em causa a
liberdade de expressão da IC ou
Para a IC, o sexo é reservado a
pessoas heterossexuais, depois
de consumando o casamento
para toda a vida e tem como fi-
nalidade primordial a procria-
ção. A Igreja rejeita moralmente
quem gosta de sexo porque sim,
quem não quer procriar, essen-
cialmente rejeita casais gays e
lésbicas e vive isolada no Oci-
dente no papel institucional que
reserva às mulheres.
Cada vez que o Parlamento
laico, devedor apenas da Cons-
tituição da República, faz uma
lei em matéria de igualdade e
liberdade (casamento igualitá-
rio, adoção por casais do mesmo
sexo, PMA para lésbicas, pessoas
trans e, agora, eutanásia) não há
um único debate sem padres e
povo, por exemplo, que há uma
associação entre homossexuais
e abuso de crianças, que as lésbi-
cas são más mães, que não pode
haver família sem pai e mãe, que
a vida é dada por Deus e nin-
guém pode abdicar dela. Por que
razão damos tanto espaço a uma
Igreja que, na sua autonomia, re-
jeita em grande parte valores da
República, mas depois dá o seu
contributo precisamente sobre
o que é, na verdade, pecado. A
deferência leva a que debatamos
direitos de minorias protegidas
pela Constituição e repudiadas
pela Igreja, porque isto é parte
de um privilégio gigante da Igre-
ja que é tido por normal.
Deixamos a Igreja em paz, mas
a inversa nunca foi verdadeira.

Militantes do núcleo de Lisboa da Iniciativa Liberal

O problema O pecado
de Medina na Igreja Temos falta de habitação pública?
Que Fernando Medina Ninguém quer que o te uma meia falácia. Temos glo- De salientar ainda que as dinâ- de euros, valor que teria dado
contrate um ex-diretor de justo pague pelo pecador.
João Graça e João Cravo balmente um stock razoável de micas da habitação são de longo para construir cerca de 200

É
informação da TVI para Ninguém exige à Igreja habitação pública, sendo o mai- prazo, sendo assim explicável mil fogos de habitação a preços
o aconselhar, é matéria Católica portuguesa um lugar comum afirmar- or problema a sua má gestão. que certos países apresentem controlados, o que conduziria
da sua competência. Que que consiga corrigir os -se que Portugal precisa Vamos aos factos. rácios superiores; são os casos o país para o pódio dos países
o contrate como assessor pecados de décadas dos de mais habitação públi- Portugal tem cerca de 120 mil dos países ex-socialistas, dos com mais habitação pública.
externo, sobrepondo-o seus membros, porque os ca e que tem um stock de fogos de habitação pública; Lis- países que tiveram as suas ci- Outra forma de ver esta
a funções que já existem pecados não se corrigem. habitação pública aquém dos boa tem cerca de 27 mil. Consi- dades destruídas pela II Guerra questão é analisarmos o inves-
no Estado e com bom Mas confessam-se. E seus congéneres europeus. As derando os cerca de 6 milhões Mundial, e que assentaram a timento público em percenta-
salário, passa a ser um a palavra “perdão” é, forças políticas marxistas de- de fogos de alojamento existen- sua reconstrução em apoios pú- gem do PIB, em que Portugal
problema de perceção — precisamente, a que fendem mais habitação pública tes em Portugal, dos quais 320 blicos, e ainda dos países com tem um rácio em linha com a
com a devida fatura. Mas mais marcou séculos de porque desprezam tudo o que mil em Lisboa, temos um rácio uma maior cultura de arrenda- média europeia, mas acima dos
que Sérgio Figueiredo progresso do Ocidente, esteja associado à propriedade de habitação pública de 2% para mento habitacional. Países Baixos, país este que é
não assuma essas funções sob os mandamentos da privada. Outras forças políticas o país e 8% para Lisboa (na capi- Como atualmente há uma muitas vezes apontado, erro-
em exclusividade já é Igreja Católica Apostólica também consideram que os atu- tal, se considerarmos as 242 mil tendência de redução do inves- neamente, com um exemplo
um problema de ética na Romana. Agora, a D. ais “problemas de habitação” se casas de residência habitual, o timento em stock de “habitação de forte investimento na habi-
gestão pública. Agora, Manuel Clemente e aos resolvem com uma intervenção rácio sobe para 11,2%). de interesse social” (pública ou tação pública.
que um ministro das que o seguem, não basta significativa do Estado no mer- Há vários países europeus com privada) nos países europeus, Em suma, não se pode sus-
Finanças com ambição abrir a porta aos pecados. cado de habitação. E mesmo um rácio superior de “habitação Portugal, ao querer aumentar tentar que Portugal tenha um
de sucessor não perceba É preciso assumi-los todos, alguns sectores da sociedade de interesse social”, a qual pode esse stock, está claramente em défice de investimento do Esta-
tudo isto é só um mau a bem do futuro da sua mais liberais argumentam que ser de propriedade pública ou contraciclo com um caminho do em habitação pública, pelo
prenúncio. relação com todos os fiéis. o Estado, através da promoção privada. Aliás, com exceção da liberalizador no mercado de que dizer que devemos passar
de habitação pública, deve ser Dinamarca e da Finlândia, que habitação. de um rácio de 2% para 5%,
o contrapeso para uma liberali- têm um parque de “habitação de Embora as políticas públicas objetivo assumido pelo atual
zação do mercado de habitação, interesse social” de propriedade de habitação em Portugal te- Governo, é desprovido de fun-
nomeadamente do mercado de essencialmente pública, todos nham cerca de 100 anos, é im- damentação. Quando em Lis-
arrendamento. os países com um maior rácio, portante enfatizar que o maior boa temos um rácio de 8% (ou
Proprietária/Editora: IMPRESA PUBLISHING S.A. Mas será mesmo assim? como os Países Baixos, Áustria, marco de investimento público 11,2%), mais difícil é de se afir-
Sede: Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos. NIPC: 501984046
Administração da IMPRESA PUBLISHING: Francisco Pinto Balsemão,
Precisamos de mais habitação Reino Unido e França, têm uma aconteceu com as bonificações mar que os “problemas de ha-
Francisco Maria Balsemão, Francisco Pedro Balsemão, pública? significativa percentagem de de juros no crédito à habitação, bitação” na cidade de Lisboa se
Paulo de Saldanha, Paulo Miguel Reis e Nuno Conde
Composição do Capital da Entidade Proprietária: 100.000 euros, Este artigo tem como objetivo propriedade privada na habita- que entre 1987 e 2011 ascende- devem à existência de um stock
100% propriedade da Impresa – SGPS, SA, NIPC 502437464
Registo da publicação na ERC: 101.101 ISSN-0870-1970 demonstrar que estamos peran- ção de interesse social. ram a cerca de sete mil milhões reduzido de habitação pública.

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e Desenvolvimento Económico mas deve focar-se nos alunos, desigualdade de oportunida-
Impressão
Lisgráfica Impressão
(OCDE) indicam que 55% das nos pais e nos professores. des, num círculo vicioso, é fun-
e Artes Gráficas, S.A. crianças portuguesas filhas de Como presidente da nova Fun- A Educação é a chave, damental que as crianças e os
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2735-521 Agualva-Cacém trabalhadores não qualificados dação Santander Portugal, sinto o grande motor de jovens de famílias mais neces-
assumem o mesmo percurso dos que é a minha — ou a nossa — mobilidade social, sitadas sejam também as mais
Distribuição
VASP-MLP, pais quando chegam a adultos. missão contribuir para a trans- promove a redução das apoiadas nos seus estudos. Mas
Media Logistics Park
Quinta do Grajal, Venda Seca Por outro lado, Portugal é o país formação desta situação que nos desigualdades e da pobreza cada iniciativa e cada programa
2735-511 Agualva Cacém
Tel: 214 337 000 da União Europeia com a maior afasta da média dos países desen- têm de ser medidos em termos
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proporção da população adul- volvidos. A Educação é a chave, do impacto social que provocam.
Tel: 808 206 545 ta apenas com o ensino básico o grande motor de mobilidade palavras e os discursos, o país Estado e sociedade civil, fun-
A Impresa Publishing não é completo (47,8%). social, promove a redução das de- não se transforma da noite para dações e IPSS, empresas e pes-
responsável pelo conteúdo
dos anúncios nem pela A mobilidade educativa em sigualdades e da pobreza, criando o dia, mas é preciso medir e pre- soas devem dar as mãos neste
exatidão das características
e propriedades dos produtos Portugal é a menor dos 38 países mais oportunidades para todos. miar as medidas que produzem combate do século. A Aliança
e/ou bens anunciados.
A respetiva veracidade
da OCDE. São necessárias cinco Sabemos que Portugal é o país resultados de valor acrescentado para a Educação deve começar
e conformidade com a
realidade são da integral e
gerações para que uma crian- da Europa onde a escolaridade para a sociedade. Há famílias já. E nós queremos ter um papel
exclusiva responsabilidade
dos anunciantes e agências
ça nascida numa família pobre das novas gerações mais depen- que não podem esperar pela ativo nesta mudança. É o futuro
ou empresas publicitárias. possa ascender ao rendimento de do nível das anteriores, tal transformação que pretendemos de Portugal que está em causa.
Expresso, 12 de agosto de 2022 PRIMEIRO CADERNO 37

Miguel Poiares Maduro Henrique Raposo

política@expresso.impresa.pt henrique.raposo79@gmail.com

Para os Ser Igreja

inimigos, a lei

O Q
despacho do primeiro-ministro
reagindo às críticas do presi-
dente da Endesa ao mecanis-
mo ibérico que limita o preço
do gás para efeitos de produção recor-
dou-me uma famosa frase do general
peruano Óscar Benavides: “Para os
meus amigos, tudo; para os inimigos,
a lei.” As declarações do presidente
da Endesa são criticáveis: suscitou o
risco de o mecanismo agravar o preço
da eletricidade a pagar pelos consumi-
dores, mas sem fundamentar de forma
adequada. Já foi, aliás, desmentido
pela Entidade Reguladora dos Ser-
viços Energéticos, que, embora con-
firmando que o diferencial de preço
face ao mercado será assegurado por
alguns consumidores, ainda assim o
preço a pagar será sempre inferior
àquele que resultaria do mercado sem
este mecanismo ibérico.
Mas, sendo suscetível de crítica, a
opinião do presidente da Endesa é
isso mesmo: uma opinião sobre uma
determinada opção de política pública.
A sua empresa não cometeu nenhuma
ilegalidade. O primeiro-ministro, no
entanto, não se limitou a responder
a essa opinião. Ameaçou a empresa.
É verdade que o primeiro-ministro
veio argumentar que o seu despacho
(sujeitando as faturas da Endesa a um
processo de validação diferente das
outras faturas empresariais) era me-
ramente preventivo, para garantir o
cumprimento da lei. Mas ou as outras
empresas não estão sujeitas ao cum-
A foto da
semana
Por Manuela Goucha Soares
mgoucha@expresso.impresa.pt
No julgamento, o acusado pegava num ferro aquecido com o fogo ou
caminhava sobre brasas. Se Deus o protegesse, nada lhe aconteceria...
Julgamento por ordália
uando decidimos construir uma
família, eu ainda estava longe
da certeza da fé, ainda estava
no sicómoro de Zaqueu. Já não
era o ateu da juventude, mas ainda não
tinha descido dessa árvore da dúvida.
Foi por isso que casámos apenas pelo
civil. Não quis desrespeitar a Igreja,
não quis casar numa igreja só porque
sim, só porque é bonito, só porque fica
bem no Instagram. Mais tarde, sim,
comecei a entrar na fé. Escrevi muitas
vezes aqui sobre essa descoberta. Num
certo sentido, converti-me em público e
NOVO ANO Mulheres iranianas participam num ritual de luto em Te-
erão, antes da Ashura, que é o 10º dia do mês de Muharram. Este dia
às claras no maior jornal do país, o que
contribuiu para aumentar a minha má
do primeiro mês do ano do calendário islâmico evoca a Batalha de Kar-
bala, há 14 séculos, e tem um significado diferente para sunitas e xii-
imprensa nos “meios” sofisticados. Pois
bem, antes de nos casarmos pela Igreja,
tas. Para os xiitas é o dia mais sagrado do ano, em homenagem ao imã quis tirar tudo a limpo neste tabuleiro
Hussein, que perdeu a vida nessa batalha. FOTO MAJID ASGARIPOUR/REUTERS teológico e por isso inscrevi-me num
crisma, que, na prática, foi um curso
acelerado de fé. Sempre estive fora da
Igreja e, por essa razão, era da mais fun-
damental honestidade passar um ano
a estudar para perceber onde estava a
entrar e sobretudo para perceber o que
estava a sentir no meu íntimo.
Foi um ano difícil mas feliz. Foi o ano
da polémica do “Alentejo Prometido”.
Foi o primeiro de quatro anos em que
não dormi por causa da benjamim.
Mas, mesmo sem dormir, de setembro
a maio fui todas as quintas-feiras às
aulas noturnas do crisma. Ainda hoje
mantenho a amizade com padres e co-
legas deste curso abençoado. Só que,
num dia qualquer de maio, veio a má

primento da lei ou não se explica a
diferença de tratamento senão como
uma ameaça dirigida a esta empresa
em retaliação pela crítica do seu pre-
sidente à opção política do Governo.
Se o Governo teme o risco de alguma
ilegalidade, então deve criar um me-
canismo aplicável a todas as empresas
que previna tal risco. Na verdade, foi
isso que veio agora fazer (e bem) o
secretário de Estado da Energia, João
Galamba, ao impor um mecanismo
de transparência que permitirá aos
consumidores (qualquer que seja a
empresa) saber quanto pagariam com
e sem este mecanismo ibérico. Esta
teria sido a forma correta de o Gover-
no reagir desde o início. Em vez de
garantir a transparência e legalidade,
o primeiro-ministro, no entanto, usou
a lei para retaliar (através da ameaça)
contra uma empresa por uma opinião
do seu presidente.
Este caso revela uma cultura política
que se transforma numa limitação
democrática. Não admira, assim, a
queda da nossa democracia nas avalia-
ções internacionais. Numa sociedade e
economia tão dependentes do Estado
(das leis que regulam a atividade das
empresas ao peso dos contratos ou
subsídios públicos nas receitas das
mesmas), um Estado que não seja im-
parcial e isento, mas sim controlado
por um Governo e partido, condiciona
a liberdade dessa sociedade. Se um
empresário ou empresária acharem
que a sua relação com o Estado (que
pode ser determinante para a sua so-
brevivência económica) depende da
maior ou menor simpatia que tenha
por eles o partido do Governo, a sua
liberdade fica em causa. E o que acon-
tece com eles acontece com toda a
sociedade civil que, de alguma forma,
dependa do Estado. O despacho do
primeiro-ministro alimenta, em vez
de combater, esta perceção. É o exato
oposto da cultura política de que ne-
cessitamos: uma em que, independen-
temente de diferentes posições sobre a
necessidade de mais ou menos Estado,
todos deveríamos concordar em ter
um Estado menos partidarizado, que
garanta imparcialidade e isenção, in-
dependentemente das nossas posições
partidárias e de apoio ou crítica às
opções do Governo.
E
m tempos medievais, e até se- inocentados. Mas não era o caso. O clero que foi conivente direta
rem banidos no início do sé- Se fosse, corria-se o risco de que ou indiretamente com os abusos
culo XII, os julgamentos por se desconfiasse da fiabilidade do sexuais é o mesmo clero que não
ordália eram comuns quando julgamento, situação em que tam- me deixou entrar na Igreja devido
não havia provas que assegurassem bém os culpados prefeririam ar- a um formalismo frio, impessoal,
a inocência ou a culpa de um acusa- riscar a sua sorte e submeter-se à destituído de empatia evangélica
do. Os também chamados juízos de provação. Peter Leeson argumenta
Deus consistiam em submeter um que, para manter viva a crença, os
réu a algum tipo de provação, con-
Luís Aguiar-Conraria padres tinham de ocasionalmente notícia: a Igreja não me deixava fazer o
Professor de Economia da Univ. do Minho
tando-se com a Sua misericórdia condenar alguém. Todavia, recor- crisma porque eu vivia em pecado (em
lfaguiar@eeg.uminho.pt
em caso de inocência. rendo a um modelo matemático, casamento civil); para conseguir fazer o
O julgamento tinha diversas for- alega que a taxa de condenação é crisma, eu tinha de casar em primeiro
mas. Numa das mais comuns, o acusado pegava num a menor possível para garantir que o processo de au- lugar pela Igreja. Ainda não consigo
ferro aquecido com o fogo ou caminhava sobre brasas. tosseleção (em que inocentes se submetem à ordália e explicar bem a sensação de injustiça
Se Deus o protegesse, nada lhe aconteceria; se o con- culpados não) se mantém funcional. que senti e sinto. E não valeu de nada
denasse, queimar-se-ia. Os rituais também eram feitos Há um problema com este sistema. Ocasionalmen- explicar a minha história: claro que não
com água a ferver: o acusado tinha de pôr o braço em te, haverá inocentes condenados e também culpados podia ter os sacramentos todos pela
água a escaldar para pegar numa pedra no fundo do declarados inocentes. Os inocentes condenados não ordem porque fui sempre ateu e queria
caldeirão; se, por intervenção divinadeífica, nada lhe são um problema para o statu quo. Claro que ficarão fazer o crisma precisamente para me
acontecesse (ou se sarasse rapidamente), estava inocen- a saber que a ordália é uma falsidade, mas não lhes sentir bem nesta casa. Casa, essa, que
te. Também havia o julgamento em água fria, em que o adianta de nada denunciar o esquema: o que não falta me expulsou mesmo antes de eu entrar.
condenado era despido e com mãos e pés amarrados são culpados condenados a reafirmarem até ao fim a Casa, essa, que eu defendi publicamen-
e atirado à água. Se se afundasse completamente, era sua inocência. Um inocente que alegue ter sido injus- te várias vezes, em absoluta inferiori-
rapidamente içado e declarado inocente; tamente condenado é, na aparência, dade numérica, nos meios intelectuais.
caso contrário era culpado. Estas práti- igual a um culpado que diga o mesmo. Mas foi assim que a Igreja premiou o
cas parecem-nos uma barbaridade, mas Se calhar, os O culpado declarado inocente também meu esforço pessoal e público: vai-te
Peter Leeson, economista e professor de padres estavam não representa um desafio ao siste- embora, não és dos nossos, não és dos
Economia e Direito na George Mason ma. Se mantiver a crença, é provável bonzinhos com os sacramentos pela
University, escreveu um artigo no “Jour- convencidos de que acredite que Deus lhe está a dar ordem certa!
nal of Law & Economics” (uma ótima que tinham o uma segunda oportunidade e — quem A Igreja não me deixou entrar por-
revista científica na área) argumentando poder divino de sabe? — talvez seja uma bela forma de que há demasiados fariseus moralis-
que estes métodos eram bastante efica- reabilitação. Se se tornar um descrente tas, porque há demasiados católicos
zes a distinguir culpados de inocentes. distinguir quando e continuar a praticar crimes, o mais que não leem a Bíblia, porque há de-
O académico parte de uma observação um acusado mente provável é que, ao ser apanhado e jul- masiados católicos que acham que a
surpreendente: na maioria dos casos, o ou diz a verdade gado novamente, o juiz desconfie e não fé é o mesmo que o clericalismo. E, por
acusado era declarado inocente. Pondo lhe dê uma segunda oportunidade. falar no pecado do clericalismo, o que
de parte a explicação divina, resta uma A coisa complicava-se quando um me custa mais neste momento é saber
explicação mais terrena. Os julgadores, necessariamente inocente era condenado e, mais tarde, ficasse demons- que o clero que foi conivente direta ou
padres, adulteravam os testes, por exemplo pintando os trada a sua inocência. Robert Bartlett (no livro “Trial indiretamente com os abusos sexuais é
ferros para que parecessem incandescentes ou simulan- by Fire and Water: The Medieval Judicial Ordeal”) o mesmo clero que não me deixou en-
do água a escaldar. Mas, se aldrabavam as provas, como descreve o caso de um inocente condenado à morte trar na Igreja devido a um formalismo
podiam os padres saber quem era inocente ou não? A por homicídio. A sua inocência ficou demonstrada frio, impessoal, destituído de empatia
resposta é surpreendentemente simples e lógica. quando, umas semanas depois de enforcado, o suposto evangélica. Mas estaria a ser egoísta
Peter Leeson parte do princípio de que o povo, mas não assassinado regressou, vivo, a casa. Mas estes casos se reduzisse a Igreja ao seu lado mais
os padres, acreditava no juízo de Deus. Com este pressu- eram raros, pelo que se conseguia inventar uma des- negro e se reduzisse a minha relação
posto, então, de facto, a ordália é um excelente método. culpa apropriada. com a Igreja a este episódio. Nos últi-
Um culpado preferirá confessar a submeter-se a pegar Há outras explicações mais simples para o fenómeno mos 10 anos conheci na Igreja algumas
numa barra de ferro incandescente ou a caminhar sobre de tantas ordálias declararem a inocência dos acusados. das pessoas mais extraordinárias que
brasas e, depois, ser condenado na mesma (geralmente a Se calhar, os padres, tal como muitos juízes portugueses, conheço e a fé faz parte de mim. E tam-
penas pesadas, pois estes julgamentos eram reservados a estavam convencidos de que tinham o poder divino de bém por isso continuo no umbral da
casos graves). Já um inocente, acreditando na intervenção distinguir quando um acusado mente ou diz a verdade e porta, não entrei, mas também não me
divina, terá a certeza de que não se queimará no julga- ajustavam a provação a essa convicção. Mas Leeson vai fui embora. Não sou o centro do mun-
mento. A implicação é que quem aceita submeter-se a tal pelo modelo mais elaborado — que tem como implicação do e as minhas dores não são especiais,
provação está inocente. Sabendo disto, os padres viciarão que os juízes, conscientemente, condenavam inocentes até porque, quando nos revoltamos
os testes para que o acusado não se queime. —, sendo mais um exemplo de que, por mais bárbara contra os pecados da Igreja, estamos
Levando o raciocínio anterior ao extremo, concluir- que seja uma prática, há sempre um economista capaz na verdade a olhar para o nosso rosto
-se-ia que todos os que se sujeitavam à ordália eram de a racionalizar. refletido num espelho.
38 PRIMEIRO CADERNO Expresso, 12 de agosto de 2022

Opinião

Arquiteto e professor Anne-Marie Slaughter é ex-diretora do Departamento de Estado dos EUA e CEO do think tank New
universitário America. Ian Shapiro é professor de Ciência Política e Assuntos Globais na Universidade de Yale
Um decreto-lei As Arcadas Douradas partem para a guerra
do Estado
Novo ainda Anne-Marie Slaughter e Ian Shapiro na medida completa da sua capacidade, erradica- da sociedade civil, de reguladores, juízes e legisla-
no ativo aos ria o sistema da guerra.” No século XIX, o político dores europeus, mesmo antes de serem candidatos

N
e industrial britânico Richard Cobden lutou pelo à UE. Os países sem perspetivas de aderir à UE

71 anos o rescaldo da Guerra Fria, enquanto a glo-

balização acelerava, Thomas Friedman ob-
servou que nunca dois países onde existiam
restaurantes McDonald’s tinham iniciado
uma guerra entre si. Isto levou-o a formular o que
apelidou de “Teoria das Arcadas Douradas” (NdT:
Avelino Oliveira no original Golden Arches, em alusão ao logótipo
livre comércio, alegando que “teria a tendência de
unir a humanidade em laços de paz”.
Estes argumentos não se baseiam apenas na
ideia de que os países têm um interesse económico
na manutenção dos laços comerciais que desenvol-
veram. Mais propriamente, a teoria iluminista do
doux commerce (comércio suave) defendia que o
aderiram à NATO, o que criou alguma integração
militar e um sentido de pertença no clube ocidental.
A Rússia não. No ano 2000, Vladimir Putin
propôs a Bill Clinton a adesão da Rússia à NATO,
mas esse passo nunca foi dado. Caso tivesse, teria
alterado fundamentalmente os incentivos geopo-
líticos da Rússia, apesar de também ter alterado a

E
da empresa de restauração) para a prevenção de comércio tem um efeito civilizador sobre a socie- NATO de forma drástica.
screve-se com quatro letras e é, conflitos: quando um país atinge um determinado dade porque depende de interações sociais com De qualquer forma, essa oportunidade perdeu-se.
provavelmente, o mais antigo nível de desenvolvimento económico, no qual a clas- pessoas diferentes e de princípios como a equidade A guerra de Putin contra a Ucrânia veio reavivar e
decreto-lei em vigor. O RGEU, se média tenha dimensão suficiente para justificar e a reciprocidade. reforçar a NATO como uma aliança anti-Rússia,
sigla de Regulamento Geral das um McDonald’s, o seu povo perde interesse em tra- A teoria do doux commerce foi muito criticada; com a adesão agora provável da Finlândia e da
Edificações Urbanas, é um resquício var guerras. A chave para a paz, seguindo a lógica, claramente, não havia nada de “suave” no tráfico Suécia. Além disso, a UE atribuiu à Ucrânia e à
do Estado Novo e celebra este mês poderia muito bem residir na interdependência e no de escravos ou no saque das matérias-primas Moldávia o estatuto de candidatos, e a presidente da
71 anos de existência. Apesar da an- desenvolvimento económicos. extraídas das colónias pelas potências imperiais Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, traçou
tiguidade, é este o regulamento que, Não demorou muito até que a Rússia refutasse para as suas manufaturas nacionais. Mas também uma espécie de Plano Marshall para a Ucrânia, que
supostamente, dita as regras das edifi- a teoria de Friedman: primeiro com a sua invasão não podemos ignorar que a guerra é hoje funda- visa permitir que o país evolua rapidamente depois
cações urbanas — num sector que re- da Geórgia, em 2008, e novamente com a sua mentalmente impensável entre os membros da de terminados os combates.
presenta mais de 15% do PIB nacional. invasão da Ucrânia, em 2014. Agora, a Rússia União Europeia, que incluem os países da Europa Em resumo, a guerra de Putin uniu o Ocidente. O
Todos os dias vários arquitetos e sustenta uma campanha militar sem tréguas para Central e Oriental que aderiram depois do fim da que há agora a fazer é assegurar essa unidade por
outros técnicos responsabilizam-se, conquistar a Ucrânia e devolver as suas terras e o Guerra Fria. tempo suficiente para garantir que Putin registe
sob sua honra, pelo cumprimento do seu povo à “Mãe Rússia”. Parece evidente que os Porque é que a Rússia não se enquadra neste tantas perdas pela sua agressão que seja perma-
RGEU para que os processos sejam laços económicos, só por si, não são suficientes padrão? A resposta poderá residir na sua exclusão nentemente dissuadido de expandir as fronteiras
aceites pelas entidades licenciadoras para preservar a paz. política. da Rússia pela força.
(em geral, as câmaras municipais). Muitos encaram hoje o envolvimento económico Após a queda da União Soviética, foram proporcio- Mas existe um desafio ainda maior no horizonte.
Assim, compulsivamente, os arqui- como um elemento dissuasor. Afinal, países como nados aos antigos membros do Pacto de Varsóvia, O Ocidente nunca terá relações verdadeiramente
tetos dispõem-se a respeitar um do- a Alemanha e a Itália, com a sua forte dependência não apenas pacotes comerciais, mas também um harmoniosas com a Rússia sem um grau significa-
cumento legislativo a que, em muitos da energia russa, estão, na verdade, reféns do mili- conjunto de oportunidades para se ligarem às redes tivo de integração económica, política e social.
casos, já não faz sentido obedecer. tarismo do Kremlin. O corte dos laços comerciais Portanto, os estrategos ocidentais deveriam pen-
Por exemplo, é o RGEU que não com a Rússia está na ordem do dia. A Rússia até sar não apenas na melhor forma para derrotar e
permite que se desenhe uma cozi- deixou de ser um “país McDonald’s”: a empresa dissuadir a Rússia (e reconstruir a Ucrânia), mas
nha aberta sobre a sala, tornando os anunciou em março que iria encerrar todas as suas
Países como a Alemanha também na melhor forma para reverter as sanções
dois espaços numa zona comum (tipo 850 concessões no país. e a Itália, com a sua contra a Rússia e criar incentivos para que uma
“cozinha americana” ou kitchenette, Friedman esteve longe de ser o primeiro a suge- forte dependência nova geração de líderes russos desenvolva relações
típicas em qualquer série televisiva rir que as relações económicas e comerciais têm da energia russa, estão políticas e económicas com o Ocidente. A combina-
contemporânea). A alternativa é o um impacto pacificador sobre as relações interna- ção de envolvimento político e económico foi, afinal,
arquiteto usar um truque que cumpra cionais. Montesquieu defendia que “o efeito natu- na verdade reféns vital para o êxito do Plano Marshall na Europa Oci-
o disposto no RGEU, ou seja, “troca” ral do comércio é dispor-nos para a paz”. Thomas do militarismo do Kremlin dental e para a reintegração do Japão na economia
o nome de um quarto por sala e da Paine ia mais longe: “Se o comércio pudesse agir global depois da II Guerra Mundial.
sala por cozinha, passando um T3 a Aplica-se uma lógica semelhante no caso da
ser um T2. Os técnicos municipais China. Muitos comentadores cilindraram Donald
percebem perfeitamente o artifício e Trump por retirar os Estados Unidos da Parceria
não interferem, porque também eles Trans-Pacífico, um bloco comercial que inclui 12
reconhecem o anacronismo. países da orla do Pacífico e que exclui a China. Na
Outro exemplo é o modo como se sua perspetiva, a PTP seria essencial para reforçar
lida com os espaços sanitários. O do- a influência da América numa região crítica, ao
cumento obriga a ter uma banheira mesmo tempo que diminuiria a da China.
Mas, apesar de a política de Trump ter sido muito
pouco prudente, isolar a China é uma má ideia. Isso
É este o regulamento cria o risco de fortalecer a linha dura da liderança
chinesa e de aumentar o incentivo da China para se
que dita as regras
FOTO ALEXANDER NEMENOV/AFP/GETTY IMAGES

comportar de forma hostil ou até de forma agressi-

das edificações urbanas, va. Em vez disso, os EUA deveriam aderir ao Acordo
num sector que Abrangente e Gradual para a Parceria Trans-Pacífi-
representa mais de co (o sucessor da PTP) e apoiar a inclusão da China.
O efeito do doux commerce depende da inclusão
15% do PIB nacional económica e política. Isso será pedir demasiado
no mundo de hoje, e de qualquer forma não se
conseguirá de um dia para o outro. Mas, ao mesmo
em cada habitação (à moda antiga). tempo que tentamos cumprir o imperativo de curto
Ora, na maioria das casas já só se co- prazo de acabar com a agressão da Rússia, temos
locam bases de chuveiro, portanto também de conceber uma estratégia de longo prazo
resta desenhar a base do chuveiro para construir um mundo mais pacífico e próspero.
como se fosse uma banheira e, caso
perguntem, justifica-se dizendo que Project Syndicate, 2022.
ali há sempre espaço para “se encai- www.project-syndicate.org
xar” futuramente a dita.
O rol de particularidades é exten-
so, bastando uma rápida pesquisa
às bases de dados de artigos cientí- Presidente da Executive Education do ISCTE, instituição que faz este ano 50 anos
ficos para concluirmos que o RGEU
reúne unanimidade nos pareceres:
encontra-se “vetusto”, desatualizado
face aos atuais processos, às tecno-
logias da construção e aos modos de
Logística: “The Economy’s Dark Continent”*
vida. Apesar do papel fundamental
que teve na regulação da construção ra, apresenta os seus dados num local lha), transporte e entrega. Absoluta- escassez em variadíssimos produtos
no século passado, quando não exis-
José Crespo de Carvalho de receção, espera de novo, sempre mente essenciais sob o ponto de vista que como não são produzidos não

T
tiam PDM nem legislação específica, tratado por uma lógica first in, first da logística e da gestão de operações, chegam aos mercados de destino e,
a verdade é que o RGEU é hoje um rês exemplos contemporâneos out, é inoculado, é passado a uma incluindo previsões, planeamento, concomitantemente, fazem aumen-
amontoado de frases recheadas de são emblemáticos ao ilustra- fase de recobro, nova espera, e de- routing, entregas e receções efetivas. tar os preços. Os mercados ficam
sobreposições com documentos mais rem a importância da logística pois sai. O processo, porque a grande Prevendo as quantidades a serem nervosos e os reflexos impactam
recentes, o que complica o trabalho a e gestão de operações no mun- maioria da população portuguesa procuradas, planeando o sortido e as nas várias bolsas mundiais, criando
quem projeta e dificulta a vida a quem do que nos rodeia. Porém, se nada passou por ele, é autoexplicativo. E capacidades instaladas em cozinha (e volatilidade. Tensões geopolíticas e
analisa e licencia. mais pudesse ser dito, o processo de não é um processo de saúde a não ser temos cada vez mais dark kitchens a outras ameaças de mercados reni-
É óbvio que a revisão e a atualização vacinação pelo qual temos passado, quando uma vacina entra no braço entregar, i.e., cozinhas que não têm tentes ou fechados impactam essas
do RGEU, com o que isso implicaria o desenvolvimento das entregas de de alguém. Tudo o resto é logística e sala de restaurante mas só trabalham mesmas cadeias. Questões de saúde,
de limpeza de caducos e de organi- última milha e a disrupção global das operações com cadeia de frio. para fora, para cliente final ou para trazidas pela pandemia, impactam
zação coerente das regras, teria um cadeias de abastecimento são apenas A última milha, englobando entre- outras cozinhas — para simplificar). igualmente em todos estes exemplos.
impacto muito positivo, beneficiando exemplos fortíssimos que demons- gas em casa dos clientes, tem sofrido Finalmente, o exemplo da disrup- Estes e outros temas têm mere-
os cidadãos. Por isso é fundamental tram a sua criticidade. um desenvolvimento colossal. E bas- ção das cadeias de abastecimento a cido um aprofundamento de anos
colocar este assunto na agenda com Temas clássicos como os de filas de ta exemplificar com a restauração, que temos vindo a assistir. Portos de por parte do ISCTE — Instituto Uni-
o legislador e pôr fim a esta memória espera, de capacidade instalada e uti- pois nem precisamos de ir mais lon- mar parados, fábricas que interrom- versitário de Lisboa ao longo destes
de outros tempos, substituindo-o por lizada, de planeamento, de marcação ge, com todos os consumíveis, e não pem produção, ausência de força 50 anos do seu desenvolvimento.
um código da construção (ou similar) ou reserva de um slot (lugar) foram só, que podemos ter em casa fruto de trabalho, contentores vazios mal Primeiro com a gestão de operações
que agregue toda a legislação funda- e são tão, mas tão críticos, que nin- do e-commerce. As plataformas que posicionados em termos globais e, no mais clássica, depois, com todos os
mental num documento único. guém ousa contrariar a importância operam com restaurantes, com clien- geral, ausência de oferta ou disrup- temas logísticos e de gestão da ca-
Enquanto isso, o RGEU faz 71 anos da logística e gestão de operações. tes finais e com estafetas deverão ser ção da oferta face aos níveis de procu- deia de abastecimento.
e está de parabéns, os responsáveis Repare-se que o vacinando é marca- entendidas como trabalhando com ra. Este fenómeno tem interrompido
pela sua atualização é que não estão. do, comparece, entra em fila de espe- sistemas logísticos de picking (reco- cadeias de abastecimento, mostrado *Peter Drucker
Expresso, 12 de agosto de 2022
Desastres Naturais
Por António Araújo
1981-2022 Político, activista social e músico de hip-hop, contestatário do actual regime militar
de Myanmar. Preso sob a acusação de terrorismo, foi enforcado na prisão de Insein
Zayar Thaw
C
hocante”, disse o repre-
“ sentante das Nações
Unidas, associando-se à
condenação do Governo
alemão, entre outros, da Am-
nistia Internacional e da Human
Rights Watch, cuja responsável
para os assuntos asiáticos adian-
tou um detalhe atroz: a família
só soube da sua morte pelos
noticiários e não teve sequer o
direito, o direito humano, de se
despedir dele. Juntamente com
outros três activistas pró-demo-
cracia, foi enforcado na alvorada
do passado dia 23 de Julho na fa-
migerada prisão de Insein, perto
de Rangum, conhecida pela suas
condições desumanas e pela
prática reiterada da tortura.
Zayar Thaw, também conhe-
cido por U Phyo Zayar Thaw
ou Zeya Thaw, barbaramente
morto aos 41 anos, nasceu em
Rangum a 26 de Março de 1981,
e era filho de um antigo reitor
universitário e de uma afamada
dentista, tendo estudado numa
das mais antigas, prestigiadas e
caras escolas da cidade, o liceu
nº 6 de Botataung, após o que
frequentou o curso de farmácia,
mas acabou por se formar em
inglês na Universidade Yadana-
bon, em Mandalay. Ainda estu-
dante, criou uma banda de hip-
-hop, os Acid, que lançou esse
género musical em Mianmar
com o seu álbum de estreia, “Be-
ginning”, um imenso êxito de
popularidade que permaneceu
no primeiro lugar dos tops por
mais de dois meses. As letras,
polvilhadas de críticas e denún-
cias sociais, tinham um corajoso
tom interventivo, e Zayar Thaw
envolver-se-ia desde muito novo
na defesa dos mais desfavore-
cidos, promovendo acções de
recolha de fundos para um orfa-
nato de crianças com VIH e en-
sinando inglês em vários outros
orfanatos de Rangum.
O activismo social levou-o à
política e, em Outubro de 2007,
no contexto da “Revolução do
Açafrão” (os gigantescos pro-
testos de rua liderados pelos
monges budistas contra os au-
mentos de combustíveis ditados
pelos militares, que em certos
casos chegaram a subidas de
500%), fundou o grupo Gera-
ção Onda, um movimento pró-
-democracia que surpreendeu
pela originalidade dos gestos:
OBITUÁRIO
Jô Soares
1938-2022 Nome artístico de
José Eugénio Soares, foi muito
mais do que um humorista:
apresentou programas de
grande sucesso na televisão,
escreveu livros, representou,
pintou, era um artista completo.
Apareceu em Portugal nos anos
80 com os programas “Planeta
dos Homens” e “Viva o Gordo”,
que se tornaram clássicos
instantâneos, com personagens
como Bô Francineide, a “rainha
da pornochanchada” que
cunhou a expressão “Pensar
que saí de dentro dela” ou
“transando o corpo numa nice”
e o Capitão Gay, o “primeiro
herói alegre dos quadradinhos”
Em Janeiro deste
ano, foi condenado
à morte e a execução
esteve anunciada
para Junho, sendo
concretizada
no mês seguinte
além de inundarem as princi-
pais cidades da antiga Birmânia
com panfletos e grafitos con-
testatários, difundiram urbi et
orbi o filme “Rambo”, proibido
pelas autoridades, no qual o he-
rói protagonizado por Sylvester
Stallone lidera um bando de
mercenários que resgata um
grupo de missionários cristãos
sequestrados pelos militares.
Não admirou, pois, que, em
Março de 2008, Zayar Thaw
e os outros membros da sua
banda fossem detidos num res-
taurante de Rangum sob a acu-
sação de posse de drogas, obvia-
mente torturados e condenados
a pesadas penas de prisão (no
caso dele, cinco anos de cadeia,
e mais um, por posse de moeda
estrangeira, num total de cerca
de 20 euros).
defensor “das minorias”. Na
altura, já era uma celebridade
no Brasil com participações em
vários filmes e peças de teatro.
Foi um dos primeiros artistas
brasileiros a protagonizar
espetáculos de stand-up
comedy (sim, havia piadas sobre
portugueses) e no final dos
anos 80 saiu da Globo para a
SBT para concretizar o objetivo
de apresentar um talk show
como os da televisão americana.
Entrevistou protagonistas
políticos, esteve em cima do
escândalo Collor de Melo e
voltou à Globo para apresentar
o programa que talvez lhe
tenha dado mais notoriedade:
“Programa do Jô”, por onde
passou a fina nata da sociedade
brasileira e portugueses
célebres como José Saramago
ou, mais recentemente, Ricardo
Araújo Pereira. Em 2016,
abandonou a carreira televisiva
e acabou com o programa em
que se despedia sempre com
“um beijo do Gordo”.
Dia 6, de pneumonia.
de 2020, que a Liga Nacional
para a Democracia venceu por
confortável margem, o que le-
vou os militares a lançarem um
golpe de Estado em Fevereiro de
2021, que redundou na prisão do
Presidente Win Myint, de Aung
San Suu Kyi e de vários minis-
tros e deputados, sob a grotesca
acusação de terem violado as
regras de confinamento impos-
tas pela covid-19. Seguiu-se uma
repressão brutal: três membros
proeminentes da Liga seriam
mortos quando se encontravam
sob custódia da polícia e, em No-
vembro de 2021, Zayar Thaw se-
FOTO SOE THAN WIN/AFP VIA GETTY IMAGES
ria preso sob a bizarra acusação
de terrorismo e fotografado ao
lado de um arsenal de armas e
munições, que os militares dis-
seram estar escondido em sua
casa, mas que os observadores
internacionais entenderam ser
uma descarada encenação. Em
Janeiro deste ano, foi condena-
do à morte e a execução esteve
anunciada para Junho, sendo
concretizada no mês seguinte,
juntamente com a de três outros
activistas pró-democracia, inclu-
Thaw cumpriu pena na prisão indo Kyaw Min Yu, membro do
de Kawthaung, sendo liberta- Grupo de Estudantes Geração
do em Maio de 2011. “A música 88 e autor de diversos best-sel-
tornou-nos corajosos”, disse à lers, um dos quais sobre a sua
saída da prisão, mas pouco de- experiência prisional.
pois, em Agosto desse ano, a po- A China e a Rússia de Putin
lícia proibiu-o de participar num são as principais apoiantes da
concerto de caridade no lago de junta militar birmanesa, a qual
Kandawgyi, num sinal de que até à data já executou, pelo me-
continuava sob o olhar atento nos, 1719 civis, incluindo crian-
dos militares, tanto mais que ças, e prendeu 9984 pessoas.
entretanto aderira à Liga Nacio- Em Fevereiro de 2021, o PCP,
nal para a Democracia, a plata- apesar de rejeitar o golpe mi-
forma política fundada em 1988 litar responsável pela actual
pela Nobel da Paz Aung San Suu ditadura, recusou votar uma
Kyi. Nas listas desse partido, foi resolução do Parlamento Eu-
eleito em 2012 para a Casa dos ropeu que o condenava, argu-
Representantes, a câmara baixa mentando que tal resolução não
do Parlamento birmanês, para o se desligava “dos interesses do
que muito contribuiu a populari- imperialismo” em Myanmar,
dade alcançada com a sua banda nos quais avultam os interesses
de hip-hop e o seu look jovem e da própria União Europeia e
descontraído, sempre de cha- do “colaboracionismo de forças
péu de beisebol na cabeça, bem oposicionistas domesticáveis”.
como a relação quase filial que
tinha com Aung San Suu Kyi,
a quem se manteve fiel mesmo
depois de esta ser alvo de forte ESTA COLUNA
TEM UMA VERSÃO
condenação internacional por PODCAST EM
ter apoiado os militares na sua EXPRESSO.PT
campanha de limpeza étnica do
povo rohingya.
Reeleito em 2016, decidiu re- António Araújo
gressar ao rap e, por isso, de- escreve de acordo
clinou candidatar-se às eleições com a antiga ortografia
> Olivia Newton-John (1948-
-2022), atriz e cantora inglesa
(representou o país na Euro-
visão, obtendo o quarto lugar)
viveu quase sempre na Aus-
trália e conseguiu o estrelato
no cinema e na música com o
filme “Grease”, em que con-
tracenava com John Travolta e
Ana Luísa Amaral com os temas ‘Summer Nights’
e ‘Physical’, muitas vezes con-
1956-2022 Professora fundido com um incentivo ao
universitária, escritora e exercício físico no ginásio. Dia
poetisa, é autora de 17 livros de 8, de cancro. > Lamont Dozier
poesia reunidos na antologia (1941-2022), cantor e composi-
“O Olhar Diagonal das Coisas”, tor, fez parte da era de ouro da
lançado em junho deste ano, na Motown e é autor de inúmeros
que terá sido a última aparição êxitos como ‘Where Did Our
pública. Era apresentadora — Love Go’, das Supremes, ou
juntamente com Luís Caetano ‘Baby Love’, da mesma banda.
— de “O Som que os Versos Dia 8, de causas não reveladas.
Fazem ao Abrir”, programa > Leandro Lo (1989-2022), lu-
de poesia da Antena 2 cujo tador brasileiro, foi oito vezes
título era inspirado em Emily campeão mundial de jiu-jitsu
Dickinson, talvez a sua poeta brasileiro. Dia 7, baleado na ca-
preferida. Escreveu livros beça, depois de ter imobiliza-
infanto-juvenis e este poema: do e libertado o agressor, com
“Era então essa/ a terra do quem se desentendera durante
segredo,/ o espaço de ventura/ um concerto de música sertane-
prometido?”. Dia 6, de cancro. ja num bar em São Paulo.
Cartas da semana
Os originais das cartas não
devem ter mais de 150 palavras,
reservando-se a Redação o direito
de as condensar. Os autores devem
identificar-se indicando o nº do B.I.,
a morada e o nº do telefone. Não
devolvemos documentos que nos
sejam remetidos. As cartas também
podem ser publicadas na edição online.
Para contacto:
Cartas@expresso.impresa.pt
A morte de Jô Soares
Sofri um desgosto com a morte
de Jô Soares, o mais popular e
influente humorista. Com a sua
inteligência e perspicácia, bem
humorado, adorava uma boa
conversa. É uma perda irrepa-
rável para a literatura brasileira
e até portuguesa. Fez um bom
uso do direito de expressão, jun-
tava a bonomia à contundência
pouco habitual num país sob di-
tadura. Jô era membro da Aca-
demia Brasileira de Letras e até
escreveu policiais de êxito, sem
deixar a sua carreira de humo-
rista mundialmente conhecido.
Sentidos pêsames à família e ao
Governo brasileiro.
Francisco C. Pina, Agualva-Cacém
Urge não esquecer
Tem vindo a acentuar-se a ideia
de que Portugal corre o risco
de ser o país mais pobre da UE.
Algo que é possível desmentir
derrubando barreiras (...) que
se perpetuaram no tempo e que
são necessárias para a constru-
ção de uma sociedade inclusiva,
justa e mais igualitária. Mas gera
inquietação a falta de vontade
política para assumir o intensi-
ficar de erros e ações discrimi-
natórias no nosso quotidiano. E,
por isso, é premente relembrar
aos políticos que a democracia
consolidada refuta ordenados
míseros, reformas indignas (...)
e assenta numa igualdade de
oportunidades entre cidadãos,
e isso, infelizmente, não combi-
na com a realidade atual. Algo
que dá azo a comportamentos e
atitudes populistas, demagogas
e segregadoras, a verdadeira es-
sência da extrema-direita para
sobreviver. E tudo isto põe em
causa o sistema democrático
cuja passividade é uma referên-
cia para a ambição desenfreada
daqueles que perspetivam cons-
truir uma sociedade elitista e
segregadora. Como tal, é bom
que tenhamos consciência da si-
tuação em que estamos mergu-
lhados, pois a mesquinhez moral
da argumentação mediante a
existência dos problemas reais é
a face mais visível de um Gover-
no incapaz de proporcionar aos
portugueses um modo de vida
de acordo com o europeu.
Manuel Vargas, Aljustrel
A privatização dos CTT
A privatização dos CTT promo-
vida pelo Governo de Passos
Coelho foi nefasta e continua a
ser. Os pensionistas/reforma-
dos são os mais penalizados e
sofridos com o encerramento
das estações de correio. A degra-
dação destes serviços priva as
populações, deixando-as aban-
donadas. Na minha zona, uma
aldeia, a distribuição, na melhor
das hipóteses, é feita uma vez
por semana. Muitas vezes, as
cartas para pagamento de água
ou de eletricidade chegam com
o prazo já expirado, acarretando
prejuízos para os destinatários.
Sei por experiência própria. A
administração dos CTT despre-
za o serviço postal em detrimen-
to da concentração de interesses
no Banco CTT. No interior, onde
muitas estações foram encerra-
das, o preço e a inexistência de
transportes coletivos para se po-
PRIMEIRO CADERNO 39
der levantar a pensão/reforma
é uma realidade, bem como a
redução do número de trabalha-
dores e o atraso na distribuição
da correspondência. O cumpri-
mento das cláusulas contratuais
há muito que é desrespeitado, e
o Governo não é capaz de exigir
junto do Conselho de Adminis-
tração dos CTT que corrija as
anomalias, que são muitas e re-
correntes. Este Executivo, que
diz ser socialista, tinha a obriga-
ção de cancelar o contrato ou de
proceder à reprivatização.
Vítor Santos, São João das Lampas
O PREC de Famalicão
Tenho acompanhado as notícias
sobre os dois alunos de Famali-
cão que são impedidos pelos pais
de frequentar a aula de Cidada-
nia. Esta situação já decorre há
dois ou três anos, sem que haja
solução à vista. Quero manifes-
tar a minha total concordância
com o artigo cujo título é o su-
pramencionado, publicado no
Expresso de 5 de agosto. Como
é possível que um aluno falte às
aulas e não tenha faltas que o
levem a reprovar? Como é pos-
sível que um aluno saia da aula
enquanto esta decorre, porque
o assunto que vai ser abordado é
contra os princípios da família, e
não lhe marquem falta?
Carlos G. Jacinto, Linda-a-Velha
Despesas de lares
Chegou a altura de recorrer a
um serviço de apoio domici-
liário para um familiar idoso e
fui pesquisar os benefícios fis-
cais em sede de IRS com essas
despesas: pode-se deduzir até
25 % do montante gasto, com
um benefício anual máximo de
€403,75. Isto, já de si, é uma “es-
mola”, mas acrescentam várias
condicionantes, entre as quais:
para ser elegível para qualquer
apoio, o sujeito ou familiar que o
tenha a seu cuidado não pode au-
ferir mais que o salário mínimo.
Fiquei tão incrédulo que fui con-
firmar em vários sites. Alguém
nas Finanças saberá o valor de
um apoio domiciliário regular ou
de um lar? É assim que os nossos
governantes tratam os velhos? E
isto sendo reconhecido o grau de
pobreza e carência assistencial
em que vive boa parte desta po-
pulação. Surpreende-me a falta
de alarme na nossa comunicação
social para esta situação.
João Paulo M. Ferreira, Porto
Retificações
Na edição de 22 de julho, na
infografia do artigo “A idade
da maioridade”, publicado na
Revista E, escreveu-se que aos
14 anos um jovem “é criminal-
mente responsável, pode traba-
lhar e reconhecer a paternidade
dos seus filhos”, quando na rea-
lidade isso é apenas possível a
partir dos 16 anos. Pelo lapso,
pedimos desculpa aos leitores.
Na última edição do Expresso,
na notícia “Marcelo diz sim a
Bolsonaro, sem saber o que o
espera”, diz-se que o embaixa-
dor Francisco Ribeiro Telles é
jubilado e coordenador do gru-
po de trabalho luso-brasileiro
responsável pela preparação
das celebrações dos 200 anos
de Independência do Brasil des-
de 2018. De facto, o embaixador
não é jubilado e é coordenador
do programa do MNE para o
Bicentenário da Independência
do Brasil, cargo para o qual foi
nomeado em janeiro de 2022.
O Expresso assume o erro, que
agora repara, e pede desculpas
ao embaixador Ribeiro Telles.

Ricardo
Costa
Do céu
caiu um
imposto
A
velocidade com que
expressões como
“lucros imprevis-
tos” ou “lucros ex-
cessivos” entraram
no léxico político
europeu é impressionante. O
impulso podia ter sido exclu-
sivamente populista, mas não
é o caso. As ondas de choque
da guerra põem em causa de-
masiadas coisas, das economias
familiares e da continuidade
empresarial até às finanças dos
Estados e, sem rodeios, a sobre-
vivência das democracias. No
limite, é disso que se trata.
A partir do momento em que
a guerra na Ucrânia se trans-
formou num conflito longo, os
aliados ocidentais passaram a
ter que recorrer a uma paleta
de apoios económicos e sociais
— sobretudo a indústrias e fa-
mílias cadenciadas —, enquanto
prolongam a ajuda ao regime
de Kiev e gerem a maior vaga
europeia de refugiados do pós-II
Guerra.
Esta situação pode provocar
um maior choque nas democra-
cias do que a crise das dívidas pú-
blicas. O discurso contra o preço
a pagar pelo apoio à Ucrânia ga-
nhou grande lastro nas eleições
francesas. Será, provavelmente,
determinante nas eleições italia-
nas, onde partidos pró-Moscovo
correm para a vitória.
A ideia de recorrer
a impostos
extraordinários sobre
“lucros excessivos”
é a mais óbvia, mas
é perigosa numa
economia de mercado
devidamente
regulada e aberta
a concorrência
Há décadas que Moscovo mina
os sistemas partidários euro-
peus. Apoia declaradamente as
extremas-direitas e beneficia de
uma complacência e admiração
histórica das extremas-esquer-
das. Mas esse processo lento
de minar democracias é uma
brincadeira ao pé dos efeitos de-
vastadores que uma guerra tem
na inflação, em particular nos
produtos alimentares e energia.
Tendo que haver medidas go-
vernamentais — de mitigação
de efeitos da subida dos preços
ou apoios diretos a quem mais
precisa —, é impossível que
não tenham grande impacto
orçamental. Como é que isso
se financia? A simples subida
dos preços está a engordar for-
temente a receita fiscal. Mas
é muito duvidoso que isso sus-
tente medidas de apoio mais
amplas, sobretudo no inverno.
A ideia de recorrer a impostos
extraordinários sobre “lucros
excessivos” é a mais óbvia, mas
é perigosa numa economia de
mercado devidamente regu-
lada e aberta a concorrência.
Em Portugal, qualquer medida
do género acarreta três proble-
mas extra: já existem impostos
extraordinários sobre alguns
sectores, que se foram perpe-
tuando; temos uma profunda
escassez de investimento es-
trangeiro; o nosso mercado de
capitais é quase inexistente.
Será difícil que Portugal não
recorra a impostos extraordiná-
rios, mas a nossa posição econó-
mica não é a mesma de outros
países, onde isso se resolve com
um estalar de dedos.
rcosta@expresso.impresa.pt
e ainda...
( (
Jon Fosse
“Se tivermos
medo, é impossível
escrever” R42
Salários reais com maior
queda em sete anos
Considerando a inflação,
a remuneração bruta
média em Portugal
caiu 4,6% no segundo
trimestre deste ano
Os aumentos salariais em Por-
tugal aceleraram no segundo
trimestre deste ano, mas es-
tão muito longe de compensar
a escalada da inflação, levan-
do a uma perda de poder de
compra dos trabalhadores
que não era vista no país há,
pelo menos, sete anos. É isso
que indicam os dados publi-
cados esta quinta-feira pelo
Instituto Nacional de Estatís-
tica (INE).
Analisando 4,4 milhões de
postos de trabalho, correspon-
dentes a beneficiários da Segu-
rança Social e a subscritores da
Caixa Geral de Aposentações
(sectores privado e público), o
INE concluiu que a remunera-
ção bruta total mensal média
por trabalhador aumentou
3,1% em termos nominais no
segundo trimestre deste ano
em relação ao mesmo período
de 2021, atingindo €1439. É
uma subida acima dos 2,5%
dos primeiros três meses de
2022 e dos 2,2% do quarto tri-
mestre de 2021.
Quénia em suspense para conhecer o novo Presidente
ELEIÇÕES Sempre que o processo de contagem de votos se arrasta, há um nervosismo natu-
ral que passa a envolver esse ato eleitoral. É o que acontece no Quénia, onde, esta semana, 22
milhões de eleitores foram chamados a votar na terça-feira no sucessor de Uhuru Kenyatta,
que liderou o país durante dois mandatos. Dos quatro candidatos, todos veteranos da políti-
ca, o favorito é Raila Odinga, um ex-primeiro-ministro de 77 anos, que teve o apoio do Presi-
dente cessante. Até aos resultados não há vitórias antecipadas. FOTO BAZ RATNER/REUTERS
Enfermeiros
respondem a Marcelo
Sindicato dos
Enfermeiros Portugueses
apela à “magistratura
de influência”
do chefe de Estado
A dirigente do Sindicato dos
Enfermeiros Portugueses
(SEP), Guadalupe Simões,
desvalorizou as declarações
do Presidente da República,
que disse que a escusa de res-
ponsabilidade “não vale nada
juridicamente”. Para a repre-
sentante do SEP, a afirmação
de Marcelo Rebelo de Sousa,
em entrevista à CNN Portugal,
foi uma “apreciação jurídica”,
mas deixou um apelo e ainda
um aviso ao chefe de Estado.
“O que se espera é que o sr. Pre-
Paredes de Coura
O festival
regressa a casa
na terça-feira R49
Só que este aumento do sa-
lário médio fica muito aquém
da inflação. Em junho, último
mês do segundo trimestre, a
variação homóloga do Índice de
Preços no Consumidor atingiu
8,7%, chegando em julho aos
9,1%, o valor mais alto desde
1992. O resultado está à vista.
O INE indica que em termos
reais, ou seja, considerando o
impacto da inflação para aferir
a evolução do poder de compra,
Os aumentos
salariais no sector
privado têm estado
sempre acima
do sector público
no último ano
a remuneração bruta total men-
sal média por trabalhador caiu
4,6% no segundo trimestre face
ao mesmo período de 2021.
Mais ainda, os dados solicitados
pelo Expresso mostram que é a
queda mais expressiva desde o
início da série de dados do INE,
em março de 2015. Ou seja, há
mais de sete anos, pelo menos,
que o salário médio não caía
tanto em termos reais.
sidente da República exerça a
sua magistratura de influência
no sentido de afirmar as con-
dições em que os enfermeiros
estão a trabalhar e que essas
condições precisam de ser rapi-
damente alteradas”, respondeu
Guadalupe Simões, citada pela
agência Lusa. Caso contrário,
acrescentou, corremos “o ris-
co de todos os dias estarmos a
perder enfermeiros em todas
as instituições do país”.
Na entrevista, Marcelo aler-
tou para a utilização cada vez
mais frequente do mecanismo
que possibilita a enfermeiros
ou médicos tentarem excluir-
-se de responsabilidades no
cumprimento das suas funções
face à falta de meios.
(
Chalana
Um tempo que não
volta, por Pedro
Adão e Silva P33
São números à atenção do
Governo, que quer negociar
um acordo de competitividade
e rendimentos na concertação
social, visando aumentar o sa-
lário médio no país em 20%
até final da legislatura e refor-
çar a fatia das remunerações
no Produto Interno Bruto. Só
que o Executivo de António
Costa — que nunca esclareceu
se esses 20% eram medidos
em termos nominais ou reais
— defende este objetivo, mas
não está a dar o exemplo. O
INE indica que no segundo tri-
mestre a remuneração bruta
média por trabalhador subiu
1,4% em termos nominais (isto
é, sem considerar o impacto
da inflação) no sector públi-
co face ao mesmo período
de 2021, o que compara com
4,4% no sector privado. E os
aumentos no privado têm es-
tado sempre acima do público
no último ano. Por sectores de
atividade, no segundo trimes-
tre, “Eletricidade, gás, vapor,
água quente e fria e ar frio”
(21,2%), “Atividades de consul-
toria, científica, técnicas e si-
milares” (8,2%), e “Alojamen-
to, restauração e similares”
(7%) têm as maiores subidas
na remuneração bruta média.
UL critica
ministra
do Superior
Reitor de Lisboa diz
que verbas para 2023
desrespeitam contrato
com universidades
O anunciado reforço de 3,7%
nas verbas para as instituições
de ensino superior em 2023
fica aquém da inflação previs-
ta para este ano, volta a não
respeitar a fórmula de finan-
ciamento e é manifestamente
insuficiente para cobrir o au-
mento das despesas de contra-
tos com a eletricidade, gás ou
empreitadas em curso, alerta o
reitor da Universidade de Lis-
boa (UL). Luís Ferreira acusa
ainda a tutela de “lesar” a UL,
favorecendo instituições como
o ISCTE e a Nova de Lisboa.
Últimas
“Clima tóxico” na seleção
de judo A menos de dois
anos dos Jogos Olímpicos
de Paris, sete judocas portu-
gueses do projeto olímpico
escreveram uma carta aber-
ta denunciando “o clima in-
sustentável e tóxico” no judo
português e exigindo “respei-
to” e melhores condições de
treino. Entre os signatários
está Telma Monteiro.
Funeral de Almeida Bruno
é hoje O general, condeco-
rado na Guerra Colonial — e
que a PIDE quis matar depois
do golpe das Caldas de 16 de
março de 1974 —, morreu esta
quarta-feira, aos 87 anos. As
cerimónias fúnebres decor-
rem esta sexta-feira no Alto
de São João, em Lisboa, de-
pois de uma missa de corpo
presente na Academia Militar.
Emprego jovem tarda em
recuperar Um relatório da
Organização Internacional
do Trabalho revela que os
jovens foram o grupo etário
mais afetado pela pandemia,
com uma perda de emprego
em termos percentuais “mui-
to superior à da população
adulta”. O número total glo-
bal de jovens em situação de
desemprego deve chegar a 73
milhões em 2022, mais seis
milhões do que em 2019.
Suécia deporta curdo A
Suécia vai extraditar um ci-
dadão turco (e curdo) que
já está detido no país há um
ano e que havia sido conde-
nado a 14 anos de prisão na
Turquia por vários crimes de
fraude. É o primeiro de uma
lista de várias dezenas de ex-
tradições que o Governo de
Ancara tinha apresentado
como condição para levantar
o seu veto à entrada da Sué-
cia na NATO. O detido diz
sofrer de perseguição reli-
giosa por se ter convertido ao
cristianismo.
Acabaram os voos em sal-
do Michael O’Leary, presi-
dente da Ryanair, veio avisar
esta semana que os bilhetes
a preço de saldo acabaram. A
subida do preço dos combustí-
veis vai fazer com que nos pró-
ximos anos deixem de existir
as tarifas entre os €0,99 e os
€10 que celebrizaram a trans-
portadora irlandesa.
TEMPO FIM DE SEMANA
SEXTA SÁBADO
Bragança 35° 17° 34° 18°
Porto 22° 15° 21° 15°
Guarda 30° 16° 29° 15°
Sexta-feira
12 de agosto Lisboa 30° 18° 30° 18°
12
de 2022
Évora 36° 15° 32° 17°
Faro 29° 19° 28° 20°
08
P. Delgada 28° 21° 28° 21°
Funchal 24° 20° 24° 21°
MARÉS SEXTA SÁBADO
Baixa Alta Baixa Alta
Porto 09:51 16:06 10:35 16:52
Lisboa 09:57 16:28 10:42 17:13
#2598 Faro 09:22 15:50 10:05 16:36
expresso.pt FONTES: IPMA E INSTITUTO HIDROGRÁFICO
Verão “Então sou só eu que
é vil e erróneo nesta terra?”,
escreveu Pessoa. Manhãs cin-
zentas, tardes de sol.