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Artigo | Não somos nós que precisamos

ser contidas1

“A raiva me fez questionar a política de dominação


masculina e me permitiu resistir à socialização Sexista.”-
bell hooks2

Na quarta-feira (16), chocou a internet a denúncia e os vídeos do assédio

sexual cometido por Fernando Cury, deputado estadual pelo CIDADANIA,

contra sua colega de parlamento Isa Penna, deputada pelo PSOL em São

Paulo. Escolhi a construção da frase que coloque em evidência o algoz -

que após a repercussão realizou um pseudopedido de desculpas tanto no

plenário, quanto por meio de uma nota, contradizendo os vídeos

afirmando que foi “apenas um abraço” - na contramão da prática

midiática comum de colocar em evidência, de forma passiva, a vítima e

esconder o abusador.

Geralmente, quando nos deparamos com situações de assédio e

violências, é comum ficarmos paralisadas pelo medo e constrangimento.

A deputada, no entanto, com uma presença de espírito - e infelizmente,

provável experiência em lidar com situações do tipo - conseguiu de

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Publicado no Jornal Brasil de Fato -
https://www.brasildefators.com.br/2020/12/18/artigo-nao-somos-nos-que-precisamos-ser-contidas
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Opção da autora a grafia do seu nome toda em letra minúscula para que o conteúdo da sua obra se
sobressaia a personalidade
forma rápida se esquivar das duas tentativas de "toque" sem

consentimento e enfrentar com agilidade e de cabeça erguida o abusador.

Abuso, intimidação e humilhação sexual são uma conhecida tática de

guerra. Um componente de intimidação psíquica que historicamente

sempre foi utilizado. Um dos desdobramentos dessas formas de

humilhação sexual foi conceituado na contemporaneidade como

slutshamming, termo em inglês que mistura as palavras "vadia" e

"envergonhar", uma forma de bullying a partir do colocar a mulher em

uma posição humilhante.

Os vídeos da referida sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo

(Alesp) sugerem que foi isso que o deputado tentou fazer, ao ir em

direção à deputada Isa, retornar até o grupo de outros deputados e

assessores - todos homens -, rapidamente falar algo e dar uma risada,

indo novamente em direção à Isa segundos antes do assédio, e um dos

deputados a quem ele havia se dirigido fazer um gesto de tentar

impedi-lo. A sequência de imagens leva a crer que o assédio foi uma

deliberada tentativa de slutshamming. Ele queria humilhar a deputada

Isa. Ele queria dar risada com os amigos de ter apalpado sem

consentimento uma mulher, de constrangê-la. Ele queria mostrar pra ela

que se mulheres querem ocupar aquele espaço de poder "masculino",

elas terão que se sujeitar a ser objetos. Afinal de contas aquele lugar não é

delas, eles que de muito boa vontade toleram sua presença, não é

mesmo?!
Isa teve sorte. Sorte de ser um espaço público e haver outras pessoas ao

redor (o que não impediu a violência do ato). Sorte de ter sido

televisionado ao vivo, dessa forma sua palavra, por mais que tentem, não

pode ser desacreditada. Sorte de ser uma mulher em uma posição de

poder e que por militar no combate à violência contra as mulheres teve a

capacidade de perceber rápido o abuso e ter tido condições de reagir e

fazer sua voz ser ouvida.

Como se não bastasse, na sessão seguinte, quinta (17), o deputado Gil

Diniz, eleito pelo PSL, mas atualmente “sem partido” - segundo a

biografia presente no site da Alesp - enfurecido, sobe à tribuna repetindo

o mantra dos homens que não reconhecem seus abusos e que fazem

questão de amenizar as violências cometidas pelos amiguinhos. Com as

palavras de "não generalizem", "ele subiu aqui, pediu desculpas", "sou

pai de família, sou casado" e a minha favorita: “usar cada homem, cada

pai de família aqui como escada como ‘trampolim político’”.

Pois bem deputado, deixa eu te dizer uma coisa! Uma coisa que talvez o

senhor já saiba, ou, assim como sabe que o colega assediou uma mulher e

escolheu amenizar, talvez seja um dado que você tenha escolhido

ignorar. No Brasil, segundo o anuário brasileiro de segurança pública de

2019, ocorreram 66.041 casos de estupro - denunciados, porque como

citado anteriormente, homens como você fazem as vítimas terem medo

de denunciar - sendo 71,8% contra meninas de até 17 anos. Segundo o

levantamento da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, 73%

ocorrem dentro de casa por pessoas próximas à vítima. Isso mesmo! São
cometidos por pais, irmãos, tios, maridos, avôs, vizinhos, homens acima

de qualquer suspeita, "homens de bem", porque pasme! Os abusadores,

são pais, irmãos, maridos, tios, avôs, etc. Pasme novamente! Eles não

pensam na família na hora de cometer os crimes. Portanto a frase que

você gritava com indignação para diminuir a violência sofrida pela tua

colega não abona, não diminui a gravidade do crime, especialmente se

foi de fato premeditado para desestabilizá-la.

No momento em que ele subiu à tribuna para destilar tamanha

ignorância, a deputada Monica Seixas do PSOL, em apoio à Isa, desabafa:

"É exatamente esse tipo de violência que quem denuncia tem que

passar”. Monica tem razão, é isso que as vítimas têm que passar cada vez

que denunciam, e é por isso que muitas vezes têm medo de denunciar,

porque sabem que homens como Gil Diniz irão fazer um escândalo

defendendo o abusador e desacreditado a vítima. Ao escutar essa frase, o

deputado se descontrola. Ao assistir o vídeo, temi pela segurança física

de Monica, que sem baixar a cabeça chega perto dele, que segue aos

berros, apontando o dedo no rosto dela de forma violenta tentando

intimidá-la, e diz para ele não levantar a mão pra ela.

Quando isso acontece, outras pessoas que julgo serem parlamentares e

assessores vão em sua direção, colocam as mãos sobre seu ombro,

cochicham algo em seu ouvido, provavelmente também preocupados

com a sua segurança física. Mas também a fazendo recuar. Empurrando,

conduzindo-a para longe. Como se ela quem precisasse ser contida.

Ainda que estivesse com raiva. Nós mulheres passamos por essas
situações com tanta frequência que às vezes nem é raiva, é só um

sentimento de "não acredito que é século XXI e isso está acontecendo!".

Mas ainda que fosse raiva, seria legítimo, quem não sente raiva diante da

violência que seus pares sofrem?

Precisamos despoluir o imaginário coletivo que equipara a raiva

feminina à histeria, à ideia de que mulheres precisam ser contidas,

porque não precisamos. Precisamos ser respeitadas nos nossos espaços

de trabalho e em todos os outros que viermos a ocupar. A raiva, como

bem colocou bell hooks em “Black women: shaping feminist theory”

(Mulheres negras: moldando a teoria feminista), nos permite questionar

a dominação masculina que faz com que os homens se sintam

confortáveis a acessar nossos corpos sem nossa autorização em qualquer

espaço, inclusive em uma Assembleia Legislativa. Nos permite resistir a

uma socialização sexista que nos quer dócil diante das violências que nos

permeiam, que quer nos conter.

* Maria Eduarda Carneiro da Silva


Bacharela em Ciências Sociais - UFRGS;
Mestranda em Estado Gobierno y Políticas Públicas - Flacso.

Publicado no Jornal Brasil de Fato - RS


https://www.brasildefators.com.br/2020/12/18/artigo-nao-somos-nos-
que-precisamos-ser-contidas

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