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MELLAMY SANTOS
ou
Salvador
2017
Meu nome é Mellamy, sou uma mulher cis, soteropolitana, nordestina, brasileira,
licenciada em Ciências Biológicas, de classe média baixa e sexualidade e identidade racial
indefinidas. Embora questões relacionadas a minha sexualidade tenham me acompanhado a vida
toda, sendo mais determinante para minhas vivências e experiências do que minha raça, ainda
não consegui defini-la. Já no que diz respeito a questões raciais, recentemente, minha atenção
para elas foi despertada – por muito tempo prevaleceu em mim a indiferença, por nunca ter
discutido isso em minha família, por nunca ter me identificado como algo. Identifico-me
enquanto negra, contudo ainda não me sinto confortável sob essa identidade – mais
especificamente, me sinto uma fraude - por não saber o que exatamente define alguém enquanto
negro – são seus traços fenotípicos, sua cor, a origem de seu pai ou mãe, suas experiências com
racismo, sua relação com sua ancestralidade, a percepção de outra pessoa sobre você? Eu ainda
não consigo me encaixar em lado algum, apenas no não-lugar, porém, mesmo com essa
turbulência se fazendo presente em minha mente, meu interesse em descobrir minha real
identidade, de participar de discussões sobre raça, de estudar esse tema não esvaneceu.
Possivelmente, o que justifica meu interesse em resenhar e debater “OJ: Made in America”.
Este é um filme documental, dividido em cinco partes, que explora a vida de Orenthal
James Simpson, mais conhecido como OJ Simpson ou simplesmente OJ, um dos maiores
jogadores de futebol americano da história dos EUA, desde sua juventude, momento de sua
ascensão, até sua prisão, marcando seu declínio. A vida de OJ Simpson me causa e sempre me
causou fascínio, que foi intensificado após assistir ao documentário; não por sua impressionante
carreira esportiva, e sim pelo contexto racial, extremamente delicado e complexo, em que estava
inserido. As tensões raciais que permeavam a cidade de Los Angeles até aquele momento foram
incansável e fortemente exploradas por seu time de advogados no seu julgamento (cunhado de
”O Julgamento do Século” na época) pelo assassinato brutal de sua ex-esposa Nicole Brown
Simpson e do amigo dela, Ron Goldman, culminando em sua inocência, mesmo que as
evidências indicassem sua culpa.
Embora o documentário direcione seu olhar para o panorama racial e o racismo em Los
Angeles durante a ascensão e queda de OJ Simpson, outras opressões, tais como, sexismo,
machismo, classismo, homofobia, figuram no material, ainda que de forma discreta (ou não) e
rasa. Sendo OJ Simpson um homem negro que ascendeu socialmente numa América racista,
tornando-se modelo de sucesso para a comunidade negra, de prosperidade e de vitória sobre um
sistema opressor, é compreensível, embora condenável, a ausência de discussões mais
aprofundadas acerca das demais opressões.
Com base nos textos “Tudo é interseccional?“ de Ina Kerner e “Atualidade do conceito
de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil.“, de Cristiano Rodrigues,
trabalhados em sala de aula, discutirei o tratamento dado a essas mulheres, destacando algumas
partes dos relatos e depoimentos presentes no documentário em que racismo e sexismo se
entrelaçaram nas relações afetivas de OJ Simpson, em seu círculo social e na sociedade da
época, marginalizando as mulheres negras:
» “Não eram apenas mulheres, eram mulheres brancas. Belas mulheres brancas...” e
“Nicole era como um troféu para ele...”
Essas falas expõem o valor da mulher negra em relação à mulher branca: para ele, o
sucesso de OJ é validado pela atenção que recebe das mulheres brancas, que não seriam
mulheres comuns, mulheres “fáceis” de conseguir, ou seja, as mulheres negras. Nessa fala, é
perceptível a visão da mulher branca como modelo ideal de mulher, o objeto de desejo para um
homem negro, que valora a conquista do mesmo, enquanto a mulher negra não é concebida
enquanto ideal de relacionamento, sendo rechaçada, depreciada. Esse tratamento diferenciado
das mulheres negras e brancas pelos homens negros é uma marca do racismo, que estigmatiza as
mulheres e as valora de forma distinta, e está fundamentando na visão de que a mulher branca,
ao se envolver com um homem negro, torna-o tão digno quanto um homem branco, ou seja, o
amor de uma mulher branca valoriza esse homem negro, subapreciado numa sociedade racista,
assim como o aproxima da cultura hegemônica (FANON, 2008). Por isso, o amigo de OJ, Joe
Bell, oferta tanta importância à atenção que mulheres brancas dão a OJ, pois isso significaria
seu distanciamento de uma realidade abjeta, rumo a um cenário mais favorável e aprazível.
Marcia Clarck não entendia como as mulheres negras poderiam se solidarizar com OJ,
sendo que ele sempre se manteve distante da comunidade negra e de suas questões, recusando-
se a se posicionar a seu favor. Em sua visão, era absurdo que as mulheres negras não se
sensibilizassem com o sofrimento de outras mulheres, brancas; Marcia esperava que a
solidariedade feminina prevalecesse. Contudo, percebe-se certa ignorância (ingenuidade, talvez)
da parte de Marcia, ao acreditar nisso; é não ter noção da atuação e do impacto do racismo na
vida dessas mulheres. Como esperar que essas mulheres, pertencentes a um grupo, cujos direitos
nunca foram garantidos pelo Estado, que o desumanizou por anos, se compadeça da morte de
uma mulher branca, classe média pertencente a uma raça e classe privilegiadas? Como esperar
que acreditassem que a prova viva de que um negro podia, apesar de condições precárias de
vida, ter sucesso não estava sendo incriminado pela polícia, uma instituição com um extenso
histórico racista contra a população negra? Como exigir que clamassem fervorosamente por
justiça em prol de uma mulher branca, sendo que o sistema nunca ofertou justiça as suas/eus
ancestrais, pais e mães, filhos e filhas violentados, assassinados? Marcia, da mesma forma que
as feministas brancas norte-americanas, por conta de seu privilégio branco (normalmente unido
ao de classe), compartilham de uma percepção limitada da opressão de gênero, desconsiderando
as particularidades conferidas pela discriminação racial às vivências das mulheres negras. O
racismo diferencia e hierarquiza essas mulheres, dificultando que se unam sob uma mesma
causa, mantendo-as distanciadas.
REFERÊNCIAS
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
KERNER, Ina. Tudo é interseccional?: Sobre a relação entre racismo e sexismo. Novos
estudos. - CEBRAP, São Paulo, n. 93, p. 45-58, Julho 2012. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002012000200005&lng=en&nrm=iso>