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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

COMPONENTE CURRICULAR: FCHE19 GÊNERO E


INTERSECCIONALIDADES
DOCENTE: THAIS FARIA CASTRO

MELLAMY SANTOS

A SUPRESSÃO DA INTERAÇÃO ENTRE RACISMO E SEXISMO


NUM CONTEXTO MARCADAMENTE RACISTA EM “OJ: MADE
IN AMERICA”

ou

SEXISMO E RACISMO NA AMÉRICA: PRECISAMOS FALAR


SOBRE AS MULHERES NEGRAS NO CASO OJ SIMPSON

Salvador
2017
Meu nome é Mellamy, sou uma mulher cis, soteropolitana, nordestina, brasileira,
licenciada em Ciências Biológicas, de classe média baixa e sexualidade e identidade racial
indefinidas. Embora questões relacionadas a minha sexualidade tenham me acompanhado a vida
toda, sendo mais determinante para minhas vivências e experiências do que minha raça, ainda
não consegui defini-la. Já no que diz respeito a questões raciais, recentemente, minha atenção
para elas foi despertada – por muito tempo prevaleceu em mim a indiferença, por nunca ter
discutido isso em minha família, por nunca ter me identificado como algo. Identifico-me
enquanto negra, contudo ainda não me sinto confortável sob essa identidade – mais
especificamente, me sinto uma fraude - por não saber o que exatamente define alguém enquanto
negro – são seus traços fenotípicos, sua cor, a origem de seu pai ou mãe, suas experiências com
racismo, sua relação com sua ancestralidade, a percepção de outra pessoa sobre você? Eu ainda
não consigo me encaixar em lado algum, apenas no não-lugar, porém, mesmo com essa
turbulência se fazendo presente em minha mente, meu interesse em descobrir minha real
identidade, de participar de discussões sobre raça, de estudar esse tema não esvaneceu.
Possivelmente, o que justifica meu interesse em resenhar e debater “OJ: Made in America”.
Este é um filme documental, dividido em cinco partes, que explora a vida de Orenthal
James Simpson, mais conhecido como OJ Simpson ou simplesmente OJ, um dos maiores
jogadores de futebol americano da história dos EUA, desde sua juventude, momento de sua
ascensão, até sua prisão, marcando seu declínio. A vida de OJ Simpson me causa e sempre me
causou fascínio, que foi intensificado após assistir ao documentário; não por sua impressionante
carreira esportiva, e sim pelo contexto racial, extremamente delicado e complexo, em que estava
inserido. As tensões raciais que permeavam a cidade de Los Angeles até aquele momento foram
incansável e fortemente exploradas por seu time de advogados no seu julgamento (cunhado de
”O Julgamento do Século” na época) pelo assassinato brutal de sua ex-esposa Nicole Brown
Simpson e do amigo dela, Ron Goldman, culminando em sua inocência, mesmo que as
evidências indicassem sua culpa.
Embora o documentário direcione seu olhar para o panorama racial e o racismo em Los
Angeles durante a ascensão e queda de OJ Simpson, outras opressões, tais como, sexismo,
machismo, classismo, homofobia, figuram no material, ainda que de forma discreta (ou não) e
rasa. Sendo OJ Simpson um homem negro que ascendeu socialmente numa América racista,
tornando-se modelo de sucesso para a comunidade negra, de prosperidade e de vitória sobre um
sistema opressor, é compreensível, embora condenável, a ausência de discussões mais
aprofundadas acerca das demais opressões.

Um dos meus maiores incômodos ao assistir o documentário foi a falta de uma


discussão mais aprofundada sobre a forma como as mulheres eram vistas e tratadas, não só por
OJ e por pessoas do seu círculo social, mas também pela mídia durante a cobertura do
julgamento. A violência doméstica a qual Nicole Brown foi submetida e que foi ignorada pela
polícia e o tratamento misógino delegado à Marcia Clarck pela mídia são importantes eventos
que evidenciam a opressão de gênero que as mulheres do caso OJ sofreram. Poderia discorrer
exaustivamente sobre esses exemplos, considerando as várias brechas presentes ao longo do
documentário, contudo, focarei minha análise num grupo ainda mais marginalizado – as
mulheres negras.

Com base nos textos “Tudo é interseccional?“ de Ina Kerner e “Atualidade do conceito
de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil.“, de Cristiano Rodrigues,
trabalhados em sala de aula, discutirei o tratamento dado a essas mulheres, destacando algumas
partes dos relatos e depoimentos presentes no documentário em que racismo e sexismo se
entrelaçaram nas relações afetivas de OJ Simpson, em seu círculo social e na sociedade da
época, marginalizando as mulheres negras:

» “Não eram apenas mulheres, eram mulheres brancas. Belas mulheres brancas...” e
“Nicole era como um troféu para ele...”

Essas falas expõem o valor da mulher negra em relação à mulher branca: para ele, o
sucesso de OJ é validado pela atenção que recebe das mulheres brancas, que não seriam
mulheres comuns, mulheres “fáceis” de conseguir, ou seja, as mulheres negras. Nessa fala, é
perceptível a visão da mulher branca como modelo ideal de mulher, o objeto de desejo para um
homem negro, que valora a conquista do mesmo, enquanto a mulher negra não é concebida
enquanto ideal de relacionamento, sendo rechaçada, depreciada. Esse tratamento diferenciado
das mulheres negras e brancas pelos homens negros é uma marca do racismo, que estigmatiza as
mulheres e as valora de forma distinta, e está fundamentando na visão de que a mulher branca,
ao se envolver com um homem negro, torna-o tão digno quanto um homem branco, ou seja, o
amor de uma mulher branca valoriza esse homem negro, subapreciado numa sociedade racista,
assim como o aproxima da cultura hegemônica (FANON, 2008). Por isso, o amigo de OJ, Joe
Bell, oferta tanta importância à atenção que mulheres brancas dão a OJ, pois isso significaria
seu distanciamento de uma realidade abjeta, rumo a um cenário mais favorável e aprazível.

» “Marcia Clark, para toda mulher negra: cadela”, “Muitas [mulheres


afroamericanas] tinham ressentimento que este atleta famoso, uma cara charmoso, se casou
com uma mulher branca e loira ao invés de alguém da sua comunidade. Mas o antagonismo
não era direcionado a ela, não a ele.”e “Como você é tão leal a este homem que casou com
uma mulher branca? E ele começou a namorar ela [Nicole Brown] enquanto estava casado
com uma mulher negra [Marguerite]. Digo, nada disso faz você sentir menos vontade de
defendê-lo.”

Marcia Clarck não entendia como as mulheres negras poderiam se solidarizar com OJ,
sendo que ele sempre se manteve distante da comunidade negra e de suas questões, recusando-
se a se posicionar a seu favor. Em sua visão, era absurdo que as mulheres negras não se
sensibilizassem com o sofrimento de outras mulheres, brancas; Marcia esperava que a
solidariedade feminina prevalecesse. Contudo, percebe-se certa ignorância (ingenuidade, talvez)
da parte de Marcia, ao acreditar nisso; é não ter noção da atuação e do impacto do racismo na
vida dessas mulheres. Como esperar que essas mulheres, pertencentes a um grupo, cujos direitos
nunca foram garantidos pelo Estado, que o desumanizou por anos, se compadeça da morte de
uma mulher branca, classe média pertencente a uma raça e classe privilegiadas? Como esperar
que acreditassem que a prova viva de que um negro podia, apesar de condições precárias de
vida, ter sucesso não estava sendo incriminado pela polícia, uma instituição com um extenso
histórico racista contra a população negra? Como exigir que clamassem fervorosamente por
justiça em prol de uma mulher branca, sendo que o sistema nunca ofertou justiça as suas/eus
ancestrais, pais e mães, filhos e filhas violentados, assassinados? Marcia, da mesma forma que
as feministas brancas norte-americanas, por conta de seu privilégio branco (normalmente unido
ao de classe), compartilham de uma percepção limitada da opressão de gênero, desconsiderando
as particularidades conferidas pela discriminação racial às vivências das mulheres negras. O
racismo diferencia e hierarquiza essas mulheres, dificultando que se unam sob uma mesma
causa, mantendo-as distanciadas.

Existem outras formas de apagamento e marginalização de mulheres negras no


documentário: a história de Marguerite Whitley, que nem sempre é lembrada como sendo a
primeira esposa de OJ, com quem ele teve três filhos, é pouco explorada; a maior parte dos
depoimentos é feita por homens, havendo apenas três relatos de mulheres negras, que
participavam do júri. Questiono se a ausência dos pontos de vista e da história das mulheres
negras relacionadas intimamente a OJ, tais como Eunice Simpson, a mãe de OJ, a própria
Marguerite e sua filha mais velha Arnelle, foi uma escolha dessas mulheres ou foi uma decisão
dos produtores do documentário em não incluí-las.

O caso de OJ Simpson oferece um perfeito exemplo da delicada, complexa e intrincada


relação das opressões, neste caso, de gênero e raça e classe, e da dificuldade em ter uma visão
integrada das mesmas, principalmente quando uma dessas opressões possui maior peso em certo
contexto do que as demais. O documentário expõe duas opressões (de raça e gênero) e,
intencionalmente ou não, isola-as em pólos distintos: assim, de um lado há uma revolta pela
morte de Nicole Brown, uma mulher branca, classe média, brutalmente assassinada por seu ex-
marido abusivo; do outro, esse ex-marido, produto do racismo sistêmico daquele contexto, que
submete homens negros a brutalidade policial, levando-os ao encarceramento ou à morte.

Racismo e sexismo comportam-se como opressões independentes, mas paralelas,


relacionando-se em alguns pontos, mas não se entrelaçando. As imagens divulgadas pelo
documentário de pessoas negras, especificamente homens, comemorando a sentença favorável a
OJ, enquanto mulheres brancas choravam pelo mesmo motivo fortalece uma relação de
oposição entre racismo e sexismo. Esse tipo de abordagem reduz a dimensão extremamente
complexa das opressões, transformando a interação delas em um duelo – homens negros versus
mulheres brancas – em que somente um dos grupos oprimidos pode vencer. E onde ficam as
mulheres negras nessa abordagem bipolarizada, já que são afetadas por ambas as opressões? A
impressão que se tem é que elas têm que se alinhar a uma de suas características estruturantes
somente – ou gênero ou raça. Essa “escolha” esperada a mulher negra remete a sua situação
diante da luta antirracista, onde seu gênero é obscurecido, e da luta feminista, onde raça não é
tratada com relevância devida.

Num contexto marcadamente racista, de extrema brutalidade policial, as mulheres


negras solidarizarem-se com sua raça, ou seja, com homens negros, em detrimento das mulheres
brancas, não pode ser interpretado equivocadamente como o estabelecimento de uma hierarquia
de opressões, em que uma delas é mais relevante que a outra. Apenas demonstra o quão
complexa é a situação em que estão submetidas estas mulheres, incompreendidas por homens
negros, que não sofrem o sexismo e até se beneficiam dele, e pelas mulheres brancas,
indiferentes ao racismo que não as afeta. A experiência das mulheres negras explicita que
“racismo e sexismo não deveriam ser tratados como problemas análogos – o foco da relação
deveria estar antes em seus múltiplos entrelaçamentos e combinações” (KERNER, 2012).

Assim, cegar-se para a interligação das opressões, para a interseccionalidade, é


extremamente problemático, pois invisibiliza grupos que sofrem simultaneamente a ação de
duas ou mais opressões. Além disso, desconsidera-se a possibilidade das pessoas negociarem
sua existência em certos espaços, ainda que sejam sujeitos marcados: o que acontece com OJ,
que, mesmo sendo negro em um contexto racista, consegue usufruir de privilégios por ser um
homem rico, ou com Nicole, que, por ser mulher, foi vitimada pela violência doméstica, ainda
que usufruísse do privilégio de ser branca de classe média. Essa negociação é mais complicada
(quase improvável) para as mulheres negras, submetidas ao racismo e sexismo, que sentem o
efeito conjunto dessas opressões, que pode ser duplicado ou triplicado - se incluirmos o
marcador classe.

Ao final do documentário, compreende-se a decisão do júri em inocentar OJ, como uma


tentativa de reparação contra toda a violência historicamente perpetrada pela polícia, com a
conivência do Estado, à população negra, alicerçada no racismo, assim como o clamor por
justiça pela morte de Nicole Brown, motivada pela misoginia e pelo machismo. Entretanto,
adotar uma visão interseccional das opressões ainda não é garantia de que poderemos facilmente
compreender e analisar suas nuances ou descobrir um modo de aniquilá-las. Condenar OJ, ainda
que este fosse culpado, significaria subjugar um homem negro a um sistema prisional
estruturado para isolar e matar homens negros, permitindo que o Estado continuasse a agir sobre
a população negra impunemente. Por outro lado, inocentar OJ é possibilitar a continuidade de
uma estrutura machista que ignora a morte de mulheres, por conta da violência imputada a elas
por seus companheiros que a consideram sua propriedade, e libera os agressores dessas
mulheres, isentando-os de punição. Da mesma forma que admitir que OJ deveria sofrer
retaliação pelo assassinato de Nicole não significa ser favorável a sua condenação, 13 anos
depois, a 33 anos de prisão – uma dura sentença, não condizente com os crimes para os quais foi
dada – “Essa é a justiça branca na America, cara”, como define Joe Bell.

Somado a isso, tem-se a problemática de que num contexto interseccional de opressões,


existe a dificuldade de identificar quais opressões estão abarcadas naquele contexto e de que
modo elas se cruzam. Um dos depoimentos do documentário exemplifica isso: “Mas nem tudo é
sobre raça. Nem tudo é sobre como fomos historicamente tratados neste país. Eu não vi como
um exemplo de um negro sendo libertado ou vencendo no sistema de justiça criminal. Não para
outros negros. Foi uma vitória para um cara rico chamado OJ Simpson...” Em suma,
incorporar a interseccionalidade em nossas análises enriquece nosso entendimento acerca das
opressões e também faz emergir novos questionamentos e reflexões sobre a instrumentalização
dessa metodologia na prática.

REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.

RODRIGUES, C. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática


feminista no Brasil. In: X Seminário Internacional Fazendo Gênero (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2013. Disponível em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384446117_ARQUIVO_Cr
istianoRodrigues.pdf>

KERNER, Ina. Tudo é interseccional?: Sobre a relação entre racismo e sexismo. Novos
estudos. - CEBRAP, São Paulo, n. 93, p. 45-58, Julho 2012. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002012000200005&lng=en&nrm=iso>

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