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[...] duas ordens diferentes de violência: uma oriunda da ideologia machista


patriarcal, que concebe as mulheres em geral como objetos de propriedade
masculina; a outra, de natureza racial, que institui a desvalorização das
negras em relação às brancas, disponíveis e acessíveis a ‘precinhos módicos’
(CARNEIRO, 2003, p. 14, grifo da autora).

Os estereótipos, portanto, têm cumprido historicamente a função de rebaixar uma


parcela da humanidade, transformando particularidades em marcas naturalizadas,
essencializadas, em justificativas para as diferenciações sociais, para o controle e a dominação
daquelas(es) que foram assinaladas(os) pelas representações negativas.

3.5 POR UM FEMINISMO AFROLATINOAMERICANO

Lélia Gonzalez (1988b), em “Por um feminismo afrolatinoamericano”, expressa


mais detalhadamente sua visão de feminismo atento ao racismo gendrado. Muitas de suas
considerações, ainda hoje, integram os debates de mulheres latinoamericanas e caribenhas que
têm como proposta pensar o feminismo desde o Sul, um feminismo descolonizado que atenda
e inclua as mulheres que estão atuando nas margens do “sistema capitalista moderno
colonial”, com o intuito de construir modelos alternativos de sociedade. Incluo-me entre estas
feministas.
A autora tece duras críticas à invisibilidade de raça na maioria dos estudos
feministas latino-americanos, com destaque para o Brasil, considerando a forte presença negra
e indígena. Dizendo que “o feminismo latino-americano perde muito de sua força ao fazer
abstração de um dado da realidade da maior importância: o caráter multirracial e pluricultural
das sociedades da região” (1988b, p. 135), defende a perspectiva antirracismo como elemento
intrínseco aos princípios feministas, pois, se o sexismo, o racismo e o classismo colocam as
mulheres negras no mais baixo nível de opressão, nenhum movimento de mulheres pode ser
considerado realmente feminista se não tiver por premissa o enfrentamento destas estruturas. 73
O movimento de mulheres negras brasileiro colocou raça em evidência, revelando
o racismo e as desigualdades raciais como determinantes no processo de opressão,
discriminação e exclusão da população negra, de modo geral, e, em especial, das mulheres
negras, quando o racismo vem articulado com o sexismo. Esta atuação das mulheres negras
obriga o movimento feminista branco a incluir raça em suas abordagens, mas, no entanto, a
inclusão está longe de significar uma mudança epistêmica, pois raça continua sendo tratada

73
Esta questão será abordada mais detidamente no Capítulo 7, mas antecipo meu posicionamento em
total concordância com a autora.
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tangencialmente. Poucos são os estudos no Brasil que abordam a intersecção de gênero e


raça/etnia, as representações de gênero racializadas e os efeitos sobre a vida das mulheres nas
mais diferentes áreas, como saúde, mercado de trabalho, sexualidades, relações afetivas, etc.
Estudos de gênero que encobrem a realidade das mulheres negras e das indígenas ainda são
maioria, e assim, é extremamente atual a crítica feita por Lélia Gonzalez há mais de vinte
anos, no texto “Mulher negra”74, como se pode constatar a seguir:

Apesar das poucas e honrosas exceções para entender a situação da mulher


negra [...], poderíamos dizer que a dependência cultural é uma das
características do movimento de mulheres em nosso país. As intelectuais e
ativistas tendem a reproduzir a postura do feminismo europeu e norte-
americano ao minimizar, ou até mesmo deixar de reconhecer, a
especificidade da natureza da experiência do patriarcalismo por parte de
mulheres negras, indígenas e de países antes colonizados (GONZALEZ,
2008, p. 36).

Lélia também elaborou pesadas críticas aos homens negros militantes do


movimento negro, parceiros políticos na luta contra o racismo, mas, nem por isto, imunes ao
sexismo. Como sublinha María Lugones (2008), a subordinação de gênero foi o preço
negociado pelos homens colonizados com seus colonizadores em troca da manutenção do
poder em seu espaço social. Historicamente, este trato não se caracteriza como traição, mas
como uma resposta à coerção em todas as dimensões da organização social. A questão, diz a
autora, é porque ainda hoje a cumplicidade se mantém, pois esta conspiração acabou por
enfraquecer as lutas contra os processos de dominação empreendidos pela colonialidade do
poder ao impedir o surgimento de laços fortes entre homens e mulheres subordinados.75
Lélia Gonzalez já apontava para esta mesma direção, pois, conforme salienta, as
mulheres negras militantes sempre discutiram seu cotidiano marcado pela discriminação
racial e pelo sexismo dos homens brancos e negros e, principalmente, reconheciam o sexismo
dos últimos, devido ao “caráter mais acentuado do machismo negro, uma vez que este se
articula com mecanismos compensatórios que são efeito direto da opressão racial”
(GONZALEZ, 2008, p. 38).
As consequências do processo de construção das masculinidades racializadas,
particularmente do homem negro, para as mulheres dos grupos racialmente discriminados,
também é discutida por Luiza Bairros, para quem os supostos “privilégios da condição

74
Este texto foi originalmente publicado na Revista Ipeafro, Afrodiáspora, n. 6-7, p. 94-106, 1986.
Ver: Gonzalez (2008, p. 29).
75
Ver Lugones (2008, p. 76).
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masculina” dificilmente poderão ser desfrutados em sua plenitude por homens negros em uma
sociedade racista. Por isso,

[os] poucos espaços que se oferecem para a expressão plena de pessoas


negras, também é palco para o exercício de um sexismo que não poderia
manifestar-se em outras esferas da vida social, especialmente aquelas
dominadas por (homens) brancos (BAIRROS, 1995, p. 461).

Ocorre um reforço do sexismo da parte dos homens negros, pela ilusão de


compensar os efeitos devastadores do racismo, afastando alianças para o enfrentamento das
desigualdades de gênero, pois, como estão presos na armadilha do antagonismo entre homens
e mulheres, acreditam que estas últimas desejam acabar com os seus pretensos “privilégios”,
afirma Bairros (1995).
Essa afirmação de Bairros pode ser verificada tanto no campo político, isto é, no
movimento negro, exemplo sugerido pela autora, quanto no campo das relações interpessoais,
inferência que encontra apoio no estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas (IPEA) cujos dados relativos às mudanças nos arranjos familiares e no papel social
das mulheres no período de 1999 a 200976, mostram que as mulheres estão assumindo, nas
relações heterossexuais, o papel de provedoras da casa.
O Comunicado n. 91 do IPEA (2011), Dinâmica demográfica da população negra
brasileira, mostra que, nos últimos dez anos, houve o aumento da contribuição do rendimento
feminino, para a renda familiar que, entre as brancas, aumentou de 32,3% para 36,1% e, entre
as negras, passou de 24,3% para 28,5%. Tal realidade, no entanto, não exime as mulheres da
realização das tarefas domésticas, pois, mesmo na condição de ocupada, a mulher continua
responsável pelo cuidado doméstico. Em 2009, entre a população negra, 91,0% das mulheres
e 48,5% dos homens se dedicavam a afazeres domésticos; entre as mulheres brancas, a
proporção foi de 88,1% e para os homens brancos de 50,6%. A média de horas semanais
empregadas com estes afazeres pelas mulheres negras foi de 22,0 e de 9,8 pelos homens
negros. As mulheres brancas despenderam 20,3 horas e os homens brancos 9,1 horas,
sugerindo, conclui o estudo, uma relação de gênero mais desigual entre as mulheres negras.

76
Ver: Comunicados do IPEA 91. Gráficos 15, 16 e 17 referentes ao período 1999 2009. (IPEA,
2009, p. 13-14), que têm como fonte “Síntese de Indicadores 2009”, da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE (2010). Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese
_2009.pdf>.
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A construção de gênero do homem negro ocorre, portanto, reconfigurada por


raça, que fornece uma dimensão que dificulta o enquadramento total deste sujeito na
categoria homem, considerando a atuação definida pela sociedade dominante. Basta ver os
dados referentes ao mercado de trabalho, que mostram o homem negro em posição de
desvantagem econômica em relação à mulher branca. Assim, a reafirmação e o exercício de
sua masculinidade, na perspectiva da sociedade ocidental branca, em última instância,
ocorrerão pela opressão da mulher negra.
Sobre a forma como os homens negros experienciam gênero, diz Bairros:

A percepção de que o homem deve ser, por exemplo, o principal provedor do


sustento da família, o ocupante das posições mais valorizadas do mercado de
trabalho, o atleta sexual, o iniciador das relações amorosas, o agressivo, não
significa que a condição masculina seja de superioridade incontestável.
Essas mesmas imagens cruzadas com o racismo reconfiguram totalmente a
forma como os homens negros vivenciam gênero. Assim, o negro
desempregado ou ganhando um salário minguado é visto como o preguiçoso,
o fracassado, o incapaz. O atleta sexual é percebido como um estuprador em
potencial, o agressivo torna-se o alvo preferido da brutalidade policial (1995,
p. 461).

Apesar de tecer críticas ao sexismo dos homens negros, Lélia Gonzalez defende
que a experiência histórico-cultural comum, com a escravidão, no passado, e o racismo, na
atualidade, forneceriam um plano mais igualitário, possibilitando o desenvolvimento das
relações entre mulheres e homens negros militantes. Para a autora, a existência de espaços de
discussão conquistados pelas militantes dentro do movimento misto era a prova disto.
Também é o movimento negro que oferece os espaços “para as discussões e o
desenvolvimento de uma consciência política a respeito do racismo” (2008, p. 37).
Já em relação ao movimento de mulheres brancas, as contradições e ambiguidades
sempre foram muitas, impedindo a formação de alianças, uma vez que “geralmente ‘se
esquece’ da questão racial”, diz Gonzalez (2008, p. 37), que reconhece a importância do
feminismo como teoria e prática, para as lutas e conquistas das mulheres, pois, ao apresentar
novos questionamentos induzia a formação de grupos e redes e, principalmente, “desenvolveu
a busca de uma nova forma de ser mulher”, mas critica “o esquecimento” do racismo, por
parte das feministas brancas, considerando-o um reflexo de “uma visão de mundo
eurocêntrica e neocolonialista da realidade” (1988b, p. 135).
Em acordo com o que foi destacado por Lélia Gonzalez, no tocante ao movimento
de mulheres, Brenny Mendoza afirma que “ignorar a historicidade e colonialidade de gênero
também cega as mulheres brancas do Ocidente” as quais têm dificuldades para reconhecer a
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intersecção de raça e gênero e “a sua própria cumplicidade nos processos de colonização e


dominação capitalista” (2010, p. 23). Assim, a crítica de Gonzalez ao feminismo hegemônico
continua pertinente.
Tenho, porém discordância em relação às colocações de Lélia Gonzalez quanto à
existência de uma dimensão histórica responsável pela produção de relações mais igualitárias
entre mulheres e homens negros. O diálogo, a convivência e os espaços conquistados dentro
do movimento foram possíveis, devido à ação política das militantes, do enfrentamento
cotidiano do sexismo dos chamados “companheiros negros”, que as/nos invisibilizavam.
Existe um ponto de convergência na ação política de mulheres e homens negros: o
enfrentamento do racismo, mas esta luta, no entanto, por si só, não torna, como disse
anteriormente, os homens negros imunes ao sexismo. Esta prática também não foi
reconhecida pela maioria das entrevistadas, como será demonstrado no Capítulo 5.
Para Angela Davis, a unidade negra ou a solidariedade racial entre mulheres e
homens negros foi, durante muitos anos, o lema do movimento negro, mas, prosseguindo em
seu argumento, assevera que “a unidade negra da maneira como tem sido formulada protege
um companheiro negro que bate na mulher de responder publicamente por sua atitude sempre
argumentando que roupa suja se lava em casa” (1997, p. 4) e, desta forma, ao invés de refletir
uma realidade acaba por proteger as atitudes sexistas dos homens negros.77
Segundo Alex Ratts e Flavia Rios, Lélia Gonzalez defendia um feminismo
formado em meio às lutas de mulheres negras, pois este “traria um tipo de solidariedade com
os homens negros, já que eles também compartilhavam com elas alguma forma de opressão”
(2010, p. 112), o que mostra que a visão política de Lélia Gonzalez não abria espaço para o
sectarismo. Daí, pode-se inferir que esta visão política influenciou sua aproximação com as
ideias de Alice Walker, em especial, com a categoria womanism. Para Lélia Gonzalez, a
categoria expõe a crítica de Walker à noção de feminismo, “contrapondo-lhe uma outra: a de
‘mulherismo’ (womanism)”. Assim, prossegue a autora, “sem descartar as importantes
contribuições do feminismo para o movimento de mulheres como um todo, Walker amplia e
aprofunda a reflexão feminista ao colocar a questão que eu traduziria por mulheridade”
(1988d, p. 2).

77
Dito isto, cumpre salientar que não advogo a postura de antagonismo entre mulheres e homens,
mas, sim, ratifico a necessidade de se analisar criticamente a sociedade através das lentes de raça e
gênero para promover o avanço das relações de gênero.Tampouco nego a solidariedade entre
mulheres e homens negros, até mesmo porque a luta contra o racismo é coletiva e o projeto de
justiça social visa à comunidade negra, mas isso não me faz silenciar sobre o sexismo dos homens
negros.
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A categoria womanism foi cunhada pela escritora negra estadunidense Alice


Walker (1984), na obra In search of our mothers’ gardens: womanist prose, uma coletânea de
ensaios. Já nas primeiras páginas, a autora apresenta a definição de womanist. Originalmente,
este termo refere uma expressão popular entre a comunidade negra para definir o
comportamento “atrevido, audacioso” de crianças do sexo feminino. Ela, então, o ressignifica,
transformando-o em resposta à incapacidade do feminismo branco de prestar atenção e
explicar as experiências das mulheres negras, pois segundo a autora, foi necessário encontrar
outras terminologias que pudessem levar o peso das experiências das mulheres negras.
Para Alice Walker o womanism apresenta novas exigências e perspectivas
diferentes para o feminismo, obrigando-o a expandir seus horizontes teóricos e práticos.
Tendo por objetivo situar as mulheres negras na história e na cultura estadunidense, sublinha a
importância de resgatá-las dos estereótipos negativos e imprecisos que mascaram a sua
experiência na sociedade americana, destacando a agência das mulheres negras, a capacidade
e a independência que sempre acompanharam suas experiências contra as opressões.
A womanist é, então, uma feminista negra comprometida com a sobrevivência e a
integridade de toda a comunidade negra, homens e mulheres, pois sua sobrevivência está
diretamente vinculada à sobrevivência de sua comunidade, uma concepção que vai ao
encontro do que defende Lélia Gonzalez, principalmente no que diz respeito a defender uma
perspectiva não separatista dos homens negros, como sublinham Ratts e Rios (2010). Este
entendimento é partilhado pela maioria das ativistas negras, como veremos mais adiante,
embora elas não operem ou defendam a concepção de Alice Walker.

3.5.1 RESISTÊNCIA E INSURGÊNCIA À COLONIALIDADE: PROTAGONISMO


DE MULHERES NEGRAS

Os estudos de Lélia Gonzalez sobre racismo e sexismo no Brasil mostram a dura


realidade de discriminação e exclusão das mulheres negras, uma realidade que também pode
ser verificada em outros recantos da América Latina e Caribe. A autora, entretanto, ao mesmo
tempo em que denuncia a violência das opressões que atinge a vida das mulheres negras e
indígenas, também fornece a essas mesmas mulheres o status de sujeito, de agentes, social e
político, de protagonistas de ações de oposição às relações de dominação. As mulheres negras
e indígenas, na perspectiva oferecida pela autora, intervêm ativamente na condução de seus
destinos e deixam como legado, para as que vêm depois, a experiência do enfrentamento do
racismo e do sexismo, o que significa que a luta contra essas opressões apresenta um longo
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caminho já trilhado. Assim sendo, a categoria “amefricanidade”, por ela cunhada, mais do que
indicar a experiência comum com a escravidão, a dominação e a exploração da colonialidade
tem na resistência sua centralidade.
São processos de resistência e insurgência aos poderes estabelecidos, processos,
na maioria das vezes, ainda ocultos, que somente investigações comprometidas com a
descolonização do feminismo podem tirar do esquecimento histórico. Seguindo esta premissa,
Gonzalez traz a história de Nanny mulher negra escravizada, líder maroon78 na luta
anticolonialista da Jamaica do século XVIII , para “melhor apreendermos a importância das
mulheres nas lutas das comunidades amefricanas de ontem e de hoje” (1988c, p. 24). Nanny é
apresentada pela historiografia jamaicana de muitas formas, desde mito, mártir, líder militar,
até figura mística misteriosa; todavia, sua importância para aquela sociedade79 é
inquestionável. Embora a história de Nanny seja de grande interesse, minha intenção aqui é
apresentar as análises de Lélia sobre as histórias místicas que cercam a líder jamaicana,
centrando-me em três interpretações que remetem, como pretendo mostrar, a uma concepção
de feminismo.
Para melhor entendimento da análise de Gonzalez (1988c), apresento
resumidamente as três histórias: a primeira conta que os ingleses destruíram as provisões dos
maroons a fim de derrotá-los pela fome e que, alguns dias antes da rendição, Nanny recebeu,
em sonho, sementes mágicas para plantar e salvar seu povo da fome; na segunda, Nanny
enganou os inimigos colocando em seu caminho um caldeirão mágico com conteúdo fervente,
mas sem fogo para mantê-lo assim, que engolia aqueles que olhavam em seu interior; e, na
terceira, diante do exército inimigo, Nanny se virou e atraiu as balas das armas para o meio de
suas nádegas, vencendo o exército inglês.
Lélia Gonzalez faz as seguintes interpretações dessas histórias:

A primeira história, simbolicamente, remeteria ao papel da mulher que


assegura a regeneração e a continuidade de uma sociedade que, sob
condições adversas, se encontra numa luta constante pela sobrevivência. A
segunda apontaria para a perspicácia feminina no desenvolvimento de
táticas, absolutamente inesperadas para o inimigo, cuja fonte está no saber
do próprio grupo. Já a terceira, a nosso ver, simbolizaria a profunda
radicalidade de uma posição anti-colonialista. O significado de seu gesto
implica uma rejeição de tal ordem que põe por terra o conjunto de valores,
instituições e práticas do colonizador. E este, supondo-se superior, é quem
fica literalmente ‘desbundado’ em face de tanta contundência (1988c, p. 25).

78
Segundo Lélia Gonzalez, “os termos marronage (francês) e maroon society (inglês) provêm do
espanhol cimarrón, todos significando o mesmo que quilombo” (GONZALEZ, 1988c, p. 24).
79
Para aprofundar os estudos, ver: Brown ([2011]).
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As lentes através das quais Lélia Gonzalez interpreta as histórias de Nanny, todas
retratando as condições adversas sob as quais vivem as mulheres negras, indígenas e pobres,
lhe permitem enxergar as questões semelhantes e recorrentes que confrontam as mulheres
negras, no contexto da diáspora, e que são impeditivas ao pleno acesso a bens e serviços de
qualidade e ao direito a vida digna.
Assim, a partir dos seus escritos, pode-se dizer que Lélia Gonzalez, enquanto
ativista negra criticou o feminismo hegemônico classe média, ressaltando seu “imperialismo
cultural”, uma visão orientada pela colonialidade do poder que implica na exclusão das
mulheres do Terceiro Mundo da condição de agentes sociais de um fazer político, e de suas
epistemologias; e enquanto feminista reconhece e critica o sexismo dos homens negros,
inclusive dentro dos espaços políticos de enfrentamento do racismo, o movimento negro.
Defendendo a valorização das culturas das mulheres negras e indígenas da
América Latina e Caribe e que seus saberes sejam oferecidos para a construção de um
feminismo afro-latino e caribenho, propõe o rompimento com o pensamento moderno, através
da categoria amefricanidade, perspectiva epistemológica que resgata a cultura e as histórias de
resistências empreendidas pelas mulheres colonizadas contra as estruturas de opressão;
oferece-nos, ainda, a amefricanidade como possibilidade para pensar feminismos afro-latino-
americanos e caribenhos e sublinha que, para as amefricanas “do Brasil e de outros países da
região – assim como para as ameríndias, a tomada de consciência da opressão ocorre, antes de
tudo, pelo racial” (1988b, p. 139).
Quanto à diversidade sexual, não encontrei, nos textos trabalhados, referência à
lesbianidade, somente em relação à homossexualidade. Embora não tenha se detido neste
debate, a autora frisa a sua importância, manifestando o seu contentamento com as conquistas
obtidas dentro do Movimento Negro Unificado (MNU) por “nós mulheres e nossos
companheiros homossexuais, [pois] conquistamos o direito a discutir, em Congresso, nossas
especificidades” (GONZALEZ, 2008, p. 39). A categoria lesbianidade, nos anos 1980, ainda
não integrava a linguagem dos movimentos sociais, somente homossexual masculino e
feminino.80
Lélia Gonzalez influenciou mulheres e homens de sua geração, assim como, até
hoje, seu pensamento inspira a organização dos movimentos de mulheres negras. Ela foi
contemporânea de muitas das ativistas entrevistadas para este trabalho e, para aquelas que não
a conheceram, no entanto, ficou o ensinamento de uma prática política pró-ativa, de afirmação

80
Essa questão será abordada no Capítulo 5: 5.2 Lesbianidade em Debate.
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e anunciação de um compromisso político com a comunidade negra, em especial com as


mulheres negras, como se pode constatar nas narrativas das ativistas entrevistadas.
O breve percurso que fiz pelos textos de María Lugones, Oyèrónké Oyěwùmí,
Rita Segato e Lélia Gonzalez mostra estas autoras reivindicando um olhar aprendiz,
despretensioso, livre da arrogância acadêmica do Ocidente em direção aos saberes produzidos
pelas mulheres negras e indígenas das sociedades pré-invasão colonial. Um olhar ávido por
apreender aspectos civilizatórios que informam outra maneira de estar no mundo; de perceber
o corpo; de viver a sexualidade sem o enquadramento heteronormativo; de estabelecer
vínculos sociais mais equânimes; e de criar redes de cuidados. Um olhar curioso sobre o
poder ancestral feminino das mulheres negras e indígenas, totalmente contrastante com a
submissão e a resignação feminina das religiões judaico-cristãs do Ocidente, curioso acerca
dos saberes elaborados por outros grupos sociais excluídos e marginalizados, mas não
esvaziados de sabedorias, que podem informar uma nova prática política, econômica, cultural
e social mais inclusiva, solidária e coletiva.
Segundo sugere Lélia Gonzalez, aprender com esses saberes contribui para a
descolonização do feminismo, através da elaboração de teorias feministas que dialoguem mais
proximamente com as mulheres negras, lésbicas, pobres e indígenas, teorias cúmplices da
ação política, pois ambas seriam nascidas das experiências particulares. A valorização, o
resgate dos saberes produzidos pelas mulheres representa, por si só, uma prática política de
descolonização do saber, na medida em que se redefine a orientação do vetor da concepção
ocidental de mundo para as concepções filosóficas das sociedades africanas e indígenas
totalmente excluídas do chamado conhecimento hegemônico. Além do que, buscar
fundamentação em elementos/valores/princípios que constituem tais saberes gera profundos
cortes com o paradigma ocidental moderno e faz emergir novas propostas epistemológicas
com potencial para recuperar as histórias das “mujeres de color” como as anunciadas pela
canção “Duerme Negrito”.

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