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RAÇA, CLASSE E GÊNERO NA PERSPECTIVA DOS FEMINISMOS

NEGROS: UMA ANÁLISE DO PENSAMENTO DAS MULHERES


NEGRAS AFROAMERICANAS E AFROBRASILEIRAS
Maíra Lopes dos Reis
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia-UFRB – mairalopes@ufrb.edu.br

Resumo: As relações de gênero são fundamentais em todas as formações sociais que conhecemos e
são centrais para o entendimento de questões referentes a: divisão do trabalho, dominação, política,
exploração e ideologia, dentre outras. No entanto, como a análise dessas relações não se configura
numa dimensão única de vivência e constituição das ações sociais, é preciso articular a categoria de
gênero com outras dimensões relacionais, principalmente classe e raça. Quando se tem uma
perspectiva feminista de análise da realidade, na qual o gênero seja uma variável teórica, a questão da
raça entra no debate como uma dimensão das formas de opressão. Pode-se ter como exemplo, desse
viés analítico, a situação das mulheres negras, que dentro das relações de classe, concentra o mais alto
grau de opressão, por ser negra, mulher e trabalhadora. Neste sentido, o artigo apresentado tem como
objetivo abordar a construção do pensamento feminista negro afro americano a partir das conexões
entre raça, gênero e classe e as repercussões desta teoria no movimento de mulheres negras
afrobrasileiras. Trata-se de um estudo teórico embasado em autoras não brancas como Angela Davis,
Patricia Hill Collins, Bell Hooks, Audre Lorde, bem como, autoras feministas negras brasileiras como
Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo. Analisar as construções teóricas de autoras negras
de espaços geográficos distintos nos oportuniza observar que dentro do feminismo negro existe uma
diversidade de perspectivas por inscrever uma multiplicidade de experiências, construindo um
movimento feminista particular, ao qual a teoria se entrelaça com a ação política.

Palavras Chave: Raça, Gênero, Classe; Feminismos Negro.

INTRODUÇÃO proeminência, e a sociedade de classes

Enquanto que em outros momentos assume a forma de grupos e movimentos

históricos insistiu-se, sobretudo, nas sociais, baseados em etnicidade, sexo,

noções de continuidade e unidade, hoje, localidades, dando lugar a uma grande

vive-se em um período marcado pela diversidade de arranjos singulares (SORJ,

ênfase dada às noções de ruptura, de 2000). Diante dessas transformações,

diferença e pluralidade. Como uns dos outras categorias ou marcadores sociais de

traços característicos do pensamento diferença como gênero e raça passaram a

contemporâneo prevalecem às categorias ser vistos como igualmente importantes

de multiplicidades, novas categorias de aos determinantes de classe no processo de

análise como identidades, estilos de vida, mobilização política (SARDENBERG:

movimentos sociais ganham


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2015, p.58). As relações de gênero são fundante para transformar as relações
fundamentais em todas as formações sociais de poder imbricadas no gênero, e o
sociais que conhecemos e são centrais para feminismo negro especificamente
o entendimento de questões referentes a: desconstruiu “discursos que afirmavam a
divisão do trabalho, dominação, política, primazia, da classe ou do gênero sobre os
exploração e ideologia, dentre outras. No demais eixos de diferenciação, e
entanto, como a análise dessas relações não interrogava as construções de tais
se configura numa dimensão única de significantes privilegiados enquanto
vivência e constituição das ações sociais, é núcleos autônomos unificados”
preciso articular a categoria de gênero com (BRAH:2006, p.357).
outras dimensões relacionais,
Neste sentido, este artigo tem como
principalmente classe e raça. Quando se
objetivo abordar a construção do
tem uma perspectiva feminista de análise
pensamento feminista negro afroamericano
da realidade, na qual o gênero seja uma
a partir das conexões entre raça, gênero e
variável teórica, a questão da raça entra no
classe e as repercussões desta teoria no
debate como uma dimensão das formas de
movimento de mulheres negras
opressão. Pode-se ter como exemplo, desse
afrobrasileiras. Trata-se de um estudo
viés analítico, a situação das mulheres
teórico embasado em autoras não brancas
negras, que dentro das relações de classe,
como Davis(1981), Collins (2015), Hooks
concentra o mais alto grau de opressão, por
(1995), Lord(1984) e autoras feministas
ser negra, mulher e trabalhadora.
negras brasileiras como Carneiro (2002),
De acordo com Brah (2006) nosso Gonzalez (1988), Cardoso (2012). Analisar
gênero é constituído e representado de as construções teóricas de autoras negras
maneira diferente segundo nossa de espaços geográficos distintos nos
localização dentro de relações globais de oportuniza observar que dentro do
poder, de modo que nossas inserções feminismo negro existe uma diversidade de
nestas relações de poder se realizam por perspectivas por inscrever uma
meio de processos econômicos, políticos e multiplicidade de experiências,
ideológicos e nessa estrutura não somos construindo um movimento feminista entre
apenas mulheres, mas sujeitos teoria e prática que contesta a ideia de
categorizados em condições sociais hierarquizações entre os marcadores
específicas. Deste modo, o feminismo se sociais de opressão, de modo que as
apresenta como instrumento
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conexões entre gênero, raça e classe não se feminista do século XIX, que
dão de forma paralela. reivindicavam os direitos das mulheres, a
lutar pela liberdade e contra a opressão
CONSTRUÇÃO DO
racista, mas também da dominação sexual.
FEMINISMO NEGRO
AFROAMERICANO
Segundo Davis (1981) Sojourne
O pensamento feminista negro surge a Truth foi a única mulher negra a participar
partir de uma proposta que relaciona as da convenção de Akron, e enfrentou os
categorias de gênero, raça, classe e argumentos acerca da supremacia
sexualidade, e tem contribuído para masculina, e de que a fragilidade feminina
elaboração da teoria feminista, era incompatível com o sufrágio, defendeu
demostrando como o racismo, junto com o de forma contundente a causa do seu sexo,
sexismo e classismo afetam as mulheres. O sua fala estabeleceu um espírito de luta
pensamento antirracista e pós-colonial militante que é uma inspiração para os dias
surge na década setenta nos Estados atuais, pois além de responder aos
Unidos, assumindo um posicionamento de defensores da supremacia masculina, essa
descolonizar a partir de registros e mulher negra também estava dando lição
produções teóricas de práticas para as mulheres brancas expondo como o
subalternizadas, racializadas e marcador de classe e o racismo do novo
sexualizadas, de modo, a reconhecer que as movimento de mulheres, pois nem todas as
lutas e os processos de resistência das mulheres eram brancas ou tinham a
mulheres sirvam para elaboração de teorias oportunidade de usufruir o conforto
(CURIEL: 2007). material da classe média burguesa, assim
sua condição de raça e situação econômica
No entanto, esses processos de
serem diferentes das demais presentes na
resistências antecedem esse período, pois
convenção não anulava sua condição de
já em 1851 ocorreu na cidade de Akron,
mulher, “e como mulher negra, sua
Ohio, nos Estados Unidos a primeira
reivindicação por direitos iguais não era
Convenção Nacional pelos Direitos das
menos legítima do que a das mulheres
Mulheres, este evento é marcado pelo
brancas de classe média” (DAVIS:1981,p
discurso de Sojourner Truth mulher negra,
73). De igual modo, destaca-se Rosa Parks,
abolicionista, afro-americana e ativista dos
que se negou a ceder seu assento a um
direitos da mulher, chamado: “E eu não
homem branco e mover-se para a parte
sou uma mulher?” Este discurso foi uma
inspiração para o movimento
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detrás do ônibus, transgredindo a absurda progressistas, e estando comprometidas
lei da época de segregação racial nos com a luta contra a opressão racial, sexual,
Estados Unidos em 1955. heterossexual e classista, como mulheres
Negras, enxergavam o feminismo negro
Estas duas mulheres citadas são
como o movimento político para combater
alguns exemplos dessa genealogia do
as múltiplas opressões que enfrentam as
movimento feminista negro, que para além
mulheres de cor.
de denunciar a situação social das
mulheres negras, e especificidade de sua A primeira declaração deste
condição marcada pelos determinantes de coletivo foi lançada em abril de 1977, este
gênero, raça e classe, experimentados de documento colocava em pauta elementos
forma simultânea, também evidencia a acerca da gênese do Feminismo Negro
invisibilidade dessas mulheres como contemporâneo que se origina a partir da
sujeitos do movimento feminista. realidade histórica das mulheres
afroamericanas e sua luta pela sua
Como já foi dito, foi a partir dos
sobrevivência e libertação, no entanto, a
anos 70 que as feministas negras
presença feminista negra aparece com a
estadunidenses, passaram a questionar o
segunda onda do movimento da mulher
movimento negro que não levava em
anglo-americana no final dos anos 60,
consideração a situação do gênero
porém, tanto as mulheres negras como as
específico das mulheres negras nas análises
terceiro-mundistas foram invisibilizadas
sobre o racismo, e a denunciar os
dentro deste movimento por conta do
movimentos feministas que em suas
racismo e elitismo dentro do movimento.
teorizações não articulavam os
determinantes de classe e raça sob as Salienta-se que a política feminista
vivências das mulheres negras. Uma das negra teve uma conexão com os
expressões de organização deste movimentos de libertação Negros nas
movimento é a Coletiva do Rio Combahee décadas de 60 e 70, muitos mulheres
(Combahee River Colective) constituída participaram das Panteras Negras, do
por feministas negras que se organizaram movimento dos Direitos Civis e
desde 1974 com intuito de fazer um Nacionalismo Negro, mas tiveram
trabalho político no interior do próprio experiências de desilusão com esses
grupo e em coalizão com outras movimentos libertários, o que as levou a
organizações e movimentos
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construir uma política que fosse políticas. Pois estas mulheres têm sido
antirracista, diferente das mulheres colocadas em lugares subalternizados na
brancas, e antissexista, à diferença dos esfera da sociedade, como também na
homens Negros e brancos. ciência social e no próprio feminismo,
devido ao caráter universalista e todo
Bell Hooks (2015) traz uma crítica
recorte racista que as recortam. Para Curiel
incisiva ao discurso feminista branco, em
(2007) o Combahee River Colective partiu
sua análise, o movimento reforçou a
de uma identidade de viés essencialista
supremacia branca e o racismo, negando a
sustentada nas práticas das mulheres
possibilidade de que as mulheres se
racializadas, sua proposta fundamentada
conectem politicamente, interligando
em uma interseccionalidade de
fronteiras étnicas e raciais, de modo, que a
dominações. A autora ainda cita que
não inclusão de análise e enfrentamento
Barbara Smith, uma das fundadoras do
das hierarquias raciais, suprimiu a conexão
coletivo acentuou a interseccionalidade de
entre raça e classe. A autora argumenta que
raça, de sexo, da heterossexualidade na
um fundamento central do pensamento
vida e opressão das mulheres, sua
feminista moderno tem sido a afirmação de
insistência sobre este debate foi tão
que “todas as mulheres são oprimidas”, tal
profícua, que para difundir este
a assertiva indica que as mulheres
pensamento Smith fundou junto com
compartilham a mesma sina, que
Audre Lorde o editorial Kitchen
marcadores de classe, raça, religião,
Table:Women of Color Press. Para essas
orientação sexual não proporcionam uma
autoras a imbricação destas múltiplas
diversidade de experiências que determina
opressões significava assumir uma posição
até que ponto o sexismo será uma força
radical.
opressiva na vida de cada mulher.
Audre Lorde (1984), assim como
Ochy Curiel (2007) discute em seu Bell Hooks teceu críticas as feministas
texto Crítica pós-colonial desde las brancas e burguesas, por centrar somente
prácticas políticas del feminismo nas experiências e valores das mulheres da
antirracista que desde o surgimento do classe média, seus escritos são
feminismo, as mulheres afrodescendentes e fundamentados na “teoria da diferença”, e
indígenas, entre outras, tem enfatizado de na ideia de oposição binária entre homens
maneira significativa a ampliação de suas e mulheres seria extremamente simplista e
perspectivas teóricas e
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ocultaria diferenças dentro da própria porque as mulheres negras dos Estados
categoria mulher relacionadas à classe e Unidos constituem um grupo oprimido.
raça. Lorde apontava que as experiências Assim, destaca como principais traços
das mulheres negras são distintas, bem distintivos do pensamento feminista negro,
como, as experiências de lésbicas não são ser uma teoria social que tem como
consideradas nas políticas feministas e objetivo empoderar as mulheres
defendia que não há hierarquia de afroamericanas em um contexto de
opressão, se auto definia como Outro em injustiça social sustentada por opressões
cada grupo que fazia parte, “ a que está interseccionais. Um segundo traço surge da
fora. Todas as militantes feministas negras tensão que vincula com experiências e
evidenciam que estão em uma posição ideias, o terceiro traço do pensamento
incomum nesta sociedade, pois estão feminista concerne com as conexões entre
coletivamente na parte inferior da escada as experiências das mulheres negras
do trabalho, em uma condição social estadunidenses com uma coletividade
inferior a qualquer outro grupo, suportando heterogênea, suas vivências históricas
a opressão machista, racista e classista. coletivas com a opressão podem estimular
Estas mulheres apresentam uma um ponto de vista que promove o ativismo.
experiência de vida que desafia Para Collins (2000) como membros
diretamente a essa estrutura social, sendo de um grupo oprimido, essa mulher negra
que essa experiência pode moldar suas tem fomentado práticas e conhecimentos
consciências de maneira que suas próprias alternativos projetados para promover o
visões de mundo sejam diferentes da quem empoderamento do grupo. Contrastando
tem um grau de privilégio (HOOKS: com a relação dialética que conecta
2015). opressão e ativismo, uma relação dialógica
Collins (2000) no texto Rasgos que caracteriza as experiências coletivas e
distintivos del pensamiento feminista negro o conhecimento grupal. Em ambos os
apresenta os traços do feminismo negro, e níveis, individual e coletivo, uma relação
afirma que este pensamento pode ser de diálogo indica que as mudanças no
compartilhado com muitos outros corpos pensamento podem produzir ações
do conhecimento, mas que o pensamento distintas e que a transformação das
negro estadunidense apresenta contornos experiências pode estimular uma mudança
particulares. Para ela o feminismo negro da consciência. Quando se fala em relação
segue sendo importante
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dialógica, considera o feminismo negro significantes privilegiados enquanto
como uma teoria social crítica em que núcleos autônomos unificados. O
implica teorizar sobre as questões sociais feminismo negro não só representava um
em defesa da justiça econômica e social, sério desafio aos racismos centrados na
devendo abarcar corpos de conhecimento e cor, mas sua significação ultrapassa esse
conjunto de práticas institucionais que lida desafio.
ativamente com as questões centrais que as E embora constituído em torno da
mulheres negras enfrentam como grupo. problemática da “raça”, o feminismo negro
Outro traço importante do desafia a performativamente os limites de
pensamento do feminismo negro são as sua constituição. O sujeito político do
contribuições das intelectuais feminismo negro descentra o sujeito
afroamericanas, pois estas tem a tarefa de unitário e masculinista do discurso
fazer perguntas adequadas e investigar eurocêntrico, e também a versão
todas as dimensões do ponto de vista das masculinista do “negro” como cor política,
mulheres negras. Elas são centrais na ao mesmo em que perturba seriamente
produção deste pensamento porque qualquer noção de “mulher como categoria
somente elas podem promover a autonomia unitária” (p.357).
necessária para realizar coalizões efetivas As mulheres do feminismo negro
com outros grupos. trouxeram em suas análises e
Collins (2016) descreve que o reivindicações a especificidade de sua
pensamento feminista negro se baseia em condição social demarcada pelos
ideias produzidas por mulheres negras na marcadores de opressão de gênero, raça e
perspectiva singular de suas experiências, é classe, experimentados de forma
sobre esse chão que as intelectuais negras simultânea, e construíram a partir de
irão produzir suas teorias, pois negar-lhes a coletivos que associavam a prática política
sua experiência é matar a existência do e intelectual o conceito da
sujeito. interseccionalidade que será abordado a
Assim conforme sinaliza Brah seguir.
(2006) o feminismo negro escancarou RAÇA, CLASSE E GÊNERO E A
discursos que assentavam a primazia da SIMULTANEIDADE DAS
classe ou do gênero sobre os demais eixos
OPRESSÕES: O DEBATE
de diferenciação, e questionou as
construções de tais
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INTERSECCIONAL raça, classe e gênero como categorias de
análise e conexão” afirma que é necessário
O movimento político das mulheres
novas categorias de análise que incorporem
negras na construção de ferramentas de
raça, classe e gênero como estruturas de
enfrentamento as dominações e
opressão distintas, mas imbricadas, e
desigualdades que estruturam as relações
devemos afastar as discursos de análises
sociais elaboraram um conceito que faz
somatórias ou aditivas de opressão. Para a
conexões entre os marcadores de gênero,
autora reflexões somatórias da opressão se
raça e classe em uma perspectiva de
assentam, diretamente, nos pilares de
interseccionalidade, fazendo uma reflexão
pensamento de quantificar e hierarquizar
de que esses marcadores não são
todas as relações para que se saiba onde
dimensões fixas, mas estão imbricados no
alguém se localiza. Essas abordagens
terreno das relações sociais, que são
enxergam as mulheres afroamericanas
dinâmicas.
como sendo mais oprimidas que todos/as
O foco à interligação entre raça, porque a maioria das mulheres negras
gênero e opressão de classe é um tema com enfrentam os efeitos negativos das
centralidade no trabalho das feministas opressões simultaneamente. “Raça, classe
negras, pois enquanto a realidade das ou gênero podem estruturar uma situação,
mulheres negras não puderem sem mas podem não ser igualmente visíveis
compreendidas sem dar atenção à natureza e/ou importantes nas definições das
interligadas das estruturas de opressão que pessoas” (COLLINS:2015,p.18). Sendo
limitam suas vidas, as experiências das que se para as mulheres brancas de classe
mulheres afroamericanas sugerem que média o gênero pode ser central sobre suas
possibilidades de ativismo existem dentro experiências, que não é igual para as
dessas estruturas múltiplas de dominação. mulheres hispânicas pobres que lutam por
A atenção que as feministas negras dão à melhores condições de trabalho.
natureza interligada da opressão é Reconhecer que uma categoria por ter
significativa, pois implícita nessa visão primazia sobre outras por determinado
está uma perspectiva alternativa humanista tempo e espaço não minimiza o significado
para a organização da sociedade teórico de supor que raça, classe e gênero
(COLLINS:2016). são categorias de análise que estruturam
todas as relações, isso não significa a
Patricia Hill Colinns no texto “Em
direção a uma nova visão:
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negação de que determinados grupos se entrecruzam, considerando como raça,
vivenciam dinâmicas de opressão mais gênero, classe, etnia, atuam como eixos de
intensas que outros, embora gênero, raça e poder. Analisando que dependendo do
classe estruturem a vida dos sujeitos na contexto, o “tráfego” pode ser mais
sociedade, esses eixos não são vistos de intensificado em umas avenidas e menos
forma igual, do mesmo modo apresenta em outras, ou mesmo, um fluxo mais forte
igual importância na visão de indivíduos em todas, como ocorre com as “mulheres
diferentes. racializadas”. Crenshaw (2002) aborda que
as “mulheres racializadas e outros grupos
A respeito disso, Sardenberg (2015)
marcados por múltiplas opressões,
acrescenta que se essas categorias
posicionados nessas intersecções em
estruturam a vida das pessoas, o nível de
virtude de suas identidades específicas,
vulnerabilidade que a elas poderão atribuir
devem negociar o „tráfego‟ que flui através
dependerá também da presença de
dos cruzamentos” (p.177).
“matrizes macroesturutrais de opressão, a
saber, sexismo, racismo, capitalismo (ou Essa abordagem evidencia que os
outro sistema econômico baseado em limites das reflexões realizadas somente a
classes sociais hierarquizadas), etarismo, partir de uma ótica desses eixos de
heteronormatividade, etc” (p.78). subordinação, reconhecendo as diversas
identidades e suas respectivas maneiras de
O conceito de interseccionalidade
opressão, além disso, o olhar que as
foi elaborado pela advogada negra
feministas negras deram a natureza
feminista Kimberlé Crenshaw em um
imbricada da opressão está implícito uma
artigo onde buscava explicar as violências
perspectiva alternativa para humanização
específicas sofridas por mulheres negras
da organização social, e serem mais
(SADENBERG: 2015). Crenshaw (2002)
sensíveis em analisar como esse sistema
entende a interseccionalidade enquanto
também afetam homens afroamericanos,
uma conceituação do problema, que
pessoas de cor e o próprio grupo
procura capturar as consequências
dominante. Corrobora-se com a
estruturais e dinâmicas de interação entre
perspectiva de Cardoso (2012) que a
dois ou mais eixos de subordinação. Para
relevância de pensar a subordinação a
elaboração conceitual da
partir de uma visão interseccional, pois
interseccionalidade, a autora utilizou a
permite entender que a opressão
metáfora das avenidas que
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experimentada a partir de um lugar que é “cimento” de todas as hierarquias de
dado pela forma como gênero, raça, classe gênero e raça presentes em nossa
e sexualidade se entrecruzam em diferentes sociedade (CARNEIRO, 2001).
pontos, permitindo a rejeição das
O mito da democracia racial é o
explicações baseadas na adição das
fundador da nacionalidade das sociedades
opressões, uma ideia que cria grupos mais
latino americanas, que nega a existência do
discriminados do que outros.
racismo, esta ideologia da miscigenação se
O MOVIMENTO DE MULHERES construiu a partir da violação das mulheres
NEGRAS NO BRASIL negras e indígenas. O discurso nacional
brasileiro esconde as dimensões de gênero
O movimento feminista negro
e raça, e a construção da imagem da
afroamericano se desenvolve em um
mulher negra é retratada como um corpo
contexto histórico e espacial da sociedade
hipersexualizado, a sociedade colonial e
Estadunidense, o que expressa contornos
escravista do Brasil contribuiu para esse
bem específicos, no entanto, se torna uma
mito de que as mulheres negras são
influência importante para a construção de
quentes e provocadoras.
outros feminismos, sobretudo, na América
Latina e Caribe, baseados no viés da Observa-se que as mulheres negras
colonialidade do poder e os seus efeitos têm o seus corpos desumanizados
sobre as mulheres racializadas. Nos historicamente, ultrassexualizado vistos
Estados Unidos, intelectuais negras como objeto sexual. Conceição Evaristo,
feministas contribuíram para compreensão escritora brasileira, que por meio da
dos múltiplos eixos de opressão feminina escre(vivência) das mulheres negras
que afetam as experiências da vida de explicita as aventuras de quem conhece
mulheres não brancas naquele país. uma dupla condição, que a sociedade
insiste em inferiorizar, mulher e negra, ela
No Brasil, a violação perpetrada
denuncia que a mulher negra não aparece
pelos senhores brancos contra as mulheres
na literatura como musa ou heroína
negras e indígenas e a miscigenação daí
romântica, sua imagem ainda é ancorada
resultante está na origem de todas as
pelo passado escravo, de “corpo-procriação
construções de nossa identidade nacional,
e ou/ corpo objeto de prazer do macho
estruturando o decantado mito da
senhor, não desenha para ela a imagem de
democracia racial. Essa violência sexual
colonial é também o
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mulher-mãe, perfil desenhado pelas feminismo descolonizado que insira as
mulheres brancas em geral” mulheres que estão a margem do sistema
(EVARISTO:2005,p.02).Esses estereótipos capitalista moderno colonial, com o
racistas contribuem para a cultura da objetivo de elaborar modelos alternativos
violência contra as mulheres negras. de sociedade. Gonzáles criticou à
invisibilidade da raça nos estudos e
A imagem das mulheres negras
movimentos feministas no Brasil,
construídas historicamente produziram
considerando a forte presença negra e
formas particulares de violências vividas
indígena (CARDOSO:2012). Na verdade,
por elas, deste modo, desconsiderar o
essa é uma crítica do movimento feminista
debate de raça nos debates de gênero é
negro ao feminismo hegemônico que
relegar o aprofundamento da compreensão
trabalhavam com a noção unitária de
dos elementos culturais racistas que tem
gênero, não estabelecendo conexões entre
violentado os direitos humanos das
o sexismo e as outras formas de
mulheres no Brasil. Nessa perspectiva, a
dominação. Esta crítica levou as mulheres
luta das mulheres negras contra a opressão
não brancas a usarem suas experiências de
de gênero, classe e de raça vem
exclusão para desenvolver suas próprias
desenhando contornos para ação política
formas de teorizações sobre gênero e
feminista e antirracista, enriquecendo tanto
feminismo.
a discussão da questão racial, como a
questão de gênero na sociedade brasileira. Cardoso (2012) afirma que o
movimento de mulheres negras no Brasil
Lélia Gonzáles, intelectual e
inseriu a categoria raça em evidência,
feminista negra brasileira discutiu a
desvelando o racismo e as desigualdades
importância da relação entre racismo,
raciais como fatores determinantes no
sexismo e classismo na vida das mulheres
processo de opressão, discriminação e
negras e indígenas no Brasil e elaborou o
exclusão da população negra,
conceito de Amefricanidade, tal categoria
especialmente das mulheres negras,
se insere em um viés pós-colonial, o
quando o racismo e o sexismo se
objetivo é construir uma abordagem que
articulam. Segundo a autora poucos são os
interliga o racismo, colonialismo,
estudos no Brasil que abordam a
imperialismo e seus efeitos. Esta autora
intersecção de gênero e raça/etnia, estudos
apresenta uma visão do feminismo atenta
de gênero tem escondido a realidade das
ao racismo gendrado, um
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mulheres negras e das indígenas. Para traçando contornos para ação política
Bairros (1995) raça, gênero, classe social e feminista e antirracista, enriquecendo tanto
orientação sexual configuram-se de forma a discussão da questão racial como
multidimensional, e de acordo com o ponto também a questão de gênero na sociedade
de vista feminista não há uma identidade brasileira (CARNEIRO: 2002).
única, pois a experiência de ser mulher se
Este processo feminista e
dá de maneira socialmente e
antirracista de enegrecer o movimento tem
historicamente determinada. Esta
significado na perspectiva da Sueli
constatação permite refletir em termos o
Carneiro demarcar uma agenda nas
movimento negro e de mulheres negras no
políticas demográficas, na questão da
Brasil, “este seria fruto da necessidade de
violência contra mulher ao introduzir o
dar expressão a diferentes formas da
conceito de violência racial como aspecto
experiência de ser negro (vivida através do
determinante das formas de violência
gênero) e de ser mulher (vivida através da
sofrida pela população feminina negra,
raça) o que tona supérfluas discussões a
abordar sobre as doenças étnicas/raciais e
respeito de qual seria a prioridade do
formulações de políticas de saúde,
movimento de mulheres negras?”
problematizar a desigualdades e os
(BAIRROS,1995,p.461). Lutar contra o
privilégios das mulheres brancas em
sexismo ou contra o racismo? As duas
relação as mulheres negras.
dimensões não podem ser separadas, uma
não existe sobre a outra. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo foi elaborado a partir
A luta das mulheres depende não
de um exercício de reflexão teórica acerca
apenas da capacidade de superar as
do feminismo negro e objetivou analisar
desigualdades históricas da hegemonia
como este movimento impactou na
masculina, mas também confere o combate
trajetória política e intelectual de tantas
a outras ideologias, como racismo, que
mulheres negras, tanto nos Estados Unidos
constroem a inferioridade social dos
como no Brasil. Apesar de surgirem em
segmentos não brancos da sociedade, em
contextos locais e temporais bem
especial das mulheres negras. Portanto,
específicos tanto o feminismo
medidas concretas de enfretamento ao
afroamericano e afrobrasileiro lançaram
racismo é uma prioridade política, a luta
duras críticas ao movimento feminista
das mulheres negras contra a opressão de
gênero e de raça vem
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branco e hegemônico que em suas CARNEIRO, Sueli. Raça e Gênero. In:
BRUSCHINI, C. & UNBEHAUM, S.
elaborações construíram a imagem de uma
(org.) Gênero, democracia e sociedade
mulher e gênero universal, como se a brasileira, p. 1 7-194, Editora 34, São
opressão atuasse de uma maneira única Paulo, 2002.

sobre a vida das mulheres, não levando em CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o


feminismo: a situação da mulher negra na
consideração as diversas realidades e
América Latina a partir de uma perspectiva
experiências históricas das mulheres de gênero. Disponível em:
negras, que sempre experimentaram as http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00
000690.pdf Acesso 05.02.2014.
múltiplas formas de discriminação e
CARDOSO, Claudia Pons. OUTRAS
opressões de gênero, raça e classe de
FALAS: feminismos na perspectiva de
maneira imbricada e interseccional. O mulheres negras brasileiras.Tese
movimento das mulheres negras nos (doutorado) – Universidade Federal da
Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Estados Unidos construiu uma teoria Humanas, PPGNEIM 2012. (Cap.III parte
entrelaçada com a ação política, mostrando I – Descolonizando o feminismo: p.88-
111).
que a hierarquizações das opressões é
COMBAHEE RIVER COLLECTIVE. A
inválida não contribuindo para o processo
black feminist statement. In: MORAGA,
de transformação de mudanças sociais. No Cherrié; ANZALDÚA, Gloria (Eds.). This
bridge called my back: writings by radical
Brasil as mulheres têm incorporado o
women of color. Berkeley, CA:
debate da questão racial na agenda Bookpeople (Kitchen Table), 1981, p. 210-
218.
feminista e o debate de gênero nas pautas
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