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A violência banal sob a perspectiva dos contos de Rubem

Fonseca
Rochelle da Fonseca Oliveira

Habituada a ler obras pertencentes do romantismo nacional, bem como


os clássicos de José de Alencar, Machado de Assis e Aluísio Azevedo, não era
de se esperar o soco no estômago após o primeiro contato com Rubem
Fonseca, em específico com os contos do seu polêmico livro Feliz Ano Novo.
Pós-modernista, Rubem Fonseca representa um realismo extremamente brutal
em suas obras, que evidenciam a violência urbana, cruel e banalizada, tanto
nas cenas que são narradas, como também, na sua linguagem de caráter
marginal.

A fim de compreender como se dá a representação da violência e da


crueldade em Feliz Ano Novo, selecionei os contos Passeio noturno I e II.
Essas narrativas são consideradas “pesadas” e com grande matéria de
violência, explícita não só de maneira física, como também simbólica e
dissolvida em condutas sociais muitas vezes admissíveis pela sociedade,
embora extremamente cruéis.

Em resumo, os contos narram a história de um empresário, que todas as


noites sai em seu carro para atropelar, insolentemente, pessoas indefesas,
como meio de descarregar o estresse do cotidiano. Enquanto isso, sua família
não ousa desconfiar, tampouco se importar, com a finalidade desses passeios
noturnos.

Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco
mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo
os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um
foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta
para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove
segundos. (FONSECA, 2021, p. 54)

A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?,
perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vidro. Vou
dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia horrível na
companhia. (FONSECA, 2021, p. 55)

Observa-se, então, a semelhança, tão frequente com a situação da


sociedade contemporânea. Não nos sensibilizamos mais com o sofrimento do
outro, muito menos contestamos a banalização da vida. Tornou-se natural e
banal as notícias que vemos nas mídias sociais, a respeito da violência, da
brutalidade e do descaso. Procedemos de tal forma por comodidade, por
indiferença, ou até mesmo desesperança, quando o correto seria agir e
contestar.

Assim como Rubem Fonseca em seu livro, demais vertentes artísticas


também desenvolvem o tema violência, como uma maneira de denunciar as
mazelas sociais.

Mas em um mundo cheio de horrores, o que leva as pessoas a se


interessarem e gostarem de consumir, materiais compostos por violência?

Quando nos interessamos por histórias permeadas pela violência, seja


ela fictícia ou real, mas sem nos posicionarmos, somente usufruindo do
material, é uma maneira da nossa psique, de uma certa forma, transmutar essa
violência, que todos possuímos dentro de nós, com segurança.
Mesmo que você imagine o quão atroz possa ser essa violência para os
personagens, aquilo não irá te atingir. Não é você quem está sofrendo. Há uma
sensação de conforto, pois qualquer crueldade que seja descrita ali, por mais
chocante que seja, não é capaz de fazer nenhum mal físico a quem lê.

Imaginar Ângela sendo esmigalhada pelo carro do empresário em


Passeio Noturno II, por exemplo, e poder interromper a leitura, fechar o livro
por um momento, é um exemplo desse “confortismo”. A situação não sendo
vivenciada por nós, traz um certo alívio, até mesmo um aspecto de
insensibilidade para com o outro.

Bati em Ângela com o lado esquerdo do para-lama, jogando o seu corpo um


pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente — e senti o som surdo
da frágil estrutura do corpo se esmigalhando — e logo atropelei com a roda
traseira, um golpe de misericórdia, pois ela já estava liquidada, apenas talvez
ainda sentisse um distante resto de dor e perplexidade. (FONSECA, 2021, p.
61)

Essas cenas violentas nos auxiliam a expressar nossa própria


agressividade, reprimida em favor da civilidade. A satisfação que nós não
realizamos em ato, substituímos em ficção, como uma satisfação que não foi
permitida porque você está submetido à lei. A figura do empresário assassino
em Passeio Noturno I e II é emblemática porque é alguém que não se
submeteu às leis como nós nos submetemos.

Uma outra vertente de justificativa, seria a constatação de uma possível


identificação ou empatia para com os personagens que vivenciam ou que
sofrem a violência, uma imersão na subjetividade dos mesmos, que permite
fazer associações com conflitos da vida real, levando a uma autorreflexão
sobre esse caráter violento e brutal.

Dessa forma, cenas angustiantes ou de sofrimento promoveriam em


nossa psique não o prazer com o sofrimento alheio, mas uma atração por
situações que nos permitam vivenciar o que o outro estaria passando. Assim,
por ser um assunto que mexe com o emocional, com coisas extremas, nos traz
essa capacidade de se colocar no lugar do outro e dividir suas emoções.

Um exemplo disso, é quando em Passeio Noturno I e II, nos deparamos


com a personagem Ângela, que se envolve logo no início com o tal empresário.
A partir daí, por já sabermos do histórico do protagonista, nos envolvemos em
compaixão pela personagem, desejando um desfecho positivo para o seu
destino, fato que, infelizmente não ocorre.

Ela saltou. Foi andando pela calçada, lentamente, fácil demais, e ainda por
cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, já estava ficando tarde.
Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. Não
podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era
a única pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia
também o meu carro. Mas qual era o problema? Ninguém havia escapado.
(FONSECA, 2021, p. 61)

Ademais, as cenas violentas provocam um misto de sentimentos na


nossa mente, pois ao mesmo tempo em que se observa os atos cruéis,
manifesta-se uma sensação satisfatória, como um ideal de vingança ou até
mesmo uma ideia de superação. Podemos até ter uma sensação negativa ao
acompanhar a narração de uma pessoa sendo violentada, porém essa
sensação vem acompanhada de um ‘eu não permitiria que isso acontecesse',
‘se eu fosse ela faria tal coisa’, ou então a vontade de sentir-se um herói e se
vingar.

Assim, a representação da vida social em forma de ficção, viabiliza, por


meio da mediação artística, tanto de obras literárias, como mídias audiovisuais,
diversos aspectos da vida humana que, de uma certa forma, nos provocam
curiosidade, por se tratar de um aspecto indisponível no nosso cotidiano.

São exatamente esses aspectos da vida humana que são retratados nos
contos de Rubem Fonseca, a partir de uma leitura permeada de provocações.
Passeio Noturno I e II caracterizam o poder na mão de uma pessoa sem
escrúpulos e autoritária que tira a vida de inocentes que só estavam exercendo
o direito da existência.

Em suma, consumir violência nos desperta interesse por ser um tema


que toca, diretamente, em nosso lado mais obscuro, numa espécie de espelho
que mostra o que temos de mais terrível e sublime. Acima de tudo, o fascínio
por este tipo de conteúdo vem da exibição de contradições profundamente
humanas
REFERÊNCIAS

FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. 11. Ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 2021. 152 p.

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