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Uma homenagem à Suzy Lagazzi

Organizadores
Flavio Benayon Guilherme Adorno
Liliane Anjos Mirielly Ferraça
Rogério Modesto Romulo Osthues
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A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Adorno, Guilherme./ Modesto, Rogério./ Ferraça, Mirielly./ Benayon, Flavio./


Anjos, Liliane./ Osthues, Romulo ( Orgs.)

O discurso nas fronteiras do social: uma homenagem à Suzy Lagazzi - volume 2/

Guilherme Adorno./ Rogério Modesto./ Mirielly Ferraça./ Flavio Benayon./


Liliane Anjos./ Romulo Osthues (Orgs.) - Campinas, SP: Pontes Editores, 2019

Bibliografia.
ISBN: 978-85-217-0204-7

1. Análise do discurso - Suzy Lagazzi 2. Estudos sobre linguagem


3. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso - 410


2. Estudos sobre linguagem - 410
4. Linguística - 410
Gritar, denunciar, resistir: “como mulher,
como negra”

Rogério Modesto

Em nós, até a cor é um defeito. Um imper-


doável mal de nascença, o estigma de um
crime. Mas nossos críticos se esquecem que
essa cor é a origem da riqueza de milhares de
ladrões que nos insultam; que essa cor con-
vencional da escravidão tão semelhante à da
terra, abriga sob sua superfície escura, vul-
cões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.
Luiz Gama

1. Prelúdio à questão

A história conta que, no décimo dia do mês de junho do


ano de 1791, José Maurício Nunes Garcia pedia, junto à Câmara
Eclesiástica do Bispado do Rio de Janeiro, pela continuação de
seu processo de ordenação sacerdotal. Tal pedido seria encami-
nhado por meio de uma petição a partir da qual o supracitado
requerente rogava para ser dispensado da cor, gesto pelo qual se
desculpava por ter a cor de um mulato. José Maurício alegava que
desde criança havia a sua vocação sacerdotal despertada e que,
mesmo pobre, desde cedo esteve empenhado em seu progresso

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME II

intelectual e artístico, tendo recebido de seus pais uma excelente


formação. Ele alegava ainda ser merecedor da graça divina já que
não se encontrava em qualquer impedimento moral, a não ser o
seu defeito de cor, uma vez que era filho de dois mulatos libertos.
Seis dias depois, o reverendo responsável pelo Bispado emi-
tia parecer favorável à petição de José Maurício. Em sua resposta,
dizia que o requerente não apresentava nenhuma irregularidade
senão o “defeito de cor”. Além disso, esclarecia que, embora tal
defeito fosse, segundo as Constituições da Bahia, um ponto ne-
gativo para o sacerdócio, seria possível relevar essa questão, pois
o documento que regulava esse tema era apenas diretivo e não
preceptivo.
A estratégia de pedir a dispensa da cor era, conforme
Oliveira (2008), autor a quem recorri para apresentar a história
de José Maurício, um meio eficaz de mobilidade social para ne-
gros e mulatos não somente dentro do clero do Rio de Janeiro
no século XVIII, como também no âmbito militar e no serviço
público, espaços que conferiam a esses sujeitos possibilidade de
inserção e dignidade social. No caso de José Maurício, a estra-
tégia deu certo: já sacerdote, ele tornou-se músico e diretor da
Capela Real, sendo nomeado pelo próprio Príncipe-regente D.
João, que era publicamente seu admirador.
Alguns séculos depois, a dispensa de cor é uma prática que
já não existe mais, embora pareça permanecer na memória dis-
cursiva que disponibiliza os discursos possíveis sobre a relação
entre raça, trabalho e sociabilidade em nossa formação social. A
expressão racista negro de alma branca, por exemplo, dá conta
de qualificar o negro que, embora negro, apresenta talento, com-
petência, bom desempenho e aptidão dentro de determinada
área de trabalho ou que se comporta de uma maneira considera-
da discreta, polida, educada e cortês. Assim, aos “negros de alma

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branca”, seria possível o privilégio do exercício de certas profis-


sões dominadas por brancos ou ainda um trânsito social relati-
vamente promissor.
Quando, no entanto, a insubmissão encontra espaço entre
os negros, de modo especial entre as mulheres negras, a marca
do “negro de alma branca” cede espaço para outra imagem: o da
negra raivosa. Figura muito comum na mídia brasileira e ameri-
cana1, a “negra raivosa” constitui um estereótipo que:

[...] não reconhece a raiva da mulher negra


como uma reação legítima diante de cir-
cunstâncias injustas; tal raiva seria um de-
sejo patológico e irracional da mulher negra
em controlar o homem negro, a família e a
comunidade. Ele pode ser empregado con-
tra mulheres negras que se atrevem a ques-
tionar injustiças, maus-tratos ou pedir ajuda
(Harris-Perry, 2011, p. 95, tradução minha2,
grifo meu).

1 Da Sapphire Steven, personagem da série norte-americana Amos ‘n’ Andy (1928 a 1960),
até a Rochelle Rock, icônica personagem de Todo mundo odeia o Cris (no original Everybody
hates Chris), série televisiva americana superpopular no Brasil a partir de 2005, a televi-
são norte americana está repleta de figuras de mulheres negras que performam a angry
black woman (ABW). A expressão the Sapphire Caricature, que pode ser aplicada a essas
personagens, retrata “as mulheres negras como rudes, barulhentas, maliciosas, teimosas
e arrogantes [e que] têm língua afiada e desafiadora do homem, uma mão no quadril e
a outra apontando, balançando violentamente e ritmicamente a cabeça, zombando de
homens afro-americanos por ofensas que vão do desemprego à busca sexual de mulheres
brancas. Ela é uma ninhada estridente com estados irracionais de raiva e indignação e mui-
tas vezes é mesquinha e abusiva.” (Disponível em: <https://www.ferris.edu/HTMLS/news/
jimcrow/antiblack/sapphire.htm>. Acesso em: 12 de janeiro de 2019, tradução minha). No
Brasil, por sua vez, a personagem Dona Jura, da novela O clone, seria, dentre tantas outras
personagens, um protótipo desse lugar no imaginário social.
2 This stereotype does not acknowledge black women’s anger as a legitimate reaction to un-
equal circumstances; it is seen as a pathological, irrational desire to control black men, fami-
lies, and communities. It can be deployed against African American women who dare to ques-
tion their circumstances, point out inequities, or ask for help.

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Para as mulheres negras, não ceder ao estereótipo do “negro


de alma branca” significa, muitas vezes, cair imediatamente no
da “negra raivosa”. Confrontar (ou afrontar) esse discurso é ocu-
par um lugar de identificação que desconhece tal estereótipo; é
produzir um desconhecimento de si (Modesto, 2018b) que não
deixa coincidir as identificações projetadas pelo outro com as
práticas materiais da resistência que formam uma subjetividade
negra. Gritar, denunciar e resistir, como mulher, como negra, parece
ser, assim, um desafio que se coloca no dia a dia das mulheres
negras que lutam pela efetivação de seus direitos.

2. Por que não estamos falando da Valéria?

Para situar a questão da qual venho tratar aqui, retomo a


seguinte narrativa jornalística publicada pelo site Época em 13 de
setembro de 2018 (grifos meus):3

Uma das maiores divas da música brasilei-


ra, Elza Soares perdeu o sono. “Sem dormir,
pensando na Valéria. Por que não estamos
falando da Valéria?”, publicou em sua conta
do Twitter à 1h30 da manhã da quarta-feira
12. O que tirou o sono da cantora e de inú-
meras mulheres negras que lutam por seus di-
reitos foi o caso de Valéria Lúcia dos Santos.
Advogada, ela foi algemada enquanto pro-
testava por não conseguir exercer sua profis-
são no 3º Juizado Especial Cível em Duque
de Caxias, Região Metropolitana do Rio de

3 O texto está disponível em: <https://epoca.globo.com/valeria-dos-santosadvoga-


da-que-foi-presa-durante-uma-audiencia-apenas-por-querer-exercer-sua-ativida-
de-23065299>. Acesso em: 14 de janeiro de 2019.

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Janeiro. Defendia uma cliente que tinha sido


cobrada indevidamente por uma compa-
nhia telefônica.
Em três vídeos, divulgados nas redes sociais,
é possível ver a advogada inicialmente sen-
tada. Ela reclama que a audiência não po-
deria terminar, conforme mandava a juíza
Ethel Tavares de Vasconcelos, porque fal-
tava a parte da contestação, momento em
que defesa e acusação apresentam os con-
tra-argumentos uma para a outra, por es-
crito. Ela exigia o cumprimento dessa etapa
porque as duas partes não tinham chegado
a um acordo. Sem acesso aos argumentos
por escrito, ela saiu da sala em busca de
um delegado da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) para registrar a limitação a seu
trabalho. A juíza nega a versão da advogada.
Por escrito, afirmou que Santos teve “vista
da contestação” antes mesmo de apresentar
seus documentos. Vasconcelos é uma juíza
leiga – profissional que atua em juizados es-
peciais e que tem, entre suas atribuições, a
de presidir audiências de conciliação.
No segundo vídeo, já com os policiais den-
tro da sala, Santos está de pé, afirmando
que é um absurdo o que está acontecendo
e reafirmando seu “direito de ler a contesta-
ção e impugnar os pontos da contestação
do réu”. Colegas advogados presentes na
sala começam a reclamar de sua resistência.

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Santos afirma que falta a eles senso de di-


reito, já que seu trabalho está sendo limita-
do e ninguém faz nada, nem sequer chamar
um representante da OAB. A própria cliente
vira-se para a advogada e diz algo que os
microfones não conseguem registrar, ao que
a defensora responde insistindo que aquele
era seu direito e que ela não sairia.
No terceiro e último vídeo, Santos está sen-
tada no chão, algemada, visivelmente ofen-
dida. Afirma repetidamente que foi restrin-
gido seu direito de trabalhar “como mulher,
como negra”. Ao fundo, é possível ouvir um
dos colegas presentes afirmando que é um
absurdo e que “não pode algemar advogado
em exercício da profissão”. Após a chegada
do delegado da OAB-RJ Marcelo Vaz, Santos
é libertada.

O texto jornalístico fala sobre Valéria Lúcia dos Santos, advo-


gada, mulher negra, que foi arbitrariamente algemada dentro do
Juizado Especial Cível de Duque de Caixas enquanto trabalhava
em setembro de 2018. O vídeo4 que compila os três momentos
descritos no texto do site Época tornou-se viral nas redes sociais,
provocando polêmicas entre posicionamentos dissonantes, re-
púdios e, também, resistência. Nele, como poderei trazer mais
a frente, vemos a produção material de um grito, uma elevação
da espessura vocal que corporifica a resistência daquela que só
4 Neste texto, faço menção ao vídeo que está disponível a partir do seguinte link que se
encontra na plataforma YouTube: <https://youtu.be/Fm2y25JB9PY>. Acesso em: 14 de
janeiro de 2019. Contudo, é importante ressaltar que, como um típico viral, o vídeo pode
ser encontrado em diversos formatos em diferentes redes sociais e de compartilhamen-
to de vídeos. Aqui, em respeito à Valéria, considerando humilhante demais a situação
vivenciada por ela, não reproduzirei fotogramas do vídeo em questão.

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queria trabalhar. Valéria não grita apenas com a voz, mas com o
corpo que atualiza uma memória discursiva que retoma as diver-
sas imagens do negro escravizado algemado ao chão. É preciso,
então, que Valéria produza formulações que gritam junto com
o corpo. A mulher negra precisa gritar para nos dizer que (tam-
bém) é gente.
É sobre isso que quero tratar neste texto em homenagem
à Suzy Lagazzi. Do grito. Do grito e da denúncia. Do grito
como denúncia em sua relação com as tensões raciais. Do
grito de uma mulher negra. Uma questão que se colocou para
mim como pauta possível de pesquisa em análise de discurso
porque aprendi com Suzy que o teórico, o político, o subjetivo
e o afetivo não se separam. Assim, foi aprendendo e fazendo
análise de discurso junto a ela que entendi a necessidade de
encontrar, na teoria, um lugar que me permitisse dar visibilidade
a uma discursividade da resistência de sujeitos negros – questão
que me atravessa pessoalmente – sem cair na ilusão narcísica
de que dou voz a esses sujeitos, mas, ao contrário, entendendo
que é preciso escutar uma voz já posta, potente e em circulação
dentro da trama das relações raciais tecida em nossa formação
social, cuja escuta muitas vezes lhe é negada (e talvez por isso
seja preciso gritar!).
Nesse contexto, ao grifar expressões específicas na narrati-
va jornalística, mobilizo um gesto discursivo que vi Suzy repetir
muitas vezes: chamo atenção para um material que faz ver um
social marcado por contradições que gritam em suas fronteiras;
chamo atenção para a necessidade de o analista de discurso se
colocar em posição de uma escuta sensível em relação “à dife-
rença constitutiva das relações sociais” (Lagazzi, 2010, p. 75);
chamo atenção para o papel do analista de discurso como sujei-
to no político frente a discursos que fazem doer.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
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Assim, do texto acima, sinalizei as expressões mulheres ne-


gras que lutam por direitos, reclama, protestava, exigia, Santos está
de pé (...) reafirmando seu direito, resistência, insistindo, como mu-
lher, como negra. Expressões que, a meu ver, compõem, junto
com tantas outras, uma memória discursiva da resistência, espe-
cialmente a resistência de mulheres negras nas atuais condições
de produção no modo como, no Brasil, tem funcionado nossa
formação social capitalista. Meu gesto aqui é o de pôr em relevo
uma discursividade da resistência para a qual confluem diversos
problemas de um social estilhaçado: o racismo que incontorna-
velmente estrutura a sociedade e as relações sociais entre ne-
gros e brancos; a relação de irmandade que se estabelece entre
(in)justiça, direito, desigualdade e diferença; a negação do direi-
to ao trabalho para a mulher negra, especialmente quando esse
trabalho está alocado em um lugar social diferente daquele co-
mumente esperado.
Para tratar dessas questões, especialmente no modo como
eu as relaciono ao grito, à denúncia e à resistência, traço um per-
curso teórico que retoma formulações singulares na caminhada
que Lagazzi estabeleceu junto à análise do discurso e que a fez
produzir compreensões importantes em torno dos conceitos de
resistência (Lagazzi-Rodrigues, 1998) e juridismo (Lagazzi, 1988;
Lagazzi, 2010). Esse percurso se entrelaça à minha própria cami-
nhada na análise de discurso, porto teórico de ancoragem para
que eu pudesse entender melhor as formas de materialização da
denúncia (Modesto, 2018a) e o grito como uma sua materialida-
de que funciona na interpelação ideológica (Modesto, 2018b).
Todas essas noções e conceitos serão importantes para este tex-
to, e a reflexão em torno deles começa pelo cotidiano.

3. O cotidiano como via discursiva

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“O juridismo preside as relações interpessoais em geral, não


importando se estas se encontram inseridas no interior de uma
mesma ou de diferentes formações discursivas”, nos diz Lagazzi
(1988, p. 89), em O desafio de dizer não, importante livro para a
análise do discurso do Brasil e que, no ano de 2018, completou
30 anos. Nele, Lagazzi toma o acontecimento das relações so-
ciais, tal como elas se dão no cotidiano, para analisar discursiva-
mente o juridismo marcando as palavras5. O interessante aqui é
perceber não apenas a ousadia na montagem de um corpus dis-
cursivo composto pelo recorte de “situações de linguagem” não
necessariamente ligadas por um fio temático e cujas condições
de produção específicas são diversificadas, mas, principalmente,
a ousadia em estabelecer o cotidiano como via discursiva e pon-
to crucial para o estabelecimento da proposta que se buscava
empreender.
É pela consideração do juridismo como constituinte das
relações cotidianas que se dão entre sujeitos que Lagazzi refuta
as concepções enunciativas para as quais o sujeito que se inscreve
na linguagem seria um sujeito indeterminado social, histórica
e ideologicamente. A conclusão é decisiva: se o juridismo está
presente no modo como os sujeitos se relacionam socialmente,
então, não se pode falar apenas em interação.
A questão se dá em torno da socialização que se estabelece
quando os indivíduos são interpelados em sujeitos pela ideolo-
gia nas condições de produção do Estado-de-direito que produz
sujeitos-de-direito. Assim, a tensão e o conflito, enquanto aspec-
tos que atravessam a linguagem, não devem ser pensados como
problemas de uma interação comunicativa (tão comumente
traduzidos, no senso comum, por formulações como você me
entendeu mal, não foi isso o que eu quis dizer, entre outras), mas
5 O juridismo marcando as palavras: uma análise discursiva do cotidiano é o título da disser-
tação de mestrado de Suzy Lagazzi que, revista, dá corpo ao livro O desafio de dizer não.

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como historicamente determinados pelo modo como o sujeito


do discurso está “inserido no cotidiano das relações interpesso-
ais marcadas pelo juridismo” (Lagazzi, 1988, p. 09).
O que caracteriza o funcionamento social do sujeito-de-di-
reito é a individuação que o faz se reafirmar como único, respon-
sável, cidadão, detentor de vontades, mas, também, de direitos
e deveres. Nessas condições, as relações sociais são pautadas
pelo intenso conflito que atravessa a própria noção de relação.
Na ilusão de que somos todos iguais em direitos e deveres, como
lidar com as hierarquias, as coerções, as autoridades, as situações
pautadas em comando-obediência (ou comando-resistência,
como propõe Lagazzi) que acometem a trivialidade das relações
cotidianas?
Lagazzi proporá que é o juridismo que nos faz vivenciar as
(ou passar pelas) relações sociais cotidianas as quais inevitavel-
mente se marcam por essa tensão que, por sua vez, ainda não
eclodiu no conflito coercitivo explícito. No cotidiano, no dia a dia,
as práticas materiais a que somos submetidos nos permitem ad-
ministrar o limite aceitável dos conflitos porque o juridismo pre-
side as relações. Isso porque, no juridismo, a lei, enquanto forma
jurídica explícita do direito, é, num processo implícito, reescrita,
redita nos usos, nos costumes, nas regras, no senso comum que
produz sentido para as/nas relações sociais. Em suas palavras:

As regras e padrões de comportamento so-


cialmente estabelecidas, baseadas no senso
comum, possibilitam a atribuição de direi-
tos e deveres, responsabilidades, cobran-
ças e justificativas, instaurando um juridis-
mo no cotidiano das relações interpessoais.
Enquanto ‘intertextualidade da instância
jurídica do direito’, o juridismo se coloca no

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nível do não-dito, do implícito. Isso signi-


fica que se mantém uma certa mobilidade
(flexibilidade) entre direitos e deveres, res-
ponsabilidades, cobranças e justificativas no
cotidiano. Se essa mobilidade é anulada, a
tensão, constitutiva das relações interpes-
soais, decorrente do embate entre direito
e deveres, responsabilidades, cobranças e
justificativas, pode tornar-se muito forte e
desestabilizar as relações de poder. O con-
flito explícito requer a força explícita. A ex-
plicitação da força, da coerção, pode gerar a
recusa da opressão, o que representaria uma
ameaça à ordem vigente. Ao poder não in-
teressa nenhuma mudança, daí a tentativa
constante de não desestruturar as relações
(Lagazzi, 1988, p. 34).

Um funcionamento no cotidiano das relações, marcado por


uma passagem implícita porque são os processos implícitos que
sustentam a ordem cotidiana. Se o explícito permite a refuta-
ção, o implícito mantém o símbolo, dirá Lagazzi (1988, p. 35).
E os costumes, as crenças, os usos e as opiniões estão ampara-
dos nos símbolos que possibilitam a legitimação de um poder.
O juridismo é, desse modo, um funcionamento do jurídico não
restrito à forma do jurídico, ao direito. É o funcionamento dialé-
tico permitido/não-permitido desta vez não restrito à letra da
lei, mas estruturado implicitamente nos conjuntos de costumes
e regras que nos regulam no cotidiano, porque somos sujeitos-
-de-direito que vivem sob o Estado-de-direito.
Nas cenas que compõem o vídeo-viral a partir do qual ve-
mos Valéria ir da cadeira em que está sentada como advogada

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até o chão algemada como “criminosa”, onde o juridismo falha


e faz a situação passar a um conflito explícito que requer uma
força explícita? Na trivialidade cotidiana de mais um dia de tra-
balho dentro de um juizado cível de conciliação, por que o po-
der, a quem deveria não interessar nenhuma mudança, não se
importa em desestruturar as relações? O que da tensão/relação
de trabalho entre sujeitos-de-direitos, presidida pelo juridismo,
se estilhaça, possibilitando uma deriva que desemboca na resis-
tência de Valéria?
Repetindo Lagazzi, “a explicitação da força, da coerção, pode
gerar a recusa da opressão”. Valéria recusa a opressão e resiste.
Mas a que/quem exatamente? Ou melhor: em que exatamente?

4. Resistência, grito e denúncia

No célebre Delimitações, inversões, deslocamentos, encon-


tramos talvez o que venha a ser uma das formulações mais re-
tomadas quando tratamos da resistência: “não há ritual sem fa-
lha, desmaio ou rachadura” (Pêcheux, 1990, p. 17). Formulação
importante porque, a partir dela, entendemos a resistência não
como um gesto voluntarista, mas como uma possibilidade de
deslocamento construído no próprio seio da dominação e que,
por isso, não pode se dar alhures. Nesse sentido, as resistências6
retomam o acontecimento produtivo do simbólico, que se abre
para a metáfora, uma palavra por outra, dado a possibilidade de
deslocamento possível frente a quebra do ritual material em
curso.

6 As resistências, conforme Pêcheux (1990, p. 17): “não entender ou entender errado; não
‘escutar’ as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo; falar quando se
exige silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar,
desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra;
deslocar as regras da sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras”.

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Trabalhando justamente com os juizados especiais cíveis,


Lagazzi (2010) descreve o ritual que, pelo jurídico, visa a admi-
nistrar a coerção produzindo conciliação e consenso. Em tais
juizados, a autora mostra “funcionamentos discursivos que or-
ganizam a formulação do consenso nas políticas públicas urba-
nas sustentadas jurídico-administrativamente” (Lagazzi, 2010,
p. 75). Nessas condições, esses espaços que tentam controlar
as tensões sociais trabalham sobre o ideal de que seria possível
conter os litígios da vida cotidiana e garantir a total efetivação
daquilo que, no Estado capitalista de direito, seria o auge do su-
jeito-de-direito: a cidadania.
Lagazzi mostra, porém, que o litígio a ser administrado seria
ele mesmo “efeito da incontenção do político que se manifesta
no social sob a tutela administrativa do jurídico” (Lagazzi, 2010,
p. 75). Desse modo, os processos analisados pela autora deram a
ver que o cotidiano dos sentidos nos embates sociais leva a ins-
titucionalidade jurídica ao limite, expondo a própria imobilidade
dos códigos do direito. Diante desse cenário, a tensão produzida
se constitui na tênue fronteira entre a conciliação e a coerção,
na medida em que os juizados, mesmo que funcionando sob o
paradigma idealista do direito, do consenso e da cidadania, não
conseguem “conter as reclamações que se avolumam no coti-
diano sustentado pelos direitos e deveres da nossa ordem so-
cial” (Lagazzi, 2010, p. 76).
No caso aqui em pauta, a conciliação foi ineficiente não
apenas em relação à demanda da cliente de Valéria, mas, princi-
palmente, em relação ao trato do que era exterior a tal deman-
da. A conciliação falha em sua própria promessa. Falha em seu
funcionamento repetitivo que reafirma “a individualização dos
sujeitos pela abstração e generalização das normas jurídicas”
(Lagazzi, 2010, p. 76). Falha porque “o que precisa ser ouvido na

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
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corte é justamente o que não pode ser articulado na linguagem


jurídica” (Felman, 2014, p. 24). Nesse ponto, urge uma crítica ao
direito e seu desenvolvimento que se dá a partir de práticas que
trabalham ilusões (a da igualdade, por exemplo) como se fos-
sem certezas (“efeito ideológico elementar”, conforme considera
Althusser, 1985, p. 94).
Pêcheux já denunciava que, na passagem do modo de pro-
dução feudal para o modo de produção capitalista, as fronteiras
sociais que constituíam suas respectivas formações sociais do-
minantes não deixaram meramente de existir: elas apenas to-
maram uma outra faceta. Se na formação social feudal há uma
fronteira bem definida e as classes se dividem a olho nu, na for-
mação social capitalista tal fronteira não se mostra, não divide
explicitamente o mundo em dois, mas “atravessa a sociedade
como uma linha móvel, sensível às relações de força, resistente
e elástica” (Pêcheux, 1990, p. 11). A universalização das relações
jurídicas, assim que teve lugar nessa passagem de um mundo a
outro, absorveu as diferenças rompendo as barreiras e dando lu-
gar cada vez mais a uma significação universal de “nós”, “todos” e
“cada um”. Se, contudo, as divisões visíveis saem pela porta, elas
voltam na forma do invisível pela janela justamente pela impos-
sibilidade de que seja possível responder de uma única forma à
pergunta: “quem somos nós?”
Evgeni Pachukanis, teórico marxista do direito, afirma que
o direito encontrou sua versão mais evoluída na forma jurídica
burguesa que constitui e atravessa o modo de produção ca-
pitalista. Em seu A teoria geral do direito e o marxismo, o autor
soviético criticará fortemente a reafirmação dos processos que
individualizam os sujeitos pela forma com que a norma jurídica
funciona por abstrações, generalizações e normatizações. Em
sua plena forma de desenvolvimento, essa forma jurídica que
interpela os sujeitos-de-direito só pode funcionar fazendo valer

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
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ilusões como certezas, tal como disse anteriormente. O direito,


que faz circular o princípio ou a ideia de que todos somos iguais,
não consegue, por sua natureza contraditória, fazer funcionar
tal princípio ou ideia, sobretudo, em uma sociedade de classes
como a nossa, porque “a ‘sociedade como um todo’ existe so-
mente na imaginação desses juristas” (Pachukanis, 2017, p. 208).
A contradição inevitável que se estabelece entre igualdade
e diferença/desigualdade ganha dimensões de bomba antagôni-
ca7 quando aquilo que era ilusão se revela desse modo. Ou seja,
quando o ritual da igualdade jurídica falha, produzindo, especial-
mente no caso aqui em pauta, uma coerção que não deveria fa-
zer parte do ritual de conciliação e que marca a faceta coercitiva
do poder, revelando o próprio poder.
No que tange à diferença que se mostra nesse processo, faz-
-se fulcral ponderar a estrutura do racismo no funcionamento do
próprio processo de interpelação ideológica o qual, por sua vez,
não apenas nos individua como também nos diferencia (Fanon,
2008; Modesto 2018b).8 Dito de outro modo, cabe considerar
que, na relação-tensão intermediada pelo juridismo, a falha pro-
duzida na coerção em pauta faz diferir uma juíza de uma advo-
gada, mas, sobretudo, expõe a desigualdade entre uma mulher
branca no exercício tradicional de seu poder e uma mulher negra
cujo corpo e cuja subjetividade parecem estranhos à posição do
trabalho exercido. Conforme Flauzina (2016),9 existe, no âmbito

7 Trago de Mao Tsé-Tung (1999), teórico da contradição, a metáfora da bomba para marcar
o antagonismo. Para ele, o antagonismo é um conflito aberto que afeta a luta dos con-
trários, sendo o momento insustentável dessa luta. Conforme Tsé-Tung, numa bomba,
os opostos (as classes) coexistem numa mesma unidade, tendo em vista certas con-
dições materiais de produção e determinação. Só com o aparecimento de uma nova
condição, a ignição, é que a explosão é produzida. O antagonismo é a ignição da bomba.
8 Em Modesto (2018b), com base no estabelecimento de uma relação teórica entre Louis
Althusser e Frantz Fanon, desenvolvo uma análise em que chamo atenção para o pro-
blema da interpelação ideológica no que concerne às tensões raciais.
9 Fala em uma mesa-redonda referente ao lançamento do livro Discursos negros,
na Defensoria Pública do Estado da Bahia. Disponível em: <https://youtu.be/jPq_
HMXcN4Q>. Acesso em: 16 de março de 2019.

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME II

do direito, a urgente necessidade de problematizar a face racista


do sistema de justiça, especialmente no sistema criminal. Para
ela, o racismo precisa ser pensado como categoria que sustenta
as práticas desse sistema de justiça como um todo, alcançando,
desse modo, desde os policiais, que levam à cabo o extermí-
nio do povo negro da sociedade brasileira, até as anuências dos
Ministérios Públicos e Defensorias, culminando no modo como
o judiciário tem sentenciado a população negra a espaços ad-
jetos pela prática constante de arquivamento de inquéritos em
que negros são vítimas de homicídios, por exemplo. Esse funcio-
namento racista não é diferente quando os operadores do pró-
prio direito apresentam o tal defeito de cor.
Aqui, chego a um ponto do texto em que preciso retomar
uma pergunta já feita e enunciar outra que ficará “em aberto” até
que eu consiga falar da resistência tal como Lagazzi-Rodrigues
(1998) propõe; num gesto de retomada (re)pergunto: Valéria re-
cusa a opressão e resiste. Mas, em que exatamente? Nova per-
gunta: por que naquele espaço de trabalho, não a vemos gritar
que tem o direito de trabalhar como advogada, mas a vemos
exigir seu direito como mulher e como negra?
Para dar consequência a essas perguntas, retomo um im-
portante desdobramento teórico em relação à resistência numa
perspectiva discursiva que vem do trabalho A discussão do sujei-
to no movimento do sentido feito por Lagazzi-Rodrigues (1998).
Nele, Lagazzi realiza um gesto de diferenciação entre “resistir” e
“se opor a”, mostrando que a resistência não pode ser limitada ou
reduzida ao lugar da oposição direta, porque, como já nos ensi-
nou Pêcheux:

É impossível atribuir a cada classe sua pró-


pria ideologia, como se cada uma existis-
se em seu próprio campo ‘antes da luta de

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME II

classes’, com suas próprias condições de


existência e instituições específicas, de tal
sorte que a luta ideológica de classes fosse
o ponto de encontro de dois mundos distin-
tos e preexistentes (Pêcheux, 2009, p. 130,
grifos do autor).

Em seu gesto de diferenciação, contudo, Lagazzi mostra a


força sinonímica que se estabelece entre “se opor a” e “resistir”
considerando sempre o processo contraditório que se dá na se-
mântica desses dois significantes. Assim, o interessante é notar
que na resistência há (ou pode haver) lugar para oposição, mes-
mo que esse lugar não consiga espelhar um deslocamento efe-
tivo, talvez porque não se dê como “alhures realizado”, mas com
o “realizado alhures” (Pêcheux, 1990). As diferentes regências da
resistência apresentadas por Lagazzi-Rodrigues (1998) – resis-
tir a (alguma coisa)..., resistir para (conseguir algo)..., resistir em
(determinada posição)... – mostram, assim, um modo discursivo
de compreender não apenas a eficácia da dominação ideológi-
ca, mas, principalmente, o embate no processo de identificação
do sujeito aos sentidos reafirmados e deslocados na, em e pela
dominação.
Sabemos que Valéria resiste ao (se opõe ao) tratamento hu-
milhante que lhe é dado na corte, ela resiste a (se opõe a) juíza
leiga e a todos os demais que estão ali censurando sua revolta.
Sabemos também que Valéria resiste para trabalhar, para ter os
direitos de sua cliente assegurados, para ter a sua função e o seu
corpo respeitados. Nesse jogo opositivo do realizado alhures, em
que já prevemos a resistência a... e a resistência para..., a con-
tradição constitutiva dos processos materiais permite vislumbrar
um deslocamento que produz uma resistência em..., próprio ao
alhures realizado. Nesse sentido, a pergunta feita anteriormente
retorna aqui com destaque: por que, naquele espaço de trabalho,

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME II

não a vemos gritar que tem o direito de trabalhar como advoga-


da, mas a vemos exigir seu direito como mulher e como negra?
No grito de Valéria, há a produção de um estranhamento
(Ernst-Pereira, 2009) a partir do qual temos a sensação de que
algo está fora do lugar, algo não corresponde (ou não deveria
corresponder) com a sua revolta. Resistindo em/a partir de um
lugar outro, que relativiza a lógica de trabalho do juridismo bur-
guês capitalista, Valéria não se impõe como advogada, mas faz
irromper um deslizamento que lhe permite falar do lugar de uma
mulher-negra. É do lugar de mulher-negra que a sua resistência
nos impacta, já que, como que praticando um “não entender ou
entender errado” (Pêcheux, 1990, p. 17), ela desestrutura a natu-
ralização do “somos todos iguais em direitos e deveres”. Assim,
é realmente preciso entender de outro modo para dar sentido
(sem jamais corroborar) à coerção humilhante pela qual ela, que
também ocupava a posição de operadora do direito, estava pas-
sando, afinal se lhe tiraram o direito ao trabalho como advogada,
que lhe restituíssem como mulher, como negra.
A condição de outro, experimentada tantas vezes pelos su-
jeitos negros, vem à tona no grito de Valéria, o qual mostra que
ela não é apenas uma advogada, mas uma advogada mulher-ne-
gra, uma advogada diferente, separada, constantemente vigia-
da, testada e carente de validação.

Esse é o trauma do sujeito Negro; ele/ela


jaz exatamente nesse estado de absoluta
alteridade na relação com o sujeito branco.
Um círculo infernal. “Quando pessoas gos-
tam de mim, dizem que é apesar da minha
cor. Quando não gostam de mim, apontam
que não é por causa da minha cor.” Fanon
escreve: “Em ambas as situações, não tenho

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O DISCURSO NAS FRONTEIRAS DO SOCIAL - UMA HOMENAGEM À SUZY LAGAZZI
VOLUME II

saída”. Ele está preso no absurdo. Parece,


portanto, que o trauma de pessoas Negras
provém não apenas de eventos de base fa-
miliar, como a psicanálise argumenta, mas,
sim, do traumatizante contato com a vio-
lenta barbaridade do mundo branco, ou
seja, com a irracionalidade do racismo que
nos coloca sempre como o “Outro”, como
diferentes, como incompatíveis, como con-
flitantes, como estranhos/as e incomuns
(Kilomba, 2016, p. 176).

Aqui, finalmente, me lanço propriamente ao grito de Valéria.


Em mais de uma passagem de seu Peles negras, máscaras
brancas, Frantz Fanon (2008) recupera a diversidade de sensa-
ções-reações que acometeram a ele mesmo, quando confron-
tado com diferentes eventos racistas. Em todos eles, a questão
do riso comparece de algum modo como uma possibilidade que
logo se mostra impossível de concretização. Ainda assim, o riso
está lá até não poder estar mais,10 mostrando que nesses even-
tos há uma “tensão psíquica crescente que vai da diversão, que
é uma forma de aceitação, até o sentimento de que há algo ina-
ceitável, precisamente insuportável, pelo menos em condições
normais” (Macherey, 2012, n/p, tradução minha11).
Para Valéria, não é o riso (ainda que sufocado) que aparece,
mas o grito. Ele é “a primeira ação do ser falante e é este som

10 Em seu livro, Fanon traz uma dessas situações-limite do riso e sua ausência: “‘Olhe, um
preto!’ Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu esboçava um sor-
riso. ‘Olhe, um preto!’ É verdade, eu me divertia. ‘Olhe, um preto!’ O círculo fechava-se
pouco a pouco. Eu me divertia abertamente. ‘Mamãe, olhe o preto, estou com medo!’
Medo! Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se
impossível” (Fanon, 2008, p. 105, grifos do autor).
11 Une tension psychique croissante conduisant de l’amusement, qui est une forme d’accep-
tation, au sentiment qu’il y a là quelque chose d’inacceptable, de proprement invivable, du
moins dans des conditions normales.

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VOLUME II

que um dia foi significado que retorna no momento de extremo


desamparo da dor” (Leonarde, 2008, p. 42). O grito, então, ir-
rompe para Valéria como possibilidade de manifestação de sua
reivindicação e de sua raiva legítima. A inquietação do corpo, que
se levanta, anda pela sala, gesticula, se associa à voz em alto no
grito que exige e importuna. Assim, “o funcionamento do grito
irrompe confundindo corpo e resistência” (Modesto, 2018a, p.
216), fazendo especial cada gesto e cada palavra enlaçada pela
prosódia do grito.
Para produzir essa compreensão discursiva sobre o grito,
faço trabalhar a equivocidade do termo em questão. Por um
lado, é possível entender o grito como um brado, um berro, um
som penetrante de origem espontânea ou voluntária articulado
ou não à linguagem verbal e que é emitido por uma forte e au-
mentada elevação da espessura vocal humana. Por outro lado,
dizemos também que o grito é um clamor, um alarido, um cho-
ro enlaçado em linguagem em que a voz pode estar destacada
na produção desse clamor, mas não necessariamente se produz
numa altura vocal cortante. De minha perspectiva, sendo a de-
núncia a textualização do conflito (Modesto, 2018a), posso dizer
que o grito (de denúncia) é a forma material que enlaça a prosó-
dia ao conflito textualizado. Qualquer elevação na espessura vo-
cal que faça a voz humana se destacar naquilo que tem a gritar,
naquilo que tem a clamar e denunciar, pode ser considerado um
grito de denúncia. Desse modo, com Souza (2011, p. 96), posso
afirmar que “gritar é implicar-se no lugar da denúncia perante o
poder como dimensão discursiva que obriga e caça a palavra ao
sujeito”.
No caso de Valéria, a voz em alto produz um grito de de-
núncia lúcido em suas demandas. Antes de ser algemada, Valéria
já está de pé e seu discurso já é performado numa prosódia
do grito que, em determinado momento do vídeo, tem como

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resposta um “calma, doutora!” proferido por um dos advogados


que aguardava a sua própria audiência. O estereótipo da negra
raivosa permeia, assim, a cena de resistência como um ponto
que tenta minimizar e sufocar a resistência em curso. Contudo,
Valéria está lá e a única postura possível para o que lhe acontece
é mesmo a revolta que desconhece o estereótipo ao qual que-
rem acorrentá-la.
No momento em que aparece algemada, entre o EU ESTOU
TRA-BA-LHAN-DO, grito silabado proferido por diversas vezes,
e o EU QUERO TRABALHAR, Valéria textualiza o conflito entre o
impedimento de uma sua ação em curso (estou trabalhando –
estou resistindo) e a exigência da imediata restituição do que lhe
foi tirado (eu quero trabalhar! – eu quero resistir!). Permeando
esse conflito, a voz em alto no grito de denúncia, associada ao
corpo contraído e algemado ao chão, engendra o deslocamento
de que venho falando neste texto quando pontuo que é do lugar
de mulher e negra que ela se revolta. Assim, É MEU DIREITO
COMO MULHER, COMO NEGRA! ressoa na cena e ostenta uma
denúncia que se dá no confronto de forças ligadas por coman-
do-resistência, submissão-insubmissão. Se, historicamente, as
mulheres (de modo especial as mulheres negras) figuram como
aquelas que devem obedecer e realizar cegamente o que lhes é
pedido, Valéria, em seu grito e em seu corpo-denúncia, está ali
para lembrar que tem direitos como mulher, como negra. Seu gri-
to, sendo um ato no nível do simbólico (Pêcheux, 2010), não so-
mente a expõe como também implica e agencia a todos aqueles
que ali ocupam ou querem ocupar o papel de dominador, por-
que “o grito é o ato pelo qual dominador e dominado, em suas
respectivas posições de discurso, colocam-se mutuamente em
risco” (Souza, 2011, p. 96).
Colocar-se em risco, denunciar as fronteiras do social que
se tornaram visíveis quando a ilusão da igualdade jurídica cai por

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terra, gritar: eis a saída para a mulher negra que exige seus direi-
tos. Como mulher, como negra, Valéria tece a sua resistência pos-
sível. Como qualquer sujeito negro que vive no Brasil, ela sabe
do incômodo que seu corpo produz, um corpo visto como a ser
contido. Não apenas contido como é feito com as algemas, mas
contido por lugares esperados e projetados por um estímulo
em terceira pessoa (Fanon, 2008; Modesto, 2018b) para o qual
a única forma aceitável para (o) ser negro é ter a alma branca.
Valéria recusa! Nem negra de alma branca, nem negra raivosa:
apenas mulher, apenas negra, apenas mulher-negra que resiste!
Nesse gesto de escuta de um grito potente em resistência
e denúncia, saúdo à Valéria Lúcia dos Santos pela potência de
sua voz, pela sua resistência, por ousar se revoltar. E agradeço e
homenageio à Suzy Maria Lagazzi por nos oferecer formas de
escutar o que importa, nos orientar a lutar e resistir com as pala-
vras, por ousar pensar, por ousar ensinar.

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