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Políticas Públicas
e Comunidade
Jeferson Carlos Bordignon
Marilia Belfiore Palacio-Arruda
© 2019 por Editora e Distribuidora Educacional S.A.
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ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico,
incluindo fotocópia, gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento
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Presidência
Rodrigo Galindo
Vice-Presidência Acadêmica
Marcos Lemos
Gerência Editorial
Fernanda Migliorança
Supervisão da Disciplina
Maria Julia Chinalia
Revisão Técnica
Adriana Cezar
Ana Maccafani
Maria Julia Chinalia
ISBN 978-85-522-1598-1
2019
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
Homepage: http://www.kroton.com.br/
Sumário
Unidade 1
Psicologia Comunitária�������������������������������������������������������������������������������� 7
Seção 1
Contexto de formação da Psicologia Comunitária como
campo de conhecimento da Psicologia�������������������������������������������� 8
Seção 2
Atuação do psicólogo em questões que afetam os indivíduos
e sua inserção em comunidade�������������������������������������������������������20
Seção 3
Os três setores da sociedade e questões sociais que
acometem os indivíduos e afetam seu relacionamento
com a comunidade���������������������������������������������������������������������������33
Unidade 2
Metodologia de pesquisa, avaliação e intervenção na comunidade�����51
Seção 1
Metodologias de pesquisa aplicadas à atuação do psicólogo
na comunidade���������������������������������������������������������������������������������53
Seção 2
A comunicação como forma de expressão do sujeito
na sociedade��������������������������������������������������������������������������������������66
Seção 3
A compreensão do fenômeno da violência urbana e da
violência de gênero���������������������������������������������������������������������������77
Unidade 3
Políticas públicas�����������������������������������������������������������������������������������������93
Seção 1
Políticas públicas e a atuação do psicólogo�����������������������������������95
Seção 2
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas
Públicas – CREPOP���������������������������������������������������������������������� 108
Seção 3
A atuação do psicólogo junto ao CRAS – SUAS����������������������� 122
Unidade 4
Saúde mental��������������������������������������������������������������������������������������������� 139
Seção 1
História da saúde mental no Brasil e a organização da
política de saúde mental no SUS������������������������������������������������� 141
Seção 2
Programa da Política de Saúde Mental no SUS������������������������� 153
Seção 3
Saúde mental e outros temas da psicologia�������������������������������� 163
Palavras do autor
N
este momento do curso, você deve estar se perguntando quais são
suas possiblidades de atuação quando se formar psicólogo. Além
disso, já deve ter percebido que há muitos lugares que o psicólogo
pode trabalhar, de diferentes formas, por exemplo, trabalhar não só com
um indivíduo por vez, no formato clínico. O trabalho deste profissional é
o mesmo nesta variedade de atuação? Acertou se você disso que não! Nesse
sentido, gostaríamos de apresentar um tema na Psicologia muito importante
e que tem muitas possibilidades de atuação: a Psicologia e sua relação com
políticas públicas e comunidade!
Neste material, apresentaremos o campo, tiraremos as principais dúvidas
sobre o assunto e o incentivaremos a construir novas possibilidades de
atuação, utilizando a criatividade e todo o conhecimento adquirido.
Na Unidade 1, apresentaremos o contexto de formação da Psicologia
Comunitária como campo de conhecimento da Psicologia, além de discorrer
sobre como o psicólogo pode atuar junto a questões que afetam os indivíduos
e repercutem na comunidade. Por fim, trabalharemos sobre questões sociais
que acometem os indivíduos e afetam seu relacionamento com a comunidade.
Na Unidade 2, apresentaremos as metodologias de pesquisa aplicadas
à atuação do psicólogo na comunidade. Nesse contexto, será proposta
a reflexão da importância da comunidade como uma forma de expressão
do sujeito na sociedade, além de destacar a compreensão do fenômeno da
violência urbana e da de gênero. Essas duas unidades são muito importantes,
uma vez que todo psicólogo precisa conhecer um pouco sobre esses temas,
independente do lugar que trabalhará.
Para especificar um pouco mais, na Unidade 3, desenvolveremos sobre
qual é a relação das Políticas Públicas com a atuação do psicólogo, além de
apresentar tudo que você precisa saber sobre o Centro de Referência Técnica
em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop). Nessa unidade também detalha-
remos a atuação do psicólogo no Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
em especial, nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e nos
Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
Por fim, a Unidade 4 abordará sobre saúde mental, no contexto do Sistema
Único de Saúde (SUS). Assim, apresentaremos um histórico da saúde mental
no Brasil e a organização da política de saúde mental atual, considerando os
principais programas, sua descrição e seus objetivos. Essa unidade termina
com um convite para pensar em quais outros temas a Psicologia pode
trabalhar com saúde mental na comunidade, entendendo que este campo
está em constante transformação.
Bom estudo!
Unidade 1
Marília Belfiore Palacio-Arruda
Psicologia Comunitária
Convite ao estudo
Você, estudante de Psicologia, já sabe que essa profissão tem um leque
aberto para diferentes áreas de conhecimento e atuação. Instituída oficial-
mente no Brasil em 1962, a profissão do psicólogo vem se transformando até
os dias atuais. Apesar de muito presente no cotidiano dos brasileiros, o campo
da Psicologia Comunitária, inserida no que chamamos de Psicologia Social,
vem crescendo em visibilidade e com características da nossa realidade.
Nesse contexto, considere a seguinte situação: Isabel cursa o 3º ano do
ensino médio de uma escola pública e viu um anúncio nas redes sociais que
chamou sua atenção: “Venha ser estagiário na Associação Criança Livre e
colabore com a prevenção da violência”. Ao ler o comunicado, percebeu
que o endereço era o mesmo que o seu, e por estar muito preocupada com
a situação precária da vizinhança, somado ao fato de que precisava ajudar
a família com dinheiro, decidiu descobrir o que era. Ao chegar no local, a
jovem foi recepcionada por Raquel, responsável por apresentar o local, que
disse ser psicóloga comunitária.
Isabel não sabia o que isso significava e Raquel a convidou para conhecer
um pouco sobre a história da Psicologia Comunitária, compreendendo as
relações da Psicologia com as políticas públicas e a comunidade. O que acha
de acompanhar Isabel nesse estudo?
Na Seção 1, iniciaremos com a história da Psicologia Comunitária e suas
bases teóricas. Em seguida, apresentaremos e discutiremos sobre o papel e a
atuação do psicólogo em questões que afetam os indivíduos e sua inserção em
comunidade, além de descrever sobre a aplicação e os campos de intervenção
presentes nesta área. Na Seção 2, exemplificaremos sobre a atuação do psicó-
logo em situações de violência doméstica e exploração sexual e/ou comercial
e, em interface com Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sobre o
trabalho infantil e adolescentes em conflito com a lei. Por fim, na Seção 3,
discorreremos sobre a organização social e atuação do psicólogo, apresen-
tando a divisão da sociedade em três setores, com destaque no terceiro setor,
e a participação da Psicologia nos movimentos sociais.
7
Seção 1
Diálogo aberto
Vocês se lembram da Isabel, a adolescente que decidiu participar do
processo seletivo para estagiar na Associação Criança Livre? A jovem costu-
mava ser muito comunicativa e curiosa e, por isso, percebia as mudanças no
seu bairro e entendia que sua família precisava de um pouco mais de dinheiro
nos últimos meses. Quando tinha dúvidas, buscava respostas dentre os seus
conhecimentos, mas não tinha vergonha de perguntar quando não encon-
trava respostas satisfatórias. No momento em que Raquel disse ser psicó-
loga comunitária, Isabel tentou lembrar-se de alguns pontos: o que sabia do
psicólogo, que era um profissional distante da sua realidade, por ser caro e
com uma grande fila de espera no postinho. Além disso, lembrou que aquela
vizinha que esteve internada depois de uma crise de ansiedade comentou
que no hospital tinha psicóloga e que o colega mais bagunceiro da sua sala
foi encaminhado para o psicólogo, logo após os professores suspeitarem de
algo. Com essas lembranças, não demorou muito para que Isabel pergun-
tasse para Raquel: desde quando existe o psicólogo comunitário? O que fez
com que essa área surgisse? O que pensavam os psicólogos da época? Esse
psicólogo trabalha somente em bairros pobres, abandonados pela prefeitura?
Existe salário? Se sim, quem paga? Isabel tem curiosidade sobre a atuação da
psicóloga nesta associação e, antes de conhecer o local e o trabalho, precisa
conhecer a história da Psicologia Comunitária. Vamos acompanhá-la?
8
relacionam-se com a Psicologia, porque compartilham do mesmo objetivo,
ISTO É, compreender os fenômenos sociais, mas, neste caso, a partir dos
fenômenos coletivos. Essas disciplinas trilharam – e ainda trilham – caminhos
diferentes do que diz respeito às suas práticas e à sua atuação profissional.
Além disso, é importante ressaltar que falamos da Psicologia como ciência
e como profissão, articuladas entre si durante todo esse percurso histórico.
Muitos pesquisadores fizeram parte da História da Psicologia, porém
destacaremos alguns para que você acompanhe as propostas que foram
surgindo e foram férteis para que a Psicologia Comunitária – foco desta
seção – pudesse acontecer. Começaremos por Wundt, que propõe, na
Europa, três ideias para o desenvolvimento da Psicologia; fato este que o fez
ser considerado como o “pai” dessa área de estudo. Suas três propostas são:
a construção da Psicologia Experimental; a criação da Metafísica Científica;
e a construção de uma Psicologia Social. Denominada naquele momento
Psicologia dos Povos ou Psicologia das Massas, a Psicologia Social pode ser
considerada como um dos primeiros movimentos dentro da disciplina que
problematiza a ausência de discussão de temas coletivos, que não tem expli-
cação no indivíduo e seu self (BERNARDES, 1998).
Com o encerramento da 2ª Guerra Mundial, em 1945, grande parte da
população mundial passava fome, não tinha moradia nem condições médicas
de cuidar de sua saúde. As doenças passaram a aumentar e, consequente-
mente, o mundo começou a se preocupar em oferecer melhores condições
sociais de vida. Além disso, outra preocupação que cresce em importância
neste período é com relação ao racismo e ao preconceito, por meio de
denúncias de situações e criação de estratégias político-sociais para efetivar
mudanças nesse assunto.
Assimile
A criação da Organização das Nações Unidas (ONU), após o final da
Segunda Guerra Mundial (1945), teve um papel muito importante no
que conhecemos hoje como Psicologia Comunitária. Ela culminou na
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 10 de dezembro
de 1948, que norteia muitas práticas do psicólogo, inclusive o Código de
Ética elaborado anos mais tarde.
9
as décadas de 1950 e 1970. Elas traziam a ideia de substituição de práticas
asilares (como o Hospital Psiquiátrico funcionava predominantemente
nesta época), por novos modelos de atuação, valorizando a comunidade e
suas relações.
Para o surgimento da Psicologia Comunitária é importante destacar uma
dessas correntes: a Psiquiatria Preventiva, proposta por Caplan, nos EUA,
na década de 1960. O autor discorre que a prevenção das doenças pode
acontecer de três formas:
1. Prevenção primária: quando ainda não há doença, fala-se em
promover saúde mental com intervenções em seu ambiente que
ofereçam essa possibilidade.
2. Prevenção secundária: identificação precoce das doenças mentais
para oferecer tratamento e evitar a crise.
3. Prevenção terciária: é a prevenção mais complexa, com a proposta
de reabilitação psicossocial do doente mental, ou seja, de adaptá-lo
novamente à sociedade.
Essas propostas embasam as ideias de Psicologia Comunitária de que
as práticas devem estar conectadas com o contexto comunitário em que as
pessoas vivem (CAPLAN, 1980).
Já na América Latina, aconteciam, neste período, movimentos políticos
importantes que precisam ser contextualizados. Apoiados pelos EUA, os
militares assumiram o poder em diversos países, dando início a um regime
ditatorial de governo, transformando o cotidiano destas sociedades. Em
nosso país, a ditadura militar teve início em 1964 e durou até 1985, quando
houve abertura política para a democracia.
É importante lembrar que a Psicologia se tornou profissão apenas em
1962, com a publicação da Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962, que dispunha
sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamentava a profissão do
psicólogo (BRASIL, 1962). Antes desse período, já existia a produção de
conhecimento sobre Psicologia, bem como algumas práticas relacionadas a
ela. Vale lembrar que a lei regulamenta o exercício enquanto profissão.
Nesta época, Scaparo (2005) relata que a principal atuação do psicólogo
era a clínica individual, a avaliação e o acompanhamento de dificuldades
escolares e o trabalho de recrutamento e seleção em empresas. Essa atuação
precisou adequar-se à condição política e econômica do regime militar, o
que fez que a Psicologia daquela época tivesse um caráter normatizador – de
ajustamento de conduta – facilmente influenciada pela prevenção terciária
proposta por Caplan (1980).
10
No entanto, não podemos deixar de discutir que apesar disso, no Brasil,
a Psicologia – empoderada pela regulamentação da profissão – ocupou um
lugar de destaque nos movimentos de retomada da democracia. A virada
principal neste período é do reconhecimento da participação dos indivíduos
como parte fundamental da mudança e construção da sociedade. Assim,
cientes de seu papel e com apoio de psicólogos, os indivíduos começam a
reivindicar espaços para tomadas de decisão no plano político e condições
dignas de sobrevivência para suas comunidades.
Reflita
Observe o artigo 13º, do capítulo III, da Lei nº 4.119/1962, e reflita:
11
Atenção
A Psicologia já atuava nesses cenários, no entanto, neste momento, o
trabalho era majoritariamente de cunho voluntário.
Certamente, você já ouviu falar de Paulo Freire, mas você sabia que ele
influenciou também a Psicologia Comunitária? No campo da Educação,
com uma proposta política pedagógica de Educação Popular, incentivou a
democratização do conhecimento e o acesso. Estas discussões foram férteis
na década de 1960 e contribuíram para o embasamento desta Psicologia
que estamos estudando. Sua principal obra é o livro Pedagogia do Oprimido
(FREIRE,1987), do qual vale a pena a leitura.
Esses movimentos de redemocratização não aconteceram apenas na
educação e na Psicologia. As décadas de 1960 e 1970, em pleno Regime
Militar, foram férteis para a produção de conhecimento e discussões sobre
construir novas propostas para a população brasileira. Esses movimentos
resultaram em um turbilhão de acontecimentos que culminou, anos mais
tarde, na Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, que
possibilitou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990.
A Constituição propõe a garantia dos direitos fundamentais (saúde,
educação, moradia, entre outros) para exercício da cidadania e promover a
igualdade, além de ampliar os direitos dos trabalhadores, por meio da assis-
tência social. Só após esta abertura política, articulada com a Reforma Sanitária
e as Conferências de Saúde foi possível instituir o SUS, gratuito e universal.
Assim, essas mudanças políticas ofereceram condições para a ampliação da
atuação dos psicólogos, em especial dos psicólogos comunitários.
Assimile
A Constituição de 1988 foi viabilizada porque a população reconheceu
seu lugar ativo para reivindicar e possibilitar condições de vida para suas
comunidades (saúde, saneamento básico, moradia, educação, etc.). De
forma geral, a Psicologia e as ciências humanas tiveram um papel funda-
mental para que isso acontecesse.
12
Comunitária. Esses documentos são importantes por permitirem abertura
para que essa área seja possível, no contexto brasileiro, de ser discutida e
construída como campo de conhecimento e atuação.
Scaparo (2005) relata que oficialmente a atuação do psicólogo comuni-
tário começou na década de 1970, já inserida em currículos de Psicologia.
Esse foi um momento fértil de discussão e produção de conhecimento para a
Psicologia com interface da comunidade e, apesar dos inúmeros desafios da
ditadura, foram possíveis diversos espaços de debate e construção da área.
A criação da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso) é um
exemplo disso e um marco para revolucionar e fortalecer a Psicologia. Ela
foi criada como um dos encaminhamentos da 32ª Reunião da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em julho de 1980. Como as
discussões de Psicologia Comunitária destacam a importância do contexto
social, nada mais coerente do que reunir pessoas para discutir e produzir
conhecimento sobre o Brasil, mesmo que as reuniões da Associação Latino-
Americana de Psicologia Social (Alapso) tivessem espaço para psicólogos
sociais brasileiros (FERREIRA, 2014).
O principal nome na época é Silvia Lane, referência até hoje para o
movimento que ficou conhecido como Psicologia Social Comunitária (GOIS,
2008). Em seu livro Psicologia Social e Comunitária, Lane e Codo (1988)
problematizam a necessidade de ampliação do entendimento do sujeito para
além dos manuais de Psicologia – do individual para a criatividade e trans-
formação da sociedade.
Este cenário de abertura política e construção de novos saberes que foi
apresentado até o momento foi fértil para que os psicólogos ocupassem um
lugar na sociedade articulado com as estruturas do Estado.
Essa transformação só foi possível ao considerarmos a avaliação
bem-sucedida dos psicólogos em trabalhos com a comunidade na década
de 1970, somada a parceria dos conselhos e coletivos de psicólogos nos
movimentos para a ampliação da atuação profissional e produção de conhe-
cimento da Psicologia Comunitária, que fortaleceu a atuação do psicólogo
nestes espaços (CAMPOS, 1996).
Reflita
Você já parou para pensar porque a maioria dos concursos públicos
para psicólogos, seja para saúde, educação ou assistência social,
cobram o conhecimento de leis? Qual é a relação das leis e portarias
com o trabalho do psicólogo?
13
Nos anos seguintes, a Psicologia Comunitária constituiu-se como campo
de conhecimento e atuação profissional, com destaque para sua diversidade
epistemológica e metodologia.
Vocabulário
Epistemologia: estudo da produção do conhecimento, é uma área da
Filosofia.
Metodologia: estudo do método.
14
Exemplificando
O que é muito útil para trabalhar como psicólogo comunitário em uma
comunidade no interior do Mato Grosso, não necessariamente será útil
para trabalhar nos Estados Unidos ou na África.
Reflita
O Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom), da Universidade Federal
do Ceará, é um centro muito importante para a área. No mundo, há
muitos outros núcleos de Psicologia Comunitária relevantes, cada uma
com sua especificidade de saberes, práticas e histórias. Essas experi-
ências são muito válidas como aprendizado e oportunidade de usar a
criatividade. Você conhece outro grupo de Psicologia Comunitária? Na
sua faculdade tem algum que se dedica ao estudo do tema?
15
que Raquel, como psicóloga comunitária, trabalha a serviço da comunidade,
ajudando-a e deixando que as pessoas tomem as decisões para melhoria das
condições de suas vidas. Tranquilizou-se ao perceber que não é Raquel que
decidirá tudo sozinha, mas que ela – como moradora e estagiária – poderá
participar ativamente das ações que a Associação propuser e criar junto com
quem participa dela.
A jovem achou interessante que o surgimento desta profissão está
relacionado com o questionamento da ditadura no Brasil e que os psicó-
logos participaram da abertura democrática do país. Agora, ela reconhece
que temos influência de experiências fora do nosso país que inspiraram
a área, além de saber que tem pessoas criativas que ficaram famosas por
ajudarem o Brasil a ser um lugar melhor para cada cidadão, como Paulo
Freire e Silvia Lane.
Por tanto tempo acreditou que a Psicologia nada teve a ver com ela,
que até hoje era assunto de elite. Agora sabe que a Psicologia Comunitária
ampliou as possibilidades de atuação profissional para além dos muros dos
consultórios; isso não quer dizer que em todos os lugares já temos psicó-
logos atuando, mas sim que podemos atuar nos serviços de saúde, na assis-
tência social, no judiciário, nas empresas, etc. Tem cidades, por exemplo,
que ainda não têm psicólogo em hospitais, no entanto, é bom saber que este
profissional está cada vez mais presente em ONGs. Assim, podemos dizer
que a Psicologia ainda está em transformação e cada vez mais ampliando
suas possibilidades, buscando, de maneira ética, efetivar seu compromisso
social de contribuir para uma sociedade melhor.
O mais interessante de tudo é que Isabel entendeu que se as condi-
ções mínimas para sobrevivência das pessoas não estão garantidas e se a
Psicologia é pouco atuante no local, é papel de cada sujeito mudar esse
panorama. Agora sabe que a Constituição Cidadã possibilitou a organi-
zação da população em conselhos que criam e fiscalizam as políticas
públicas. Tanto esses conselhos quanto o trabalho da Psicologia se asseme-
lham ao seu objetivo de empoderamento da comunidade, ou seja, permitir
que as pessoas sejam ativas e propositivas nas soluções para seu bairro.
Para terminar, Raquel compreende que o trabalho é remunerado, isso porque
há alguns anos só era possível atuar nas comunidades de forma voluntária.
16
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
Murilo contou que seu trabalho é empoderar as mulheres sobre seu papel
ativo nas comunidades que vivem, ajudando-as a descobrirem seu lugar na
sociedade, na própria comunidade e dentro da sua própria casa. Com ativi-
dades coletivas, essas mulheres percebem que compartilham os mesmos
problemas com outras e, juntas, passam a criar estratégias e recursos para
mudarem suas realidades. Quando o assunto é sério, por exemplo, situações
de violência, o trabalho de Murilo é articulado com a Defensoria Pública e
17
outros dispositivos da Justiça. Além disso, o psicólogo comunitário contou
que em diversos bairros mais pobres já haviam iniciativas de psicólogos que
estavam trabalhando com essas mulheres, seja em serviços públicos de saúde
e assistência social, seja em organizações não governamentais e filantrópicas.
Assim, fizeram uma lista com as atividades coletivas para mulheres nestes
contextos, para divulgarem em seus consultórios e, quem sabe, chegar até
Márcia por meio de sua empregadora.
18
discussões nas décadas seguintes e construção dos saberes da Psicologia para
além do indivíduo.
19
Seção 2
Diálogo aberto
Isabel precisa concluir sua redação para o processo seletivo da Associação
e, para isso, terá de pesquisar sobre a comunidade e o trabalho de psicólogos.
Enquanto voltava de ônibus para sua casa, observou as cenas da sua
vizinhança; avistou Dona Clara saindo pelos fundos com Isabela, sua neta
de 11 anos, e Carlos entrando pela porta da frente, visivelmente alcooli-
zado. Em seguida, viu Rodrigo, com mochila e celular novos, depois de ter
ficado alguns dias fora para preocupação do seu irmão, Fred, seu colega de
sala. Isabel indagava: essas pessoas fazem parte da minha comunidade por
morarem no mesmo bairro que eu? O que é comunidade? Mas não sabia por
onde começar a escrever e tinha apenas duas semanas.
Isabel começou a questionar o que estava acontecendo com cada um de
seus vizinhos. As questões deles são as mesmas que as dela? Quais são os
pontos enfrentados por esses indivíduos? Há apontamentos comuns entre
eles? Com qual questão um psicólogo comunitário pode trabalhar com
essas pessoas?
Neste momento, Isabel recordou várias histórias que seus pais e seus
colegas contaram sobre esses vizinhos, com o intuito de refletir sobre elas.
Nesse sentido, enfrentavam questões muito sérias no dia a dia que afetavam
e interferiam nas suas relações com a comunidade.
Diante de todos esses questionamentos, precisava delimitar um tema
para escrever sua redação e, para isso, formulou uma pergunta geral: qual
é a atuação do psicólogo em questões que afetam os indivíduos e sua
inserção na comunidade? A partir daí, Isabel decidiu investir em dois
temas principais:
1. Violência doméstica, assunto muito falado em seu bairro e na televisão,
além de ser considerado algo que a Associação lidava diariamente.
2. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), visto que viu muitos
cartazes desse material na sede da Associação e, por ter várias ativi-
dades para essa faixa etária, pareceu importante destacar o documento.
Feito isso e já no computador da biblioteca, começou sua busca.
20
Não pode faltar
Vocabulário
Paradigma é um modelo ou exemplo para algo.
“Paradigma de direitos” pode ser entendido como o modelo de práticas
que tem como foco trabalhar a garantia de direitos dos cidadãos tanto
no que diz respeito a auxiliá-los no entendimento de que eles têm
direitos quanto na efetivação destes por meio de políticas públicas.
21
definida no paradigma de direitos. Vale ressaltar que comunidade, neste
contexto, refere-se a grupos de pessoas em uma condição passiva.
Exemplificando
Na prática, uma comunidade pode ser:
• Uma região que compartilha as mesmas condições sociais (sanea-
mento básico, segurança, acesso à saúde, educação, etc.) por
exemplo, a favela, como a Comunidade da Rocinha, localizada no
Rio de Janeiro.
Reflita
Você conhece algum psicólogo comunitário? Como ele tem traba-
lhado: em uma perspectiva de direitos ou assistencialista? Quais são as
práticas mais comuns?
22
A atuação profissional e o papel do psicólogo nas comunidades ainda
é novo e está em transformação e, com isso, diversos modos de inserção
deste profissional na comunidade ainda convivem. Em qualquer atuação
na comunidade, não podemos nos esquecer do respeito aos saberes desses
sujeitos (NEVES; GUAZZELI, 2014), algo que já teve um avanço muito
grande desde a década de 1970.
Inicialmente, eram desafios da Psicologia Comunitária a regulamentação
da profissão, a criação de campos de trabalho, a transformação do modelo
tradicional da Psicologia, além do desenvolvimento de práticas coletivas.
Neves e Guazelli (2014, p. 242) afirmam: “[...] compete, portanto, aos psicó-
logos(as) comunitários(as) trabalharem na construção de uma consciência
crítica, de uma identidade coletiva e individual mais autônoma e de uma
nova realidade social mais justa”.
Assimile
Os psicólogos têm diversas atuações nas comunidades, que envolvem
desde a efetivação das políticas públicas até a construção e criação destas.
Podemos pensar tanto o profissional que está “na ponta”, ou seja,
diretamente envolvido com a população, quanto os professores de
Psicologia e até mesmo os psicólogos em cargos de gestão, que são
responsáveis pela criação e efetivação dos direitos das comunidades a
partir do conhecimento da Psicologia.
23
Esse processo só foi possível pela profissionalização e regulamentação da
Psicologia – agora com cargos e funções determinados. Porém, como afirma
Scaparo e Guareschi (2007), esse trabalho era embasado pelas lutas e pelos
desejos da sociedade. Nesse contexto, os psicólogos precisaram aprender essa
nova forma de trabalhar efetivamente nas políticas públicas.
Atenção
As políticas públicas podem ser entendidas tanto como mecanismo de
dominação social quanto uma conquista pelas possiblidades e novas
participações políticas e sociais das classes dominadas. É como se, ao
garantir minimamente os direitos que a sociedade reivindicou pelo
movimento democrático, possibilitasse o status de controle e poder
de quem efetivou esses direitos enquanto políticas públicas. Com isso,
diminui a força deste coletivo composto por classes dominadas. Esse
mecanismo torna possível a conquista de reivindicações, mas fortalece
a dominação de quem está no poder, enfraquecendo as organizações
populares, que continuam sob dominação social.
24
e unidades básicas são diferentes, mesmo que dentro do mesmo campo,
por exemplo, saúde. Com isso, sobre as unidades básicas a autora afirma
que “essas novas formas de inserção pervertem a clínica tradicional e força
os psicólogos a adotarem uma postura mais compatível como a Psicologia
Comunitária” (SPINK, 2013, p. 49).
Saiba mais
O título profissional de Especialista em Psicologia foi instituído por
meio da Resolução nº 014/00, de 20 de dezembro de 2000, do Conselho
Federal de Psicologia. Nesse primeiro momento, a Psicologia Social
ainda não havia sido reconhecida como especialidade, pois isso ocorreu
apenas por meio da Resolução CFP Nº 005/2003, publicada com o
intuito de reconhecer a Psicologia Social como especialidade em Psico-
logia para a concessão e o registro do título de especialista.
25
situações de violência e interface com ECA. Como o psicólogo pode atuar
nessas questões?
26
No entanto, há a atuação do psicólogo em que o tema não está explí-
cito, mas, caso seja observada essa questão, é necessário estar atento. Como
exemplo, temos o caso relatado por Motta e Di Antoni (2009) do trabalho do
psicólogo na Associação Vila das Flores, que trabalha com pessoas em vulne-
rabilidade social. Nessa situação, é muito comum a vivência da violência de
diferentes formas para diversos grupos de pessoas. As autoras relatam que o
cotidiano de seu trabalho é composto por práticas grupais, visitas domici-
liares e visitas às escolas. Elas destacam a importância do atendimento multi-
profissional e articulado com a rede assistencial da cidade, principalmente
quando envolve o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
27
ampliando, por exemplo, para a articulação dos setores – saúde, justiça, assis-
tência social e escola.
Lembre-se
Todo o trabalho do Psicólogo Comunitário, nos mais diversos campos
de intervenção, deve ser realizado de forma multiprofissional e articu-
lada com outros setores da sociedade. O profissional não é responsável
sozinho pelas demandas!
28
um grupo sobre violência doméstica que está acontecendo em uma biblio-
teca da cidade.
Já sobre Fred e seu irmão Rodrigo, Isabel pensou que se os pais soubessem
o que está acontecendo, eles poderiam recorrer aos dispositivos da rede de
assistência social e da Justiça, pois, afinal, essa não era a primeira vez que
Rodrigo estava envolvido com tráfico de drogas. Para essas questões, sugeriu
em seu texto que os serviços conversassem e que, juntos com a escola e os
pais, pudessem pensar em estratégias para mudar essa realidade. Dessa
forma, Rodrigo poderia participar também dos grupos e das atividades
musicais da Associação.
Por fim, como comentário final, vale ressaltar que Isabel se inspirou
nessas pessoas, mas não colocou de forma alguma seus nomes no texto.
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
A Psicologia Comunitária poderia estar presente na vida de Roberta em
diversos espaços. Um deles poderia ser no CRAS de seu bairro, para traba-
lhar com Roberta sobre seu empoderamento para melhorar as condições de
seu bairro. Além disso, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), poderia
promover saúde e lidar com sua ideação suicida. Caso fosse necessário,
29
devido ao grau de comprometimento, ela poderia ser encaminhada para um
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Como falamos, comunidade está
além do espaço geográfico e, por isso, seria interessante que Roberta parti-
cipasse de algum grupo/coletivo sobre empoderamento de mulheres negras
e compartilhasse seu cotidiano. Sem contar que por ter ainda 17 anos o
trabalho dos psicólogos comunitários deve levar em conta o ECA.
a. O Psicólogo empresta seu saber para as comunidades, mas ele não participa
da construção das melhorias para as comunidades.
30
Prá ouvir blá, blá, blá em cada eleição
3.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da
proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-
-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liber-
dade e de dignidade (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE, 1990).
31
III. Dentre as questões que envolvem o trabalho do psicólogo comunitário em
interface com o ECA, podemos citar os adolescentes em conflito com a Lei, a
violência doméstica e o trabalho infantil.
32
Seção 3
Diálogo aberto
Nesta seção, daremos continuidade às aventuras de Isabel por sua
comunidade e pela vaga de estágio que está concorrendo na Associação
Criança Feliz, que pode ser caracterizada como uma instituição do Terceiro
Setor. Até o momento, com a ajuda de Raquel, psicóloga da Associação, Isabel
já entendeu um pouco sobre Psicologia Comunitária e as possibilidades de
atuação do profissional desta área.
Todo o trabalho que a jovem teve para ser aprovada no processo seletivo
trouxe bons resultados: ela finalmente desenvolverá atividades como estagi-
ária na Associação Criança Feliz. O pessoal deste estabelecimento ficou
tão satisfeito com sua redação, que ela tirou a nota mais alta e passou em
primeiro lugar. Vocês conseguem imaginar o quanto Isabela está feliz? Tão
contente que foi logo contar aos professores de sua escola, os quais comemo-
raram com a aluna, que está dando um grande passo para a construção de
sua vida e, consequentemente, para sua escolha profissional.
Diante de todo o envolvimento que Isabel tem tido com a Associação
Criança Feliz e com a escola, ela e os envolvidos tiveram uma grande ideia
em conjunto: a garota deveria apresentar suas atividades na Associação e
estimular os alunos a conhecerem um pouco mais da comunidade.
Nesse cenário, Isabel precisa explicar desde o início sobre o trabalho da
Associação. Enquanto ela refletia, outras interrogações apareciam: os alunos
sabem o que são essas associações, essas ONGs que temos nas comunidades?
Se sim, o que eles sabem sobre elas? Eles conhecem as formas de divisão
da sociedade? A partir disso, Isabel decidiu que deveria começar a explicar
sobre os setores da sociedade e, em seguida, aprofundar-se sobre o Terceiro
Setor. A jovem ficou em dúvida sobre os tipos de instituições que fazem parte
deste setor, uma vez que só tinha ouvido falar em ONGs.
Além disso, ela decidiu compartilhar com a turma o trabalho realizado
por Raquel como psicóloga na Associação Criança Feliz, visto que gostou
muito de saber mais sobre Psicologia, curso que Isabel tem muita vontade de
cursar quando concluir o ensino médio.
33
Por fim, a garota percebeu que não pode deixar de falar dos movimentos
sociais, pois eles têm bastante relação com a Associação e com os temas que
serão trabalhados. Mas como incluí-los na apresentação? Como explicar o
que são os movimentos sociais? Enfim, tudo precisa ficar organizado, pois os
professores convidaram muitas pessoas para assistir, inclusive Raquel. Nesse
contexto, que tal ajudar Isabel a destacar os conteúdos mais importantes para
o grande dia?
Exemplificando
O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política de Estado que se
mantém desde a Lei nº 8.080, de 1990. Já o Programa Mais Médicos
trata-se de um programa de governo que tem sido modificado desde
sua concepção, sendo a mais recente o término da parceria anterior
com o governo de Cuba.
34
chamados de profissionais liberais, quando não há nenhum outro vínculo
formal de trabalho com outro setor.
O Terceiro setor é composto pelas organizações privadas com finali-
dades públicas e sociais sem fins lucrativos (FISHER, 2005), abrangendo as
organizações da sociedade civil. A partir disso, repare que há uma mescla do
formato dos dois primeiros setores; do primeiro herda a finalidade pública e
social, enquanto do segundo, seu caráter privado.
Pesquise mais
Para entender as origens da sociedade civil, o Dicionário da Educação
Profissional em Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio,
da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), apresenta diversos verbetes
importantes para a formação.
Além disso, temos as páginas 1206-1211 do Dicionário de Política, de
Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino.
35
necessário ter um programa social de interesse público. Um ano após, em
23 de março de 1999, é publicada a Lei Federal nº 9.790, que “dispõe sobre a
qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público”, entre outros. Nessa
lei, institui-se a parceria público/privado e, com ela, a necessidade de um
certificado para ter acesso aos recursos públicos, os quais podem financiar
os projetos sociais.
Assimile
O Terceiro Setor envolve uma quantidade de organizações conhecidas
por suas siglas. As principais são:
36
com que o mercado assumisse esses interesses, criando dentro de suas empresas
organizações sociais ou destinando recursos para organizações que atuem em
áreas de interesse da companhia, com o objetivo de melhorar a sociedade e,
futuramente, o mercado. No entanto, Paiva e Yamamoto (2008) chamam a
atenção para a discussão sobre a transferência de responsabilidades do Estado
para essas organizações do Terceiro Setor. Para estes autores, isso gera um
efeito aparente de que as questões sociais estão sendo tratadas, no entanto, as
políticas públicas não necessariamente ficam garantidas dessa forma.
37
reconhecem a limitação em sua formação para este exercício. Vale lembrar
que o nosso foco não é a crítica aos modelos individuais de forma geral, mas
sim a importância de que os psicólogos conheçam e estejam engajados em
questões mais amplas, como políticas públicas. Os mesmos autores conti-
nuam as reflexões sobre o desafio da Psicologia nestes espaços e sua plura-
lidade de abordagens teóricas, enfatizando a necessidade de coerência para
atuação profissional (PAIVA; YAMAMOTO, 2010).
Reflita
Vamos refletir um pouco sobre os limites e as possibilidades da formação
para a prática profissional do psicólogo no Terceiro Setor.
38
o trabalho prioritário com grupos e a possibilidade de auxiliar na construção
de pensamento crítico individual e coletivo.
Utilizando como exemplo a experiência da Associação Lar Vila das
Flores, uma instituição que trabalha com pessoas em situação de vulnera-
bilidade social, as autoras propõem reflexões sobre os desafios do trabalho
em comunidade e apontam alguns caminhos para uma atividade efetiva no
Terceiro Setor (MOTTA; DI ANTONI, 2009). Dentre as atuações destacam
os grupos de trabalhos temáticos, as visitas domiciliares e as escolares, além
do trabalho multiprofissional e interdisciplinar na equipe, que extrapola,
sempre que necessário, para a rede socioassistencial do município (MOTTA;
DI ANTONI, 2009).
O principal desafio, segundo as autoras, é romper com o caráter ainda
assistencialista da organização, que acaba apelando muito mais para o senti-
mento de ajuda do que para a conquista de direitos.
Atenção
Fique atento quando ouvir falar de dispositivos da rede socioassistencial
ou da rede de saúde. Muitas vezes, estes serviços, apesar de terem um
caráter público e uma efetivação de direitos dos cidadãos, são adminis-
trados por organizações sociais do Terceiro Setor.
A relação do profissional com a instituição, nestes casos, é atraves-
sada pelas regras da organização privada e não apenas pela gestão
pública do serviço, ou seja, pelo Estado. Na prática, o desafio acaba
sendo continuar com o principal objetivo do dispositivo da rede, ou
seja, efetivar os direitos.
Movimentos sociais
No que se refere aos movimentos sociais, é possível perceber que há uma
relação muito direta destes com o trabalho do psicólogo em comunidade,
inclusive na atuação profissional em políticas públicas e no Terceiro Setor.
39
Nesse sentido, o que são movimentos sociais? Segundo Gohn (2000, p. 13):
40
dos projetos. Já os movimentos sociais que atuaram diretamente na construção
de políticas públicas, em geral, têm um caráter reivindicativo, conforme Gohn
(2011) discute em seu texto. O caráter propositivo das ONGs está aparente no
desenvolvimento de projetos estruturados a partir das reivindicações da socie-
dade civil ou da responsabilidade social propostos por empresas.
Um exemplo de movimento social de cunho reivindicativo é o movimento
pela Reforma Sanitária, organizado a partir da 8ª Conferência Nacional de
Saúde, quando representantes da área de saúde, junto com lideranças da
comunidade e a própria comunidade, debateram e reuniram ideias sobre
transformações necessárias e urgentes na área da saúde. Paim (2008) explica
que a Reforma Sanitária, que culminou na criação do SUS, só foi possível
pela organização da sociedade civil reivindicando o direito universal à saúde
junto com os movimentos pela democracia.
A partir do conteúdo apresentado, começa a ficar clara a relação entre
movimentos sociais e as transformações na sociedade, especialmente na
garantia de direitos e condições de vida para a população. A atuação dos
movimentos sociais interfere nos três setores: Estado, mercado e o Terceiro
Setor. De forma geral, fica atrelada aos três, mesmo que represente a sociedade
civil, que é diretamente representada pelo Terceiro Setor. Assim, podemos
perceber o quão complexa é a nossa vida cotidiana e comunitária, bem como
as diversas possibilidades de atuação no campo da Psicologia Comunitária,
conforme foi apresentado nesta unidade.
41
• No Segundo Setor estavam os locais que representam o mercado,
ou seja, as organizações privadas que visam lucro, como fábricas,
shopping, lojas e escritórios de profissionais autônomos.
• Por último, o Terceiro Setor que englobava as ONGs e as associa-
ções de bairro. Segundo a explicação de Isabel, se uma das
Unidades Básicas de Saúde fosse administrada por uma OSCIP,
ela também se enquadraria como Terceiro Setor.
A partir disso a jovem explicou o que são as organizações não governa-
mentais e sem fins lucrativos, diferenciando-as das OSCIP, as quais têm legis-
lação específica para funcionamento e parceria com financiamento público.
Além disso, explicou sobre as associações de moradores, as quais, por serem
organizações da sociedade civil, também entram como Terceiro Setor.
Isabel superou o desafio de representar os movimentos sociais contando
que estes não eram algo novo, mas sim que existiam desde a época colonial.
Enquanto refletia sobre isso, a jovem manuseava os bonecos na maquete, a fim
de dar a ideia de que estavam andando. Em seguida, apresentou um movimento
social que tinha como objetivo garantir o direito ao lazer e que trabalhava para
a construção dos parques e das praças. Nesse movimento haviam moradores de
várias idades, mas principalmente adolescentes que acreditavam que o acesso
à cultura e ao lazer poderia mudar os índices de violência dessa cidade fictícia.
Para terminar, Isabel representou Raquel com um dos bonecos da cidade
circulando por vários espaços, a fim de mostrar seu trabalho como psicó-
loga em uma ONG, no caso, a Associação Criança Feliz. Além disso, a jovem
destacou que esta atividade não deveria ser solitária nem fechada dentro de
sua sala na instituição.
Assim, anunciou a todos que prestaria o vestibular para o curso de
Psicologia, uma vez que estava em seus planos se tornar psicóloga comuni-
tária. Os professores e Raquel ficaram muitos felizes e alertaram Isabel que
ela teria um grande desafio, visto que esta área permanece em constante
transformação e necessita ainda de muita coerência na prática profissional.
Avançando na prática
42
diante do número de desempregados, que só aumentava. Suas atividades
principais consistem em oferecer grupos de apoio e organização das ofertas/
procura. Desde o início brasileiros foram seu público-alvo, no entanto, recen-
temente observou que alguns venezuelanos e haitianos também estavam
se cadastrando na ONG. Além dessas informações, vale ressaltar que seu
principal financiamento são doações da própria comunidade. Assim, preocu-
pada com essa mudança, Camila foi tentar entender como poderia atuar com
essa nova população e resolver a polêmica instalada sobre sua organização:
se só auxiliaria brasileiros para o mercado de trabalho ou se abriria para esse
novo cenário?
Resolução da situação-problema
Camila identificou que o contexto atual na Venezuela e no Haiti tem feito
com que eles venham ao Brasil em busca de melhores condições de vida.
Preocupada com a polêmica entre os doadores da ONG, estudou que nossa legis-
lação reconhece o imigrante como sujeito de direitos, ou seja, ela não poderia
excluí-los de suas atividades. Camila percebeu que por serem culturas diferentes
da sua, precisaria conhecê-las a fim de ofertar atividades coerentes e respeitar
seus costumes. Além disso, reconheceu que não trabalharia sozinha, uma vez
que seria necessário realizar reuniões com outros setores da sociedade e ampliar
sua forma de financiamento, sensibilizando a comunidade para a situação dessa
população de imigrantes refugiados. Sendo assim, convocou o setor público,
representado pelas escolas e assistência social, para garantir, além de emprego,
condições de permanência, e as empresas da cidade, representadas pela gestão
e área de responsabilidade social, a fim de discutir esse novo cenário nacional.
Além disso, convidou os representantes dos movimentos sociais sobre imigração
e refugiados, uma vez que eles estavam reivindicando os direitos dessa população.
Em suma, a ONG de Camila não trabalhou sozinha e isso foi uma oportunidade
para que suas atividades e possibilidades de atuação fossem ampliadas.
1.
O contexto político brasileiro da década de 1990 é um
dos fatores determinantes do surgimento de um ambiente
favorável a essa aproximação entre organizações de
diferentes setores. A redemocratização do país foi conso-
lidada, ampliando os espaços sociais para o exercício
da cidadania e para formas organizadas de participação
(FISCHER, 2005, p. 6).
43
Sobre os diferentes setores da sociedade, escolha a alternativa correta:
2. Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores
sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas
e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a
partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios
e disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma
identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta identidade
decorre da força do princípio da solidariedade é construída a partir da base referencial de
valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo (GOHN, 2000, p. 13).
44
articulações contemporâneas entre psicologia e comunidade, é relevante considerar o
conceito de comunidade e as construções protagonizadas pela psicologia neste espaço
(SCARPARO; GUARESCHI, p. 102, 2007).
d. O psicólogo comunitário não atua no mercado, visto que este visa o lucro e
aquele é voluntário.
45
Referências
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que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Brasília, DF, 2011. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12435.htm. Acesso em: 16 mai. 2019.
BRASIL. Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre os cursos de formação em psico-
logia e regulamenta a profissão de psicólogo. Brasília, DF, 1962. Disponível em: http://www.
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BRASIL. Lei nº 9.637, de 15 maio 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como
organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos
e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras
providências. Brasília, DF, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9637.htm. Acesso em: 21 maio 2019.
BRASIL. Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999. Dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas
de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse
Público, institui e disciplina o Termo de Parceria, e dá outras providências. Brasília, DF, 1999.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9790.htm. Acesso em: 21 maio 2019.
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SPINK, M. J. P. Psicologia social e saúde: prática, saberes e sentidos. 9. ed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2013.
Unidade 2
Jeferson Carlos Bordignon
Convite ao estudo
Nesta unidade, conheceremos os métodos de pesquisa de campo atuais
para a inserção na comunidade, assim como os critérios éticos envolvidos
neste processo e na elaboração de documentos psicológicos, como laudos e
relatórios. Além disso, compreenderemos qual é o papel da linguagem nas
relações entre as pessoas e a consequente construção e transformação da
cultura a partir dela. Finalmente, vamos nos debruçar sobre um problema,
infelizmente, muito comum nas comunidades brasileiras: a violência. Como
ela se manifesta, quais são suas razões de existir e de que maneira nós,
psicólogos, podemos atuar no enfrentamento à violência e na promoção de
espaços mais saudáveis e pacíficos.
Ao final da unidade, espera-se que o estudante desenvolva competên-
cias que o tornem capaz de atuar, de forma ética, em pesquisa, avaliação e
intervenção no campo da Psicologia Comunitária, além de ser capaz de atuar
em pesquisa de forma crítica e ética, bem como no exercício da prevenção e
intervenção psicológicas.
Complexo, não? Sim, e muito! Para tornar este conteúdo mais próximo
da realidade de atuação do psicólogo comunitário, apresentaremos a história
de Fabiana, uma estudante de psicologia, assim como você.
Fabiana está cursando o sétimo semestre de psicologia e recebeu por
e-mail uma proposta de sua universidade para atuar como estagiária em
um Projeto de Extensão Universitária de Psicologia Comunitária. Nesse
contexto, a jovem se inscreve no processo seletivo e consegue entrar para o
grupo que desenvolverá o projeto.
Na primeira reunião com a equipe, Luana, a professora responsável
pelo projeto, informa que o primeiro passo para sua implementação será
um levantamento das necessidades da comunidade Campo Verde, na qual
será desenvolvido o projeto. Para isso, Fabiana e os outros estagiários de sua
equipe deverão fazer uma pesquisa de campo na comunidade, levantando as
principais necessidades a serem trabalhadas pelo projeto, além de sugerirem
possíveis caminhos para trabalharem com as necessidades encontradas no
local. O resultado final deste trabalho será um projeto de intervenção na
comunidade, que será desenvolvido no contexto da extensão universitária.
Fabiana e seus colegas deverão apresentar os resultados de sua inserção
na comunidade por meio de um relatório, mas tanto Fabiana quanto seus
colegas não têm ideia de como farão isso.
Assim, Fabiana começa a refletir: “Como deverei adentrar na comuni-
dade? Que postura devo assumir? O que devo observar e como devo relatar?”.
Dessa forma, ela se dá conta que tem diante de si um grande desafio que, uma
vez superado, contribuirá grandemente com sua formação.
Bons estudos!
Seção 1
Diálogo aberto
Uma situação nova e desafiadora quase sempre provoca ansiedade. Afinal,
não sabemos muito o que esperar, o que encontraremos e como nos sairemos
diante dessa situação. Este é o caso da Fabiana, que assumiu para si a missão
de se inserir na comunidade do Campo Verde, fazer um levantamento de
necessidades para, posteriormente, elaborar um projeto de intervenção (no
contexto de extensão universitária).
Fabiana está com muitas dúvidas sobre como deve se inserir na comuni-
dade, que postura adotar, o que deve observar e como deve relatar o que
vivenciou. Para isso, Luana, sua professora e orientadora, recomenda que
ela conheça as modalidades de pesquisa de campo da psicologia, assim
como as resoluções do Conselho Federal de psicologia, relativas à ética e à
elaboração de documentos.
São estes os conteúdos com os quais tomaremos contato nesta primeira
seção da segunda unidade. Primeiramente, compreenderemos as metodo-
logias de pesquisa da psicologia, com foco na modalidade denominada
“pesquisa de campo”, que envolve uma grande diversidade de categorias de
pesquisa. Além disso, apresentaremos algumas dessas categorias e refleti-
remos, junto com Fabiana, sobre qual é o modelo de pesquisa mais adequado
à sua tarefa de levantamento de necessidades da comunidade Campo Verde.
Na sequência, conheceremos o Código de Ética de Psicologia e outras
resoluções do Conselho Federal de Psicologia, órgão que regulariza nossa
profissão, em especial, no que diz respeito à postura ética que o profissional
deve adotar, além das diretrizes que deve acatar ao redigir documentos
oriundos da prática psicológica.
Fabiana não vê a hora de conhecer todos estes conteúdos e, assim, sentir-se
mais segura e preparada para a atuação na comunidade. As indicações de Luana,
sua professora, lançaram uma luz sobre, pelo menos, por onde Fabiana deveria
começar. E você, caro estudante, preparado para entrar em contato com os
conteúdos que vão auxiliá-lo a tornar-se um psicólogo comunitário ético, crítico
e competente, contribuindo, assim, para a sua formação enquanto profissional?
53
Não pode faltar
Assimile
Observe que a definição de um objeto de estudo determina o que uma
disciplina científica estuda, mas também (e principalmente) determina
o que ela não estuda e que problemas ela não resolve. Reconhecer a
amplitude e os limites de um campo do conhecimento científico é
fundamental. Por exemplo: um engenheiro pode ter muitos conheci-
mentos relacionados ao seu campo de saber, mas nada saberá sobre
como fazer uma cirurgia, conhecimento este limitado aos médicos (que
dominam os conhecimentos da medicina). Este tipo de divisa é o que
garante ao conhecimento científico a sua especificidade e objetividade.
54
Além do objeto de estudo, uma ciência deve ter um corpo teórico e concei-
tual, que são as explicações sobre os fenômenos que estuda. Este elemento é
denominado teoria. E tão importante quanto o objeto de estudo e a teoria,
a ciência apresenta um método de construção de conhecimento. Método
significa “caminho”. Dessa forma, para um conhecimento ser reconhecido
como científico, ele deve seguir um determinado caminho que vai, essen-
cialmente, da leitura de um recorte da realidade (o objeto de estudo) a partir
das teorias (explicações), formulação de hipóteses, teste e análise dessas
hipóteses e posterior validação ou rejeição destas. Se uma hipótese é compro-
vada, pode vir a compor o conjunto de explicações (teoria) de uma determi-
nada ciência. Se não, deve ser mais bem analisada para identificação de suas
falhas ou simplesmente rejeitada em futuros estudos (ARANHA; MARTINS,
2009; MARX; HILLIX, 1999).
Até aqui, parece que a ciência é bem organizada, certo? E é essa a intenção.
Um conhecimento científico deve dar respostas acuradas sobre os problemas
que estuda e, para isso, este conhecimento deve ser rigoroso, sistemático e
objetivo, ou seja, por meio de procedimentos controlados (método), deve
estabelecer leis, relações e explicações de maneira clara, a partir de uma
linguagem (terminologia) objetiva, a fim de que não haja dúvida sobre o que
está sendo postulado (ARANHA; MARTINS, 2009).
Estes critérios de cientificidade (caráter do que é científico) continuam
válidos até hoje, principalmente nas ciências da natureza e em áreas da
psicologia que apresentam uma interface com estas ciências. Na época em
que Wundt desenvolveu os seus estudos, um conhecimento, para ser cientí-
fico, deveria necessariamente obedecer aos mesmos critérios das ciências
da natureza. Era o modelo de ciência dominante e o mais respeitado. Dessa
forma, Wundt determina que o objeto da psicologia seria a experiência
imediata e o método para estudá-la seria o experimental. Foi a partir dessa
definição de método e objeto de estudo que a psicologia se tornou possível
como ciência (TORRES, 2016).
Reflita
Você, durante sua graduação, está tendo contato com várias teorias e
métodos próprios da ciência psicológica.
A partir destes conhecimentos, reflita: é possível determinar qual é o
objeto de estudo da psicologia? Se sim, qual seria? Haveria mais de um
objeto de estudo? Se sim, quais poderiam ser?
Qual é o seu posicionamento pessoal sobre este assunto, levando em
consideração o que você já sabe sobre a psicologia?
55
A psicologia, entretanto, durante o seu desenvolvimento enquanto
campo específico do saber científico, foi congregando contribuições das mais
diversas áreas, desde as mais biológicas às mais filosóficas, antropológicas
e sociais. Essa multiplicidade de saberes dos quais a psicologia é composta
permite considerá-la um saber híbrido (FERREIRA, 2014).
Cabe lembrar, ainda, que apesar de o fato destacado no surgimento da
psicologia ser o seu aspecto experimental, era interesse de Wundt desen-
volver também uma “psicologia dos povos”, projeto que levou a cabo em
extensa obra, mas que ficou relegado em segundo plano quando se conta a
história da psicologia (BERNARDES, 1998).
Em outras palavras, é desde a fundação da psicologia enquanto ciência
que há uma preocupação em estudar, conhecer, explicar e formular técnicas
de trabalho para além da psicologia individual, englobando também os
grupos, a sociedade e a cultura.
Assim como Wundt, outros grandes nomes da psicologia, como Freud,
concordam que toda a psicologia, em certo ponto, é psicologia social. Isso
se deve ao fato de que o ser humano é um ser social: nasce, cresce e torna-se
humano em sociedade. Ignorar o aspecto social do ser humano seria ignorar,
portanto, o próprio ser humano. Freud também é um exemplo de estudioso
que produziu sobre a psicologia individual e a social, mas os seus textos,
considerados “sociais”, foram, até recentemente, relegados a um segundo
plano em sua obra (LANE, 1984; PICHON-RIVIÉRE, 2005).
56
teoria, o comportamento humano é função tanto das características pessoais
quanto do contexto em que a pessoa se insere. Resultado, portanto, da soma
do indivíduo e do meio. Esse ponto de vista colaborou para o desenvolvi-
mento das dinâmicas de grupo e pesquisas sobre motivação social. Kurt Lewin
desloca, dessa forma, as pesquisas da psicologia do espaço dos laboratórios
para o contexto social (HOTHERSALL, 2006; MORAES, 2014).
É importante destacar também o período que ficou conhecido como
“crise” da Psicologia Social, em meados da década de 1970. Os psicólogos
latino-americanos perceberam que as psicologias produzidas nos Estados
Unidos e na Europa não necessariamente dariam conta de responder aos
problemas próprios de nossas realidades, oriundos principalmente da
profunda e desigual distribuição de renda nos países da América Latina
(BERNARDES, 1998; LANE, 1984).
Diante deste contexto, os psicólogos latino-americanos organizaram-se
em associações próprias que buscavam produzir conhecimentos e funda-
mentar práticas que respondessem diretamente aos problemas da realidade
em que viviam. No Brasil, o principal nome dessa psicologia contestadora
foi Silvia Lane que, junto com outros pesquisadores, lançou o icônico livro
“Psicologia Social: o homem em movimento”, afirmando a perspectiva de
uma Psicologia Social brasileira comprometida com os problemas do nosso
país (BERNARDES, 1998; LANE, 1984).
No que diz respeito especificamente à Psicologia Comunitária no
Brasil, destacam-se experiências em Minas Gerais, protagonizadas pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na década de 1970,
experiências cariocas e, posteriormente, na década de 1980, experiências
cearenses ligadas à Universidade Federal do Ceará (UFC). Tanto estas
quanto outras experiências registradas no país congregam em seus fazeres
uma pluralidade de teorias e técnicas psicológicas, sendo que a Psicologia
Social Comunitária é um campo em constante construção, definição e
redefinição (GONÇALVES; PORTUGAL, 2016).
As teorias e práticas sociais e comunitárias da psicologia vieram a
questionar a noção científica clássica e tradicional de sujeito e objeto. Em
outras palavras, em uma visão mais tradicional de ciência, há o sujeito da
pesquisa, que é aquele que a realiza, o pesquisador, que é quem estuda, e
o objeto, que é o que (ou quem) é estudado. Essa cisão entre observador e
observado, pesquisador e pesquisado, não se sustenta nas teorias e práticas
da Psicologia Social crítica, pois há a compreensão de que, uma vez que a
ciência é fenômeno humano, construída histórica e socialmente, e no caso da
Psicologia Social, cujo objeto de estudo é a pessoa no seu contexto social e
cultural, em suas relações com seu entorno, seu contexto, não é possível uma
57
objetividade nos moldes das ciências naturais. Foi necessário, dessa forma,
pensar novos modelos de ciência e cientificidade. Para isso, a Psicologia
Social e Comunitária lançará mão de teorias e métodos mais afins com os
seus objetivos (GUARESCHI, 2008).
Entre essas teorias e métodos, são apontados: a abordagem fenomenoló-
gica, que privilegia a experiência do sujeito tal qual vivida e relatada por ele;
a concepção histórico-social de ser humano, que compreende o sujeito como
produto e concomitante produtor da sociedade; a teoria das representações
sociais, que valoriza o cotidiano e o senso comum como potenciais constru-
tores de conhecimento; a perspectiva dos estudos culturais, que considera
a transdisciplinaridade na pesquisa; e contribuições da etnografia, que é o
caso, por exemplo, de um método de estudo de campo (GUARESCHI, 2008).
Tabela 1 – Principais abordagens utilizadas na pesquisa em Psicologia Social crítica
Abordagem Principais características
58
desafiadora de compreendê-lo até que ele torne familiar o que inicial-
mente era estranho. Ao mesmo tempo, o pesquisador deve estranhar aquilo
que parece familiar, pois só dessa maneira poderá questionar eventuais
fenômenos considerados “naturais”. Lembre-se de que em uma perspectiva
histórico-social os fenômenos não são compreendidos como naturais, eles
têm a sua “razão de ser”, o seu porquê, e essas respostas encontram-se nas
relações dos sujeitos daquele contexto ou daquela comunidade. Este compor-
tamento de ao mesmo tempo participar do contexto e manter uma postura
crítica e analítica sobre o que vivencia é como é caracterizada a técnica da
observação participante (NEVES, 2006).
Um dos principais instrumentos do pesquisador etnográfico é seu diário
de campo, no qual serão registrados os acontecimentos, as falas e os fatos
vivenciados pelo pesquisador, assim como suas impressões, seus pensa-
mentos e suas reflexões. O diário de campo pode vir a ser a principal fonte de
dados que o pesquisador futuramente analisará. E quanto tempo o pesqui-
sador permanece no campo? Não há uma resposta final, mas deve-se perma-
necer até que os objetivos da pesquisa sejam minimamente satisfeitos; um
ciclo completo com começo, meio e fim. Alguns autores apontam a necessi-
dade de permanecer pelo menos um ano no campo (NEVES, 2006).
No contexto da Psicologia Comunitária, uma modalidade de pesquisa
que pode contribuir muito é a pesquisa-ação, que pode ser considerada
como “um passo a mais” na etnografia, pois nela o pesquisador não somente
participa das atividades que costumeiramente ocorrem no contexto, como
também elabora, a partir de um levantamento junto aos participantes da
pesquisa, alguma ação a ser desenvolvida durante a pesquisa. Essa ação deve
ser necessariamente de cunho educativo e/ou político. Nessa modalidade de
pesquisa, os pesquisados assumem um papel ativo na construção da ação que
será pesquisada (NEVES, 2006).
Exemplificando
Pesquisa-ação na prática: imagine que você pesquisará uma escola
pública de ensino médio de um bairro periférico. Seu objetivo é compre-
ender as razões da evasão escolar. Ao adentrar no contexto como obser-
vador participante, você deverá perceber os modos como os adoles-
centes daquele contexto se relacionam, do que conversam entre si, como
conversam, do que eles não conversam, etc. O pesquisador poderá dirigir
perguntas aos participantes da pesquisa para esclarecer algum ponto.
Tudo o que o pesquisador vivenciar e julgar digno de nota, deverá regis-
trar no seu diário de campo. Em um determinado momento, os adoles-
centes participantes da pesquisa poderão decidir, junto com o pesqui-
59
sador, que seria interessante acontecer uma feira de profissões na escola,
pois seria uma maneira de motivar os alunos a estudarem. O pesquisador
passará a observar então, por exemplo, de que maneira aqueles jovens
se engajam na ação que apresentaram, se a escola e a família ajudam, se
há jovens que não se envolvem, etc. Os registros do diário de campo, as
entrevistas, as eventuais fotografias e vídeos, os cartazes, entre outros
aspectos, constituirão valioso material de análise para o pesquisador que
quer compreender o contexto no qual está inserido.
A ética e os documentos
Em 27 de agosto de 1962, o presidente João Goulart sancionou a Lei nº
4.119, que estabelece a psicologia como profissão no Brasil. Desde então
no Brasil é comemorado o dia 27 de agosto como o dia do psicólogo. Essa
lei estabelece, entre outras coisas, quais são as funções privativas do psicó-
logo, ou seja, as atividades que apenas esse profissional pode desenvolver. A
principal delas é a utilização de testes psicológicos (TORRES, 2016).
Em 1971, acontece em São Paulo o primeiro Encontro Nacional de Psicologia,
momento no qual são criados o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os
respectivos Conselhos Regionais (CRPs). Estes órgãos são responsáveis por
regularizar e fiscalizar a profissão no Brasil, emitindo os registros profissionais,
deliberando sobre as práticas profissionais e, eventualmente, julgando processos
éticos relacionados aos profissionais de psicologia. O primeiro Código de Ética
dos Profissionais de Psicologia foi divulgado em 1975, estabelecendo quais são as
diretrizes e os limites éticos para atuação desses profissionais (TORRES, 2016).
Além do Código de Ética, que regula de maneira ampla a atuação profis-
sional, o CFP publica, eventualmente, resoluções específicas sobre algum
aspecto da profissão, como é o caso da elaboração de documentos.
No que diz respeito à pesquisa, o Código de Ética regulamenta e garante
o sigilo dos participantes por meio do anonimato, a participação voluntária
atestada pelo consentimento livre e esclarecido, a proteção contra eventuais
riscos e o acesso aos resultados da pesquisa, caso seja o desejo dos partici-
pantes. Além disso, em linhas gerais, o Código de Ética estipula que o profis-
sional deverá pautar suas ações a partir da ética, da legislação e de conheci-
mentos cientificamente reconhecidos (CFP, 2005).
Sobre a elaboração de documentos escritos a partir do exercício profis-
sional, vigora o estabelecido pela Resolução nº 06/2019, que conceitua os
documentos psicológicos e os classifica em relatório psicológico, relatório
multiprofissional, atestado, declaração, laudo e parecer, fornecendo as
diretrizes gerais e específicas sobre a redação de cada um deles (CFP, 2019).
60
Segundo a Resolução nº 06/2019 do Conselho Federal de Psicologia (CFP,
2019), os documentos são classificados da seguinte forma:
Declaração: consiste em um documento escrito cuja finalidade é regis-
trar, de forma objetiva e sucinta, informações sobre a prestação de serviço
realizado ou em realização. As informações que constam em uma declaração
podem ser sobre tipo de acompanhamento psicológico, dias e horários de
realização, comparecimento, etc.
Atestado psicólogo: “consiste em um documento que certifica, com funda-
mento em um diagnóstico psicológico, uma determinada situação, estado ou
funcionamento psicológico, com a finalidade de afirmar as condições psicoló-
gicas de quem, por requerimento, o solicita”. Pode ser utilizado para justificar
faltas e afastamentos, bem como a aptidão ou não em realizar determinadas
atividades (manuseio de armas de fogo, direção de veículos automotores, etc).
Relatório psicológico: “consiste em um documento que, por meio de uma
exposição escrita, descritiva e circunstanciada, considera os condicionantes
históricos e sociais da pessoa, grupo ou instituição atendida, podendo também
ter caráter informativo. (...) É uma peça de natureza e valor técnico-científico,
devendo conter narrativa detalhada e didática, com precisão e harmonia. A
linguagem utilizada deve ser acessível e compreensível ao destinatário, respei-
tando os preceitos do Código de Ética Profissional do Psicólogo”.
Relatório multiprofissional: “é resultante da atuação da(o) psicóloga(o)
em contexto multiprofissional, podendo ser produzido em conjunto com
profissionais de outras áreas, preservando-se a autonomia e a ética profis-
sional dos envolvidos”.
Laudo psicológico: “é o resultado de um processo de avaliação psico-
lógica, com finalidade de subsidiar decisões relacionadas ao contexto em
que surgiu a demanda. Apresenta informações técnicas e científicas dos
fenômenos psicológicos, considerando os condicionantes históricos e sociais
da pessoa, grupo ou instituição atendida”.
Parecer psicológico: “é um pronunciamento por escrito, que tem como
finalidade apresentar uma análise técnica, respondendo a uma questão-pro-
blema do campo psicológico ou a documentos psicológicos questionados”.
Este documento geralmente é solicitado por profissionais de outras áreas,
que necessitam de esclarecimento sobre alguma questão psicológica, uma
“opinião profissional”. Por exemplo: um jornalista pode solicitar um parecer
psicológico sobre a situação da violência nas escolas, feminicídio, etc. Este
documento não é oriundo de avaliação psicológica.
61
Pesquise mais
Leia os artigos 11 e 13 da Resolução nº 06/2019 e imagine em qual contexto
ou situação se adequa cada uma das modalidades do documento.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução nº 6 de 29 de março de
2019. Institui regras para a elaboração de documentos escritos produ-
zidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução
CFP nº 15/1996, a Resolução CFP nº 07/2003 e a resolução CFP nº
04/2019. Brasília: CFP, 2019.
62
do Código de Ética Profissional do Psicólogo e sentiu-se muito mais segura
e orientada sobre quais posturas adotar no campo enquanto pesquisadora
e futura profissional. Além disso, ela ficou muito satisfeita ao conhecer as
diretrizes sobre a elaboração de documentos psicológicos. Agora ela sabe o
que escrever, onde, quando e como.
Sem nenhuma pendência mais neste sentido, Fabiana utiliza a linha
de ônibus 672 e parte em direção à comunidade Campo Verde para essa
aventura que tanto contribuirá para a sua formação pessoal e profissional.
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
Jorge e Everaldo se dirigiram a uma escola de ensino fundamental de
uma comunidade periférica, conversaram com a diretora sobre a proposta de
ouvir as crianças de uma das salas de aula para saber o que elas mais queriam
ou precisavam, uma vez que eles fariam o possível para realizar junto com o
grupo de seus amigos. Mantiveram-se totalmente abertos ao que as crianças
disseram e a sala toda da quarta série decidiu, com unanimidade, que eles
gostariam muito, naquele momento, de visitar o circo que estava na cidade,
pois nenhum deles jamais tinha visto um espetáculo circense. Relacionando
o conteúdo desta seção com este exemplo de situação-problema, a quais
conclusões chegamos?
63
Faça valer a pena
64
a. Não se pode dizer que a pesquisa etnográfica seja ciência, pois não mantém a
distância objetiva necessária do seu objeto de estudo.
65
Seção 2
Diálogo aberto
Há muitos pensadores que concordam com a frase que “o mais difícil
é enxergar o óbvio”. Afinal, estamos tão acostumados com certas situações
que nem paramos para refletir sobre elas. Como exemplo, temos a comuni-
cação; desde criança aprendemos a nos comunicar e até o fim da vida vamos
nos comunicar. No entanto, raros serão os momentos em que uma pessoa
se dedicará a refletir sobre o papel e a importância da comunicação, da
linguagem e das palavras em sua vida. E é exatamente sobre este assunto que
apresentaremos nesta seção.
Lembra-se da Fabiana? A estudante de psicologia que se dirigia para a
comunidade Campo Verde com o objetivo de conhecê-la e coletar informa-
ções para elaborar um projeto de intervenção?
Já munida de seu caderno que será o diário de campo e os conhecimentos
relativos às pesquisas etnográficas e de campo, Fabiana conheceu a escola
estadual de ensino fundamental Raul Seixas e, no local, conversou com
muitas pessoas: diretora, coordenador, professores, alunos, funcionários e
alguns pais dos alunos.
Fabiana, a partir de suas visitas à comunidade, viu, ouviu e escreveu muito
em seu diário de campo! Tanto que agora não sabe muito bem, entre todas as
informações de que dispõe, quais são relevantes, importantes, e quais não são.
Aflita, a jovem recorre novamente à sua professora orientadora, relatando
sua aflição em uma das reuniões da equipe. Dessa forma, a professora Luana
recomenda estudar sobre o papel da linguagem na construção da cultura e
das relações entre as pessoas na sociedade. Assim, ficará mais claro que tipo
de conteúdo Fabiana poderá utilizar para elaborar o seu projeto de inter-
venção na comunidade.
Preparado(a) para acompanhar a Fabiana nessa jornada e conhecer
a importância das palavras, da comunicação e da linguagem para o ser
humano, tanto em seu âmbito mais individual, enquanto sujeito, quanto em
seu âmbito social, coletivo, enquanto cultura?
Bons estudos!
66
Não pode faltar
As palavras e as pessoas
Há algum momento de nossa vida em sociedade em que podemos
prescindir das palavras? O que nos restaria, enquanto possibilidade de
existência, se não pudéssemos nos servir das palavras, da fala, da linguagem
e da comunicação?
Observe que até mesmo as pessoas com alguma limitação na audição ou
na fala utilizam-se de um sistema próprio para se comunicar. No caso do
Brasil, este sistema é a Libras (Língua Brasileira de Sinais).
Quanto tempo você consegue ficar sem falar? E sem ouvir uma palavra?
E sem ler?
A partir dos questionamentos anteriormente apresentados, percebemos
que praticamente estamos “imersos” nas palavras.
Se viajamos para um país cuja língua desconhecemos, a comunicação
fica muito prejudicada. Assim como quando escutamos pessoas de determi-
nado estrato social ou profissão, médicos, por exemplo, conversando entre si,
corremos o risco de não entendermos muito o que está sendo dito, visto que
eles dominam um vocabulário que é estranho ao nosso, referente aos objetos
e procedimentos próprios de sua profissão. Da mesma forma, certos grupos
acabam desenvolvendo um vocabulário repleto de gírias, justamente com o
objetivo de não serem compreendidos por quem não faz parte dos “seus”,
como os presidiários, por exemplo.
Em se tratando da profissão de psicologia, conhecer e reconhecer a
função, o valor e a natureza das palavras é fundamental, afinal, elas são um
dos nossos principais instrumentos de trabalho.
Para destacar a importância delas no que compete ao saber psicológico,
cabe lembrar que a psicoterapia, um dos ramos de atuação do psicólogo, pode
ser compreendida como “cura pela fala”. Essa foi, entre outras, uma das grandes
contribuições de Sigmund Freud para o tratamento dos males psíquicos. Em
seu texto Tratamento Psíquico (ou Anímico), de 1905, ele afirma:
67
afirmar que a magia das palavras pode eliminar os sintomas
patológicos, sobretudo aqueles que se baseiam justamente
nos estados psíquicos (FREUD, 1996, p. 279).
Reflita
O uso das palavras, por ser algo tão óbvio e cotidiano, muitas vezes passa
despercebido. Como exposto e de acordo com o que está aprendendo
durante sua formação, a sensibilidade e um posicionamento fundamen-
tado ao ouvir as palavras de outras pessoas é uma das competências
que o psicólogo deverá dominar na sua prática profissional.
Dito isto, experimente fazer o seguinte exercício: observe as propa-
gandas escritas em sites, jornais ou revistas, sobre determinado setor
ou serviço. Por exemplo: anúncios de instituições bancárias. Quais
são as palavras que mais comumente aparecem nestes anúncios? Há
diferença nas palavras de uma propaganda de um banco para outro?
Que sentimentos ou sensações as propagandas destes bancos passam
68
para você? Baseando-se apenas nas propagandas, você se sente atraído
a contratar os serviços de qual banco? Por quê? Quais são as palavras
destas propagandas que mais lhe impactaram, atraíram ou chamaram
sua atenção? Quais passaram uma boa impressão sobre o banco?
Alguma propaganda não passou uma boa impressão?
A ideia aqui é refletir sobre o impacto subjetivo que nos causam
as palavras, em que medida elas influenciam o nosso olhar, nossa
percepção sobre alguma coisa.
69
Aprendendo, nessa sequência, os substantivos, os verbos e os adjetivos,
a criança percebe que é possível organizar suas vivências, suas ações, com o
auxílio das palavras, assim como comunicar essas vivências para um outro,
visto que as palavras apresentam um significado compartilhado cultu-
ralmente. Conforme se desenvolve, o sujeito descobre a possibilidade de
organizar a si próprio com o auxílio da linguagem; a conceituar não apenas o
mundo ao seu redor, como a ele mesmo (MARTINS, 2011; MOLON, 2008).
Nas palavras de Martins (2011, p. 150), a linguagem:
Assimile
A perspectiva histórico-cultural compreende que todas as funções
psicológicas superiores (as funções psicológicas essencialmente
humanas), por advirem da cultura, do meio social, aparecem, primei-
ramente, “fora” do sujeito, isto é, em um primeiro momento, são inter-
pessoais, ou interpsicológicas. Posteriormente, por meio da relação
do sujeito com outras pessoas de seu contexto, o indivíduo passa a
internalizar a função psicológica, que inicialmente é externa. Em outras
palavras, o desenvolvimento das funções psicológicas superiores pode
ser compreendido como a internalização destas pelo sujeito por meio de
suas relações sociais. O desenvolvimento da linguagem é um exemplo
deste desenvolvimento: é inicialmente externa à criança, sendo aos
poucos por ela internalizada através de suas interações com as pessoas
“falantes” de seu contexto.
70
Massimi (2012) destaca que para uma tribo indígena brasileira (não identi-
ficada no texto) do século XVI, a palavra e o seu domínio assumiam grande
importância, sendo que quando os indígenas dessa comunidade encontravam
alguém que dominava a fala, a conversa, era testado por dias seguidos, sendo
assistido pela tribo que verificava até quando ele conseguiria falar sem se cansar.
Por outro lado, para os pregadores cristãos que aqui chegaram, como o
eminente Padre Vieira, a palavra durante a pregação assumia a função de
remédio para a salvação da alma, sendo o pregador um “médico das almas”,
pois utilizava o potencial doutrinário, persuasivo e evocativo das palavras
para ensinar aos homens o bem viver e o bem morrer de acordo com o ideário
cristão. Neste sentido, Massimi (2012) relaciona essa concepção, assumida
pelos pregadores, de palavra como “remédio” (pharmacon) da alma, com
uma herança da filosofia grega clássica, que já concebia que era possível curar
com as palavras.
Um terceiro aspecto explorado por Massimi (2012) é o uso da função
persuasiva da palavra nas primeiras peças teatrais realizadas no Brasil, organi-
zadas pelo Padre Anchieta, nas quais eram representadas histórias cristãs em
que o bem sempre triunfava sobre o mal. Essas peças eram adaptadas para
o contexto dos indígenas que vivem no Brasil e, muitas das vezes, a língua
na qual eram representadas era o tupi para, assim, potencializar sua função
evangelizadora (MASSIMI, 2012).
A partir do exposto, podemos verificar que é possível se utilizar das
funções das palavras com uma intencionalidade definida e que este uso irá
variar a depender da época, do contexto e da comunidade que o faz.
Neste sentido, podemos pensar na linguagem como um dispositivo que
produz subjetividade. E o que é isso? Se considerarmos que é através da
linguagem que se designa e organiza o mundo externo e interno, podemos
considerar que é através e por meio dela que as subjetividades são produ-
zidas e, eventualmente, transformadas. O psicólogo, uma vez que intervém
com sua escuta e seus posicionamentos, pode contribuir para reconfigurar
os sentidos que as pessoas atribuem a si mesmas. Há muitos exemplos
de práticas e pesquisas no campo da Psicologia Social e Comunitária que
ilustram o exposto. Uma delas é o relato de Neves (2008), que, por meio
de oficinas de psicodrama em uma comunidade, reconfigura o sentido de
cidadania de crianças e adolescentes do referido grupo.
Outros exemplos são as sugestões de Souza e Andrada (2013) de práticas
que o psicólogo pode vir a desenvolver a partir da psicologia histórico-cul-
tural em instituições. Além disso, pode-se citar trabalhos como o de Peters,
Cunha e Tizzei (2006), entre muitos outros.
71
Pesquise mais
Para tomar contato com um material que utilizou como método a
pesquisa-ação e o registro de informações em diário de campo e cuja
intervenção foi em uma comunidade, leia o artigo de Peters, Cunha e
Tizzei (2006) denominado Uma experiência em psicologia, educação e
comunidade. Observe em que sentido o relato da pesquisa se assemelha
à temática que viemos trabalhando, inclusive no sentido do trabalho do
psicólogo junto à comunidade ser promotor e potencializador de saúde
psíquica.
PETERS, S.; CUNHA, G. G.; TIZZEI, R. Uma experiência em psicologia,
educação e comunidade. Psicologia & Sociedade, v. 18, n. 3, 2006, p. 82-87.
Como você percebeu, há uma certa “magia” nas palavras, que pode nos
prender e nos libertar, a depender do nível de consciência de quem as usa e de
como se utilizam das palavras. Por meio da comunicação a pessoa se torna,
efetivamente, pessoa, e pode-se, inclusive, curar com as palavras, como visto
anteriormente. Outro aspecto importante da comunicação é que quando
voltamos para ela nossa atenção, percebemos que é possível promover uma
cultura de paz por meio do uso consciente das palavras. Um pesquisador
da psicologia que “mergulhou fundo” neste assunto foi Marshall Rosenberg,
criador da Comunicação Não Violenta (CNV). Influenciado por Carl Rogers
e concebendo o ser humano como essencialmente pacífico e compassivo,
Rosenberg postula que a CNV promove a compreensão, a empatia e o
respeito entre as pessoas (PICIRILLI; MACCAFANI, 2016).
E como colocar em prática a CNV? Para as autoras Picirilli e Maccafani
(2016, p. 190, grifos nossos) este é o caminho:
72
Exemplificando
Imagine que durante um debate em sala de aula, um colega disse algo que
não te agradou, por exemplo, relacionado a alguma característica sua.
Você observa este sentimento de desagrado, além de outros que podem
ter sido despertados, e reconhece a necessidade de que não gostaria de
ouvir estes tipos de comentários novamente. Assim, comunica o pedido
ao seu colega: “o seu comentário me desagradou, me senti ofendido e
irritado com o que você disse. Então, por favor, não faça mais isso.”
73
muitos locais da escola havia pichações, feitas pelos alunos, de palavras de
baixo calão, nas carteiras, nas mesas do refeitório, nos cantos de portas e,
principalmente, no banheiro. Ouvia essas palavras sendo ditas pelos alunos
e, até mesmo, por uma mãe, que se referia ao seu filho de maneira pejorativa.
Ouvindo diretora, coordenadora e alguns professores, estes relataram
que a escola tem vários problemas advindos dos alunos e ficaram muito
felizes em saber que, em breve, haveria um projeto de psicologia ali, pois
poderiam ajudar estes estudantes. Entretanto, observou que aqueles adultos
que reclamavam, entre outras coisas, da gritaria dos adolescentes, gritavam
também com estes.
Fabiana chegou a ter a impressão de que naquele ambiente, quando
alguém falava, havia sempre um tom de conflito. No entanto, isso não era
verdade, esse aspecto foi apenas o que mais se destacou. Desse modo, a jovem
conseguiu enxergar que, apesar de todas as dificuldades, era possível desen-
volver um espaço saudável de ressignificação de sentidos. Só não estava claro
ainda sobre qual sentido trabalharia. Até que teve uma súbita compreensão:
“é claro! O sentido mais patente dessa comunidade escolar é a violência: os
alunos se atacam entre si, os adultos atacam os adolescentes, e vice-versa, isso
precisa ser mais bem compreendido.”
Deste modo, fazendo uso da função designativa das palavras, Fabiana
organizou a experiência que vivenciou a partir da sua comunicação com o
campo de estudo, assim como das comunicações do próprio campo entre si,
como sendo “violentas”. Violência era um sentido que, no contexto da escola,
cabia muito bem.
Avançando na prática
Imagine que você visitará uma exposição de arte (inclusive, seria interes-
sante que, ao invés de imaginar apenas, você efetivamente vá a alguma).
Como está querendo desenvolver sua capacidade de aplicar o método
etnográfico, leva consigo um caderno de anotações (diário de campo), no
qual registra tudo o que acha significativo sobre aquela experiência: o que está
vendo, o que está sentindo, o que está pensando, etc. Ao final da exposição,
você escreve um pequeno texto, para além das suas anotações, relatando, de
maneira geral, como foi esta experiência.
74
Resolução da situação-problema
A questão a ser analisada é: que sentidos podem ser atribuídos à exposição
visitada? Como ela pode ser designada, significada? Estas perguntas só
podem ser respondidas a partir das anotações do diário de campo, pois é
nele que estarão os registros das informações relacionadas à experiência.
Neste sentido, a depender da exposição, pode ter sido monótona, revolucio-
nária, inovadora, criativa, etc. Estabelecendo as justificativas de cada adjetivo
atribuído à exposição, chega-se próximo a uma análise da experiência.
1. Vygotsky trabalha, portanto, com a ideia de que todas as conquistas que garantem
às pessoas sua condição de humanização resultam das complexas relações sociais
em que se inserem e das quais ativamente participam. Essas conquistas, por sua vez,
podem somar-se a tantas outras ou promover saltos qualitativos no modo como se
apropriam da realidade e estabelecem essas relações.
PORQUE
II. Os signos são produtos da ação do próprio ser humano e decorrem, portanto,
da história da humanidade.
75
linhas de desenvolvimento distintas e independentes, entrecruzando-se ao longo
do desenvolvimento, produzindo profundas transformações no comportamento
humano.”
76
Seção 3
Diálogo aberto
Nesta seção, abordaremos o trabalhoso tema da violência. Apesar de ser
um tema complicado, ao mesmo tempo ele é tão banalizado em nossa cultura
que, muitas vezes, passa despercebido.
A violência pode se manifestar de muitas formas. Para os objetivos deste
material, teremos como foco algumas formas de violência, especificamente
contra a mulher: a violência de gênero. Para tanto, conceituaremos o que é
violência e o que é gênero.
Além disso, refletiremos sobre as relações entre adolescência e violência,
além de pensar em quais possíveis caminhos e estratégias podemos assumir
enquanto psicólogos, para atuarmos em contextos e com sujeitos cujas
marcas da violência se fazem presentes.
Você se lembra da Fabiana? Ela passou a atuar na escola Raul Seixas, da
Comunidade Campo Verde, e construiu o seu diário de campo. A partir dessa
experiência visceral de inserção na comunidade e seleção de quais conteúdos
são mais urgentes para se trabalhar, Fabiana conclui que na comunidade do
Campo Verde há um problema muito recorrente: a violência.
A violência ali estava presente no modo como os alunos tratavam o
espaço da escola: com pichações e depredações do patrimônio. No modo
como tratavam a si próprios e ao estudo: depreciavam-se, ofendiam-se,
também depreciando e ofendendo os elementos escolares, entrando, muitas
vezes, em conflito entre si e com os professores e outros agentes da escola.
Por outro lado, Fabiana percebeu que os adultos da escola, via de regra,
também se dirigiam aos alunos de uma maneira depreciativa, gritando ou se
referindo a eles como “aborrescentes”.
Mas, como lidar com isso? Como compreender por que a violência é tão
presente neste contexto? E o que fazer para lidar com esta questão tão complexa?
Fabiana relata, aflita, as suas observações e seus questionamentos à profes-
sora Luana, sua orientadora, e a ela pede auxílio. A docente, já experiente
em contextos semelhantes àquele, ouve Fabiana, com um sorriso acolhedor,
e sugere que ela se aprofunde no tema da violência para, posteriormente,
elaborar um projeto de intervenção.
77
Lembre-se de que os objetivos de aprendizagem desta unidade são:
conhecer métodos de pesquisa e intervenção, bem como a conduta ética do
psicólogo em ações comunitárias e coletivas; ser capaz de atuar, de forma ética,
em pesquisa, avaliação e intervenção no campo da Psicologia Comunitária.
Dessa forma, está preparado(a) para acompanhar Fabiana nessa descoberta
de compreensão e fundamentação para realizar um trabalho significativo?
Bons estudos!
78
a mais “polêmica” e não totalmente aceita por muitos de seus seguidores
(MARX; HILLIX, 1999; LOUREIRO, 2014).
Além disso, a de morte é associada à agressividade, sendo tanto dirigida
aos outros quanto a si próprio. Freud postula que o “mal-estar” que a vida
em sociedade (civilizada) nos causa é decorrente da impossibilidade de
satisfazermos nossas pulsões em sua totalidade, sejam as pulsões eróticas
ou as agressivas. Disso decorrem as frustrações e/ou o sentimento de culpa
(BIRMAN, 2006; FREUD, 1930; GUILLOT, 2014).
Olhando para as formas mais atuais da violência na nossa sociedade,
como os massacres em escolas nos Estados Unidos e no Brasil, e as infra-
ções cometidas por adolescentes, Marin (2002) argumenta que é justamente
a falta de um aprendizado do manejo das próprias pulsões que faz com que os
jovens muitas das vezes lancem mão da violência para se protegerem enquanto
sujeitos, visto que são desamparados, não possuem limites ou referências de
como manejar os próprios desejos que são, no entendimento da autora, eles
mesmos “violentos”. A autora sustenta suas afirmações em achados empíricos
que mostram que, via de regra, jovens que cometeram atos violentos ficavam
muito tempo sozinhos, não tinham as referências parentais de como direcionar
suas pulsões e as descarregavam no mundo, no outro, de maneira violenta.
Reflita
Segundo Freud, as pulsões de vida e de morte nos constituem e estão
em constante conflito. Você consegue identificar situações em que
esteve movido(a) pela pulsão de vida? E pela pulsão de morte?
Conforme visto, é possível controlar as pulsões, destiná-las a fins úteis
ou produtivos. Quais são as suas estratégias para lidar com suas próprias
pulsões? O que faz para dominá-las (e para que elas não te dominem)?
79
Ela é intrínseca à história da civilização; por meio do uso da força, de
guerras ininterruptas (até hoje), de coerções, de torturas, de assassinatos, de
pilhagem e de escravidão que se escreveu e se escreve a história de nossa
espécie sobre este planeta. Isso não significa que não haja solução para
este problema, pois pode-se controlar a agressividade a nível individual,
impedindo, assim, que esta se manifeste em forma de violência. Os seres
humanos também desenvolveram mecanismos de controle coletivo da
violência, sendo considerado um deles o próprio Estado. É a este que, no
entendimento de estudiosos das sociedades como Thomas Hobbes e Max
Weber, cabe o uso legítimo da força bruta, da violência (DIÉGUEZ, 2014;
MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013).
Exemplificando
O melhor exemplo do uso legitimado da violência pelo Estado é a atuação
policial. As forças policiais, também conhecidas como “o braço armado do
Estado”, são autorizadas a utilizar armas, força física, opressão e coerção
para defender ou fazer valer as leis ou os interesses do Estado.
80
O termo “gênero” deixa de ser enxergado como um dado natural e biológico,
segundo o qual a genitália determinaria, necessariamente, que uma pessoa
fosse homem ou mulher, e passa a ser considerado como um dado cultural,
ou seja, nas sociedades há variadas formas de expressão da masculinidade
e feminilidade e estas dizem mais respeito ao contexto cultural na qual são
desenvolvidas do que a uma determinação meramente orgânica e fisiológica
(MACHADO; AMORIM; BARROS, 2013; CFP, 2012).
Mais recentemente, a partir da década de 1990, são as ideias da filósofa
Judith Butler que vão influenciar o debate sobre o gênero. Para esta autora, o
gênero é uma performance, ou seja, não há como ser definido previamente,
visto que será determinado de acordo com a atuação daquele que o vivencia.
Um exemplo utilizado por ela é a prática do travestismo e a drag queen que,
parodiando o gênero, o afirma pela sua negação, no caso: demonstra sua
feminilidade em um corpo masculino (FIGUEIREDO, 2018).
No que diz respeito especificamente à mulher, esta teve diversos papéis
no decorrer da história, sendo que as sociedades eram, inicialmente, matriar-
cais, ou seja, organizadas em torno da figura da mãe e da mulher, desconhe-
cia-se o pai em organizações sociais em que as mulheres gozavam de uma
maior liberdade sexual. É a partir do estabelecimento da monogamia que
se torna possível a ascensão do patriarcado, ou seja, uma sociedade que se
organiza em torno da figura do homem e do pai, este gozando de mais poder,
inclusive, sobre o corpo da mulher (ENGELS, 1884/2009).
No decorrer da história do ocidente, para ilustrar o papel conferido à
mulher, podemos citar a organização da sociedade grega, na qual as mulheres
não eram consideradas cidadãs, não podiam participar ativamente das
decisões políticas da cidade, ficando relegadas, enquanto casadas, ao interior
da casa cuidando dos afazeres domésticos. Outra categoria de mulheres
eram as hetairas, cortesãs de luxo que poderiam adquirir uma cultura mais
ilustrada e conviver com os homens, mas ainda em uma condição secundária
(ENGELS, 1884/2009).
Na Idade Média, com o advento do poder da Igreja Católica, às mulheres
pesava o fardo do pecado original, assim como eram os alvos mais frequentes
dos Tribunais do Santo Ofício que, por meio da Inquisição, julgaram e
condenaram por volta de cem mil pessoas à morte na fogueira (FREIRE;
SOBRINHO; CONCEIÇÃO, 2006).
Em terras brasileiras, foi somente em 1932 que as mulheres conse-
guiram o direito ao voto, ainda que restrito. Em 1946, a obrigatoriedade
do voto foi estendida às mulheres. Neste ínterim, foram sendo eleitas as
primeiras a ocuparem cargos públicos, mas, ainda hoje, elas são minoria na
81
política. Na Câmara dos Deputados, apenas 15% das vagas são femininas.
E dos 5570 municípios brasileiros, apenas 649 são governados por prefeitas
(MIGALHAS, 2018; CARVALHO, 2019).
E quando se trata da violência de gênero, sendo esta entendida como
violência cujo motivador é o gênero de quem a sofre, nosso país somente nos
últimos anos tomou medidas no sentido de tipificar as violências de gênero
enquanto crimes e estabelecer as penalidades a serem aplicadas. O exemplo
mais contundente é o caso de Maria da Penha:
Pesquise mais
Conheça o material elaborado em 2018 pela Comissão de Defesa dos
Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados intitulado “Mapa da
Violência Contra a Mulher”. Neste documento encontram-se as leis tipifi-
82
cando os crimes contra a mulher, assim como dados estatísticos e orien-
tações sobre procedimentos a serem adotados em caso de violência.
As páginas de 24 a 35 tratam sobre a violência doméstica e a criação da
Lei Maria da Penha.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Mapa da violência contra a mulher. Brasíla/
DF, 2018.
83
Assimile
O ciclo da violência de Walker (1979):
Tensão: conflitos vivenciados pelo casal.
Explosão: episódio de violência, agressão.
Lua de mel: pedidos de desculpas por parte do agressor, promessas de
mudanças, calma relativa por um tempo, até que recomeça a tensão.
Adolescentes: violentos?
A legislação que regula a infância e a adolescência no Brasil é o Estatuto
da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). De acordo
com essa legislação, a criança (compreendida até os 11 anos) e o adolescente
(entre 12 e 18 anos de idade) são concebidos como pessoas em desenvol-
vimento e cabe ao Estado e à sociedade, de maneira geral, providenciar as
garantias necessárias para que se desenvolvam. Segundo esta lei, a criança e
o adolescente têm direito à proteção contra castigo físico e tratamento cruel
ou degradante, sendo que aqueles que assim procederem devem ser encami-
nhados a tratamento psicológico e/ou psiquiátrico, bem como programas de
proteção à família. À criança ou adolescente que necessite, por algum motivo,
ser afastado do convívio familiar, é garantido o abrigamento em instituições
de acolhimento. A conduta do adolescente que esteja em conflito com a lei,
por se tratar de pessoa em desenvolvimento, é considerada ato infracional e
cabe à autoridade competente a aplicação de medidas socioeducativas. Entre
as medidas socioeducativas que podem ser aplicadas, estão: advertência,
obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade
assistida e internação, entre outras (BRASIL, 1990).
Do ponto de vista da psicologia, é curioso observar que a adolescência é, via
de regra, tratada como uma fase conflituosa e tempestuosa, repleta de conflitos
e sintomas negativos, e o psicólogo, os pais e os educadores não teriam muito
o que fazer quanto a isso, a não ser “esperar passar esta fase”. De um ponto de
vista crítico, essa concepção não ajuda o psicólogo a compreender o fenômeno
da adolescência, que é peculiar à nossa sociedade e, portanto, terá caracterís-
ticas próprias da nossa cultura (BORDIGNON, 2015).
As próprias pesquisas da área da psicologia entre 2003 e 2013 que inves-
tigaram a adolescência privilegiaram aspectos tempestuosos dessa etapa da
vida. Entre as palavras-chave dos artigos mais relacionadas com a temática
da adolescência estão: os transtornos mentais, com um destaque significa-
tivo para a depressão, o suicídio, o estresse e o uso de drogas, assim como
temáticas relacionadas à violência e ao risco: desamparo, pobreza, situação
de rua, transgressão, delinquência e abuso sexual (BORDIGNON, 2015).
84
Consideramos que, quando se adota uma concepção de adolescência
como etapa da vida essencialmente problemática, se está reproduzindo a
concepção do senso-comum relacionada à adolescência e esse não deveria
ser o posicionamento de quem se pretende abordar este assunto por um
ponto de vista científico.
Nesse sentido, o que se propõe enquanto estratégia profissional para lidar
com contextos em que a adolescência e uma possível violência estão presentes
é o oferecimento de um espaço em que o adolescente possa se expressar tal
como se apresente e possibilitar uma ressignificação possível de seus modos
de ser, pois, como observado por Bordignon e Souza (2011), os adolescentes
se relacionam ao mesmo tempo em que parecem se atacar, se digladiar. Em
síntese, muitas vezes o que se apresenta como violência pode ser uma maneira
própria dos adolescentes de se comunicarem e se relacionarem entre si.
85
maneira que quisessem, podendo conviver de maneira mais livre e conversar,
momentos estes em que Fabiana interviria com seu conhecimento e sua
prática psicológica. As produções gráficas resultantes daquela oficina fariam,
posteriormente, parte de uma mostra na escola.
Nesse contexto, a jovem ficou muito empolgada com sua ideia e começou
a escrever imediatamente o seu projeto de intervenção. Estava muito satisfeita
com a possibilidade de intervir positivamente em um contexto tão compli-
cado e ressignificar muitos sentidos e vivências relacionados à violência. O
que essas oficinas poderiam despertar de positivo nos alunos?
E você, caro aluno, o que faria no lugar de Fabiana? Qual estratégia utili-
zaria para intervir significativamente em um espaço demarcado pela violência?
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
Durante uma hora por dia, no período inicial de um mês, Juliano se
dirigiu à UBS e realizou suas minipalestras sobre violência doméstica e seus
riscos. Além disso, produziu e distribuiu panfletos com as informações que
dizia oralmente. Nos panfletos, além de dados sobre a violência domés-
tica, havia números para denúncia, indicações de como realizar boletins de
86
ocorrência, assim como ONGs da cidade que ofereciam suporte às mulheres
em situação de violência.
Sua experiência foi muito significativa; muitas mulheres pediram
panfletos para distribuírem para suas amigas, familiares e vizinhas, algumas
chegaram a se emocionar enquanto ouviam as palestras de Juliano e outras
tantas ficaram impressionadas quando conheciam o ciclo de violência domés-
tica e os danos à saúde que esta situação pode causar. Dessa forma, Juliano
percebeu, por meio destes sinais, que sua intervenção havia sido significa-
tiva e efetiva no sentido de conscientizar às mulheres daquela comunidade
quanto aos riscos e às consequências da violência doméstica, bem como aos
caminhos para quebrar o ciclo de violência e sair desta situação.
1. De acordo com Freud, há duas forças que estão em constante conflito em nosso
psiquismo. Uma destas nos inclina para a criatividade, a saúde, o desenvolvimento,
enquanto a outra nos leva para estados mórbidos e faz com que permaneçamos
nestes estados.
87
c. Tanto o conceito de gênero quanto o de adolescência são úteis aos psicólogos,
independentemente de sua configuração.
3.
88
Referências
BORDIGNON, J. C.; SOUZA, V. L. T. O papel dos afetos nas relações escolares de adolescentes.
Perspectivas em Psicologia, v.15, n.1, p. 132-144, 2011.
CARVALHO, I. S. Igualdade de gênero na política já! Estamos, afinal, em 2019. Folha de São
Paulo, fev. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ilona-szabo/2019/02/
igualdade-de-genero-na-politica-ja.shtml?loggedpaywall#. Acesso em: 13 maio 2019.
DICIO. Violência. In: Dicio, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/sobre.html. Acesso em: 12 maio 2019.
FIGUEIREDO, E. Desfazendo o gênero: a teoria queer de Judith Butler. Criação & Crítica, n. 20,
p. 40-55, 2018.
FREUD, S. [1930]. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 21, p. 81-171.
(Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).
FREUD, S. Tratamento psíquico (ou anímico). In: FREUD, S. Edição Standard das Obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII.
GUARESCHI, N. M. F. Pesquisa em Psicologia Social: de onde viemos e para onde vamos. In:
RIVERO, N. E. E. (org). Psicologia social: estratégias, políticas e implicações. Rio de Janeiro:
Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. p. 86-95.
MACHADO, I. J. R.; AMORIM, H.; BARROS, C. R. Sociologia Hoje. 1. ed. São Paulo: Ática, 2013.
MARX, M. H.; HILLIX, W. A. Sistemas e teorias em psicologia. São Paulo: Cultrix, 1999.
PETERS, S.; CUNHA, G. G.; TIZZEI, R. Uma experiência em psicologia, educação e comunidade.
Psicologia & Sociedade, v. 18, n. 3, 2006, p. 82-87.
WALKER, L. E. The battered woman. Nova York: Harper & Row, 1979.
Unidade 3
Marília Belfiore Palacio-Arruda
Políticas públicas
Convite ao estudo
No nosso dia a dia, observamos a presença do psicólogo em muitos
serviços públicos, especialmente no campo da assistência social, saúde
e saúde mental. Na Unidade 3, você terá a oportunidade de conhecer as
políticas públicas e os programas de saúde, com destaque para aqueles em
que se configura campo de atuação do psicólogo. Isso porque, para uma boa
atuação profissional, é preciso que você seja capaz de reconhecer a legislação
relacionada à atuação do psicólogo em políticas públicas na assistência social,
saúde e saúde mental.
Neste material, você acompanhará Ruth, uma psicóloga e conselheira
do Conselho Regional de Psicologia (CRP), que foi convidada para auxiliar
na organização da Semana de Psicologia da Faculdades Lux, onde os alunos
escolheram políticas públicas como tema. Ruth reuniu-se com as alunas
organizadoras e a professora do curso para construir as principais atividades
do evento, que é muito importante para os alunos do curso, pois amplia seus
conhecimentos sobre temas importantes da profissão. Assim como você, os
alunos estão no momento de aprenderem sobre as possibilidades de atuação
profissional da psicologia.
Na primeira seção, você verá que Ruth sugere que a abertura da Semana
trate de algo geral – como as políticas públicas e a atuação do psicólogo. Em
diálogo com os alunos, a psicóloga percebe que eles têm algumas dúvidas
sobre o que são políticas públicas e qual é a sua relação com a legislação.
Além disso, eles querem saber exemplos de atuação dos psicólogos em
políticas públicas, e Ruth apresenta dois: atenção básica e Organização Não
Governamental (ONG). A partir daí outras dúvidas surgem sobre como
trabalhar em equipe, como compartilhar prontuários e as informações dos
casos atendidos. A conversa entre Ruth, a professora e os alunos organizará
o conteúdo do evento.
Avançando para a segunda seção, Ruth destaca que não pode faltar uma
mesa sobre o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas
(CREPOP), devido à sua fundamental importância para a profissão. O grupo
reflete sobre como apresentar o CREPOP na semana e sobre quais informa-
ções destacar. Nesse sentido, eles optam por:
• Apresentar as diretrizes básicas para a atuação do psicólogo.
• Discutir um pouco sobre as referências técnicas para a atuação do
profissional em políticas públicas.
• Refletir sobre a construção de políticas públicas.
Por fim, já bastante envolvidos com a temática, os alunos e Ruth aceitam
a sugestão de uma colega, Valentina, aluna do último ano, de convidar um
psicólogo para apresentar, em algum momento do evento, o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS), pois naquele ano haverá concurso para a prefeitura
para atuar nos novos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e
no Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), que
estão construindo. Dessa forma, precisarão saber o que é CRAS e CREAS,
principalmente. Assim, encerraremos a Unidade 3 com a apresentação do
SUAS como uma política pública, sabendo que o psicólogo tem tido espaço
para construir sua atuação por meio do CREPOP.
Seção 1
Diálogo aberto
Caro aluno, você já sabe que o campo de atuação do psicólogo não é
restrito à clínica e muito provavelmente já percebeu que há uma diversi-
dade de serviços públicos em que o psicólogo pode exercer sua profissão.
Muitas vezes sabemos que esse profissional está presente em outros espaços,
especialmente públicos, mas não conhecemos muito bem sua função ali
nesses locais. Como psicólogos, é importante que saibamos do que se trata
essa atuação, uma vez que isso faz parte de nossa formação profissional. Além
disso, ajudaremos a sociedade a entender nossas práticas e participação nas
políticas públicas.
Como já apresentado, alguns alunos da Faculdades Lux estão muito
preocupados com a formação profissional e com a ampliação dos conhe-
cimentos nesse assunto, e convidaram Ruth, psicóloga e conselheira do
Conselho Regional de Psicologia (CRP), para auxiliar na organização de um
evento com o tema Políticas públicas e psicologia.
Muito feliz em ser convidada, e orgulhosa do senso crítico dos alunos,
Ruth sugere que a abertura deve tratar de algo geral – como a atuação do
psicólogo em políticas públicas – e, em diálogo com os alunos, percebe
que eles têm algumas dúvidas sobre o que são políticas públicas e legislação.
A maioria deles não compreende as diferenças entre as leis e portarias; seu
funcionamento, especialmente como algo em construção. Além disso, eles
querem saber exemplos de atuação dos psicólogos em políticas públicas.
Ruth apresenta dois exemplos (atenção básica e ONG), e, a partir daí, outras
dúvidas surgem, principalmente sobre como trabalhar em equipe, no que diz
respeito à garantia do sigilo e ao mesmo tempo registro em prontuários. A
conversa entre Ruth, professora e alunos organizará o conteúdo da seção, que
tal acompanhar esses momentos?
95
concordamos com a provocação de Peter Spink (2018) de que, apesar de
parecer óbvio o uso do termo, não podemos tê-lo como “dado” em nossa
sociedade atual. Precisamos entender sobre sua construção e, com isso,
precisaremos minimamente articular as políticas públicas com as leis, ou
seja, nossa legislação.
Nós, seres humanos, organizamo-nos em grupos e definimos nossas
normas e regras de convivência. Isso acontece em diferentes sociedades, em
diferentes momentos históricos. Dessa forma, criamos instituições sociais
(como família, escola, relação entre classes) e instituições políticas (Estado,
os três poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário, os tribunais), a fim de
definirmos essas regras de convivência e orientar nossas práticas sociais e
políticas (CHAUÍ, 2000).
De forma geral, as sociedades são livres para organização, e na democracia
(do grego, governo do povo) há a participação dos cidadãos para elabo-
ração das leis. Escolhemos nossos representantes para essa tarefa no Poder
Legislativo. Atualmente, a nossa Constituição (BRASIL, 1988) é conhecida
como Constituição Cidadã devido ao momento histórico de abertura para a
democracia no Brasil, possibilitando sua elaboração, com a participação ativa
da sociedade civil.
Os princípios básicos da constituição devem ser respeitados, sendo ela
soberana em nosso país, em comparação com qualquer lei ou portaria,
seja nacional, estadual ou municipal. Ela institui alguns direitos e garantias
fundamentais, no Título II (BRASIL, 1988). Especificamente o artigo 6º, do
Capítulo II, que trata dos direitos sociais, explicita: “são direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Continuando com a análise de Spink (2018), a linguagem do “sujeito de
direitos” foi muito importante para o movimento de abertura política para a
democracia no Brasil nos anos 1970 e 1980. Essa linguagem, que aparece na
elaboração da Constituição Cidadã, é da ordem da obrigatoriedade do fazer,
do “dever fazer”. A partir da década de 1990, começou a se falar da linguagem
das políticas públicas, termo antes pouco conhecido, que agora começa a ser
da ordem das prioridades e implementação. Em um primeiro momento, era
urgente e necessário garantir direitos fundamentais e básicos para o cidadão
brasileiro, e assim explicitar o “sujeito de direitos”. Com essa garantia dada
em Constituição, começou-se a utilizar a expressão políticas públicas, dando
visibilidade para a diversidade de políticas para a população, a serem imple-
mentadas conforme prioridades. Nesse sentido, o que chamamos hoje de
96
políticas públicas é algo possível de reformulação, a fim de permitir imple-
mentações (SPINK, 2018).
É nesse sentido que atrelamos as políticas com as formulações de leis
e portarias, que trazem coerências com esses direitos fundamentais (do
sujeito de direitos da Constituição) e devem considerar as reformulações
que garantam implementação das políticas, ou seja, não fazer uma política à
parte, mas estar conectada com a sociedade (SPINK, 2018).
Assimile
Leis e portarias
As leis são propostas pelo poder legislativo, já as portarias são documentos
jurídicos administrativos que orientam as leis, escritas pelos ministérios,
por exemplo, no âmbito federal. As portarias devem ser coerentes com as
leis em que estão embasadas, e estas, com a Constituição.
97
Nesse sentido, falamos em hierarquização dos serviços quando pensamos
na organização do SUS envolvendo os três níveis de atenção (primária,
secundária e terciária), ou seja, em termos brasileiros, a atenção básica, de
média e de alta complexidade. Assim, foi preciso criar políticas nacionais
específicas para esse tipo de organização.
Inspirada na Atenção Primária em Saúde, em destaque em decisões inter-
nacionais como a Declaração de Alma-Ata, em 1978, e também a Carta de
Ottawa, de 1986, que estimulam os cuidados primários em saúde, a Política
Nacional de Atenção Básica (PNAB) foi criada e ganhou força no país com
a criação do SUS. Essa política orientará as ações na atenção básica em todo
o território nacional. No entanto, como a regionalização prevê, os serviços
devem ser circunscritos a um território específico e reconhecer critérios
epidemiológicos e culturais. Assim, apesar de o nível federal dar orientações,
os estados e principalmente munícipios têm autonomia na organização dos
serviços, a depender da especificidade local.
A PNAB tem sido constantemente revisada desde sua proposta inicial,
tendo sua última versão publicada em 2017 (BRASIL, 2017), conforme Spink
(2018) já nos sinalizou sobre as mudanças nas políticas.
Saiba mais
Para saber mais das mudanças na PNAB, leia o artigo Mudanças na
Política Nacional de atenção básica: entre retrocessos e desafios, em
que os autores fazem um resgate e uma discussão sobre as transforma-
ções nessa política pública específica. Fique sempre atento às mudanças
das políticas, especialmente em publicações oficiais.
MELO, E. A. et al. Mudanças na Política Nacional de atenção básica: entre
retrocessos e desafios. Saúde em Debate, [s.l.], v. 42, p. 38-51, 2018.
Exemplificando
Situação que envolve a equipe da atenção básica e a do NASF
Sr. Fernando, idoso, é morador do território em que Carolina é agente
comunitária em saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF), vinculada à
98
Unidade Básica de Saúde (UBS). Toda semana ele frequentava o grupo de
diabetes da UBS, porém, com o adoecimento de sua esposa, parou de ir à
unidade, e apenas recebia visita de Carolina. Sua esposa faleceu de câncer,
e Fernando começou a pensar em suicídio. Essa foi uma das situações em
que a equipe da atenção básica (UBS e ESF) solicitou apoio à equipe do
NASF, que não estava diariamente envolvida com o sr. Fernando.
Consideremos as informações:
a. Entre os princípios do SUS, está a regionalização.
b. A atenção básica é composta de serviços em áreas geográficas e terri-
tórios específicos, com autonomia de sua organização devido a essas
especificidades.
c. Ainda, a atenção básica visa à articulação com mais de um serviço
e programa. É possível aí perceber a relação direta com o trabalho
em comunidade, valorizando os saberes e favorecendo o desenvolvi-
mento daqueles indivíduos e grupos.
Nesse sentido, as principais propostas de atuação na atuação básica são ativi-
dades de promoção e prevenção em saúde, que têm relação direta com o trabalho
do psicólogo. No entanto, esse trabalho não parece ser simples. Já tem sido
apontado que o desafio de trabalhar com prevenção ainda não aparece com clareza
nos trabalhos comunitários na atenção básica (BOARINI, 2008), perpetuando
uma lógica ainda individualizada e curativista, como ocorre em ambulatórios.
Assimile
Do que se trata a atenção básica?
A atenção básica é uma política da saúde, composta de programas e
serviços, a fim de garantir um cuidado com base territorial. Além disso,
não é apenas o posto de saúde, mas sim a articulação desse posto com os
demais programas nas comunidades nas quais as pessoas residem.
99
contribui muito para o questionamento: como deve ser o trabalho do psicó-
logo que atua em prevenção e promoção de saúde, em detrimento de práticas
mais curativistas, patologizantes e individualizantes?
A superação da lógica individual da psicologia ainda é desafio nos traba-
lhos do psicólogo em comunidade, e também na atenção básica. Souza e Santos
(2012) oferecem uma saída para o trabalho dos psicólogos neste contexto, com
base no movimento construcionista social, em especial sobre os trabalhos de
grupos. Além disso, os autores também argumentam a necessidade da superação
de algumas tradições em saúde, como modelo biomédico e lógica individualista.
Para Cintra e Bernardo (2017), é necessário o psicólogo trabalhar além
dos muros, ou seja, no território e em uma dimensão ético-política da saúde,
envolvendo a militância para as políticas públicas.
Pesquise mais
Existem muitos materiais interessantes sobre a atuação do psicólogo na
atenção básica, ou atenção primária, como muitas vezes é conhecida.
Se você ficou interessado, pesquise os artigos a seguir:
GOMES, K. de O. et al. Atenção Primária à Saúde – a “menina dos olhos” do
SUS: sobre as representações sociais dos protagonistas do Sistema Único
de Saúde. Ciência Saúde Coletiva, [s.l.], v. 16, supl. 1, p. 881-892, 2011.
RONZANI, T. M.; RODRIGUES, M. C. O psicólogo na atenção primária
à saúde: contribuições, desafios e redirecionamentos. Psicol. Cienc.
Prof., Brasília, DF, v. 26, n. 1, p. 132‑143, mar. 2006.
100
educativos; 6) promoção de redes de solidariedade; 7) treina-
mento de profissionais de saúde; 8) assessoria e planejamento
de ações de defesa dos direitos dos portadores; 9) integração
de equipes de trabalho. (RASERA; ISSA, 2007, p. 569)
Reflita
Você já percebeu que a atuação do psicólogo nas políticas públicas está em
construção, a depender da realidade que esse profissional compartilha com
sua equipe e com a comunidade. Isso vale para programas e serviços, seja
diretamente relacionados ao SUS ou ao trabalho nas ONGs, e terceiro setor.
O que você proporia como atuação do psicólogo em uma ONG para
atendimento às pessoas com câncer? Reflita sobre os limites e as possi-
bilidades da atuação do psicólogo nesse contexto e quais são os princi-
pais desafios para articulação com o SUS.
101
• Sigilo
Em seu artigo 9º, o Código de Ética do Psicólogo define que: “é dever
do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da
confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a
que tenha acesso no exercício profissional” (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2005, p. 13). Sigilo é resguardar o que o paciente confiou
em atendimento na sua relação terapêutica, o que, nesse sentido, também é
importante na confiança.
Dessa forma, é importante sempre estarmos atentos aos desafios, por
exemplo, sobre como cuidar do sigilo nos grupos terapêuticos na atenção
básica ou como agimos na visita domiciliar, em que o paciente não “escolhe”
o que dizer, já que a visita em sua casa, em seu ambiente, muitas vezes não
deixa tudo exposto. Em cada grupo ou visita, precisaremos manejar uma
situação diferente, partindo de um mesmo pressuposto de que faremos
combinados com aquelas pessoas.
– Nos grupos, podemos combinar sobre o sigilo e a privacidade
antes do início da atividade, por exemplo.
– Nas visitas, devemos respeitar que aquele é o espaço daquela
pessoa, deixando claro seus objetivos na visita e negociando o que
compartilhar com o restante da equipe, sempre prezando pelo
menor prejuízo para aquelas vidas, conforme o próprio Código de
Ética do Psicólogo nos orienta.
Além disso, o sigilo deve ser mantido no compartilhamento verbal em
reuniões de equipe e em reuniões com outros serviços que compõem a RAS
ou rede intersetorial, mas também nos registros em prontuários.
• Prontuários
Em geral, os prontuários em serviços de saúde e ONGs são comparti-
lhados pela equipe, com um prontuário único: é o prontuário do indivíduo
(ou da família, na Estratégia Saúde da Família). Assim, todos os profissionais
têm acesso a todas as informações que ali constam – sejam elas no prontuário
digital ou em papel. Dessa forma, o cuidado também deve ser em relação
ao que escrever para a equipe saber o que tem sido trabalhado. Assim você,
psicólogo, deve registrar suas práticas para documentação e evolução do
caso, mas sem quebrar o sigilo entre você e as pessoas que atende.
No entanto, há um debate desenvolvido por Dimenstein e Macedo
(2012) sobre a contribuição do psicólogo aos diversos saberes que
compõem o campo da saúde coletiva, sobre a tensão colocada pela possibi-
lidade de esse profissional ampliar suas práticas e discussões, o que ainda
102
não acontece no cotidiano de todos os serviços. Essa tensão sobre a atuação
do psicólogo em equipe pode ser transportada do campo da saúde coletiva
para outros campos do trabalho em comunidade, como educação, assis-
tência social e ONGs.
Assim, podemos notar que o trabalho do psicólogo não é simples,
especialmente por viver e trabalhar de forma coletiva, o que exige uma
postura de flexibilidade – para negociar as práticas e produzir o melhor para
a comunidade – e, ao mesmo tempo, seriedade – no cumprimento efetivo das
obrigações éticas.
Não foi nada simples a tarefa de Ruth e das alunas para organizarem a
Semana de Psicologia da Faculdade com o tema políticas públicas. A tarefa
de organizar os conteúdos importantes sobre o assunto é bem complexa, mas
com a introdução que Ruth deu, ajudou a abrir os caminhos, principalmente
sobre a relação das políticas públicas e legislação com a atuação do psicólogo.
• Portarias e leis
Em geral, os alunos tinham dúvidas sobre o motivo de a saúde, por
exemplo, precisar de leis, e também sobre a diferença de lei e portaria, já que,
muitas vezes, precisamos saber as duas. Ruth percebeu que precisaria explicar
que as portarias são atos administrativos, para orientar como cumprir as leis.
E que as leis devem respeitar a Constituição Federal, a maior de todas as leis
em nosso país.
• Práticas coerentes com as portarias, leis e Constituição
O interessante também foi que os alunos agora sabem que devemos estar
sempre atentos, pois suas práticas precisam estar coerentes tanto com as
portarias, leis, quanto com a Constituição. Estar coerente quer dizer respeitar,
mas também propor ativamente a construção e a reconstrução delas, já que
agora sabem que as políticas públicas estão sempre em movimento.
• Trabalho do psicólogo na atenção básica (SUS)
Agora já sabem das principais leis da saúde, a Lei nº 8.080/1990, do
Sistema Único de Saúde (SUS), e a Lei nº 8.142/1990, do controle social
em saúde, por exemplo, e, apesar de curiosos para conhecerem outros
documentos jurídicos importantes para a psicologia e políticas públicas,
gostaram de perceber que o trabalho do psicólogo na atenção básica (SUS)
está sendo construído pelos próprios psicólogos que atuam, com uma visão
ampliada do indivíduo, considerando o seu território.
103
• Atuação do psicólogo em ONGs
Aprofundaram também a atuação do psicólogo em ONGs, tendo maior
clareza de porque é importante que o psicólogo conheça as políticas públicas,
mesmo que sejam organizações do terceiro setor. Muitas vezes, uma ONG
tem como base financeira os incentivos e as parcerias governamentais, tendo,
assim, que atrelar suas práticas ao que orienta o Estado. No entanto, mais
do que ter de fazer por responsabilidade financeira, Ruth ajudou os alunos
a perceberem que o psicólogo tem o compromisso social com a sociedade e
que, por isso, precisa, em qualquer espaço profissional que estiver, considerar
as políticas públicas, coerentes com as leis e com a Constituição, como algo
a ser aperfeiçoado e garantido. Como as ONGs muitas vezes são os espaços
em que se trabalha com comunidades e população em vulnerabilidade social,
é necessário pensar e agir para a garantia de direitos, cabendo ao psicólogo
levar em conta essa questão em sua atuação nessas organizações.
• Articulação do conteúdo que será desenvolvido na Semana de
Psicologia
Por fim, a conversa com Ruth foi fundamental para os alunos articu-
larem o conteúdo que desenvolverão na Semana de Psicologia com as aulas
de ética, especialmente no que tange ao compartilhamento de informa-
ções dos atendimentos psicológicos com a equipe e a rede intersetorial que
estiver trabalhando em parceria com o profissional. Aprenderam que sigilo
e prontuário são direitos da população e que é preciso estar sempre atento
para avaliar caso a caso sobre o que compartilhar com outros profissionais,
sejam eles psicólogos ou não. Foi muito importante, pois aprenderam em
outras disciplinas que o psicólogo não deve estar sozinho, e isso trazia muitas
dúvidas sobre o detalhamento de informações que devem dar aos outros
profissionais. Agora os alunos têm uma base importante para poderem não
só organizar a programação do evento, mas também estarem preparados
para serem psicólogos críticos e éticos nas suas práticas.
Avançando na prática
104
semana de visita, deparou-se com a seguinte situação: José, um rapaz com
uma deficiência, em casa, isolado, sonolento, sem condições básicas de
higiene. A irmã informou que ele parou de se cuidar faz dois meses e que não
queria conversar com mais ninguém. Theo tentou alguma comunicação com
o rapaz, sem sucesso. A ACS falou que sempre foi assim, que o médico recei-
tava remédio, mas que ninguém gostava dele no centro de saúde pelo fato de
ele ser violento. Quais estratégias e cuidados Theo deve ter?
Resolução da situação-problema
Para acompanharmos Theo em sua nova situação, precisamos ter clareza
de que ele não deverá atuar sozinho, especialmente por estar no SUS, que
entende que trabalhamos de forma multiprofissional e interdisciplinar. Theo
precisará manejar a situação e os preconceitos da ACS, e provavelmente de
outros profissionais, e iniciar uma discussão de caso, argumentando sobre
a importância de trazê-lo para as atividades coletivas do centro de saúde.
Após diversas conversas, em reunião de equipe, em momentos com alguns
médicos e enfermeiros, ele finalmente consegue apoio dos profissionais
envolvidos para trazer José mais perto.
Assim, combinaram que José participaria do grupo de promoção de saúde,
do grupo de culinária, o que aceitou, e que a equipe toda realizaria uma visita a
ele. Ao final de um dos grupos, José relata seus conflitos com a irmã, especial-
mente por ela o infantilizar e não permitir que namore, além de solicitar ao
médico que ele tome muita medicação, mas pede sigilo. Theo precisará manejar
os seus relatos escritos no prontuário sobre os atendimentos, por envolverem
questões íntimas, e, ao mesmo tempo, precisará escolher o que compartilhar
com a equipe, pois o conflito relatado por José também precisará ser trabalho
em equipe, transformando, assim, as relações da ACS com a irmã de José, que
sempre foi de aliança. Além disso, precisará trabalhar com o médico sobre o
uso de medicamentos e, com o enfermeiro, sobre autocuidados.
1.
105
cuja realização requer a ação de muitos outros setores
sociais e econômicos, além do setor saúde. (DECLARAÇÃO
DE ALMA-ATA, 1978, [s.p.])
106
b. Ele orienta apenas quando os psicólogos precisam discutir o caso
com outros profissionais que não fazem parte de suas equipes, pois,
quando trabalham na mesma equipe, todos acabam sabendo os
mesmos detalhes da vida dos pacientes.
c. Ele é importante no compartilhamento de informações para a própria
equipe e em contato com outros profissionais da rede intersetorial, mesmo
se atuar em consultório privado. No entanto, esse artigo é apenas para
atendimentos individuais, em que a dupla está ciente das informações
reveladas pelo cliente, já que, em grupos, as informações são públicas.
d. O sigilo em atividades coletivas e grupais também deve ser garan-
tido pelo psicólogo no que diz respeito à sua atuação, sendo compar-
tilhado com sua equipe apenas o que for relevante para qualificar o
serviço prestado.
e. Os clientes sabem que, se precisam de serviços públicos, suas questões
estarão expostas para todos os profissionais. Dessa forma, esse artigo
é apenas um alerta para o psicólogo não publicar as informações nas
redes sociais.
107
Seção 2
Diálogo aberto
Sabemos que organizar um evento é muito trabalhoso. Principalmente
um evento sobre um conhecimento importante da área de estudo de que
estamos ainda nos aproximando. Por isso, é importante contar com outras
pessoas que nos ajudem a aprender algo novo. É assim que está sendo
construída a Semana de Psicologia das Faculdades Lux, com colaboração de
alunos, professores e de Ruth, uma ajudante externa.
Os organizadores do evento, junto com a Ruth, conselheira do Conselho
Regional de Psicologia (CRP), já definiram a programação, com os temas
das mesas e as atividades a serem realizadas. A semana terá início com uma
apresentação do que são políticas públicas, com a discussão de dois exemplos
da atuação do psicólogo – na atenção básica e em ONGs – conforme vimos
na seção anterior. Além disso, discutimos como a atuação em equipes multi-
profissionais precisa envolver o sigilo e o respeito ético, seja em reuniões
ou no compartilhamento do prontuário. Essa contextualização que fizemos
servirá de base para avançarmos no campo das políticas públicas.
Como o tema do evento é políticas públicas, dentro de um curso de psico-
logia, Ruth enfatizou que não poderia faltar uma mesa sobre o Centro de
Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), devido à
sua fundamental importância para a profissão. É interessante que os psicó-
logos conheçam e reconheçam a legislação relacionada à sua atuação em
políticas públicas, seja na saúde, na assistência social, ou em outras áreas.
Todos concordaram e pediram ajuda para Ruth, justamente porque alguns
alunos já tinham ouvido falar que o CRP trabalha nesse assunto. No entanto,
ainda havia muitas dúvidas, por exemplo: “O que é o CREPOP? Por que ele
surgiu? Com que temas ele trabalha?”. Um dos professores perguntou qual a
metodologia usada pelo CREPOP, o que gerou outra dúvida nos alunos: “O
CREPOP é uma pesquisa?”. Além disso, perguntaram se há uma orientação
apenas para os psicólogos e quaisquer políticas públicas, e começaram a
pensar nas diferenças em alguns contextos. Estavam curiosos para ouvir Ruth
contar, mas a conselheira falou que convidaria outras colegas para compor a
mesa, afinal, políticas públicas não se faz com uma pessoa só. Essa infor-
mação fez com que os alunos perguntassem sobre a construção das políticas
públicas, especificamente sobre a participação do psicólogo nesse processo.
108
De fato, Ruth estava contente com o engajamento dos alunos nas
perguntas, e também bastante disposta a contribuir com a organização do
evento e com a formação dos futuros psicólogos da faculdade Lux.
Vamos tirar nossas dúvidas com a Ruth?
Assimile
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais de
Psicologia (CRPs) são autarquias, ou seja, organizações de administração
pública indireta, com autonomia administrativa e financeira. Autarquias
têm leis específicas, desde sua criação. Isso significa que, mesmo sendo
de administração pública, têm bastante autonomia quanto à gestão do
seu patrimônio próprio.
Uma outra curiosidade quanto aos Conselhos Regionais de Psicologia é
que não há ainda um CRP por estado, apesar de todos estarem contem-
plados nas unidades locais. No total, até o momento, são 23 CRPs.
109
responsável por orientar e direcionar a atuação profissional dos psicólogos
no campo das políticas públicas.
No portal eletrônico do CREPOP é apresentado o seu objetivo: “promover
a qualificação da atuação profissional de psicólogas/os que atuam nas políticas
públicas” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, [s.d.]). Nesse sentido,
ele tem duas funções importantes e que devem ser destacadas.
• A primeira delas é a questão ética, que envolve a qualificação profis-
sional na garantia de direitos das pessoas atendidas, de um atendi-
mento adequado e resolutivo.
• A segunda é a função política, que está diretamente relacionada
com o compromisso social da psicologia com o campo das políticas
públicas e que busca, de forma ampliada, promover a transformação
da sociedade.
Reis e Guareshi (2010, p. 857), sobre a função e o direcionamento que o
CREPOP oferece, afirmam:
110
Pesquise mais
O documento Pesquisa Nacional sobre a atuação dos psicólogos em
direitos sexuais e direitos reprodutivos – levantamento dos marcos
lógicos-legais, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia, em 2018,
traz um exemplo dos marcos lógicos legais, importantes para o primeiro
circuito da metodologia do CREPOP.
Leia esse material interessante para conhecer um pouco mais sobre a
fase inicial e fundamental do CREPOP.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Centro de Referência
Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP). Pesquisa Nacional
sobre a atuação dos psicólogos em direitos sexuais e direitos repro-
dutivos – levantamento dos marcos lógicos-legais. [S.l.]: CFP/CREPOP,
[entre 2018 e 2019].
2. Segundo circuito
Já no segundo circuito são trabalhados os seguintes documentos: relatório
quantitativo – questionário on-line (Coordenação Nacional); relatórios com
dados locais das pesquisas (CREPOP/CRPs); relatório nacional dos dados
qualitativos – interno (GPME/UFRN); relatório nacional dos dados qualita-
tivos – versão publicação (GPME/UFRN); documento síntese, roteiro indica-
tivo, para a comissão ad hoc que elaborará o documento de referência. É interes-
sante apontar que o GPME/UFRN se refere ao Grupo de Pesquisas Marxismo
e Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que desde 2010
começou a ser a consultoria técnica do CREPOP. No período de 2007 a 2010,
a consultoria era responsabilidade do Centro de Estudos em Administração
Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas (CEAPG/ FGV).
Com a finalidade de aprimorar as atividades desenvolvidas pelo CREPOP,
tem-se realizado um planejamento, com atividade de monitoramento e
avalição, fundamental para acompanhar as atividades desde o início. Afinal,
o CREPOP articula ações em nível federal, mas também em níveis locais com
o CRPs, com muitos profissionais envolvidos.
3. Terceiro circuito
Por fim, como produto do terceiro circuito, está a publicação do
documento de referência para atuação dos psicólogos em políticas públicas,
específico para aquela temática. Esse produto acaba sendo o mais conhecido
por psicólogos, especialmente quando começa a trabalhar com uma ou outra
política pública específica. Vamos conhecer um pouco sobre os documentos,
produtos do CREPOP?
111
Referências técnicas para a atuação do psicólogo em políti-
cas públicas
De 2006 até 2018, foram 12 publicações específicas sobre referências técnicas
para atuação do psicólogo, todos de distribuição gratuita. Há outras ainda para
serem lançadas, de pesquisas que estão em andamento. Você conhece quais são
os documentos já publicados? Por ano de publicação, são os seguintes:
• 2007 – Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no
CRAS/SUAS.
• 2008 – Referências técnicas para a prática do(a) psicólogo(a) nos
programas de DST e AIDS; Saúde do trabalhador no âmbito da saúde
pública: referências para atuação do(a) psicólogo(a).
• 2010 – Referências técnicas para atuação do psicólogo em varas de
família; Referências técnicas para atuação de psicólogos no âmbito
das medidas socioeducativas em unidades de internação.
• 2012 – Referências técnicas para atuação das(os) psicólogas(os) no
Sistema Prisional; Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)
em programas de medidas socioeducativas em meio aberto.
• 2013 – Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em
políticas públicas sobre álcool e outras drogas; Referências técnicas
para atuação das(os) psicólogas(os) em questões relativas à terra;
Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em programas de
atenção a mulheres em situação de violência; Referências técnicas para
atuação de psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial;
Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) nos Centros de
Referência Especializados de Assistência Social – CREAS.
• 2017 – Relações raciais – Referências técnicas para atuação de
psicólogas(os).
• 2018 – Referências técnicas para atuação de psicólogas em políticas
públicas de mobilidade humana e trânsito.
De forma geral, esses documentos seguem o mesmo formato, bastante
condizente com a metodologia proposta. Todos buscam apresentar os
marcos legais das políticas públicas, como leis e portarias (conforme vimos
no exemplo do quadro Pesquise mais), e também traçar alguma discussão
sobre o campo e a importância de a psicologia estar preocupada com essas
questões. Além disso, os objetivos dos documentos estão claros e em destaque
em todos os materiais.
Há algumas diferenças no que tange à escolha do campo, pois:
112
• Por um lado, alguns desses documentos acabam sendo direcionados
para as práticas dos serviços específicos, que são marcos de políticas
maiores, como é possível observar, por exemplo, nas Referências técnicas
para atuação nos CAPS, CRAS, CREAS, Unidades de Internação
(CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2007; 2010; 2013b; 2013c).
• Por outro lado, há documentos que trabalham a atuação do profis-
sional de maneira transversal, e não restrita apenas a um serviço,
como podemos ver nos documentos sobre violência contra mulher,
ou sobre as questões raciais.
Isso não quer dizer que, mesmo aqueles que têm como foco serviços
específicos em seu título, desconsiderem as políticas de forma integral. Desde
o início, os marcos lógicos legais são destacados, trazendo, muitas vezes, a
complementariedade aos documentos.
Exemplificando
Articulação e complementariedade entre os documentos de referên-
cias técnicas publicados
Há pelo menos dois documentos diretamente relacionados ao Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), aqueles sobre CRAS (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2007) e CREAS (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2013). Justamente por ambos serem serviços específicos
do SUAS é que podemos afirmar sobre sua complementariedade. Afinal,
em um trabalho em rede – tão estimulado pela psicologia – é preciso
saber quais são as orientações para o psicólogo em cada um desses
serviços, a fim de não estarem “confundindo” sua atuação e prejudi-
cando o andamento em rede, atendendo demandas não específicas, por
exemplo, e, com isso, deixando de atender a outras que teriam maior
resolutividade naquela ponta da rede.
113
Os conselheiros e técnicos responsáveis pela metodologia do CREPOP
apontam um outro desafio: como produzir um documento para âmbito
nacional, e incluir as particularidades regionais e locais. Além de atenção
constante, uma saída para esse desafio é a presença da representação regional,
por meio dos CRPs (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012).
Por fim, no portal eletrônico do CREPOP, é possível acessar dois
documentos destinados aos gestores, tanto do campo da saúde quanto da
assistência, denominados, respectivamente, de: Como os psicólogos e as psicó-
logas podem contribuir para avançar o sistema único de assistência social
(SUAS) – informações para gestoras e gestores (CONSELHO FEDERAL DE
PSICOLOGIA, 2011) e Como a Psicologia pode contribuir para o avanço do
SUS: orientações para gestores (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA,
2013). Esses documentos reúnem marcos lógicos legais sobre SUS e SUAS,
bem como as referências técnicas específicas para a atuação de psicólogas(os)
nesses dois campos bastante complexos para a psicologia.
114
de forma interdisciplinar, afinal, apesar de a transformação social ser um
compromisso da psicologia, ela não deve estar sozinha. Na democracia, todos
nós, cidadãos, temos direito e dever de participação. Há uma expressão que
ficou bastante conhecida no momento da redemocratização do Brasil e que
pode nos ajudar a compreender a construção das políticas públicas: controle
social. O controle social surge no campo da saúde, quando, após aprovação
do SUS, com a Lei nº 8.080 (BRASIL, 1990), a sociedade exigiu uma garantia
de participação na gestão pública. No mesmo ano, é então efetivada a Lei nº
8.142 (BRASIL, 1990), em que os conselhos participativos são instituídos.
Localizados nas três esferas de poder, municipal, estadual e nacional, esses
conselhos são espaços de construção e fiscalização das políticas públicas.
Para compor esse colegiado, é necessário:
• Representação dos governos.
• Profissionais e prestadores de serviços.
• Representação da comunidade e dos usuários do SUS.
Atualmente, há mais de um conselho de direito atuante no Brasil, nas três
esferas, por exemplo: Conselho de Educação, Conselho do Idoso, Conselho
da Criança e Adolescente, Conselho de Assistência Social, e outros. Os CRPs
e o CFP têm assento nesses conselhos de direito e participação social, assim
como outros órgãos de classe, porém ainda não têm representação em todos
os conselhos municipais, por exemplo. O CFP tem pensando em várias estra-
tégias, além do CREPOP, para efetivar o controle social, junto com os CRPs.
Um exemplo interessante dessas estratégias foi apresentado por Torres e
Eckener (2016). Elas relatam que há um projeto do CRP do Rio Grande do
Sul que busca aproximação com as universidades. Em uma pesquisa realizada
nesse estado, identificaram-se potencialidades e desafios presentes na formação
atual em psicologia, especificamente no que diz respeitos às políticas públicas.
Segundo Torres e Eckener (2016), as categorias discutidas foram:
1. Presença da temática na formação.
2. Espaços de prática profissional.
3. Formação crítica.
4. Interdisciplinaridade.
5. Qualificação do corpo docente.
6. Atuação política.
7. Protagonismo estudantil.
115
As autoras discutem sobre a necessidade de trazermos mais questio-
namentos brasileiros, a fim de refletirmos sobre as práticas coletivas nas
políticas públicas, já que o principal desafio é como trabalhar com a inter-
disciplinaridade desde a formação, já que, na prática, é vivência cotidiana
(TORRES; ECKER, 2016).
Como sugestão para resolver essa questão, Torres e Eckner (2016)
estimulam a participação dos alunos em audiências públicas e em
movimentos sociais. Em uma linha de pensamento bastante parecida,
Reis e Guareschi (2010) acreditam que o estágio de psicologia no CRP e no
conselho municipal de saúde pode auxiliar no desenvolvimento de psicó-
logos com envolvimentos ético e político com as políticas públicas, conforme
apresentam as ações no artigo referenciado.
Reflita
Como você, aluno de psicologia e cidadão, tem participado da
construção de políticas públicas? Já conhece o CRP de sua região? Parti-
cipou de alguma atividade sobre a atuação do psicólogo, realizada pelo
CRP ou pelo CFP? Como essa atividade contribuiu para sua formação? E
para o desenvolvimento de sua comunidade e sociedade?
Neste momento é importante pensar na atuação e na nossa partici-
pação da construção de políticas públicas que envolvam a atuação do
psicólogo. Por exemplo, o que temos feito para expressar nossa análise,
seja concordando ou discordando, de algum marco legal municipal,
estadual ou federal?
116
já discutiram bastante com Ruth e com outros psicólogos para organizar a
mesa, estão ansiosos pelo início do evento, quando poderão divulgar o que
aprenderam sobre o CREPOP.
O CREPOP é muito importante para a psicologia e o nome mais conhe-
cido para o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas,
que tem em sua estrutura o CFP e as unidades locais (CRPs), que abrangem
todo o território nacional. Os alunos identificaram que ele existe desde 2006,
quando sua proposta foi aceita no Congresso Nacional de Psicologia, com o
objetivo de articular a atuação da psicologia em todas as políticas públicas,
considerando, é claro, suas especificidades.
Assim, nesse momento, a atuação do CREPOP foi reconhecida no âmbito
de pesquisa, como metodologia específica e clara, dividida em três fases,
que foram citadas na seção. Como acompanhamento dessas atividades de
pesquisa, os conselheiros atuantes no CREPOP recebem, desde o início,
consultoria. Até 2010, essa consultoria era responsabilidade da Fundação
Getúlio Vargas e, dessa data em diante, ela passou a ser de responsabilidade
de um grupo de pesquisa da Universidade do Rio Grande do Norte, o Grupo
de Pesquisas Marxismo e Educação.
Há diversos produtos escritos e publicados ao longo das três fases,
chamadas de circuitos pelo CREPOP. Os mais conhecidos acabam sendo os
documentos finais denominados Referência técnica. Esses documentos são as
orientações para psicólogos em sua atuação na prática e já foram produzidos
sobre diversos temas, como: saúde, assistência social e questões raciais. O
último lançado até o momento foi Referências técnicas para atuação de psicó-
logas(os) em políticas públicas de mobilidade humana e trânsito. No entanto,
esses documentos não são os únicos produtos da pesquisa do CREPOP. Há
também aqueles documentos iniciais das pesquisas, como o Marco lógico
legal, que são publicados mesmo sem todos os circuitos/fases da pesquisa do
CREPOP terem sido finalizados. A respeito da produção em andamento, há
a pesquisa sobre a atuação do psicólogo com idosos, com uma recente publi-
cação do marco lógico legal, no portal do CREPOP.
Em suma, os organizadores estão ansiosos para a palestra acontecer,
especialmente porque querem estimular a reflexão de que os psicólogos,
alunos de psicologia e qualquer cidadão devem fazer parte da construção
das políticas públicas, além, é claro, de reforçar a importância do conheci-
mento sobre o controle social, ferramenta para participação da sociedade
nesse processo.
117
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
Gabriela começou bem sua tarefa de se capacitar para o exercício profis-
sional ao estudar sobre saúde mental, sobre a abordagem teórica escolhida
e ao retomar o Código de Ética. Outros documentos que são fundamentais
para a atuação de Gabriela, nesta e em outras demandas que vier a receber,
são as referências técnicas para a atuação do psicólogo, produzidas pelo
CREPOP, do Sistema Conselhos.
Na situação apresentada, Gabriela tem uma demanda que exigirá conhe-
cimentos transversais, que servirão como orientadores para suas práticas. Ela
não poderá considerar apenas o documento Referências técnicas para atuação
de psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, precisará articular
e complementar as orientações com outros já produzidos, como: Saúde
do trabalhador no âmbito da saúde pública: referências para atuação do(a)
psicólogo(a), Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em políticas
públicas sobre álcool e outras drogas, além dos documentos Referências
técnicas para atuação de psicólogas(os) em programas de atenção à mulheres
em situação de violência e Relações raciais – referências técnicas para atuação
de psicólogas(os). Além disso, para conversar com a psicóloga do CRAS que
atendeu a pessoa acolhida anteriormente, precisará conhecer o documento
Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS, a fim
de trabalhar em rede. É muito importante que Gabriela conheça todos esses
documentos e trabalhe de forma articulada com todas essas orientações.
118
Faça valer a pena
119
a. Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/
SUAS (2007); Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo
no Conselho Regional de Psicologia (2012); Referências técnicas
para atuação do(a) psicólogo em Organizações Não Governamen-
tais (2007).
b. Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/
SUAS (2007); Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em
programas de atenção a mulheres em situação de violência (2013);
Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CAPS –
Centro de Atenção Psicossocial (2013).
c. Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo no Conselho
Regional de Psicologia (2012); Referências técnicas para atuação de
psicólogas(os) no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial (2013);
Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) nos Centros de
Referências Especializado de Assistências Social – CREAS (2013).
d. Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CAPS – Centro
de Atenção Psicossocial (2013); Referências técnicas para atuação de
psicólogas(os) em multinacionais (2017); Referências técnicas para
atuação de psicólogas(os); Referências técnicas para atuação do(a)
psicólogo em Organizações Não Governamentais (2007).
e. Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/
SUAS (2007); Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo em
Organizações Não Governamentais (2007); Referências técnicas para
a prática do(a) psicólogo(a) em clínicas particulares (2010).
120
d. O Sistema Conselhos de Psicologia tem assento nos conselhos de
direito, nesse lugar, faz seu papel de escolher e controlar os governantes.
e. O CREPOP elabora documentos orientativos para a atuação dos
psicólogos(as) nas diversas políticas públicas, saúde, educação, assis-
tência social, por exemplo.
121
Seção 3
Diálogo aberto
Nesta seção, continuaremos acompanhando o evento sobre psicologia e
políticas públicas, da Faculdades Lux. A última mesa, denominada Psicologia
e o SUAS, foi sugestão de Valentina, aluna do último ano, que já está definindo
em qual área deseja atuar como psicóloga. Sonhando com o concurso público
da prefeitura, que haverá no mesmo período de sua formatura, Valentina
propôs que um psicólogo que atue no Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) fosse convidado para a última parte do evento.
Ela relatou que ouve muito falar em SUS, Sistema Único de Saúde, no
cotidiano, na televisão, em notícias de internet e também na faculdade. No
entanto, percebe que ainda pouco se fala do SUAS, até mesmo durante o curso
de psicologia. Com o intuito de chamar a atenção dos colegas, professores
e profissionais para isso, argumentou que a assistência social também é um
direito e uma política pública importante, mas que pouco tem sido explorada.
Dessa forma, quer entender um pouco mais a história do SUAS, especial-
mente sobre sua construção e sobre como ele acontece na prática profissional.
Ela entendeu, com base na seção passada e com a ajuda de Ruth – a conse-
lheira do Conselho Regional de Psicologia (CRP) –, que o SUAS é uma política
pública e que o psicólogo tem tido espaço para construir sua atuação por meio
do CREPOP, então pensa que isso pode animar os colegas a irem para essa área.
Além das dúvidas sobre o que ele é, pois esse conteúdo será cobrado na
prova do concurso da prefeitura, também quer saber o que são os Centros
de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência
Especializada em Assistência Social (CREAS), já que, segundo o edital,
as vagas para psicólogos são para esses dois tipos de serviços. Os candi-
datos precisam definir, antes da prova, à qual vaga desses serviços desejam
concorrer, e ela não sabe a diferença entre eles nem suas similaridades.
Valentina acredita que é importante que ela e os colegas saibam as
diferenças entre os serviços e, como eles compõem o mesmo sistema, qual é
o ponto de convergência entre eles, e ainda, se eles podem trabalhar de forma
articulada. Ouviu dizer que o trabalho deve ser intersetorial, mas ainda não
entendeu muito bem como isso ocorre na prática. Além disso, para confirmar
seu entendimento e tirar a dúvida que pode ser de outros colegas, acadêmicos
de psicologia, sugere que é interessante que o psicólogo convidado saiba contar
um pouco sobre o trabalho interdisciplinar e multiprofissional no SUAS. Já
122
ouviu que, se é um serviço da assistência social, deve ser feito apenas por assis-
tentes sociais, o que parece ser um equívoco fundamental para resolver.
Nesse contexto, Ruth, ainda bastante disponível, disse que teria uma
pessoa muito bacana para indicar para fazer parte da mesa: o psicólogo
Joaquim, que já foi, inclusive, gestor de um dos CREAS.
123
V - Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e
projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos
pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão.
(BRASIL, 2005, p. 32)
124
Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF). Para além da localização
geográfica, Nery (2018) aponta que o território é assim posto, considerando
trajetória de vida e o habitar daquela população.
A Proteção Social Especial diz respeito a demandas específicas, quando
já há uma situação de risco pessoal ou social instalada, e assim tendo seus
direitos violados. Ela tem como destino, por exemplo, pessoas que sofreram
algum tipo de violência, em situação de rua, no cumprimento de medidas
socioeducativas, trabalho infantil, entre outros. A Proteção Social Especial
tem os Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS)
como principal serviço para executar os programas para esta forma de
Proteção Social e pode ser dividida em média e alta complexidade.
• Média complexidade: os direitos foram violados, mas ainda há
vínculos estabelecidos com família ou comunidade. São exemplos de
atividades: orientação e apoio sociofamiliar; abordagem de rua (nos
munícipios, podem existir os centros de referência para a população
de rua – Centro POP); medidas socioeducativas em meio aberto,
como a Prestação de Serviços à Comunidade e Liberdade Assistida.
• Alta complexidade: visa garantir proteção integral, inclusive moradia
e alimentação, com serviços como Atendimento Integral Institucional;
Casa Lar; Casa de Passagem; Albergue; Família Substituta; Família
Acolhedora; e também as medidas socioeducativas restritivas e priva-
tivas de liberdade (Semiliberdade, Internação Provisória e Sentenciada).
Na prática, esses programas e serviços serão implementados e terão suas
ações executadas de maneira diferente em cada munícipio. Isso porque, se
falamos de descentralização e territorialização, haverá realidades brasileiras
muito diferentes. No entanto, foram definidos alguns critérios para a imple-
mentação dos serviços e distribuição de recursos que visam à garantia do
direito à assistência social da população, principalmente quando falamos de
Proteção Social Básica. São eles: porte populacional dos municípios, taxa de
vulnerabilidade e cruzamento de indicadores de cobertura (BRASIL, 2005).
Exemplificando
Não haverá exatamente a mesma quantidade de CRAS e CREAS nas
mesmas cidades, mesmo se o número de habitantes for igual. Se tivermos
duas cidades, de mesmo porte, mas com distribuições de renda diferentes,
o quantitativo de CRAS nos territórios/bairros poderá ser diferente.
Imaginemos que, em uma das cidades, a condição de pobreza está
apenas em um bairro, que está isolada, sem acesso da população
a outros direitos, como saúde e educação. Parece evidente que o
primeiro CRAS deverá existir apenas nesse bairro, já que os outros terri-
125
tórios estão mais bem organizados, nesses aspectos. Por outro lado, se
estivermos analisando uma cidade com um sério problema de renda e
desemprego, que culmina na cidade toda, deverá ser levado em conta
outros indicadores sociais para a escolha desse primeiro CRAS.
Já quando falamos de um CREAS, ele geralmente tem um caráter mais
regional e central, no sentido de que não há obrigatoriedade de um CREAS
por bairro, mas sim da garantia de acesso dessa população de forma geral.
Interdisciplinaridade
Essa diversidade de serviços, programas e atividades nos faz perceber a
complexidade do SUAS e a necessidade de um fazer coerente com as demandas
sociais existentes. Um erro muito comum, para quem desconhece a política e
o SUAS, é acreditar que o assistente social é o único profissional que compõe o
quadro de Recursos Humanos do SUAS. As normativas do SUAS, em especial
a Resolução do Conselho Nacional de Assistência Social n° 17 (BRASIL, 2011),
definem quais profissionais devem compor as equipes de Proteção Social Básica
e Especializada, obrigatoriamente e como sugestão. Além disso, a resolução
sugere as profissões que podem estar à frente da gestão.
Você já deve ter percebido que o psicólogo faz parte da composição
obrigatória das equipes, junto com os profissionais do serviço social. Nery
(2018) afirma que a participação da psicologia nesse processo é muito impor-
tante por dois principais motivos:
• Pela maior inserção profissional do psicólogo, com a ampliação das
práticas profissionais.
• Pela efetivação de uma construção coletiva no SUAS, considerando a
participação social, que está entre as diretrizes da política.
A autora também retoma o compromisso social da psicologia com a
transformação da sociedade, o que não se faz sozinho, sendo necessário um
saber compartilhado e interdisciplinar.
Assimile
Multiprofissional e interdisciplinar não são sinônimos. Veja:
• Multiprofissional refere-se à diversidade de profissões que
atuam na mesma situação. Isso não significa que atuam de
maneira compartilhada.
• Interdisciplinar, sim, refere-se a saberes que articulados podem
produzir uma melhor análise ou condução de uma situação.
Aqui, saberes não significa necessariamente profissão, podendo
126
ser área de conhecimento, como psicologia, sociologia, direito e
serviço social.
Reflita
Para aprofundarem um pouco mais sobre a construção de saberes da
Psicologia na Assistência Social, leia o artigo intitulado A psicologia na
assistência social: transitar, travessia que abordará, de forma crítica, a
participação da Psicologia neste cenário.
MOTTA, R. F.; SCARPARO, H. B. K. A psicologia na assistência social:
transitar, travessia. Psicologia & Sociedade, [s.l.], v. 25, n. 1, 2013.
Intersetorialidade
Por falar em uma atuação compartilhada, além dos saberes dentro da
própria equipe, devemos continuar essa reflexão para a articulação de saberes
também entre serviços e setores da sociedade. Chamamos essa articulação de
intersetorialidade e esse é um dos objetivos do SUAS, que deixa clara a atuação
de forma integrada com outras políticas públicas (BRASIL, 2005). Como
Romagnoli e Fadul (2018) nos alertam, essa intersetorialidade posta não é
como princípio, mas sim como método, a fim de evitar que a centralidade das
ações recaia sobre um ou outro serviço, ou um outro profissional, e isso não
efetive a transformação necessária para garantia dos direitos da população.
O material do CREPOP sobre SUAS, publicado pelo Conselho Federal de
Psicologia, aponta que um dos principais desafios é a articulação da rede socioa-
ssistencial e da rede intersetorial (2007). Especialmente sobre a atuação do psicó-
logo no SUAS, tema do documento citado, é fundamental o desenvolvimento
de ações conjuntas e complementares que considerem o indivíduo inteiro e não
fragmentado, e mais do que isso, inserido em um contexto social e familiar.
127
Lembre-se
O SUAS tem como suas diretrizes a centralidade da família e da comuni-
dade. Isso significa que mesmo quando estivermos falando de um
indivíduo, ele não deve estar descontextualizado de sua história e de
suas relações sociais e afetivas.
Reflita
Vamos refletir sobre as implicações práticas e desafios da intersetoria-
lidade? Apresentamos de forma clara o conteúdo da intersetorialidade,
atrelado às discussões do SUAS. Vimos até aqui que isso não significa
que apenas os profissionais do SUAS trabalharão de maneira interseto-
rial. Se esse é o método de trabalho – em rede – significa que não só o
SUAS deve participar.
Como então incentivar e garantir a participação dos setores da socie-
dade nas discussões e no trabalho em rede? Vamos refletir sobre o
porquê de a escolha desse conteúdo estar diretamente relacionada a
essa política. O que você compreende como um diferencial da política
de assistência social que pode promover e fomentar esse trabalho inter-
setorial? Qual será a relação da participação social, como exercício de
cidadania nesse processo de saberes articulados?
128
a descentralização e a intersetorialidade, a fim de efetivar os direitos sociais,
oferecer condições e qualidade de vida, além de resolver, de maneira prática,
os problemas das populações.
129
assistentes sociais. Achou interessante que agora sabe diferenciar multi-
profissional de interdisciplinar, e percebeu que valoriza práticas da psico-
logia multiprofissional (com outros profissionais de diferentes formações)
e também a interdisciplinaridade, que é a articulação das disciplinas, ou
seja, dos saberes, para juntos produzirem um novo conhecimento, como a
resolução de uma demanda do serviço.
Por fim, Valentina percebeu que quer mesmo atuar como psicóloga nas
políticas públicas, pois em qualquer uma delas será necessário trabalhar em
rede, com outros setores além da assistência social, como judiciário, saúde
e educação. Se ela atuasse na saúde, também teria de trabalhar de forma
articulada com a assistência social, com o judiciário, com a educação, com a
habitação, a depender da situação em que estiver atendendo.
Avançando na prática
Célio, idoso de 70 anos, mora em um bairro periférico com sua filha Gisele
e dois netos. A renda da casa era apenas da filha, um dos netos está na escola
e o outro evadiu, devido a seguidas repetências. O neto que evadiu a escola
começou a fazer uso de drogas, alternava períodos em que estava em situação
de rua ou em casa e era bastante agressivo com o avô, culpabilizando-o por não
ter se aposentado. A família está com o aluguel atrasado e com medo de serem
despejados após a perda do emprego de Gisele. Célio começou a se isolar em
casa, não tem comido, segundo ele, para sobrar comida para a filha e um dos
netos. No bairro em que mora há um CRAS, onde ele buscou atendimento
algumas vezes, mas só ia para as festas, sendo sempre bem recebido. Gisele,
andando pelo centro da cidade, avistou um outro serviço, o CREAS, e achando
que fosse o mesmo atendimento, entrou para pedir ajuda.
Resolução da situação-problema
Gisele foi acolhida no CREAS pela psicóloga Juliana, que a recebeu sem
fazê-la esperar por muito tempo. Pediu seus dados, fez o cadastro e ouviu sua
demanda. Para Juliana, alguns “temas” da história chamaram sua atenção:
o fato de haver um idoso na família que sofreu agressão, a situação de rua
e uso de drogas de um dos netos. A psicóloga explicou que essas demandas
relatadas poderiam sim ser atendidas pelo CREAS, por serem situações de
risco já existentes no cotidiano, com violação clara de direitos. Ela classificou
esse caso como de Proteção Social Especial, previsto no Sistema Único de
130
Assistência Social. Explicou também que seria interessante que ela fizesse
contato com o CRAS, visto que os profissionais do local já conheciam e
tinham um vínculo com Célio, para entender os motivos de sua não aposen-
tadoria ou outra fonte de renda como o Benefício de Prestação Continuada
(BPC). O CRAS trabalha com o Proteção Básica, atuando principalmente na
prevenção das situações de risco.
Juliana decidiu trabalhar nesse caso, especificamente com a assistente social
Natália, integrante da equipe que tem feito o estudo social para analisar a questão
de renda familiar. Em seu plano terapêutico, Juliana também apontou e sugeriu
à Gisele o trabalho em conjunto com o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas (CAPS AD), devido ao quadro de um dos filhos. Gisele se sentiu muito
bem cuidada, e apesar de saber que não está vivendo situações fáceis, acreditou
que a psicóloga e os demais profissionais e serviços poderão ajudá-la.
131
2. Leia o trecho a seguir:
“O CREAS é a unidade pública estatal de abrangência municipal ou regional
que tem como papel constituir-se em lócus de referência, nos territórios, da
oferta de trabalho social especializado no SUAS à família e indivíduos em
situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos.” (CONSELHO
FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013c, p. 20).
Assinale a alternativa que melhor apresenta as competências e os serviços do
CREAS:
a. O trabalho no CREAS, por ser especializado, como o próprio nome
diz, permite que o psicólogo trabalhe sozinho e com autonomia, não
havendo necessidade de registros, por exemplo.
b. Trabalhar de forma geral com a Proteção Social Básica, motivo pelo
qual todo CREAS atende pessoas em situação de rua.
c. O trabalho no CREAS é apenas de assistentes sociais, já que está
previsto no Sistema Único de Assistência Social.
d. Nos CREAS não há nenhum trabalho específico para Adolescentes em
Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA)
e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), apesar de muitos
municípios acreditarem que essa é uma demanda dessas unidades.
e. Podemos citar, entre os serviços específicos do CREAS, o Serviço
Especializado para Pessoas em Situação de Rua.
132
II. A importância de trabalhar a assistência social de forma intersetorial
é especialmente importante, pois, enquanto política pública, o foco é a
garantia de direitos sociais, como saúde, seguridade social e educação.
III. A atuação do psicólogo no SUAS é igual a todas as suas outras, com
ênfase no indivíduo.
Agora, assinale a alternativa correta.
a. Apenas a afirmativa I está correta.
b. Apenas a afirmativa II está correta.
c. Apenas a afirmativa III está correta.
d. Apenas as afirmativas I e II estão corretas.
e. As afirmativas I, II e III estão corretas.
133
Referências
BOARINI, M. L. Psicologia e Práticas Sociais. [S.l.]: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais,
Scielo Books, 2008.
BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: MS, 1990.
BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a parti-
cipação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergo-
vernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília, DF: MS, 1990.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Referência técnica para atuação do(a) psicó-
logo(a) no CRAS/SUAS. Brasília, DF: CFP, 2007.
GOMES, K. de O. et al. Atenção Primária à Saúde – a “menina dos olhos” do SUS: sobre as repre-
sentações sociais dos protagonistas do Sistema Único de Saúde. Ciência Saúde Coletiva, [s.l.],
v. 16, supl. 1, p. 881-892, 2011. Disponível em: http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/
online/?IsisScript=iah/iah.xis&src=google&base=ADOLEC&lang=p&nextAction=lnk&exprSe-
arch=582522&indexSearch=ID. Acesso em: 21ago. 2019.
Saúde mental
Convite ao estudo
Olá, caro aluno.
Nesta unidade estudaremos sobre a saúde mental e como ela se organiza
no Brasil, assim como seu histórico, modos de funcionar e questões atuais
que envolvem a saúde mental.
Ao final da unidade, espera-se que você se sinta apto a atuar em políticas
públicas voltadas à saúde mental.
E quem vai nos acompanhar nesta unidade será o psicólogo Lauro que,
com sua história, nos ajudará a compreender melhor o conteúdo. Vamos
conhecer esta história?
Lauro, desde os semestres finais de sua graduação em psicologia, havia se
inserido no contexto da psicologia organizacional através de um estágio para
o qual foi selecionado. Entretanto, em determinado momento, visando maior
estabilidade e retorno financeiro, além da possibilidade de atuar direta-
mente com a população (um de seus anseios profissionais), Lauro presta um
concurso público para atuar na prefeitura de sua cidade.
Inicialmente, Lauro, não é chamado, mas como ficou entre os primeiros
classificados, após três anos ele é selecionado para assumir uma vaga no CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial). Lauro se pergunta: “e agora?”. Por um lado,
estava satisfeito com o conforto de seu atual emprego, mas sempre apreensivo
com as demissões em massa que as flutuações da economia podem acarretar.
Por outro lado, trabalhar como servidor público fazia parte de seus objetivos
profissionais e, em comparação com sua atual situação, garantia uma melhor
remuneração e melhores benefícios. No entanto, há muito tempo não entrava
em contato com os conteúdos da psicologia relacionados às políticas públicas
e saúde mental.
Lauro se perguntava: “será que vou dar conta?”.
Resolveu, então, procurar seu antigo colega de faculdade, o Eusébio, que
já atuava como psicólogo de um CAPS há algum tempo. Marcaram de tomar
um café juntos, ocasião na qual Lauro expôs para Eusébio as suas questões
referentes à difícil decisão que deveria tomar: permanecer como empregado
de uma corporação na qual estava familiarizado ou iniciar uma nova etapa
em sua carreira como servidor público?
Eusébio concordou que havia muito a avaliar antes de Lauro tomar sua
decisão e, para ajudá-lo, convidou-o a conhecer o dia a dia do CAPS em que
trabalhava. É claro que Lauro ficou muito agradecido e aceitou na hora o
convite de seu antigo colega Eusébio.
E você, caro(a) estudante, aceita o convite de Eusébio para conhecer, junto
com o Lauro, como se concretizam as políticas públicas da saúde mental no
dia a dia de um CAPS? Então vamos acompanhá-los. Desejo que façam uma
ótima jornada!
Seção 1
Diálogo aberto
Olá, caro aluno!
Nesta seção conheceremos as várias concepções de loucura, doença ou
sofrimento mental através dos tempos, assim como os métodos utilizados
para tratá-los.
Além disso, veremos como se constituiu no Brasil, a partir de uma
discussão internacional sobre a doença mental e a psiquiatria, a atenção que
se deve dar às pessoas com transtornos mentais.
Para isso, acompanharemos Lauro na sua visita ao CAPS em que
Eusébio trabalha.
Inicialmente, Lauro fica surpreso com o ambiente, pois não sabia o que
esperar. Ele passa por um pessoal na cozinha e sente um cheirinho bom
de comida que estava sendo feita ali. Senta-se na sala de espera e ouve
um “batuque” vindo de algum lugar ali do CAPS. Ele gostou, parecia um
samba. Eusébio aparece e chama Lauro para acompanhá-lo a conhecer o
lugar. Passam por algumas salas com as portas fechadas em que constavam
alguns nomes, que, segundo Eusébio, eram de uma assistente social, de uma
psiquiatra e de um terapeuta ocupacional, e chegam até sua sala.
Dentro do local Eusébio comenta que o cheiro da cozinha estava muito
bom e conta para Lauro que o que ele havia presenciado ali no CAPS eram
algumas oficinas que estavam acontecendo naquele momento com os
usuários: culinária e percussão.
Lauro considerou isso muito avançado, interessante e humanizado, pois
havia ouvido falar dos tratamentos desumanos, violentos e coercitivos que
sofriam as pessoas com transtornos mentais nos hospitais psiquiátricos.
Comentou isso com Eusébio, que sorriu e, a partir deste momento,
Lauro é apresentado por Eusébio às transformações pelas quais passaram as
concepções, as políticas e as práticas relacionadas com a saúde mental, assim
como os principais conceitos e procedimentos realizados no CAPS a partir
do caso de Juliano, um usuário acompanhado por Eusébio.
Vamos acompanhar essa dupla e ver o que mais descobrimos com eles?
141
Não pode faltar
Reflita
Reflita, a partir dos conhecimentos que você dispõe, sobre o seguinte
questionamento:
O que define quem é mentalmente “são” ou “doente”?
Uma vez pensado sobre isso, sem buscar outras fontes de informação,
anote as conclusões a que você chegou.
Se preferir, pergunte a outras pessoas o que para elas define quem é
mentalmente são e quem é mentalmente doente. Qual é a diferença
entre uma pessoa “sã” e um “louco”? Será que os limites entre a suposta
sanidade e a loucura são bem definidos? Se sim, quais são estes limites?
A partir disso, compare as suas concepções, bem como as das pessoas
com quem conversou, com as concepções que veremos a seguir.
142
– Tecnologia disponível para se locomover: por exemplo, entre um
continente e outro, eram os navios.
Portanto, com a ciência não poderia ser diferente, visto que esta é
também produção humana que se desenvolve no tempo (história), em uma
determinada sociedade e em uma determinada configuração cultural. Este
é o motivo de iniciarmos este texto com uma discussão histórica sobre um
assunto que é central para a temática da saúde mental: a loucura.
Nos primórdios da humanidade e nas culturas ditas “primitivas”, tanto as
doenças físicas quanto as doenças mentais (do “espírito”) eram consideradas
castigos de deuses e/ou influências de espíritos. Caberia ao líder espiritual da
comunidade, portanto, investigar as causas da referida enfermidade, assim
como os métodos para curá-la, para acalmar ou expulsar o espírito que a
estava causando, ou para se redimir ou agradar o deus ou a deusa que estava
castigando o doente. Estes líderes poderiam ser os sacerdotes, pajés, xamãs,
feiticeiros, oráculos, etc. Este modo de compreender o processo saúde/
doença pode ser chamado de Modelo Mágico-Religioso ou Xamanístico
(SILVA; PICIRILLI, 2016).
Neste período histórico, a loucura era atribuída, via de regra, ao diabo
e à bruxaria. Essa triste associação fazia com que as pessoas que sofressem
de alguma enfermidade mental tivessem a sua humanidade desconsiderada.
Eram tratados muitas vezes como animais, sendo aprisionados, torturados e
mortos, assim como deixados à deriva dentro de um barco, conhecido como
“a nau dos loucos” (HOTHERSALL, 2006).
• Grécia Antiga
Já na Grécia Antiga, algum tempo depois do surgimento da filosofia,
Hipócrates (séc. V a.C.), conhecido como o pai da medicina, abandona as
motivações religiosas e cria explicações racionais para as doenças físicas
e psíquicas. Segundo ele, as enfermidades ocorriam em decorrência do
desequilíbrio de quatro “humores” básicos: terra, água, fogo e ar, formadores
do organismo. Hipócrates descreveu a histeria, melancolia, epilepsia, entre
outras doenças psíquicas (HOTHERSALL, 2006).
Outro médico da antiguidade cujas contribuições reverberaram até o
Renascimento, foi Galeno (séc. II d.C.) que, entre outras obras, produziu um
tratado sobre as paixões e erros da alma. Neste documento, Galeno defendia
que as enfermidades da alma surgiam de paixões como o medo, a inveja, a
luxúria, etc., e para curá-las era necessário que uma outra pessoa apontasse
os erros ao doente, visto que o amor próprio impede que se veja os próprios
erros com clareza (HOTHERSALL, 2006).
143
• Renascimento e Modernidade
A partir do Renascimento, à loucura é atribuído um sentido de tolice,
insensatez, que pode ser ilustrado por uma obra da época, o livro Elogio
da Loucura do filósofo Erasmo de Roterdã. Também a partir dessa época,
quando a racionalidade assume predominância, a loucura é excluída do que
se considera como racional e passa a ser ligada a vícios morais. O louco passa
a ser encarcerado junto com outras pessoas consideradas impróprias para
o convívio social: prostitutas, homossexuais, libertinos, alcoólatras, feiti-
ceiros, etc. Nos séculos XVII e XVIII, sendo considerada doença, a loucura
não é vista como uma doença mental, mas como uma doença dos nervos
(FERREIRA, 2014).
Até então, não havia o campo do conhecimento denominado “psiquia-
tria”, esta surge em fins do século XVIII e início do XIX com a figura do
médico francês Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria. Pinel, parti-
cipante ativo da Revolução Francesa e defensor dos ideais de igualdade, liber-
dade e fraternidade próprios dessa revolução, decide por “libertar” os loucos
das prisões, correntes e condições as quais eram impostos. Entretanto, Pinel
considerava importante privar o louco do convívio social, oferecendo um
local em que pudesse expressar sua loucura. Nasce aí o hospital psiquiátrico,
ou manicômio, espaço privilegiado do tratamento de uma doença que passa
ser considerada mental, ou seja, própria do psiquismo. Para Pinel, a loucura
nada mais era do que uma espécie de alienação mental, na qual a pessoa
tinha uma dificuldade de perceber a realidade tal qual ela é (é daí que vem
os termos “alienista” e “alienismo” utilizados antigamente para se referir ao
psiquiatra e à psiquiatria, respectivamente). O louco seria, portanto, nessa
nova visão, não mais alguém perturbado pelo diabo ou por espíritos, nem
um insensato ou desregrado, também não é mais compreendido como um
doente dos nervos, mas sim como um alienado. A loucura passa a ser, assim,
um fenômeno psíquico (FERREIRA, 2014; SILVA; PICIRILLI, 2016).
Assimile
Concepção de loucura ao longo dos séculos
Observe as transformações pelas quais passou a compreensão da
loucura através dos séculos:
• Inicialmente considerada de um ponto de vista mágico e religioso,
mítico.
• Grécia Antiga: Hipócrates e Galeno rompem com as explica-
ções míticas e utilizam a observação para criar teorias sobre as
doenças.
• Idade Média: a loucura é associada ao diabo e à bruxaria.
144
• Renascimento e Modernidade: a loucura é ligada à insensatez
e aos desregramentos morais. Posteriormente, o louco é consi-
derado um doente dos nervos. Com Pinel, a loucura é conside-
rada alienação e o louco alienado. Transforma-se em fenômeno
psíquico, que deve ser tratado em um ambiente propício: o
hospital psiquiátrico, ou manicômio.
145
seguir, está sempre e constantemente ameaçando voltar a vigorar, pois serve
de interesses de empresários do setor.
A seguir, o seguinte trecho expressa com clareza a relação espúria entre o
Estado brasileiro e os proprietários de hospitais psiquiátricos:
146
• Enquanto isso, o psiquiatra Franco Basaglia e outros colaboradores,
na Itália, conduziam a experiência da psiquiatria democrática que,
por meio de um modelo de assistência também territorializado,
objetivava devolver às pessoas com sofrimento mental a dignidade,
cidadania e participação social.
Todas essas experiências tinham em comum, entre outras, a característica
de buscarem prescindir do hospital psiquiátrico, em maior ou menor grau
(CFP, 2013).
Essas experiências internacionais inspiram, no Brasil, diversos
movimentos sociais que passam a questionar o tratamento que era relegado às
pessoas com transtornos mentais. Entre estes movimentos, está o movimento
dos trabalhadores da saúde mental que, por meio da presença, construção
e articulação em várias conferências e encontros nacionais entre as décadas
de 1970 e 1980, questionam o modelo até então estabelecido e lutam por um
tratamento mais humano aos pacientes da saúde mental estabelecido em lei.
Em outras palavras, a mudança de paradigma relacionada à saúde mental
deveria ser política de Estado. É neste ínterim que nasce, em Bauru, em 1987,
o movimento da Luta Antimanicomial, cujo lema é “Por uma Sociedade sem
Manicômios” e fica estabelecido o dia 18 de maio como o Dia Nacional da
Luta Antimanicomial. Esta série de movimentos e reformulações relativos à
saúde mental é conhecida como Reforma Psiquiátrica (CFP, 2013).
Lembre-se de que esta época (final dos anos 1980) foi marcada por
intensa agitação social no Brasil, não somente na área da saúde. A população
não queria mais um governo ditatorial e lutou para eleger os seus represen-
tantes por meio do movimento das Diretas Já!. Com o reestabelecimento da
democracia, foi elaborada uma nova Constituição, a chamada Constituição
Cidadã, pois estendeu a toda a população direitos que antes eram relegados
a uma ou outra categoria da sociedade (DIÉGUEZ, 2014).
Posteriormente à nova Constituição e decorrente dos debates ocorridos
nas Conferências Nacionais de Saúde, entra em vigor em 1990 a Lei nº
8080, a partir da qual se estruturará o Sistema Único de Saúde (SUS) que
garante serviços de saúde a toda a população. Em 2001, após longa trami-
tação, entra em vigor a Lei nº 10.216, que protege os direitos das pessoas com
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Esta lei também é conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Paulo
Delgado, em homenagem ao parlamentar que inicialmente lutou para que
ela fosse aprovada.
147
Pesquise mais
O texto da Lei nº 10.216 de 2001 fala sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo
assistencial em saúde mental.
Esta lei é a base para o sistema de saúde mental atual no Brasil, além
de estabelecer os direitos da pessoa portadora de transtorno mental.
• BRASIL. Lei nº 10.2016 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção
e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redire-
ciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, DF, 2001.
Estratégia/Procedimento Definição/Aplicação
148
Exemplificando
Imagine que você trabalha em uma UBS e está cuidando de um caso de
suspeita de drogadição. Junto com sua equipe multidisciplinar, elabora
o Plano Terapêutico Singular (PTS) que envolve exames e consultas
com especialistas, ou seja, será necessário referenciá-lo ao nível secun-
dário de atenção. Caso seja necessário, recorre-se ao matriciamento
para elaborar uma estratégia conjunta com outro(s) profissional(is) ou
equipe compreendidos como potenciais colaboradores. Se em algum
momento o paciente entrar em crise, referencia-se novamente, desta
vez para o nível terciário de atenção (uma possível internação por um
curto período). Assim que acabar o período de internação, faz-se o
contrarreferenciamento.
149
Entretanto, tanto Eusébio quanto Lauro reconheciam que, apesar das
limitações inerentes a qualquer política pública, a Reforma Psiquiátrica
garantia uma vida digna e em liberdade aos portadores de transtornos
mentais, pois, afinal, eles são sujeitos de direitos, assim como todo cidadão.
Para ilustrar o funcionamento da Reforma Psiquiátrica na prática, Eusébio
explicou os procedimentos do matriciamento, referência e contrarreferência,
além do Plano Terapêutico Singular (PTS) e utilizou como exemplo um
caso atendido por ele já fazia um tempo. O caso de Juliano, um ex-interno
de um manicômio que tinha sido fechado há alguns anos, depois da lei da
Reforma Psiquiátrica.
Eusébio procurou o prontuário de Juliano e pegou uma situação como
exemplo: certo dia, na oficina de jardinagem, prevista no Plano Terapêutico
Singular (PTS) de Juliano, ele se apresentou muito agressivo; não queria
realizar as atividades, ou se mostrava muito reativo. Os trabalhadores do
CAPS, atentos a isso, perguntaram o que estava acontecendo com ele e, como
resposta, Juliano respondeu que estava com uma dor esquisita no estômago.
A partir disso, fizeram a referência dele para uma consulta com o clínico geral.
Eusébio explicou que, se necessário, fariam um matriciamento para que
outra equipe acompanhasse de perto o caso, junto com a do CAPS, traçando
estratégias para o tratamento de Juliano.
Lauro ouviu todo o caso, observou e ficou muito instigado a começar logo
a trabalhar para colocar em prática tudo o que tinha aprendido!
Avançando na prática
Resolução da situação-problema
Você acolhe a queixa dessa mãe, mas a orienta de que uma possível inter-
nação talvez não seja a melhor solução para este caso. Recomenda-a, então,
150
a procurar um CAPS-i, que é especializado em crianças e adolescentes. Este
serviço, além de ser gratuito, trabalha na proposta da Reforma Psiquiátrica,
ou seja: no território, em meio aberto, e não afasta o adolescente do convívio
familiar nem escolar, além de contar com uma série de profissionais de várias
áreas do conhecimento, atividades e oficinas. A mãe, já menos aflita, agradece
seu apoio e orientação, afirmando que vai em busca deste serviço para ajudar
o seu filho.
151
d. Proteção e direitos das pessoas em sofrimento psíquico, redirecio-
nando o modelo de atendimento da saúde mental para a atenção
básica.
e. Proteção e direitos das pessoas em sofrimento psíquico, redirecio-
nando o modelo de atendimento da saúde física e mental das pessoas
portadores de transtorno mental.
152
Seção 2
Diálogo aberto
Olá, caro aluno!
Estamos prestes a conhecer como se concretizam as políticas públicas de
saúde mental no SUS.
Um dos aspectos mais interessantes na concretização tanto do SUS quanto,
posteriormente, das políticas de saúde mental, ou Reforma Psiquiátrica,
é que a população e os trabalhadores da saúde, assim como organizações
destes trabalhadores, estiveram diretamente envolvidos na elaboração e
consolidação destas leis. Em outras palavras, não foi algo vindo “de baixo
para cima”, mas as transformações ocorridas vieram de demandas de pessoas
que estavam profundamente envolvidas com esta temática.
Nesse contexto, conheceremos:
• As mudanças de paradigmas.
• As diversas modalidades de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).
• Outras estratégias e dispositivos públicos de saúde mental, ou seja,
disponíveis para toda a população gratuitamente, sendo sustentadas
pelo contribuinte (eu, você e todos nós que pagamos impostos).
E sabe quem vai nos acompanhar? A dupla de psicólogos Lauro e Eusébio.
Lauro solicitou a Eusébio que refrescasse sua memória quanto à organi-
zação das políticas de saúde mental no SUS no contexto da Reforma
Psiquiátrica, pois ele ainda se confundia com a “numeração” dos CAPS,
assim como as estratégias de desinstitucionalização. Outra dúvida que
rondava Lauro era: “quanto à internação, não pode mais? Ou ainda pode, a
depender do caso?”.
Enquanto explicava as diretrizes e a organização das políticas de saúde
mental para Lauro, sempre relacionando com a prática cotidiana e forne-
cendo exemplos, Eusébio viu passar por ali o sr. Juliano, um caso que ele
acompanhava e sentiu um “estalo”.
- Lauro, já sei! Vou te explicar o essencial da organização das políticas
no contexto da Reforma Psiquiátrica para você se contextualizar e depois
vou te apresentar o caso do sr. Juliano. Ele está passando pelo processo de
153
desinstitucionalização e já está mais “especialista” do que eu nas políticas
públicas de saúde mental – disse Eusébio, descontraído.
Pronto(a) para se apropriar da organização das políticas de saúde mental
e não ficar de fora dessa conversa?
Então, vamos lá!
Mudança de paradigma
Quando se fala em Saúde Mental e Reforma psiquiátrica, é comum a
ocorrência do termo “mudança de paradigma”. Mas o que é isso? Podemos
compreender como paradigma uma série de ideias e práticas, ou uma forma
de olhar ou de conceber algo. No caso específico da Saúde Mental e da
Reforma Psiquiátrica no Brasil, esta mudança de paradigma é apontada pelos
autores Yasui e Costa-Rosa (2008) como uma mudança necessária e ainda não
totalmente realizada do Modelo (Paradigma) Psiquiátrico Hospitalocêntrico
Medicalizador ao Paradigma da Produção Social da Saúde, que corresponde,
na saúde mental, ao chamado Paradigma Psicossocial.
Quais são as características e diferenças do Paradigma Psiquiátrico
Hospitalocêntrico Medicalizador e do Paradigma da Produção Social da
Saúde?
Ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador corresponde
a compreensão fragmentada da saúde, sendo a doença considerada um conjunto
de sintomas não necessariamente vinculado a questões mais amplas da pessoa
como condição social e modo de vida. Também o termo “medicalizador” remete
à centralidade do médico e do medicamento neste modelo, que compreende e
trata os fenômenos da saúde e doença de maneira fragmentária. Ao Paradigma
da Produção Social da Saúde (Paradigma Psicossocial) corresponde uma
compreensão de que a saúde é um estado decorrente de aspectos mais amplos
que não apenas o organismo, mas condições físicas, psíquicas, sociais, econô-
micas, culturais e ambientais (YASUI; COSTA-ROSA, 2008).
Assimile
Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador: apesar de ser
hegemônico (domina muitas áreas da medicina, assim como a formação
dos médicos), este modelo deve ser superado segundo a Reforma
Sanitária e Psiquiátrica. Corresponde a uma visão fragmentada dos
fenômenos (saúde e doença), bem como seu estudo e tratamento em
separado, focado nos sintomas, na figura do médico e do medicamento.
154
Paradigma da Produção Social da Saúde (Paradigma Psicossocial):
tanto a saúde quanto a doença (assim como as concepções do que é
doentio e saudável) são compreendidas como fenômenos decorrentes
de vários aspectos amplos, tais como as condições físicas, psíquicas,
sociais, econômicas, culturais e ambientais.
155
contribuição de diversos pontos de vista na compreensão e resolução de uma
problemática. Da mesma forma, o trabalho em políticas públicas envolve a
intersetorialidade, que é atenção conjunta entre os diversos setores públicos.
Por exemplo: um usuário de serviços da saúde mental pode vir a necessitar
também da assistência social, assim como da educação, caso queira retomar
estudos que abandonou em algum momento, etc. (SILVA; PICIRILLI, 2016).
Os CAPS foram regulados pela Portaria do Ministério da Saúde nº 336, de
19 de fevereiro de 2002, e há várias modalidades destes dispositivos, a saber:
Tabela 4.2 – Modalidades de CAPS
Modalidade Definição/Especificação
Atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e
também com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
CAPS I drogas de todas as faixas etárias; indicado para municípios com popula-
ção acima de vinte mil habitantes. Funciona de segunda a sexta-feira no
horário comercial, atende até 30 pacientes por dia, no máximo.
Atende pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, podendo
também atender pessoas com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas, conforme a organização da rede de saúde
local, indicado para municípios com população acima de setenta mil
CAPS II
habitantes. Funciona de segunda a sexta-feira no horário comercial,
podendo funcionar até às 21h. Atende até 45 pacientes por dia, no
máximo, possui equipe com mais integrantes do que o CAPS I.
Fonte: elaborado pelo autor, a partir de CFP (2013) e Ministério da Saúde (2002; 2011).
156
Reflita
Levando em conta as características das várias modalidades de CAPS,
avalie para onde deverão ser encaminhados os seguintes casos. Para
responder, utilize os dados da Tabela 4.2.
- Adolescente que faz uso recorrente de álcool e maconha.
- Criança diagnosticada com autismo.
- Adulto em situação de rua em crise, com delírios persecutórios e aluci-
nações.
- Senhora com mais de sessenta anos de idade que passou a apresentar
sintomas da doença de Alzheimer.
Exemplificando
O vídeo “Residência terapêuticas: o fim de um ciclo de internações”,
disponível no youtube, mostra o funcionamento cotidiano de algumas
residências terapêuticas. Nele, a partir de uma reportagem, conhe-
cemos o ponto de vista de um dos moradores e de uma das trabalha-
doras da casa.
157
Organização da estrutura de trabalho do SUS
Outro ponto que deve ser considerado, quando se fala em políticas de
saúde mental no Brasil, é a própria organização da estrutura de trabalho do
SUS. Em seu nível mais básico, temos a atenção básica, ou também chamada
atenção primária. Esta modalidade de atenção é o primeiro contato do
paciente com o sistema de saúde, por isso também é referida como “porta de
entrada” do atendimento no SUS (SILVA; PICIRILLI, 2016).
No que diz respeito à saúde mental, o nível da atenção básica (ou primária)
se realiza principalmente através da presença de psicólogos em:
• Equipes multiprofissionais nas Unidades Básicas de Saúde.
• Equipes do consultório de rua (que levam serviços de saúde à
população de rua).
• Equipes dos centros de convivência.
Estes últimos, em especial, tratam-se de espaços ligados à Rede de
Atenção Psicossocial onde:
Pesquise mais
A Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde
regula toda a Rede de Atenção Psicossocial. Leia o artigo 6º, que detalha
pormenorizadamente as possibilidades de ação na saúde mental através
da atenção básica.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de
2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofri-
mento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso
de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011.
158
Além dos dispositivos já apresentados, a saúde mental se faz presente nas
políticas públicas em ambulatórios multiprofissionais de saúde mental, que
se encontram em policlínicas, ambulatórios de hospitais, gerais e especiali-
zados e contam com equipe multiprofissional: médico psiquiatra, psicólogo,
assistente social, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, enfermeiro e outros
profissionais que atuam no tratamento de pacientes que apresentam trans-
tornos mentais. O ambulatório multiprofissional de saúde mental realiza
atendimentos, através de consultas, a pacientes que apresentem sofrimento
mental persistente e moderado (por exemplo: transtornos de humor, de
ansiedade e dependência química), atuando conjuntamente com os CAPS e
as unidades de atenção básica (MS, 2019).
Nos hospitais gerais, a política de saúde mental prevê enfermarias
especializadas em saúde mental. O cuidado ao usuário, neste âmbito, deve
estar articulado com o Projeto Terapêutico Individual desenvolvido pelo
serviço de referência do usuário e a internação, caso necessária, deve ser de
curta duração até sua estabilidade clínica. No caso de o usuário acessar a
Rede de Atenção Psicossocial por meio deste ponto de atenção (o hospital
geral), deve ser providenciada sua vinculação e referência a um Centro de
Atenção Psicossocial, que assumirá o caso; tudo isso sem esquecer e sempre
levando em conta o caráter multiprofissional e interdisciplinar que caracte-
riza a atenção psicossocial (MS, 2011).
Não poderíamos concluir sem antes citar os hospitais de custódia e
tratamento psiquiátrico, que acolhem as pessoas acusadas ou condenadas
por cometer algum crime grave, mas que na ocasião do ato foram consi-
deradas inimputáveis (não tinham condição de compreender suas ações e,
portanto, responder legalmente por elas) devido a algum transtorno mental.
Estas instituições funcionam ainda sob a lógica asilar, mas deverão, aos
poucos, serem substituídas por outros tratamentos ambulatoriais ou em
meio aberto, visando a reabilitação psicossocial de seus internos (SILVA;
RIBEIRO; SOUZA; 2018).
159
Eusébio, percebendo a animação de seu amigo, encontrou uma maneira
de ilustrar com um exemplo como muitas das estratégias e dispositivos da
saúde mental pública se inter-relacionam. E fez isso a partir da experiência
que teve com o sr. Juliano, uma figura misteriosa, que não se sabia muito
sobre ele. Entre o pouco que se sabia estava que ele era um ex-morador de rua
e que consumia muitas bebidas alcoólicas e possivelmente outras drogas no
contexto de rua. Acabou, não se sabe muito bem como, sendo internado em
um hospital psiquiátrico (manicômio) e por lá permaneceu por muitos anos.
Uma vez que a Reforma Psiquiátrica atua na direção de desinstituciona-
lizar as pessoas e oferecer a reabilitação psicossocial, o sr. Juliano foi encami-
nhado para um serviço residencial terapêutico, junto com outros internos
do mesmo manicômio que já não tinham como estabelecer vínculos com a
família de origem.
Além da residência terapêutica, o sr. Juliano participava do Programa de
Volta para Casa, ou seja, recebia uma bolsa para conseguir se sustentar. E
também era usuário do CAPS em que Eusébio trabalhava.
Além das atividades do CAPS, sr. Juliano frequentava as atividades ofere-
cidas pelo centro de convivência do seu bairro. Atividades estas que ele gostava
muito, tais como: ginástica, futebol, artesanato e programações culturais.
Ao ouvir a história do sr. Juliano, Lauro ficou tocado pela história de
vida difícil vivenciada por ele, mas também pode compreender, com este
exemplo prático, como se inter-relacionam os vários dispositivos da política
de saúde mental.
Após este verdadeiro “curso” sobre Reforma Psiquiátrica que Lauro tinha
recebido de seu amigo Eusébio, ele já se sentia preparado para começar
a atuar.
E os desafios que ele poderia enfrentar só o deixaram ainda mais animado!
Avançando na prática
160
conjugal boa, o único problema que encontram é que às vezes ela é preterida
em função da bebida alcoólica. Ela pede a sua ajuda: internar ou não internar
meu marido? Se não, o que fazer?
Resolução da situação-problema
Você acolhe a senhora e este relato, trabalhando também outros aspectos
que envolviam o atendimento. Entretanto, a orienta de que é possível fazer o
tratamento para o alcoolismo, se for o caso, em meio aberto, no CAPS AD.
Explica que este serviço é gratuito, especializado nesta demanda e que, atual-
mente, apesar de ainda existirem instituições que trabalham com o modelo
asilar (manicomial), há a possibilidade de tomar um outro caminho sem
prejudicar a convivência familiar e o trabalho do marido, visto que este não
precisará se ausentar do lar para tratar de seu problema.
161
O que são os serviços residenciais terapêuticos?
a. São casas localizadas nos espaços próximos aos hospitais psiquiá-
tricos.
b. São casas assistidas localizadas nos espaços urbanos.
c. São serviços que ofertam assistência domiciliar ao usuário que
retornou para sua família de origem.
d. São serviços residenciais que têm por objetivo substituir o tratamento
terapêutico.
e. São serviços desenvolvidos pelo CAPS e que oferecem leito de inter-
nação.
3.
Atende adultos ou crianças e adolescentes, considerando
as normativas do Estatuto da Criança e do Adolescente,
com necessidades de cuidados clínicos contínuos. Serviço
com, no máximo, doze leitos para observação e monitora-
mento, com funcionamento de 24 horas, incluindo feriados
e finais de semana; indicado para municípios ou regiões
com população acima de duzentos mil habitantes. (CFP,
2013; BRASIL, 2002; BRASIL, 2011).
162
Seção 3
Diálogo aberto
Caro estudante, este é o momento de nos depararmos com questões
extremamente atuais e relevantes para a psicologia, para a saúde mental e
para a sociedade como um todo.
Nesse contexto, conheceremos como o psicólogo pode atuar em situações
relacionadas aos desastres (que, infelizmente, são muito comuns no Brasil),
imigração e reforma agrária. Além disso, debruçaremo-nos sobre a temática
do racismo e da diversidade sexual.
• Como a psicologia se apropriou destes temas?
• De que maneira o psicólogo pode atuar em relação a estes contextos e
temáticas, de modo a promover a saúde mental?
Essas são questões que serão aprofundadas (não necessariamente respon-
didas) a partir de agora.
E sabe quem mais está interessado nestes temas atuais, relevantes
e emergentes para a prática profissional do psicólogo e também para a
construção da psicologia enquanto ciência? Acertou! Lauro e Eusébio!
Lauro ficou muito tocado, comovido e motivado a partir do conhecimento
que adquiriu sobre as políticas públicas de saúde mental no Brasil: como se
construíram, como foram implementadas e como funcionam na prática.
Agora ele não tem mais dúvidas: o CAPS e a Reforma Psiquiátrica são os
contextos em que atuará daqui em diante. Nesse sentido, está pronto para
assumir este desafio e esta nova etapa que se inicia em sua vida; e deve muito
dessa decisão ao seu grande amigo Eusébio, que, com sensibilidade e muito
profissionalismo de um verdadeiro conhecedor da causa, apresentou todo
este novo mundo das políticas públicas de saúde mental para ele.
Como forma de agradecer seu amigo, firmar e afirmar a sua decisão,
Lauro convida Eusébio para mais um café. Ele aceita com muito prazer este
convite e, enquanto conversam e saboreiam seu encontro, passam a observar
algumas notícias que estavam sendo veiculadas na TV do local. O noticiário
informou sobre um novo deslizamento de terra que ocorreu na encosta de
um morro, destruindo muitas casas e tirando a vida de muitas pessoas. Em
seguida, mostra os dados de imigração no Brasil: pessoas de diferentes partes
do mundo, em situação de guerra e calamidade, recorrem ao nosso país em
busca de asilo.
163
Antes do intervalo comercial, a repórter avisa que no próximo bloco
trariam uma reportagem sobre uma comunidade rural assolada pela seca,
imagens da Parada do Orgulho Gay que tinha acontecido no último final
de semana, assim como depoimentos de pessoas que sentem dificuldade
de entrar no mercado de trabalho devido ao racismo de recrutadores
e empregadores.
Lauro observa essas notícias e comenta com Eusébio: “nossa, quanta
coisa, né? Todas estas questões são muito complexas! Ainda bem que já optei
pela minha ‘dose’ de complexidade e estes assuntos não cabem a nós, psicó-
logos.” E gargalha em tom de cumplicidade com Eusébio.
Este devolve para Lauro um olhar de repreensão e diz: “Pois é, parece
que você não se atualiza faz um tempo, né, Lauro? Todas essas questões do
noticiário têm tudo a ver com a psicologia, inclusive com a saúde mental!”.
Lauro, perplexo e admirado com a carga de conhecimentos de seu amigo,
aproximou-se dele para ouvir melhor o que a psicologia e a saúde mental
tinham a ver com tudo isso.
E você, caro estudante, também quer saber?
Então, vamos lá!
164
1. Psicologia em contextos de desastre
Para Weintraub et al. (2015), um desastre é uma situação trágica coletiva
que atinge uma comunidade. Como exemplos, podemos citar os desastres
ambientais envolvendo a empresa Vale nas cidades de Mariana/MG (2015)
e Brumadinho/MG (2019), nos quais o rompimento de barragens de rejeitos
contendo material tóxico descartado da mineração realizada pela empresa
ocasionou uma enxurrada de lama, que destruiu casas, plantações, criações
de animais, rios, assim como as pessoas que não conseguiram se abrigar.
Outros exemplos de desastres que infelizmente ocorrem no Brasil são desli-
zamentos de terra nas encostas de morros que são ocupados por bairros
irregulares (as chamadas favelas).
Estes eventos trágicos envolvem não somente aspectos ambientais, mas
também sociais e políticos. O desastre é uma situação que não conseguiu
ser evitada ou prevenida devido a falhas na relação entre Estado e sociedade
(WEINTRAUB et al., 2015).
Essas situações envolvem a rápida mobilização de profissionais, serviços
e recursos para diminuir seus efeitos deletérios e restabelecer a normalidade,
na medida do possível. No Brasil, o órgão governamental que atua nos desas-
tres é a Defesa Civil (WEINTRAUB et al., 2015).
No que diz respeito especificamente à saúde mental e ao trabalho do
psicólogo no contexto dos desastres, este deve considerar sempre os aspectos
individuais e coletivos da situação. Uma vez garantidas as necessidades
básicas (alimentação, segurança, abrigo e cuidados de saúde básica), o profis-
sional de psicologia pode intervir seguindo algumas estratégias. Uma delas é
conscientizar sobre o desastre, explicando como e porquê aconteceu, suas
razões e consequências (WEINTRAUB et al., 2015).
A intervenção psicológica individual e/ou em grupo no sentido de dispo-
nibilizar atenção, acolhimento e cuidado às intensas demandas psíquicas
que podem decorrer de grandes perdas abruptas não devem estar separadas
do que deve ser, segundo os autores, o objetivo principal a médio prazo da
intervenção: estabelecer ou restabelecer o contato das pessoas atingidas
pelo desastre com as redes de saúde pública e assistência social disponíveis
àquela comunidade, pois são estes os serviços responsáveis por acompanhar
a comunidade no longo prazo, após a situação de desastre ser minimizada
(WEINTRAUB et al., 2015).
No que se refere à vivência individual de uma pessoa em situação de
desastre, as estratégias terapêuticas devem considerar os parâmetros físicos
e mentais (ou emocionais). Neste sentido, deve-se levar em conta que um
desastre causa rupturas abruptas em redes socioafetivas, perdas materiais
165
e agravamento de adoecimentos. Situações graves se desencadeiam em um
curto período de tempo, causando ou exacerbando transtornos psíquicos,
visto que grandes mudanças inesperadas podem exceder a capacidade de
resposta psíquica, acarretando em forte angústia e desamparo. Entretanto, as
situações trágicas podem ser ressignificadas em oportunidades para fortale-
cimento dos laços sociais, sentimento de pertencimento e cuidado coletivo,
a depender do histórico e da resiliência dos indivíduos e da comunidade
(WEINTRAUB et al., 2015).
Assimile
O que deve ser observado por psicólogos em situações de desastre?
Retomando os pontos principais que devem ser observados por psicó-
logos que atuam em situações de desastre:
• O desastre é considerado como uma situação trágica coletiva que
atinge uma comunidade, que não conseguiu ser evitada ou preve-
nida devido a falhas na relação entre Estado e sociedade. Uma vez
ocorrido, envolve a rápida mobilização de serviços e recursos, sob
responsabilidade da Defesa Civil.
• Uma vez garantidas as necessidades básicas de socorro, saúde,
abrigo e alimentação, o profissional de psicologia pode atuar
visando a promoção de saúde mental, sempre em uma perspec-
tiva interdisciplinar e intersetorial.
• Nessa atuação o psicólogo deve considerar os aspectos materiais
e psíquicos que envolvem a situação de desastre, oferecendo
acolhimento e conscientização. Quando possível, trabalhar a
ressignificação das vivências experienciadas no desastre.
• No médio e longo prazo, o objetivo da atuação do psicólogo é
estabelecer ou restabelecer o contato das pessoas da comuni-
dade com as redes de saúde pública e assistência social disponí-
veis à população.
2. Migração e imigração
Outra situação que, assim como os desastres, envolve grandes rupturas
em um curto espaço de tempo é a migração. Por migração, entende-se:
“processo de entrada (imigração) e de saída (emigração), de uma pessoa ou
de um grupo de pessoas que se muda de país para outro ou de uma região
para outra” (DICIO, 2018).
As motivações para a migração são diversas, podendo envolver desde
o desejo de uma vida melhor em um país ou região que ofereça melhores
condições de cidadania, sendo tanto uma decisão tomada com calma e bem
166
elaborada quanto uma situação forçada por desastres e guerras, por exemplo,
que impõe a necessidade de se abandonar rapidamente aquele contexto
(país) em busca de exílio. Neste caso, o imigrante é denominado refugiado.
Os refugiados, devido a vivências de extrema violência e violação de direitos
humanos fundamentais pela qual podem ter passado (tortura, massacres,
mortes de parentes e amigos, fome e perda de bens materiais), somadas
ao fato de carregarem consigo muito pouco do que caracteriza sua identi-
dade e adentrarem em um país estranho que, muitas vezes, lhes são hostis,
não garantindo necessariamente necessidades básicas (saúde, informações
sobre direitos e deveres, dificuldade com o idioma), encontram-se em uma
situação de extrema vulnerabilidade social, o que os deixam também suscetí-
veis a problemas de saúde mental (GALINA et al., 2017).
Conforme Galina et al. (2017), a literatura disponível sobre o tema tende
a enquadrar as situações envolvendo os refugiados como traumáticas e
os principais transtornos mentais identificados em refugiados são relacio-
nados às situações, traumáticas ou não, que vivenciaram antes ou depois do
exílio. São eles: transtorno do estresse pós-traumático e depressão. Entre os
adolescentes, são apontados também problemas de ansiedade e transtornos
de conduta.
Os autores chamam a atenção, entretanto, que, ao lidar com refugiados,
tem de necessariamente levar em conta a diversidade cultural e tomar o
cuidado de não os enquadrar a priori em categorias patológicas, pois isso
seria revitimizá-los. É necessário e importante considerar a subjetividade
da pessoa em contexto de imigração e incentivar o protagonismo deste
enquanto sujeito de sua própria existência, caminho para a saúde psíquica e
resiliência diante das dificuldades que enfrentou e enfrenta (GALINA et al.,
2017).
3. Contextos rurais
Outro campo que interessa à psicologia, especificamente sua interface
com a saúde mental, e que ainda é pouco explorado são os contextos rurais,
especificamente no que se refere aos contextos da reforma agrária. Neste
aspecto, cabe apontar que um a cada quatro moradores do campo está em
situação de pobreza extrema. A pobreza, em uma abordagem multidimen-
sional, deve ser entendida não só como insuficiência de renda, mas também:
167
vação, na reprodução intergeracional das condições de vida
e na mobilidade social. (DIMENSTEIN et al., 2017, p. 543)
168
e grupos socioeducativos. Entretanto, muitas vezes estão presentes práticas
medicalizantes e etnocêntricas, que não correspondem ao paradigma da
atenção psicossocial, ou determinação social da saúde e doença, sendo estas
as diretrizes da atual legislação da atenção psicossocial (CIRILO NETO;
DIMENSTEIN, 2017).
Reflita
Agora, refletiremos sobre os três temas tratados até o momento: saúde
mental e a psicologia envolvida com contextos de desastres, migração/
imigração (refugiados) e o contexto rural da reforma agrária. Como
pode ser observado, o paradigma da atenção psicossocial, ou produção
social da saúde e da doença, encontra-se presente nas apresentações
dos conteúdos.
A partir disso, compare, reflita e produza um texto respondendo aos
seguintes questionamentos:
• O que estes contextos apresentam de semelhante entre si?
• Que situações e aspectos parecidos entre estes contextos estão
envolvidos na determinação de sofrimento mental?
• Que transtornos mentais são comuns a todos os contextos? Quais
são específicos?
• A que conclusões você chega a partir disso e considerando a
determinação social da saúde e doenças?
Se houver a possibilidade, discuta com outros colegas as conclusões a
que chegaram.
169
médico-psicológico sobre o problema racial descreve o
“negro” como “objeto da ciência”, ao mesmo tempo em
que a ideia de raça é compreendida como conceito bioló-
gico e o racismo é naturalizado. Esse período foi marcado
pelos estudos médico-psicológicos iniciados pela “Escola
Baiana de Antropologia” (Raimundo Nina Rodrigues e seus
discípulos);
b) o período de 1930 até 1960, caracterizado pelo impacto
da obra de Gilberto
Freyre, em que o conceito de raça aparece como deter-
minante cultural onde o racismo se justifica através da
falsa ideia de hierarquias culturais que posteriormente foi
marcado pela crítica ao mito da “democracia racial”
c) um momento que se inicia na década de 1970, sob influ-
ência de estudos de desigualdades raciais, quando a raça
é compreendida como constructo social que determina as
desigualdades simbólicas e materiais da população negra.
Esse é o momento em que trabalhos em torno do conceito
de branqueamento/ branquitude, de debates voltados
para a criação de ações de promoção da igualdade étnico-
-racial no Brasil e também sobre a questão da identidade,
começam a ocupar espaço nas pesquisas em Psicologia.
(SCHUCMAN; MARTINS, 2017, p.175)
170
profundamente, de maneira negativa, a identidade e subjetividade daqueles
que sofrem este tipo de preconceito (SCHUCMAN; MARTINS, 2017).
Exemplificando
Racismo no Brasil
Podemos observar como o racismo molda as relações sociais no Brasil
quando observamos, por exemplo, a exclusão de pessoas negras do
mercado de trabalho, universidades e cargos políticos. Além disso,
no que se refere à população carcerária, esta é composta majorita-
riamente por negros. Outro exemplo de racismo são manchetes de
matérias jornalísticas em que quando é um negro o suspeito de cometer
um crime este é tratado por “bandido, traficante”, etc., e quando é um
branco é tratado por “jovem, universitário, empresário”, etc. Estes são
exemplos de como o racismo constrói e mantém privilégios para os
assim chamados “brancos” na sociedade brasileira.
171
No Brasil, decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) equipara
a homofobia (preconceito contra homossexuais) ao racismo, ou seja, torna a
homofobia crime e passível de punição. Esta decisão foi tomada em resposta
a ações movidas por associações LGBTQ (Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas e Transgêneros, Grupo Gay da Bahia e Partido Solidariedade) que
exigiam um posicionamento do STF em relação à homofobia, visto que o
poder legislativo foi omisso nessa questão (LEITE; REZENDE, 2019).
E quanto à atuação profissional do psicólogo em relação à diversidade
sexual, foi em 1999 que o Conselho Federal emitiu a resolução 001/99, que
proíbe o psicólogo de exercer “qualquer ação que favoreça a patologização
de comportamento e/ou práticas homoeróticas nem adotar ação coerci-
tiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”
(KAHHALE, 2011, p. 23), ou seja, é proibido ao psicólogo exercer qualquer
tipo de prática que promova a “cura gay”, porque, como já exposto: homos-
sexualidade não é doença.
Pesquise mais
Para se aprofundar mais sobre o histórico de construção da Resolução
CFP nº 001/99, que proíbe práticas de “cura gay” ou psicoterapias de
reversão de orientação sexual, leia o texto “Histórico do Sistema Conse-
lhos de Psicologia e a interface com as questões LGBTs” que se encontra
em um caderno temático do CRP 06 (São Paulo) dedicado às relações da
psicologia brasileira com a diversidade sexual.
KAHHALE, E. M. P. Histórico do Sistema Conselhos de Psicologia e a
interface com as questões LGBTs. In.: Conselho Regional de Psicologia
da 6ª Região (org). Psicologia e diversidade sexual. São Paulo: CRPSP,
2011, p. 20-24.
172
no Brasil, para o avanço na jurisprudência relativa à adoção de crianças por
casais homossexuais (KAHHALE, 2011; CFP, 2019).
Caro aluno, esperamos que o conteúdo deste material contribua para
uma formação e uma prática profissional crítica e significativa.
Após ver e ouvir o “show” de conhecimentos que seu amigo Eusébio tinha
acabado de dar, falando sobre as relações da psicologia e da saúde mental com
os contextos de desastre, reforma agrária, imigração, além do envolvimento
dos saberes e práticas psicológicas com as questões raciais e da diversidade
sexual, é como se um novo mundo de possibilidades se abrisse para Lauro.
Lauro percebeu que a psicologia, por ser uma ciência que pode e deve
pensar e oferecer respostas para os problemas atuais de sua época e socie-
dade, não “parou no tempo”. Muito pelo contrário, avançou cada vez mais e
esteve ligada às situações e contextos relevantes da sociedade brasileira.
Afinal, um dos objetivos dos saberes construídos pelos seres humanos
é justamente minimizar, na medida do possível, os sofrimentos que são
inerentes à condição humana, assim como ajudar com seus saberes e práticas
aqueles que necessitam de ajuda.
Lauro pode imaginar, não sem uma boa dose de angústia, enquanto
Eusébio relatava sobre o trabalho do psicólogo em situações de desastre e
imigração, o como deve ser dolorido ter sua rotina e sua vida bruscamente
interrompidas por uma situação calamitosa. “Confesso que nunca parei para
pensar nisso, Eusébio, a gente sempre acha que isso vai acontecer com os
‘outros’ e nunca com a gente, né?”.
Da mesma forma, Lauro nunca tinha feito a relação entre pobreza e saúde
(ou doença) mental. Ouvindo Eusébio, Lauro percebeu como realmente
as condições sociais determinam uma maior ou menor qualidade de vida
e como o contexto de pobreza, por ser marcado por diversas e inúmeras
privações, inclusive de direitos básicos de sobrevivência, pode acarretar em
profundas marcas na saúde mental, aí incluso o recurso ao álcool e outras
substâncias psicotrópicas como maneira encontrada de aliviar o sofrimento
mental e emocional. Lauro, por ser um típico cidadão urbano, encontrou
dificuldade para se imaginar em um contexto rural, ainda mais em uma
situação de pobreza extrema, como é o contexto em que vivem muitos brasi-
leiros do campo e da reforma agrária.
Lauro não teve como discordar de Eusébio quando este passou a dissertar
sobre como o racismo é estruturante das relações sociais no Brasil. Como
173
Lauro vinha de um contexto corporativo, teve a oportunidade de vivenciar
inúmeras situações de racismo velado ou explícito, que colaboraram para a
exclusão, na empresa, de diversas pessoas que viram ser negadas a si o direito
ao acesso a diversos contextos trabalhistas. Concordou com Eusébio o quão
são deletérias essas práticas tanto ao indivíduo, em seu aspecto subjetivo,
quanto à sociedade de modo geral.
Eusébio colaborou, também, para que Lauro voltasse sua atenção para
um assunto pelo qual nunca tinha se interessado: a relação da psicologia com
a diversidade sexual. Apesar de ser um tema com o qual não tinha nenhum
problema, Lauro concordou com Eusébio como é um absurdo em pleno
século XXI existirem pessoas que são “contra” a homossexualidade a ponto
de considerá-la uma doença que deve ser curada. Também julgou pertinente
os avanços que os setores LGBTQI+ conquistaram referentes à garantia de
direitos e despatologização de suas sexualidades.
Finalmente, ao se despedir e agradecer novamente Eusébio pela “aula”,
Lauro se deu conta de que, uma vez que atuará diretamente com o social,
deverá se manter sempre atualizado, pois a sociedade, assim como a história,
está sempre mudando, sempre em movimento.
E, portanto, não devemos ficar parados, não é mesmo, caro estudante?
Assim, desejamos uma ótima trajetória de formação e atuação profissional.
Avançando na prática
174
social de Laura, constatou conversas em que Laura se declarava amorosa-
mente para uma de suas amigas, a mais próxima e que convivia sempre com
ela. Dona Irene não concordava com isso e achava errado Laura se relacionar
com meninas, por isso buscou sua ajuda, para ajudar a Laura a encontrar o
“caminho correto”.
Resolução da situação-problema
Você, como um bom psicólogo clínico, acolhe o sofrimento e a angústia
de dona Irene relativas ao comportamento afetivo de sua filha Laura. Na sua
intervenção, entretanto, pontua que a sexualidade humana é uma temática
ampla e complexa e que pode se manifestar de maneiras bem variadas e
diversas. Ainda que dona Irene não “concorde” com os comportamentos de
sua filha, não há o que ser corrigido, porque não há nada errado em Laura ser
lésbica, se este for o caso. Você explica para dona Irene que pode sim receber
Laura em seu consultório para acolher e trabalhar com o que esta venha a
trazer, mas que não atuará no sentido de “curar” a sexualidade de Laura, pois
se ela for homossexual, isso não significa que ela é doente, mas que esta é a
maneira que ela encontra para expressar a sua sexualidade. Também orienta
dona Irene que a melhor maneira de ela ajudar a sua filha é se mostrando
aberta e compreensiva, acolhendo e aceitando Laura como ela é. Dona Irene,
entre lágrimas, concorda que esta é a melhor maneira de lidar com sua filha,
pois a ama muito, só estava com receio de ela estar seguindo algum caminho
incorreto. Você e dona Irene, então, combinam que o atendimento poderá
envolver ambas, mãe e filha, para aprenderem a lidar com essa demanda que
se apresentou.
175
c. O psicólogo não deve trabalhar nenhuma temática deste assunto, pois
não corresponde ao corpo de conhecimentos da psicologia.
d. O psicólogo deve se posicionar frontalmente contra as questões
LGBTQ, visto que são desvios e perversões.
e. Ao psicólogo é proibido exercer qualquer ação que favoreça a patolo-
gização de comportamento e/ou práticas homoeróticas nem adotar
ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos
não solicitados.
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e. No que tange às questões raciais, cada psicólogo é livre para agir de
acordo com seus próprios valores e convicções, desde que assentados
na teoria e prática psicológicas consagradas.
3.
O conceito de determinação social da saúde (...) traz como
pressuposto fundamental uma compreensão ampliada
da saúde por meio de um olhar interdisciplinar sobre
as formas de organização da sociedade, de sua estru-
tura social e econômica, entendendo que a produção da
saúde, da doença e do cuidado está diretamente a elas
associada. Nesse sentido, não envolve apenas indicadores
de desigualdade social e pobreza, mas contempla questões
como a presença, qualidade e acessibilidade aos serviços
e ações de saúde pública e sua interface com outras
políticas setoriais, aos recursos comunitários, bem como
compreende como as vizinhanças se configuram, o grau de
integração e suporte social presente em uma comunidade.
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Referências
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pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
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htm. Acesso em: 17 set. 2019.
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cial em análise. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 37, n. 2, p. 461-474, 2017.
DICIO. Migração. Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em: https://
www.dicio.com.br/migracao/. Acesso em: 18 set. 2019.
LEITE, M.; REZENDE, C. Por 8 votos a 3, STF aprova usar leis de racismo para punir homofobia.
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Acesso em: 16 jun. 2019.
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