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Os feminismos negros:
a reação aos sistemas de opressões
ROSALIA DE OLIVEIRA LEMOS*
*
ROSALIA DE OLIVEIRA LEMOS é Doutora em Políticas Públicas na Universidade
Federal Fluminense; ORCID iD: http://orcid.org/0000-0003-3700-4315.
13
O papel desempenhado por Ida B. Wells never sacrificed one group for the
foi fundamental na definição sobre o other, or the black women who
conceito de interseccionalidade, ao inhabited both. She apparently
destacar as diversas formas de opressão understood what scholars like
a que as mulheres afroamericanas Kimberle Crenshaw have termed
the “intersectionality” of
estavam subjugadas: oppression. As her anti-lynching
Wells’ resistance to both racial and campaign shows, she was keenly
gender inequality reveals a aware that sexism, racism and other
sophisticated political philosophy. forms of oppression were mutually
A committed campaigner for the constitutive and reliant (THOMAS,
rights of both women and African 2011).
American regardless of gender, she
Corroborando Jabardo Velasco (2012): seus enunciados, nele foi ressaltado o
valor de todas as mulheres negras para a 17
Escoger entre las cientos de voces
rescatadas de este periodo a dos de
libertação, tendo em vista que nenhum
ellas no era una tarea fácil. Sin outro movimento progressista ainda
embargo, Ida Wells y Sojourner tivesse considerado esta luta como
Truth son sin duda dos de las más prioridade, ou mesmo nunca se
significativas. Lo son porque tanto empenharam para buscar o fim das
desde posiciones teóricas ― en el opressões. O documento afirmava que
caso de Wells ― como desde el são as mulheres negras que deveriam
coraje y la lucidez de una mujer liderar, de forma consciente, esta
iletrada ― como Sojourner Truth libertação.
―, sentaron las bases de lo que
sería el pensamiento del feminismo Above all else, our politics initially
negro, la clara alianza entre la sprang from the shared belief that
reflexión teórica y las estrategias de Black women are inherently
movilización. También porque son valuable, that our liberation is a
reflejo de la forma colectiva de necessity not as an adjunct to
generar pensamiento del feminismo somebody else's may because of
negro. A diferencia del feminismo our need as human persons for
blanco, que tiene su momento autonomy. This may seem so
fundacional en la Ilustración y obvious as to sound simplistic, but
reproduce la racionalidad del it is apparent that no other
pensamiento ilustrado, el ostensibly progressive movement
feminismo negro surge en un has ever considered our specific
contexto esclavista. Desde aquí, se oppression as a priority or worked
pretende romper con la seriously for the ending of that
construcción individual del oppression. Merely naming the
pensamiento filosófico ilustrado, pejorative stereotypes attributed to
apostando por la inclusión de Black women (e.g. mammy,
distintos saberes, lógicas, actrices matriarch, Sapphire, whore,
sociales. (JABARDO VELASCO, bulldagger), let alone cataloguing
2012, p. 28). the cruel, often murderous,
treatment we receive, Indicates
Será a Declaração Feminista Negra que how little value has been placed
sistematizará o pensamento feminista upon our lives during four centuries
negro. of bondage in the Western
hemisphere. We realize that the
2. A Declaração Feminista Negra –
only people who care enough about
1974 us to work consistently for our
No ano de 1974, The Combahee River liberation are us. Our politics
Collective, coletivo integrado por evolve from a healthy love for
feministas negras e lésbicas, publicaram ourselves, our sisters and our
community which allows us to
A Black Feminist Statement (Declaração continue our struggle and work.
Feminista Negra) que estabelecia (The Combahee River
compromissos para o desenvolvimento Collective,1978, p. 02).
de lutas contra a opressão racial, sexual,
heterossexual e de classe. O feminismo A Declaração Feminista Negra é um
negro foi definido como um movimento marco para a epistemologia feminista
de lógica política para combater as negra, uma vez que foi criado por
múltiplas e simultâneas opressões a ativistas, o que descontrói a concepção
todas as mulheres negras. Em um de de algumas ativistas do mulherismo de
que o feminismo negro foi criado por lesa-pátria” (Huntley e Guimarães,
mulheres negras burguesas acadêmicas. 2000, p. 97). Prosseguindo na sua 18
intensa lide organizativa, com
3. Os feminismos negros no Brasil eventos marcantes para a atividade
No Brasil, os estudos de Silva (2005) política e cultural do negro
vão resgatar reflexões sobre a brasileiro, também sob a batuta do
TEN estavam a Conferência
especificidade das mulheres negras, a
Nacional do Negro Brasileiro, o
partir do olhar das escritoras negras, Primeiro Congresso do Negro
entre 1945 e 1964, no Rio de Janeiro, Brasileiro e foi constituído o
São Paulo e Santa Catarina. Ao fazer a Conselho Nacional de Mulheres
análise das ações políticas de Maria de Negras (SILVA, 2003, p. 222).
Lurdes Nascimento, Nair Theodoro de
Araújo e Antonieta de Barros, que já Portanto, as ações das mulheres negras
naquela época escreviam sobre a brasileiras neste Conselho são similares
interseção de raça e gênero realizando, a às ações políticas de Truth, Wells e do
autora apresenta um dos marcos da The Combahee River Collective, como
epistemologia feminista negra. aquelas que anteciparam as reflexões
daquilo que viria a ser definido como
No Rio de Janeiro, quando é publicado interseccionalidade, tão em voga nos
o jornal Quilombo pelo Teatro dias atuais.
Experimental do Negro3, com a
No entanto, será Carolina Maria de
gerência de Maria Nascimento e com
sua coluna Fala Mulher Maria de Jesus, mineira, que se insere no cenário
Lurdes Nascimento (SILVA, 2005, p. nacional, que trará ao público o
01-02) ampliou as fronteiras do aspecto cotidiano de uma moradora da favela do
não só racial como agregou as questões Canindé, Zona Norte de São Paulo. Ela
de gênero para dialogar sobre a situação expressou a visão de uma catadora de
das mulheres negras em diferentes lixo e produziu um clássico da literatura
zonas de confluências de opressão, brasileira, que é o livro Quarto de
como as moradoras de territórios Despejo. Nesta autobiografia através de
discriminados. um diário, encontram-se relatos sobre as
opressões de classe, a relação com a
O Conselho Nacional das Mulheres vizinhança, a denúncia da classe
Negras que foi criado em 1950, dentro política, a reflexão das relações
do Teatro Experimental do Negro, amorosas, a jornada de trabalho sub-
quando não havia nenhum conselho de humano nas quais as mulheres negras
outra espécie, também foi resgatado por estavam submetidas. Reflete, ainda, o
Silva (2003): compromisso de chefe de família e seu
Continuando nesta efervescência, empenho e compromisso com a
na década seguinte foram educação e nos proventos aos filhos.
realizadas, sob os auspícios do Contudo, que algumas mulheres negras
TEN, duas Convenções Nacionais
tenham se destacado na luta pelos seus
do Negro. Ambas encaminharam à
constituinte, através do então direitos e pelos direitos de todas as
senador Hamilton Nogueira, uma mulheres negras4, será a partir da década
“proposta de inserir a
discriminação racial como crime de
4
São destaques, entre outras: Felipa de Souza,
(1560-1600), Dandara (...-1694), Teresa de
3
Jornal Quilombo. Ano I, Rio de Janeiro, maio Benguela (século XVIII), Maria Filipa (1822-
de 1949. 1873), Luiza Mahin (século XIX), Mãe
de 1970, que as mulheres negras A grande maioria das feministas
intensificaram a crítica das opressões brancas não via com bons olhos 19
seja nos movimentos negros, de favela nossos questionamentos dos
ou feminista. Todas empreenderam paradigmas feministas que elas
buscam institucionalizar; e, por
intensos debates acerca de direitos
outro lado, muitos negros
sociais, políticos, econômicos e civis. simplesmente viam nosso
Era o momento de demarcar as envolvimento como a política
especificidades das ações políticas do feminista como um gesto de traição
movimento de mulheres negras; das e desconsideravam nosso trabalho
demandas das mulheres negras; da (HOOKS, 2013, p. 165).
situação dessas mulheres negras e de
suas necessidades ou condições de vida, O depoimento de Bell Hooks (2013),
com o objetivo de construir a identidade anteriormente citado, demonstra que
do movimento com foco nas reações similares ocorreram em outros
desigualdades de raça, gênero e classe. locais. No Brasil, também a
(LEMOS, 2015, p. 208-209). participação das mulheres negras no
feminismo branco se dava com muitos
O início dos anos 1980 é marcado pelo embates. Assim como nos Movimentos
acirramento das fronteiras das Negros, os embates para a participação
especificidades, onde pode ser das mulheres negras eram frequentes.
constatado que as bandeiras das As ativistas feministas preconizavam os
feministas brancas se distinguiam valores hegemônicos da raça branca,
daquelas defendidas pelas mulheres por conseguinte, não estavam imunes às
negras seja da classe média ou de práticas que desconsideravam as
faveladas. As questões relacionadas às diferenças étnico-raciais.
mulheres negras eram invisibilizadas.
Por outro lado, a participação nos
Um dos episódios que me vem à movimentos negros agregaria outra
memória refere-se a uma das reuniões dimensão do não contentamento e da
do movimento feminista, quando as falta de representatividade no processo
brancas contestavam nossas falas sobre de luta política, que versava sobre a
a importância da luta por creches percepção de que não bastaria priorizar
comunitárias. Ora, como éramos as a luta contra o racismo, se não fossem
babás e as empregadas domésticas de questionadas as práticas sexistas e
suas casas e, as nossas crianças ficavam machistas dos homens que lideravam as
“soltas” nas favelas quando instituições dos Movimentos Negros.
trabalhávamos, o que poderia justificar
a adesão ás nossas reivindicações, mas A presença das mulheres negras era
“elas” foram aliadas às nossas sistematicamente secundarizada, uma
propostas. A luta por creches vez que as tarefas assumidas pelas
comunitárias era uma bandeira tão mulheres negras, no processo da luta
importante para as mulheres negras política contra o racismo, reservavam e
moradoras das áreas pobres, que reafirmavam o lugar da subalternidade.
assumíamos com toda a força em nossa O ápice da tensão se dava diante da
ação política. Dessa relação tensa, negação no ato de compartilhar o
hooks (2013) reflete: microfone e que piorava quando
disputávamos a representação política.
As intervenções nas reuniões eram
Menininha do Gantois (1894-1986), Lélia desqualificadas, tendo em vista que a
Gonzalez (1935-1994). expectativa e as solicitações dos
homens negros era para que Sob outro aspecto é fundamental e
assumíssemos as tarefas estratégico para ele desqualificar 20
tradicionalmente reservadas às em especial a mulher negra porque
mulheres. Este cenário deixava evidente atrás do rosto escuro de cada uma
de nós estão mães, avós, irmãs,
a estrutura patriarcal reproduzida pelos
escravas, mucamas de cama, mesa
militantes, sem contar os constantes e banho. Testemunhas de uma
apelos à nossa sexualidade história de derrotas e fracassos da
configurando outro ponto de tensão, qual somos todos herdeiros e que
tendo em vista as constantes investidas, nenhuma estória de mobilidade
cantadas e a declarada crítica e aversão, social individual pode apagar. Soa
por parte de alguns homens negros, recuperação coletiva de nossa
contra as lésbicas negras. capacidade de autodeterminação
poder fazê-lo. E é isto que homens
Um exemplo que posso resgatar neste e mulheres negros organizados
artigo, diz respeito ao texto publicado buscam realizar através das
pelo historiador Joel Rufino, quando inúmeras entidades negras
espalhadas por todo o país, que na
estava presidente da Fundação Cultural
luta política cotidiana contra o
Palmares, ocasião em que comparou a racismo e a discriminação racial
mulher negra, mas o termo que ele usou forjam propostas de emancipação
foi “mulata”, e escreveu, no livro Atrás social e de resgate da dignidade de
do Muro da Noite (BARBOSA, 1994), todo o povo negro deste país.
Lemos (1997, p. 45), que a mulher ideal
seria a mulata, pois ela reúne a beleza Mas, paradoxalmente, Joel Rufino
da branca e a facilidade da preta: prefere esquecer a história e opta
por escrever estórias em que seres
A parte mais óbvia da explicação é humanos são transformados em
que a branca é mais bonita que a Fuscas e Monzas, pilotados por um
negra e quem prospera troca pobre neguinho que um dia dormiu
automaticamente de carro. Quem e sonhou que era campeão de
me viu dirigindo um Fusca e hoje Fórmula 1. (CARNEIRO, 1995, p.
me vê de Monza tem certeza de que 552).
já não sou um pé-rapado: o carro
como a mulher é um signo. Há no
Como se vê, as tensões eram
Brasil uma multidão de pretas
bonitas, mas a forma da beleza é multidirecionadas e diante desses dois
branca. A preta que se aproxima polos incongruentes, Feminismo Branco
dela passa a cabrocha, jambete, e Movimento Negro e o Feminismo
mulata, etc. Um brasilianista é que Negro toma forma e se intensifica nesse
percebeu isso bem, ao explicar a período chegando ao auge nos anos
queda nacional pela mulata: é a 1980 com a criação de diversas ONGs
mulher ideal, pois tem, ao mesmo de mulheres negras, que irão se
tempo, a beleza da branca e a avolumar nos anos 1990. Em sua
facilidade da negra (RUFINO, pesquisa, Santos (2009, p. 283) resgata
1994, p. 163). o papel das ONGs de Mulheres Negras
no Brasil, identificando que essa ação
Na época, a afirmação gerou muita
política foi vital, no que se refere à
polêmica e tensão entre as feministas mobilização nacional e internacional
negras e o historiador. Destaco a crítica das afrodescendentes – bem como de
de Carneiro (1995), que traduz a
vários outros atores sociais e
percepção sobre o incidente:
instituições –, para pensar as formas
pelas quais o racismo operava terminologia não fosse adotada à época.
historicamente pelo mundo. Ao lado de Lélia Gonzalez, Jurema 21
Batista, Sandra Bello, eu, Elizabeth
Diante do quadro no qual as mulheres
Viana, Jane Thomé, Miramar Correa,
negras se consideravam sub-
dentre outras davam um novo tom à luta
representadas, é fundado o NZINGA:
das mulheres negras no Rio de Janeiro,
Coletivo de Mulheres Negras do Rio de
unindo mulheres negras de classe média
Janeiro, [figura 03], no ano de 1983,
e de favelas.
que se configurou na primeira entidade
do feminismo negro – mesmo que essa
A criação do NZINGA é o marco para o Ângela Davis, bell hooks, dentre outras,
Feminismo Negro contemporâneo no cujas contribuições foram apresentadas
Brasil devido seu posicionamento anteriormente.
político nas relações de gênero e raça. E A produção intelectual de Lélia
vale destacar a relevância da iniciativa Gonzalez contribuiu para dar
da ativista, professora mestre e a visibilidade acadêmica à epistemologia
política, Lélia Gonzalez que iria iniciar feminista negra no Brasil. Seus textos,
a sistematização do pensamento para além de descrever situações de
feminista negro e faria de sua produção opressões impostas por um sistema
intelectual, um veículo de militância e racializado, acrescentam a reflexão
de repúdio austero à Democracia Racial sobre a importância do ativismo na
no Brasil. Em seus textos, encontram-se transformação da realidade da mulher
a denúncia do racismo, do sexismo, das negra brasileira. Há um legado de luta
discriminações por orientação sexual e em seus textos que vão além da
suas incidências sobre as mulheres constatação das situações cotidianas de
negras. Assim como as escritoras dos embates no feminismo tradicional
anos 1940 e 1950, Lélia pensava nos (hegemônico ou branco), nos partidos e
sistemas de opressão interseccionados, no movimento negro.
conceito que estarão presentes nas
produções das afronorteamericanas, tais Havia um movimento concomitante das
como Sojourner Truth, Ida B. Wells, mulheres de favelas se inseriram nesses
Kimberley Crenshow, Patrícia Collins, espaços de luta e passam a se organizar
através do CEMUFP – Centro de
Mulheres Negras de Favela e Periferia. Não vejo fundamento neste
Estas mulheres agregaram ao debate pensamento, uma vez que fui no ônibus 22
racial e de gênero, a classe social como para participar do evento – tinha ganho
determinante e definidora de graus de bolsa para participação representando o
dominação e opressão. Assim, as NZINGA – e, em nenhum momento as
bandeiras que inquietavam diversas mulheres no ônibus faziam reflexões
mulheres faveladas não encontravam feministas, inclusive, grande maioria
eco no movimento feminista branco não se intitulava feminista, mas sim
devido às diferenças de origem racial e “militantes do movimento de mulheres
social e, por outro lado, o sexismo negras. As escritas de Maria Amália de
pragmático dos Movimentos Negros Almeida Teles (199. p. 12) contribuem
reservava às negras um lugar de para se refletir sobre a distinção entre
segunda categoria no exercício político movimento de mulheres e movimento
e de sua própria existência. feminista:
É interessante notar que algumas A expressão “movimento de
ativistas negras, advogam ter sido o mulheres” significa ações
embate de cunho nacional em Bertioga, organizadas de grupos que
durante o III Encontro Feminista reivindicam direitos ou melhores
Latino-Americano e do Caribe como o condições de vida e trabalho.
marco para o nascimento do feminismo Quanto ao “movimento feminista”
refere-se às ações de mulheres
negro, quando no ano de 1985, 27
dispostas a combater a
mulheres negras de favelas do Rio de discriminação e subalternidade das
Janeiro protagonizam o primeiro embate mulheres e que buscam criar meios
nacional entre negras e brancas, ao para que as próprias mulheres
articularem um ônibus com lideranças sejam protagonistas de sua própria
de favelas, organizadas pelo CEMUFP história.
para tentar participar do evento, sem ter
feito inscrição prévia. (LEMOS, 1997, O que estava em jogo era a busca pelo
p. 78) 5. direito de falar, de participar e fazer
com as próprias vozes e mãos sua
herstórias. O que as mulheres negras
brasileiras exigiam era aliar a luta
5
contra o racismo, contra o sexismo,
Atualmente adoto a terminologia Feminismo
contra o preconceito e contra a
Branco, uma vez que tradição por tradição, as
mulheres negras também foram feministas em exploração vivida pelas mulheres de
épocas remotas, mesmo não sendo reconhecidas favelas e o repudio às normatizações de
como tal, uma vez que o senso comum comportamentos sexuais –, pois tais
considerava mulher, apenas a mulher branca e, pautas quando anunciadas pelas
consequentemente, as ações políticas das
mulheres negras não eram consideradas
mulheres negras que lutavam por igualdade de
gênero não eram consideradas como lutas de importantes nem mesmo relevantes,
feministas. Também não adoto o termo muito menos eram articuladas no que
Hegemônico, uma vez que sempre houve tange às especificidades para a
resistência por parte das mulheres negras contra autodeterminação das mulheres negras.
a imposição de um modelo de feminismo das
classes dominantes brancas, por questões Suely Carneiro observa que o atual
diversas que vão desde o uso da oralidade para movimento de mulheres negras, ao
transmissão do conhecimento à fragilidade no
acesso ao ensino regular, fazendo com que as
trazer para a cena política as
produções das mulheres negras foram contradições resultantes da articulação
invisibilizadas. das variáveis de raça, classe e gênero,
promove a síntese das bandeiras de luta produzir novos conhecimentos
historicamente levantadas pelo científicos sobre os Feminismos 23
movimento negro e de mulheres do Negros. Entretanto, desafios ainda
país. De um lado, “enegrecendo” as persistem para descentralizar os estudos
reivindicações das mulheres, tornando- na academia brasileira, conforme
as mais representativas no conjunto das sinaliza Claudia Pons Cardoso (2012)
mulheres brasileiras, e, por outro, quando analisa que:
promovendo a feminização das A investigação feminista negra
propostas e reivindicações do realizada a partir de um
movimento negro (CARNEIRO, 2011, posicionamento epistemológico de
p. 03). forasteira de dentro (outsider
within) requer que intelectuais
A relevância de registrar a nossa
aprendam a confiar em suas
herstória, tem contribuído para próprias biografias pessoais e
demarcar, intensificar e conferir maior culturais como importantes fontes
visibilidade para a construção do de conhecimento. Assim se faz
conhecimento científico sobre mulheres emergir as experiências das
negras, isso porque, nas ciências sociais mulheres negras, na medida em que
esse conhecimento se dá através da a omissão e a distorção serão
sistematização baseada em uma confrontadas fazendo com que os
epistemologia europeia e norte- feminismos, nesta perspectiva,
americana. Fato que merece a crítica em surjam como diferentes lutas e
Ochy Curiel Pichardo (2014): falem de experiências subjetivas
historicamente construídas de
Este reconocimiento no puede ser diferentes mulheres. (CARDOSO,
solo un insumo para limpiar culpas 2012, p. 86).
epistemológicas, no se trata de citar
feministas negras, indígenas, Diante das resistências que têm sido
empobrecidas, para dar el toque flexibilizadas na academia a que se
crítico a las investigaciones y a los refere Claudia Pons Cardoso (2012),
conocimientos y pensamientos que vale registrar o baixo investimento na
se construyen. Se trata de circulação e adoção de uma literatura
identificar conceptos, categorías, negra em suas disciplinas obrigatórias
teorías que surgen desde las impedindo maior visibilidade destas
experiencias subalternizadas, que produções.
son generalmente producidas
colectivamente, que tienen la 4. O feminismo negro no ativismo
posibilidad de generalizar sin contemporâneo no Brasil
universalizar, de explicar distintas
realidades para romper el
Na atualidade, verifico maior interesse
imaginario de que estos de pesquisadoras do Feminismo Negro
conocimientos son locales, e por parte das ativistas das diferentes
individuales, sin posibilidad de ser neo denominações sobre o termo, que
comunicados (PICHARDO, 2014, ampliam as análises e propõem estudos
p. 57). interseccionais com grande variedade
temática: educação, saúde, organização,
Nos últimos tempos se verifica maior
trabalho, dentre outros.
aproximação das universidades com os
movimentos sociais e vice e versa, o Algumas subdivisões do Feminismo
que indica que a longo prazo, este Negro têm sido construídas, tais como
campo de pesquisa estará mais Mulherismo (sua origem é o Womanism
representado e novas pesquisas poderão de Alice Walker e ressignificado por
feministas africanas); Feminismo de Referências
Favela, Feminismo de Periferia, 24
CARDOSO, Cláudia Pons. Outras falas:
Feminismo Quilombola, Feminismo feminismos na perspectiva de mulheres negras
Negro Interseccional (parece um brasileiras. Salvador. Tese (doutorado) –
pleonasmo, uma vez que o feminismo Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
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periféricas são diferentes pois CARNEIRO, Sueli. Gênero, Raça e Ascensão
passamos por experiências e temos Social. Estudos Feministas, Rio de Janeiro:
demandas diferentes. O feminismo IFCS, UFERJ - PPCIS/UERJ,1995.
praticado na periferia se mobiliza
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a
então por essas causas específicas,
educação como prática de liberdade. São Paulo:
que nem sempre o acadêmico WMF Martins Fontes, 2013.
contempla, o que não impede o
diálogo, achamos que há um fluxo HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher.
constante entre os dois. O acesso à Mulheres negras e feminismo. 1ª edição 1981.
universidade pelas feministas da Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro
periferia tem sido importante, nesse 2014.
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