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1. Introdução
“A tecnologia é a sociedade”, profere Manuel de Castells no prólogo de sua
obra “A Sociedade em Rede”. O raciocínio, portanto, é de que não é possível
compreender fenômenos sociais sem, antes, destrinchar os instrumentos
tecnológicos das sociedades em que estão inseridos (CASTELLS, 2013). Por
conseguinte, o entendimento do Direito também é indissociável do avanço
tecnológico do século XXI. Redes sociais e aplicativos são apenas alguns dos
inúmeros exemplos de fenômenos sociais recentes que são um desafio para os
operadores jurídicos. A nova realidade social exige certas respostas do Judiciário,
que, atualmente, sofre visíveis dificuldades em acompanhar os passos que a
humanidade caminha diariamente.
Nesse contexto, explora-se, aqui, um evento que emerge com o advento da
internet na contemporaneidade: a pornografia de vingança. O termo é uma
tradução da língua inglesa originalmente denominado como revenge porn. A
expressão surgiu no cenário norte-americano, nos anos 80, em que um casal
decide, consensualmente, fotografar fotos nuas um do outro. Nada de incomum
para a intimidade de um casamento, em que a confiança é um pilar. Guardaram
as fotografias em um local que julgavam seguro. No entanto, um vizinho e amigo
do casal, encontrou as imagens da esposa, LaJuan, nuas. Ele encaminha o
conteúdo para uma revista de público-alvo adulto, que publica as fotos, sem a
autorização da moça. (CAVALCANTE, LELIS, 2016).
Dessa maneira, entende-se que a conduta descreve uma ação de divulgação
de conteúdo midiático (fotos, vídeos, áudios) privado de uma pessoa, sem o seu
consentimento e com o intuito de causar prejuízo moral e mental a alguém. É uma
espécie de pornografia não consensual, em que a mídia se espalha sem haver
autorização do detentor da imagem, com a nuance de, geralmente, ser praticada
por ex-companheiros e parceiros atuais. A noção de revanche envolve, assim, um
Aquele bandido não poupou nem os meus filhos. Ele chegou a colocar o
celular do meu menino naquelas divulgações. Quando o levava para a escola,
meu filho dizia: “mamãe, me deixa um quarteirão antes da escola”. Era para
as pessoas não descobrirem que eu era a mãe dele. Foi muito triste. Quando
descobriram, ele começou a ter problemas. Ele brigava. Era uma reação para
defender a honra da mãe. (FOLHA, 2017)
O crime ocorreu no ano de 2006. Dez anos depois, nada concreto havia
ocorrido. Eduardo foi condenado a tão somente 1 ano, 11 meses e 20 dias de
2 Disponível em: Quem é Léo Stronda, webcelebridade que teve foto íntima 'vazada' - Jornal O Globo
reclusão. Não foi preso, com a pena revertida em cestas básicas e trabalho
comunitário.
A indenização no meu caso foi de 30 mil reais. Até hoje não recebi, fazem
anos. Nada repara, não existe reparação para aniquilar um ser humano. [...]
Na internet, um minuto é um ano. Tudo demora muito e as consequências
para a vítima são mortais. (LINS, 2016)
3 Disponível em: Marias da Internet – ONG dedicada a orientação jurídica, psicológica e de perícia digital a
vítima de Disseminação Indevida de Material Íntimo
Cabe perguntar o que aconteceu com a garota. Thais postou, publicamente,
que estava sendo ameaçada de morte e não mais possuía paz nas suas próprias
redes sociais, para visualizar e mostrar o que bem entendesse. Perdeu o emprego,
um que dependia da imagem pública, assim como Rose. Como se não fosse
suficiente, ainda foi pressionada a publicar um vídeo se defendendo de ataques
realizados a sua pessoa. Era cobrada repetidamente para se pronunciar sobre o
caso. Defender-se. Exatamente do que, não se sabia, mas precisava, pelo seu
bem-estar. Em meio a tantas declarações, destaca-se quando reclamou
diretamente da diferença de tratamento que ela e Alexandre estavam recebendo.
Além de todas essas consequências, Thais também teve de se mudar e se
distanciar totalmente do ambiente virtual. A discrepância é como se fosse um
abismo. Ele, venerado, ela, massacrada. Ele, segue a vida normalmente, ela,
nunca mais terá a mesma.4
Nesse sentido, é impossível não questionar acerca das razões da distância
de resultados para um, e para outro. A resposta primordial se reflete no cotidiano:
a sexualidade feminina é estruturalmente reprimida. O ex-namorado de Thais
vazou as fotos íntimas com o intuito de se vingar da menina, não de Alexandre.
Estava ciente de que causaria danos permanentes. A vingança se concretizou com
a mulher, não com o homem. Somente ela sofreu as consequências negativas de
ter a intimidade compartilhada. Essa é a realidade de Thais, de Rose e de
incontáveis mulheres que possuem a privacidade violada por não mais atenderem
às expectativas de companheiros frustrados com fins de relacionamentos.
A organização norte-americana EndRevengePorn5 publicou uma pesquisa
referente ao ano de 2014. De todas os entrevistados, 90% das respostas positivas
a serem vítimas da revanche, eram do sexo feminino. Dentre elas, uma
porcentagem de 57% alegou que o conteúdo pornográfico foi vazado nas redes
por um ex-companheiro do sexo masculino. De acordo com o SaferNet6 - uma
instituição de referência nacional contra crimes cometidos no ambiente virtual no
Brasil - no ano de 2016, aproximadamente 67% (202 casos) das vítimas de
vazamento de conteúdo íntimo, foram mulheres. Se pegarmos os dados dos anos
4 Disponível em: Dias antes do CBLOL, RED Canids faz postagem polêmica que remete a caso de exposed -
Millenium
5 Disponível em: About Us | Cyber Civil Rights Initiative
6 Disponível em: Indicadores Helpline
seguintes, percebemos um padrão. Em 2017, sobe para impressionantes 71%
(204 casos). Em 2018, tem-se 66% (440). Já em 2019, com 55% (255 casos). Por
fim, o último ano com estatísticas, em 2020, há 56% de público feminino como
vítimas. Em todos os anos, as mulheres foram as principais vítimas da conduta,
em um claro padrão de comportamento dos agressores.
Para compreender as razões, é necessário buscar uma abordagem
sociológica. Simone Beauvoir, em sua obra “O Segundo Sexo” traz à tona a
construção social desde a infância da subordinação da mulher. O momento mais
notável e gritante seria durante a adolescência, quando os primeiros sinais da
puberdade surgem. Com as transformações dos corpos, a menina é moldada a se
esconder e ter vergonha do que acontece consigo. Deve evitar ao máximo receber
os olhares sobre si. As mudanças, analogamente, para os meninos, são sinônimo
de virilidade, um símbolo de poder. (BEAUVOIR, 1967). Giddens apresenta uma
lógica similar. Para o autor, há uma divisão entre as “mulheres virtuosas” e as
“mulheres perdidas”. As consideradas perdidas são marginalizadas da sociedade,
como aconteceu com Rose e Thais. A virtude se define com a pureza feminina, em
resistir a tentações sexuais (GIDDENS, 1993). Exemplos seriam manter a
virgindade em votos de castidade, vestir-se com poucas partes do corpo
aparentes, para preservar uma imagem de intocabilidade.
Assim, a exposição da prática do pornô de revanche atinge
desproporcionalmente a intimidade de mulheres, que, nas estruturas sociais
atuais, é entendida de modo a ser protegida, não compartilhada. Se não houvesse
um julgamento moral tão forte sobre a sexualidade feminina, Rose e Thais não
precisariam perder os empregos, muito menos serem humilhadas por,
simplesmente, confiarem em seus parceiros. A confiança não deveria ser motivo
de linchamento. O que acontece na intimidade sexual de cada indivíduo faz parte
do processo humano. Mulheres não devem ter as vidas destruídas por
expressarem a naturalidade de seus corpos.
Entende-se, aqui, portanto, a pornografia de vingança como um mecanismo
de manutenção da violência de gênero, nos moldes tecnológicos do século XXI.
Não é afirmar que homens não são atingidos pela prática, nem desconsiderar
aqueles que também são vítimas da conduta. Mas sim seguir o raciocínio de que
as consequências são mais catastróficas para as mulheres, justamente pelo fato
de a sexualidade feminina ser construída e moldada para ser reprimida, e não
exposta, como argumentado por Giddens e Beauvoir, e demonstrado pelas
estatísticas e casos reais apresentados.
As críticas, em certos pontos, eram racionais e justas. O bem tutelado não era
somente a honra. Na verdade, reduzir à honra tão somente propagava o discurso
moral que a intimidade feminina deve ser reprimida. Não se deve reduzir a reputação
de uma mulher a um vazamento de uma foto íntima. Não deveria ser uma mancha
permanente em sua vida, muito menos um julgamento moral.
Nesse sentido, a dignidade sexual também precisava começar a ser
considerada como bem jurídico a ser protegido. Analogamente, a igualdade de gênero
passa a tomar forma nos debates, afinal, como afirmado aqui, a pornografia de
vingança perpetua desigualdades de gênero estruturais. Com cada vez mais casos
surgindo, o sistema judiciário precisava dar as respostas que passaram a ser exigidas
pelas vítimas, por ativistas de direitos sexuais, especialistas e os grandes veículos de
comunicação em massa. A sociedade como um todo pressionava.
A Lei Maria da Penha se torna recorrente nas discussões. Por conseguinte,
passou-se a ter o entendimento de que dispositivos da referida lei poderiam ser
evocados pelas vítimas da pornografia de revanche, justamente por, na maioria dos
casos, haver a relação doméstica, envolvimento romântico, vínculo entre a vítima e o
agressor. O art. 7° da Lei Maria da Penha traz a definição de violência psicológica,
cabendo, assim, a situação de exposição não consentida da intimidade da mulher, por
ser um meio de constrangimento, ocasionando irreparáveis danos emocionais.
Medidas protetivas de urgência podem ser requeridas pela vítima, portanto, de acordo
com o art. 22, com o intuito de cessar os ataques. (BACH, STOCO, 2017)
Desde então, o Legislativo, buscou, em diversas propostas, a criação de
novos artigos ou novas leis que pudessem enquadrar o fato típico de modo atualizado
ao Código Penal, isto é, com a pretensão de dar origem a uma tipificação específica
para a conduta de pornografia de revanche. Houve diversas tentativas. Mais de doze
contabilizadas nos trâmites das câmaras legislativas. Entre elas, destacam-se duas.
A primeira é o Projeto de Lei n° 5.555 de 2013, proposto pelo Deputado João
Arruda. A intenção não era criar um normativo, mas alterações dentro da Lei Maria da
Penha, e ideia surgiu justamente com o caso de Rose Leonel, tendo até mesmo o
nome da jornalista. O segundo é o Projeto de Lei n° 6.630, proposto pelo Senador
Romário, que visava um novo instituto normativo no Código Penal, incluindo o art.
216-B. (BACH, STOCO, 2017)
Outra tipificação também se tornou possível com a aprovação da Lei n°
13.718, dada a variedade de intepretações possíveis que a redação do dispositivo
218-C permite, principalmente considerando o seu parágrafo primeiro. O crime se
denomina, dentro do Código Penal, como: “divulgação de cena de estupro ou de cena
de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia” (BRASIL, 2018), sendo,
o nomen iuris, a primeira característica a ser criticada. Primeiramente, por ser
excessivamente longo, sem necessidade, em seguida, em seu próprio conteúdo,
referente ao uso da conjunção “ou”, como demonstra Sydow:
No entanto, embora passe essa primeira impressão, não foi essa a intenção
do legislador. A ideia era se referir tanto aos vulneráveis quanto aos não vulneráveis.
Para piorar a situação, há uma dessincronização entre o nomen iuris e o tipo penal.
Enquanto no primeiro cita-se “cena de sexo ou de pornografia”, no segundo, tem-se
“cena de sexo, nudez, ou pornografia”, isto é, adicionando o termo “nudez”. Ademais,
urge comentar a extensão do texto do tipo. São nove verbos que representam nove
possibilidades de ações, gerando, no fim, a admissão de 135 (centro e trinta e cinco)
condutas típicas. (SYDOW, 2018). A ministra Fátima Nancy Andrighi do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), declarou a intenção de, na realidade, denominar o tipo como
“exposição pornográfica não consentida”:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais
grave.
Mais uma crítica a ser feita à Lei é onde, no Código Penal, tal dispositivo se
encontra, que é no Capítulo II, denominado como “dos crimes sexuais contra
vulnerável”. Sem exceção, todo o rol de tipos listados no capítulo refere-se a condutas
praticadas contra sujeitos considerados vulneráveis, isto é, menores de 14 anos, o
que, poderia, interpretativamente, excluir vítimas maiores que essa faixa etária, sendo,
essas, a maioria. Mais um ponto consideravelmente questionável, aparentemente
deixado de lado pelo legislado. Há uma outra série de erros e críticas a serem
realizadas. A conclusão é simples: o tipo nasceu com preocupantes defeitos de
nascença, por surgir de um aproveitamento de um projeto de lei. É nada mais do que
um grande remendo legislativo. (SYDOW, 2018).
Assim, entende-se que a conduta de pornografia de revanche não foi tipificada
nesse artigo, tão somente se tornou uma causa de aumento de pena que incide na
pena-base quando há a relação entre a vítima e o agressor. (GOULART, 2019). Ainda
não era o suficiente, não para o Poder Legislativo. No mesmo ano, tem-se a
promulgação de um novo tipo penal, que, dessa vez, buscou ser mais direto quanto
às suas intenções. Somente com a Lei n° 13.718 de 2018 que se tem, por fim, uma
tipificação mais específica, em seu art. 216-B:
4. Considerações Finais