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Respostas do direito penal brasileiro à pornografia de vingança

Camila Cristina da Silva – 1901343051

1. Introdução
“A tecnologia é a sociedade”, profere Manuel de Castells no prólogo de sua
obra “A Sociedade em Rede”. O raciocínio, portanto, é de que não é possível
compreender fenômenos sociais sem, antes, destrinchar os instrumentos
tecnológicos das sociedades em que estão inseridos (CASTELLS, 2013). Por
conseguinte, o entendimento do Direito também é indissociável do avanço
tecnológico do século XXI. Redes sociais e aplicativos são apenas alguns dos
inúmeros exemplos de fenômenos sociais recentes que são um desafio para os
operadores jurídicos. A nova realidade social exige certas respostas do Judiciário,
que, atualmente, sofre visíveis dificuldades em acompanhar os passos que a
humanidade caminha diariamente.
Nesse contexto, explora-se, aqui, um evento que emerge com o advento da
internet na contemporaneidade: a pornografia de vingança. O termo é uma
tradução da língua inglesa originalmente denominado como revenge porn. A
expressão surgiu no cenário norte-americano, nos anos 80, em que um casal
decide, consensualmente, fotografar fotos nuas um do outro. Nada de incomum
para a intimidade de um casamento, em que a confiança é um pilar. Guardaram
as fotografias em um local que julgavam seguro. No entanto, um vizinho e amigo
do casal, encontrou as imagens da esposa, LaJuan, nuas. Ele encaminha o
conteúdo para uma revista de público-alvo adulto, que publica as fotos, sem a
autorização da moça. (CAVALCANTE, LELIS, 2016).
Dessa maneira, entende-se que a conduta descreve uma ação de divulgação
de conteúdo midiático (fotos, vídeos, áudios) privado de uma pessoa, sem o seu
consentimento e com o intuito de causar prejuízo moral e mental a alguém. É uma
espécie de pornografia não consensual, em que a mídia se espalha sem haver
autorização do detentor da imagem, com a nuance de, geralmente, ser praticada
por ex-companheiros e parceiros atuais. A noção de revanche envolve, assim, um

1 Bacharelanda da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB)


vínculo, uma proximidade entre a vítima e o agressor, não necessariamente sendo
romântico, mas que exista, pelo menos pela parte agressora, sentimentos
negativos envolvidos (BUZZI, 2016). Em outros termos, tem-se a conceituação
como:
O termo consiste em divulgar em sites e redes sociais fotos e vídeos com
cenas de intimidade, nudez, sexo à dois ou grupal, sensualidade, orgias ou
coisas similares, que, por assim circularem, findam por, inevitavelmente,
colocar a pessoa escolhida a sentir-se em situação vexatória e
constrangedora diante da sociedade, vez que tais imagens foram utilizadas
com um único propósito, e este era promover de forma sagaz e maliciosa a
quão terrível e temível vingança. (BURÉGIO, 2015).

O presente artigo, utilizar-se-á da tese de que a pornografia de vingança


atinge, majoritariamente, o sexo feminino, evidenciando-se, assim, uma forma de
violência de gênero, por meio de dados e casos reais. Será feita uma breve
apresentação de projetos de lei anteriores à atual tipificação penal. Tem-se como
intuito primordial, aqui, investigar, criticamente, as transformações legislativas
originadas das Lei n° 13.718 e 13.772 de 2018. Dar-se-á um enfoque aos textos
dos 218-C, em especial, ao seu parágrafo primeiro e 216-B, respectivamente. Para
tal, será traçado um paralelo com a antiga tipificação da conduta de divulgação de
imagens de teor sexual sem consentimento, que era julgado como crime de
difamação e/ou injúria, conforme os art. 139 e 140 do Código Penal.

Palavras-chave: Pornografia de vingança. Pornografia de revanche. Artigo 218-


C. Artigo 216-B

2. Um meio de repressão da sexualidade feminina


Um cantor. Um youtuber de hábitos de saúde com mais de dois milhões de
seguidores. Uma simples foto vazada causa um alvoroço nas redes sociais, em
2017, principalmente pelos comentários nenhum pouco discretos acerca do
conteúdo da imagem. Léo Stronda teve a sua intimidade compartilhada,
desenfreadamente pela rede. No dia do ocorrido, o seu nome estava entre os
assuntos mais comentados do Twitter no Brasil. A nudez era total. Pode-se
imaginar, talvez, que quando uma mídia tão pessoal exposta, causaria efeitos
negativos na carreira do rapaz. O efeito foi o contrário. Ficou conhecido pelo
sucesso momentâneo da banda “Bonde da Stronda”. Há anos, não se falava tanto
do cantor como naquele fatídico dia. Voltou aos holofotes. Os comentários não o
repudiavam por tirar fotos íntimas. Os elogios eram aos montes. Elogiavam o seu
corpo. Veneravam o porte físico. Veículos de mídia o procuravam para entrevistas.
Vídeos na plataforma do Youtube sobre o assunto subiam sem parar. Não houve
repercussão ruim. Não houve julgamento moral. Não houve a mancha na
reputação. Léo Stronda gerou diversão, entretenimento e surfou na onda, sem
preocupação. Tanto que postou ironizando a situação em sua própria conta
pessoal do Instagram.2
Agora, uma jornalista. Uma apresentadora de televisão. Rose Leonel, com
uma carreira consolidada na cidade de Maringá no Paraná. O seu nome virou
projeto de legislação: a Lei n° 5.555/2013, com o intuito de alterar a Lei Maria da
Penha, tipificando o crime de divulgação de fotos e vídeos íntimos sem
consentimento. Relacionava-se romanticamente com Eduardo Gonçalves. Ela
termina a relação. O rapaz prometeu, com o fim, destruir a vida da mulher, caso
ela não continuasse com ele. Alguns meses depois, o ex-parceiro compartilha com
mais de 15 mil destinatários, e-mails contendo conteúdo da mais alta privacidade
entre o casal: fotos nuas enviadas por Rose durante o relacionamento.
Rose foi demitida. Desenvolveu depressão. Era humilhada sempre que saía
de casa. O filho mudava de escola constantemente. A sua família foi destruída. A
sua vida, de uma hora para outra, tornou-se um caos impossível de ser controlado.
Em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, ela declara um dos principais
resultados catastróficos na sua vida, a distância do filho, que foi enviado a morar
no exterior:

Aquele bandido não poupou nem os meus filhos. Ele chegou a colocar o
celular do meu menino naquelas divulgações. Quando o levava para a escola,
meu filho dizia: “mamãe, me deixa um quarteirão antes da escola”. Era para
as pessoas não descobrirem que eu era a mãe dele. Foi muito triste. Quando
descobriram, ele começou a ter problemas. Ele brigava. Era uma reação para
defender a honra da mãe. (FOLHA, 2017)

O crime ocorreu no ano de 2006. Dez anos depois, nada concreto havia
ocorrido. Eduardo foi condenado a tão somente 1 ano, 11 meses e 20 dias de

2 Disponível em: Quem é Léo Stronda, webcelebridade que teve foto íntima 'vazada' - Jornal O Globo
reclusão. Não foi preso, com a pena revertida em cestas básicas e trabalho
comunitário.

A indenização no meu caso foi de 30 mil reais. Até hoje não recebi, fazem
anos. Nada repara, não existe reparação para aniquilar um ser humano. [...]
Na internet, um minuto é um ano. Tudo demora muito e as consequências
para a vítima são mortais. (LINS, 2016)

Hoje, Rose Leonel fundou “Marias da Internet”3, uma organização não


governamental (ONG) com o objetivo de ser uma rede de apoio e orientação
jurídica para mulheres que também sofreram o mesmo ou similar destino que a ex-
jornalista. Uma vítima que enfrentou o linchamento moral e se tornou um símbolo
da luta feminina em combate à pornografia de vingança. E uma fala da ativista
destoa: “Quando imagens íntimas de homens caem na web, eles não são
demitidos ou humilhados. Pelo contrário, passam a ser valorizados pela sua
virilidade. A sociedade só condena as mulheres” (GLOBO, 2014)”.
Em 2021, temos outro caso de um jovem influente no ambiente virtual.
Alexandre Lima, também conhecido como “Titan” em seu codinome de jogador
profissional de esportes eletrônicos, mantinha conversas íntimas com uma garota,
Thais Queiroz, conhecida como “Misa”. Trocavam fotos com nudez. Eram adultos,
e fizeram por livre espontânea vontade. Nada incomum. No entanto, o ex-
namorado da garota descobre. E com o sentimento de vingança, realiza o
vazamento tanto das trocas de mensagens pelo WhatsApp, quanto das imagens
de Thais e Alexandre.
Nesse caso em específico, temos a nítida dualidade entre a exposição da
intimidade de uma mulher e de um homem. Alexandre, no dia do ocorrido, abriu
uma live. Milhares o assistiam. Claro que a situação foi o destaque dos
comentários feitos pelos internautas. Ele brincava, fazia piadas, ria, em nítida
despreocupação com o acontecido. Assim como no caso de Léo, não houve
julgamento moral. Comentavam sobre o seu corpo, com elogios de sobra.
Alexandre continuou a sua vida, normalmente, ganhando uma repercussão
positiva, com o engajamento gerado em seu nome em redes sociais. Não deixou
de ser um jogador profissional. A organização que o emprega não se importou com
a exposição. Pelo contrário, fez uso a seu favor.

3 Disponível em: Marias da Internet – ONG dedicada a orientação jurídica, psicológica e de perícia digital a
vítima de Disseminação Indevida de Material Íntimo
Cabe perguntar o que aconteceu com a garota. Thais postou, publicamente,
que estava sendo ameaçada de morte e não mais possuía paz nas suas próprias
redes sociais, para visualizar e mostrar o que bem entendesse. Perdeu o emprego,
um que dependia da imagem pública, assim como Rose. Como se não fosse
suficiente, ainda foi pressionada a publicar um vídeo se defendendo de ataques
realizados a sua pessoa. Era cobrada repetidamente para se pronunciar sobre o
caso. Defender-se. Exatamente do que, não se sabia, mas precisava, pelo seu
bem-estar. Em meio a tantas declarações, destaca-se quando reclamou
diretamente da diferença de tratamento que ela e Alexandre estavam recebendo.
Além de todas essas consequências, Thais também teve de se mudar e se
distanciar totalmente do ambiente virtual. A discrepância é como se fosse um
abismo. Ele, venerado, ela, massacrada. Ele, segue a vida normalmente, ela,
nunca mais terá a mesma.4
Nesse sentido, é impossível não questionar acerca das razões da distância
de resultados para um, e para outro. A resposta primordial se reflete no cotidiano:
a sexualidade feminina é estruturalmente reprimida. O ex-namorado de Thais
vazou as fotos íntimas com o intuito de se vingar da menina, não de Alexandre.
Estava ciente de que causaria danos permanentes. A vingança se concretizou com
a mulher, não com o homem. Somente ela sofreu as consequências negativas de
ter a intimidade compartilhada. Essa é a realidade de Thais, de Rose e de
incontáveis mulheres que possuem a privacidade violada por não mais atenderem
às expectativas de companheiros frustrados com fins de relacionamentos.
A organização norte-americana EndRevengePorn5 publicou uma pesquisa
referente ao ano de 2014. De todas os entrevistados, 90% das respostas positivas
a serem vítimas da revanche, eram do sexo feminino. Dentre elas, uma
porcentagem de 57% alegou que o conteúdo pornográfico foi vazado nas redes
por um ex-companheiro do sexo masculino. De acordo com o SaferNet6 - uma
instituição de referência nacional contra crimes cometidos no ambiente virtual no
Brasil - no ano de 2016, aproximadamente 67% (202 casos) das vítimas de
vazamento de conteúdo íntimo, foram mulheres. Se pegarmos os dados dos anos

4 Disponível em: Dias antes do CBLOL, RED Canids faz postagem polêmica que remete a caso de exposed -
Millenium
5 Disponível em: About Us | Cyber Civil Rights Initiative
6 Disponível em: Indicadores Helpline
seguintes, percebemos um padrão. Em 2017, sobe para impressionantes 71%
(204 casos). Em 2018, tem-se 66% (440). Já em 2019, com 55% (255 casos). Por
fim, o último ano com estatísticas, em 2020, há 56% de público feminino como
vítimas. Em todos os anos, as mulheres foram as principais vítimas da conduta,
em um claro padrão de comportamento dos agressores.
Para compreender as razões, é necessário buscar uma abordagem
sociológica. Simone Beauvoir, em sua obra “O Segundo Sexo” traz à tona a
construção social desde a infância da subordinação da mulher. O momento mais
notável e gritante seria durante a adolescência, quando os primeiros sinais da
puberdade surgem. Com as transformações dos corpos, a menina é moldada a se
esconder e ter vergonha do que acontece consigo. Deve evitar ao máximo receber
os olhares sobre si. As mudanças, analogamente, para os meninos, são sinônimo
de virilidade, um símbolo de poder. (BEAUVOIR, 1967). Giddens apresenta uma
lógica similar. Para o autor, há uma divisão entre as “mulheres virtuosas” e as
“mulheres perdidas”. As consideradas perdidas são marginalizadas da sociedade,
como aconteceu com Rose e Thais. A virtude se define com a pureza feminina, em
resistir a tentações sexuais (GIDDENS, 1993). Exemplos seriam manter a
virgindade em votos de castidade, vestir-se com poucas partes do corpo
aparentes, para preservar uma imagem de intocabilidade.
Assim, a exposição da prática do pornô de revanche atinge
desproporcionalmente a intimidade de mulheres, que, nas estruturas sociais
atuais, é entendida de modo a ser protegida, não compartilhada. Se não houvesse
um julgamento moral tão forte sobre a sexualidade feminina, Rose e Thais não
precisariam perder os empregos, muito menos serem humilhadas por,
simplesmente, confiarem em seus parceiros. A confiança não deveria ser motivo
de linchamento. O que acontece na intimidade sexual de cada indivíduo faz parte
do processo humano. Mulheres não devem ter as vidas destruídas por
expressarem a naturalidade de seus corpos.
Entende-se, aqui, portanto, a pornografia de vingança como um mecanismo
de manutenção da violência de gênero, nos moldes tecnológicos do século XXI.
Não é afirmar que homens não são atingidos pela prática, nem desconsiderar
aqueles que também são vítimas da conduta. Mas sim seguir o raciocínio de que
as consequências são mais catastróficas para as mulheres, justamente pelo fato
de a sexualidade feminina ser construída e moldada para ser reprimida, e não
exposta, como argumentado por Giddens e Beauvoir, e demonstrado pelas
estatísticas e casos reais apresentados.

3. As respostas penais no Brasil

Explorou-se, brevemente, o conceito da pornografia de vingança por meio de


casos reais e dados estatísticos. Cabe, portanto, compreender de que forma os
dispositivos legais brasileiros respondem a um fenômeno social de nuances de caráter
tecnológico e de gênero. A primeira forma de intepretação jurídica ia de encontro com
esfera cível, gerando ao agressor o ônus de indenização por danos morais, que não
está dentro do escopo do presente trabalho. Desse modo, aprofunda-se na outra
opção que a vítima pode ter, que é a ação privada penal.
Ainda sem uma tipificação específica, a primeira resposta do sistema judiciário
penal à repressão da conduta foi enquadrá-lo como um crime contra a honra, situado
no capítulo V do Código Penal. As duas formas de configuração iniciais eram os
crimes de difamação e injúria, previstos, respectivamente, nos art. 139: “Difamar
alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: pena - detenção, de três meses
a um ano, e multa” e art. 140 “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.”
Nos crimes de difamação e injúria, o bem jurídico tutelado é a honra, descrita
como: “a reputação do indivíduo, a sua boa fama, o conceito que a sociedade lhe
atribui.” (BITENCOURT, 2021, p. 471). Além disso é considerada “um valor social e
moral do ser humano, bem jurídico imaterial, inerente à personalidade, e, por isso,
qualquer indivíduo é titular desse bem, imputável ou inimputável.” (BITENCOURT,
2021, p. 472). Além disso, a Constituição garante em seu artigo 5°, X, a inviolabilidade
da honra e imagem das pessoas: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação”. (BRASIL, 1988). Embora a previsão constitucional
contenha tão somente a punição na esfera cível, entendeu-se, doutrinariamente, a
importância de ir além, até, como Rogério Greco defende, a honra é uma construção
de uma vida inteira, e, devido a tão somente uma única acusação, pode ser destruída,
de forma irreparável (GRECO, 2009). Pode-se visualizar a veracidade prática dessa
afirmativa nos casos de Rose e Thais mencionados anteriormente.
Ademais, a honra pode ser subdividida em objetiva e subjetiva. A primeira
relaciona-se com a opinião de terceiros quando se comenta acerca de características
de caráter físico, moral ou intelectual de um indivíduo, tendo que chegar ao
conhecimento de outros senão a vítima. Já a segunda é a opinião do sujeito acerca
desses atributos. Basta que a vítima se sinta afetada. (CAPEZ, 2011). Aqui, portanto,
encontra-se uma das diferenças fundamentais entre o crime de difamação, em que o
bem jurídico protegido é a honra objetiva, e no crime de injúria, é a subjetiva.
(BITENCOURT, 2021).
Em muitos dos casos de pornografia de vingança, houve a condenação por
ambos os crimes, em que os juízes decidiram que a conduta afetava ambas as honras.
Tem-se, com viés exemplificativo, uma apelação criminal julgada pelo Tribunal de
Justiça do Paraná, com a seguinte ementa:
PENAL. APELAÇÃO. CRIMES DE INJÚRIA E DE DIFAMAÇÃO. ARTS. 139
E 140 DO CÓDIGO PENAL. AGENTE QUE POSTA E DIVULGA FOTOS
ÍNTIMAS DA EX-NAMORADA NA INTERNET. IMAGENS E TEXTOS
POSTADOS DE MODO A RETRATÁ-LA COMO PROSTITUTA EXPONDO-
SE PARA ANGARIAR CLIENTES E PROGRAMAS. PROVA PERICIAL QUE
COMPROVOU A GUARDA NO COMPUTADOR DO AGENTE, DO
MATERIAL FOTOGRÁFICO E A ORIGEM DAS POSTAGENS, BEM COMO
A CRIAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DE BLOG COM O NOME DA VÍTIMA.
CONDUTA QUE VISAVA A DESTRUIR A REPUTAÇÃO E DENEGRIR A
DIGNIDADE DA VÍTIMA. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS.
CONDENAÇÃO CONFIRMADA. RECURSO NÃO PROVIDO. (...) 3. Comete
os crimes de difamação e de injúria qualificadas pelo emprego de meio que
facilita a sua propagação - arts. 139 e 140, c.c. 141, II do CP - o agente que
posta na Internet imagens eróticas e não autorizadas de ex-namorada, bem
como textos fazendo-a passar por prostituta. TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Apelação Criminal nº 756.367-3 (TJ-PR - ACR: 7563673 PR 0756367-3,
Relator: Lilian Romero, Data de Julgamento: 07/07/2011, 2ª Câmara Criminal,
Data de Publicação: DJ: 681)

No caso em questão, o réu e a vítima, por um determinado período,


relacionaram-se romanticamente. Findou-se a relação, e o réu, inconformado com a
decisão que não ia de acordo com as suas vontades, divulgou pela internet imagens
íntimas trocadas com a vítima, e ainda realizou montagens no conteúdo. Espalhou-se
desenfreadamente, com o encaminhamento direito por e-mail para conhecidos da
vítima, como amigos, familiares e colegas de trabalho. As consequências foram
catastróficas: a mulher perdeu não só o emprego, como ainda a guarda do filho mais
velho. A intenção era perversa. Causar dano à reputação, ofender, vingar-se. Na
prática, foi-se muito além disso. Na decisão, reconhece-se a clara vontade de difamar
a vítima, em vista da materialidade da conduta comprovada pelos laudos periciais das
mídias publicadas. O réu, tendo o recurso não provido, foi condenado a um ano, onze
meses, vinte dias de detenção e oitenta e oito dias de multa pelos crimes de injúria e
difamação, em concurso formal, qualificados pelo emprego de um meio que facilitava
a propagação do conteúdo. É bastante nítido quem sofreu, de fato, as punições mais
severas da conduta. E não foi o agressor.
Chegou-se à conclusão de que eram tipificações insuficientes. Não era
somente a honra das vítimas que estava sendo ferida. Os resultados ultrapassavam
os limites da reputação. A condenação na esfera cível por indenização de danos
morais e uma detenção de alguns meses soava pouco. Muito pouco. A mídia apoia,
em um claro punitivismo que agrada as grandes massas. Quanto mais punição,
melhor. Mais gente presa, mais segurança. Um discurso, de certo, vazio, mas eficiente
em angariar apoiadores. Além disso, uma corrente de doutrinadores passa a defender
a criação de um novo tipo, um que fosse justo o suficiente com o dano causado, como
proferem Guimarães e Dresch:

Ainda que se tenha, na doutrina e jurisprudência, a afirmação da


caracterização de ilícitos de naturezas diversas – penal e civil – na conduta
de divulgação não consentida de sons e imagens da intimidade da mulher, as
sanções impostas aos agressores, quando determinadas judicialmente, é
branda e desproporcional à magnitude da lesão (GUIMARÃES, DRESCH,
2014, p.6)

As críticas, em certos pontos, eram racionais e justas. O bem tutelado não era
somente a honra. Na verdade, reduzir à honra tão somente propagava o discurso
moral que a intimidade feminina deve ser reprimida. Não se deve reduzir a reputação
de uma mulher a um vazamento de uma foto íntima. Não deveria ser uma mancha
permanente em sua vida, muito menos um julgamento moral.
Nesse sentido, a dignidade sexual também precisava começar a ser
considerada como bem jurídico a ser protegido. Analogamente, a igualdade de gênero
passa a tomar forma nos debates, afinal, como afirmado aqui, a pornografia de
vingança perpetua desigualdades de gênero estruturais. Com cada vez mais casos
surgindo, o sistema judiciário precisava dar as respostas que passaram a ser exigidas
pelas vítimas, por ativistas de direitos sexuais, especialistas e os grandes veículos de
comunicação em massa. A sociedade como um todo pressionava.
A Lei Maria da Penha se torna recorrente nas discussões. Por conseguinte,
passou-se a ter o entendimento de que dispositivos da referida lei poderiam ser
evocados pelas vítimas da pornografia de revanche, justamente por, na maioria dos
casos, haver a relação doméstica, envolvimento romântico, vínculo entre a vítima e o
agressor. O art. 7° da Lei Maria da Penha traz a definição de violência psicológica,
cabendo, assim, a situação de exposição não consentida da intimidade da mulher, por
ser um meio de constrangimento, ocasionando irreparáveis danos emocionais.
Medidas protetivas de urgência podem ser requeridas pela vítima, portanto, de acordo
com o art. 22, com o intuito de cessar os ataques. (BACH, STOCO, 2017)
Desde então, o Legislativo, buscou, em diversas propostas, a criação de
novos artigos ou novas leis que pudessem enquadrar o fato típico de modo atualizado
ao Código Penal, isto é, com a pretensão de dar origem a uma tipificação específica
para a conduta de pornografia de revanche. Houve diversas tentativas. Mais de doze
contabilizadas nos trâmites das câmaras legislativas. Entre elas, destacam-se duas.
A primeira é o Projeto de Lei n° 5.555 de 2013, proposto pelo Deputado João
Arruda. A intenção não era criar um normativo, mas alterações dentro da Lei Maria da
Penha, e ideia surgiu justamente com o caso de Rose Leonel, tendo até mesmo o
nome da jornalista. O segundo é o Projeto de Lei n° 6.630, proposto pelo Senador
Romário, que visava um novo instituto normativo no Código Penal, incluindo o art.
216-B. (BACH, STOCO, 2017)
Outra tipificação também se tornou possível com a aprovação da Lei n°
13.718, dada a variedade de intepretações possíveis que a redação do dispositivo
218-C permite, principalmente considerando o seu parágrafo primeiro. O crime se
denomina, dentro do Código Penal, como: “divulgação de cena de estupro ou de cena
de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia” (BRASIL, 2018), sendo,
o nomen iuris, a primeira característica a ser criticada. Primeiramente, por ser
excessivamente longo, sem necessidade, em seguida, em seu próprio conteúdo,
referente ao uso da conjunção “ou”, como demonstra Sydow:

A conjunção OU entre a primeira e a segunda expressões faz com que a


leitura fique confusa e leve a ideia de que são apenas duas as condutas
tipificadas. Assim, uma interpretação à primeira vista, equivocada, apontaria
para que: (i) o primeiro delito seria o de divulgação de cena de estupro e (ii)
o segundo, de divulgação de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo
ou de pornografia. A primeira impressão é a de que se quer reprimir o ato de
(1) divulgar cena de estupro e o ato de (2) divulgar cena de estupro de
vulnerável, cena de sexo com vulnerável e pornografia com vulnerável.
(SYDOW, 2018, p.3)

No entanto, embora passe essa primeira impressão, não foi essa a intenção
do legislador. A ideia era se referir tanto aos vulneráveis quanto aos não vulneráveis.
Para piorar a situação, há uma dessincronização entre o nomen iuris e o tipo penal.
Enquanto no primeiro cita-se “cena de sexo ou de pornografia”, no segundo, tem-se
“cena de sexo, nudez, ou pornografia”, isto é, adicionando o termo “nudez”. Ademais,
urge comentar a extensão do texto do tipo. São nove verbos que representam nove
possibilidades de ações, gerando, no fim, a admissão de 135 (centro e trinta e cinco)
condutas típicas. (SYDOW, 2018). A ministra Fátima Nancy Andrighi do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), declarou a intenção de, na realidade, denominar o tipo como
“exposição pornográfica não consentida”:

A “exposição pornográfica não consentida”, da qual a “pornografia de


vingança” é uma espécie, constitui uma grave lesão aos direitos de
personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma
grave forma de violência de gênero que deve ser combatida de forma
contundente pelos meios jurídicos disponíveis

Uma bomba-relógio estava no colo do Judiciário e do Legislativo. Com mais


de dez projetos de lei com o intuito de criminalização da pornografia de vingança, e
nenhum realmente concretizado, a pressão continuava a fervilhar. A pressa tomou
conta do debate, e o resultado é tão catastrófico ou pior do que não haver uma
tipificação específica. O texto legislativo do art. 218-C é um caldeirão de tipos penais
misturados por conjunções confusas, construído por um português que tem o intuito
de tudo, menos ser claro e objetivo com as intenções da norma. Há de se questionar,
com razões, a técnica legislativa utilizada.

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à


venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio
de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -,
fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro
ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou,
sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais
grave.

§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é


praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto
com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

Mais uma crítica a ser feita à Lei é onde, no Código Penal, tal dispositivo se
encontra, que é no Capítulo II, denominado como “dos crimes sexuais contra
vulnerável”. Sem exceção, todo o rol de tipos listados no capítulo refere-se a condutas
praticadas contra sujeitos considerados vulneráveis, isto é, menores de 14 anos, o
que, poderia, interpretativamente, excluir vítimas maiores que essa faixa etária, sendo,
essas, a maioria. Mais um ponto consideravelmente questionável, aparentemente
deixado de lado pelo legislado. Há uma outra série de erros e críticas a serem
realizadas. A conclusão é simples: o tipo nasceu com preocupantes defeitos de
nascença, por surgir de um aproveitamento de um projeto de lei. É nada mais do que
um grande remendo legislativo. (SYDOW, 2018).
Assim, entende-se que a conduta de pornografia de revanche não foi tipificada
nesse artigo, tão somente se tornou uma causa de aumento de pena que incide na
pena-base quando há a relação entre a vítima e o agressor. (GOULART, 2019). Ainda
não era o suficiente, não para o Poder Legislativo. No mesmo ano, tem-se a
promulgação de um novo tipo penal, que, dessa vez, buscou ser mais direto quanto
às suas intenções. Somente com a Lei n° 13.718 de 2018 que se tem, por fim, uma
tipificação mais específica, em seu art. 216-B:

Art. 216-B. Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio,


conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e
privado sem autorização dos participantes:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem realiza montagem em


fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir
pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo

Encontrado no Capítulo I-A “da exposição da intimidade sexual”, vê-se uma


localização no Código Penal que faz muito mais sentido do que o dispositivo anterior,
de forma que não cause confusão quanto ao objeto do dispositivo. O seu nomen iuris
evita polêmica, diferentemente do 218-C: “registro não autorizado da intimidade
sexual”. Direto, objetivo e claro. O título é exatamente aquilo que se espera que se
encontre dentro do texto legislativo. Além de todos esses fatores positivos, o texto
tutela como bem jurídico a dignidade sexual, como deveria ter sido desde o princípio
de produção de uma lei que fosse tipificar a conduta de divulgação não consensual
de material pornográfico. Há de se esperar, então, que tenha sido uma tipificação
originada para substituir a anterior. Mas não. Há dois grandes obstáculos à vista: a
pena-base desproporcionalmente inferior e a ausência de especificação à questão da
vingança.
A crítica, em geral, é, portanto, direcionada à necessidade de criar dois tipos,
para uma mesma conduta. É inegável que ambos podem configurar a pornografia de
vingança. O ponto primordial em disputa é como os operadores do Direito devem
interpretá-los. Cabe questionar, a exemplo, se o advogado de uma vítima, produz a
argumentação de acusação utilizando apenas um dos dispositivos ou ambos. É de se
acreditar que tentará a maior punição cabível, afinal, o art.218-C tem uma pena
variável de um a cinco anos, enquanto o 216-B possui tão somente uma pena-base
de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um ano). A discrepância é gritante em termos de
aplicação da legislação penal. O raciocínio segue a mesma linha para o juiz que
receber casos de exposição de conteúdo íntimo, de caráter sexual, com o intuito de
revanche. Se a intenção do legislador era facilitar a tipificação no sistema judiciário, é
de se afirmar que falhou consideravelmente na missão, gerando maiores dificuldades,
e passando a errônea imagem para a sociedade que cumpriu de maneira adequada
o seu trabalho. Nesse sentido, Sydow reflete: “Não é raro, porém e infelizmente, que
o legislador aprove leis como colchas de retalho incoerentes.” (SYDOW, 2018, p. 3).

4. Considerações Finais

As novas tecnologias oriundas das sociedades em rede são um verdadeiro


desafio para uma área do Direito que já possui a fama de um tom de tradicionalismo
e conservadorismo jurídico maior que as outras: a esfera penal. Não se entrou no
mérito processual, muito menos investigativo dos crimes que ocorrem no ambiente
virtual, mas não é novidade as dificuldades encontradas na realidade jurídica brasileira
em enfrentar um ambiente tão sofisticado. Nesse contexto, a pornografia de revanche
é tão somente mais uma questão a ser refletida, debatida e equacionada, entre tantas.
Mas uma que exigiu respostas tanto do Judiciário, quanto do Legislativo.
A mídia desempenhou um papel fundamental para pressionar as instituições
a darem retornos concretos, em forma de lei. Até mesmo os movimentos político-
sociais sucumbiram ao desejo punitivista. Queriam mais sistema penal. Quanto mais,
melhor. Mulheres que passaram pelo processo de destruição dos pilares de suas
vidas estão no direito de desejar, sempre, aos seus agressores, o máximo de punição
que lhes seja cabível. Contudo, como pensadores do sistema jurídico, deve-se ir além
de soluções aparentemente simples. Aumentar penas-bases não deve ser a única
resposta a ser oferecida. Ainda mais para um fenômeno que envolve questões sociais
de gênero. Reduzir o debate a simplesmente artigos de lei que tipificam (e
consideravelmente mal) a conduta é diminuir o sofrimento e consequências
devastadoras da pornografia de vingança causados a mulheres como Rose e Thais.
REFERÊNCIAS:
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a legislação e a jurisprudência brasileira. Programa de Apoio a Iniciação
Científica – PAIC, pp. 679-698, 2017.
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erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Universidade Estadual Paulista,
1993. p. 19.
GLOBO, o. Quem é Léo Stronda, webcelebridade que teve foto íntima “vazada”.
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GUIMARÃES, B. L.; DRESCH, M. L. Violação dos direitos à intimidade e à
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LINS, Beatriz Accioly. “Ih, vazou!’: pensando gênero, sexualidade, violência e
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SÃO PAULO, Folha de. “Crime na internet é ferida aberta”, diz mãe sobre fotos
nuas vazadas pelo ex. 21 de maio de 2017.
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Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Apelação Criminal nº 756.367-3.
Relatora: Desembargadora Lilian Romero. 2ª Câmara Criminal. Curitiba, PR, 07 de
julho de 2011. Diário da Justiça Eletrônico, 27 de julho de 2011. n. 681.f

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