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EXPOSIÇÃO PORNOGRÁFICA NÃO CONSENTIDA: Uma Análise sobre o crime da

Pornografia de Vingança e a pena disposta no artigo 218 – C do Código Penal 1.


NO CONSENT PORNOGRAPHIC EXPOSURE: An Analysis of the crime of Vengeance
Pornography and the penalty provided for in article 218 - C of the Penal Code

Jheyscilane Cavalcante Sousa 2


Fernanda Arruda Léda Leite Zenkner3

RESUMO: O presente trabalho aborda a exposição pornográfica não consentida com foco na
espécie da pornografia de vingança, crime que foi tipificado apenas em 2018 com a inclusão
do art. 218-C no Código Penal. Partindo desse cenário, pretende responder a problemática da
proporcionalidade da pena para a pornografia de vingança perante os muitos efeitos negativos
deixados na vida das mulheres atingidas pela exposição. Para isso, objetiva discutir como a
percepção cultural dos papéis femininos e masculinos incide e naturaliza o crime da
pornografia de vingança o que naturalmente evidencia uma forte violência de gênero. A partir
de uma revisão e pesquisa bibliográfica verificou-se que a Lei nº 13.718/18 inicialmente não
incluiria a pornografia de vingança, deixando o texto confuso e com uma pena base mínima
bem aquém do esperado, evidenciando mais um tipo penal com boas intenções, porém
inicialmente falho em cumprir seu objetivo de punir e inibir condutas de exposição não
consentida com o intuito de desmoralização da figura feminina por mera vingança.

Palavras–Chave: Pornografia de vingança, exposição não consentida, violência de gênero.

ABSTRACT: This paper addresses non-consensual pornography exposure, focusing on the


kind of revenge pornography, a crime that was typified only in 2018 with the inclusion of
218-C in the Penal Code. Based on this scenario, it intends to respond to the problem of the
proportionality of the penalty for revenge pornography in the face of the many negative
effects left in the lives of women affected by the exposure. For this, it aims to discuss how the
cultural perception of female and male roles affects and naturalizes the crime of revenge
pornography, which naturally evidences a strong gender violence. From a review and
bibliographical research, it was found that Law nº. 13.718/18 initially would not include
revenge pornography, leaving the text confused and with a minimum base penalty well below
expectations, evidencing yet another criminal offense with good intentions, however, initially,
it fails to fulfill its objective of punishing and inhibiting non-consensual exposure behaviors
with the intention of demoralizing the female figure for mere revenge.

Keywords: Revenge porn, exposure not consented, gender violence.

1 INTRODUÇÃO

1
Artigo apresentado ao Curso de Direito
2
Acadêmica do curso de Bacharelado em Direito da Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão
(UNISULMA). E-mail: jheyscilane@gmail.com
3 Advogada. Doutoranda em Direitos Humanos – UFG. Mestra em Direito e Instituições do Sistema de
Justiça/UFMA. Professora na Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão – UNISULMA. Professora na
Universidade CEUMA. E-mail: fernandaarrudaledal@gmail.com
Atualmente a sociedade como um todo é moldada pela publicização da intimidade, há
uma simbiose entre vida off-line e vida on-line, sendo que a internet potencializa os efeitos do
crime da pornografia de vingança, e por conta desse fato, convém um olhar mais atento para a
exposição pornográfica não consentida como ferramenta de coibição do gênero feminino,
como também uma forma punitiva e violenta usada pelo detentor de imagens e vídeos de
cunho sexuais para causar desmoralização da figura feminina e vítima perante a sociedade.
A prática do sexting4 em si não é o grande problema, afinal, tanto homens quanto
mulheres são adeptos da prática de envio de mensagens de cunho adulto, o problema reside
justamente nessa publicação desautorizada de materiais que foram compartilhados numa
relação e momento de óbvia confiança. E é notório também que as consequências para
homens e mulheres que têm a sua intimidade “vazada” são de uma discrepância enorme.
E infelizmente por muito tempo no Brasil foi um crime que ficou sem uma tipificação
adequada e totalmente específica para a prática criminosa da divulgação de imagens ou vídeos
pornográficos da mulher sem a devida autorização, e por ser um crime que constitui graves
efeitos na vida da vítima as alternativas anteriores à adição do 218-C ao Código Penal
chegavam a serem simplistas e não condizentes com os muitos efeitos negativos pós-crime, o
que para SILVA e PINHEIRO (2018) era uma de desatenção absurda aos graves
desequilíbrios psicológicos implicados à saúde das vítimas em virtude da prática de violência
de gênero, por serem comumente enquadrados como mero crime contra a honra.
A mulher que tem seus materiais íntimos vazados, que são atualmente e popularmente
chamados de “nudes”, se vê então jogada em uma espiral de julgamentos errôneos, tem sua
dignidade sexual e direito à intimidade atacados de forma ostensiva e reiterada, pois apesar da
aplicação da Lei do Marco Civil que estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da
internet no Brasil, e que responsabiliza servidores de forma subsidiária, há ainda muito que se
falar enquanto forma de prevenção e retirada desses conteúdos de cunho pornográficos não
autorizados.
Além de direitos e princípios constitucionais violados é evidente também que as
consequências da pornografia de vingança ultrapassam o seio social e pessoal da mulher e
alcança seu meio profissional de forma destrutiva e implacável, o que em alguns casos mais
drásticos acaba por levar a vítima ao suicídio ou até mesmo optando por mudar todo o seu

4
Segundo a ONG SaferNet, “é a junção da palavra sex (sexo) + texting (torpedo), tem origem inglesa e surgiu
quando a Internet nem era 3G e as pessoas enviavam mensagens de texto por sms (Short Message Service) de
caráter erótico e sexual, hoje as mensagem são fotos e vídeos por mms (multimedia messagem service).”
Disponível em: https://new.safernet.org.br/content/sexting-%C3%A9-uma-express%C3%A3o-da-sexualidade-
na-adolesc%C3%AAncia#, acesso em 09 de Setembro de 2021
plano de vida, e isso advém de uma sociedade com fortes resquícios de um sistema ainda
patriarcal, no qual a mulher teria uma posição de eterna submissão e subalternidade ao
homem e não ultrapassaria a visão retrógrada de mero objeto/coisa dentro das engrenagens
patriarcalistas.
Diante de todo o exposto, torna-se necessário a realização de um debate científico
acerca da eficácia do bojo jurídico utilizado no tratamento da exposição pornográfica não
consentida, sendo que a prática ilícita está, portanto, ligada a um contexto claro de
subjugação, demonstração de poder e controle sobre o gênero feminino configurando a
violência de gênero, sendo necessário entender se a tipificação atual do crime inibe a prática
nociva de mais exposições pornográficas não consentidas.
E como é recente a adição do artigo 218-C no Código Penal, objetiva-se e questiona-se
a proporcionalidade dessa pena em confronto com os muitos aspectos negativos deixados na
vida da vítima é de alguma forma eficaz, logo, o presente trabalho espera trazer uma
discussão relacionada ao enfrentamento do crime de vazamento íntimo não consentido, com
destaque para a proporcionalidade e eficácia da pena.
Para concretização dos fins propostos foi adotada uma metodologia qualitativa e de
análise descritiva, com análise de dados e fontes bibliográficas, ou seja, pesquisou-se em
livros e artigos que fomentavam o estudo da temática da violação e violência de gênero, bem
como se estudou legislações específicas ao tema do crime da pornografia de vingança.

2 SOBRE O FEMININO: MITOS, PATRIARCADO E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Ao longo do tempo a figura feminina vem sendo moldada pelos arquétipos esperados
dentro do meio em que vive, e foi nesse contexto que Beauvoir (2016, p. 11) escreveu a
célebre frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, ou seja, o feminino é uma criação
sociocultural que entrega a mulher um papel a ser seguido numa sociedade cheia de resquícios
patriarcais e misóginos.

2.1 Do Mito ao Patriarcado culminando no papel feminino dentro da sociedade

Desde os primórdios das construções sociais a mulher não foi vista de igual para igual,
sendo reduzida simploriamente ao papel de reprodução e cuidadora dos filhos e do lar. O
patriarcado ganhava cada vez mais força nessa distinção biológica do mito do sexo frágil que
perpassou pela Grécia Antiga, Idade Média, passando pela Revolução Industrial e,
infelizmente, chegou à contemporaneidade.

A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo


feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode
assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre
os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2020, p.
26).

E é através do androcentrismo ou razão androcêntrica5 centrado no eu masculino que


FACIO e CAMACHO, (199?) apud OLIVEIRA (2002, P. 43) afirmam que:

Uma das principais características da sociedade patriarcal pode ser circunscrita na


definição do termo androcentrismo, postura segundo a qual todos os estudos,
análises, investigações, narrações e propostas são enfocadas a partir de uma
perspectiva unicamente masculina, e tomadas como válidas para a generalidade dos
seres humanos, tanto homens como mulheres.

É o que para Beauvoir (2016), implica na mulher como vassala e escrava do homem,
que seria sempre o senhorio, e dessa relação, obviamente, não há espaço para igualdade entre
os sexos. E para aquelas que ousarem fazer diferente, os julgamentos são cruéis e implacáveis.

2.1.1. Lilith e o pecado da insubmissão

Lilith é comumente alcunhada como a primeira mulher na terra e esposa de Adão para a
cultura suméria hebraica, antes mesmo da figura bíblica de Eva da hebraica cristã, ela seria
segundo ROBLES (2019, p. 33): “(...) ímpeto sexual, mulher emancipada e em fuga, sombra
maligna por se haver considerado em pé de igualdade com os homens; é igualmente a mais
remota concepção feminina”.
Mesmo com toda uma construção cultural que coloca o feminino sempre em posição
de submissão, há além de Lilith outras figuras em mitos antigos como a Medusa6 que destoam
desse arquétipo fragilizado, porém, o resultado dessas figuras femininas nas histórias nem

5
O sociólogo brasileiro Robson Fernando reduz didaticamente o androcentrismo ao termo “É a humanidade
centrada na figura do homem. Do homem macho”. Disponível em:
https://www.take.net/blog/designers/androcentrismo-na-linguagem/, acesso em 30 de Agosto de 2021.
6 Medusa teve a cabeça decepada por Perseu, mas antes de ser um ser mítico que transformava homens em
estátua com apenas seu olhar e sua cabeça cheia de serpentes, ela era uma mulher muito bonita e que segundo
algumas versões do mito, foi estuprada por Poseidon e punida por esse fato por Atenas, que a transformou na
figura que se conhece hoje. Houve uma estátua em homenagem ao movimento #MeToo que como forma de
revisionismo cultural inverteu o final do mito de medusa. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54669548, acesso em 31 de Agosto de 2021.
sempre terminam de forma satisfatória. Lilith por sua insubmissão a Adão segundo ROBLES
(2019, p. 35) recebe papel de demônio avassalador, sedutora dos adormecidos, uma prostituta
voluntariosa, uma vontade poderosa que não se dobra diante da pressão masculina, aquela que
prefere a transgressão à vassalagem.
Ou seja, ao transgredir o lar e renegar o papel de ajudadora do homem, a mulher
insubmissa e protagonista da própria vida ganha o outro lado da dicotomia da mulher
idealizada e boa, ela agora passa a ser indigna e má. E ao sair do roteiro esperado pelo
patriarcado, a mulher insubmissa por qualquer motivo que seja como uma simples vontade de
por fim a um relacionamento ou de exercer sua sexualidade com liberdade, passa a ser alvo
mais potente de crimes que envolvem a violência de gênero, e um deles é a exposição
pornográfica não consentida que é objeto de estudo do presente artigo.

2.1.2 A ciência como objeto de repressão

Atualmente há mulheres ocupando mais espaços no mercado de trabalho e


consequentemente naturalizou-se um pouco a ideia da mulher fora do espaço matrimonial,
mas ao mesmo tempo em que essa inserção da mulher como detentora de direitos iguais ao
homem não seja nova e os movimentos feministas modernos tenham indícios de surgimento a
partir da Revolução Francesa (1789), há ainda uma “forma considerada certa de homens e
mulheres ocuparem espaço e que está ligada a alguns ideais abstratos de gêneros, como a
delicadeza feminina e a robustez masculina” (COLETIVO NÃO ME KHALO, 2016, p. 25).
E a ciência ao longo do tempo validou vários pensamentos machistas, misóginos e
patriarcalistas, que impediam as mulheres de ser algo além do esperado em cada contexto
sociocultural vigente.

Era incomum que mulheres tivessem sequer seu ingresso admitido nas universidades
ou que recebessem diploma até o século XX. (...) As instituições eram destinadas a
preparar os homens para carreiras na teologia, no direito, no governo e na medicina,
carreiras de ingresso proibido para as mulheres. Os médicos argumentavam que os
esforços mentais da educação superior desviavam energia do sistema reprodutor da
mulher, prejudicando sua fertilidade. (SAINI, 2017, p. 27).

Houve sim, mulheres que fugiram à regra, mas mulheres como Marie Curie,
ganhadora de dois prêmios Nobel, eram infelizmente, a exceção e não a regra geral. E por
muitos anos a ideia da inferioridade feminina passou por autores consagrados como Darwin,
Rousseau, Schopenhauer, Vogt, Nietzsche e Freud7.
Era e ainda é fácil para o homem ocupar espaços aonde quer que vá, enquanto a
mulher é desvalorizada quando não decide mais ocupar espaços considerados femininos,
como o cuidar da casa, ser mãe e parar de reproduzir o mito da beleza, que segundo Wolf
(2018) sobrecarrega mulheres com o culto à beleza e a juventude, que são ideais estipulados
pelo patriarcado como forte controle sociocultural mantendo as mulheres dentro do padrão
esperado.

2.2 Uma “guerra” sem fim? O embate entre os gêneros masculinos e femininos e a
violência de gênero

Atualmente no Brasil com a vigência da Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988 não há mais lugar na legislação pátria para tratamento desigual entre homens e
mulheres, sendo assim, conforme Inciso, I, Art. 5º da Constituição, tanto homens como
mulheres são iguais em direitos e obrigações. Tal tratamento isonômico é imprescindível para
a figura feminina, pois a dota de iguais direitos seja na parte cível, familiar, trabalhista e
demais áreas.
Ainda no artigo 5º da lei maior há um leque extenso de direitos e princípios inerentes
ao ser humano, entre eles pode-se citar a garantia à dignidade humana, a inviolabilidade da
intimidade, direito à vida privada, a honra e a imagem da pessoa (Inciso X), que estão
diretamente ligados ao crime da pornografia de vingança, crime este que desnuda fortes
resquícios de uma sociedade ainda patriarcal e misógina, que culmina claramente numa
diferenciação entre homens e mulheres, reforçando assim estereótipos arcaicos sobre uma
posição de subalternidade feminina na sociedade e relegando ao escárnio anos e anos de luta
por igualdade de gênero. De forma, que:

(...) fica de fácil compreensão entender o porquê da desproporção de resultados


negativos ao sexo feminino em relação ao masculino e também a razão da exposição
pornográfica não consentida como método de subjugação e humilhação para as
mulheres. Se perguntado se os homens sofreriam as mesmas consequências em
idêntico contexto, a resposta seria negativa. A maioria esmagadora dos episódios
envolvendo divulgação de imagem de um homem nessas condições resultaria em

7
“Na verdade, a ideia de “inferioridade feminina”, remonta à Grécia Antiga. Não por acaso, é desse período que
data a palavra misoginia, que define o ódio (miseó) ou aversão às mulheres (gyné).” 2020, disponível em:
https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/06/como-ciencia-contribuiu-com-machismo-e-racismo-
ao-longo-da-historia.html, acesso em 30 de Agosto de 2021.
elevada aprovação social, comentários elogiosos e a sensação de que ele nada mais
está que cumprindo seu destino de macho (CASTRO E SYDOW, 2019, p. 82).

Através de um contexto sociocultural que remonta para décadas e décadas de ideias


controladoras do gênero feminino e do mito da inferioridade é possível vislumbrar aspectos
que, infelizmente, apontam para uma crescente onda de aumento da violência de gênero, e
ainda de acordo com Castro e Sydow, 2019, p. 78:

São resultantes do nosso processo de socialização - com imposição de direitos,


deveres e liberdades muito distinta entre meninos e meninas. Essa disparidade faz
com que a violência de gênero - aquela destinada à mulher simplesmente por ser
mulher – ou seja, por razões da condição do sexo feminino, seja um padrão cultural.
E é a reprodução dessas disparidades históricas que determinam, ainda hoje, a
desigualdade nas relações de poder entre homens e mulheres.

Afinal, assim como destacado por Wolf, (2018, p. 388) “a ideia de que o corpo de uma
mulher tem fronteiras que não podem ser invadidas é bastante recente. E está evidente que
não desenvolvemos essa ideia o suficiente”.

3 EXPOSIÇÃO PORNOGRÁFICA NÃO CONSENTIDA: A PORNOGRAFIA DE


VINGANÇA ANTES E DEPOIS DA TIPIFICAÇÃO NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO

A exposição pornográfica não consentida é um crime intimamente ligado ao gênero


feminino, mesmo que afete ambos os gêneros é no feminino que se percebe um tratamento
desigual diante da sociedade, o que por anos influenciou numa inércia quase irreparável do
legislativo na tipificação do crime.
Dessa diferenciação entre os gêneros, que não é algo nascente da atualidade e sim
intrínseco de um crescente histórico que sempre apontou para uma dominação do masculino
sobre o feminino, que Beauvoir (2016) explica que é ainda na infância que a menina é
moldada pelo convívio familiar e consequentemente pela sociedade, as meninas estariam
então presas no mito do “eterno feminino”, e seriam desde cedo emaranhadas em um mundo
de “coquetismo infantil” de laços, cores rosa e miudezas dadas à delicadeza. O que aponta
para uma perda terrível da autonomia feminina, nesse sentido:

(...) ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela
deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e
recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos
exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca,
menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a
encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma
curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino.
(BEAUVOIR, 2016, p. 22).

E é por conta desses aspectos enraizados no âmago da sociedade que há ainda a


presença da culpabilização da mulher que é vítima do crime de pornografia de vingança, de
modo que o crime finca seus alicerces na violência de gênero, punindo a vítima ao invés do
agressor. E em declaração feita ao Superior Tribunal de Justiça, a Senhora Ministra Nancy
Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 1.735.712 - SP reforçou a pornografia de
vingança como grave forma de violência de gênero:

A "exposição pornográfica não consentida", da qual a "pornografia de vingança" é


uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos de personalidade da pessoa
exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de violência de gênero
que deve ser combatida de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis.
(ANDRIGHI, 2020, p. 7)

Nesse sentindo, Cavalcante e Lelis, 2016, p. 61, apontam que a pornografia de


vingança em si não é um crime praticado essencialmente só contra mulheres, mas é
especialmente praticado contras as mulheres, o que configura a questão do gênero construído
socialmente.

3.1 Do Sexting ao Revenge Porn e a amplificação dos efeitos na era digital

O termo pornografia de vingança é uma tradução da expressão em inglês revenge


porn8, que possui objetivo de expor a vítima a uma viralização do material íntimo causando
estragos irreparáveis na vida social e emocional da pessoa atingida (BUZZI, 2015).
Apesar de ainda um tabu, e existir no Brasil uma re-vitimização das vítimas da
pornografia de vingança, o próprio Tribunal Superior de Justiça aponta o crime como grave
lesão, pois de fato, é um crime que perpetua a exposição e o constrangimento justamente por
utilizar-se de algo global que é a internet. Só no Brasil no ano de 2020, o país chegou a 152
milhões de usuários com acesso à internet, um aumento de 7% em relação a 2019, e com isso,
81% da população com mais de 10 anos têm internet em casa (TIC, 2020, online) 9, logo, há

8
Para a organização Cyber Civil Rights Initiative o termo revenge porn é enganoso, pois muitos perpetradores não
são motivados por vingança ou por quaisquer sentimentos pessoais em relação à vítima. E o ideal seria utilizar o termo
“pornografia não consensual”, disponível em: https://www.cybercivilrights.org/, acesso em 13 Set 2021.
9
Dados da pesquisa realizada pela TIC Domicílios 2020 e promovida pelo Comitê Gestor da Internet do Brasil
(CGI.br). Disponível em: https://www.cgi.br/noticia/releases/cresce-o-uso-de-internet-durante-a-pandemia-e-
de se apontar o meio virtual como grande perpetrador da pornografia de vingança, pois a
publicização de imagens e vídeos sexuais de forma desautorizada encontra força
principalmente no alcance surreal da internet e na falsa sensação de anonimato e impunidade
oferecidos pelas redes sociais, buscadores, provedores e sites em geral. De forma, que:

Muitos dos veículos tecnológicos viabilizam o cometimento da violência de gênero


de forma anônima e impune, considerando que ainda não existe, na maior parte dos
países, um enfrentamento jurídico condizente com a complexidade dos crimes
virtuais e com os danos causados por esses às vítimas. (SILVA E PINHEIRO,
2018, p. 14)

Mas, engana-se quem pensa que o crime da pornografia de vingança seja algo apenas
dos dias atuais ou que surgiu com a popularização da internet, segundo Lins (2015, p. 4), na
década de 1980 nos Estados Unidos era comum a prática de divulgação de material íntimo de
“namoradas” em revistas masculinas de conteúdo erótico, na qual essas imagens poderiam ser
enviadas pelos próprios leitores e sem qualquer alusão ao consentimento da mulher. Ou seja, a
internet não criou o crime da pornografia de vingança, mas por ser um crime de exposição de
imagens e vídeos, é notório que ela amplifica os muitos efeitos negativos do crime.

3.2 O Tratamento da Pornografia de Vingança no Brasil antes da inclusão do 218-C no


Código Penal

Antes da inclusão tardia do 218-C no Código Penal, não havia no Brasil tratamento
específico para a pornografia de vingança, e por muito tempo, o crime em questão foi tratado
como mero crime contra a honra. O que segundo Silva e Pinheiro (2018) gerava uma
incompatibilidade enorme entre a complexidade do crime de pornografia de vingança e o
modelo processual dos juizados especiais criminais. Ou seja, enquadrar a pornografia de
vingança no âmbito criminal como injúria ou difamação era algo, infelizmente, bastante
comum e não condizia em nenhum momento com os efeitos da conduta da divulgação de
conteúdo sexual não consensual na vida das vítimas.
É de conhecimento que a Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais) possui em seu bojo medidas despenalizadoras, tais como a transação penal,
composição cível e a suspensão condicional do processo. E não há espaço para críticas a tais
institutos que são de suma importância para o tratamento de infrações de menor potencial

numero-de-usuarios-no-brasil-chega-a-152-milhoes-e-o-que-aponta-pesquisa-do-cetic-br/, acesso em 14 Set


2021.
ofensivo, o problema consistia justamente na aplicação dos juizados no tratamento da
pornografia de vingança, o que para Silva e Pinheiro (2018, p. 18):

(...) os princípios que orientam o funcionamento dos juizados especiais criminais


conduzem ao enxugamento dos processos e desafogamento da máquina judiciária,
raciocínio que, aplicado ao tratamento da pornografia de vingança, implica no
silenciamento da violência em nome da celeridade processual. Observa-se ainda que
a estrutura institucional simplista dos juizados especiais se apresenta totalmente
incompatível com a finalidade de prevenir e erradicar a violência de gênero.

Ou seja, era muito simplório utilizar a lei dos juizados, pois a eficácia das penas
impostas pelo judiciário ficava seriamente comprometida diante dos efeitos do crime, e foi
justamente o que aconteceu no ano de 2013 com a goiana Francyelle dos Santos Pires10, que
viu sua vida mudar drasticamente depois que o ex-namorado publicou vídeos íntimos dela em
aplicativos de redes sociais após o término. No vídeo a vítima retratava um sinal com a mão
que acabou virando chacota nas redes sociais, e a hostilização virtual foi tanta que a vítima
perdeu o emprego, e sem a renda do trabalho teve que abdicar do curso e trancar a faculdade,
sem falar no assédio pós-crime que a fez mudar de aparência, de bairro e pensar em suicídio.
O namorado e suspeito respondeu por injúria e difamação, e ficou acordado entre as partes
que ele cumpriria 5 (cinco) meses de trabalho comunitário.
De modo que, a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06) parecia ser o tipo legal mais
condizente na aplicação contra o crime da pornografia de vingança antes da tipificação atual,
e trazia o bônus de destituir os institutos despenalizadores.

3.3 A tardia tipificação da pornografia de vingança no Brasil: A inclusão do artigo 218-


C no Código Penal pela Lei nº 13.718 de 24 de setembro de 2018

Somente no ano de 2018, obteve-se uma resposta em específico para o crime da


pornografia de vingança, a inclusão do art. 218-C no Código Penal através da lei nº 13.718/18
finalmente tipificaria a conduta de divulgação de imagem/vídeo de cunho sexual sem o
consentimento da vítima com o intuito final de vingança e humilhação. A lei ordinária
mencionada adveio da PL n° 5452/201611 de autoria da Vanessa Grazziotin, na época

10
Reportagem disponível em: https://noticias.r7.com/cidades/fotos/fui-julgada-como-criminosa-e-pensei-em-me-
matar-diz-vitima-de-video-que-virou-meme-22072015#/foto/1 e https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-
noticias/jovem-que-teve-video-intimo-divulgado-na-internet-vai-abrir-outro-processo-contra-suspeito-17588/
acesso em 13 Set 2021.
11
Projeto de Lei disponível em: camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2086414,
acesso em 10 de Setembro de 2021.
Senadora pelo PCdoB/AM, originalmente era um projeto de lei que versava apenas sobre o
crime de divulgação de cena de estupro e previa causa de aumento de pena para o crime de
estupro cometido por duas ou mais pessoas (também conhecido como estupro coletivo) e não
se falava em nenhum momento sobre a pornografia de vingança em si. De modo que a
exposição pornográfica não consentida foi incluída tardiamente e apressadamente enquanto a
PL em questão tramitava, o que para SYDOW e CASTRO (2019, p. 126 e 127) essa inclusão
se deu mais por “força de aproveitamento” do projeto em andamento, deixando de lado
aspectos importantes que envolvem a exposição pornográfica não consentida, nesse sentido,
os autores dispõem que:

A existência de um tipo penal específico de “exposição pornográfica não


consentida” teria sido salutar ao ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que
traduziria de maneira mais eficiente a gravidade da conduta e suas repercussões na
vida pessoal da vítima e no meio social. Da forma como encaixada dentro do tipo, a
criminalização da referida conduta perdeu parte da sua força cogente (SYDOW e
CASTRO, 2019, p. 126 e 127).

Infelizmente, não houve um tipo específico para a exposição pornográfica não


consentida e o art. 218-C foi inserido no Código Penal com a seguinte redação:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda,


distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de
comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo
ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de
vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da
vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco)
anos, se o fato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de
2018).

O legislador incluiu rapidamente no §1º do artigo citado a conduta da pornografia de


vingança, sendo que: “A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é
praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou
com o fim de vingança ou humilhação”.
O bem jurídico tutelado é a dignidade sexual, e há ainda a presença curiosa de 9
(nove) verbos nucleares, que são os seguintes: oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir,
vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, o que para Bitencourt (2021, versão
online) é uma grande desnecessidade exagerada na tipificação das condutas, pois na visão do
autor, o tipo penal careceria de uma visão menos complexa e mais coerente e que de
preferência não induzisse o leitor a uma confusão.
E essa não é a única crítica à redação escolhida para o art. 218-C, SYDOW e
CASTRO (2019, p. 131) também apontam para outra expressão presente no caput, que seria:
“- inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática”,
para eles há a presença de pensamento retrógrado e desnecessário, pois a internet em si é
usada pelos perpetradores para a indução de cyberbullying12 e execração das vítimas, e na
visão dos mesmos o meio do uso da informática deveria ser no mínimo uma qualificadora
justamente por ser o meio mais expressivo de disseminação dos efeitos nocivos do crime.
E por último, há de falar-se na curiosa inserção da pornografia de vingança em
conjunto com divulgação de cenas de estupros, nesse sentido:

Agiu o legislador com falta de técnica na redação do dispositivo legal, posto que
previu a exposição pública de cena de sexo, nudez ou pornografia sem o
consentimento da vítima após capitular uma série de outras condutas relacionadas
com a exposição de cena de estupro. Tal tipo penal veio inserido no Capítulo II –
Dos crimes sexuais contra vulnerável, sob o Título VI – Dos crimes contra a
dignidade sexual. Essa posição topográfica no Código Penal e a redação do
dispositivo podem ensejar, erroneamente, a interpretação de que a prática punível se
refere, tão somente, à exposição pornográfica relacionada com o estupro (ROCHA,
PEDRINHA e, OLIVEIRA, 2019, p. 183)

Foi louvável a tipificação da exposição pornográfica não consentida, mas percebe-se


que a pressa em adequá-lo a projeto de lei já em tramitação pode ter sido inimiga de um tipo
penal coeso e com uma pena no mínimo à altura e proporcional da conduta tipificada.

4 UMA BREVE ANÁLISE DA PENA DO ART. 218-C DO CÓDIGO PENAL E A


VIOLÊNCIA PRESENTE NA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA PELO CRITÉRIO
DA EFICÁCIA

O art. 218-C do Código Penal trouxe em seu caput a pena mínima de 1 (um) ano a 5
(cinco) anos de reclusão, e a pornografia de vingança incluída no §1º, afim de evitar a
vingança ou humilhação, tem-se um aumento especial da pena para qualquer uma das
condutas do caput.

4.1 As variadas facetas da violência na pornografia de vingança

12
Para a UNICEF, Cyberbullying é o bullying realizado por meio das tecnologias digitais. Pode ocorrer nas
mídias sociais, plataformas de mensagens, plataformas de jogos e celulares. É o comportamento repetido, com
intuito de assustar, enfurecer ou envergonhar aqueles que são vítimas. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/cyberbullying-o-que-eh-e-como-para-lo, acesso em 27 de Setembro de 2021.
A violência no crime de pornografia de vingança em si não é propriamente física, o
agressor ao compartilhar sem o consentimento imagens/vídeos pornográficos não chega de
fato a usar força física em nenhum momento da consumação do crime, o que remonta para
facetas novas de violência dentro do crime, tais como violência psicológica, moral e dano ao
projeto de vida, o que segundo Serrano (2013) apud Lins (2015) funciona como uma
“atualização” do crime, já que “décadas atrás, o “macho” quando desafiado, rejeitado ou
inconformado fazia uso da violência física para se auto afirmar, hoje, reage com a violência
simbólica ao expor cenas da mulher em público”.
O termo e conceito de violência simbólica são de criação do sociólogo francês
Bourdieu (1968), de modo que, a dominação masculina é uma forma de violência simbólica
contra a mulher, pois essa mesma dominação é tratada de forma naturalizada pela sociedade,
não sendo algo recente e sim construído através dos tempos pelas sociedades.
No Brasil a violência psicológica consta na letra da Lei 11.340 (Maria da Penha) no
seu artigo 7º inciso II, que a classifica como:

Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e
limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde
psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2018, online) 13.

A referida lei também relaciona a violência moral como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injúria (Art. 7º, Inciso V) e, além, da violência psicológica e
moral citadas, há também o dano existencial ou dano ao projeto de vida que vem sendo
discutido como forte potencial de aplicação à pornografia de vingança, nessa conformidade:

O indivíduo realiza projetos de vida para dar sentido à própria existência, e, ao


suceder um infortúnio do qual não tem controle, o curso da existência pode
modificar-se inteiramente, provocando até um vazio existencial ou a perda do
sentido da vida. Esses aspectos atingem, em maior ou menor grau, quem sofre a
pornografia de vingança, visto que muitas das vítimas necessitam mudar
inteiramente os rumos da sua existência, ou modificar suas atividades, e outras ainda
se veem tão fulminadas pelo acontecimento que perdem inteiramente a vontade de
viver, a ponto de se suicidarem (ROCHA, PEDRINHA e, OLIVEIRA, 2019, p 182).

13
Essa redação foi incluída pela lei 13.772/18 que também trouxe o avanço penal na tipificação da produção de
conteúdo pornográfico de caráter íntimo sem o consentimento dos participantes na letra do art. 216-B, disponível
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13772.htm#art2, acesso em 10 de Setembro
de 2021.
O perpetrador, então, aproveita-se da confiança depositada em momento de intimidade
e utiliza essas imagens como forma de ameaça e coerção psicológica, o que para Silva e
Pinheiro (2018, p. 5) é uma manifestação clara de manter o gênero feminino constantemente
controlado.
Revela-se então uma disparidade entre a pena escolhida pelo legislador e a pós-
realidade da vítima da conduta da pornografia de vingança, pois até mesmo direitos tutelados
constitucionalmente são defasadamente e levianamente ignorados pelos agressores, e estes
direitos violados estão previstos na Constituição Federal do Brasil no art. 5º, inciso X que traz
a seguinte redação: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”, ou seja, há uma previsão de reparação e indenização na seara cível para as vítimas
da divulgação não consentida, e o questionamento que fica é se a sanção penal vigente e uma
pretensão à reparação dos danos seriam suficientes para reparar e amparar as vítimas, nessa
lógica:

Mais do que uma ofensa, a pornografia de vingança conduz à morte das mulheres
em plena vida, tendo em vista que os assassinatos virtuais, quando não desembocam
em suicídios, implicam em consequências que perduram por tempo indeterminado.
Entre essas anomalias implicadas à vida das vítimas, destacam-se as graves sequelas
físicas e emocionais causadas às mulheres e a imposição permanente do
constrangimento e isolamento a essas (SILVA e PINHEIRO, 2018, p. 9).

Posto que, uma vez que as imagens íntimas estejam na internet é perpetuada
infinitamente a sua exposição não consentida, e por mais que a Lei do Marco Civil (Lei nº
12.695) em seu art. 21 tenha responsabilizado subsidiariamente servidores pela violação da
intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de
imagens/vídeos/materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado
quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar
de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a
indisponibilização desse conteúdo, não traz reparação suficiente por mais que seja louvável, já
que não há como conter ainda os downloads via internet.

4.2 O problema da subnotificação e os dados escassos da pornografia de vingança

Mesmo com os avanços legislativos, há ainda uma violência velada e simbólica que
desestimula mulheres a denunciarem o crime, é o que aponta Leandro Ayres França,
organizador do Projeto Vazou (2018, online), que explica que o crime faz parte de uma cifra
oculta/subnotificação14 gigantesca e isso dificulta um tratamento ideal e igualitário pelos
legisladores justamente por não ter-se noção real dos efeitos e números da exposição
pornográfica como forma de humilhação e vingança.
A ONG Safernet apontou ter atendido cerca de 1147 casos de sexting/exposição
íntima15 só no Brasil no ano de 2020, e dentro desse número as mulheres são as únicas
afetadas drasticamente, sendo que o intuito do agressor é justamente o de desmoralizar a
figura feminina perante o meio social, já que “uma vez espalhados pela rede, tais conteúdos
trariam como consequência uma espécie de linchamento moral às vítimas, que seriam
julgadas e atacadas por seus comportamentos sexuais” (LINS, 2015, p. 2). E esse linchamento
virtual é fruto do que aponta Pinheiro (2018) como uma consequência da pornificação do
corpo feminino, reduzindo-o a um objeto/coisa sem valor e vulgar.
E esses pensamentos machistas e retrógrados justificam os dados do Projeto Vazou
(2018, online) nos quais se obtiveram a resposta de que 84% das vítimas eram mulheres,
sendo 81% delas conhecedoras da informação de quem vazou as fotos e vídeos íntimos, e sem
zero surpresa, 84% dos vazamentos foram praticados por homens. E da porcentagem total de
dados coletados pelo projeto, 44% foram por motivos de vingança e se enquadrariam na
conduta descrita no art. 218-C, §1º do Código Penal. E apesar das vítimas terem anseio por
reparação dos danos a maioria não vai atrás de uma judicialização justamente pela vergonha e
violência sofrida, revelando uma cifra altíssima de 82% dos casos não sendo nem sequer
levados a uma investigação policial, e 86% deles também não houve movimentação para
abertura de processo judicial.16
Não é difícil encontrar casos emblemáticos envolvendo mulheres e a pornografia de
vingança na internet, que revelam e confirmam resultados finais devastadores como no já
citado caso da Fran em capítulo anterior, ou no caso pioneiro da jornalista Rose Leonel que
além do desemprego, os filhos também foram afetados pelo crime na forma de assédio via
escola e de populares, sendo que, há casos mais drásticos e tristes em que as vítimas da
pornografia de vingança optam pelo suicídio, nessa perspectiva, Valente et al (2016, p. 9)

14
Para o organizador do Projeto Vazou isso se dá pela diferença entre todos os vazamentos/compartilhamentos
ocorridos e aqueles reportados. Reconhecer isso permite constatar que há muitos mais desvio e crimes do que o
sistema penal tem condições de identificar, investigar e processar.
15
A Ong Safernet também registrou que este problema está em 3º lugar perdendo apenas para problemas com
dados pessoais, saúde e bem-estar na lista de principais violações para quais os internautas brasileiros pedem
ajuda. Disponível em https://helpline.org.br/indicadores/pt/, acesso em 11 Set 2021.
16
Dado coletado online por pesquisa realizada através de formulários do Google entre os meses de Abril e
Novembro de 2018 pelo Projeto Vazou. Dados completos disponíveis em:
https://www.crimlab.com/projetovazou/resultado.pdf, acesso em 21 de Setembro de 2021.
explica que não há dúvidas de que são graves os problemas e que por si só justificam a grande
preocupação por conta do crime ser uma grave perpetuação da violência de gênero.

4.3 Uma breve crítica a pena do artigo 218-C do Código Penal através das teorias
retribuitiva e preventiva das penas

Bitencourt (2021, v. 01, online) apresenta como característica principal da teoria


retribuitiva da pena uma “retribuição ao mal causado através do delito”, de tal forma que, a
pena estaria justificada para aplicação de sanção estatal, já na teoria preventiva, o autor
continua explicando que não há fator da retribuição e sim uma forma de prevenção para a
prática de novos delitos. Ou seja, paga-se o mal e previnem-se práticas futuras.
No geral para a pena ser totalmente eficaz deveria haver uma conversa entre os
aspectos retribuitivos e preventivos dela com o princípio da proporcionalidade, que rege que
deve haver proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada
(BITENCOURT, 2021, v. 1, online). E ao se olhar criteriosamente para a pena do 218-C do
Código Penal, vislumbra-se uma pena com pouca força, pois o tipo penal nem se preocupou
em evidenciar a pornografia como violência de gênero, deixando a pena à mercê da
insuficiência.
Há inclusive uma crítica a pena mínima abstrata, pois o legislador a fixou em apenas 1
(um) ano, nesse sentido, Alves (2019 p. 72) preocupa-se, pois, através da pena mínima e do
caso concreto “torna-se possível a aplicação de medidas alternativas à pena privativa de
liberdade que tornam a punição demasiada deficiente para os casos de pornografia de
vingança”.
A simplicidade e a pressa do legislador em concluir e aplicar a exposição pornográfica
não consentida junto com a divulgação de cena de estupro, pode não ter sido então, a melhor
das ideias legislativas. O crime tratado no presente artigo é complexo, traz inúmeros
resultados negativos na vida da vítima, e evidencia o que França et al, (2018, p. 12) chamou
de ato legislativo simbólico, na qual é levada até as autoridades o problema, e elas expressam
saber das preocupações, mas de fato, não produz força real a fim de produzir resultados
práticos.

5 CONCLUSÃO
A pornografia de vingança funciona como forma de represália do gênero feminino, o
perpetrador ao utilizar-se de imagens íntimas que foram compartilhadas em um momento de
confiança busca atingir a figura feminina no meio social em que ela se insere por mera
vingança, ou seja, a vontade daquele que expõe sobrepõe-se à vontade da mulher em não
querer estar mais em um relacionamento. A vingança em si não precisa estar necessariamente
inserida no meio do crime de pornografia de vingança, mas curiosamente foi o meio usado
pelo legislador brasileiro para inclusão dele no art. 218-C do Código Penal.
A conduta do agressor ganha potência na crescente onda do meio online, ao utilizar-se
de meios informáticos o agressor age sem o consentimento da vítima, e as relega a constantes
humilhações, assédios e punições de terceiros, o que caracteriza mais uma vez a forte
violência de gênero. Diferentemente de Hester, personagem de Nathaniel Hawthorne que em
A letra Escarlate carregava um “A” de adúltera bordado em vermelho para lembrar a todos do
que para eles era uma desonra, a mulher vítima do crime de vingança não ganha apenas um
simples “A” bordado em suas roupas, ganha a estigma de vagabunda, termo pejorativo que é
fruto de uma sociedade ainda muito machista e misógina que separa as mulheres numa
dicotomia arcaica e atrasada de boas e más. E más são todas aquelas que ousaram e ousarem
sair do papel esperado pelo sistema.
A pornografia de vingança pune não só pune a mulher como também pune a liberdade
sexual dela, extingue seus direitos de personalidade, reduz a cacos o consentimento e escolha
da vítima em decidir com quem se relacionar e como se relacionar e, viola a figura feminina
na sua intimidade. E por muitos anos o legislativo quedou-se inerte para o crime em questão
que sempre foi uma grave forma de violência, e essa ausência de compreensão da gravidade
do problema justifica os muitos anos de ausência de uma tipificação exata do crime, fazendo
com que por muito tempo meios não adequados, como os juizados especiais, fossem
utilizados como forma de resolução do problema, causando enorme senso de impunidade nas
vítimas que denunciavam a prática criminosa.
Faltava então proporcionalidade e eficácia e, foi somente em 2018 com a inserção do
art. 218-C no Código Penal que se ousou tipificar a pornografia de vingança no quadro de leis
do Brasil, e por mais bem intencionado que tenha agido o legislador o art. 218-C do CP veio
com uma tipificação um tanto confusa e que pode induzir ao erro àquele que faz uma leitura
mais apressada do artigo em questão, pois, de forma descuidada o legislador incluiu o crime
estudado no capítulo dos crimes sexuais contra menores, o que num primeiro momento
restringiria a sua aplicação somente aos vulneráveis, superado esse ponto e concordando com
França (2018, p. 12) o legislador agiu com má técnica legislativa e perdeu uma grande chance
de englobar a complexidade do crime da pornografia de vingança.
A vítima da pornografia de vingança está sujeita a humilhações e assédios de terceiros,
e essa conduta que é massificada pela internet, leva a mulher a mudar totalmente o seu projeto
de vida e a desenvolver transtornos psicológicos como ansiedade, depressão, automutilação e
pensamentos suicidas, o que em vários casos infelizmente se concretiza. Isto significa dizer
que infelizmente o legislador agiu com simplório descuido ao colocar a pena base em apenas
1 (Um) ano, deixando a conduta grave à mercê de institutos despenalizadores, que em outros
casos são de grande avanço para o judiciário, mas que não fazem jus e nem eficácia para a
exposição pornográfica não consentida.
Por ser um crime ainda muito subnotificado, o que se deve em parte grandiosa ao
tratamento da vítima pela sociedade que revimitiza constantemente essas mulheres reduzindo-
as a meros corpos sem personalidade e direitos, é difícil ter um número exato dos muitos
estragos que causa a pornografia de vingança, pois a mulher envergonhada muitas vezes nem
aciona o judiciário, o que só confirma a urgência de mais debates e estudos sobre o tema.
Talvez seja cedo para salientar se o 218-C do Código Penal seja ou não um tipo penal
eficaz ao enfrentamento do crime da pornografia de vingança, mas não é de agora o
sentimento agridoce de impunidade que permeia todas as mulheres que sofreram e sofrem
com a exposição pornográfica não consentida. Nessa conformidade o presente trabalho não
busca esgotar todos os questionamentos sobre o tema, mas espera-se que os mitos que
envolvem o crime da pornografia de vingança como a vítima ser culpada e merecedora do
julgamento e estrago que sofre sejam cada vez mais questionados e rediscutidos tanto no meio
acadêmico como no social.

REFERÊNCIAS

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