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A Criminologia Midiática na Sociedade do Espetáculo

De acordo com Guy Debord, a sociedade moderna tem vivido sobre a égide das relações
sociais interpessoais baseadas em imagens. Um mundo imerso no acúmulo infinito de
espetáculos que invertem a concretude da vida, no movimento autônomo do não vivo. Tal
imersão chegou a proporções tão acentuado, que o espetáculo se tornou o objetivo e o próprio
projeto do modo de vida da sociedade. Dessa forma, como dito por Debord, "é o âmago do
irrealismo da sociedade real. Sob todas as formas particulares - informação ou propaganda,
[...], o espetáculo constitui o modelo de vida dominante na sociedade".

Logo, assim como no episódio "White Bear", tudo toma uma forma espetacularizada,
inclusive a punição, com requintes de crueldade, dos criminosos estereotipados. Através de
seus celulares, os espectadores gravam e compartilham o sofrimento alheio de modo
consciente e satisfeita, demonstrando de maneira categórica o como o espetáculo desumaniza
o ser humano. Destarte, o espetáculo se apresenta como a negação da vida humana que se
tornou visível.

De modo que, como dito por Debord, "a realidade surge do espetáculo, e o espetáculo é real.
Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente". Portanto, fica claro
que um dos aspectos determinantes do modus operandi do "Parque da Justiça" é a alienação
das pessoas envolvidas naquele meio social. Uma vez que a realidade vivida por esses
indivíduos foi de tal modo tomada pela contemplação do espetáculo, que o real foi
efetivamente invertido e transformado em produto.

Por conseguinte, não poderia ser diferente quanto a criminologia midiática. As mídias,
através do uso de determinadas imagens, contribuem para a criação de uma realidade já posta
e acabada, sem espaços para críticas ou reflexões. O discurso da criminologia midiática se
mostra apenas como informação, técnica e neutra. Mas na verdade é pura opinião, sem
qualquer fundamento, parcial e que visa interesses específicos, legitimando assim a
perpetuação do espetáculo.

Dessa forma, os meios de veiculação de informação em massa influenciam à população de tal


modo que cria-se um neopunitivismo amplamente aceito socialmente, formando um ideal
contraditório e distorcido da realidade criminal. Esta, por sua vez, constitui uma realidade
totalmente colapsada e em constante estado de calamidade, o que cria uma suposta divisão
social onde existem pessoas boas, alheia a toda "maldade" espalhada pela sociedade, o "nós",
os justos e corretos. E por outro lado, existem "eles", uma massa de criminosos e arruaceiros,
estereotipados e definidos pela mídia, a quem lhe são atribuídos todos os males da sociedade.
Essa realidade presumida quase escatológica legitima qualquer tipo de ação contra esse
"eles", e cria um discurso de merecimento e vingança, onde todos os males causados a esses
grupos marginalizados são válidos por que eles supostamente "merecem" todo e qualquer tipo
de punição, seja ela justa ou injusta.

Assim, nota-se o quão difundido é o ideal de guerra ao crime. Assim como em "White Bear",
toda a tortura física e mental era justificada pelo argumento do merecimento. Os criminosos
deveriam pagar pelo que fizeram, mesmo que isso não vá desfazer o que foi feito, é preciso
ver o sofrimento para que "eles" possam sentir uma fração do sofrimento que causaram. Um
aspecto interessante das punições do parque é o caráter vexatório e expiatório das penas. É
literalmente um espetáculo chancelado pela Justiça Criminal, não importando mais a vida
humana ou justiça de fato, apenas a degradação do indivíduo do ser, para o parecer ser.

É preciso participar do espetáculo de tortura e ser visto participando, pois a imagem que se
passa é o que realmente importa. Na verdade, nesta realidade invertida, a verdade é um
momento do que é falso, ou seja, não faz qualquer diferença, para a criminologia midiática
não é relevante se certo tipo de notícia é de fato verdadeira, ou se possui caráter
sensacionalista, o grande objetivo é criar um alarde que possibilite uma venda da maior forma
possível dessa notícia e um enorme cause alvoroço social, suscitando o crescimento do medo
e do preconceito. O processo produção da verdade jurídica não precisa ser condizente com a
realidade, precisa somente ser válido e encarado como tal. Pois a intenção dos agente do
poder punitivo não é fazer justiça, é apenas eliminar e manter afastado os elementos
indesejáveis socialmente.Dessa forma, o sensacionalismo e caos se tornam um adorno
indispensável dessa realidade, tanto criminal quanto factual, criada e criadora do espetáculo,
de modo que, aliada a alienação do indivíduo a crescente multidão de imagens-objetos mostra
que o próprio espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

A urgência da criminologia midiática

A seletividade penal criada por essa mídia e aceita pela população, gera um ideal de que o
encarceramento desses grupos é o único modo para se construir uma sociedade segura e
ordenada, livre dessa "sujeira social". Visto isso, fica claro o como a criminologia midiática
assume o discurso urgente de higienização social. Assim sendo, essa urgência não admite
questionamento, ponderação, sensatez, é intolerante e censura qualquer voz divergente.
Assim como no espetáculo, a raiz da sua forma de agir está na especialização do poder. A
criminologia midiática e o espetáculo são práticas especializadas que respondem por todas as
demais atividades de seu ramo. Reproduz em seu âmago a mais pura sociedade hierárquica,
em que qualquer outra fala é terminantemente excluída.

Mas tais aspectos não são adotados de maneira leviana, há uma clara motivação: é preciso
gerar um sentimento de angústia geral na população. A angústia fundamentada em um falso
juízo da realidade criminal produz o medo, medo esse que legitima a criação de leis que vão
totalmente de encontro com garantias constitucionais, mas que são essenciais para a atuação
dos agentes do controle social que buscam a todo tempo reprimir, oprimir e eliminar o "eles".
E esta perspectiva é notada claramente tanto em "White Bear", como na sociedade brasileira.
A falta de urgência nas medidas tomadas contra certos grupos é tida como passividade e logo
se materializa em uma hipotética insegurança.

Não há reflexão ou questionamento quanto a forma como as penas são aplicadas aos
condenados no episódio, e semelhante a isso, não há hesitação ou dúvida quando se noticia
que pessoas foram mortas em um suposto confronto com a polícia. As mortes são tidas como
um efeito natural e até desejado do sistema penal. Uma vez que, como afirma René Girard,
"se o sistema penal tem por função real canalizar a vingança e a violência difusa na
sociedade, é essencial que as pessoas acreditem que o poder punitivo está neutralizando o
causador de todos os seus males".

E, de acordo com Zaffaroni, este aspecto da criminologia midiática é conhecido como


"causalidade mágica", onde não se procura uma justificativa plausível para a punição de
certos grupos ou de pessoas específicas, sobre esses bodes expiatórios é focado todo
potencial punitivo presente no Estado, baseado em desinformações convergidas com
preceitos e crenças, criando uma realidade totalmente fantasiosa, mas útil para esses setores
da sociedade. Tal causalidade mágica permaneceu a mesma com o decorrer do tempo, sendo
alterado apenas os meios de comunicação - jornais, televisão, e hoje, as tecnologias e as redes
sociais - e os próprios bodes expiatórios - que mudam ciclicamente e de acordo com a
localidade, podendo ser negros, judeus, armênios, pobres, etc-.

Em "White Bear", a busca pela diminuição da dita angústia se apresentar, além da separação
entre os "bons" e os "maus", há uma crível caracterização dos maus com roupas tidas como
"alternativas" (algo que já foi muito estigmatizado na sociedade estadunidense), de forma a
construir o "eles" através da semelhança. E a partir desse aspecto é construída a seletiva
indignação popular. Uma vez separados, tanto física quanto aparentemente, vem a tona os
esteriótipos, sejam os antecedentes, a origem, o uso de drogas, são tomadas atitudes que
parecem querer mostrar que toda concepção de segurança pública estaria resguardada
mediante ao combate à alguns assaltos a mão armada e retirando esse infrator do convívio
social até seus quase quarenta anos. Com isso, há uma total indignação quanto aos crimes
cometidos por esses grupos sociais, sejam eles graves ou não, mas somente quanto aos crimes
desses grupos específicos. Visto que, em nenhuma sociedade do mundo violadores,
assassinos, criminosos sexuais, nenhum deles fica em pune. Todos os ordenamentos jurídicos
condenam veementemente qualquer uma dessas práticas. Entretanto, cria-se uma grande
comoção quanto aos crimes cometidos por "eles", porque esses são todos homicidas e
criminosos. Mas não de fato os criminosos e homicidas dentro desse grupo, a criminologia
midiática cria um panorama em todos eles possuem uma certa propensão a esses tipos de
condutas, e que por isso precisam ser neutralizados o quanto antes, seja nas prisões ou nos
pelotões de fuzilamentos disfarçados em operações policiais. Dessa forma, toda essa celeuma
criada devido ao caráter periculoso do "eles", toda a insegurança social é atribuída a esses
grupos marginalizados, devido a uma pequena série de atos ilícitos e consumo de drogas.

Outrossim, é notória a forma como age a criminologia midiática quanto a veiculação das
manchetes criminais. Uma vez que a criminalidade é noticiada em prol de entreter e captar
audiência, não necessariamente busca informar seu público. Pois tal maneira de lidar com os
crimes ocorridos tem por objetivo a obtenção de lucros e o sensacionalismo tão vendido na
atualidade. As mídias utilizam imagens, mas não qualquer tipo, selecionam imagens
emblemáticas de certos setores desses grupos estereotipados que cometem ou cometeram
crimes, apresentando-os como animalescos, incapazes de viver harmoniosamente em
sociedade. Assim começa o julgamento midiático no qual quem infrigiu a ler é visto como
um tipo especial de indivíduo, alguém que não possui mais a capacidade de viver em
sociedade e que precisa ser segregado. Logo em seguida, mostram os semelhantes, a parcela
majoritária desses grupos que, mesmo sendo totalmente livre de culpa, é taxada e subjugada.
A comunicação por imagens gera um impacto emocional ímpar, na intenção de criar e
legitimar o ideal de que essa parcela supostamente inocente do "eles" está apenas esperando
para cometer qualquer tipo de crime, somente "ainda" não cometeram qualquer infração, mas
que é uma questão de tempo até violarem a lei. Segundo a Teoria do Etiquetamento, de
acordo com Sérgio Salomão Schecaira:
"Quando os outros decidem que determinada pessoa é non grata, perigosa, não confiável,
moralmente repugnante, eles tomarão contra tal pessoa atitudes normalmente desagradáveis,
que não seriam adotadas com qualquer um. São atitudes a demonstrar a rejeição e a
humilhação nos contatos interpessoais e que trazem a pessoa estigmatizada para um controle
que restringirá sua liberdade. É ainda estigmatizador, porque acaba por desencadear a
chamada desviação secundária e as carreiras criminais.”.

Diante disto, é de suma importância compreender a forma como agem os efeitos da


estigmatização na construção social de quem oferece perigo a ordem vigente. O modo como a
mídia cria e propaga uma fascinação pelo crime possui um papel fundamental na definição de
quem são o "eles" e de como é preciso controlá-los. A criminologia midiática dita quem pode
e deve ser punido, quem precisa ser o tempo todo vigiado e quem merece ou não os direitos
estabelecidos constitucionalmente. Os jornais periódicos e, atualmente as redes sociais,
banham essa falsa realidade imposta de sangue e morte, trazendo consigo uma grande
sensação de impunidade e de necessidade de medidas drásticas.

Por isso, a cultura da vingança e do castigo legitimam esse tipo de prática e esse modo de
discurso, pois de acordo com Pierre Bourdieu "a imagem tem a particularidade de poder
produzir o 'efeito real', ela pode fazer ver e fazer crer no que se faz ver". Contudo, é preciso
evidenciar também a função do público como um todo em tal paradigma. A opinião popular,
muito influenciada pelas mídias digitais e pelas redes sociais, é quem de fato utiliza os meios
para a estigmatização e isolamento das camadas mais pobres da sociedade. Assim sendo, um
público sedento por sangue clama por qualquer forma de justificação dos grupos
estereotipados, seja dentro ou fora da lei. Prova disso é a grande romantização dos grupos de
extermínio e dos "justiceiros sociais", que são aclamados por tornarem a sociedade melhor ao
fazerem justiça com as próprias mãos. Outra forma de justiça tão aclamada é a vinda do
poder judiciário. Há uma constante pressão nos juízes, promotores e agente da lei em tornar
as penas contra "eles" as mais severas possíveis, mesmo que o juiz tenha a consciência de que
tal medida não é efetiva nem justa, o grande apelo popular torna tais sanções aos grupos
marginalizadas legitimas e amplamente comemoradas.

Logo, não se trata apenas das características e das propriedades do ato cometido, mas o que
realmente torna esses grupos estigmatizados é a execução pela parcela "boa" da população,
pelo "nós", das regras e sanções. De maneira que a aplicação dessas normas rotula os
"perigosos" e esses são rejeitadas e humilhados, ficando limitados a viverem em certos
espaços sem prestígio das cidades, restringindo sua liberdade. E, de certa forma, isso se
encaixa na tese de Debord que diz, "o espetáculo se apresenta como uma enorme
positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de 'o que aparece é bom, o que é
bom aparece' ".

Conclusão

Assim como na punição espetaculoísta do julgamento de Victoria Skillane em "White Bear" e


as mídias modernas, há uma constante tentativa de culpabilização e punição da alma de
determinados setores da sociedade. Dessa forma, percebe-se que há uma imensa semelhança
entre a Sociedade do Espetáculo, descrita por Guy Debord, e a realidade que vivemos. As
tecnologias existentes ainda elevam o grau profundidade do abismo espetaculoísta ao qual
estamos submersos. Ao aliar a mídia ao Poder Punitivo estatal, cria-se uma realidade
distópica e alarmante que materializa uma segregação socioespacial chancelada pelo Estado e
pela própria população, criando padrões de criminosos e de "cidadãos de bem". Entretanto,
tais aspectos mostram uma latente contradição dentro dessa realidade tão comum a nós, o
próprio julgamento de Victoria mostra o quão sedento por sangue e vingança os tidos bons
cidadãos podem ser. A ré foi definida como irrecuperável, sem a menor chance de ser
reinserida socialmente, e muito além disso, foi definida como merecedora de todo um
processo cruel, vexatório e desumano de tortura, saciando um desejo de podre justiça da
sociedade em questão.

Diante disso, é notório o como o episódio "White Bear" se aproxima da nossa realidade.
Uma mídia sensacionalista e cruel, buscando aplicar duras (e até inconstitucionais) penas a
determinados agentes sociais. A sensação de medo e insegurança, aliada a uma hipotética
impunidade, tornam o cenário atual fértil para situações como essa. Quantos casos de
espancamento em via pública, julgamentos feito de modo parcial por uma justiça tida como
"neutra", violação a garantias constitucionais, tudo isso legitimado por uma mídia carregada
de ódio e estigmas sociais que aos poucos vão destruindo o pouco que restou das caráter
social do Estado brasileiro.

Portanto, conclui-se que a mídia, através da criminologia midiática, acaba por definir e ditar
quem são os indivíduos passíveis de punição e que tipo de punição cada um deve receber. Ao
gerar aspectos da criminalidade que são tomados como verdades absolutas e indiscutíveis,
legitima a desigualdade social e a seletividade de um sistema penal obsoleto, racista e
defasado. A construção da realidade espetacular cria inimigos imaginários que acabam por
ceifar vidas reais e gerar injustiças institucionais.

Bibliografia

21 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.
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