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MANICÔMIOS .............................................................................................................................. 26
PRISÕES ...................................................................................................................................... 32
Uma das estratégias mais exploradas pela mídia para promover a espetacularização do
delito é o enaltecimento da vitimização. A experiência vivida pela vítima, sua angústia, seu medo,
sua revolta, suas perdas e sua dor são dramatizados com o escopo de produzir no público
sentimentos equivalentes e reter sua atenção. Midiatiza-se a vitimização com o reforço dos
estereótipos de ofendido (inocente, desprotegido, ingênuo, injustiçado), que são contrapostos aos
estigmas do criminalizado (culpados, agressor, imoral, desviado social), em um ciclo interminável
que estimula a reprovação coletiva e engrossa as exigências por respostas punitivas imediatas e
rigorosas. (GOMES, 2015, p. 123)
Os influxos repressivos da sociedade pós-industrial reavivaram a figura da vítima do
sistema punitivo. Fala-se em uma verdadeira redescoberta da sua importância, com o sentido de
resgate do seu papel no conflito penal, que teria sido abandonado com a afirmação do Estado e o
monopólio do jus puniendi. (GOMES, 2015, p. 123)
(...)
Toda essa discussão travada no meio acadêmico, mas também pela sociedade civil nos
últimos sessenta anos, acabou por reforçar, a partir de um enfoque meramente dicotômico dos
sujeitos envolvidos no conflito penal, o discurso punitivista. Criminoso e vítima são frequentemente
identificados como dois extremos opostos e valorativos do crime: um negativo (criminoso) e outro
positivo (vítima). Uma visão cartesiana do fenômeno criminal, em muito incentivada pela
abordagem midiática simplista do problema, e que alimenta a ideia de que direitos fundamentais
de natureza penal e processual penal constituem incômodos obstáculos à efetivação de uma
justiça repressiva e exemplar, mas que nada mais é do que fruto de uma política criminal irracional
e refratária à tolerância das diferenças. (GOMES, 2015, p. 128)
A emotividade nutrida por essa empatia vitimológica forja um legislador irracional, menos
preocupado com violação do direito do que com o sofrimento pessoal da vítima. E é assim que a
emoção acaba por afetar o discurso político, inspirando as leis e interferindo diretamente em toda
a vida democrática. (GOMES, 2015, p. 130/131)
Essa é uma escolha equivocada. Diferentemente do que alardeiam movimentos ligados à
defesa de interesses de grupos considerados vulneráveis, o maior rigor punitivo não significa
satisfação das pretensões da vítima. As ferramentas tradicionais do sistema punitivo -
criminalização, seletividade, exclusão, etiquetamento, encarceramento - muito embora sejam
potenciadas pelo discurso vitimológico, nada de concreto aportam aos interesses do ofendido,
salvo se estes resumirem ao desejo de vingança. É muito comum movimentos em favor de vítimas
alimentarem iniciativas conservadoras e reacionárias das agências de controle ao incutirem na
coletividade, endossados pela mídia, a ilusão de que a criminalidade se expande como nunca e
nada mais se pode fazer a não ser aprisionar os perigosos e indesejados. A consequência desse
discurso é a implementação, na esfera pública, de políticas fortemente restritivas de direitos
fundamentais e o crescimento, no âmbito privado, do mercado da segurança (seguradoras,
serviços de segurança privada, comércio de armas e aparatos de proteção residencial, como
sistemas de alarme e vigilância eletrônica etc). Aliás, a privatização de estabelecimentos
prisionais é um tema que diz respeito a esse fenômeno e que logo fará surgir, ao que tudo indica,
a indústria do monitoramento eletrônico. (GOMES, 2015, p. 131)
Na verdade, o enaltecimento da proteção à vítima pela via meramente punitiva pode
produzir um efeito inverso ao desejado. Ao se clamar por mais repressão em prol do ofendido,
concentra-se a atenção na figura do criminoso e abandona-se a preocupação com o estado da
vítima e suas necessidade pós-delito, tradicionalmente reduzidas à reparação civil. A esse
propósito, Cláudia Cruz Santos afirma que “a dissociação dos dois conceitos (mais punição dos
agressores e mais proteção dos direitos das vítimas) torna-se necessária, assim, no interesse das
próprias vítimas.” (GOMES, 2015, p. 131/132)
O sistema penal é expressão da política criminal. Seus limites e traços característicos são
definidos por decisões políticas em matéria de controle social, e delineados a partir da execução
dessas decisões pelas agências punitivas. Na indústria comunicacional do espetáculo, a
mercantilização do crime - sua conversão em mercadoria noticiosa - produz efeitos que interferem
sensivelmente na conformação do sistema penal. São eles: a) o esvaziamento da disposição
crítica da massa; b) a canalização do imaginário coletivo para a personificação do inimigo
(criminoso); c) a produção de estímulos vitimológicos. (GOMES, 2015, p. 139-140)
A atuação das agências de controle tende a ser condicionada por tais fatores. Desse
modo, o discurso midiático sobre o crime contribui para a instituição, no campo penal, de um
sistema repressivo máximo e imediato, e no campo processual penal, de um sistema de garantias
processuais mínimas e maleáveis. (GOMES, 2015, p. 140)
(...)
Esse quadro é inquietantemente agravado pela indevida associação que se tenta
estabelecer entre a velocidade de reação da mídia ao crime e a velocidade de reação do sistema
punitivo. Para os meios de comunicação, o crime é uma importante matéria prima que, uma
vez preparada para consumo, se vende a um público (massa) ansioso pelo espetáculo. E
como todo fornecedor que zela pelo sucesso do seu negócio, a mídia se esforça para atender à
demanda do mercado com impressionante rapidez, se possível com instantaneidade. Essa
característica, já se disse, compromete a divulgação reflexiva da informação e anula qualquer
possibilidade de contraditório efetivo. Velocidade e superficialidade são traços distintivos, portanto,
da abordagem midiática do crime, por razões, digamos assim, de mercado. (GOMES, 2015, p.
141)
Esse seria um problema restrito ao sistema comunicacional se não interferisse diretamente
no tempo e na forma de reação das agências punitivas. O que se espera, em ambientes políticos
democráticos, é que o sistema penal se mova com cautela, dando passos que respeitem critérios
constitucionais e legais de delimitação do poder punitivo. A pressão para satisfazer as
exigências midiáticas de produção de novos episódios noticiáveis impõe aos órgãos de
controle um ritmo de apuração e de tratamento dos fatos que não pode ser suportado pelos
seus mecanismos ordinários de funcionamento. As insuficiências e debilidades próprias do
sistema penal, que mantêm crescente a cifra oculta, impedem-no de apresentar resultados
satisfatórios com imediatidade, pois medidas de prevenção concreta do crime demandam
planejamento e tempo. (GOMES, 2015, p. 141)
(...) 8
Não restam dúvidas de que a mercantilização da informação pela mídia determina, em
igual medida a lesividade social, a mercantilização da lei penal, moldando o sistema punitivo a
partir de uma política criminal midiática. (GOMES, 2015, p. 142)
Cabe observar, bem por isso, que a responsabilização a posteriori, em regular processo
judicial, daquele que comete abuso no exercício da liberdade de informação não traduz ofensa ao
que dispõem os §§ 1º e 2º do art. 220 da CF, pois é o próprio estatuto constitucional que
estabelece, em favor da pessoa injustamente lesada, a possibilidade de receber indenização "por
dano material, moral ou à imagem" (CF, art. 5º, V e X). Se é certo que o direito de informar,
considerado o que prescreve o art. 220 da Carta Política, tem fundamento constitucional (HC
85.629/RS, rel. min. Ellen Gracie), não é menos exato que o exercício abusivo da liberdade de
informação, que deriva do desrespeito aos vetores subordinantes referidos no § 1º do art. 220 da
10
própria Constituição, "caracteriza ato ilícito e, como tal, gera o dever de indenizar", (...), tal como
pude decidir em julgamento proferido no STF: "(...) A CF, embora garanta o exercício da liberdade
de informação jornalística, impõe-lhe, no entanto, como requisito legitimador de sua prática, a
necessária observância de parâmetros – entre os quais avultam, por seu relevo, os direitos da
personalidade – expressamente referidos no próprio texto constitucional (CF, art. 220, § 1º),
cabendo ao Poder Judiciário, mediante ponderada avaliação das prerrogativas constitucionais em
conflito (direito de informar, de um lado, e direitos da personalidade, de outro), definir, em cada
situação ocorrente, uma vez configurado esse contexto de tensão dialética, a liberdade que deve
prevalecer no caso concreto." (AI 595.395/SP, rel. min. Celso de Mello). [ADPF 130, rel.
min. Ayres Britto, voto do min. Celso de Mello, j. 30-4-2009, P, DJE de 6-11-2009.] = AC 2.695
MC, rel. min. Celso de Mello, j. 25-11-2010, dec. monocrática, DJE de 1º-12-2010 Vide Rcl 9.428,
rel. min. Cezar Peluso, j. 10-12-2009, P, DJE de 25-6-2010.
Daniella Perez era filha de Gloria Perez, conhecida autora de novelas de Rede Globo e era
casada com o ator da Globo Raul Gazolla. Daniella também era atriz da Globo e foi morta aos 22
anos por Guilherme de Pádua, seu par romântico na novela De Corpo e Alma, da TV Globo. O
crime abalou o país pela violência e pelos personagens envolvidos.
O caso teve tanta repercussão e comoção nacional que Glória Perez colheu 1,3 milhão de
assinaturas na tentativa de mudar a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), editada pelo governo
Fernando Collor em 1990. Originalmente a lei classificou como hediondos os crimes de sequestro,
tráfico e estupro.
A campanha empreendida por Glória Perez resultou na alteração da lei para incluir o crime
de homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos.
Esse é um claro exemplo de recrudescimento da lei penal em razão da influência da mídia.
Andréa de Penteado Fava, em mestrado orientado pela Profa. Dra. Vera Malaguti Batista,
estudou o tema “O poder punitivo da mídia e a ponderação de valores constitucionais: uma
análise do caso Escola Base”. Do trabalho1, extraímos a seguinte narrativa do caso da Escola
Base:
“Em 1994, os donos da escola, seus sócios e mais um casal, pais de um aluno, foram
acusados de abusar sexualmente de 2 (duas) crianças que, à época, tinham 4 (quatro) anos de
idade. o Jornal Nacional, da Rede Globo, noticiou a denúncia das mães, sem sequer apresentar
11
as versões dos acusados.
Inicia-se uma perseguição implacável aos acusados. Jornalistas fazem plantão na frente
da casa de Mara e Saulo que, ademais, são recebidos com palavrões e escárnios por parte dos
vizinhos. Todos escondem-se onde podem para evitar um linchamento. A abordagem da imprensa
começa a mudar, mergulhando em uma cobertura sensacionalista, capitaneada mormente pelas
emissoras de televisão que insistiam em transmitir o sofrimento das mães das vítimas.
Recebendo o suporte das imagens e das transmissões da imprensa, no dia 31 de março
surge uma suposição acerca do uso de drogas pelos acusados, bem como a possibilidade dessas
substâncias estarem sendo ministradas às crianças. Ato contínuo, denúncias atrás de denúncias
são propagadas e fomentadas pelas empresas jornalísticas sem sequer serem previamente
investigadas.
Afigura-se legítimo afirmar que, no caso da Escola Base, a ética que prevaleceu foi a da
violência, do lucro e do espetáculo. Essa ética bizarra reafirmou-se pela conduta da Folha da
Tarde que permaneceu faltando com a verdade mesmo após o dia 22 de junho, data em que o
1
Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp037871.pdf> . Acesso em 07/03/1992.
Delegado Gérson de Carvalho concluiu que os seis indiciados eram inocentes. O referido jornal
publicou que o inquérito fora arquivado por falta de provas.
Depois de mais uma década do ocorrido, as marcas ainda se fazem presentes.
Ayres trabalha em um xerox no Centro de São Paulo, é devedor de vários bancos e tornou-
se, segundo o relato de estudiosos do caso, uma pessoa nervosa, irritadiça, descrente, neurótica
que precisa de tranqüilizantes para dormir. Cida, após o sonho de lecionar e ser dona de uma
escola para crianças enterrado, vive em estado de depressão, sobrevivendo também à base de
remédios. Paula e Maurício separaram-se. Maurício sofre da síndrome do pânico, manifestando
manias de perseguição. Tenta refazer sua vida trabalhando em uma lanchonete. Paula está
desempregada e voltou a morar com a mãe, juntamente com suas duas filhas. Saulo toca bateria
em bares. Mara faz bijuterias. O filho do casal, Rodrigo, à época da prisão dos pais, passou a
comer com as mãos ao saber que não havia talhares na prisão onde os dois ficaram detidos.
Atualmente, Rodrigo não assiste mais a qualquer reportagem sobre abusos sexuais.
Os acusados ajuizaram uma série de ações de indenização com pedido de danos morais e
materiais contra o Estado de São Paulo, contra as mães que iniciaram as acusações e contra
todos os jornais que fizeram a cobertura do caso. O Estado de São Paulo foi condenado ao
pagamento de R$ 250.000,00. Os jornais “O Estado de São Paulo”, “Folha de São Paulo” e a
Revista “Isto é” também já foram condenados. Recentemente, no dia 15 de setembro, a Rede 12
Globo foi condenada, por unanimidade, pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça
de São Paulo, a pagar R$ 1,35 milhão para reparar os danos morais sofridos pelos donos e pelo
motorista da Escola Base, sob a fundamentação de que a atuação da imprensa deve pautar-se
pelo cuidado na divulgação ou veiculação de fatos ofensivos à dignidade e aos direitos de
cidadania”.
O CASO LINDENBERG/ELOÁ
2
Disponível em
<https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxjb25leGFvYWNhZGVtaWNhfGd4OjVi
NDcwMGRjOTUzMzhlMjA> Acesso em 07/03/2021.
A mídia televisiva arquitetou uma superprodução hollywoodiana para a cobertura do
julgamento, com destaque para as emissoras Rede TV!, Record e Globo, que produziram imagens
televisionadas das saídas e chegadas de Lindemberg do presídio ao fórum; informações sobre o
sorteio dos jurados; chegadas e saídas dos advogados de acusação e defesa, da promotora de
justiça e da juíza; entrevistas com a advogada do réu, manifestantes e curiosos, familiares e
vítimas sobreviventes; informações sobre a tentativa de ataque dos manifestantes à advogada do
acusado; plantões informativos ao longo dos dias de julgamento; resumo dos atos processuais
diários ocorridos; reprodução de trechos dos depoimentos das vítimas, testemunhas,
interrogatório do réu e do debate das partes; transmissão da leitura da sentença; coletiva de
imprensa com a mãe de Eloá, a promotora de justiça e a juíza-presidente do Júri.
Por todas as ponderações explicitadas, afirmamos que existiram influências midiáticas
negativas, de ordem jurídica-social, tanto nos dias do cometimento dos delitos quanto nas datas
da sessão no Júri, que evidenciaram o abuso da liberdade de imprensa, o agravamento do
contexto criminal, o desrespeito aos direitos de preservação da imagem do acusado e de sua
integridade física, a violação ao princípio constitucional da “não culpabilidade” antes da sentença
definitiva, a manipulação da opinião pública feita pela mídia”.
Há posições divergente a respeito da transmissão dos julgamentos dos tribunais. Para uns,
ela efetiva o princípio da transparência, e assim, permite à sociedade conhecer as decisões que
irão afetá-la. Para outros, expõe os julgadores, estimula vaidades, origina votos longos e os induz
a julgar da forma como pensa a maioria3.
Nas palavras de Felipe de Melo Fonte4:
A TV Justiça permite que qualquer cidadão que possua acesso à internet ou TV a cabo
acompanhe, em tempo real, o desenrolar dos trabalhos da Corte. Confere a tais indivíduos a
prerrogativa de assistir a cada um dos argumentos apresentados nas sustentações orais, ao
relatório e aos votos proferidos pelos ministros, tornando-os imediatamente responsivos a
qualquer julgamento, especialmente aqueles dotados de maior relevância (como a Ação Penal n°
470 ou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 132, por exemplo).
3
Disponível em <conjur.com.br/2018-abr-22/segunda-leitura-polemica-transmissao-vivo-julgamentos-tribunais>
Acesso em 07/03/2021.
4
Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/pesquisa-decisoes-colegiadas-stf.pdf> Acesso em 07/03/1992.
Além disso, o voto individual perde a característica exclusiva de instrumento de
convencimento voltado aos pares. Ele passa a ter, agregado a si, um objetivo mais amplo, que é o
de convencer o grande público de que as razões apresentadas pelo julgador são as mais
apropriadas ao caso concreto, ou às vezes até mesmo corrigir equívocos decorrentes da
divulgação de informações inexatas pela mídia.
É inequívoco que a TV Justiça mudou profundamente a visão como a Corte enxerga a
própria missão institucional, o que vem se refletindo nas tendências verificadas. Com efeito, se
antes era um órgão eminentemente técnico, cuja atividade voltava-se precipuamente à
comunidade jurídica, os atuais Ministros não hesitam em reconhecer o próprio papel político
exercido pelo Supremo Tribunal Federal. Os votos, antes direcionados ao convencimento dos
pares, são cada vez mais formatados à compreensão do grande público. Com o incremento da
interação entre os destinatários da atividade jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal, é
provável que a discussão sobre a denominada legitimidade da jurisdição constitucional seja
requalificada à luz dos impactos da TV Justiça”.
CULPABILIDADE E REPROVABILIDADE
Antes de ler esse tópico, sugiro que assistam ao documentário Casa dos Mortos,
disponível no Youtube https://www.youtube.com/watch?v=noZXWFxdtNI&t=253s.
16
Para aqueles que se interessarem pelo tema, também indico a leitura do livro “Holocausto
Brasileiro”, da autora Daniela Arbex.
Salo de Carvalo, no livro Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro,
trabalha com excelência o tema a ser estudado nesse tópico, motivo pelo qual colacionamos
trechos do livro:
“O art. 26, caput, do Código Penal, define a inimputabilidade psíquica, estabelecendo
que é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, interiramente incapaz de entender o caráter
ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (CARVALHO, 2020, p. 549)
Em relação aos portadores de sofrimento psíquico, embora o processamento do caso
ocorra no juízo criminal, reconhecida a inimputabilidade, o Código de Processo Penal determina
que o réu seja absolvido. Trata-se, na linguagem técnica da dogmática processual penal, de uma
absolvição sui generis (absolvição imprópria), pois, apesar de afirmada a inexistência do crime, o
autor do fato é submetido coercivamente à medida de segurança, situação que demarca sua
sujeição às agências estatais responsáveis pela execução da decisão judicial (agência
manicomial). (CARVALHO, 2020, p. 550-551)
Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, “o Estado pretende cumprir a tarefa de proteger
a comunidade e o cidadão contra fatos puníveis utilizando instrumentos legais alternativos: a)
penas criminais, fundadas na culpabilidade do autor; b) medidas de segurança, fundadas na
periculosidade do autor (...). Ao contrário da natureza retributiva das penas criminais, fundadas na
culpabilidade do fato passado, as medidas de segurança, concebidas como instrumento de
proteção social e de terapia individual - ou como medidas de natureza preventiva e assistencial,
segundo a interpretação paralela do Legislador -, são fundadas na periculosidade de autores
inimputáveis de fatos definidos como crimes, com o objetivo de prevenir a prática de fatos
puníveis futuros. (CARVALHO, 2020, p. 551)
Para os sistemas tradicionais das ciências criminais (teoria do direito penal e teoria
criminológica), a noção de sujeito (responsável) decorre da constatação de sua capacidade de
compreensão e de escolha: conhecimento da ilegalidade da conduta e dos seus efeitos; opção
livre e consciente pelo ilícito. A condição de sujeito cognoscente com liberdade de ação possibilita
ao direito penal atribuir culpabilidade ao autor do fato, habilitando os mecanismos executivos de
imposição da pena. (CARVALHO, 2020, p. 551)
(...)
O tipo ideal (ou o estereótipo teórico) que contrapõe a capacidade de culpa (culpabilidade)
é a condição ou potência de perigo (periculosidade). O sujeito perigoso, ou dotado de 17
periculosidade, seria aquele que, diferentemente do culpável, não possui condições mínimas de
discernir a situação em que está envolvido, sendo impossível avaliar a ilicitude de seu ato e,
consequentemente, atuar conforme as expectativas do direito (agir de acordo com a lei). Em razão
da ausência de condições cognitivas (déficits cognitivos) para direcionar sua vontade, a aplicação
de uma pena com caráter marcantemente retributivo passa a ser inadequada, notadamente no
esquema da culpabilidade pela reprovabilidade, em que se postula uma adequação da pena ao
grau de reprovação do ato voluntário praticado pelo sujeito. Neste cenário de ausência de
responsabilidade penal, a pena é substituída pela medida (de segurança) e a finalidade retributiva
da sanção é substituída pela orientação de tratamento do paciente. (CARVALHO, 2020, p. 552)
(...)
O reconhecimento do estado de periculosidade (fundamento da aplicação da medida de
segurança) produz significativos efeitos sancionatórios. Em razão de a periculosidade ser
entendida como um estado ou um atributo natural do sujeito - o indivíduo carrega consigo uma
potência delitiva que a qualquer momento pode se concretizar em um ato lesivo contra si ou
contra terceiros -, a resposta estatal não pode ser determinada ex ante. Se a pena é fixada por
meio de um extenso procedimento judicial (art. 59 do Código Penal) e a sua execução é
expressamente limitada no tempo (art. 75, Código Penal), a finalidade curativa do tratamento
realizado no cumprimento da medida impede estabelecer prazos de duração. (CARVALHO, 2020,
p. 553)
Segundo os fundamentos normativos que informam a aplicação e a execução das medidas
de segurança, é absolutamente lógico e coerente esta impossibilidade de definir o tempo da
resposta jurídica ao ato previsto como delito praticado pelo inimputável. Se o inimputável é
portador de uma doença (diagnóstico médico), a duração do tratamento será estabelecida
conforme a resposta positiva ou negativa que o paciente apresentará durante o procedimento
curativo. Sendo a medida de intervenção adequada e a resposta do paciente positiva, o resultado
é a diminuição ou controle do impulso delitivo com o consequente diagnóstico de cessação da
periculosidade. Do contrário, se inadequada a medida ou negativa a resposta, mantém-se o
estado perigoso (prognóstico de delinquência futura), sendo necessário o prolongamento da
internação compulsória. Não por outro motivo, o Código Penal brasileiro determina que “a
internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, pendurando enquanto não
foi averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá
ser de 1 (um) a 3 (três) anos” (art. 97, § 1º, do Código Penal). (CARVALHO, 2020, p. 553)
A indefinição do limite máximo da medida de segurança - situação que legitima, na
realidade do sistema manicomial brasileiro, a possibilidade de perpetuidade de sanção - não inibe,
porém, a determinação de um prazo mínimo. A previsão legal deste limite para a execução da 18
medida de segurança demonstra, em realidade, a inserção (subliminar) de uma tarifa retributiva de
sanção aos inimputáveis pelo cometimento do ilícito, visto que mesmo ocorrendo a cessação de
periculosidade antes deste prazo, fato que tornaria sem sentido a manutenção da medida em sua
finalidade terapêutica, o paciente deve necessariamente permanecer submetido ao controle penal.
(CARVALHO, 2020, p. 553)
O caráter punitivo das medidas de segurança é uma das principais denúncias realizadas
pela criminologia crítica e pela crítica do direito penal a partir da década de 70 do século passado.
A exposição da incapacidade de as instituições totais (prisões e manicômios) realizarem
minimamente as finalidades expostas em sua programação oficial (ressocializar o imputável e
reduzir a periculosidade dos inimputáveis) deflagrou um amplo processo de desconstrução dos
mitos fundantes do sistema punitivo. Dentre estes mistos, a ausência da perspectiva punitiva 20
(retributiva) das medidas de segurança. (CARVALHO, 2020, p. 558-559)
No caso específico das medidas de segurança, Cirino dos Santos demonstra que a crise
decorre da inconsistência dos métodos científicos de prever o comportamento futuro
(periculosidade: prognósticos de delinquência futura) e da incapacidade da medida de transformar
condutas antissociais em condutas ajustadas. (CARVALHO, 2020, p. 559)
A Lei n. 10.216/2001 inegavelmente muda o estatuto jurídico e a lógica do tratamento dos
portadores de sofrimento psíquico no Brasil. A Lei da Reforma Psiquiátrica não apenas determina
como diretriz central que sejam realizadas políticas públicas de desinstitucionalização, como fixa
como premissa o respeito à autonomia dos usuários do sistema de saúde mental. Assim, devem
atuar como protagonistas na definição de sua terapêutica. (CARVALHO, 2020, p. 559)
A Reforma Psiquiátrica abre importantes caminhos de superação da lógica que orienta a
aplicação e a execução das medidas de segurança, como posteriormente será trabalhado. No
momento, porém, importa construir as bases de uma nova perspectiva a partir do reconhecimento
de que a de segurança “(...) não se distingue da pena: ela também representa perda de bens
jurídicos e pode ser, inclusive, mais aflitiva do que a pena, por ser imposta por tempo
indeterminado. Toda medida coercitiva imposta pelo Estado, em função do delito e em nome do
sistema de controle social, é pena, seja qual for o nome ou a etiqueta com que se apresenta”. Nas
palavras de Paulo Queiroz: “a distinção entre pena e medida de segurança é puramente formal;
materialmente, a medida de segurança pode ser mais lesiva à liberdade, inclusive”. (CARVALHO,
2020, p. 560)
O art. 97, caput, do Código Penal, estabelece que, se o agente for inimputável, o juiz
aplicará a internação, mas se “o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá
submetê-lo a tratamento ambulatorial”. Em princípio, a diretriz do Código é a da preponderância
da internação, pois não há vedação de sua aplicação aos autores de fatos puníveis com detenção.
Todavia, a orientação doutrinária e jurisprudencial é no sentido de fragmentar o sistema das
medidas de segurança, restringindo a internação aos casos de reclusão e o tratamento
ambulatorial aos de detenção. (CARVALHO, 2020, p. 561)
Nesta linha, notadamente quando há indicação médica, o Supremo Tribunal federal decidiu
que “em casos excepcionais, admite-se a substituição da internação por medida de tratamento
ambulatorial quando a pena estabelecida para o tipo é a reclusão, notadamente quando manifesta
a desnecessidade da internação”. (CARVALHO, 2020, p. 562)
Parece estar consolidada na doutrina e na jurisprudência a restrição das medidas de
segurança conforme a determinação do art. 75 do Código Penal, ou seja, impossibilitando que
ultrapasse o limite temporal determinado. O próprio Supremo Tribunal Federal, em algumas
decisões paradigmáticas, confirmou este entendimento, determinando o limite máximo das 21
medidas de segurança em 30 (trinta) anos, decisões anteriores à reforma de 2019, que aumentou
o prazo de cumprimento de pena (Lei n. 13.964/19. (CARVALHO, 2020, p. 563)
A doutrina, porém, conforme refere Bitencourt, havia defendido a tese no sentido de
adequar o limite da medida de segurança àquele correspondente ao máximo de pena
abstratamente cominado no tipo penal imputado. Após uma série de decisões neste sentido, o
Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula 527: “o tempo de duração da medida de segurança
não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado”. O
entendimento procura diminuir o nível de proporcionalidade entre o tempo de internação e o
efetivo dano causado pela conduta do portador de sofrimento psíquico - pense-se, p. ex., nos
casos, nem um pouco isolados ou excepcionais, de pessoas submetidas a longos períodos de
internação em manicômios judiciários por danos de pouca expressividade ou insignificantes
(pequenos furtos, ameaças, lesões corporais leves). (CARVALHO, 2020, p. 564)
Para que sejam evitadas situações de evidente ruptura com os princípios constitucionais
da igualdade de tratamento e da proporcionalidade da sanção em relação ao fato e ao resultado
produzido - ou seja, para que se possa “estabelecer maior grau de aproximação isonômica
possível entre a punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos” -, Amilton Bueno de
Carvalho conclui que a conformação constitucional do procedimento de aplicação da medida de
segurança ocorreria com a adequação do seu limite máximo à pena que seria aplicável no caso
concreto. Neste sentido, o julgador, na sentença (absolvição imprópria), realizaria a dosimetria de
análise aquelas relativas à culpabilidade, pois se trata de inimputável -, estabelecendo o horizonte
sancionatório máximo. O procedimento é absolutamente adequado, inclusive para fins de
orientação dos prazos prescricionais e definição dos direitos inerentes à execução das medidas
de segurança. (CARVALHO, 2020, p. 565)
Em relação à questão dos limites das medidas, os critérios temporais, importa, ainda,
analisar o sentido e os critérios de determinação do tempo mínimo da medida de segurança.
(CARVALHO, 2020, p. 565)
O Código estabelece que o julgador, na sentença, defina o prazo mínimo da medida de
segurança, que não poderá ser inferior a 1 (um) ou superior a 3 (três) anos. A questão, porém,
merece uma análise mais detalhada, notadamente no que diz respeito à justificativa de existência
de um prazo mínimo. Isto porque, se o fundamento da medida de segurança é a periculosidade e
o objetivo do tratamento é a sua cessação, parece ser contraditória a determinação legal.
Imaginem-se os casos em que o sujeito, ao longo de um processo criminal que pode durar anos,
submeteu-se a tratamento psiquiátrico e psicológico, e no momento da sentença, está em plenas
condições de convívio social, não apresentando risco de reincidência maior do que aquele
inerente a todas as pessoas. Situação similar seria a dos casos em que o sujeito inicia o 22
cumprimento da medida e é constatado a cessação da periculosidade antes do período mínimo.
(CARVALHO, 2020, p. 565-566)
Nestes casos, Paulo Queiroz sustenta que “a medida de segurança perde a sua razão de
ser, parecendo que o constrangimento deva cessar prontamente a sua razão de ser, parecendo
que o constrangimento deva cessar prontamente, em homenagem aos princípios da humanidade
e proporcionalidade, especialmente”. O raciocínio exposto pelo autor é preciso e adequado aos
comandos constitucionais. No entanto, permanece a indagação sobre o sentido desta tarefa
mínima. (CARVALHO, 2020, p. 566)
A solução mais adequada, portanto, parece ser a não definição do tempo mínimo, inclusive
porque inexistem critérios adequados, na doutrina e na jurisprudência, que orientem esta
quantificação. Reale Jr. lembra, inclusive, que a própria Lei de Execução Penal prevê a
possibilidade de o exame de cessação de periculosidade ocorrer antes do prazo mínimo de 1 (um)
ano. (CARVALHO, 2020, p. 566)
LÓGICA MANICOMIAL E OBSTACULIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS
PORTADORES DE SOFRIMENTO PSÍQUICO EM CONFLITO COM A LEI
24
uma conduta ilícita no futuro. Já por isso, tal ideia se mostra incompatível com a precisão que o
princípio da legalidade, constitucionalmente expresso, exige de qualquer conceito normativo,
especialmente em matéria penal. A ‘periculosidade’ do imputável é uma presunção, que não
passa de uma ficção, baseada no preconceito que identifica o ‘louco’ - ou quem quer que apareça
como ‘diferente’ - como perigoso.” (CARVALHO, 2020, p. 573-574)
MANICÔMIOS 26
Conforme já exposto, os manicômios fazem parte das instituições classificadas como
instituições totais.
O Relatório de inspeção nacional dos hospitais psiquiátricos traz um breve histórico da
instituição no Brasil5:
“A lógica da exclusão em instituições psiquiátricas e da privação de liberdade de pessoas
consideradas doentes mentais inicia ascensão no Brasil, na primeira metade do século XIX, com a
construção, em 1842, do primeiro hospital psiquiátrico na cidade do Rio de Janeiro o Hospício
Pedro II. A história nos revela que, por aproximadamente 180 anos, a política de saúde mental no
País esteve centrada na lógica da segregação de pessoas em hospitais psiquiátricos.
É no século XX, contudo, que a internação psiquiátrica ganha contornos institucionais que
a tornam protagonista nas ações de Estado. O Código Civil de 1916 chancela essa ótica ao
sacralizar o indivíduo louco como incapaz. De modo específico, o decreto n. 24.559, de 3 de julho
de 193412, anuncia os novos enquadramentos no processo de classificação das doenças e os
novos estabelecimentos psiquiátricos. No que tange aos segmentos populacionais enquadrados
5
Disponível em <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf>
em razão do uso de drogas ou da prática delitual, normativos paralelos ampliavam o acervo legal
nacional no sentido da manicomialização.
Em 1978, nasce o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental, organizado para
vocalizar as denúncias de violência institucional há tempos localizada nos hospitais psiquiátricos,
bem como canalizar reivindicações pertinentes à superação do modelo asilar. Durante o II
Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental em 1987, nasce o Movimento da Luta
Antimanicomial, constituído por trabalhadores, usuários dos serviços de saúde mental e seus
familiares, apoiado por militantes do movimento pela reforma sanitária no país:
É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a
protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da
mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir
coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na
assistência às pessoas com transtornos mentais.
Com o lema “Por uma Sociedade sem Manicômios”, esse movimento impulsionou um novo
olhar sobre a loucura e problematizou o lugar social do manicômio, que extrapola os limites de sua
estrutura física e organização institucional, trazendo à tona questionamentos sobre os saberes
que legitimam sua existência e suas práticas.
Em 1988, pela primeira vez, a Constituição Federal instigou à realização de 27
questionamentos sobre a regra do tratamento asilar. Abriram-se alas para a promulgação das leis
que repercutiram na reforma psiquiátrica.
Se, até a constitucionalização do direito à saúde e as reformas decorrentes (sanitária e
psiquiátrica), os hospitais psiquiátricos centralizavam um modelo hegemônico de tratamento, isso
se devia ao fato de a lógica de exclusão se valer — ou ser consequência — da internação
psiquiátrica. Os vários dispositivos criados para substituição da lógica hospitalocêntrica ao
longo dos últimos trinta anos no contexto do SUS compõem, atualmente, a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS). Conforme a portaria GM/MS n. 4.279, de 30 de dezembro de
201022, a RAPS constitui uma das cinco redes temáticas de atenção à saúde estratégicas para a
organização do SUS, sendo a atenção psicossocial considerada uma das dimensões essenciais
para a garantia do cuidado integral em cada região de saúde.
As diretrizes e os componentes da RAPS, instituídos em 2011, foram estruturados com a
finalidade favorecer a articulação, a diversificação e ampliação de ações e serviços destinados às
pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais, incluindo àquelas com necessidades
decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Para o alcance do cuidado integral na perspectiva
de produção de saúde como exercício de cidadania, preconiza-se o cuidado em liberdade, a
intersetorialidade e a oferta de serviços de saúde organizados em sete componentes
estratégicos: atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, atenção de urgência
e emergência, atenção residencial de caráter transitório, atenção hospitalar, estratégias de
desinstitucionalização e reabilitação psicossocial.
Essa mudança no modo de encarar o cuidado às pessoas com sofrimento ou transtorno
mental se revela nas políticas públicas. No ano de 1998, por exemplo, o Brasil contava com
apenas 14827 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Atualmente, há aproximadamente 2.549
unidades, nas suas diferentes modalidades. Para além dos CAPS, serviços estratégicos da
atenção psicossocial, a RAPS conta com 1.328 leitos de saúde mental em hospitais gerais,
sessenta Unidades de Acolhimento e 583 Residências Terapêuticas habilitadas junto ao Ministério
da Saúde”.
Em 2004, uma inspeção nacional realizada nos hospitais psiquiátricos brasileiros pela
Comissão Nacional de Direitos Humanos encontrou condições subumanas em vinte e oito
unidades. Constataram que ainda prevalecem métodos que reproduzem a exclusão, tais como
celas fortes, instrumentos de contenção, muitos cadeados, registros de mortes por suicídio,
afogamento, agressão ou a constatação de que, para muitos óbitos, simplesmente não houve
interesse em definir as causas.
Frasseto afirma que: “Guiada pelo princípio da desinstitucionalização da loucura, a Lei da
reforma Psiquiátrica previa o reordenamento da rede de atenção à saúde mental, e a sua 28
consequente ênfase nos equipamentos de atendimento aberto, regionalizado e suas articulações
com outros setores que pudessem garantir o cuidado e a inserção social em detrimento das
lógicas cronificantes e hospitalocêntricas. (...) Esses importantes referenciais e as transformações
que promoveram nos diplomas legais e nas políticas públicas, todavia, não tem sido suficiente
para construir e consolidar um novo lugar social da loucura e das formas de lidar com ela.
Arraigados na cultura secular da associação periculosidade-loucura-manicômio, velhas práticas e
velhos discursos – por vezes, sob nova roupagem – resistem e revivem. Poco descontinuadas
foram, por exemplo, as relações entre a Psiquiatria e Direito, sistema de saúde mental e sistema
de justiça. Persistem, hoje, a despeito do ideário reformista, práticas de judicialização
equivocadas, postas a serviço da criminalização da loucura ou da patologização do crime, nas
quais discursos e autoridades prestam colaboração para legitimar estratégias de segregação,
aprisionamento ou tratamento forçado.” (FRASSETO, 2014, p. 230/231).
Segundo a Lei 10.216/01 (Lei da reforma psiquiátrica), a internação de pessoas com
transtornos mentais pode se dar de três formas:
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo
médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação
psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do
usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Frasseto defende que a única possibilidade de internação compulsória é a prevista nos
casos de aplicação de medida de segurança. Contudo, é prática diária encontrar decisões judiciais
que determinam a internação civil de pessoas, notadamente de usuários problemáticos de álcool e
outras drogas. Conforme já exposto neste e-book, há doutrina que sustenta que o art. 96, CP, foi
superado com o advento da lei 10.216 (Lei Paulo Delgado – Reforma Psiquiátrica), de modo que
não pode ser determinada a internação com fundamento na prática criminosa. Nesse sentido, a
aplicação das medidas de segurança deve ser reformulada, comprometendo-se com a função de
tratamento em saúde mental, com respeito aos princípios da Reforma Psiquiátrica.
A internação só pode ocorrer de forma excepcional e com base em laudo médico
circunstanciado. Isso significa que ela não pode ser determinada apenas com o juízo de
necessidade realizado pelo juiz, deve haver indicação médica. 29
Outrossim, a internação obedece a lógica de cuidado na crise (em palavras simples, a
pessoa só pode ser internada quando estiver em surto e por curto período, ou seja, enquanto
estiver em surto). Não se trata, portanto, de segregação de sujeitos considerados indesejáveis à
convivência social.
Nesse sentido, o Manual de Atuação Estratégica para Implementação da Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo6:
“Por destinarem-se apenas à estabilização do paciente, as internações psiquiátricas não
devem se estender no tempo e nem se confundir com o tratamento cotidiano do paciente. Por este
motivo, defende-se que, a despeito de a lei admitir que internações psiquiátricas sejam feitas em
hospitais gerais ou em hospitais psiquiátricos (nunca em comunidades terapêuticas ou
“clínicas”12), é mais adequado que elas se deem em hospitais gerais. Com isso, evita-se o risco
de que o paciente seja mantido internado por mais tempo que o necessário, dada a potencial
confusão entre internação e tratamento cotidiano que frequentemente ocorre em hospitais
psiquiátricos. Além disso, em hospitais gerais fica garantida a retaguarda necessária para
tratamento de eventuais comorbidades decorrentes do quadro psiquiátrico do paciente.
6
Disponível em < https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/repositorio/0/Manual07.10.pdf >
Nesse ponto, cabe indicar que o NEDIPED é contrário, em qualquer caso, à ocorrência de
internações em hospitais psiquiátricos, por considerá-los um equipamento em desacordo com a
Reforma Psiquiátrica, com práticas de confinamento e restrição de visitas injustificadas quando da
admissão do paciente, com proibição da presença de um acompanhante, direito assegurado a
toda pessoa com deficiência internada (LBI, artigo 22),além de serem inadequados para o
tratamento das múltiplas comorbidades comuns à situação de emergência. Assim, eventuais
internações, além de breves, devem ocorrer somente em leito psiquiátrico de saúde mental nos
serviços de base comunitária, disponíveis em Hospitais Gerais, Maternidades, Hospitais de
Pediatria ou Centros de Atenção Psicossocial.”
Analisando por essa lógica, a medida de segurança que determine a internação deve
ocorrer apenas com base em laudo médico circunstanciado.
O termo manicômio pode englobar tanto os hospitais de internação psiquiátrica, como os
hospitais de custódia.
Conforme é possível verificar no documentário “casa dos mortos”, os hospitais de
custódia/manicômios judiciais frequentemente são lugares onde ocorrem mais violações de direito
do que nas prisões. Sendo assim, muitos defensores têm como linha de atuação nunca pedir a
instauração do incidente de insanidade, notadamente nos casos de crimes leves. Como dito
acima, as medidas de segurança tiram dos apenados um rol de direitos processuais e da 30
execução, tal como a progressão de regime.
Em relação aos casos de violação de direitos ocorridos em locais de internação
psiquiátrica – ainda que se trate de internação não decorrente da prática de crimes -, é importante
citar o caso Damião Ximenes Lopes.
Conforme relato constante do site do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos da
Faculdade Nacional de Direito da UFRJ7:
“No dia primeiro de outubro de 2004, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) uma demanda contra
a República Federativa do Brasil pela violação do direito à vida, integridade pessoal, garantias
judiciais e proteção judicial.
O caso era referente ao senhor Damião Ximenes Lopes, pessoa com deficiência mental,
que havia sido exposto a condições desumanas e degradantes em sua hospitalização na Casa de
Repouso Guararapes (CE) e, o seu posterior, assassinato nesse estabelecimento.
7
MERLI, Isadora Marques; RIANELLI, Luiza Lima. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil (2006): O assassinato de
um deficiente e o modelo hospitalocêntrico. Casoteca do NIDH – UFRJ. Disponível
em <https://nidh.com.br/damiao/>
O fato se deu após um período particularmente difícil em que Damião deixou de tomar
seus remédios por conta de náuseas constantes, fazendo seu apetite e sono desaparecerem,
causando extrema preocupação em sua mãe que não encontrou alternativas além de procurar os
serviços da Casa de Repouso Guararapes.
No início do mês de outubro, ao chegarem na clínica descobriram que não havia
médico para a consulta, com medo de levar seu filho no meio de uma crise para casa, D. Albertina
decidiu deixar o filho internado para esperar pelo exame médico, Damião ao ingressar não tinha
um comportamento agressivo ou lesões físicas.
Mesmo assim, em 3 de outubro, Ximenes supostamente apresentou uma crise nervosa,
por isso, teria sido contido fisicamente, amarrado com as mãos para trás do corpo. Dona
Albertina, mãe de Damião, presenciou a situação degradante do filho “sangrando pelo nariz, com
a cabeça toda inchada e com os olhos quase fechados, vindo a cair a meus pés, todo sujo e com
cheiro de urina”[3] e pediu sua ajuda logo antes de morrer.
No mesmo dia, o médico da Casa de Repouso prescreveu medicação à Damião e sem
examiná-lo, abandonou o hospital, que acabou ficando sem cobertura médica. Duas horas depois,
Damião faleceu.
Apesar das marcas claras de tortura, incluindo equimoses localizadas no olho
esquerdo, ombro homolateral e punho, no hospital, a necropsia concluiu “morte natural”. A família 31
não concordou com tal laudo e acredita em uma omissão, uma vez que além de Damião, outras
pessoas foram espancadas na Casa de Repouso de Guararapes.
Visto aos acontecimentos, Irene acionou todas as entidades e organizações públicas de
que teve acesso, referentes à defesa dos direitos humanos que receberam uma carta de Irene
denunciando o caso e a Casa de Repouso de Guararapes. Por conta da mobilização familiar,
sindicâncias e auditorias foram realizadas. Como resultado, a Assembleia Legislativa do Ceará
interviu e descredenciou a clínica. Ademais, processos quanto à responsabilidade penal e
administrativa foram instituídos, mas não obtiveram solução prática até a data da denúncia à
CIDH [5].
A Corte IDH estabeleceu como deveres do Estado em relação às partes lesadas, ou seja,
como reparação: (a) garantir a celeridade da justiça para investigar e sancionar os responsáveis
pela tortura e morte de Damião; (b) pagar indenização como medida de reparação à família de
Damião e; (c) publicar a sentença no Diário Oficial ou em jornal de circulação nacional.
Em relação à garantia de não repetição, foi estabelecido o dever de o Estado brasileiro
continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de
psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas
vinculadas ao atendimento de saúde mental”.
Por fim, para encerrar este tópico, colaciono parte do prefácio do livro Holocausto
Brasileiro, que narra a história do Colônia, manicômio onde morreram milhares de pessoas em
razão de violações de direitos humanos:
“Cerca de 70% não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epiléticos, alcoolistas,
homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém
com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas
para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a
virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus
documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças. Homens,
mulheres e crianças, às vezes, comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim,
eram espancados e violados. Nas noites geladas da serra da Mantiqueira, eram atirados ao
relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto,
alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de sobreviver. Alguns não
alcançavam as manhãs.
Os pacientes do Colônia morriam de frio, de fome, de doença. Morriam também de
choque. Em alguns dias, os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a
rede do município. Nos períodos de maior lotação, dezesseis pessoas morriam a cada dia.
Morriam de tudo — e também de invisibilidade. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 32
corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para dezessete faculdades de medicina do
país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado
encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio do Colônia, na frente dos pacientes,
para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.
Neste livro, Daniela Arbex salvou do esquecimento um capítulo da história do Brasil.
Agora, é preciso lembrar. Porque a história não pode ser esquecida. Porque o holocausto ainda
não acabou”. (ARBEX, 2013, p. 13/16)
PRISÕES
O principal autor a ser lembrando nesse tema é Michel Foucault, que trabalhou
atentamente a questão do surgimento das prisões em seu livro Vigiar e Punir. Erving Goffman
também tratou do tema em seu livro Prisões e Manicômios.
O Direito Penal, até o século XVIII, era marcado por penas cruéis e desumanas, não
havendo até então a privação de liberdade como forma de pena, mas sim como custódia -
garantia de que o acusado não iria fugir - e para a produção de provas por meio da tortura (forma
legítima, até então), o acusado então aguardaria o julgamento e a pena subsequente, privado de
sua liberdade, em cárcere. “O encarceramento era um meio, não era o fim da punição.
O livro vigiar e punir narra como se dava a aplicação das penas antes da prisão. O livro se
inicia com a célebre narrativa do suplício de Damiens: “fora condenado a pedir perdão
publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris levado e acompanhado numa carroça,
nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; em seguida, na dita carroça,
na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazando nos mamilos, braços,
coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio,
queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo
derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu
corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao
fogo, reduzidos a cinzas e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente, foi esquartejado. Essa
última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam efeitos à tração, de
movo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário,
para desmembrar as coxas do infeliz, cotar-lhe os nervos e retalhar lhe as juntas” (FOUCAULT,
2014, p. 9)
Segundo Foucault: “Com o tempo, o suplício foi se extinguindo e a punição passou a ser
apenas um novo ato do procedimento. A punição se tornou a parte mais velada do processo 33
penal, a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável
teatro. Por essa razão, a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está
ligada a seu exercício. O fato de ela matar ou ferir não é mais a glorificação de sua força, mas um
elemento intrínseco a ela, que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor”.
(FOUCAULT, 2014, p. 14/15)
Foi apenas no século XVIII que a pena privativa de liberdade passou a fazer parte do rol de
punições do Direito Penal, com o gradual banimento das penas cruéis e desumanas, a pena de
prisão passou a exercer um papel de punição de fato. O movimento iluminista tem influência
marcante nas ideias de superação do suplício, pois trouxe, em contraposição ao antigo regime, o
princípio da humanização das penas.
Contudo, Foucault entende que a mudança vem junto com as mudanças políticas da
época. Com a queda do antigo regime e a ascensão da burguesia a punição deixa de ser um
espetáculo público, já que assim incentiva-se a violência, e é agora uma punição fechada, que
segue regras rígidas, portanto muda-se o meio de se fazer sofrer, deixa de punir o corpo do
condenado e passa-se a punir a sua “alma”8.
8
https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/7334/
A seguir, breve histórico da prisão realizada por Foucault no livro Vigiar e Punir:
“A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos
códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu
fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para
repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de
tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-
los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação,
registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza. A forma geral
de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis, através de um trabalho preciso
sobre seu corpo, criou a instituição-prisão, antes que a lei a definisse como a pena por excelência.
No fim do século XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de
detenção, é verdade; e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da penalidade a mecanismos
de coerção já elaborados em outros lugares. Os “modelos” da detenção penal — Gand,
Gloucester, Walnut Street — marcam os primeiros pontos visíveis dessa transição, mais que
inovações ou pontos de partida. A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca
certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à “humanidade”. Mas
também um momento importante na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder
de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária. Na 34
passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral
da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada
um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela
introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que
se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende “autônomo”, mas que é investido pelas
assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das
sociedades civilizadas”1 .
Pode-se compreender o caráter de obviedade que a prisão-castigo muito cedo assumiu.
Desde os primeiros anos do século XIX, ter-se-á ainda consciência de sua novidade; e entretanto
ela surgiu tão ligada, e em profundidade, com o próprio funcionamento da sociedade, que relegou
ao esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam
imaginado. Pareceu sem alternativa, e levada pelo próprio movimento da história:
Não foi o acaso, não foi o capricho do legislador que fizeram do encarceramento a base e
o edifício quase inteiro de nossa escala penal atual: foi o progresso das ideias e a educação dos
costumes.2
E se, em pouco mais de um século, o clima de obviedade se transformou, não
desapareceu. Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando
não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que
não se pode abrir mão.
Essa “obviedade” da prisão, de que nos destacamos tão mal, se fundamenta em primeiro
lugar na forma simples da “privação de liberdade”. Como não seria a prisão a pena por excelência
numa sociedade em que a liberdade é um bem que pertence a todos da mesma maneira e ao qual
cada um está ligado por um sentimento “universal e constante”?3 Sua perda tem portanto o
mesmo preço para todos; melhor que a multa, ela é o castigo “igualitário”. Clareza de certo modo
jurídica da prisão. Além disso ela permite quantificar exatamente a pena segundo a variável do
tempo. Há uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades industriais, sua “obviedade”
econômica. E permite que ela pareça como uma reparação. Retirando tempo do condenado, a
prisão parece traduzir concretamente a ideia de que a infração lesou, mais além da vítima, a
sociedade inteira. Obviedade econômico-moral de uma penalidade que contabiliza os castigos em
dias, em meses, em anos e estabelece equivalências quantitativas delitos-duração. Daí a
expressão tão freqüente, e que está tão de acordo com o funcionamento das punições, se bem
que contrária à teoria estrita do direito penal, de que a pessoa está na prisão para “pagar sua
dívida”. A prisão é “natural” como é “natural” na nossa sociedade o uso do tempo para medir as
trocas.4
Mas a obviedade da prisão se fundamenta também em seu papel, suposto ou exigido, de 35
aparelho para transformar os indivíduos. Como não seria a prisão imediatamente aceita, pois se
só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil, é reproduzir, podendo sempre
acentuá-los um pouco, todos os mecanismos que encontramos no corpo social? A prisão: um
quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao
fundo, nada de qualitativamente diferente. Esse duplo fundamento — jurídico-econômico por um
lado, técnico-disciplinar por outro — fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais
civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma
coisa, com efeito, é clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado
em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma “detenção legal”
encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos
que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento
penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a
transformação técnica dos indivíduos”. (FOUCAULT, 2014, p. 223/225)
A respeito das ideias de que as prisões só não são locais adequados, pois precisam de
reformas, Foucault afirma que: “Devemos lembrar também que o movimento para reformar as
prisões, para controlar seu funcionamento, não é um fenômeno tardio. Não parece sequer ter
nascido de um atestado de fracasso devidamente lavrado. A “reforma” da prisão é mais ou
menos contemporânea da própria prisão. Ela é como que seu programa. A prisão se
encontrou, desde o início, engajada numa série de mecanismos de acompanhamento, que
aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte de seu próprio funcionamento, de
tal modo têm estado ligados a sua existência em todo o decorrer de sua história.” (FOUCAULT,
2014, p. 226)
Prisões e manicômios são classificados como “instituições totais”. Esse conceito é
detalhado por Foucault e por Goffman.
Segundo Foucault:
“Instituições completas e austeras”, dizia Baltard. A prisão deve ser um aparelho
disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do
indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento
cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou
o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é “onidisciplinar”. Além disso a prisão
é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua
tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante. Enfim, ela dá um
poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo:
disciplina despótica. Leva à mais forte intensidade todos os processos que encontramos nos
outros dispositivos de disciplina. Ela tem que ser a maquinaria mais potente para impor uma nova 36
forma ao indivíduo pervertido; seu modo de ação é a coação de uma educação total:
Na prisão o governo pode dispor da liberdade da pessoa e do tempo do
detento; a partir daí, concebe-se a potência da educação que, não em só um dia, mas
na sucessão dos dias e mesmo dos anos pode regular para o homem o tempo da
vigília e do sono, da atividade e do repouso, o número e a duração das refeições, a
qualidade e a ração dos alimentos, a natureza e o produto do trabalho, o tempo da
oração, o uso da palavra e, por assim dizer, até o do pensamento, aquela educação
que, nos simples e curtos trajetos do refeitório à oficina, da oficina à cela, regula os
movimentos do corpo e até nos momentos de repouso determina o horário, aquela
educação, em uma palavra, que se apodera do homem inteiro, de todas as faculdades
físicas e morais que estão nele e do tempo em que ele mesmo está.
Esse “reformatório” integral prescreve uma recodificação da existência bem diferente da
pura privação jurídica de liberdade e bem diferente também da simples mecânica de
representações com que sonhavam os reformadores na época da Ideologia.” (FOUCAULT, 2014,
p. 228)
A respeito das instituições totais, Goffman afirma que: “Urna disposição básica da
sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares,
com diferentes coparticipantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O
aspecto central das instituições totais pode ser descrito coro a ruptura das barreiras que
comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida
são realizados no mesmo local e sob urna única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da
atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo
relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e abrigadas a
fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são
rigorosamente estabelecidas em horários, pois urna atividade leva, em tempo predeterminado,
a seguinte, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais
explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas
num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da
instituição. (FOUCAULT, 2014, p. 17/18)
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