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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO DO ESTADO

TESE DE LÁUREA

A colisão de direitos fundamentais entre liberdade de imprensa,


honra, imagem e privacidade na publicação de notícias sobre
crimes: análise de situações práticas

Paulo Signoretti Domingues


Nº USP 2960120

Prof. Dr. Luís Virgílio Afonso da Silva


Orientador

2007
Agradeço ao Professor Virgílio
pela orientação neste trabalho.
Dedico-o à minha família.

2
ÍNDICE

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 4

1 – CONCEITOS PRELIMINARES ............................................................................................ 5


1.1 Comunicação Social e Mídia ....................................................................................... 5
1.2 Imprensa e informação jornalística .............................................................................. 6
1.3 Função social da imprensa e interesse público ............................................................ 8

2 – LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO ...................................... 11


2.1 Liberdade de expressão ou de manifestação do pensamento ..................................... 11
2.2 Liberdade de Comunicação Social ............................................................................ 12
2.3 Direito à Informação .................................................................................................. 13
2.4 Liberdade de imprensa ou de informação jornalística ............................................... 15
2.5 Função social e liberdade de imprensa ...................................................................... 16
2.6 Liberdade de imprensa e dever de diligência............................................................. 16
2.7 Liberdade de imprensa, direito à informação e verdade ............................................ 18

3 – HONRA, IMAGEM, PRIVACIDADE E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ................................... 20


3.1 Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade .............................................................. 20
3.2 Ofensa e violação da honra, imagem ou privacidade ................................................ 23
3.3 Presunção de inocência .............................................................................................. 24

4 – LINGUAGENS JORNALÍSTICA E JURÍDICA NO RELATO DE CRIMES ................................ 26


4.1 Motivação .................................................................................................................. 26
4.2 Regras ........................................................................................................................ 29

5 – LIBERDADE DE IMPRENSA X HONRA, IMAGEM E PRIVACIDADE .................................... 31


5.1 Caso Escola Base ....................................................................................................... 32
5.2 Assassinato de casal de idosos ................................................................................... 35
5.3 Mãe e filha ................................................................................................................. 40
5.4 Crime sexual .............................................................................................................. 45
5.5 O presidente, o banqueiro e a lista ............................................................................. 49

6. CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 53

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................... 57

3
INTRODUÇÃO

A colisão entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade não é uma


questão nova, e o noticiário policial ou o “jonalismo-denúncia” são exemplos
freqüentemente trazidos a um debate que, apesar de recorrente, ainda é comumente
abordado de maneira tangencial, superficial ou exageradamente ideológica.
No âmbito legislativo, as iniciativas da “Nova Lei de Imprensa”1, “Lei da
Mordaça”2 e do Conselho Nacional de Jornalismo3, todas rechaçadas ou tacitamente
arquivadas, revelam que ainda não foi encontrado um caminho legislativo satisfatório para
o controle abstrato da colisão entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade.
Também inexiste uma linha definida nos tribunais brasileiros para a solução desse tipo de
colisão no caso concreto4.
Para resolver essa complicada questão, é preciso entendê-la com profundidade,
e para isso tenta contribuir o presente trabalho. A divulgação, pelos meios de comunicação
de massa, de notícias que incriminam pessoas, é manifestação típica de liberdade de
imprensa e, ao mesmo tempo, evento dos mais agressivos à honra e apto a causar danos
dos mais variados às pessoas. Não por outro motivo, foi o evento escolhido para ser
analisado em busca de diferentes elementos da colisão entre liberdade de imprensa, honra,
imagem e privacidade. Como o foco está no problema, legislação e jurisprudência serão
antes exemplos de compreensão e posicionamento do que objeto específico de análise ou
respostas dogmáticas prontas.
Para garantir uma forte conexão com a práxis jornalística contemporânea,
foram privilegiados, para análise, casos recentes, pelo que apenas um foi apreciado pelo
Judiciário. Também inexistiu qualquer preocupação quantitativa, pois a publicação de uma
notícia em veículo de grande audiência já representa, potencialmente, ameaça
suficientemente grave a direitos da personalidade. A conclusão é o resultado de soma de tal
análise a considerações preliminares sobre o jornalismo e os direitos envolvidos.

1
Projeto de lei (PL) 3.232/1992, aguardando votação pelo plenário da Câmara desde 1997.
2
PL 2.961/1997, remetido ao arquivo pelo Senado em 08/06/2007. Previa, entre outras, a seguinte
modificação na Lei 4.898/1965: “Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (...) j) revelar o magistrado,
o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou administrativa,
ou permitir, indevidamente, que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou
informações de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade, a vida privada,
a imagem e a honra das pessoas; (...)”
3
PL 3.985/2004, prejudicado pela rejeição do PL 6.817/2002, ao qual fora apensado. Previa a criação de um
órgão de classe, na forma de autarquia, para disciplinar a atividade jornalística.
4
Cf. LUIZ GUSTAVO GRANDINETTI CASTANHO DE CARVALHO, Liberdade de Informação e o Direito Difuso à
Informação verdadeira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 141 e GUILHERME DÖRING CUNHA
PEREIRA, Liberdade e responsabilidade dos meios de comunicação (exame de algumas questões), Tese
(Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1999, p. 23.

4
1 – CONCEITOS PRELIMINARES

Este primeiro capítulo destina-se à exposição de conceitos preliminares que irão


permear todo o trabalho. Sem pretensão de investigar exaustivamente cada um deles, sua
finalidade é esclarecer qual o sentido pelo qual serão tomados e aprofundar alguns pontos
considerados mais relevantes.

1.1 Comunicação Social e Mídia

A comunicação de massa5 ocupa papel central nas sociedades contemporâneas


e, no ambiente jurídico, é comum abordá-la sob a expressão “comunicação social”6,
adotada pelo constituinte brasileiro e que, de qualquer modo, engloba a primeira caso se
entenda por comunicação de massa simplesmente aquela dirigida a grandes audiências.
Adaptando conceito formulado por Augusto Fragola, comunicação social pode ser definida
como o processo de envio ou troca de mensagens – qualquer que seja sua natureza ou
conteúdo – endereçado a uma pluralidade indefinida de pessoas, de fonte de emissão que,
em regra, se vale de uma instrumentação técnica7.
Essa “instrumentação técnica” equivale aos meios de comunicação de massa,
cuja denominação em inglês, mass media, deu origem à palavra “mídia”, que hoje
representa uma instituição social formada pelos órgãos e pessoas que atuam nos meios de
comunicação social. Já o termo “veículo de comunicação”, por vezes usado como
sinônimo de “meio de comunicação”, aqui indica os meios individualmente considerados
(p. ex. uma emissora de TV).
5
“Comunicação de massa” está associada a termos como “operando em larga escala” ou “a grandes
audiências”, em RICHARD WEINER, Dictionary of Media and Communications, Nova Iorque, Webster´s New
World, 1990 e JAMES WATSON E ANNE HILL, A Dictionary of Communications and Media Studies, Nova
Iorque, Routledge, 1989, “mass communication”. Mas a idéia de “massa” nasce de uma analogia com uma
“massa de pão” (e não como algum tipo de medida), cujo traço mais relevante para a comunicação é a
indeterminação da audiência, cf. MELVIN LAWRENCE DE FLEUR E SANDRA BALL-ROKEACH, Teorias da
Comunicação de Massa, trad. da 5ª Edição norte-americana, por Octavio Alves Velho, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1993, pp. 177-178. Em ALUÍZIO FERREIRA, Direito à Informação, Direito à Comunicação: direitos
fundamentais na Constituição Brasileira, São Paulo, Celso Bastos, 1997, p. 226, e NOEMI MENDES SIQUEIRA
FERRIGOLO, Liberdade de Expressão: Direito na Sociedade da Informação, Mídia, Globalização e
Regulação, São Paulo, Pillares, 2005, pp. 65-66, é o “público indeterminado” que a caracteriza.
6
A principal idéia por trás disso é o pluralismo – ou a negação da “massificação”. AUGUSTO FRAGOLA,
Elementi di Diritto della Comunicazione Sociale, vol. 1, Roma, G. E. A., 1983, p. 10, explica a preferência
pelo termo: “(communicazione sociale) aderisce meglio all´imagine di uma communicazione che – a parte la
pluridirezionalità del messagio – nasce, si produce e circola nell´ambito della società umana, intesa nelle
sue espressioni, nazionali ed universali, nella moltepicità dei suoi componenti, gruppi, ideologie, religioni,
culture e perciò colta in atteggiamento attivo, partecipativo ed anche dialogico”.
7
A. FRAGOLA, op. cit., p. 9, “la communicazione sociale è l´universo dei messagi – quale chi sià la loro
natura o contenuto – indirizzati a una pluralità indefinita di persone da una fonte di emittenza che di regola
si avvale di una strumentazione tecnica”. O conceito original do autor foi modificado unicamente porque a
comunicação é descrita mais corretamente como um processo do que como um “universo de mensagens”.

5
1.2 Imprensa e informação jornalística

A palavra “imprensa” há muito deixou de significar uma máquina ou um meio


de comunicação8. Pelo uso, acabou se conectando fortemente ao jornalismo, e veio a se
tornar mais um sinônimo deste último do que dos próprios meios impressos9. Por isso,
embora ainda possa ser utilizada para designar um meio de comunicação, são dois outros
conceitos de imprensa que mais interessam a este estudo. O primeiro, institucional, é o de
imprensa como segmento da mídia dedicado à atividade jornalística. No segundo,
“imprensa” é utilizada para designar a ação jornalística, ou, melhor explicando, a
atividade de coleta, redação, edição e publicação da informação jornalística10.
“Informação jornalística” é expressão a ser abordada de duas maneiras. Na
primeira delas, toma-se “informação” como atividade, assim como José Afonso da Silva
explica o termo adotado pela Constituição Federal do Brasil: “a informação jornalística
alcança qualquer forma de difusão de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo
de comunicação social”11. A expressão tanto pode ser usada no sentido de “informar para”,
como no de “informar-se”, ou seja, abrange todo espectro da ação jornalística.
Na segunda forma pela qual pode ser entendida, toma-se “informação” como
um bem que, no caso, é produto da imprensa, e pode ser definido como o conteúdo das
mensagens jornalísticas12. Nessa abordagem, um sinônimo aproximado de “informação” é
“conhecimento”13. Se pensarmos que a informação pode ser não apenas intelectualmente
apreendida, mas também fixada em alguma espécie de suporte14, e que pode representar o
conhecimento adquirido e também o disponível, um conceito possível de informação é
conhecimento transmissível.

8
Cf. R. WEINER, op. cit., “press”.
9
Para L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 36, na definição de “imprensa”, “o que prepondera é a
atividade e não o meio empregado para divulgá-la”. CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, A Liberdade de
Imprensa e os Direitos da Personalidade, São Paulo, Atlas, 2001, p. 62, afirma que “não se concebe mais a
imprensa adstrita às informações impressas”. Por outro lado, JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito
Constitucional Positivo, 6ª ed., 2ª tiragem, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, p. 219, e EDILSOM
FARIAS, Liberdade de Expressão e Comunicação: teoria e proteção constitucional, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2004, p. 133, colocam “imprensa” como mais adequada para designar os meios impressos.
10
R. WEINER, op. cit., descreve “journalism” como “the profession of gathering, writing, editing and
publishing news”, embora “notícia” seja apenas uma das informações jornalísticas, como será visto.
11
JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 218.
12
A. FERREIRA, op. cit., p. 66, coloca que “informação” pode ser tanto a “atividade de informar” quanto a
“coisa informada”, mas ressalva (p. 68) que, no sentido de atividade, “comunicação” é mais apropriada, pois
a atividade de informação é um ato intelectivo individual. Não compartilho dessa visão, pois entendo que a
comunicação é apenas parte da atividade de “informar para”, pois a mensagem só é passível de comunicação
após um mínimo de formatação. E. FARIAS, Liberdade... cit., p. 54, menciona que “o vocábulo informação é
adequado para designar um conteúdo possível do processo comunicativo”.
13
Conhecimento como qualquer objeto do pensamento e desvinculado da idéia de um saber científico ou
semelhante. Em R. WEINER, op. cit, “information” é descrita como “knowledgment acquired in any manner”.
14
Para ser mais preciso, o que pode ser fixado em suportes físicos (filmes, papel, mídias óticas ou magnéticas
etc...) são mensagens, ou dados, que, por sua vez, contêm informações.

6
No âmbito da comunicação social, o jornalismo é apenas uma das formas de
transmitir informações15, e uma maneira de diferenciá-las é por sua finalidade. Assim se
distinguem, por exemplo, as mensagens jornalísticas das publicitárias, que até informam,
mas têm o objetivo final de persuadir. Ocorre que existem mensagens destinadas a um
mesmo objetivo final, mas de diferentes naturezas. Comunicar uma dada situação pode ser
o alvo de uma música, uma tese acadêmica ou uma matéria jornalística. Cada uma dessas
maneiras de informar, contudo, tem um processo próprio de elaboração, e o que caracteriza
o do jornalismo são o propósito último e declarado de informar16 e dois atributos essenciais
e necessários: realidade17 e atualidade18.
O jornalismo apresenta uma variedade grande de gêneros, e alguns tipos de
informação, dois dos quais se destacam por dominar o espaço nos veículos e por sua maior
repercussão na esfera dos direitos: a opinião, concebida como juízo que resulta de
conclusões do pensamento humano19, e a notícia, definida como informação jornalística
que comunica fato novo, recém revelado, ou uma situação atual20. Distinguir uma da outra
é problema constantemente levantado tanto por jornalistas como juristas. O diário
madrilenho “El País”, por exemplo, coloca como princípio fundamental que “a informação
e a opinião estarão claramente diferenciadas entre si” (“informação”como “notícia”)21.
A preocupação é compreensível. Embora o jornalismo seja responsável por
levar os fatos à audiência, o ideal seria levar a audiência até os fatos, para que ela pudesse
ter pleno conhecimento dos mesmos e fazer sua avaliação livre de qualquer ruído, como,
por exemplo, a opinião do jornalista que elaborou a matéria.

15
M. L. DE FLEUR E S. BALL-ROKEACH, op. cit. p. 322, fundamentam que “diferenciações convencionais que
sugerem que as “notícias” são informativas enquanto o “divertimento” não o é, são enganosas”; A. FERREIRA,
op. cit., p. 100, enuncia que “tudo o que é veiculado por um meio de comunicação contém informação, e
informação alguma é neutra”.
16
Poder-se-ia questionar se os jornalistas efetivamente agem independentemente dos efeitos e reações que a
informação pode provocar depois de divulgada, mas aí entramos na seara do uso inadequado do jornalismo.
Note-se que agir sabendo as conseqüências de sua ação é diferente de agir em função das mesmas.
17
São inúmeros os problemas teóricos que envolvem o conceito de “realidade” (v. MÁRIO MESQUITA,
Teorias e práticas do jornalismo – da era do telégrafo ao tempo do hipertexto in Revista Brasileira de
Ciências da Comunicação, Vol. XXVIII, nº 2, São Paulo, Intercom, julho/dezembro de 2005, pp. 12-13). Por
isso, realidade aqui significa simplesmente “não-ficção”.
18
A base para essa construção está em MANUEL CARLOS CHAPARRO, Pragmática do Jornalismo, São Paulo,
Summus, 1993, pp. 21-22, onde o autor tipifica a mensagem jornalítica. Um questionamento possível seria
quanto à presença desses elementos nas opiniões, que também são informações jornalísticas. Nesse caso,
atualidade e realidade aparecem como objeto das opiniões. Aquelas que fogem a isso se enquadram no
campo da literatura e não são informações jornalísticas.
19
V. a respeito VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à
Crítica Jornalística, São Paulo, FTD, p. 25.
20
O conceito apresentado não coincide exatamente com nenhum dos encontrados na pesquisa, tais como o de
R. WEINER, op. cit., “news: fresh information”, e VIDAL SERRANO, op. cit., p. 38, “toda nota, ou anotação,
sobre fato ou pessoa”. Para boa parte da doutrina, a notícia é a “informação” propriamente dita.
21
M. C. CHAPARRO, op. cit., p. 102; A mesma preocupação está em O ESTADO DE S. PAULO, Manual de
Redação e Estilo, EDUARDO MARTINS (org.), São Paulo, O Estado de S. Paulo, 1990, pp. 18 e 55 e L. G. G.
CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., pp. 100 e 211.

7
Por mais que seja impossível atingir o acima proposto, não desaparece o dever
de evitar a promiscuidade entre notícia e opinião, pois a notícia é lida com a expectativa de
se conhecer a realidade, enquanto a opinião, por mais digna de credibilidade que seja sua
fonte, é sempre um juízo individual ou coletivo. Da mesma forma, a opinião de certas
pessoas ou grupos pode ser um fato relevante, mas é importante deixar claro que se está
noticiando uma opinião.

1.3 Função social da imprensa e interesse público

Quando está em pauta a função social de instituições protegidas ou reguladas


pelo Direito, no sentido em que a expressão tem sido usada pelo legislador brasileiro e pela
doutrina, aborda-se a devida função social, por sua vez capaz de justificar benesses ou
restrições impostas pela norma. Assim, “social”, antes de designar “na sociedade”, designa
“para a sociedade”, ou seja, a função social da imprensa é aquela que é desejável segundo
os interesses sociais.
Embora possam ser delineadas algumas diferentes funções da imprensa, todas
levam ao mesmo destino: a informação das pessoas ultimada na formação da opinião
pública. É assim, por exemplo, quando ela age como “representante do público22”, função
que se destaca por diminuir a desigualdade de forças entre particular e Estado23. Mas
também não se pode negar o efeito benéfico para a Sociedade quando a imprensa provê
informações que permitem ao indivíduo ampliar as fronteiras do seu conhecimento24,
exercer a cidadania25, ou quando permite a circulação das opiniões26.

22
A idéia de “representação” pode levar à confusão com a representação que se legitima pelo voto
democrático, sendo que a imprensa se arroga nesse papel espontaneamente. Mas é uma concepção
encampada pelo jornalismo, e mais abrangente do que “fiscal” ou “cão de guarda”, pois engloba não apenas o
acompanhamento dos atos do Estado, mas também a verificação das demandas sociais em geral. Cf. MARK
DEUZE, What is journalism? Professional identity and ideology of journalists reconsidered, in Journalism:
theory, practice and criticism, Vol. 6.4, Londres, Thousand Oaks e Nova Déli, SAGE, novembro 2005, p.
447, há quem defenda que esse poder é delegado pelo público através do consumo; em FOLHA DE S. PAULO,
Manual de Redação, 4ª ed., São Paulo, Publifolha, 2001, a expressão é “mandato do leitor”; sob ela também
se abriga a idéia da imprensa como o “quarto poder”; associa-se, ainda ao ambiente democrático, cf. JOHN D.
ZELEZNY, Communications Law: liberties, restraints and the modern media, Belmont, Wadsworth, 1993, p.
36, e EDILSOM FARIAS, op. cit. pp. 113-115. A respeito da idéia de representação e os problemas que a
envolvem, v. EVERETTE E. DENNIS, Responsabilidade social, representação e realidade, in Jornalismo
versus Privacidade, DENI ELLIOTT (org.), trad. de Celso Vargas, Rio de Janeiro, Nórdica, 1990, pp. 104-114.
23
G. D. C. PEREIRA, op. cit., pp. 28-29, afirma que “quando se trata da especial densidade das exigências
éticas implicadas na noção de função social, pensa-se, com primazia, mas não exclusivamente, no “papel
político” que os meios de comunicação desempenham”. V. também JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 219.
24
E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 118-120, fala em “função cultural”.
25
A prestação de informações de utilidade pública facilita o exercício da cidadania. V. a respeito E. FARIAS,
Liberdade... cit., p. 120 e a função de “quadro de avisos”.
26
“Função de fórum”, cf. E. DENNIS, op. cit., p. 104 e E. FARIAS, Liberdade... cit., p. 116.

8
Para a formação da opinião pública, mesmo nos exemplos citados, colabora
toda atividade de comunicação social. Mas a participação da imprensa nesse processo é
especifica, na medida em que a si cabe contribuir com os caracteres distintivos da
informação jornalística: atualidade e realidade. Assim, o simples prover da informação
jornalística corresponde ao cumprimento do que seria uma função geral da imprensa. Para
que seja considerada desejável, entretanto, essa função precisa ser qualificada, uma vez
que os efeitos decorrentes da atividade da imprensa são apenas potencialmente positivos
para a sociedade, pois dependem da maneira como atuam os órgãos da imprensa.
Exemplificando, os mesmos caracteres que permitem à imprensa fomentar a participação
democrática possibilitam também o seu uso com fins de dominação ideológica27.
Para essa qualificação, presta-se o conceito de “interesse público”, que
representa os valores que sustentam a imprensa livre enquanto instituto jurídico altamente
desejável. Com o uso desse conceito-chave, fica condensada a idéia de função social da
imprensa em promover a informação jornalística segundo o interesse público.
Tratando-se de mídia e jornalismo, é freqüente buscar-se a diferenciação entre
interesse público e interesse do público. Este último seria meramente “o que as pessoas
querem ver”, enquanto o primeiro está relacionado com a promoção do “bem comum”28.
Embora também fale em interesse coletivo ou bem comum, Edilsom Farias defende que o
interesse público existe naqueles assuntos que afetam a gestão da coisa pública29,
enquanto, para Jill Hills, “tem a ver com os governos protegendo aqueles que não têm voz
nos procedimentos, e com um interesse coletivo geral, indo além de interesses segmentares
e com responsabilidade junto aos jovens, fracos e pobres”30. São visões diferentes, e que
colocam o interesse público como preocupação essencialmente governamental31, quando
talvez fosse pertinente colocá-lo também como uma preocupação natural aos jornalistas no
dia-a-dia de sua profissão32, independentemente do objeto da notícia ou crítica.

27
Outro exemplo está em S. S. SHECAIRA, Mídia e Crime in Estudos Criminais em Homenagem a Evandro
Lins e Silva (criminalista do século), S. S. SHECAIRA (org.), São Paulo, Método, 2001, p. 355, que enuncia
que “a informação não possui em valor em si mesma em relação à verdade”.
28
Por mais variado que seja o seu uso, o conceito sempre acaba levando à idéia de “bem comum”, cf., p. ex.,
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito Administrativo, 16ª ed., São Paulo, Atlas, 2003, p. 69, e ANA
LÚCIA MENEZES VIEIRA, Processo Penal e Mídia, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 135.
29
E. FARIAS, Liberdade... cit., p. 123.
30
JILL HILLS, The Democracy Gap: the Politics of Information and Communication Technologies in the
United States and Europe, West Point, Greenwood, 1991, p. 4, “although the concept of public interest is
notoriusly hard to define, it has to do with governments protecting those who have no voice in the
proceedings, and with an overall collective interest, going beyond sectional interests and with responsibility
to the young, week and poor”.
31
Sobre a diferenciação entre interesse público e interesse estatal, v. G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 146.
32
O interesse público é visto como um dos definidores do jornalismo ético, cf. M. C. CHAPARRO, op. cit., p.
120, e CICILIA M. KROHLING PERUZZO, Ética, liberdade de imprensa, democracia e cidadania in Revista
Brasileira de Comunicação, Vol. XXV, nº 2, São Paulo, Intercom, julho/dezembro de 2002, p. 74.

9
De maneira oposta, a Federal Communications Comission (FCC), órgão do
Governo dos Estados Unidos da América (EUA) encarregado da comunicação social, já
declarou que o interesse público é “simplesmente a reunião de escolhas privadas”33 –
interesse do público. Numa lógica de mercado, essa visão pode facilmente levar à confusão
entre interesse público e interesse comercial34 e causar uma série de problemas, como o
abandono dos que “não têm voz” e diminuição da responsabilidade da imprensa, uma vez
que ela se torna mera abastecedora daquilo que mercado demanda.
É fundamental ressaltar que a consideração do interesse público como um
interesse coletivo geral que visa o bem comum, não impede o atendimento do interesse do
público. Aliás, o trabalho do jornalista raramente é o de identificar onde há e onde não há
interesse público, mas geralmente o de enxergar onde ele existe em maior ou menor grau.
Assim, temos que o interesse público existe não somente nas informações que
dizem respeito ao Estado, mas em todas capazes de estimular ou proteger o “bem comum”.
Por conseguinte, a verificação da sua existência no processo de comunicação implica numa
avaliação valorativa – afinal, o que é o “bem”? Com a ajuda da Ética e do Direito,
identificar valores não é tão difícil - a constituição brasileira nos oferece um extenso rol
deles. A dificuldade maior não está, então, em encontrar o interesse público, mas em
escalonar os valores a ele subjacentes, ação impossível sem a emissão de um juízo.

33
J. HILLS, op. cit., p. 4, “simply the collation of private choices”.
34
Idem, p. 5, “In situations where the marketplace defines the public interest, it is a short step to argue that
the public interest is defined by what people will pay. Payment determines value, wich determines public
interest”.

10
2 – LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO E DIREITO À INFORMAÇÃO

O conjunto de direitos fundamentais contemplados neste capítulo forma o


suporte jurídico básico da publicação de notícias pela imprensa. A exposição que segue
parte de sua posição no ordenamento vigente no Brasil, sem ignorar que envolvem
princípios tendentes à universalidade, consagrados em plano internacional e dotados de
uma carga de valores construída ao longo da História35.

2.1 Liberdade de expressão ou de manifestação do pensamento

A liberdade de manifestação de pensamento36 já fazia parte das declarações de


direitos que inauguraram a história moderna dos direitos fundamentais, e o seu grau de
efetividade é uma das medidas do nível de liberdade e democracia de que gozam as
sociedades37.
Apesar de variar a maneira como é descrita pela doutrina, a discussão em torno
dessa liberdade é, acima de tudo, terminológica38, uma vez pacífica a existência de um
direito fundamental – ou um conjunto deles - que representa todo o aspecto exterior da
própria liberdade de pensamento39.
Idéias, opiniões, sensações, sentimentos, conhecimento, são todos objetos do
pensamento, ato que permite processar qualquer estímulo sensorial a que o indivíduo se
sujeita, conformando um universo cognitivo próprio de cada homem. Toda vez que
exterioriza um pedaço desse universo, a pessoa exerce sua liberdade de expressão ou
manifestação do pensamento, vistas como sinônimos.
A assertiva acima, por outro lado, pode levar à conclusão de que tal liberdade
abrange qualquer ação racional humana, afinal, de quase toda conduta é possível extrair

35
G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 43, fala em “carga semântica”. Sobre o desenvolvimento das liberdades de
comunicação, especialmente no Brasil, v. N. M. S. FERRIGOLO, op. cit., pp. 71-101, E. FARIAS, Liberdade...
cit., pp. 57-63 e L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 23-33.
36
V. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (CF), Art. 5º, incs. IV, V e IX.
37
Cf. PAOLO CARETTI, Diritto dell´informazione e della comunicazione: Stampa, radiotelevisione,
telecomunicazioni, teatro e cinema, Nuova Edizione 2005, Bologna, Mulino, 2005, p. 11.
38
As constituições, declarações de direitos, leis, jurisprudência e doutrina utilizam-se de diferentes termos,
de maneira que fica impossível extrair deles significados inequívocos, e a questão terminológica pode acabar
num infrutífero jogo de palavras: liberdade de expressão, liberdade de comunicação, liberdade de
manifestação do pensamento, liberdade de palavra, liberdade de escrita, liberdade de pesquisa, liberdade de
imprensa, liberdade de informação, liberdade de investigação, liberdade de opinião e liberdade de
conhecimento acabam sendo peças de um quebra-cabeça cuja figura final acaba a mesma. As diferentes
definições que cercam essas liberdades e direitos estão mapeadas em A. FERREIRA, op. cit., pp. 148-171.
39
A liberdade de expressão é descrita como o aspecto externo na liberdade de pensamento por JOSÉ AFONSO
DA SILVA, op. cit., p. 219 e A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 24. V. ainda C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., p. 56.

11
alguma espécie de expressão. Por isso, é preciso excluir as que não se destinam à
comunicação ou registro do pensamento40.
A identificação de diferentes liberdades envolvendo a manifestação do
pensamento traz consigo a idéia de que certas modalidades de expressão ou comunicação
possuem particularidades que a sujeitam a um regime jurídico próprio. Ocorre que, por
mais que se especifique uma dada forma de expressão ou comunicação, sempre haverá
aspectos de conteúdo ou meio que podem implicar na incidência em regras diferenciadas e
variados níveis de preferência em relação a outros direitos. Nada impede, contudo, a
concepção de uma liberdade ampla, dentro da qual as diferentes formas de exercício
compõem grupos interpenetrantes, cujas especificidades também se traduzem ao Direito. É
esse sentido amplo41 que a liberdade de expressão adquire neste estudo, como faculdade de
exteriorizar o pensamento com a finalidade de comunicação ou registro, qualquer que seja
seu conteúdo.

2.2 Liberdade de Comunicação Social

Quando a manifestação do pensamento se dirige a outrem, existe comunicação.


É situação tão comum, e tão essencial ao homem, que a liberdade de comunicação
praticamente se confunde com a liberdade de expressão. A liberdade de comunicação
social, então, consiste na liberdade de expressão pelos meios de comunicação social, uma
vez que seu uso já implica na intenção de comunicar.
Embora tutelada de forma genérica pela liberdade de expressão, a liberdade de
comunicação social possui particularidades que se dão em duas vertentes. A primeira pode
ser chamada de livre acesso na condição de emissor42, faculdade que não se pode garantir
a todos pela própria natureza dos meios de massa, embora seja possível buscar que todos
os grupos sociais tenham alguma participação ativa no processo de comunicação social. Já
a segunda diz respeito à própria expressão através dos meios de comunicação social, e
pode ser chamada de livre conteúdo. Sob tal enfoque, o principal corolário dessa liberdade

40
Sobre as diferenças entre “conduta”, “expressão” e “conduta expressiva”, v. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 40-
42. A doutrina não se ocupa das formas de expressão não destinadas à transmissão de mensagens – p. ex. a
redação de diário pessoal – que, embora não suscitem maiores questões, podem ser incluídas na proteção da
liberdade de expressão, pois são manifestações do pensamento, e, eventualmente, podem se prevalecer do
aspecto negativo da liberdade de comunicação – o direito de não comunicar.
41
Exemplo dessa visão ampla é a de CELSO RIBEIRO BASTOS, apud A. FERREIRA, op. cit., p. 171. Exemplos
de outras concepções em E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 53-55, que utiliza a liberdade de expressão como
gênero para representar liberdade de manifestação do pensamento, de opinião e de crença, as espécies, além
de restringir sua proteção à “manifestação pública” (do pensamento), e também VIDAL SERRANO, op. cit., pp.
24-25 e 28-29, que concebe a liberdade de expressão relacionada apenas às manifestações artísticas.
42
A. FERREIRA, op. cit., p. 204, afirma que “o que imediatamente deve ser assegurado para que exista
comunicação massiva é o direito de transmitir ou comunicar”.

12
é a proscrição da censura, embora o conteúdo dos meios de comunicação social possa
sofrer restrições quando se trata de proteger interesses de igual ou maior relevância43.
O exercício da comunicação social demanda de seus agentes uma
responsabilidade mais elevada do que o simples exercício da liberdade de expressão44. Isso
se deve, em grande parte, à amplitude da repercussão dos objetos comunicados e a
capacidade que possuem de influenciar as audiências. Importante ressaltar que a emissão
de mensagens pelos meios de massa é essencialmente unilateral45, e, mesmo quando há a
possibilidade de interação, a relação entre emissor e receptor é extremamente desigual.
Podemos dizer, então, que a liberdade de comunicação social está mais sujeita a limitações
do que a liberdade de expressão “comum”, pois seu potencial de ofensa a direitos alheios é
mais acentuado. Por outro lado, sua realização recebe proteção especial, objeto que é de
uma das chamadas garantias institucionais46 presentes na Constituição, plenamente
justificável devido à sua relevância para a consecução do direito à informação.

2.3 Direito à Informação

As diferentes visões a respeito do direito à informação variam segundo se


entende “informação”. Aqueles que vêem no termo um sinônimo de notícia concebem um
direito mais restrito, o que não implica deixar ao desabrigo objetos incluídos no direito à
informação visto de forma mais ampla, pois eles acabam “encaixados” sob outras
definições de direitos.
Os dispositivos constitucionais que sustentam o direito em análise47 até dão
uma idéia de informação como dado objetivo, mas, neste estudo, ele é visto de forma mais
abrangente. Seguindo idéia já delineada48, informação é praticamente sinônimo de
conhecimento, e o conhecimento humano é possível pela ação do raciocínio sobre um certo
dado sensível. Esse dado pode ser interno (provém do sistema nervoso) ou externo

43
Exemplo são as mensagens publicitárias no § 4º do art. 220 da CF.
44
Exemplo disso é a maior gravidade dos crimes contra a honra cometidos através dos meios de
comunicação social (Lei 5.250/1967, arts. 20 a 22).
45
Cf. A. FERREIRA, op. cit., p. 204.
46
CF, arts. 220 a 224; v. E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 32 e 196-197. Sobre as garantias institucionais, v.
PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 492.
47
CF, art, 5º, incs. XIV, “É assegurado a todos o acesso à informação, e resguardado o sigilo da fonte,
quando necessário ao sigilo profissional”, XXXIII, “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos as
informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei,
sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e
do Estado”, LXXII, “Conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas
à pessoa do impetrante, constantes de registros de bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter
público; b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazer por processo sigiloso, judicial ou
administrativo”.
48
V. pp. 5-6 acima.

13
(provém de uma fonte de qualquer natureza). Embora o conjunto de direitos fundamentais
deste capítulo esteja de alguma forma ligado à preservação da própria liberdade de
pensamento, o pensamento em si não se sujeita ao Direito49, motivo pelo que interessam
agora os dados e, pela mesma razão, os dados externos – as fontes de informação. Então,
uma definição de direito à informação é direito de acesso às fontes de informação.
Ocorre que as fontes são muitas, provavelmente infinitas: um documento, uma
pessoa, um lugar, tudo isso propicia conhecimento. Logo se vê que a nem todas as fontes
pode o Direito garantir acesso, seja por impossibilidade material, seja por constituírem-se
em dados privados ou cujo acesso possa violar direitos alheios. Ademais, há informações
de interesse geral, que se disponibiliza a todos, e particular, cujo acesso se tutela apenas
aos que nela possuem legítimo interesse, o que implica dizer que o direito à informação se
aplica a todos, mas não em relação a qualquer fonte e distintamente para cada um.
Deixando de lado a faceta do direito à informação que se confunde com o
direito à educação50, outro aspecto de relevo é a atitude do interessado em relação à fonte,
que pode ser ativa ou passiva – informar-se ou ser informado. No primeiro caso, o direito à
informação confere a seus titulares o direito de não ser impedido de acessar fonte de
conhecimento de seu legítimo interesse, enquanto no segundo apresenta-se tanto como
direito coletivo como individual. O habeas data e o direito do cidadão de exigir
informações de seu interesse junto aos órgãos públicos mostram um direito individual a
uma prestação estatal. Já o direito à informação como direito coletivo apresenta deveres do
Estado em relação à Sociedade. O primeiro deles é mantê-la informada de suas atividades.
Os demais se relacionam aos meios de comunicação social que, afinal, são a principal fonte
de informação no mundo contemporâneo. O livre acesso na condição de receptor implica
no dever do Estado de eliminar, minimizar e, obviamente, não interpor, qualquer obstáculo
que possa impedir ou dificultar o acesso do cidadão aos meios de comunicação social, na
condição de receptores de informação. Além disso, lhe incumbe regular e estimular o
funcionamento dos mesmos de forma a garantir o provimento pleno e correto de
informação à Sociedade51. Percebe-se aí a relação de complementaridade e
interdependência com a liberdade de comunicação - o “direito de informar” de que fala a
doutrina52 - e especialmente com a liberdade de comunicação social.

49
Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 214.
50
A. FERREIRA, op. cit., p. 148-149, vê o direito à informação como “prolongamento da Educação”, mas é
possível enxergar a relação entre educação e informação não de maneira contígua, mas sim, unificada.
51
A. FERREIRA, op. cit., pp. 78-81 e 92, vê a informação como necessidade humana e que “a ordem jurídica
deve prever a satisfação dessas necessidades regulando genericamente o suprimento e o acesso à informação
(...) tanto quantitativa como qualitativamente”.
52
É comum a tripartição do direito à informação em “direito de informar, de informar-se e de ser informado,
cf. VIDAL SERRANO, op. cit., p. 31; A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 32 e E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 86-90.

14
2.4 Liberdade de imprensa ou de informação jornalística

Seguindo o conceito adotado neste estudo, liberdade de imprensa é a faculdade


de coletar, redigir, editar e publicar informação jornalística - abrange tanto o conteúdo
comunicado quanto a atividade desenvolvida para obtê-lo. Trata-se de direito fundamental
mais restrito do que a liberdade de comunicação social, na qual está contido, pois diz
respeito somente a atividade jornalística. Seu exercício também recebe proteção especial53,
e, na mesma medida, sua responsabilidade deve ser diferenciada, embora essa última
afirmação não encontre respaldo no direito positivo nacional54. Razão suficiente para essa
diferenciação é o compromisso, espontaneamente assumido pelos veículos de imprensa, de
relatar a verdade e prover opiniões balizadas e isentas, somado ao fato de que a ação
jornalística se dá nos meios de massa, que, para Aluízio Ferreira, “são percebidos pelas
pessoas em geral como neutros ou supra-estruturais55”.
Também não há dúvida tratar-se de atividade a ser estimulada e protegida, pois
é altamente desejável numa sociedade democrática56. Não por outro motivo, a rejeição à
censura prévia57 no âmbito das comunicações sociais assume feição radical quando se trata
da imprensa. As informações que nela circulam têm caráter eminentemente atual e perdem
utilidade com o decurso do tempo. Proporcionalmente, cresce o dever de agilidade na
retificação de informações incorretas, seja voluntária ou por ordem judicial.
Apesar de corriqueira aplicação à imprensa, a fórmula “liberdade com
responsabilidade” ainda suscita mais perguntas que respostas. Para tentar clareá-la, três
fatores podem contribuir: a crença de que a imprensa deve exercer uma certa função
social58, o suposto dever de diligência inerente à atividade de imprensa e o chamado
“limite interno da verdade” 59, que, sob outra ótica, pode ser referido como a relação entre
liberdade de imprensa e direito à informação.

53
De que são exemplos o sigilo da fonte garantido ao jornalista e a limitação de sua responsabilidade civil
em caso de ofensa culposa à honra, que, apesar das críticas quanto à sua constitucionalidade, vem sendo
confirmada pelo Supremo Tribunal Federal - STF (v. REVISTA DO TRIBUNAIS nº 747, p. 335).
54
Porque não existe diferenciação clara entre a responsabilidade do jornalista e a do comunicador social.
55
A. FERREIRA, op. cit., p. 99.
56
V. nt. 22 acima.
57
Cf. J. D. ZELEZNY, op. cit., p. 44, “the general theory behind this is that prior restraints create a great
danger of government supression and that societal interests are better served in the long run if abuses are
dealt with after the facts”, mas pode haver exceções, “when harmful expression could not adequately be
punished after the fact”. E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 203-208 defende que, no Brasil, a censura é
admissível somente em caso de tutela judicial (embora não concorde com o termo “censura” para a hipótese),
e também descreve o “princípio da incensurabilidade” (idem, pp. 76-78).
58
V. JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 219.
59
E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 90-91.

15
2.5 Função social e liberdade de imprensa

A idéia de que a imprensa exerce uma função social desejável está entre as
justificativas para a proteção à sua liberdade. Invertendo-se o argumento, surge a questão:
cumprir essa função é pré-requisito da liberdade de imprensa? A resposta afirmativa soa
exagerada. Primeiramente, porque a função social não é a única justificativa possível para
a liberdade de imprensa. Além disso, resultaria na grave implicação de que uma publicação
considerada desprovida de interesse público60 poderia ser, somente por isso, impedida61.
O acima exposto não significa a irrelevância da função social, e,
conseqüentemente, do interesse público, nos problemas envolvendo a liberdade de
informação jornalística. Pelo contrário, é uma das formas – talvez a principal delas - de
avaliar qual o grau de prevalência dessa liberdade em relação a outros direitos. Assim, o
interesse público não é, a priori, fator condicionante da liberdade de imprensa, mas pode
sê-lo em determinadas circunstâncias, como em caso de colisão com outro direito
fundamental62.

2.6 Liberdade de imprensa e dever de diligência

A partir do momento em que se propõe a atuar na imprensa, um jornalista ou


veículo assume uma série de deveres. A expressão “dever de diligência” é usada aqui para
identificar o conjunto daqueles que contribuem para a prestação correta63 das informações.
No caso de opinião, a atitude diligente resume-se ao agir de boa-fé64 e, portanto,
pode ser considerada necessária para fazer jus à proteção da liberdade de imprensa. Já
quando se trata de notícia, a ausência do dever de diligência não pode excluir a liberdade
de imprensa, pois, mesmo sem ser diligente, é possível ao jornalista, sob o risco do erro,

60
O interesse público identifica a função social (pp. 7-8 acima).
61
Sobre riscos da visão “funcionalista” da liberdade de imprensa, v. também G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 25.
62
O interesse público, eventualmente classificado como “interesse social”, é freqüentemente apontado como
justificador da preferência da liberdade de imprensa em face de outros direitos, do que temos exemplos na
doutrina (C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. p. 77), na jurisprudência (Tribunal de Justiça de São Paulo - TJ/SP
-Apelação Cível com Revisão nº 361.477-4/4-00, p. 14 do acórdão) e também no projeto da nova lei de
imprensa (PL 3.232/1992): “os conflitos entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade, entre
eles os relativos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, serão resolvidos em favor do interesse
público visado pela informação”. O autor citado nesta nota reporta-se a tal hipótese legislativa como sendo
redundante, pois apenas confirma o que a interpretação da CF já determina.
63
“Correta” no seu sentido mais amplo, e não apenas no de “exata”.
64
A menção à boa fé está em VIDAL SERRANO, op. cit., pp. 88-89, mas não existem maiores construções a
respeito no Direito brasileiro. Apesar disso, seria difícil encontrar outros obstáculos justificáveis à livre
expressão das opiniões. A emissão de opinião não pode ser usada propositalmente com o objetivo de
prejudicar ou ofender, o que, na jurisprudência dos EUA, segundo a doutrina do “fair comment privilege”,
representa a única hipótese de restrição à emissão de opiniões, cf. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 115-117.

16
revelar corretamente fato verdadeiro. Por isso, o dever de diligência relaciona-se
principalmente com a eventual responsabilização posterior do jornalista em caso de notícia
falsa ou incorreta, uma vez que permite detectar, por exemplo, negligência e, logo, culpa65.
Como a possibilidade de sanção penal ou civil pode inibir ações jornalísticas66, verifica-se
a conexão entre tal dever e a liberdade de imprensa.
Embora seja possível vislumbrar a pertinência do tema no direito brasileiro, não
se extrai das nossas leis ou jurisprudência um conceito seguro do dever de diligência do
jornalista. Já o projeto da nova lei de imprensa prevê uma série de deveres dos meios de
comunicação social, dois dos quais podem ser associados à idéia de “diligência”: busca da
verdade e retificação das informações inexatas67. Mas o dever de diligência pode ir além
desses itens68, cabendo acrescentar como parte dele a necessária cautela exigida pelo
potencial ofensivo de certas informações jornalísticas69.
A case-law da maioria dos estados dos EUA admite a responsabilização do
jornalista em casos de difamação uma vez presente fault, segundo dois padrões: actual
malice e negligence70. O primeiro existe quando o jornalista publica a informação sabendo
que é falsa ou altamente duvidosa, aproximando-se dos por aqui chamados “dolo” e “dolo
eventual”. Já o segundo é um padrão mais brando, assemelhando-se à noção de “culpa”.
Tais padrões não ditam o tamanho da sanção, mas sim a diligência exigida do jornalista: o
ônus da prova é atribuído ao ofendido, cabendo-lhe comprovar a existência de um desses
dois comportamentos do jornalista, de acordo com o caso – geralmente, o primeiro destina-
se a agentes governamentais e figuras públicas, enquanto o segundo, às demais pessoas. A
abordagem dada ao tema pela doutrina dos EUA, especialmente quanto ao actual malice
standard, está sujeita a diversas críticas71 diante da tradição jurídica brasileira, mas

65
Nas questões envolvendo notícia inverídica ou inexata, tribunais de diversos países isentaram o jornalista
de responsabilidade quando este cumpriu um certo “dever de diligência”, cf. L. G. G. CASTANHO DE
CARVALHO, op. cit., p. 94-96 e EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, Colisão de Direitos: a Honra, a Intimidade, a
Vida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação, 2ª ed., Porto Alegre, Sérgio
Antonio Fabris, 1996, p. 164.
66
Cf. J. D. ZELEZNY, op. cit., p. 47 e C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. p. 91.
67
PL 3.232/92, art 3º, “são deveres dos meios de comunicação: inc. I - verificar a veracidade da informação a
ser prestada; inc. II – retificar as informações quando prestadas com inexatidão". E. FARIAS, Colisão... cit., p.
196, tem uma visão mais restrita, de que resume-se a diligência no “apreço pela verdade”.
68
Baseado nos casos de exclusão da punibilidade do jornalista pela Justiça italiana, P. CARETTI, op. cit. p. 61,
compila aqueles que seriam os deveres do jornalista: “si riferiscono all’obbligo inderogabile di rispettare la
verità sostanziale dei fatti (osservati sempre i doveri imposti dalla lealtà e dalla buona fede), all’obbligo di
rettificare le notizie che risultino inesatte e di riparare agli eventuali errori, all’obbligo di rispettare il
segreto professionale sulla fonte delle notizie (quando cio sai richiesto dal carattere fiduciário di esse)”.
69
Embora sem entrar em detalhes, desembargadores do TJSP condenaram empresa jornalística com base,
entre outras coisas, na ausência de “cautela” (Apelação Cível com Revisão nº 361.477-4/4-00, p. 18 do
acórdão).
70
Cf. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 121 e 126-132.
71
Cf. G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 219.

17
certamente contribui para a compreensão do assunto ao estabelecer que os padrões acima
descritos somente podem ser verificados no exame caso-a-caso.
De fato, não é possível delinear abstratamente as condutas necessárias ao
cumprimento do dever de diligência, exceto a obrigação de retificar informações erradas.
“Cautela” é uma idéia genérica que pode ser exigida em diferentes níveis, que se exige, em
grande parte, pelo tamanho do risco. Já o requisito da busca pela verdade somente pode ser
definido em linhas gerais, uma vez que somente a situação fática pode determinar o que
seria exigível ou mesmo possível. Para fugir das intermináveis questões a respeito de
verdade absoluta, verdade possível, ou uma suposta “verdade jornalística”, podemos dizer
que a busca pela verdade se sustenta pelo desprendimento na busca da informação e,
quanto à publicação, por uma atitude honesta do jornalista em relação àquilo que apurou72.
A exigência de verificação cabal dos fatos noticiados pode inviabilizar publicações
importantes73, especialmente denúncias. Assumindo atitude diligente, nada obsta a
divulgação responsável de fato não comprovado, desde que fique claro o grau de incerteza
que o cerca.

2.7 Liberdade de imprensa, direito à informação e verdade

Antes de aprofundar este ponto, cabe uma pequena digressão. Na mesma


medida em que são mensagens diferenciadas, notícia e opinião são distintamente
protegidas pela liberdade de informação jornalística. Na opinião, o valor a ser protegido
são as idéias e existe espaço para conjecturas, intuições e suposições. Já na notícia, a
proteção recai sobre a narrativa de fatos, e sua correspondência com os eventos sensíveis é
imprescindível. Por tal razão, parte da doutrina divide a liberdade de imprensa em “Direito
de Crítica ou de Opinião” e “Direito de Crônica ou de Informação”74, cuja diferença mais
relevante é o dever da verdade75 no exercício do segundo.
Por isso, as considerações seguintes cabem à análise da liberdade de imprensa
na publicação de notícias. E fôssemos falar de uma específica “função social da notícia”,
seu diferencial seria a presença da verdade, embora o que não seja verdadeiro não possa

72
A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 47, também fala em “informação completa”, no sentido de que não devem ser
omitidas partes da história. É comum na doutrina o conceito de verdade “subjetiva” ou “putativa”, que se
caracteriza por uma justificável crença, por parte do jornalista, de que os fatos que reporta são verdadeiros,
cf. G. D. C. PEREIRA, op. cit., pp. 169-179 e E. FARIAS, Colisão... cit., p. 164.
73
Sobre os riscos desse tipo de exigência, v. E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 91-92.
74
Crítica e opinião são usados como sinônimos, o mesmo para crônica e informação (no sentido de notícia).
Por isso, vale a explicação sobre direito de crítica e de crônica em G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 85.
75
Cf. A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 45 e C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., p. 76. É importante não confundir o
dever da verdade e o dever de diligência – o primeiro se relaciona à proteção da informação (mensagens),
enquanto o segundo se refere à atividade do jornalista ou veículo.

18
sequer merecer a qualidade de notícia. Além disso, existe a expectativa – talvez até a
certeza - por parte do receptor, de tomar contato com algo verdadeiro, reforçando a noção
de que a verdade, na notícia, é essencial, até por respeito ao seu consumidor, mas,
principalmente, para evitar a construção de uma “realidade irreal”.
Levando o argumento adiante, vemos que a publicação de notícia inexata ou
falsa76 ofende o direito à informação77. Assim, não se trata da ausência de benefício social,
mas de efetivo prejuízo à Sociedade. A conclusão, então, é que notícias falsas ou errôneas
não devem ser publicadas e, quando isso ocorre, inafastável o dever de retificação ou
concessão de direito de resposta, o que faz parte do dever de diligência.
É preciso evitar a confusão entre o estabelecimento da verdade e a verificação
da culpa do jornalista na publicação de notícia incorreta78. O cumprimento do dever de
diligência até o momento em que verificado o engano não afasta o fato de que a notícia
está errada, assim como o fato da notícia estar incorreta não implica automaticamente na
imputação de culpa ao jornalista.

76
Sobre diferenças entre notícia falsa e notícia equivocada, v. A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 46-47.
77
Uma insólita colisão entre a liberdade de imprensa e o direito à informação é apenas aparente, pois, na
verdade, a notícia incorreta não é protegida pela liberdade de imprensa.
78
Nesse sentido, G. D. C. PEREIRA, op. cit., p. 178.

19
3 – HONRA, IMAGEM, PRIVACIDADE E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Neste segundo grupo de direitos fundamentais, inserem-se aqueles que mais se


imbricam com a liberdade de imprensa na publicação de notícias sobre crimes. A
inviolabilidade de honra, imagem e privacidade é limite natural da comunicação social em
geral, como reconheceu o constituinte brasileiro79, e o escopo da análise que segue é
delinear, sinteticamente, cada um desses atributos ou direitos e discorrer acerca de sua
violação. Já a presunção de inocência deve ser abordada em função do relato de crimes.

3.1 Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade

A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem são invioláveis segundo a


Constituição80, consubstanciando o direito individual à proteção de cada um desses bens
jurídicos, razão pelo que se fala em direito à honra, direito à imagem, etc..., que poderiam,
de qualquer forma, ser deduzidos do próprio direito à dignidade. São direitos fundamentais
que se destacam entre os chamados direitos da personalidade81, entendidos como aqueles
destinados a proteger a integridade e o desenvolvimento da personalidade humana82.
São direitos pessoais inatos83, diretamente originados do princípio da dignidade
humana, mas alguns de seus aspectos também podem ser reconhecidos às pessoas
jurídicas84. Outros dos adjetivos que compartilham são “imprescritíveis”,
“intransmissíveis” e “indisponíveis”85, embora os últimos comportem alguma mitigação86;
são vitalícios, mas, eventualmente, geram efeitos após a morte87.

79
CF, art. 220, § 1º.
80
CF, art. 5º, inc. X, “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
81
Varia na doutrina a concepção acerca de quais seriam exatamente os direitos da personalidade, mas em
qualquer dessas visões os direitos em análise estão incluídos.
82
Cf. C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., pp. 23-24.
83
Cf. N. M. S. FERRIGOLO, op. cit., p. 137.
84
Segundo o art. 52 do Código Civil “aplica-se à pessoa jurídica, no que couber, a proteção dos direitos da
personalidade”, e a súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) admite o dano moral à pessoa jurídica.
Já o enunciado 286 do Conselho da Justiça Federal (CJF) - que não possui caráter normativo - diz que “os
direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade,
não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. V. a respeito, também, CRISTIANO HEINECK
SCHMITT, A invocação dos direitos fundamentais no âmbito das pessoas coletivas de direito privado, in
Revista de Informação Legislativa, nº 145, Brasília, jan/mar 2000, pp. 63-66, E. FARIAS, Colisão... cit., p.
136, C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., p. 43 e L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 67-68.
85
Cf. N. M. S. FERRIGOLO, op. cit. p. 137.
86
A respeito, o enunciado 4 do CJF: “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação
voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.
87
A Lei 5.250/1967 admite os crimes de calúnia, difamação e injúria contra a memória dos mortos, e outro
exemplo está no parágrafo único do art. 20 do Código Civil.

20
Honra

A honra é atributo inerente a toda pessoa, e se divide em objetiva e subjetiva. A


primeira refere-se à reputação de que goza o indivíduo perante seus pares, enquanto a
segunda, à consideração que a pessoa tem de si mesma88.
A verificação de lesão à honra e sua gradação somente é possível considerado o
contexto em que efetuada e no qual se insere o ofendido89. São exemplos típicos a
exposição a situações humilhantes ou execrantes, prolação de ofensas, xingamentos,
considerações negativas quanto à personalidade, bem como a atribuição, ainda que
veladamente, da prática de ato antiético, imoral ou antijurídico, notadamente o
cometimento de crime90.

Intimidade e Vida Privada

Varia, entre a doutrina, a forma como são concebidos os direitos à intimidade e


à vida privada, embora o resultado concreto seja praticamente o mesmo. É comum
encontrarmos ambos os direitos reunidos como partes de um direito à privacidade91 e há
quem defenda que a menção a ambos foi um exagero do constituinte. A visão ora adotada,
entretanto, aborda a intimidade como referente a uma esfera mais restrita do indivíduo, que
abrange hábitos e eventos domésticos, familiares e havidos num círculo próximo de
amizades e relacionamentos92. Já a vida privada seria referente à vida particular de um
modo mais amplo, envolvendo hábitos e eventos profissionais, patrimoniais e havidos num
círculo bastante amplo de relacionamentos93. Uma outra visão possível é aquela que coloca
a intimidade na esfera do segredo, de experiências vividas solitariamente94, enquanto a
vida privada englobaria eventos havidos num círculo de relacionamentos. Em ambos os
casos, a esfera da vida privada contém a esfera da intimidade95.

88
Cf. E. FARIAS, Colisão... cit., pp. 134-135; N. M. S. FERRIGOLO, op. cit. p. 136; C. L. BUENO DE GODOY,
op. cit., p. 39.
89
A respeito, v. VIDAL SERRANO, op. cit., p. 94 e J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 106 e 112.
90
Sobre o que pode ser considerado ofensivo à honra (defamatory content), v. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp.
106-107 e 110.
91
JOSÉ AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 183.
92
Nesse sentido, A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 146.
93
Nesse sentido, N. M. S. FERRIGOLO, op. cit., p. 139.
94
Cf. E. FARIAS, Colisão... cit., p. 137.
95
Posição diversa tem E. FARIAS, Colisão... cit., pp. 145, para quem a vida privada latu sensu é sinônimo de
intimidade, e a vida privada strictu sensu está contida na sua visão de intimidade.

21
Apesar da diferenciação, não se pode dizer que a intimidade deva pertencer a
uma esfera mais rígida de proteção do que a vida privada96, porque, como sói ocorrer com
a maioria dos direitos fundamentais, somente o caso concreto é capaz de dizer a efetiva
prevalência atribuível a um direito. Embora seja claro que a intimidade geralmente abrange
eventos mais restritos, é possível imaginar situações em que a revelação de um fato íntimo
seja menos danosa do que a revelação de um fato da vida privada, especialmente quando se
trata da limitação voluntária da intimidade. Podemos usar o exemplo de uma pessoa que dá
maior importância à preservação de seus dados financeiros do que a de fato íntimo de
pequena relevância, tal como o hábito de cantar no chuveiro. Por isso, será usada a locução
“privacidade” para designar essas duas esferas em conjunto.

Imagem

O direito à imagem confere a seu titular – todo ser humano - o controle sobre a
captura, reprodução ou representação de caracteres físicos que lhe são próprios, seja parte
do seu corpo, seja sua voz97.
É preciso cuidado para não confundir a proteção à imagem com a proteção à
honra98, até porque é comum o uso de “imagem” para significar o que se concebe como a
reputação ou honra objetiva99. Também é preciso separar a violação da imagem com a da
intimidade, sendo freqüente a ocorrência simultânea de ambas - uma fotografia, por
exemplo, pode, além de conter a imagem da pessoa, informar sobre ambientes, detalhes ou
hábitos de sua intimidade. Além de ser tutelada de maneira autônoma em relação à honra e
à privacidade, a imagem está mais sujeita à exploração econômica100.
Assim, a imagem é protegida contra seu uso indevido ou sem autorização, pois
sua associação a situações ou qualificações negativas é na verdade ofensa à honra, além de
que é possível (e comum) a sua violação em concorrência também com a da intimidade.

96
Posição diversa tem VIDAL SERRANO, op. cit., p. 91, pois vê a intimidade como um “espaço ainda mais
restrito e impenetrável”.
97
Cf. A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 151 e E. FARIAS, Colisão... cit., p. 148.
98
Idem, p. 152; C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., p. 45.
99
Exemplo dessa visão está em VIDAL SERRANO, op. cit., p. 97.
100
V. C. L. BUENO DE GODOY, op. cit., p. 46; L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 60-61 ressalta
que a imagem também não se confunde com direito autoral. Quanto ao tratamento dado à matéria pelo art. 20
do Código Civil, que mistura honra e imagem e lhe confere uma suposta “proteção absoluta”, valem as
críticas de L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 143, e o enunciado 279 do CJF: “a proteção à
imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do
direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa...”.

22
3.2 Ofensa e violação da honra, imagem ou privacidade

Entender o conceito de violação da honra, imagem ou privacidade é requisito


para verificar sua ocorrência. Observado o princípio da dignidade humana, o inc. X do art.
5º da Constituição não é determinante para a existência do direito fundamental à honra, que
doravante será utilizado para representar todo o conjunto.
Partindo da definição de regras e princípios formulada por Robert Alexy101,
existem duas formas de encarar o direito à honra e a afirmação de que “é inviolável”. Na
primeira, há o princípio da proteção à honra e a regra de sua inviolabilidade, enquanto na
segunda o inc. X apenas enuncia dito princípio, decorrente da dignidade humana. Essa
discussão pode acompanhar aquela a respeito do conceito de “violação”.
“Violar” certamente traz consigo a idéia de “romper”, e a ruptura da honra
implica na sua diminuição, que aqui será tomada por “ofensa”. A visão de que qualquer
ofensa à honra caracteriza violação dificulta a aceitação da primeira parte do inc. X como
regra, pois faria da proteção à honra um princípio absoluto. Por outro lado, conceber a
inviolabilidade como princípio prejudica a funcionalidade da segunda parte do mesmo
inciso. A situação é diferente quando se trata de entender “violação” como uma
transgressão qualificada, de forma a tornar-se indevida, e aí outra idéia que se pode
associar a “violação” é “violência”, o que necessita maior explicação.
Em primeiro lugar, a violência é geralmente utilizada como forma de subjugar a
vontade alheia, o que leva à reflexão a respeito da voluntariedade do titular em relação à
própria honra. Embora nem toda redução involuntária da honra possa ser tida como
violenta, pode-se afirmar que toda lesão à honra que resulta de ação voluntária de seu
titular não se caracteriza como violação, até um certo ponto. A título de exemplo, se numa
praça lotada um homem toma à força a carteira de outro, não pode reclamar que as
testemunhas do fato o chamem de “ladrão”, pois ele se colocou nessa condição. Mas o fato
não torna voluntária a redução de sua honra em outros sentidos, como a respeito de sua
reputação familiar.
É possível pensar também em lesões à honra que ocorrem ao acaso, e que não
são violações até pela falta de um agente “violador”. Mesmo nos casos em que a ofensa
ocorre contra a vontade do ofendido e pode ser imputada a alguém, ela será violenta
quando, para usar uma expressão incontroversa, houver uso excessivo de força. “Força”,

101
ROBERT ALEXY, A Theory of Constitutional Rights, trad. de Julian Rivers, 2ª ed., Oxford, Oxford
University, 2004, pp. 47-48. Resumidamente, princípios são mandamentos de otimização (norms wich
require that something be realized to the gratest extente given the legal and factual possibilities), e regras são
mandamentos exatos (norms wich are either fulfilled or not).

23
contudo, não se aplica exatamente ao caso, mesmo vista como qualquer elemento capaz de
provocar ofensa, porque muito ligada à idéia de força física. A noção de intensidade, tida
como o tamanho da redução efetiva ou potencial da honra, parece mais adequada.
A intensidade na ofensa à honra é mensurável em termos absolutos, através de
itens como o contexto que envolve a situação, efeitos psicológicos e repulsa social. Há
lesões pequenas a ponto de serem irrelevantes, e outras tão grandes que dificilmente se
justificariam. Apesar disso, ainda que comportem esse juízo a respeito de serem “grandes”
ou “pequenas”, só podem ser consideradas excessivas ou não em termos relativos.
Se, no exemplo dado acima, um policial estivesse passando pela praça e
conseguisse prender o ladrão, ao conduzi-lo algemado à delegacia, diante de todos,
certamente lesaria sua honra. Não é difícil justificar a ofensa, entretanto, pela necessidade
da medida no interesse da segurança pública. Se, posteriormente, já recolhido o acusado às
dependências da delegacia, o mesmo policial voltasse a colocar-lhe as algemas, para exibi-
lo ao fotógrafo de um jornal local, o mesmo ato já não produz mais qualquer efeito
positivo em relação à segurança pública, e a lesão à honra pode ser considerada excessiva,
porquanto desproporcional àquele interesse.
Desta feita, qualquer diminuição da honra de uma pessoa será doravante tomada
por ofensa, e toda ofensa desproporcional será tida por violação, ainda que esta não seja a
única visão possível. O acima exposto leva à concepção do inc. X do art. 5º como uma
regra, resultante da aplicação do princípio da proteção à honra pelo constituinte, que
determina que uma ofensa indevida à honra não deve ser perpetrada e, quando isso ocorrer,
o dano eventualmente resultante deve ser indenizado. Nos casos em que a honra colide
com outro direito fundamental, o dispositivo em tela aplica-se após a solução da colisão,
que por sua vez indica se a ofensa é indevida ou não. A título de esclarecimento, por
“direito à honra” será entendido o direito à sua proteção (princípio), e não o direito
decorrente de sua violação (regra). Guardadas as diferenças quanto à substância, idêntico
raciocínio se aplica a imagem e privacidade.

3.3 Presunção de inocência

A presunção de inocência é outro direito fundamental de primeira geração, que


veio a se tornar garantia básica do “devido processo penal102” contemporâneo. Sua
principal conseqüência é impedir a privação da liberdade antes de sentença transitada em

102
Cf. JOSÉ LAURIA TUCCI, Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, 2ª ed., São Paulo,
RT, 2004, p. 378; o princípio está expresso na CF, art 5º, inc. LVII: “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

24
julgado, sendo a prisão processual a exceção e a liberdade, a regra. Mas o princípio não se
esgota nesse ponto, impedindo também, por exemplo, a inscrição do nome de acusado não
condenado em definitivo no rol dos culpados103.
Da mesma maneira que a condenação judicial não implica apenas no
cumprimento de pena, mas também na imposição de uma pecha de “culpado”, o princípio,
posto como limite à publicação de notícias sobre crimes104, visa evitar também que essa
pecha seja imposta antes da conclusão do devido processo penal, seja por interferir no
ânimo do julgador, seja para proteger a reputação do acusado. A análise da primeira
situação depende de verificações empíricas sobre o impacto da informação no ânimo de
juízes e jurados105, o que foge ao foco deste trabalho. Por outro lado, são conseqüências
interligadas, podendo-se dizer que é o prejuízo à reputação do acusado que pode alterar a
imparcialidade do seu julgamento. Assim, a análise mencionada somente caberia nos casos
residuais em que a ofensa à reputação deva ser tolerada, mas a divulgação de notícia ou
opinião seja ainda questionável do ponto de vista processual, uma vez que, nos casos em
que se protege a reputação, automaticamente se evitam os efeitos do pré-julgamento.
Por tais razões, a presunção de inocência será argüida em favor da defesa da
honra, de maneira a se entender mais intensa a ofensa à honra que também lese a
presunção de inocência.

103
Cf. J. L. TUCCI, op. cit., p. 390.
104
Sobre presunção de inocência como limite à publicidade processual, v. A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 168-
175.
105
Sobre pesquisas desse tipo e sua relativização, v. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 248-249.

25
4 – LINGUAGENS JORNALÍSTICA E JURÍDICA NO RELATO DE CRIMES

A meta do presente capítulo é aprimorar a compreensão dos discursos do


Direito e do Jornalismo. Não é uma análise de discurso no sentido da mais sofisticada
técnica lingüística, mas sim uma comparação com base na analogia entre a condenação
penal judicial e a condenação moral via imprensa, que gera preocupações tanto a juristas106
como jornalistas107.
A comparação se concentra em dois pontos: motivação - que se presta à
identificação das intenções e interesses que movem as expressões - e regras, que visa
delinear a natureza das normas que orientam os dois processos. Para que seja válida, é
preciso considerar o processo penal e a ação jornalística ocorrendo dentro de seus
princípios orientadores, ou seja, isentos de vícios como, por exemplo, corrupção.

4.1 Motivação

O relato de crimes no âmbito judicial dá-se com a finalidade de verificar a


materialidade e autoria de condutas criminosas, e é fundamental para as decisões108. A
administração da Justiça e o cumprimento da lei penal são atividades de evidente interesse
público, mas o relato em si vai ser orientado por três interesses distintos, que não
necessariamente coincidem com o primeiro. Dois deles possuem característica semelhante:
acusação e defesa vão relatar os eventos atinentes ao processo com o intuito de convencer
o juiz ou o júri a adotar um certo posicionamento. O terceiro interesse é o do Estado-juiz,
que não produz relato algum, mas deseja obter um relato verdadeiro109, pressuposto
indispensável para a aplicação da lei com justiça. Esse interesse vai se manifestar tanto nas
regras abstratas que orientam o processo como na atividade do juiz ao conduzi-lo.
Quanto aos interesses da acusação, cabe comentar um importante diferencial
que possuem em relação aos da defesa, que decorre da natureza pública de sua atividade.
Polícia e Ministério Público (MP) compartilham daquele interesse maior do Estado que é o
de descobrir a verdade material, mesmo antes do início da ação penal, e é bom lembrar que

106
L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 222; J. D. ZELEZNY, op. cit., p. 241; E. FARIAS, Liberdade...
cit., p. 276; S. S. SHECAIRA, op. cit., p. 365.
107
FOLHA DE S. PAULO, op. cit, p. 28, “a investigação dos fatos diz respeito ao compromisso do jornalista
com a verdade e a crítica, e não com a promoção de atos de julgamento que competem à Justiça”.
108
Segundo EDUARDO CARLOS BIANCA BITTAR, Linguagem Jurídica, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 357, “um
dos elementos mais importantes na composição da decisão judicial é a conjuntura de fatos envolvidos, fatos
que se submetem à apreciação por meio de decisão judicial não são simplesmente ocorrências do mundo, mas
sim ocorrências vividas, sentidas e, sobretudo, interpretadas por diversos sujeitos".
109
V. J. L. TUCCI, op. cit., p. 44.

26
decisões prévias desses órgãos são responsáveis por boa parte dos destinos de uma
apuração penal110.
Um relato jornalístico também pode envolver inúmeros interesses, muitos dos
quais devem ser desconsiderados pelo veículo de comunicação, tanto que uma das
exigências éticas impostas à “grande imprensa” é que ela seja “desinteressada”, no sentido
de repudiar notícias que visem algum tipo de manipulação da opinião pública. Podemos
encontrar quatro focos de interesse legítimo na publicação de notícias: o interesse
institucional da publicação, o interesse das pessoas diretamente envolvidas, o interesse
jornalístico e o interesse público.
O primeiro representa o motivo pelo qual um veículo de imprensa opta por
captar e publicar notícias de crime. No caso brasileiro, em que predomina amplamente o
modelo privado de comunicação social, o interesse institucional quase sempre se confunde
com o interesse comercial dos proprietários dos veículos. Este, por sua vez, orienta a
concepção e o seguimento de uma linha editorial que sustente a relação entre o veículo e
seus consumidores e anunciantes e possibilite lucratividade e a sobrevivência do negócio.
A existência de tal interesse não representa, de pronto, qualquer problema, afinal, pelo
menos em tese, o veículo bem sucedido é aquele que informa melhor, e existem limites
externos à atividade da imprensa. Apesar disso, é sempre bom estar atento a tal interesse
quando se analisa a conduta de um veículo de comunicação111. Importante notar que o
interesse do veículo não se confunde com o do jornalista que, a princípio, assume um certo
compromisso ético próprio da profissão e não deve possuir interesse na história que relata,
a não ser a meta natural de fazer um bom trabalho e ser reconhecido – ou simplesmente
manter o emprego.
As pessoas físicas ou jurídicas que, por uma razão qualquer, são diretamente
afetadas pela publicação de uma notícia, possuem nela legítimo interesse. No caso de
notícias sobre crimes, estão em jogo valores essenciais a acusados, vítimas, e também
podem ser identificados interesses de familiares, testemunhas ou agentes públicos que
participam da perquirição penal. Tais interesses estão na base de certas escolhas que essas
pessoas podem fazer, como negar ou conceder entrevistas, exigir direito de resposta,
manter o anonimato, etc...

110
A apuração da verdade material como escopo do Processo Penal pode ser vista em J. L. TUCCI, op. cit., pp.
42-46, onde também coloca interessante idéia de FRANCESO CARNELUTTI, de que o Ministério Público seria
“um juiz tornado parte” (p. 46).
111
Exemplo da relevância deste ponto é a norma da constitução italiana (art. 21) que permite à Lei
estabelecer que sejam tornados públicos os meios de financiamento dos jornais, descrita por P. CARETTI, op.
cit., p. 23, como um “diretto a tutelare l´interesse dei destinatari dell”informazione stampata a conoscerne i
finanziatori, ossia, i primi responsabili delle diverse politiche editoriali”.

27
O interesse jornalístico é de natureza diferente. Avaliado cotidianamente nas
redações, ele é o principal motivador do relato jornalístico, na medida em que determina o
que deve ou não ser notícia e, dentre as mesmas, quais merecem maior destaque. Uma
forma de verificar o interesse jornalístico é identificar “atributos de relevância”, cuja
quantidade e intensidade são responsáveis pelo nível de interesse que a notícia é capaz de
despertar. Tais atributos, para Manuel Carlos Chaparro, são “atualidade, proximidade,
notoriedade, conflito, conhecimento, conseqüências, curiosidade, dramaticidade e
surpresa”112.
Importante ressaltar a estreita ligação entre os interesses jornalístico e
institucional. Quanto mais interesse jornalístico numa certa história, mais ela atende certos
interesses institucionais do veículo. Por essa lógica, em certas situações, o que é
indesejável para a sociedade é “bom” para os veículos de imprensa113. A existência de
certos espaços nos veículos destinados a tratar exclusivamente de assuntos criminais, por
exemplo, torna-os dependentes da existência de fatos que possam explorar como notícia,
mormente daqueles com fortes atributos de relevância, como “dramaticidade”.
A sobrevalorização do interesse institucional sobre o interesse jornalístico pode
estimular a tentativa de insuflar artificialmente o segundo, levando ao sensacionalismo no
sentido pejorativo da palavra114. Já o interesse institucional desprovido de freios éticos
pode levar à distorção do interesse jornalístico, fazendo-o existir onde não deve ou cessar
onde existe de fato, segundo desígnios dos dirigentes do veículo. As possibilidades claras
de conflito entre os interesses já delineados colocam o quarto deles, o interesse público115,
como uma espécie de fiel da balança, pois é ele que legitima o jornalismo perante a
Sociedade.
E o público? Atender a seus interesses também está por trás do interesse
jornalístico. Mas existe uma variante que toca à postura do receptor no momento de
receber a mensagem. Essa postura varia, por exemplo, de acordo com o meio utilizado. A
televisão é mais afeita ao entretenimento do que à instrução, ao inverso do livro. Por isso,
nesse meio, a notícia está mais sujeita a ser assistida como forma de entretenimento, o que
não é, contudo, sua exclusividade, especialmente se pensarmos no exemplo dos crimes
passionais. O formato dado à notícia pode estimular diferentes sensações na audiência.

112
M. C. CHAPARRO, op. cit., p. 120
113
Com base nas características dos jornais, MARSHALL MCLUHAN, Os Meios de Comunicação como
Extensões do Homem, tradução de Décio Pignatari, 3ª ed., São Paulo, Cultrix, 1978, p. 235, afirma que “a
boa notícia é a má notícia”.
114
Sobre sensacionalismo, v. também A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 52-56.
115
V. pp. 7-8 e 14 acima.

28
Como nesta analogia é o público quem exerce a condenação moral aos acusados pela
mídia, é importante considerar sua postura no momento em que recebe a notícia.
Em comparação, temos que o interesse público deve prevalecer tanto na
construção da verdade material do processo penal quanto no relato jornalístico. Ocorre que
o modelo judiciário oferece ao órgão análogo ao veículo de imprensa, o MP, uma série de
garantias e deveres que não se aplicam a veículos ou jornalistas. Estes por sua vez,
dependem da notícia e, em que pese responderem por abusos, não estão sujeitos a qualquer
tipo de fiscalização, que não a dos próprios consumidores de notícias. E esses últimos, os
“juízes”, não possuem compromisso com o que quer que seja, o que confere ao jornalista
uma participação quase determinante. Uma vez o animus narrandi alegação corriqueira em
favor dos jornalistas, entender as intenções116 que os movem em cada caso é fundamental.

4.2 Regras

Os dois discursos em análise se dão em contextos específicos de regras, embora


algumas delas sejam semelhantes. Seria difícil e ocioso enumerar a totalidade de regras que
envolvem as narrativas de crimes no Judiciário e na imprensa, sendo mais interessante
entender a natureza das normas que se aplicam a cada um desses sistemas.
De base legal, o processo penal é marcado por um sistema de garantias que visa
o equilíbrio entre as partes, segundo a idéia da paridade de armas117 e os princípios do
contraditório e da presunção de inocência. Funcionem ou não, visam proteger os direitos
do indivíduo e a Sociedade. É a única técnica mediante a qual o Direito se apresenta capaz
de dizer quem é culpado e deve cumprir sanção penal.
As regras que orientam o discurso jornalístico constam de um saber-fazer118
lapidado ao longo do tempo, parte das quais se encontram anotadas em códigos e manuais
elaborados por órgãos da imprensa. São regras que se dividem em dois tipos básicos: as
ético-ideológicas, que fazem parte da adequação da atividade de imprensa ao papel que
dela espera a Sociedade, e as de eficiência, que visam apenas o sucesso no mercado de
notícias.

116
M. C. CHAPARRO (op. cit., v. especialmente pp. 20-22 e 120-121) analisa o jornalismo com o ferramental
teórico da Pragmática, e destaca os elementos “intenção” e “interesse”. Para ele, é no nível da intenção,
enquanto controle consciente do fazer jornalístico, que se encontram os princípios éticos que o orienta.
117
V. J. L. TUCCI, op. cit., pp. 160-162.
118
M. DEUZE, op. cit., pp. 442-446, com apoio em diversos autores, concebe o jornalismo como uma “shared
occupational ideology”. A visão é válida, mas a idéia de um saber-fazer inclui tanto as regras ideológicas
quanto as regras de eficiência, que também influenciam – e muito – o discurso jornalístico.

29
Nem sempre é possível enquadrar uma norma jornalística isoladamente numa
dessas categorias, pois, eventualmente, aspectos das duas naturezas influenciam uma
mesma regra. Um exemplo é a regra de “ouvir o outro lado”119, que tem uma origem ética,
mas está sujeita a razões de conveniência do veículo120. Outro exemplo é a imparcialidade.
Elemento construtor da credibilidade121, tão cara preciosa a veículos e jornalistas, o maior
corolário da imparcialidade é a objetividade122, que, a princípio, deve estar na abordagem
do repórter às informações. Mas a objetividade acabou se tornando, também, uma regra de
estilo para a maioria dos veículos, que pode acabar se chocando com a objetividade ética
quando o tratamento objetivo de informação subjetiva cria uma ilusão para a audiência.
No relato de crimes, propriamente dito, as diferenças mais significativas entre
essas duas técnicas narrativas são as limitações de espaço e de tempo existentes na
imprensa, no seu controle dos dois lados da história e na hierarquização123 das informações
veiculadas. Seria como se o MP oferecesse ao juiz uma compilação seletiva e
hierarquizada de dados do inquérito policial e da defesa do acusado, e, com base somente
nisso, o magistrado decidiria.
Se é fundamental conhecer as intenções que movem o relato jornalístico, não
menos importante é saber se as ações dos jornalistas são controladas somente pelo animus
do agente ou pelas normas que orientam o discurso da imprensa. Quanto a estas, quando a
deontologia do jornalismo é argüida em defesa da liberdade de imprensa, cabe separar as
puras regras de eficiência daquelas de cunho verdadeiramente ético.

119
O projeto para a nova Lei de Imprensa (PL 3.232/92) prevê a pluralidade de versões como um dever dos
meios de comunicação social, cf. art. 27º “na produção e circulação de material jornalístico os veículos de
comunicação social observarão, em matéria controversa, a pluralidade de versões, ouvindo as partes
envolvidas em polêmica, sobre os fatos da atualidade e de interesse público, citando os caso em que houver
recusa da parte”. “Ouvir o outro lado”, de qualquer forma, é regra comezinha nas redações, e consta, por
exemplo, de FOLHA DE S. PAULO, op. cit, p. 26.
120
Exemplo está em O ESTADO DE S. PAULO, op. cit., p. 56, “em casos excepcionais, o jornal poderá deixar
para ouvir a parte acusada no dia seguinte. Por exemplo, quando não quiser que uma notícia exclusiva chegue
ao conhecimento dos concorrentes antes da sua publicação”.
121
Um dos “discursively constructed ideal-typical values” identificados na ideologia do jornalismo por M.
DEUZE, op. cit., p. 448, é “journalists are neutral, objective, fair and (thus) credible”.
122
A objetividade também é vista como forma de (tentar) ater-se ao real, em MOTTA, LUIZ GONZAGA, Para
uma antropologia da notícia, in Revista Brasileira de Comunicação, Vol. XXV, nº 2, São Paulo, Intercom,
julho/dezembro de 2002, p. 15. Posição semelhante adota M. MESQUITA, op. cit., pp. 14-15, que também fala
da “doutrina normativa” da objetividade jornalística. A busca pelo real passa pelo “distanciamento” (cf.
MESQUITA), que acaba se confundindo também com objetividade e neutralidade. Exemplo dessa doutrina
normativa está em FOLHA DE S. PAULO, op. cit, p. 22, “a busca da objetividade jornalística e o distanciamento
crítico são fundamentais...”. O manual reconhece que “não existe objetividade em jornalismo”, pois o
profissional é influenciado “por suas posições pessoais, hábitos e emoções. Isso não o exime, porém, da
obrigação de ser o mais objetivo possível”.
123
A hierarquização é uma regra de eficiência, que visa distribuir as notícias pelo espaço ou pelo tempo
(dependendo do meio) de forma harmônica e numa determinada ordem de importância. A hierarquia também
existe internamente à matéria, tanto na disposição dos fatos no texto quanto na contenção de informações por
limitação de espaço ou tempo. Uma característica dos textos hierarquizados é que eles ser “cortados pelo pé”,
ou seja, editores ou membros da audiência podem eliminar ou ignorar, respectivamente, suas partes finais ou
mesmo intermediárias. V. a respeito FOLHA DE S. PAULO, op. cit, pp. 28-29 e 33.

30
5 – LIBERDADE DE IMPRENSA X HONRA, IMAGEM E PRIVACIDADE

Este capítulo destina-se à análise de alguns aspectos genéricos das colisões de


direitos fundamentais envolvendo liberdade de imprensa, honra, imagem e privacidade, na
publicação de notícias sobre crimes, e posterior análise de situações práticas. Foge ao
escopo deste estudo aprofundar-se a respeito dos direitos fundamentais, bastando dizer que
estão na base do Estado constitucional e no topo da hierarquia das normas, devendo sua
efetivação ser almejada ao máximo124, vez que não são absolutos.
Direitos fundamentais podem colidir entre si ou com outro interesse
constitucional125, e para que ocorra a colisão objeto deste trabalho, são necessárias duas
condições: que se trate de expressão protegida pela liberdade de imprensa e que seja apta a
ferir a honra, imagem ou privacidade de uma pessoa.
A primeira condição está presente sempre que se tratar de informação
verdadeira126, enquanto a segunda depende de alguns eventos, sendo o primeiro deles a
veiculação da notícia (exceto nos casos de ofensa à privacidade eventualmente resultante
do trabalho de coleta da informação). Também, nenhum indivíduo pode alegar violação a
um seu direito da personalidade se não existe elemento que permita sua identificação na
notícia publicada. Fere a honra qualquer expressão que, considerado o contexto, seja
presumível ou comprovadamente capaz de prejudicar a reputação da pessoa perante seus
pares ou provocar-lhe o sentimento subjetivo de desonra127. Atenta contra a imagem a
divulgação de qualquer sinal físico próprio da pessoa sem sua autorização128, e a
privacidade considera-se invadida sempre que um dado privado ou íntimo é revelado129.
Prevista ou verificada a colisão, surge a indagação: qual direito deve
prevalecer? Como ambos ostentam o mesmo status constitucional130, não é uma questão de
hierarquia, e não existe solução com base apenas no texto da Constituição. Assim, deve-se

124
Os direitos fundamentais situam-se na base do Estado Constitucional porque representam escolhas
políticas básicas da Sociedade, bem como sustentam a legitimidade estatal (v. E. FARIAS, Colisão... cit., p.
82); por serem constitucionais, situam-se no topo hierárquico das normas, valendo-se do status de lex
superior e dando um sentido de orientação às normas infraconstitucionais; nesse sentido, R. ALEXY, op. cit.
p. 394, enuncia que “a good constitution... must be both a foundation and a framework; a terceira proposição
retrata o entendimento de que os direitos fundamentais possuem, tipicamente, estrutura de princípio, por sua
vez entendidos como mandamentos de otimização cf. idem pp. 47-48. Sem entrar nas discussões acerca de
direitos humanos, direito natural, ou qualquer outra teoria justificativa dos direitos fundamentais, é de se
registrar a existência de um extenso rol de motivos, das mais variadas naturezas, que sustentam a sua
relevância, reforçada, no caso brasileiro, pelo fato de constarem dentre as chamadas “clásulas pétreas”.
125
Grosso modo, essa colisão existe quando o exercício de um direito prejudica o exercício de outro, cf. E.
FARIAS, Liberdade... cit., p. 47.
126
Uma vez colisões ocasionadas pela publicação de notícia, cabe o limite da verdade, cf. pp. 18-19 acima.
127
V. p. 21 acima.
128
V. p. 22 acima.
129
V. pp. 21-22 acima.
130
V. C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. pp. 66-67.

31
atentar às circunstâncias que envolvem a colisão, para que se verifique qual direito deve
prevalecer, dependendo do caso131. Além disso, não se trata simplesmente de decidir pelo
completo afastamento de um dos direitos, mas determinar que tipo de restrição ele pode
sofrer e em que medida.
Assim, a questão fica mais bem formulada nos seguintes termos: até que ponto
e sob que circunstâncias o indivíduo deve suportar a ofensa de seu direito da personalidade
para que possa se realizar a liberdade de imprensa, ou a partir de que ponto e sob que
circunstâncias o jornalista ou veículo ultrapassa os limites, caracterizando abuso de direito?
Trata-se, portanto, de uma questão de limites, mas tentar a sua solução pela
simples fixação dos mesmos pode se transformar numa busca infinita. Isso porque as
combinações possíveis são muitas e imprevisíveis, assim como seria difícil demarcar
limites absolutamente unívocos e herméticos132. Na verdade, o que pode ser estabelecido
com segurança é que a defesa de honra, imagem e privacidade é um limite geral à
liberdade de imprensa, a ser posicionado em algum ponto entre a sua total proteção e sua
total derrogação, segundo condições variáveis. A busca por elementos que indiquem esse
posicionamento pode ser mais profícua do que a busca por limites estáticos.
O desenvolvimento do trabalho até o momento delineou alguns desses
elementos, a maioria dos quais conceitos ainda muito abertos, e a análise de situações
práticas é uma forma de dar-lhes mais substância ou pelo menos aprimorar sua
compreensão. Não seria possível levantar todas as questões atinentes aos casos que seguem
abaixo, por isso selecionei alguns pontos relevantes de cada um deles, formando um
quadro representativo de problemas envolvendo a divulgação de notícias sobre crimes.

5.1 Caso Escola Base

O caso “Escola Base” é a referência negativa da atuação da imprensa no


Brasil133. No episódio, ocorrido em 1994, seis pessoas foram acusadas de abusar
sexualmente de crianças que freqüentavam uma escola infantil, a Escola Base, mas eram
inocentes. Até que isso ficasse comprovado, o massacre via mídia somou-se à invasão e
destruição das dependências da escola por populares, restando sérios e evidentes prejuízos
materiais e morais aos acusados.

131
Aplica-se ao caso a “law of competing principles”, cf. R. ALEXY, op. cit. pp. 52-54, no sentido de que são
as circunstâncias que determinam a relação de preferência entre princípios colidentes.
132
Nesse sentido, L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 141, “somente o exame meticuloso e
casuístico da hipótese poderá fornecer o caminho a seguir”.
133
As informações a respeito desse caso foram extraídas de ALEX RIBEIRO, Caso Escola Base: os Abusos da
Imprensa, São Paulo, Ática, 1995.

32
A denúncia partiu de duas mães de alunos da escola. O delegado de polícia
Edélcio Lemos, precipitadamente, disse à imprensa que “havia ocorrido abuso sexual”. A
cobertura da mídia sobre o caso foi extensa e histérica, simbolizada pela manchete do
extinto “Notícias Populares”: “Kombi era motel na escolinha do sexo”. As crianças não
sofreram abuso sexual, segundo laudo do Instituto Médico Legal, mas algumas foram
“entrevistadas” por repórteres de TV.
Recentemente, diversos veículos de comunicação foram condenados ao
pagamento de indenizações, ao que consta, nenhum em definitivo. A Fazenda Pública do
Estado de São Paulo foi também condenada a indenizar três dos implicados, pelo que
responderia regressivamente, em tese, o delegado Lemos.

A participação do delegado

Edélcio Lemos foi apontado como principal responsável pelos danos aos
acusados. Para a ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), “a
segurança transmitida pelo delegado, ao narrar com suas próprias palavras o que apurava,
deu à imprensa o respaldo necessário à divulgação (das notícias sobre abuso sexual)” 134.
De fato, um delegado que se manifesta a respeito de crimes a seu cuidado
empresta a autoridade da Polícia àquelas informações e deve ter condições de avaliar
minimamente qual o seu efeito em relação às pessoas implicadas e ao próprio andamento
da investigação. Policiais não são “donos” das informações que detêm. Eles as conhecem
em função do cargo público que ocupam e em é em função desse que devem optar por
revelá-las ou não.
Quanto a essa opção, existem argumentos para os dois lados. A previsão de
sigilo no inquérito policial135 revela a preocupação do legislador com a revelação, em
certos casos, de informações ainda na fase inquisitiva da apuração penal. De outro lado
está o direito à informação, segundo o qual o Estado deve informar os cidadãos a respeito
de sua atividade.
Surge, mais uma vez, o interesse público. A princípio, toda notícia sobre crime
tem interesse público136, afinal, a Sociedade deve conhecer os seus próprios problemas.

134
STJ – RESP. 351.779, p. 8 (em www.stj.gov.br).
135
O art. 20 do Código de Processo Penal (CPP), prevê que deve ser mantido o sigilo do inquérito quando
“necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Existem países (p. ex. Inglaterra)
em que todo inquérito é secreto, cf. A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 110-127.
136
Nesse sentido, C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. p. 89. O projeto da nova lei de imprensa originalmente
continha um dispositivo que veio a ser retirado ao longo dos trâmites, e que declarava expressamente que
“consideram-se de interesse público as informações: I - concernentes a crimes, contravenções penais e outras
condutas anti-sociais”. V. também a respeito A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 102-103.

33
Isso leva a crer que, em regra, a autoridade policial deve informar da ocorrência de crimes
e seus desdobramentos. Mas, das informações que dispõem, será que em todas está
presente o interesse público necessário para justificar a divulgação? Como visto, o nível de
interesse público é variável, e uma de suas variantes diz respeito especificamente ao
trabalho policial: o interesse público envolve todos os detalhes da investigação, inclusive
aqueles cercados de grande incerteza, ou apenas as informações minimamente
confirmadas?
Para Guilherme Döring Cunha Pereira, sem uma verificação cabal de
materialidade, deve-se evitar emitir juízos incriminadores. A expressão “cabal” pode ser
muito rígida, mas dizer que um dado incriminador somente pode ser divulgado quando
houver um mínimo de consistência parece razoável, e uma medida dessa ordem teria
evitado o caso Escola Base. Surge, então, outra questão: são as fontes policiais que devem
reter a informação ou os jornalistas, responsáveis diretos pela publicação das notícias e que
conhecem seus efeitos melhor do que policiais?
Nessa situação, o agente policial tem maior condição de saber a consistência de
uma suspeita, além de que, se uma informação ainda é frágil para ser divulgada, é mais
fácil contê-la entre poucos policiais do que esperar bom senso da totalidade dos
profissionais da imprensa. Por outro lado, a institucionalização desse tipo de dever
funcional pode ser usada artificialmente para esconder informações de elevado interesse
público, ou surtir idêntico efeito ao intimidar agentes policiais.

A participação da imprensa

No caso Escola Base, a responsabilização do Estado pela conduta do delegado


entra em aparente contradição com a condenação dos veículos de comunicação, pois, se
aquele foi o causador dos danos137, por que a indenização devida também por órgãos de
imprensa?
A contradição desaparece quando a culpa de um jornalista ou veículo se desloca
da decisão de publicar ou não e se concentra na forma como é feita a divulgação. No
acórdão em que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) confirmou a condenação de

137
STJ – RESP. 351.779, p. 9, “o que levou os litigantes a serem repudiados (...) não foi a veiculação
jornalística provocada pela imprensa, e sim a irresponsável conduta do agente estatal” (voto da ministra
Eliana Calmon). Em pelo menos duas oportunidades, (Apelação Cível nº 218.549-4, JTJ nº 147, p. 145, e
Apelação Cível nº 121.001-4/2-00, JTJ nº 258, p. 110), o Tribunal de Justiça de São Paulo isentou veículos
de imprensa de qualquer responsabilidade quando reproduziram informações constantes de boletim de
ocorrência.

34
uma empresa responsável por revista semanal que tratou do caso138, embora sem entrar em
detalhes, os desembargadores afirmaram que a publicação foi feita sem “qualquer cautela
ou preocupação”.
O argumento, então, é de que teria faltado a diligência exigida pelo caso. No
que tange à coleta de informações e na decisão de publicar, é difícil dizer se faltou
diligência à imprensa em geral ou se o repórter que não publicou a matéria é que foi
competente acima da média139, afinal, uma autoridade policial dizia com clareza que havia
abuso sexual contra crianças e os suspeitos eram aqueles. É verdade que os jornalistas
poderiam ter questionado mais as evidências de abuso sexual140 e a própria condução do
inquérito, o que faz parte da busca pela verdade e até pode estar relacionado com suas
intenções, mas ainda estamos num campo de elevado subjetivismo.
Já no que toca à forma da divulgação, dificilmente a imprensa consegue elidir
sua responsabilidade. No citado julgamento do TJSP, é mencionado o título da matéria
danosa (“uma escola de horrores”) como prova da culpa da editora. Um título desses,
realmente, já declara, no mínimo, que ocorria abuso sexual na Escola Base, fato que ainda
aguardava a devida comprovação, pois, por mais que fosse a afirmação do delegado, estava
apenas iniciado o inquérito a respeito. Da mesma maneira como poderiam ter sido mais
diligentes na coleta da informação (buscando a verdade), essa diligência deveria estar
expressa também no momento da elaboração das notícias, deixando ao leitor pelo menos a
possibilidade de duvidar da história. Essa falha da imprensa não pode ser imputada a
outrem.

5.2 Assassinato de casal de idosos

Em 17 de novembro de 2006, no bairro de Perdizes, em São Paulo, um casal de


idosos foi assassinado a facadas dentro de sua casa, ao amanhecer, fato que ganhou grande
espaço em diferentes veículos da imprensa. As primeiras notícias sobre o caso ainda eram
muito inseguras141, e traziam o filho do casal como suspeito, como no exemplo abaixo142:

138
TJ/SP -Apelação Cível com Revisão nº 361.477-4/4-00, p. 18 do acórdão.
139
O primeiro jornalista a saber do caso era do setor de “polícia” do antigo “Diário Popular”. Ele percebeu a
fragilidade da história que um policial viera lhe contar e não publicou. Mesmo depois, quando o caso
“estourou”, ele convenceu seus superiores a nada divulgar, provando que era possível evitar a tragédia.
140
As primeiras declarações do delegado não estavam acompanhada de qualquer laudo médico, por exemplo.
141
Acompanhei as notícias sobre o caso, das 10:00 às 16:00 horas do mesmo dia 17 de novembro, nos portais
“Terra”, “UOL”, “iG” e “Estadão”, o que inclui a “Folha Online”, todos veículos de elevada audiência.
142
http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2006/nov/17/32.htm, acesso em 17/11/2006

35
Casal é assassinado a facadas na zona oeste de SP
17/11 - 9:45, atualizada às 11:11

Um casal foi assassinado a facadas hoje de manhã numa casa na Água Branca,
região da Pompéia, na zona oeste de São Paulo. De acordo com o Centro de
Operações da Polícia Militar (Copom), o caso aconteceu por volta das 7 horas. O filho
do casal, um rapaz de 27 anos, saiu da residência todo ensangüentado e pedindo
ajuda. Antes de ser hospitalizado, ele disse que a família teria sido vítima de
assaltantes.
As informações ainda estão bastante desencontradas. Uma das versões dá
conta de que teria ocorrido luta corporal dentro da residência. O rapaz, que seria
portador de deficiência mental, seria o autor do crime. A avó dele só teria escapado da
morte porque conseguiu se trancar no banheiro. Em estado de choque, ela foi
encaminhada ao Hospital São Camilo. Outra possibilidade é de que tenha de fato
acontecido uma tentativa de roubo. A ocorrência será registrada no 23º Distrito Policial
de Perdizes.

Os erros da notícia: a casa não fica na Água Branca (1), o caso aconteceu antes
das 7 horas (2), o filho do casal tem 42 anos (3), não saiu da casa (4), não pediu ajuda (5) e
não tem deficiência mental (6).
Já com informações mais sólidas, o crime foi destaque em diários do dia
seguinte. O jornal “Agora São Paulo” trazia o então suspeito numa foto de capa,
gesticulando, sem camisa, sob a qual vinha o texto143:

Casal de idosos é morto dentro de casa a facadas em Perdizes

Sebastião Esteves Tavares, 71 anos, e sua mulher Hilda Gonçalves Tavares,


68, foram mortos a facadas, ontem, dentro de casa, em Perdizes (zona oeste).
Segundo a polícia, o filho deles, Rogério Tavares, 42, é suspeito, mas a hipótese de
latrocínio também é cogitada. Quando a PM chegou, Rogério resistiu em abrir a porta.
Os policiais precisaram arrombá-la. Vizinhos disseram ter escutado voz feminina
gritando “não quero mais você aqui”. Rogério, porém, também foi ferido a faca, na
nuca, e disse à polícia que a casa foi invadida, versão confirmada pela avó dele,
Izaura, 90.

Nas páginas internas, o “Agora” faz várias menções a Rogério e aponta as


contradições entre a história contada por ele e a avó (que foi a mesma) e relatos de
testemunhas, nenhuma das quais identificadas. O ponto mais forte contra o filho do casal é

143
AGORA SÃO PAULO, 18 de novembro de 2006, p. A1.

36
um pequeno quadro com outra foto sua, que diz “O suspeito, segundo a polícia: o delegado
Carlos Eduardo Silveira, titular do 23º DP (Perdizes), diz que a maioria dos indícios leva
ao filho do casal, (...), como sendo o autor do crime”. Num outro trecho da reportagem,
sem nenhum destaque, ao mesmo delegado se atribui a frase “existem outras
possibilidades, como assalto”. Várias pessoas da vizinhança foram ouvidas, e todas
ressaltaram o bom relacionamento entre pais e filho. “O filho também era tranqüilo,
ninguém consegue acreditar que pode ter sido ele”, afirmou uma delas.
A versão do “Agora” foi muito diferente da constante do jornal “Folha de S.
Paulo”, no mesmo dia144. Ali, o destaque para a história também foi grande, mas o
subtítulo da matéria interna trazia o seguinte: “Filho, que sofreu um corte na nuca, chegou
a ser citado como suspeito pela polícia, que depois recuou e o considerou vítima”. Havia
outro delegado mencionado como fonte, agora do departamento da polícia especializado
em homicídios. Segundo o jornal, a Polícia não mais considerava Rogério suspeito, pois,
na parte da tarde, foram encontrados indícios de que uma quinta pessoa esteve no local.
Ambos os jornais informaram que Rogério é escrevente do TJSP, e ele não é doente
mental, como constou na notícia online. Um trecho da reportagem da “Folha” merece
registro, entretanto: “segundo a vizinha Beatriz, ele é do tipo que abraçava e beijava a mãe
no portão, mas toma medicamentos com freqüência, embora não saiba dizer quais”.
No dia 20 de novembro, o crime era esclarecido com a confissão do assaltante,
que ligou para a polícia e se entregou. Jornais do dia seguinte voltaram a trazer o assunto
na capa145, e houve grande exposição do criminoso confesso, que ainda freqüentaria
espaços na mídia ao participar de uma reconstituição do crime posteriormente146. Foram
três dias para estabelecer a verdade, mas, a essa altura, a fachada da casa onde Rogério
residia já estava pichada com ameaças e ofensas, entre as quais, “assassino”. As
semelhanças com o caso Escola Base são muitas, por isso é interessante buscar novos
pontos de vista.

Questão de tempo

Neste caso, declarações de um delegado logo após visitar o local do crime


gravaram no filho do casal o rótulo “suspeito”. É bem verdade que suspeitar das pessoas

144
AGORA SÃO PAULO, 18 de novembro de 2006, pp. A1 e A3; FOLHA DE S. PAULO, 18 de novembro de
2006, pp. A1 e C5.
145
FOLHA DE S. PAULO, 20 de novembro de 2006, pp. A1 e C6.
146
AGORA SÃO PAULO, 21 de novembro de 2006, pp. A1 e A3.

37
faz parte do trabalho de um policial. Ele provavelmente declarou exatamente aquilo que
estava pensando no momento e a imprensa limitou-se a repetir suas declarações.
Mas e Rogério? Mereceu que “todo mundo” também suspeitasse dele? Caso o
delegado houvesse aguardado até o dia seguinte para se manifestar, jamais a imprensa
poderia ter divulgado que “a polícia suspeita do filho”. Por outro lado, a diferença entre as
matérias do “Agora” e da “Folha”, mostra que a diligência da equipe deste segundo
periódico foi capaz de poupar em grande medida a honra do escrevente.
O noticiário online, porém, como toda cobertura ao vivo, fica refém das
informações “desencontradas” mencionadas na notícia que serviu de exemplo – a não ser, é
claro, que se prefira abdicar da divulgação, o que, às vezes, pode ser pertinente. Na medida
em que o tempo limita as possibilidades da coleta de informação, a cautela deve aumentar,
como forma de manter um padrão médio de diligência. Não custa lembrar que, naquela
analogia entre a condenação judicial e a via mídia, a segunda se dá no breve instante entre
a recepção da mensagem e a adoção de uma postura de reprovação por parte do público.
Outro aspecto importante diz respeito ao nível de interesse público: ele é maior
logo após o acontecimento do crime ou é sempre o mesmo? Muitos veículos de imprensa
colocam a agilidade como meta fundamental147, e de fato há informações cujo
conhecimento tardio é pouco útil, ou cujo conhecimento antecipado pode trazer algum
benefício. Mas, no caso de crimes, preservada a atualidade, nem sempre vale a máxima do
“quanto antes melhor”. Se pensarmos que o caso do assassinato dos idosos somente tivesse
vindo à tona no dia da confissão do culpado, qual teria sido o prejuízo ao interesse público
devido à não publicação da notícia nos dias anteriores? A meu ver, nenhum, pois até se
evitariam alguns enganos.
Sempre que informada da ocorrência de um fato, a sociedade exige conhecê-lo
logo e por inteiro, especialmente quanto aos culpados. Atender essa demanda impulsiona a
imprensa a buscar informações certas e imediatas, pressionando as autoridades para que
lhes apontem logo um culpado ou suspeito, ou utilizando-se dos eventos conhecidos para
tentar descobrir quem cometeu o ilícito. O resultado, muitas vezes, é o da chamada de capa
do “Agora” que, das poucas informações que ali cabiam, e que, logo, deveriam ser as mais
importantes entre as apuradas, trazia uma frase supostamente ouvida por “vizinhos” (“não
quero mais você aqui”). Esse tipo de informação reflete o afã de se antecipar às
investigações, provendo ao leitor-detetive alguma satisfação, pois, na hora, parecia uma
importante pista do que teria ocorrido. Esclarecido o crime, percebe-se que a frase ou não

147
Segundo FOLHA DE S. PAULO, op. cit, p. 14, “o jornalismo sujeita-se a um regime de pressa que faz parte
de sua utilidade pública”.

38
foi enunciada por uma das vítimas ou não naqueles termos, revelando-se informação ou
falsa ou inútil. Por mais que o atendimento dessa necessidade de conhecimento seja uma
questão até de pacificação social, de nada adianta trocar a desinformação por falta de
notícias pela desinformação por notícias inverídicas.
A busca pelo ineditismo e pelo imediatismo às vezes é uma simples questão de
concorrência ou proposta comercial. É preciso atentar, então, para os casos em que a
agilidade serve somente ao interesse jornalístico ou institucional, e perceber em quais o
interesse público aumenta com a publicação naquele momento, aí sim justificando um
abrandamento do dever de diligência por escassez de tempo.

Privacidade e imagem

Talvez por força de algumas notícias inicialmente publicadas, que insinuaram


que Rogério sofria de distúrbios psíquicos, a reportagem da “Folha” publicou um
testemunho de que ele “tomava medicamentos com freqüência”, que é uma informação de
caráter íntimo.
Qual o interesse público nessa informação? Se Rogério fosse efetivamente o
autor dos assassinatos a informação poderia estar ligada de algum modo ao motivo do
crime. O mesmo vale, com muito menor intensidade, se ele era tido como suspeito. Como
ele foi vítima, não é possível enxergar na informação qualquer tipo de interesse público.
A invasão da privacidade do escrevente pode ser considerada pouco intensa,
mas existem casos em que as vidas dos suspeitos, vítimas ou até mesmo testemunhas
acabam inteiramente devassadas pela revelação de dados importantes à atividade da Polícia
naquele momento, mas que acabam não tendo relevância para o esclarecimento do
crime148. Mesmo quando a informação está ligada ao crime, é bom lembrar que as vítimas
nada fizeram para ver diminuído o âmbito de proteção da sua privacidade e, no caso de
homicídio, já nem podem mais se explicar (consideração que também vale para ofensa à
honra da vítima).
Por mais que se alegue que os envolvidos em crimes se tornem pessoas
notórias149, e que a necessidade social de conhecer a realidade confira interesse público a
certos dados privados, a publicação desse tipo de informação não encontra justificativa na
pura curiosidade.

148
V. A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 159-160.
149
V. E. FARIAS, Colisão... cit., p. 153.

39
No caso do uso da imagem, que ocorreu tanto em relação a Rogério quanto ao
assaltante confesso, aplica-se raciocínio semelhante. Além disso, é importante ressaltar que
o uso da imagem nas matérias sobre crimes geralmente tem função ilustrativa, busca
satisfazer a curiosidade do público em relação ao suposto criminoso150, com exceção das
matérias do tipo “procura-se”151.
Nesse sentido, a Lei protege a imagem de crianças e adolescentes envolvidos
em ato infracional152, e as polícias de alguns estados153 hoje contam, em seus regramentos,
com medidas de proteção à imagem dos presos, especialmente contra o hábito, outrora
mais comum, mas ainda existente, de “apresentar” à imprensa as pessoas capturadas.

5.3 Mãe e filha

O portal “Estadão” publicou, em 29 de outubro de 2006, domingo, às 19h19, a


notícia abaixo154:

Mulher é presa por matar filha com leite com cocaína


A polícia fez exames na mamadeira e comprovou que havia cocaína

TAUBATÉ - Uma mulher de 21 anos foi presa em flagrante na cidade de


Taubaté, no Vale do Paraíba, acusada de matar a própria filha com uma mamadeira
de leite misturado com cocaína.
A criança, de um 1 ano e 3 meses, chegou ao Pronto Socorro Municipal levada
pela própria mãe, às 20 horas de sábado.
De acordo com diretor municipal de saúde, Pedro Henrique Silveira, a menina
chegou ao Pronto Socorro com vômito e convulsões. “Ela teve três paradas cardíacas
e uma respiratória”, disse Silveira.
Os médicos que atenderam a criança notaram, durante o tratamento, a
presença do entorpecente nas vias orais do bebê. Eles tentaram reanimar a menina,
que morreu neste domingo, por volta das 9 horas.
Os profissionais avisaram o fato à Polícia Civil que prendeu a mulher em
seguida. Segundo Silveira, a criança havia apresentado o mesmo quadro em duas
outras internações no Hospital Universitário de Taubaté. A mãe sempre dizia que a
criança era muito doente, e por este motivo precisava ser internada sempre.

150
Embora cite um exemplo bastante específico, A. L. M. VIEIRA, op. cit., p. 153 questiona a existência de
interesse público na divulgação da imagem de acusados de crime.
151
V. L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 228.
152
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA (Lei 8.069/1990), arts. 143 e 247.
153
Cf. E. FARIAS, Liberdade... cit., pp. 278 e 288; C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. p. 90.
154
http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2006/out/29/350.htm, acesso em 5/12/2006.

40
A polícia fez exames na mamadeira e comprovou que havia cocaína misturada.
A mãe, até agora, tem o nome mantido em sigilo, vai responder por homicídio
qualificado. A avó materna da criança confirmou que seus três filhos usam a droga. Na
delegacia, ela não sabia explicar o que teria acontecido com a neta. Ela e outras três
testemunhas foram ouvidas no final da tarde.
Estupro – A mãe da criança é a mesma mulher que há 15 dias acusou um
estudante do 5º ano de medicina da Universidade de Taubaté de estuprá-la dentro do
Hospital Universitário da cidade. O caso está sendo investigado pela Polícia Civil e um
exame de DNA pode comprovar a autoria do crime. O suposto acusado teria se
oferecido para fazer o exame e negou ter tido qualquer relacionamento com a mulher.
O estupro teria ocorrido do dia 8 de outubro quando a mulher acompanhava a filha no
hospital.

No dia seguinte, pequena nota em “O Estado de S. Paulo”155:

Mulher dá leite com cocaína e mata a filha

Uma mulher de 21anos foi presa ontem na cidade de Taubaté, no Vale do


Paraíba, acusada de matar a própria filha, de 1 ano e 3 meses, com mamadeira de
leite misturado com cocaína. Ela é a mesma que, há 15 dias, disse ter sido estuprada
dentro do Hospital Universitário.

Em 31 de outubro, no mesmo jornal156:

Mãe que matou bebê com pó é agredida

Presas da Cadeia Pública de Pindamonhangaba teriam espancado ontem de


manhã a mulher presa no domingo, em Taubaté, acusada de matar a filha de 1 ano e
3 meses, ao misturar cocaína à mamadeira da criança. Ela foi internada na Santa
Casa da cidade, com fratura no maxilar e hematomas, segundo a polícia, e
permanecia internada até o fim da tarde.

De acordo com informações do portal “Estadão”, não reproduzidas na versão


impressa, “o espancamento teria ocorrido pela manhã, logo após as companheiras de cela
da mulher terem visto uma reportagem do caso, na televisão”157. O portal voltaria a tratar

155
O ESTADO DE S. PAULO, 30 de outubro de 2006, p. C5.
156
O ESTADO DE S. PAULO, 31 de outubro de 2006, p. C7.
157
http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2006/out/30/532.htm, acesso em 5/12/2006.

41
do assunto no dia 13 de novembro, com a matéria “Juiz aceita denúncia contra mãe
acusada de matar filha”158. Finalmente, no dia 5 de dezembro159:

Laudo diz que não havia cocaína na mamadeira de bebê


Depois de exame preliminar equivocado e da prisão da mãe da menina, Polícia espera análise
das vísceras e do sangue para determinar a causa da morte

TAUBATÉ – O laudo definitivo do Instituto de Criminalística de São Paulo


detectou ausência de cocaína na mamadeira tomada pela menina de 1 ano e 3
meses, que morreu vítima de convulsões e três paradas cardíacas em 29 de outubro,
em Taubaté, no Vale do Paraíba.
A presença da substância entorpecente foi levantada pelos médicos que
atenderam a menina, no Pronto Socorro Municipal de Taubaté. Um exame provisório,
feito pela polícia na língua da criança, havia dado positivo para cocaína. A mãe
Daniele Toledo do Prado, 21 anos, foi presa em flagrante e denunciada pelo Ministério
Público à Justiça. A denúncia foi aceita.
...
Sem se identificar, uma mulher da família de Daniele disse que os parentes
sempre acreditaram que ela não teria feito nada para a filha. “Ela não usava droga.
Queremos descobrir também o que aconteceu. Daniele está com depressão depois
que a filha morreu e perdeu boa parte da visão e do ouvido, depois de ter sido
espancada na cadeia”.

Questão de linguagem

A história se repete: um enredo dramático, um engano da polícia amplificado


pela mídia, uma injustiça irreparável. Por isso, a presente análise levanta a hipótese de que
a atual configuração da linguagem jornalística não comporta a divulgação de fatos envoltos
em incertezas.
A primeira nota divulgada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” seguiu todos os
cânones do jornalismo, mantendo o verbo no condicional, tratando a mulher com
“acusada” e noticiando, corretamente, que ela “foi presa”. Mas o título “mulher dá leite
com cocaína e mata a filha” põe tudo a perder. No título da nota do espancamento, tão
espremido que fez cocaína virar “pó”, de maneira alguma caberia “mãe acusada de matar”.
Um velho mandamento, contido inclusive no manual de redação do “Estado”160, dita que o
título deve conter sempre um verbo no presente. Isso porque o papel que a imprensa

158
http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2006/nov/13/186.htm, acesso em 5/12/2006.
159
http://www.estadao.com.br/ultimas/cidades/noticias/2006/dez/05/2.htm, acesso em 5/12/2006.
160
O ESTADO DE S. PAULO, op. cit., pp. 74-75.

42
assume não é o de retratar o que não ocorreu ou que teria sucedido, mas o que
efetivamente aconteceu. E o fato é que uma vez publicada, a notícia acontece.
Ao apurar uma notícia, o jornalista toma contato com uma série de detalhes
capazes de lhe dar uma noção da consistência ou fragilidade das informações, mas a
padronização textual, a objetividade e distanciamento puramente formais, interferem na
mediação da informação. As regras de estilo colocam no mesmo nível a declaração
convicta de um delegado a um repórter in loco e a afirmação hesitante feita ao telefone
pelo plantonista da “DP”. Na primeira notícia, por exemplo, não se sabe quem foi a fonte e
em que circunstâncias a repórter tomou conhecimento do apurado pela polícia.
Como objetiva alcançar a generalidade da população, a linguagem jornalística
evita os termos técnicos161, tão caros ao Direito, o que está refletido no uso do termo
“comprovar” para indicar o resultado do teste feito na hora pela Polícia. A importância
desse último problema deve ser, contudo, relativizada. É de se questionar, inclusive, se a
estratégia de usar o verbo no potencial162 é hábil a evitar violação da honra. Primeiramente,
porque ser visto como suspeito de crime já ofende a honra. Em segundo lugar, o tempo do
verbo pode não ter tanta relevância assim, porque a linguagem da imprensa é uma
“linguagem de certeza”.
Uma outra maneira de abordar o assunto é pelo viés antropológico apresentado
por Luiz Gonzaga Motta163, segundo o qual as notícias “são uma forma de transmissão
cultural, na qual o fundamento é a reiteração”. Assim, o estrangeiro que abusa de crianças,
o político corrupto, a mãe “drogada” que mata a própria filha, o filho “louco” que mata os
pais, são todas tragédias que se verificam na realidade, mas que também povoam o
imaginário popular, bastando uma insinuação para que desperte uma pesada carga emotiva.
O Direito nada pode fazer para “consertar” essa situação – se é que ela está
errada – uma vez que isso passaria não só por uma reinvenção do jornalismo, mas
principalmente por uma nova postura do público. Mas é importante ter em mente a real
possibilidade de se evitar danos à honra das pessoas mediante intrusões na simples forma
do texto jornalístico, e de repará-los pela contra-publicidade. No caso em tela, isso se
refere ao alcance de soluções como a troca dos termos “mata” ou “matou” por “teria
matado”, ou a indicação de um espaço em branco no jornal para que a acusada exercesse
seu direito de resposta.

161
Cf. O ESTADO DE S. PAULO, op. cit., p. 16.
162
L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 94, relata que essa é uma das formas pelas quais a Corte
Suaprema da Argentina isenta o órgão de imprensa de responsabilidade por notícia inexata.
163
LUIZ GONZAGA MOTTA, op. cit., pp. 14 e 20.

43
Intenções

O resultado final da publicação de uma notícia depende não só dos fatos e das
fontes, mas também do seu tratamento, para o que colaboram em grande medida as
intenções que influenciam escolhas e decisões de jornalistas. Por isso, uma investigação a
seu respeito é sempre válida, ainda que com as reservas que cabem a uma análise
dependente de alguma especulação.
Na visão de Motta, “é como se os jornalistas estivessem sempre à espera de
acontecimentos que apenas vêm preencher os seus moldes ontológicos...”. A essa visão
subjetivista, deve ser somado o viés mais objetivo apresentado anteriormente a respeito da
motivação do relato jornalístico164. Tanto o animus de cada jornalista como as regras a que
se sujeita conformam as intenções por trás dos relatos.
É claro que o caso da mamadeira decorreu de um teste equivocado que
acarretou em prisão, denúncia e o início de um processo-crime. Mas o jornalista não
precisa ser um intermediário passivo da palavra das autoridades. Poderia ter ocorrido à
repórter do “Estadão” perguntar mais a respeito do exame que teria “comprovado” a
presença de cocaína. Ou um seu editor poderia ter desconfiado de um teste imediato e
definitivo, e procurado se informar a respeito. Também caberia estranhar o depoimento da
avó da criança, ou imaginar se os médicos já não estavam de má-vontade com a mulher,
que denunciara (falsamente, insinua a notícia) um seu futuro colega por estupro – tipo de
notícia, aliás, que não se costuma dar sem consentimento da suposta vítima. Mais do que
isso, não ocorreu à reportagem perguntar quais foram os diagnósticos nas duas outras vezes
em que o bebê fora internado com os mesmos sintomas, ou, o que é pior, isso foi omitido.
A questão é: interessava à repórter que a criança não tivesse sido assassinada?
A morte natural de um bebê é sempre fato dos mais lamentáveis, mas não chega a ser
extraordinário a ponto de virar notícia. E assim poderíamos seguir especulando: ao
entrevistar o policial a respeito do teste, ela esperava um “sim” ou um “não”? Ao cruzar
com um médico conhecido no corredor do hospital lhe ocorreria perguntar sobre a
existência de medicamentos que induzissem um falso teste ou detalhes a respeito da
acusação de estupro?
Não se pretende aqui defender que jornalistas devem permanentemente
demonstrar suas intenções165. Mas o animus narrandi, como defesa do jornalista, não pode

164
V. pp. 26 a 29 acima.
165
M. C. CHAPARRO, op. cit., p. 121, defende que “haja a explicitação das intenções, pela evidência das
relevâncias nos elementos de titulação e introdução do texto”, especialmente por motivos ligados ao livre
discernimento da audiência e manutenção dos efeitos da comunicação na esfera dos interesses do público (e

44
ser mera alegação, deve ser demonstrado por atitudes concretas de busca pela verdade e
por um texto fiel, ou seja, pelo cumprimento do dever de diligência.

5.4 Crime sexual

O portal “Terra” publicou, na sexta-feira 12 de maio de 2007, às 6h49 da


manhã, e atualizou às 7h57, uma notícia que acabou não ganhando muito espaço na
imprensa166:

Jovem é preso por fazer sexo com meninas em SP

O operador da Bolsa de Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM&F) Dhaniel


Graziane da Silva Ruggio, 23, foi preso em flagrante na zona norte da cidade no início
da madrugada de ontem, sob a acusação de atentado violento ao pudor. Ruggio
confessou à polícia ter feito sexo com duas meninas, uma de 12 e outra de 15 anos.
Com a mais velha, o operador filmou e fotografou a relação.
Ruggio encontrou as meninas num ponto de prostituição, rua Amaral Gurgel, de
homossexuais no centro da capital paulista na noite de quarta-feira após ter ingerido
bebida alcoólica e ter assistido à partida de futebol de São Paulo e Estudiantes com
amigos em um bar. As meninas disseram à polícia que estavam perdidas, procurando
um ônibus para ir à Ceagesp (zona oeste), onde iriam trabalhar descarregando caixas
de frutas. Depois de oferecer carona às garotas e de convencê-las a entrar em seu
carro, um Mercedes Classe A, Ruggio foi para o Tucuruvi, onde vive em um
apartamento com os pais.
Segundo seu depoimento, no caminho, Ruggio combinou com as jovens que
pagaria R$50 para a mais nova e R$25 para a mais velha para que elas mantivessem
relação sexual com ele. A menina de 12 anos fez sexo oral com o rapaz dentro do
automóvel e foi deixada na estação Tucuruvi do metrô com o celular do operador, uma
garantia de que ele voltaria para pegá-la e pagar o programa. A jovem de 15 anos
seguiu para o prédio de Ruggio.
No prédio, o operador pegou uma filmadora e uma câmera fotográfica digital em
seu apartamento e voltou ao carro, onde a jovem o aguardava. Ruggio praticou sexo
com a menina, gravou a e fotografou vários dos momentos em que estiveram juntos
durante aproximadamente duas horas.
Por volta das 5h, o operador voltou à estação de metrô para reaver seu celular.
A menina de 12 anos foi agredida por Ruggio quando informou a ele que o telefone
havia sido roubado. Algumas pessoas que passavam pela estação chamaram a

não na do jornalista, v. p. 6 acima). Levar ao Direito esse tipo de preocupação deontológica parece
exagerado, mas a colocação é importante quando ajuda a desmistificar o animus narrandi.
166
http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1001477-EI5030,00.html, acesso em 12/06/2006.

45
Polícia Militar que, ao revistar o Mercedes, encontrou a filmadora e a câmera com as
cenas de sexo entre ele e a garota de 15.
O operador foi indiciado por atentado violento ao pudor, segundo o delegado
José Carlos Francoi. Se for condenado, Ruggio poderá pegar uma pena de prisão, em
regime fechado, que varia de seis a dez anos. Ao delegado, as duas meninas
disseram que faziam programas há quase um ano e cobravam entre R$10 e R$15.

Identificação do suspeito

Uma estratégia comum167 para evitar danos a honra e privacidade é a omissão


do nome e caracteres identificadores do acusado de crime. É medida das mais eficazes,
uma vez que impede a colisão com direitos da personalidade simplesmente por ser notícia
despersonalizada.
Com exceção dos casos que ganham extraordinária repercussão, para o público
em geral, não faz a menor diferença se o acusado se chama “José” ou “João”. Mas, para o
acusado, estar identificado significa imaginar que todas as pessoas à sua volta o supõem
criminoso, bem como, em muitos casos, sofrer a repulsa do ambiente social em que
convive. É em relação a esse ambiente que as conseqüências da identificação devem ser
consideradas.
No caso do assassinato do casal de idosos, pouco adiantaria omitir o nome de
Rogério. A morte dos pais, o ferimento na nuca, a descrição do local do crime, tudo isso,
dentro do seu círculo de relacionamentos, levaria a ele de qualquer forma. Já na última
notícia descrita, a omissão de alguns dados do suposto autor teria resultado amplamente
favorável a sua honra, sem qualquer prejuízo ao interesse público, que não está em “quem
fez”, mas sim no que aconteceu. Suponhamos que fosse omitido o modelo do veículo do
acusado e que notícia iniciasse assim:

Um operador do mercado financeiro de São Paulo, de 23 anos, foi preso em


flagrante na zona norte da cidade no início da madrugada de ontem, sob a acusação
de atentado violento ao pudor. Ele confessou...

167
Dentre muitos exemplos estão o ECA (Lei 8.069/1990), art. 143, decisão da Corte Suprema da Argentina,
cf. L. G. G. CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., p. 94, bem como afirmação do desembargador Laerte Nordi,
do TJSP, na Apelação Cível nº 207.773-4 (JTJ nº 251, p. 101), em que um veículo da imprensa foi
condenado a indenizar por publicar acusações que não se confirmaram em inquérito policial: “no caso dos
autos e sem pretender alterar a orientação do repórter, a notícia poderia ter sido veiculada como foi, mas sem
a referência a nomes e apelidos, se o próprio delegado de polícia esclareceu nada haver contra os rapazes”. V.
também, a respeito, S. S. SHECAIRA, op. cit., p. 367.

46
Não está afetado o interesse público, e a notícia não perde qualquer dos seus
atributos de relevância, e já não é mais possível identificar o acusado, preservando-se sua
honra.
A situação muda quando se trata de personalidade pública, especialmente
aquelas que exercem algum tipo de liderança e em cuja reputação as pessoas confiam.
Também existem outras hipóteses em que o interesse público existe também na divulgação
dos acusados, seja para prevenir novos delitos, auxiliar a administração da justiça ou evitar
que a desconfiança da sociedade recaia sobre uma generalidade ou grupo de pessoas ou
instituições.
Um argumento que pode ser levantado é de que a informação do nome dos
envolvidos ajuda a Sociedade a fiscalizar as ações do Estado. Contra ele, está o fato de que
nesse tipo de crime, não existe um acompanhamento constante por parte até mesmo da
imprensa, e que há instituições próprias para este tipo de controle. Não deixa de ser um
argumento válido, entretanto, se existe a suspeita de que o acusado poderia se prevalecer
de relações econômicas ou de poder para se esquivar do inquérito policial.
Embora a não-identificação seja medida eficaz, ela não é muito utilizada, e
existem pelos menos três motivos “jornalísticos” para evitá-la. Em primeiro lugar, quanto
mais detalhes a notícia contiver, maior credibilidade ela desperta. Além disso, a omissão
do nome prejudica a técnica narrativa (na notícia acima, o nome do acusado aparece nove
vezes, e teria que ser substituído por outros termos), e a omissão da imagem dificulta o uso
dos atuais padrões de linguagem da televisão e das revistas. Finalmente, existe uma
sensação de que a imprensa ajuda a “fazer justiça”, e a Sociedade de uma certa forma se
satisfaz com esse tipo de execração. Contudo, nenhuma dessas razões encontra respaldo no
Direito.

Interesse público e interesse do público

Na notícia em tela, o esquema da história é “jovem de classe média é preso por


fazer sexo com meninas e filmar”. Mas poderia ter sido “meninas carregam caixotes e se
prostituem para sobreviver em São Paulo”. O interesse público na história é o mesmo, mas,
dependendo do ponto de vista, a segunda versão coloca os valores mais caros ao interesse
público em evidência, enquanto na primeira ele fica ofuscado por detalhes acerca da
conduta do operador. Da mesma maneira, varia o interesse que cada tipo de abordagem
desperta na audiência.

47
O que vale a pena entender é se a análise do interesse público, para fins
jurídicos, restringe-se ao conteúdo da matéria ou se estende à maneira como está
organizada e o contexto que envolve sua publicação.
Ao se pronunciar no chamado “caso Lebach”168, o Tribunal Constitucional
Alemão fez uma diferenciação entre divulgação de notícias atuais e a repetição de notícias
na forma de documentário, enunciando que a primeira teria mais força no contraste com
direitos da personalidade. O que está por trás disso é que não haveria porque ofender
direitos de, naquele caso, um dos implicados no crime, para se contar uma história já
conhecida.
Essa questão poderia ser abordada de outra maneira, no sentido de se verificar a
“jornalisticidade” da informação. A liberdade de imprensa não confere o seu elevado peso
às informações não jornalísticas, ou pode-se dizer que diminui o interesse público nas
informações “pouco jornalísticas”.
Seguindo o conceito adotado neste estudo, a informação jornalística é aquela
que tem o propósito último e declarado de informar e os atributos da realidade e atualidade.
A idéia da ausência de realidade afasta desde logo a liberdade de imprensa169. O caso
Lebach tanto pode ser visto como forma de dizer que a história carecia de atualidade e era,
por isso, menos protegida, como um exemplo de comunicação que não tinha o propósito
último de informar – pois as pessoas, em geral, já sabiam da história.
Essa segunda afirmação se aplica ao intrincado relacionamento entre interesse
público e interesse do público no chamado fait-divers170, em que o desejo de entreter a
audiência joga o segundo contra o primeiro, quando a necessidade de instigar emoções e
sensações é o principal fator de organização da narrativa, perdendo espaço o interesse
público caso não seja exatamente coincidente com aquela necessidade171.
Em todas os quatro casos analisados até o momento, existe um enredo capaz de
prender a atenção de um leitor, ouvinte ou espectador, com o plus de serem “fatos reais”. A
compreensão de que o interesse público varia não só conforme o assunto, mas também
conforme todo o contexto e a maneira como é abordado, é muito importante quando ajuda
a proteger as pessoas de ofensas à honra em favor do entretenimento e com pequeno ou
nenhum benefício à informação.

168
R. ALEXY, op. cit., pp. 54-55; GILMAR MENDES FERREIRA, in E. FARIAS, Colisão... cit., p. 17
(apresentação).
169
V. p. 18 acima.
170
V. M. MESQUITA, op. cit., p. 18.
171
V. RENITA COLEMAN e DAVID D. PERLMUTTER, Bullets as bacteria: television news magazines´ use of the
public health model for reporting violence, in Journalism: theory, practice and criticism Vol. 6.1, Londres,
Thousand Oaks e Nova Déli, SAGE, fevereiro 2005, pp. 22 e 32; C. M. K. PERUZZO, op. cit., p. 77. S. S.
SHECAIRA, op. cit., p. 361,

48
5.5 O presidente, o banqueiro e a lista

Em 17 de maio de 2006 a revista “Veja”, semanário mais lido do País, trazia a


reportagem “Guerra nos Porões”172, cujo subtítulo era: “O banqueiro Daniel Dantas tem
uma lista com contas em paraísos fiscais que seriam do presidente Lula e do resto da
cúpula do PT”. Dentre as várias polêmicas levantadas pela matéria, a analisada aqui é a
divulgação da suposta lista de contas no exterior, ilustrada por um pedaço de papel
rasgado, com os nomes de sete pessoas, dentre os quais o do presidente, acompanhados de
dois campos propositalmente riscados (“Bank” e “Account no.”) e um valor em dinheiro.
Segundo a revista, a lista chegou a seu conhecimento por iniciativa do
banqueiro, através de um ex-ministro argentino chamado José Luis Manzano. Existia um
acordo para manter seus nomes em sigilo caso fossem comprovadas as informações, mas o
que ocorreu, nas palavras de “Veja”, foi o seguinte: “Por todos os meios legais, Veja tentou
confirmar a veracidade do material entregue por Manzano. Submetido a uma perícia
contratada pela revista, o material apresentou inúmeras inconsistências, mas nenhuma
suficientemente forte para eliminar completamente a possibilidade dos papéis conterem
dados verídicos. Diante de tal indefinição, e tendo em vista que o nome de Dantas voltou a
aparecer na CPI, Veja decidiu quebrar o acordo”, o que, ainda segundo o periódico,
viabilizaria a abertura de investigações oficiais e impediria o banqueiro de chantagear
autoridades.
A divulgação da lista não estava acompanhada de acusação criminal explícita a
nenhuma das pessoas cujos nomes ali estavam, mas pode ser encarada como insinuação da
prática de corrupção ou crime contra a ordem tributária.
Na semana seguinte, a revista voltaria a tratar do assunto, com uma matéria
exatamente sobre a repercussão da notícia anterior e mais explicações sobre a sua própria
conduta173. Destaca-se o trecho abaixo:

Veja não denunciou a existência de contas de petistas e outras autoridades em


paraísos fiscais, ao contrário da versão comprada por jornalistas ingênuos nesta
última semana. Veja informou que um banqueiro poderoso tem em mãos e usa como
instrumento para obter vantagens oficiais uma lista com supostos números de contas
em paraísos fiscais do presidente da República e de autoridades brasileiras no
exterior – isso é notícia. Foi essa a notícia que Veja publicou. A revista deixou claro
que não pôde comprovar a autenticidade dos papéis, que podem ser, todos eles, uma
fraude. Mesmo assim, é custoso acreditar que o banqueiro tenha gasto tanto tempo e

172
VEJA, nº 1.956, Editora Abril, 17/05/2006, pp. 40-45.
173
VEJA, nº 1.957, Editora Abril, 24/05/2006, pp. 50-55.

49
dinheiro na contratação e instrumentação dos melhores espiões internacionais e tenha
saído da operação com um monte de documentos de fantasia. (...) Fosse tudo
fantasia, o ex-ministro José Dirceu teria se curvado aos interesses de Dantas sob a
ameaça do escrutínio da Kroll, como mostra a ata de teleconferência em poder da
Justiça Americana?

A ata, exibida como “a prova da chantagem”, é o relato de uma teleconferência


entre Daniel Dantas e agentes da empresa que ele contratou, lavrado pela própria.

O dever de diligência

“Veja”, declaradamente, publicou material ofensivo à reputação de algumas


pessoas sem ter a confirmação da sua veracidade. Por mais que alegue que “não denunciou
a existência de contas”, a opção pela exibição do recorte de papel, com nomes e valores, ao
invés de simplesmente mencionar a existência do material ou as informações ali contidas
deixa claro o animus da revista. E, mesmo que não houvesse intenção, o efeito foi de
denúncia.
Deixando de lado as inúmeras complicações deontológicas que o caso suscita e,
com isso, a maioria dos detalhes a respeito do tratamento dado às informações, ainda resta
discutir se a equipe de jornalistas do periódico cumpriu o seu dever de diligência, dividido
em busca pela verdade, cautela e relato honesto.
A busca pela verdade deve estar sempre presente, e é composta por uma série
de atitudes que variam segundo as circunstâncias do caso concreto, podendo seu
cumprimento ser muito simples ou muito complexo. Neste caso, tomadas por verdadeiras
as afirmações da revista, foram diversas as medidas adotadas para verificar a autenticidade
do material, ainda que infrutíferas. Mas faltou ouvir o outro lado. Embora também possa
ser relacionada com a cautela, conhecer a versão da parte implicada na notícia é uma
providência que aumenta a quantidade de informação e as possibilidades de conhecer a
verdade. Retomando a analogia com o processo penal, não é apenas o jornalista que tem de
se convencer da verdade e depois “declará-la”. É o público que deve estar bem informado
para exercer livremente o seu convencimento, e restringir as versões do fato é restringir a
possibilidade desse convencimento.
É importante ressaltar que publicar a versão dos acusados não significa aceitá-
las, pelo contrário, certas declarações ou omissões podem aumentar as suspeitas sobre eles.
Um argumento que pode, eventualmente, justificar uma publicação “à revelia”, é de que o
acusado, conhecendo da apuração jornalística em curso, possa tomar medidas que

50
impeçam a publicação da notícia. No caso da lista de contas, isso não parecia possível, pois
a revista já tinha todo o material em mãos, havia feito as perícias, e não havia mais nada
que pudesse ser feito para que as pessoas pudessem reverter aqueles fatos, uma vez que
qualquer atitude em relação às supostas contas não apagaria um histórico anterior. Além
disso, não se vislumbra qualquer medida que pudessem tomar para impedir a publicação, a
não ser, talvez, que tivessem prova concreta e evidente de sua falsidade, o que redundaria
na prevalência da verdade. Finalmente, quanto a outros tipos de articulações que poderiam
prejudicar a apuração da verdade, pouca diferença faria se as pessoas fossem ouvidas um
ou dois dias antes da publicação, pois elas seriam efetuadas logo após a mesma de qualquer
jeito. Já a possibilidade da revista perder a exclusividade das informações não é motivo
que justifique lesão à honra alheia.
A cautela varia segundo o interesse público e a intensidade de eventual ofensa a
direitos alheios – se a intensidade é maior, maior também o risco. Quanto maior o interesse
público, mais se justifica correr esse risco. Se o interesse público é muito elevado, o maior
dos prejuízos é deixar o público sem a informação, abrandando-se a cautela exigível do
jornalista. De outro lado, quanto maior a chance da notícia violar um direito da
personalidade, mais cauteloso deve ser o jornalista.
No caso em análise, a equação se resolve com vistas à posição ocupada pelas
pessoas envolvidas e ao tipo de problema levantado. É freqüente a menção, pela doutrina,
da proteção menos abrangente de honra, imagem, e privacidade que recai sobre as
chamadas “figuras públicas”174, na medida em que põem espontaneamente sua reputação à
prova, expõem sua imagem e parte da sua privacidade. Ou seja, na medida e no sentido da
sua notoriedade, devem tolerar intrusões mais intensas no campo desses direitos do que o
cidadão comum. No que tange às ofensas à honra, também é importante ressaltar que, em
geral, os personagens notórios, especialmente os políticos e os comunicadores sociais, tem
muito mais capacidade de defesa, por uma questão de acesso e domínio, ainda que parcial,
da linguagem da mídia.
Mais do que isso, a vida de certas pessoas é capaz de despertar interesse
público, e, no caso do presidente da República, senadores, ministros e tantos outros
ocupantes de cargos públicos, especialmente os eletivos, esse interesse é evidente. O tipo
de conduta anti-social abordada na notícia de “Veja” é bastante diferente dos das notícias
anteriormente analisadas, e, considerando-se a posição daquelas pessoas no cenário
político, só não é possível dizer que atinge o nível máximo de interesse público porque não

174
São diversas as referências à atividade pública ou notoriedade da pessoa como fator de abrandamento da
proteção a direitos da personalidade, cf. E. FARIAS, Colisão... cit., p. 182, C. L. BUENO DE GODOY, op. cit. pp.
80-87, A. L. M. VIEIRA, op. cit., pp. 163-165 e J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 133-134 e 187.

51
se relaciona diretamente com a gestão da coisa pública. Saber que um político possui uma
conta clandestina no exterior pode influenciar o voto do cidadão, portanto é a própria
democracia que surge como valor por trás do interesse público no assunto. Portanto, no que
toca simplesmente à decisão de publicar ou não, “Veja” não me parece ter sido imprudente.
Finalmente, a honestidade do relato é uma constante no dever de diligência,
uma vez que não existe justificativa para o seu abrandamento em qualquer situação,
mesmo em notícias consideradas pouco importantes ou não-ofensivas. Ao explicar o
processo que envolveu a obtenção do material e as tentativas frustradas de comprovação,
“Veja” permitiu ao leitor ter uma noção da consistência daquela informação, o que
contribui para um relato honesto. Mas a publicação pecou ao misturar notícia e
informação. O trecho separado como exemplo está repleto de opiniões da revista, mas isso
até pode ser considerado normal, uma vez que ela estava explicando sua própria atitude.
Ocorre que o trecho estava misturado com a revelação de fatos, e, ao dizer, grosso modo,
que “achava” que os documentos eram verdadeiros, a revista assumiu como fato que os
espiões da Kroll eram os melhores e que a chantagem teria funcionado, embora a “prova”
disso fosse um documento escrito unilateralmente pela empresa, e o fato de constar de um
processo na Justiça dos EUA não significasse a veracidade do ali contido. Ao noticiar sua
opinião como fato, “Veja” se distanciou do relato honesto.

52
6. CONCLUSÃO

Este trabalho esteve voltado para a melhor compreensão da colisão envolvendo


liberdade de imprensa e direitos da personalidade. Unindo considerações teóricas e práticas
feitas até agora, é possível vislumbrar alguns elementos que para tanto colaboram, o que se
torna mais útil quando ajuda na solução da colisão – que é basicamente rejeitar ou adotar
algum tipo de medida restritiva dos direitos em choque175.
Por isso, será usada como guia nesta conclusão a regra da proporcionalidade,
que goza de ampla receptividade176 e elevada consistência, uma vez deduzida da própria
estrutura dos direitos fundamentais177. Ademais, nada impede a utilização desses elementos
em outros métodos de solução das colisões de direitos fundamentais.
A regra da proporcionalidade aplica-se em três etapas na seguinte ordem:
adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito178. Na etapa da adequação,
destaca-se a importância da intensidade da ofensa, uma vez que as medidas incapazes de
reduzi-la ou anulá-la não são adequadas. Como fator de responsabilização posterior, o
conceito de diligência tem que trazer as exigências minimamente suficientes para que seja
uma forma adequada de proteger direitos da personalidade.
No teste da necessidade, a intensidade atua de outra forma, para verificar se não
existem modos menos ofensivos de levar a informação ao público. A análise do dever de
diligência se inverte, pois quanto mais rigoroso for seu conceito, mais gravosa é a medida
nele fundada, e menor sua chance no teste da necessidade.
Além disso, ganha destaque a verificação do interesse jornalístico179. A medida
que porventura afetar demais os atributos de relevância destrói o interesse jornalístico,
tornando-se pesada a ponto de implicar, na prática, a proibição da notícia como um todo. A
questão é saber se o interesse jornalístico tem alguma importância quando em nada
coincide com o interesse público, mas essa análise cabe mais à parte da proporcionalidade
em sentido estrito.

175
Como honra, imagem e privacidade são atributos e a imprensa é uma atividade, é esta última que tem o
potencial de violar os primeiros, por isso é mais fácil pensar nas medidas restritivas (no sentido mais amplo
possível) de sua liberdade, o que não impede o raciocínio no sentido oposto.
176
O recurso à regra da proporcionalidade é muito comum entre a doutrina nacional, onde aparece também
como “máxima” e, mais freqüentemente, como “princípio”; existem dissonâncias quanto à sua compreensão
enquanto método e efetiva aplicação no Brasil, problema abordado por LUÍS VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, O
proporcional e o razoável, in Revista dos Tribunais, nº 798, São Paulo, abril de 2002, pp. 23-50.
177
Cf. VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, op. cit., pp. 42-43. Uma vez entendidos os direitos fundamentais como
princípios (v. nt. 124 acima), temos que “the nature of principles implies the principle of proportionality and
vice versa”, segundo R. ALEXY, op. cit. p. 66.
178
Cf. R. ALEXY, op. cit. pp. 66-69 e VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 30 e 34-35, que ressalta a
existência de correntes minoritárias que adotam definições parcialmente diversas.
179
V. p. 28 acima.

53
Nesta última etapa, verifica-se a proporcionalidade da medida através do
sopesamento de princípios. Partindo das considerações de Alexy a respeito da “lei do
sopesamento”180, o resultado dessa operação depende, grosso modo, da demonstração de
uma relação entre a importância de cada um dos princípios postos na balança. Prevalece o
princípio considerado mais “pesado”, ou seja, mais importante.
No caso da liberdade de imprensa e honra, imagem e privacidade, são inúmeras
as referências doutrinárias a respeito do sopesamento de princípios como forma de solução
para a colisão ora em exame, ainda que possa variar o método e a terminologia181. Nesse
exercício já muito praticado, a tendência é conferir maior peso à liberdade de imprensa182.
Afirmações desse tipo levam a crer que existe um ponto de partida constante
para o sopesamento entre esses princípios, mas a natureza de cada um deles coloca essa
idéia em xeque. Isso porque, diversamente da liberdade de imprensa, a proteção à honra,
novamente adotada para representar o conjunto, traz em si mesma um valor constante, qual
seja, a honra. Assim, a proteção à honra é igualmente importante qualquer que seja seu
sujeito, impossível que é admitir que existam pessoas mais e menos dignas dessa proteção.
Já os valores que justificam a liberdade de imprensa variam conforme o
conteúdo das mensagens jornalísticas. A plena possibilidade de atuação jornalística possui
uma carga axiológica positiva, mas o valor “liberdade”, numa notícia sobre hospitais, está
ao lado de “saúde pública”, assim como se alinha a diferentes valores em matérias, por
exemplo, sobre futebol, aquecimento global ou animais de estimação. Se os direitos da
personalidade destinam-se diretamente à proteção de pessoas, a liberdade de imprensa
destina-se diretamente à proteção de informações, e, ao contrário de pessoas, é possível
conceber informações mais e menos importantes. Por isso, ainda que se diga que no mais
das vezes a liberdade de imprensa prevaleça, ela não pode ser considerada um princípio
mais forte em si mesmo, porquanto depende dos valores que a justificam em cada caso.
De acordo com o acima exposto, para que prevaleça a atividade de imprensa, a
lei do sopesamento prescreve que quanto maior o grau de detrimento de honra, imagem ou

180
R. ALEXY, op. cit., pp. 102-107, postula a existência da “law of balancing” ( “the greater the degree os
non-satisfaction of, or detriment to, one principle, the greater must be the importance of satisfying the
other”), que define “what has to be shown in order to justify the conditional preferential statement which is
to result from the balancing exercise”.
181
P. ex. J. D. ZELEZNY, op. cit., p. 56, “balancing of interests”; E. FARIAS, Colisão... cit., p. 198 e C. L.
BUENO DE GODOY, op. cit. p. 74, “ponderação de bens”.
182
Cf. E. FARIAS, Liberdade... cit., p. 253 e Colisão... cit., p. 197. J. D. ZELEZNY, op. cit., pp. 56-57, relata a
abordagem adotada pela maioria da Suprema Corte dos EUA: “all parts of the Constitution must be examined
together in relation to one another so as to define the extent and limits of each in harmony with the others.
However, when balancing First Amendment rights against other constitutional rights or obligations, freedom
of expression should begin with extra weight”. V. também VIDAL SERRANO, op. cit., pp. 88-89 e L. G. G.
CASTANHO DE CARVALHO, op. cit., pp. 138-139 e 143.

54
privacidade – o que se avalia pela intensidade da ofensa183 - maior precisa ser a
importância de se garantir a liberdade de imprensa. Para avaliar essa importância, presta-se
o interesse público184 da notícia, o que merece maiores explicações.
O nível de interesse público como critério de preferência é uma forma de dizer
que entre dois direitos subjetivos, um do jornalista ou veículo e outro do personagem da
história, deve prevalecer aquele que mais interessa à Sociedade. Ocorre que, como já
aventado, o interesse público é um conceito aberto e que não simplesmente “existe ou
inexiste”. Concebido como um interesse coletivo geral que visa o bem comum, o interesse
público alcança todos os valores capazes de sustentar a liberdade de imprensa e também
existe na preservação dos direitos da personalidade em geral185. A vantagem de servir
como medida comparativa esbarra na vagueza de sua definição, dependente de um juízo
valorativo, sendo impossível especificá-lo em abstrato.
O que se pode dizer é que os valores que o sustentam estão na substância das
informações, e não no mero atuar da imprensa. Isso passa pela desmistificação das
intenções do jornalista como excludente de responsabilidade, para o que serve o mais
concreto dever de diligência. Quer dizer também que, assim como o desejo de entreter não
exclui o interesse público da informação, o desejo de informar não o cria. Mas a maior
conseqüência dessa afirmação é afastar a defesa da liberdade de imprensa em geral - com o
argumento de que o excesso de rigor sobre a imprensa dificulta sua atuação e prejudica a
Sociedade - como justificativa para a ofensa a direitos alheios nos casos concretos. A idéia
de que a liberdade de imprensa só é “boa” quando atenta ao interesse público muda os
termos da frase “a liberdade de imprensa precisa ser juridicamente protegida porque é boa”
para “a liberdade de imprensa precisa ser juridicamente protegida para que seja boa”.
Assim como a intenção, interesse público não deve ser alegado, mas sim
verificado ou demonstrado segundo o conteúdo da informação. Um exemplo desse tipo de
abordagem é a distinção entre a natureza pública ou privada de pessoas ou assuntos.
Notícias como a publicada por “Veja”, e as outras, objetos deste estudo, não podem ser
tratadas no mesmo nível, pois a proteção dos interesses em jogo na primeira acaba
servindo como desculpa para abusos nas demais.
Embora não se possa dizer que a solução das colisões esteja no relacionamento
entre intensidade, diligência e interesse público, a sua freqüente análise em situações
diferenciadas pode alçá-los à categoria de parâmetros, especialmente úteis na análise de

183
Porque o valor é a própria honra (V. também pp. 23-24 acima).
184
Porque revela valores por trás da notícia e apresenta sua função social (V. também pp. 8-9 e 16 acima).
185
E. FARIAS, Liberdade... cit., p. 30-31, fala do “duplo caráter” dos direitos fundamentais, no sentido de que,
além de possuírem uma dimensão subjetiva, possuem uma dimensão objetiva, havendo um interesse geral da
comunidade em sua consecução, independentemente da dimensão subjetiva.

55
casos concretos pelo Judiciário. Quanto a questões abstratas, envolvendo, por exemplo,
propostas de regulamentação e auto-regulação da imprensa, algumas idéias apresentadas
podem ajudar a verificar se na origem de certos problemas estão atitudes incorretas de
jornalistas ou aspectos estruturais, como as regras de eficiência e as contradições entre uma
linguagem que rejeita incertezas com um tempo de trabalho que as provoca e entre as
finalidades pública e institucional de uma mesma notícia186.
Um traço importantíssimo desse tipo de colisão, quando violados direitos da
personalidade, é a irreversibilidade de seus efeitos (a doutrina é unânime em afirmar que o
dano moral não é propriamente reparável, mas apenas compensável). Por isso, é sempre
melhor que ela não aconteça. Se pensarmos no sistema em vigor no Brasil, o caso Escola
Base mostra que ele não foi capaz de prover as compensações desejáveis. Os casos do
assassinato dos idosos e da mamadeira com cocaína mostram que não impediu a repetição
dos erros. É possível que exista uma relação de causalidade entre a ausência de
responsabilização e a reiteração das falhas, mas essa não é uma conclusão necessária.
Observando-se os problemas ocorridos nos casos analisados, temos que muitos
poderiam ter sido evitados pela observância de regras deontológicas do Jornalismo, ou
seja, se veículos e profissionais tivessem sido mais competentes em seu mister. Existem
muitas formas jurídicas de estimular essa competência, o que nos levaria a questões
abstratas como as já mencionadas, mas também existe a idéia liberal de que a disputa entre
os veículos de comunicação pela preferência do consumidor de notícia exige essa
competência, o que leva a duas novas questões. A primeira delas se relaciona com a
validade de tal argumento diante do tipo de mercado e de empresa jornalística
predominantes no Brasil. A segunda é a que interessa nessa conclusão, pois se relaciona
com o quanto dessa competência é realmente exigida pelo público, ou seja, segundo o seu
interesse187. Confiar nesse tipo de postura crítica da audiência fica mais difícil quando se
pensa no viés diversionista de certos tipos de notícia.
Como se vê, algumas das conclusões acima acabam suscitando outros temas
relevantes, e certamente existem questões atinentes à liberdade de imprensa e seu
relacionamento com a honra, imagem e privacidade das pessoas que ficaram fora do
alcance deste trabalho. O que fica como conclusão final é que o debate tem muito a ganhar
com a aproximação entre Direito e Jornalismo, e uma melhor especificação das condutas,
agentes, interesses e valores que promovem e cercam as ações jornalísticas.

186
V. pp. 28, 37-39 e 42-43 acima. Já pude detectar contradições dessa ordem ao estudar erros de reportagem
no jornalismo online, que apresentou “falta de equilíbrio entre a proposta de serviço, a linguagem e as
preocupações mercadológicas”, cf. PAULO SIGNORETTI DOMINGUES, Em tempo real: frutos verdes do
jornalismo online, TCC, Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2001, pp. 34-37.
187
V. pp. 9, 26-27 e 48 acima.

56
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