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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE DIREITO

Reflexão sobre o sentido da culpa na


Responsabilidade Civil

ANA PAULA DE AQUINO DANTAS


03/28430

Brasília, dezembro de 2007


ANA PAULA DE AQUINO DANTAS

Reflexão sobre o sentido da culpa na


Responsabilidade Civil

Monografia apresentada como pré-requisito


para conclusão do Curso de Graduação de
Bacharel em Direito, da Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília – UnB.
Orientadora: Professora Ana Frazão de
Azevedo Lopes
Faculdade de Direito – UnB.

Brasília, dezembro de 2007


Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 4
CAPÍTULO I – RESPONSABILIDADE ..................................................................... 8
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................... 8
2. A RESPONSABILIDADE CIVIL POR ATO ILÍCITO .......................................................... 10
CAPÍTULO II – CULPA E RESPONSABILIDADE ............................................... 13
1. ASPECTOS HISTÓRICOS ............................................................................................ 13
1.1. Antiguidade...................................................................................................... 13
1.2. Idade Média..................................................................................................... 17
1.3. Idade Moderna e Contemporânea................................................................... 17
1.3.1. Idade Contemporânea: o Direito Francês e o Code Civil de 1804 ............. 19
2. EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA ........................................................................................ 21
2.1. Perfil subjetivo de culpa .................................................................................. 21
2.2. Perfil objetivo de culpa.................................................................................... 27
2.2.1. Culpa in abstrato e culpa in concreto: a culpa objetiva dos irmãos Henri e .
Léon Mazeaud ........................................................................................................ 27
2.2.2. O Abuso do Direito....................................................................................... 30
2.2.2.1. O Abuso do Direito e a Teoria de Raymond Saleilles e de Louis Josserand
................................................................................................................................ 37
2.2.3. Concepção normativa de culpa: as presunções de culpa ............................ 39
3. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS ...................................................................................... 43
CAPÍTULO III – CULPA E RISCO .......................................................................... 47
1. AS TEORIAS OBJETIVAS ............................................................................................ 47
2. A TEORIA DE RAYMOND SALEILLES E DE LOUIS JOSSERAND ................................... 50
3. OUTRAS PERSPECTIVAS OBJETIVISTAS ..................................................................... 52
4. OBSERVAÇÕES CRÍTICAS .......................................................................................... 54
CONCLUSÃO............................................................................................................... 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 59
4

Introdução

O tema da responsabilidade civil tem servido de inspiração para a difusão de


inúmeros estudos no ramo do Direito Privado, na medida das incertezas e variações que
apresenta. A principal razão está no esforço de grande parte dos juristas em compreender o
fundamento da responsabilidade civil face à complexificação da sociedade1, que exige a
readaptação das normas jurídicas às novas situações. Não é à toa que Bochko K. PÉRITCH
consagra a importância do estudo da responsabilidade civil em expressão magnânima: “on
touche le coeur du droit, la base de la morale, l’âme de la vie sociale” (1938, p. 49 apud
LIMA, 1998, p. 16)2.

Como diziam Henri e Léon MAZEAUD, à medida que a civilização se


desenvolve, tornam-se mais e mais complexas as relações sociais, com interpenetração cada
vez mais profunda dos círculos de atividade jurídica. Em tais condições, é inevitável o atrito
de interesses, cada vez mais intenso, desdobrando-se em problemas de responsabilidade civil
(1939, p. 11 apud DIAS, 2006, p. 15).

No fim do século XVIII e início do XIX, o Jusnaturalismo trouxe a filosofia


jurídica e social, na forma que lhe conferiu o primeiro iluminismo, como principal influência
do direito, da legislação e da jurisprudência da maior parte dos povos da Europa. Nessa época,
surgiram as primeiras grandes criações sistemáticas da legislação moderna: o Código
Prussiano de 1794, o Code Civil francês de 1804 e o Código Civil austríaco de 1811.

Tendo como fundamento as teorias ético-sociais – principalmente as pós-


Revolução Francesa -, os programas de codificação foram apresentados como projetos gerais
de uma sociedade, traduzindo a idéia de um direito justo, por refletirem o direito natural
histórico de uma sociedade real.

Portanto, para ser possível a convivência social, a ordem jurídica adotou


para si, como principal objetivo, a tarefa de estabelecer um dever geral de não violação de
direitos de terceiros, uma norma geral de prudente limitação à atividade humana, já que a
ninguém é lícito agir visando apenas aos seus interesses pessoais. A conduta externa do
indivíduo passou a ser disciplinada e limitada pelo Direito, a fim de atender aos interesses

1
Inicialmente, é importante esclarecer que o presente trabalho adota como parâmetro de pesquisa os sistemas
jurídicos da sociedade ocidental francesa, italiana e brasileira.
2
Na tradução livre da autora: “o estudo da responsabilidade civil toca o coração do direito, a base da moral, a
alma da vida social”.
5

alheios e de proteger, com justiça, os direitos de cada um. Nesta seara, a violação de um dever
jurídico constitui um ilícito e, acarretando dano a outrem, torna imperiosa a incidência da
responsabilidade civil. O ponto crucial repousa em saber se a conduta do agente era ou não
justificada, ou seja, para se identificar o responsável, era importante verificar o dever jurídico
violado, quem o descumprira e como.

A conduta permitida seria aquela conduta normal, comum, que os homens


de bom senso, prudentes, probos e equilibrados seguiriam cotidianamente, e que seria
consagrada nos usos e costumes, nos regulamentos, na lei, e que viveria na consciência
jurídica do povo (LIMA, 1998, p. 56). Para tal, dever-se-ia apurar o conflito de inspirações
em que o homem se debatia, entre as várias causas de agir colocadas a sua disposição por
meio de sua consciência (DIAS, 2006, p. 10). Eram investigados os caracteres psicológicos
que revelavam não só a essência moral da responsabilidade, mas, também, o seu fundamento:
a culpa.

Logo, não haveria responsabilidade sem culpa provada e caberia à vítima


comprovar que sofrera um dano em decorrência de um ato, que, por sua vez, estaria vinculado
àquele por meio da culpa. Essa verdade primária, transmitida às várias gerações de juristas,
resistiu às transformações políticas, às revoluções e às codificações.

Contudo, contemplando os novos tempos (final do século XIX),


divergências profundas manifestaram-se no âmbito doutrinário, no sentido de ampliar o
campo de incidência da responsabilidade civil. Esse desencontro colocou em jogo o próprio
fundamento da responsabilidade civil em nome da preocupação de garantir uma melhor
justiça distributiva: falava-se em responsabilidade objetiva. Na verdade, outro não seria o
caminho adotado pelo Direito face às mudanças sociais, decorrentes, em grande parte, do
intenso desenvolvimento industrial, tecnológico, científico, que ilustrou o mundo moderno a
partir do século XIX. Sábias são as palavras de Louis JOSSERAND ao definir a ciência
jurídica como uma ciência em movimento, em evolução, em perpétua transformação como a
sociedade mesma, da qual é reguladora e fruto3:

3
Neste trecho de sua obra “Del abuso de los derechos y otros ensayos”, Josserand consagra o relativismo,
proposto por Albert Einstein nas ciências exatas, nas ciências sociais, dizendo que: “La doctrina de la
relatividad ocupa, desde hace varios años, desde los trabajos de Einstein, uno de los primeros puestos de la
actualidad universal: quisiera mostraros cómo ella merece dominar, seguramente más que em las ciencias
positivas, en las ciencias sociales, y, más concretamente, en la ciencia jurídica, ciencia em movimiento, em
evolución, en perpetua transformación como la sociedad misma, de la cual es a la vez reguladora y fruto”
(1999. p. 1). “A doutrina da relatividade ocupa, há vários anos, desde os trabalhos de Einstein, um dos principais
postos da atualidade univesal: quero mostrar como ela merece ser dominante não só nas ciências positivas, mas
6

El derecho, producto social, es la ciencia social por excelencia, la primera de


todas por su urgencia, su poder de apremio y su virtud de organización; es la
regla social obligatoria, regla cambiante, de aspectos múltiples y sucesivos,
cuyo poder de adaptación es infinito4 (1999, p. 2).

Em virtude dessa flexibilidade, os defensores da culpa empenharam-se em


delinear novos traços para o instituto, elemento de ordem individual e moral, que residia nas
consciências dos homens pensadores e cultos e era considerado o fundamento da
responsabilidade civil (JOSSERAND, 1946, p. 33). Ao mesmo tempo, os defensores da
responsabilidade objetiva sem culpa surgiram no cenário social com a proposta de abstração,
de igualdade e de maior proteção dos cidadãos, seguindo a tendência de melhorar a situação
da vítima do dano, que não poderia mais arcar, sozinha, com as conseqüências do evento
danoso, caso não comprovasse a culpa do ofensor.

Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa


(DIAS, 2006, p. 17), mas a noção de responsabilidade, na tentativa de acompanhar os
paradigmas de evolução da ciência jurídica - determinados por fatores históricos, sociais,
econômicos e morais -, passou de um sistema individualista para um sistema solidarista da
reparação do dano (DIAS, 2006, p. 25). Neste momento, tende-se a objetivar a
responsabilidade civil, sob a alegação de que é infundado manter, nos tempos atuais, um
conceito subjetivo como cerne da reparação de danos. Ou seja, a concepção social veio como
corretivo da concepção individual (MARTON, 1938, p. 305 apud DIAS, 2006, p. 8) e dentro
desse contexto surgiu a noção de risco, em oposição à noção de culpa.

Assim, o objetivo deste trabalho será apresentar a evolução da Teoria da


Culpa dentro da responsabilidade civil extracontratual, demonstrando que a ampliação da
responsabilidade sem culpa não fará desaparecer a responsabilidade por culpa, pois a
tendência em pedir uma reparação é acompanhada pela necessidade de encontrar um
responsável. Contextualizando as modificações doutrinárias conforme as transformações
históricas, sejam elas de caráter social, econômico ou moral, destacar-se-á a importante
repercussão que a culpa ainda tem dentro do sistema da responsabilidade civil.

Inicialmente trataremos de aspectos gerais do instituto da responsabilidade


civil, objetivando estabelecer o seu conceito e os seus pressupostos. Em seguida, abordaremos

também nas ciências sociais e, mais concretamente, na ciência jurídica, ciência em movimento, em evolução, em
perpétua transformação como a sociedade mesma, da qual é reguladora e fruto” (tradução livre).
4
“O direito, produto social, é a ciência social por excelência, a primeira de todas por sua urgência e por sua
virtude de organização; é a regra social obrigatória, em transformação, de aspectos múltiplos e sucessivos, cujo
poder de adaptação é infinito” (tradução livre).
7

a relação entre a responsabilidade e a culpa, momento no qual será feita uma análise mais
detalhada das concepções adotadas pelo elemento culpa ao longo da História, destacando
fatos de sua origem e das atuais tendências doutrinárias nos termos da dinamicidade de seus
parâmetros. Em suma, buscaremos fazer uma reflexão sobre o sentido da culpa na
responsabilidade civil, um dos assuntos mais atuais, mais complexos e mais vivos do Direito
contemporâneo.
8

Capítulo I – Responsabilidade

1. Considerações iniciais

A palavra “responsabilidade” origina-se do latim spondeo, que exprimia,


nos contratos verbais do Direito Romano, o vínculo solene do devedor. Assim, é possível
definir a responsabilidade como a repercussão obrigacional das relações humanas. Inclusive,
em sua etimologia, o termo significa obrigação, encargo, contraprestação.

Com efeito, a responsabilidade expressa o comportamento do homem em


face de uma obrigação ou dever, isto é, traduz a posição daquele que não executou o dever
diante do qual se encontrava, qual seja: o de respeitar as normas impostas pela convivência
social (MARTON, 1938, p. 258 apud DIAS, 2006, p. 5). Nesta seara, a responsabilidade, em
seu sentido lato, pode resultar da violação de normas morais5 e de normas jurídicas.

No caso das normas jurídicas, está-se diante da finalidade primeira do


Direito: a busca incessante pela manutenção da paz social, tendo em vista que a
individualidade do homem provoca atritos entre interesses diversos e cabe à ordem jurídica
imposta, por meio de uma ordem ou comando (dever jurídico), determinar medidas
reguladoras e acauteladoras desses conflitos, já que muitos atos podem ferir o direito de
terceiros, causando-lhes danos. Portanto, quando esse estado de equilíbrio é atingido e o mal
sofrido impele a vítima à reação por meio da proteção jurídica, há que se falar em
responsabilidade jurídica.

Para tanto, o prejuízo que quebra a harmonia da ordem social, pode ter
origens e repercussões diversas. Neste ponto, a responsabilidade jurídica cinde-se em
responsabilidade civil, penal e administrativa6. Por sua vez, a responsabilidade civil divide-se
em contratual e extracontratual, subjetiva e objetiva.

No início da construção do instituto da responsabilidade jurídica, as noções


de responsabilidade civil e penal confundiam-se. Em verdade, quaisquer fatos eram

5
Para apurar a responsabilidade moral há que se indagar o estado de alma do agente: se aí se acusa a existência
de pecado, de má ação, não se pode negar a responsabilidade moral. Não se cogita, pois, de saber se houve, ou
não, prejuízo, porque um simples pensamento induz essa espécie de responsabilidade, terreno que escapa ao
campo do direito, destinado a assegurar a harmonia das relações entre os indivíduos, objetivo que, logicamente,
não parece atingido por esse lado (DIAS, 2006, p. 7).
6
A responsabilidade administrativa refere-se ao exercício irregular das funções desempenhadas pelos agentes
públicos, cuja responsabilização se dá nos termos das regras do Direito Administrativo.
9

abrangidos pela responsabilidade penal. Atualmente, não há dúvidas de que são sistemas
distintos e independentes7, mas que convivem em perfeita sintonia.

A responsabilidade civil possui, primordialmente, caráter reparatório e tem


por finalidade a reparação de lesão a um interesse privado, reintegrando o prejudicado na
situação patrimonial anterior8. Em contrapartida, a responsabilidade penal possui caráter
repressivo e punitivo - que, muitas vezes, resulta na restrição da liberdade do indivíduo -, em
resposta à lesão de interesse pertencente à coletividade, cabendo ao Estado punir o fato
concreto perfeitamente adequado ao tipo penal determinado por lei (nulla poena sine lege)9.

Pode, ainda, a responsabilidade civil ser dividida em contratual e


extracontratual, de acordo com as características da violação do direito10. Se a
responsabilização do indivíduo por prejuízo causado a terceiro decorre do inadimplemento de
uma relação jurídica obrigacional preexistente e prevista em contrato, configurar-se-á a
responsabilidade contratual (ilícito contratual). Se, no entanto, esse dever de indenizar resulta
de lesão a dever jurídico imposto por preceito geral de Direito ou por lei (direitos erga
omnes), e não de descumprimento de contrato, a responsabilidade será extracontratual ou
aquiliana (ilícito aquiliano).

7
Apesar do art. 935. do CC/ 02 prever a independência da responsabilidade civil da criminal, há que se fazer
algumas ressalvas. Segundo Washington de Barros MONTEIRO, “se o ato ilícito praticado pelo agente está
incluído entre as infrações penais, a sentença proferida no juízo criminal faz caso julgado na jurisdição civil;
aquele julgamento é tido como verdade, de sorte que já não mais será possível discutir no cível sobre a existência
do fato, ou sobre quem seja o seu autor. Não seria prestigioso para a justiça decidir-se na justiça penal que
determinado fato ocorreu e depois, na justiça civil, decidir diferentemente que o mesmo não ser verificou.
Acrescenta, no entanto, que não faz coisa julgada no cível a decisão do crime que não se pronunciou sobre a
existência do fato delituoso ou sobre quem seja o seu autor, e apenas absolveu o réu por falta ou deficiência de
provas”.(1998, p. 407-409). Nestes termos, o artigo 935, verbis: Art. 935. A responsabilidade civil é
independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu
autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
8
Apesar de ser mais comumente observada a reparação nos casos de danos patrimoniais, existem hipóteses de
reparação de danos extrapatrimoniais, isto é, casos em que as lesões atingem bens que não têm repercussão
econômica direta na esfera jurídica de uma pessoa, como é o caso da lesão a direitos da personalidade (honra,
integridade física etc.) e a outros interesses jurídicos protegidos (danos ao meio-ambiente, ao consumidor etc.).
Além disso, tal reparação traz consigo o caráter pedagógico e de prevenção.
9
O jurista português Abel de Andrade, explica que “a diferença entre o ilícito civil e o penal acentua-se nas
conseqüências que uma ou outra das violações acarreta: do ilícito civil deriva ou a execução forçada, ou a
obrigação de indenização, ou de restituição, ou a declaração de nulidade do ato; o ilícito penal, podendo produzir
todos esses resultados e conseqüências, provoca, além delas, uma conseqüência especial, a pena. Numa palavra,
o ilícito civil acarreta coação patrimonial e o ilícito penal determina coação pessoal” (DIAS, 2006, p. 14).
10
Atualmente, essa dicotomia é bastante criticada entre os doutrinadores. Para os adeptos da teoria unitária ou
monista, pouco importam os aspectos sobre os quais a responsabilidade civil é apresentada no cenário jurídico,
pois seus efeitos são uniformes (CAVALIERI FILHO, 2002, p. 32). Em ambas, o que se requer para a
configuração da responsabilidade são as mesmas três condições: o dano, o ato ilícito e o nexo causal. Para tanto,
nos códigos de diversos países, inclusive no Brasil, tem sido acolhida a tese dualista ou clássica, apesar da
tendência de alguns outros em se adotar um regime uniforme, como é o caso do Código alemão e o português,
que incluíram várias disposições de caráter geral sob a denominação de “obrigação de indenização”
(GONÇALVES, 2007, p. 27-28).
10

Por último, a responsabilidade civil extracontratual pode ser subjetiva ou


objetiva, segundo o seu fundamento. Em regra, ninguém merece censura ou juízo de
reprovação sem que tenha, em seu agir, faltado com o dever de cautela (CAVALIERI FILHO,
2002, p. 33). Todavia, se alguém agir sem esse dever de cautela e, se dessa falta de atenção
resultar dano a direito de terceiros, pode a vítima requerer a reparação. Neste caso, a falta de
cuidado por parte do agente em sua conduta caracteriza a responsabilidade como subjetiva
(Teoria Clássica).

De outro lado, em certas situações, a reparação do dano dispensa a avaliação


da falta de cuidado na conduta do agente, sendo suficiente a vinculação do ato ao dano. Nesta
hipótese, a responsabilidade é aferida, tão-somente, pela análise do evento e dos seus
resultados. Fala-se, assim, em responsabilidade objetiva (Teoria Objetiva).

A partir dessas classificações, nota-se que o modelo subjetivo concentra a


imputação da responsabilidade na avaliação da conduta humana, cujo referencial é o
descumprimento de dever contido em uma norma social (LOPES, 2003, p. 357). Tal modelo
de responsabilização, portanto, foi construído dentro da perspectiva da prática de um ato
ilícito, isto é, da prática de um ato contrário ao Direito e do qual resulta dano a direito alheio.

2. A responsabilidade civil por ato ilícito

A responsabilidade por ato ilícito é a mais tradicional dentro dos modelos de


responsabilidade e, historicamente, a sua origem está na tradição judaico-cristã, época em que
o ilícito era configurado pela contrariedade consciente e voluntária a um dever contido em um
mandamento (LOPES, 2003, p. 360). Centrado na avaliação da conduta humana, o ato ilícito -
adotado hoje em grande parte das legislações de origem romano-germânica (LOPES, 2003, p.
366) - pressupõe a presença de três elementos materiais: o ato, o dano e o nexo de causalidade
entre ambos.

De acordo com a concepção finalista, o ato é o comportamento humano


11
voluntariamente direcionado ou direcionável a um fim12 (LOPES, 2003, p. 369) e se

11
Voluntariamente indica que o homem tem a discricionariedade na eleição dos fins de suas ações; ele tem a
faculdade de dirigir as suas ações e de colocá-las em prática por determinados meios (LOPES, 2003, p. 362-
364).
12
Em síntese, afirma Antunes Varela: “O elemento básico da responsabilidade é o fato do agente – um fato
dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana – pois só quanto a
11

concretiza por meio de uma ação ou omissão humana, na medida em que se realiza,
respectivamente, por meio de uma conduta positiva vedada pelo ordenamento ou por meio da
não realização de algo determinado em lei. Logo, em razão desse ato, podem advir
conseqüências prejudiciais à esfera jurídica alheia, lesando um bem juridicamente protegido
(direitos subjetivos materiais e imateriais). Neste caso, cabe ao autor reparar o dano13 causado
injustamente.

Entretanto, além dessa conexão entre o resultado e o ato humano como sua
causa (nexo de causalidade), existe outro elemento que caracteriza o ato ilícito, um elemento
subjetivo que representa a expressão do indivíduo em face da ordem normativa: estamos
falando da culpa14 (LOPES, 2003, p. 371).

A culpa, na estrutura do ato ilícito, é o descompasso dos elementos


subjetivo-psicológicos do ofensor em relação aos deveres jurídicos compreendidos
socialmente (LOPES, 2003, p. 371-372). Em outras palavras, pode-se dizer que a culpa é a
conduta direcionada a um fim, mas, que, por falta de previsão de um dano antevisível e por
falta de cuidado, foge à observância do dever de preservar e proteger o bem jurídico alheio, de
não atingir direitos subjetivos de outrem. Tal desempenho, portanto, é contrário ao
normativamente e socialmente estabelecido e, por isso, reprovável.

Em suma, a responsabilidade civil subjetiva por ato ilícito designa o dever


jurídico sucessivo de recompor o dano provocado pela não observância de um dever jurídico
originário. Neste ponto, a exata determinação do agente realizador do ato expõe o problema
da fixação da responsabilidade a fatores de caráter subjetivo, que envolvem a atividade de
consciência do indivíduo, na tentativa de verificar a presença, ou não, da culpa.

Porém, essa vertente de psicologismo é apenas uma das feições que a culpa
adotou dentro da responsabilidade subjetiva. Em verdade, a culpa foi alvo de teses de grandes

fatos dessa índole têm cabimento a idéia de ilicitude, o requisito da culpa e a obrigação de reparar o dano nos
termos em que a lei impõe” (VARELA, 1982, apud CAVALIERI FILHO, 2002, p. 25).
13
O prejuízo é caracterizado pela prejudicial alteração da realidade, alteração esta que pode ser resultado de uma
obra natural ou de uma obra humana. Já o dano é aquele juridicamente reparável e não se confunde com
qualquer prejuízo, ou mesmo com qualquer dano físico, estando ligado à lesão de direito subjetivo, de um bem
juridicamente protegido (LOPES, 2003, p. 375).
14
A culpa em sentido amplo abrange o dolo e a culpa em sentido estrito e consiste na inobservância de um
dever, de modo que o autor não agiu de maneira a evitar o dano ou a lesão a bem jurídico alheio. Mas essa
transgressão pode ser intencional ou negligente. No primeiro caso, nos referimos ao dolo, o qual se caracteriza
pela compreensão do dever e pela intenção na realização do ato proibido, sendo a sua conduta reprovável
socialmente. Inclusive, de acordo com a doutrina italiana, dolo pode ser corretamente definido como a “vontade
do sujeito de causar dano” - “La volontà del soggetto di cagionare il danno” (ALPA e BESSONE, 2001, p. 243).
Já no segundo caso, nos referimos à culpa em sentido estrito, a qual se caracteriza pelo descuido na observância
do dever, na não previsão de dano previsível. No presente trabalho, contudo, trataremos apenas da culpa em seu
sentido estrito (LOPES, 2003, p. 372-373).
12

juristas que, muitas vezes, discordaram na tentativa de definir o que seria esse elemento,
considerado por muitos o fundamento da própria responsabilidade civil. Destarte, a finalidade
dos próximos capítulos será a de traçar o sentido da culpa na medida da evolução da
responsabilidade civil, delineando as características das teorias mais importantes e
significativas, desenvolvidas na tentativa de melhor explicar essa noção e enquadrá-las dentro
dos paradigmas evolutivos do Direito.
13

Capítulo II – Culpa e responsabilidade

1. Aspectos históricos
1.1. Antiguidade

Nos tempos mais remotos, a vingança privada predominava como forma de


solução dos conflitos. Não existiam regras ou limitações, o que dava espaço para que a reação
ao mal sofrido fosse imediata, instintiva e violenta. A vingança era pura e simples, fruto de
uma reação animal, selvagem.

A reparação do mal pelo mal originou a pena de Talião, simbolizada pela


expressão “olho por olho, dente por dente”, na qual relevante era o fato de se vingar (fase
vindicta). Resquícios dessa responsabilização primitiva podem ser encontrados no Código de
Hammurabi - instrumento legal no qual nasceu a idéia de punir o causador do sofrimento - e
na Lei das XII Tábuas (LOPES, 2003, p. 60).

Com o tempo, essa forma de repressão do dano migrou para o domínio


jurídico, quando o poder público passou a intervir, permitindo-a ou excluindo-a se
injustificável. Em antigos diplomas legislativos, o tema fora alvo de especial atenção: o
Código de Ur-Nammu, o Código de Manu, o antigo direito Hebreu e a civilização helênica.
Mas foi o Direito Romano o responsável pelo fornecimento dos subsídios da elaboração
jurídica da responsabilidade civil que veio a se desenvolver no direito moderno (LIMA, 1998,
p. 21).

À vingança privada no Direito Romano sucedeu-se a composição


voluntária. Por meio desta, a vítima entrava em acordo com o ofensor mediante a entrega de
objetos ou importância em dinheiro (poena), em substituição à aplicação de igual sofrimento
ao agente causador do dano (vingança corporal). Após este período, surgiu a composição
tarifada obrigatória, imposta pela Lei das XII Tábuas, que determinava o valor da pena devida
pelo ofensor nos casos concretos (actio de reputis sarciendi). Nesse contexto, a intervenção
do Estado tornava-se obrigatória e a pena perdia o seu caráter predominante de punição para
adotar o caráter de reparação (PEREIRA, 1994, p. 3), ou seja, de ressarcimento de um dano
advindo de um ato ilícito15.

15
No Direito Romano, os ilícitos eram classificados em públicos (crimes) e privados (delitos). No início, o
Estado preocupava-se, apenas, em punir os delitos contra as coisas públicas; mas, já na Lei das XII Tábuas, no
14

No Direito Romano pós-clássico16, o Estado assumiu, em grande parte, a


função de elaborar o direito e, também, a de punir. A responsabilidade civil e a
responsabilidade penal passaram a ser vistas como institutos distintos e paralelos. Apesar
disso, ainda não havia sido apresentado um princípio determinante da responsabilidade civil.

A revolução ocorreu com a Lex Aquilia, a qual proporcionou a expansão do


ilícito civil e a instituição de uma ação contra o autor de danos por ação positiva e direta,
possibilitando a indenização de certos danos (LOPES, 2003, p. 62). Neste contexto, a
responsabilidade civil delitual passou a ser designada aquiliana e, apesar de tratar de casos
concretos e de não ter enunciado um princípio geral acerca da responsabilidade civil, a Lex
Aquilia estabeleceu a figura do damnum iniuria datum, que compreendia o dano a qualquer
coisa alheia, animada ou inanimada.

O damnum iniuria datum, último capítulo da lei, foi aplicado


extensivamente pelos jurisconsultos e pelos pretores, criando o arcabouço teórico para a
doutrina romana da responsabilidade extracontratual. Ele consistia na “destruição ou
deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido a coisa corpore et corpori, sem
direito ou escusa legal (injuria)” (LIMA, 1998, p. 22). Dessa figura originária do damnum
adveio a noção mais geral de prejuízo e “o dano que não causava prejuízo não dava lugar à
indenização” (MAZEAUD ET MAZEAUD, 1938, p. 4 apud PEREIRA, 1994, p. 4).

Porém, para determinar o responsável, além do dano, foi necessário


introduzir um novo elemento à responsabilidade: se um louco ou um menor, desprovidos de
razão, praticam atos danosos a terceiros, não são eles responsáveis nem cometem falta? Tal
questionamento se deu em razão da opinião de que crianças e loucos não eram incluídos nem

período pré-clássico, é possível encontrar indícios de que também havia a preocupação em proteger os interesses
privados. Os delitos privados, por sua vez, eram as ofensas ao cidadão romano ou aos seus bens e cabia ao
prejudicado uma actio para buscar uma poena privata. No entanto, os delitos eram tratados casuisticamente, sem
existir uma regra geral de obrigação de indenizar, determinando as leis penas somente em certos casos. Por
exemplo, na época clássica, os delitos privados resumiam-se basicamente a quatro tipos: furto, roubo, injúria e
damnum iniuria (LOPES, 2003, p. 60-62).
16
O Direito Romano pode ser dividido em três fases: o direito pré-clássico (entre 149 e 126 a.C.), o direito
clássico (até 305 d.C.) e o direito pós-clássico ou romano-helênico (até 565 d.C.). O direito romano pré-clássico
foi marcado pelo formalismo rígido, pelo materialismo e pela atuação dos jurisconsultos na formação do ius
civile - o direito dos cidadãos de Roma -, por meio da interpretação dos costumes e dos preceitos da Lei das XII
Tábuas. Já o direito romano clássico, em virtude da expansão da organização do Estado Romano, foi construído
pelos magistrados, em especial os pretores urbanos e peregrinos, que desenvolveram, ao lado do ius civile, os
conceitos de ius gentium, ius honorarium e ius extraordinarium. Por fim, o direito romano pós-clássico foi
marcado pelo fim da diferenciação entre ius civile, ius gentium e ius honorarium, que deram lugar ao processo
comum, e pelo caráter eminentemente doutrinário e não-formalista, em razão das influências de diversas
culturas, como a grega, a cristã e a oriental. Diante dessas profundas transformações, é claro que o Direito
Romano teve nítida influência no que diz respeito à responsabilidade, que também passou por muitas
modificações em sua evolução em Roma (LOPES, 2003, p. 57-59).
15

na justiça de própria mão nem na punição, ou reparação, a cargo do Estado em razão dos
delitos. Esse foi o primeiro embrião da culpa no direito romano, constituindo aí um de seus
sentidos (LOPES, 2003, p. 65).

Para os juristas clássicos não era comum fazer referência a qualquer


elemento subjetivo; quando havia, aproximava-se do conceito de nexo causal e de
imputabilidade ou, simplesmente, demonstrava-se a desnecessidade do dolo17 – intenção –
como um dos requisitos da ação. Na verdade, no Direito Romano, originalmente, era acessória
a questão de se saber se o autor do dano agiu bem ou mal (LOPES, 2003, p. 65). O mais
importante era o dano em si e não as eventuais circunstâncias em que ele havia sido causado.

Assim, de acordo com a disciplina da Lex Aquilia, bastava o damnum


iniuria datum, delito de natureza essencialmente materialística que dava ensejo a uma ação
penal – a actio L. Aquiliae. Mas, no fim da República, mediante influência grega, foi
determinada a regra “Impunitus est qui sine culpa et dolo malo casu quodam damnum
committit” (Gaius, 3, 211) 18 e a palavra iniuria passou, então, a ser sinônimo de culpa, só que
com um significado mais próximo da imputabilidade ou nexo materialístico de causalidade do
que da culpa como descumprimento de um dever (ROTONDI, 1922, p. 481 apud LOPES,
2003, p. 66).

Dessa forma, para muitos, à Lex Aquilia pode ser atribuída a origem do
elemento “culpa” como fundamental na reparação do dano (PEREIRA, 1994, p. 4). Daí a
concepção de culpa aquiliana enunciada por Gaius, e que pode ser compreendida no seguinte
trecho de suas Institutas:

Is iniuria autem occidere intellegitur cuius dolo aut culpa occiderit; nec ulla
lege damnum quod sine iniuria datur reprehenditur; itaque impunitus est qui
sine culpa aut dolo malu casu quodam damnum committit (Gaius,
Institutiones, III, p. 211) (PEREIRA, 1994, p. 5).

Conforme a tradução: “Matar injustamente significa matar com dolo ou


culpa; nenhuma outra lei pune o dano causado sem injustiça; resta então sem punição quem,
sem culpa nem dolo mal, comete um dano” (PEREIRA, 1994, p. 5). Logo, para que se
configurasse o damnum iniuria datum eram necessários três elementos: 1 – damnum, ou lesão

17
Nessa época, o dolo (dolus) tinha o significado similar ao atual, ou seja, correspondia à violação intencional do
direito, à ação praticada contra a ordem social. Além disso, a má-fé (mala fides) apresentava-se com um
significado semelhante ao do dolo.
18
“Não se pune aquele que causou o dano sem culpa ou dolo mal” (LOPES, 2003, p. 66).
16

na coisa; 2 – iniuria, ou ato contrário a direito; e 3 – culpa, quando o dano resultava de ato
positivo do agente, praticado com dolo ou culpa.

Entretanto, não é consenso geral que a Lex Aquilia tenha introduzido a culpa
como requisito essencial ao direito de reparação do dano causado. Muitos doutrinadores
defendem a inclusão do elemento culpa como imprescindível para a caracterização do delito,
visão corroborada por antigo brocardo: “In lege Aquilia et levissima culpa venit” (a culpa,
ainda que levíssima, obriga a indenizar)19. Outros estudiosos compartilham de opinião diversa
e alegam que a culpa não era elemento constitutivo do delito da Lex Aquilia, tendo sido
introduzida paulatinamente, por força de interpretação conforme as necessidades sociais.
Nesse sentido, afirma Othon de Azevedo LOPES (2003, p. 68):

O texto da Lei Aquilia não falava de culpa, mas apenas do damnum iniuria
datum, ou mais precisamente dano material à coisa. Ao contrário do que se
pode imaginar, o dano iniuria datum não implica nenhuma valoração de
origem psicológica. Iniuria nas fontes romanas mais antigas tem significado
variado, entre injustiça, violência e o que hoje se denomina antijuridicidade
(...) Foi somente no direito justinianeu que a culpa passou a ser um elemento
autônomo e, portanto, sobre o qual se discutia o ônus probatório. A inclusão
da culpa como pressuposto do delito do damnum iniuria datum foi obra dos
compiladores do período pós-clássico. Não foi uma mudança brusca, eis que
a terminologia já era utilizada pelos clássicos, mas apenas nas interpolações
desse último período, foi que a culpa passou a ter o sentido de falta da
devida diligência.

De qualquer forma, não se pode negar que o Direito Romano foi o


responsável pela evolução do instituto da responsabilidade extracontratual ou aquiliana. A
partir dele, deu-se início à reflexão sobre o sentido do elemento culpa, a reparação do dano
sofrido despontou como substituta do objetivismo característico do direito primitivo e da idéia
de pena. No lugar da vingança, em que se perdia de “vista a culpabilidade, para alcançar tão-
somente a satisfação do dano e infligir um castigo ao autor do dano lesivo” (LIMA, 1998, p.
26-27), introduziu-se o elemento subjetivo da culpa e a distinção entre a responsabilidade
civil e penal.

19
Pode-se dizer, todavia, que esse antigo brocardo traduz, em verdade, uma tentativa dos compiladores de
Justiniano de adaptar a sua visão à dos juristas clássicos. Para estes, culpa significava imputabilidade, nexo de
causalidade ou mesmo desnecessidade de dolo; assim, aqueles passaram a interpretar que qualquer culpa, já
compreendida como falta de diligência, ainda que levíssima, dava ensejo à condenação com base na Lei Aquilia.
Ademais, no período justinianeu, houve a tendência de se concentrar toda a casuística no conceito de culpa,
passando, inclusive, a responsabilidade por ato de terceiros a ser determinada à vista desse critério – culpa in
eligendo (LOPES, 2003, p. 69).
17

1.2. Idade Média

Essa noção inicial desenvolvida pelos romanos foi introduzida no conceito


de responsabilidade civil construído durante a Idade Média, dentro do Direito Comum - como
ficou conhecido o antigo direito europeu. Com as Universidades, o Direito Romano, por meio
da redescoberta do Corpus Iuris justinianeu, voltou a ocupar lugar de destaque nos estudos
jurídicos, em particular, naqueles relativos ao ressarcimento do dano.

Sob a influência do Direito Canônico e mediante o trabalho dos glosadores,


houve a expansão de alguns conceitos, especialmente o de ação aquiliana, que passou a sofrer
progressivas restrições em seu caráter penal, a fim de que fosse adaptada aos novos princípios
e à mentalidade da época. O direito comum medieval transformou a ação aquiliana em um
instituto mais abstrato, aproximando-se, cada vez mais, da constituição de uma regra geral de
ressarcimento do dano culposo e ilícito. Admitia-se, por exemplo, o uso da ação aquiliana no
caso de responsabilidade por omissão, exigindo-se, claramente, a culpa como elemento
subjetivo, mesmo que na modalidade levíssima.

Assim, no Direito Comum, foi sendo moldada uma regra geral de


responsabilidade civil, desvinculada do casuísmo e da taxatividade do Direito Romano, e,
nesse contexto, a idéia de que qualquer dano causado com culpa dava ensejo à reparação e
não mais à pena solidificou-se (LOPES, 2003, p. 134).

A partir dessas primeiras formulações, foi possível que, tempos depois, no


início da Escola do Direito Natural e das Gentes, Hugo Grócio (1583-1645), o verdadeiro
fundador do jusnaturalismo moderno, enunciasse com clareza a regra geral de ressarcimento
do dano causado culposamente.

1.3. Idade Moderna e Contemporânea

O direito natural é uma tradição cultural que se mantém desde os inícios da


filosofia helenística até à atualidade (WIEACKER, 1980, p. 280). Adotado pela Igreja e
inserido na escolástica do século XIII, o direito natural, depois das lutas religiosas do início da
Idade Moderna, emancipou-se da teologia moral face à nova imagem fisicalista do mundo: os
seus postulados deixaram de se fundamentar na vontade do Criador para se basearem nas
necessidades da razão e da experiência da realidade (WIEACKER, 1980, p. 12).
18

A época do jusnaturalismo, que compreende dois séculos (1600-1800),


trouxe a filosofia jurídica e social, na forma que lhe conferiu o primeiro iluminismo, como
principal influência do direito, da legislação e da jurisprudência da maior parte dos povos da
Europa. Não é à toa que as primeiras grandes criações sistemáticas da legislação moderna
datam, principalmente, do fim do século XVIII e início do XIX: o Código Prussiano de 1794,
o Code Civil francês de 1804 e o Código Civil austríaco de 1811.

Tendo como fundamento as teorias ético-sociais – principalmente as pós-


Revolução Francesa -, o jusnaturalismo apresentou os programas de codificação como
projetos gerais de uma sociedade, os quais traduziram a idéia de um direito justo, por
refletirem o direito natural histórico de uma sociedade real.

Seguindo esses padrões, a responsabilidade passou a ser interpretada


segundo parâmetros construídos a partir de uma razão individualista, metodológica e
sistemática, cuja preocupação centrava-se no indivíduo e na construção de sistemas
universalizantes. Assim, os códigos jusnaturalistas traziam como um de seus preceitos a
obrigação geral de indenizar o dano em razão de ato ilícito.

O direito penal e o direito civil ganharam novas abordagens a partir da


revisão de todo o conhecimento proporcionado pelo Direito Romano, pelo Direito Canônico e
pelos costumes, assim como a responsabilidade civil foi separada definitivamente da
responsabilidade penal. A responsabilidade civil transformou-se, inclusive, em instrumento
para assegurar a proteção, a igualdade, a acumulação de riqueza e o prazer dos indivíduos,
tendo como uma das preocupações centrais a definição de culpa, que deixou de ser o
rompimento de um pacto com um ser transcendente, conforme estabelecia a concepção
judaico-cristã, para ser o rompimento com a própria sociedade (LOPES, 2003, p. 371).

O damno per iniuria dato foi redefinido por Grócio como regra geral de
indenizar por dano causado culposamente, sendo que a eqüidade e o caráter meramente
ressarcitório do dano mereceram lugar de destaque. Para o jusnaturalista, havia três fontes de
obrigações: o pacto, a lei e o dano (LOPES, 2003, p. 158-162). Este último, decorrente de
uma culpa em um fazer ou omitir, abrangia danos materiais, pessoais e morais e consistia,
portanto, na subtração patrimonial ou na lesão no corpo, na reputação ou na honra, incluindo,
ainda, os frutos que seriam obtidos imediatamente após o evento danoso.

A obrigação de reparar o dano surgia para o seu causador, o mandante,


aquele que prestasse consentimento, o auxiliar ou quem de qualquer modo houvesse
19

participado do delito, bem como para aquele que tivesse o dever de evitar o dano ou prestar
auxílio à vítima. Em caráter subsidiário, também estava obrigado a reparar o dano aquele que
aconselhasse, acobertasse ou aprovasse o evento danoso.

Dessa forma, a responsabilidade civil na visão jusnaturalista “revelou-se


como a formulação de um extenso rol de pessoas obrigadas a indenizar por culpa, ou seja, por
um dever de respeitar o direito alheio” (LOPES, 2003, p. 162); revelou-se como expressão do
princípio geral de reparar o dano por culpa própria.

Para Grócio, fundador da Escola do Direito Natural, o direito era a


qualidade moral correspondente à pessoa para possuir e utilizar algo justamente – jus est
qualitas moralis personae competens ad aliquid habendum vel agendum (1925, p. 47 apud
LOPES, 2003, p. 161). Em verdade, consistia “em abster-se do bem alheio, e restituir ou
entregar o proveito que dele se retirou; em manter a palavra dada; em reparar o dano causado
por culpa própria; e em que toda violação dessas normas merece ser apenada, inclusive pelos
homens” (LOPES, 2003, p. 161).

Enfim, como assevera Franz WIEACKER, o jusracionalismo serviu de


alicerce para a racionalização e sistematização do direito comum europeu, e as codificações
espelharam essa transformação (1980, p. 12). Porém, dentre os códigos citados outrora, ao
Code Civil francês de 1804 pode-se atribuir o trabalho de aperfeiçoamento da Teoria da
Responsabilidade Civil.

1.3.1. Idade Contemporânea: o Direito Francês e o Code Civil de 1804

Na França, o jusracionalismo fundamentou o Estado Moderno e a sua ordem


jurídica. Tal ideologia fomentou a paixão burguesa pela liberdade, que culminou na
Revolução Francesa de 1789 e da qual é resultado o Code Civil francês de 1804 - também
conhecido por Código Napoleão -, que substituiu o antigo particularismo feudal por um
direito geral dos franceses baseado na razão.

De acordo com Franz WIEACKER, o Code Civil francês é um código de


direito privado de primeira plana e o seu sucesso mundial se deve ao enorme impacto formal e
de conteúdo, cuja estrutura rigorosa e transparente, de linguagem clara, é representada por
normas jurídicas dotadas de racionalidade e razoabilidade (1980, p. 391). Desse modo, não
20

poderia esse perfil vigoroso deixar de influenciar o campo da responsabilidade civil, um dos
assuntos de maior repercussão na vida social.

Com o Código Civil francês20, positivou-se uma regra geral de


responsabilidade civil, permitindo a inclusão do elemento culpa de forma definitiva na
estrutura do diploma; ela passou a ser, na verdade, o núcleo essencial da responsabilidade
civil. Pela literalidade da lei, os únicos elementos do ato ilícito pareciam ser, tão-somente,
dois: a culpa e o dano. Inclusive, “para boa parte da doutrina francesa, a própria ilicitude
adviria da culpa” (LOPES, 2003, p. 230).

O artigo 1382 enunciava um princípio geral que determinava a obrigação de


reparar todos os danos que uma pessoa causasse à outra por sua culpa: “Tout fait quelconque
de l´homme, qui causae à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à
le réparer” (PEREIRA, 1994, p. 6)21. Esse princípio representou, na verdade, a generalização
do princípio aquiliano de que a culpa, ainda que levíssima, obrigava a indenizar - in lege
Aquilia et levissima culpa venit (GONÇALVES, 2007, p. 8). Nestes termos, os irmãos
MAZEAUD homenageiam a conquista francesa:

A Lei Aquilia nunca pode abranger senão o prejuízo visível, material,


causado a objetos exteriores, ao passo que daí em diante se protege a vítima
também contra os danos que, sem acarretar depreciação material, dão lugar a
perdas, por impedirem ganho legítimo. A actio doli exigia a culpa
caracterizada. No direito francês evoluído, a reparação independe da
gravidade da culpa do responsável (1938, p. 38 apud DIAS, 2006, P. 30).

O Code Civil francês trouxe, no artigo 1382, o elemento faute como


fundamento do dever de reparar o dano, isto é, como sinônimo de culpa - Tout fait quelconque
de l´homme, qui causae à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à
le réparer. Porém, o uso do termo faute, que significa falta, erro, descuido (BURTIN-
VINHOLES, 1991, p. 210-211), provocou controvérsias doutrinárias. O problema era definir
culpa com base nesse vocábulo, extremamente abrangente22, sem causar confusão entre
responsabilidade jurídica e responsabilidade moral.

20
Também foi positivada a distinção entre os delitos – danos intencionais – e os quase-delitos – danos culposos.
21
“Art. 1382 – Todo ato, qualquer que ele seja, de homem que causar a outrem um dano, obriga aquele por culpa
do qual veio ele a acontecer, a repará-lo”.
22
Para certos autores, o termo faute adotava um perfil em que dois aspectos se reuniam: um objetivo, que
significava a violação de um dever, e outro subjetivo, que indicava a própria culpa. Em outras palavras, faute
designava antijuridicidade e culpabilidade (KÖTZ, Hein; ZWEIGERT, Konrad. Introduzione al diritto
comparato. Vol. II. Milão: Giuffre, 1995).
21

Em outros artigos23, cristalizaram-se conceitos que repercutiram em


legislações de todo o mundo, tais como a separação da responsabilidade civil (perante a
vítima) da responsabilidade penal (perante o Estado) e a distinção entre culpa delitual e culpa
contratual. Todavia, a grande colaboração do direito francês e do Código Napoleão foi, sem
dúvida, determinar que a responsabilidade civil se fundava na culpa (GONÇALVES, 2007, p.
8).

De qualquer forma, concluiu-se que não era possível existir


responsabilidade sem um ato voluntário e culpável. Esse entendimento foi disseminado por
vários ordenamentos jurídicos, todos eles inspirados na noção de que não há responsabilidade
sem culpa - pas de responsabilité sans faute. O foco da responsabilidade encontrava-se no
agente provocador do dano.

2. Evolução doutrinária
2.1. Perfil subjetivo de culpa

Depois da edição do Code Civil francês de 1804, que representou a


organização técnica da responsabilidade civil e que trouxe ao mundo jurídico a noção de
culpa, por meio da expressão faute, intensificou-se a expansão dos estudos acerca da
responsabilidade civil. Influenciadas pelas transformações sociais, econômicas e morais, as
regras de conduta foram positivadas, mas a culpa, “vinda da moral para o direito não pôde

23
“Article 1383: Chacun est responsable du dommage qu'il a causé non seulement par son fait, mais encore par
sa négligence ou par son imprudence”. Na tradução: “Art. 1383 – Toda a pessoa é responsável pelo dano que
causou não somente por ato seu, mas ainda por sua imprudência ou por sua negligência”.
“Art. 1384 – Toda a pessoa é responsável não somente pelo dano que causou por ato seu próprio, mas ainda por
aquele que foi causado por ato de pessoa pela qual devia responder ou por coisas que estão sob a sua guarda”.
Nesse artigo, o Código Napoleão solidificou a responsabilidade civil por ato de terceiros aos que tivessem o
poder-dever de guarda e vigilância. Ainda em relação ao artigo 1384, há que se notar, conforme determinado no
próprio Código Civil francês: “On est responsable non seulement du dommage que l'on cause par son propre
fait, mais encore de celui qui est causé par le fait des personnes dont on doit répondre, ou des choses que l'on a
sous sa garde. Toutefois, celui qui détient, à un titre quelconque, tout ou partie de l'immeuble ou des biens
mobiliers dans lesquels un incendie a pris naissance ne sera responsable, vis-à-vis des tiers, des dommages
causés par cet incendie que s'il est prouvé qu'il doit être attribué à sa faute ou à la faute des personnes dont il
est responsable. Cette disposition ne s'applique pas aux rapports entre propriétaires et locataires, qui demeurent
régis par les articles 1733 et 1734 du code civil. Le père et la mère, en tant qu'ils exercent l'autorité parentale,
sont solidairement responsables du dommage causé par leurs enfants mineurs habitant avec eux. Les maîtres et
les commettants, du dommage causé par leurs domestiques et préposés dans les fonctions auxquelles ils les ont
employés. Les instituteurs et les artisans, du dommage causé par leurs élèves et apprentis pendant le temps qu'ils
sont sous leur surveillance. La responsabilité ci-dessus a lieu, à moins que les père et mère et les artisans ne
prouvent qu'ils n'ont pu empêcher le fait qui donne lieu à cette responsabilité. En ce qui concerne les
instituteurs, les fautes, imprudences ou négligences invoquées”. Disponível em <http://www.legifrance.gouv.fr>.
Acesso em 14 de novembro de 2007.
22

adquirir a precisão técnica de certos termos jurídicos” (RIPERT, 2000, p. 206). Como
constataram Guido ALPA e Mario BESSONE: “L’identificazione del concetto della colpa
costituisce senz’altro uno dei problemi più gravi della disciplina della responsabilità civile”
(2001, p. 243)24.

Essa dificuldade de se precisar satisfatoriamente o conceito de culpa serviu


de base para a eclosão de diversas interpretações, inclusive antagônicas, das quais resultaram
as mais importantes teses do Direito Privado contemporâneo no âmbito da responsabilidade
extracontratual, como a do perfil subjetivo da culpa.

Segundo a doutrina italiana, em matéria de culpa, não se pode deixar de


contar com a referência à realidade psicológica do sujeito (aspecto metajurídico), um
complexo intrínseco do componente empírico e normativo, subjetivo e objetivo:

(...) in materia di colpa “non si può contare su un sicuro riferimento alla


realtà psicologica (metagiuridica); che anzi si ha l’impressione di trovarsi –
per il complesso intrico di componenti empiriche e normative, soggettive ed
oggetive – al cospetto di un dato primordiale ed irriducibile nella valutazione
della condotta umana; dal quale dunque un ordinamento dei rapporti
intersoggettivi non può certo prescindere, ma che per nulla o male, poi, si
presta ad essere risolto in termini cognitivi” (SCOGNAMIGLIO apud ALPA
e BESSONE, 2001, p. 243)25.

Assim, na busca pela definição de culpa, é possível distinguir, de acordo


com os autores italianos Guido ALPA e Mario BESSONE, duas correntes fundamentais: uma
que exprime o aspecto psicológico (indirizzo psicologico) e outra que exprime o aspecto
normativo (concezione normativa). A primeira vê na culpa um fato exclusivamente
psicológico, um estado de ânimo que integra, subjetivamente, o fato antijurídico. A segunda,
pelo contrário, identifica a culpa na simples transgressão da norma, sem resguardo algum do
aspecto subjetivo do comportamento, retratando o aspecto objetivo do comportamento, que se
traduz na violação de uma regra de conduta (2001, p. 243).

O aspecto psicológico traz o caráter da representação do evento danoso


(rappresentazione) e propõe o termo da previsibilidade (ou da previsão), da possibilidade de
se conhecer e de ter consciência do dano, decorrente da voluntariedade de sua conduta. Aqui,
a noção de culpa adota um perfil subjetivo e é vista como o defeito de representação, ou seja,
24
“A identificação do conceito de culpa constitui um dos problemas mais graves da disciplina da
responsabilidade civil” (tradução livre).
25
“Em matéria de culpa, não se pode deixar de contar com a referência à realidade psicológica (metajurídica),
que pode ser vista como um complexo intrínseco do componente empírico e normativo, subjetivo e objetivo, um
aspecto de um dado primordial e irredutível na voluntariedade da conduta humana” (tradução livre).
23

um defeito na antecipação mental das conseqüências do ato, na eleição de meios destinados a


produzir tais conseqüências, na ordenação real dos meios em função das conseqüências
mentalmente antecipadas e, em conformidade com a antecipação mental, na realização efetiva
do ato (LOPES, 2003, p. 368).

Todavia, não basta a constatação genérica desse defeito. Há que se


estabelecer o porquê e em que limite pode-se falar de defeito de representação. Conforme
lecionaram os autores italianos, o defeito é aferido de acordo com o dever de fazer todo o
esforço necessário para prever o evento lesivo – “dovere di fare tutti gli sforzi necessari per
prevedere” (2001, p. 245). Posto isso, a culpa estaria justamente no defeito desse esforço e
dessa tensão na vontade, fatores que determinam o conceito de diligência.

Nota-se, deste modo, que, na culpa, a vontade é dirigida à conduta e não se


questiona o fim determinado, sendo os limites da ação, ou omissão, respeitados. Para tanto, o
resultado pode vir a acontecer e, a despeito de sua involuntariedade, deverá ele ser previsto
pelo agente, isto é, ser representado ou mentalmente previsto (culpa com previsão ou
consciente). Não sendo previsto, o resultado terá que ser previsível, o que significa dizer que o
limite mínimo da culpa é a previsibilidade. Em suma, o agente terá que agir com todo o
esforço necessário para prever a ocorrência do dano; ele tem que ser diligente em suas ações.

A previsibilidade, como já definida, é a possibilidade de previsão, de se


conhecer e de se ter consciência do evento danoso; apesar de não previsto, não antevisto, não
representado mentalmente, o resultado poderia ter sido previsto e evitado (CAVALIERI
FILHO, 2002, p. 47). Entretanto, a configuração da culpa depende dessa previsibilidade de
modo específico, atual, presente, conforme as circunstâncias do momento da consumação da
conduta.

O elemento subjetivo da culpa reporta-se ao momento da ação no sentido do


sujeito ser dotado da capacidade de entender e de querer: questiona-se se o sujeito tem a
faculdade mental de ordenar a voluntariedade do ato que comete e de autodeterminar a
decisão, tendo em vista o seu estado, o seu desenvolvimento psicológico e físico. Por isso, é
considerado um reflexo da imputabilidade, pois quem não tem essa capacidade, não responde
pela conseqüência do fato danoso26. Assim explica Antonio JANNARELLI ao dissertar sobre
o Código Civil italiano:

26
O princípio da não imputabilidade ao sujeito incapaz de entender e de querer no momento em que comete o
fato danoso não comporta o sacrifício total e definitivo da posição de dano. Por exemplo, a sustentação da
24

Nella fattispecie contemplata nell’art. 2043, l’elemento soggetivo assume


um rilievo centrale per via del richiamo alla colpa e al dolo. In coerenza com
questi dati, il códice civile richiede che al momento dell’azione il soggeto sia
dotado della capacità di intendere e di volere. L’art. 2046 dispone che
“non risponde delle conseguenze del fatto dannoso chi non aveva la capacità
d’intendere e di volere al momento in cui lo ha commesso” (2004, p. 602)27.

Porém, os caracteres da previsibilidade e da possibilidade de se conhecer o


dano não excluem o sujeito de reparar o evento danoso: há, ainda, o conceito de evitabilidade
do dano. Para se configurar a culpa do agente, deve-se estabelecer se o dano, previsível e
conhecido, poderia ter sido evitado, isto é, se o agente poderia conhecer ou prever a causa
estranha que provocou o evento danoso e, assim, evitá-lo:

(...) Essere in colpa significa cioè: essere “in grado” di conoscere o


prevedere la causa estranea dell’evento dannoso.
Essere “in grado” esprime l’atteggiamento – diciamo così psicologico – del
soggetto per ciò che attiene alla “possibilità” di prevedere ed evitare .
In questo senso è in colpa chi non ha evitato il danno che, essendo la causa
del danno conoscibile o prevedibile, avrebbe potuto evitare (MAJORCA,
1960, p. 572-573 apud ALPA e BESSONE, 2001, p. 246-247)28.

Fala-se, nesse ponto, da evitabilidade porque, se o resultado foi previsto,


qual a razão para não ter o agente evitado? E, se era pelo menos previsível, por que o agente
não o previu e, conseqüentemente, o evitou?

Trata-se, aqui, da falta de cautela, atenção, diligência e cuidado exigidos


para que o agente, na situação em concreto, pudesse evitar o evento danoso. Em outras
palavras, a culpa implica a violação do dever de previsão de certos fatos ilícitos e de adoção
das medidas capazes de evitá-los. Essa violação do dever de cuidado, por sua vez, pode ser
expressa por meio da imprudência, da negligência e da imperícia: “si parla di colpa quando
l’evento lesivo, anche se previsto, non è voluto e si verifica a causa di negligenza, o

incapacidade de entender e de querer não exclui a imputabilidade do sujeito quando tal estado de incapacidade se
deu em razão do comportamento culposo deste, como a embriaguez (JANNARELLI, 2004, p. 603).
27
“Na disciplina do artigo 2.043, o elemento subjetivo assume posição central por meio da culpa e do dolo. O
Código Civil reporta-se ao momento da ação no sentido do sujeito ser dotado da capacidade de entender e de
querer. O artigo 2.046 determina que ‘não responde pela conseqüência do fato danoso quem não tem a
capacidade de entender e de querer no momento da prática daquele’” (tradução livre).
28
“Dizer culpa significa conhecer ou prever a causa estranha do evento danoso. Tal possibilidade de prever e
evitar expressa um elemento psicológico do sujeito. Assim, incorre em culpa quem não evita o dano cuja causa
era conhecível e previsível, a ponto de se poder evitar” (tradução livre).
25

imprudenza o imperizia ovvero per inosservanza di leggi, regolamenti, ordini e discipline”


(JANNARELLI, 2004, p. 603)29.

Daí se dizer que o defeito do esforço necessário para prever o evento lesivo,
isto é, o defeito dessa diligência, constitui a negligência, a qual, em termos de previsibilidade
e de previsão, é um defeito de comportamento em face da omissão do agente: “La diligenza è
il criterio che stabilisce il modo di essere ‘soggettivo’ della ‘impossibilità’ di prevenirei il
danno. È ‘in colpa’, pertanto, chi è ‘in grado di prevenire il danno usando una certa
diligenza’” (MAJORCA, 1960, p. 572-573 apud ALPA e BESSONE, 2001, p. 247)30.

Em síntese, a conduta negligente é aquela praticada com falta de atenção, de


reflexão, traduzida numa espécie de preguiça psíquica, em decorrência da qual o agente
deixou de prever o resultado que podia prever e devia ter previsto. A conduta imprudente é
aquela que o indivíduo pratica sem as cautelas necessárias, precipitando-se. Já a conduta
praticada com imperícia representa a falta de aptidão técnica, constituindo a culpa
profissional.

Em face do exposto, é interessante notar que juristas de escol apoiaram-se


nessa concepção de culpabilidade, concentrando-se no agente ativo do evento lesivo, na
medida em que enfatizaram o aspecto subjetivo, o elemento volitivo, individual de cada
sujeito, ou seja, se o agente podia prever e evitar o dano, se assim desejasse e agisse
livremente.

Dentre os juristas franceses, René SAVATIER aderiu a essa corrente e


defendia que a culpa era “a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar”
(1951, p. 4 apud GONÇALVES, 2007, p. 17). Entendia que o fundamento do conceito de
culpa encontrava-se na distinção entre delito e quase-delito, ou violação voluntária e
involuntária de um dever. Assim, se conhecia efetivamente o dever e o violou
deliberadamente, o autor cometia um delito civil ou, em matéria de contrato, agia com dolo
contratual. Se a violação do dever foi involuntária, podendo conhecê-la e evitá-la, haveria
culpa simples; fora destas matérias contratuais, denominava-se quase-delito (SAVATIER,
1951 apud PEREIRA, 1994, p. 67).

29
“Fala-se em culpa quando o evento lesivo, ainda que previsto, não é querido e quando se verifica a causa de
negligência, imprudência ou imperícia pela inobservância de lei, regulamento, ordem e disciplina” (tradução
livre).
30
“A diligência é o critério que estabelece o elemento subjetivo de impossibilidade de prever o dano. É na culpa,
portanto, que há o defeito de prever o dano usando uma certa diligência” (tradução livre).
26

Para o autor, culpa era a livre determinação de vontade do agente. Somente


existiria obrigação de reparar o dano caso o agente tivesse capacidade de discernimento, visto
que aquele que não podia querer nem entender não poderia incidir em culpa. Eis as palavras
de SAVATIER (1951, p. 246 apud GONÇALVES, 2007, p. 18):

Um dano imprevisível e evitável para uma pessoa pode não ser para outra,
sendo iníquo considerar de maneira idêntica a culpabilidade do menino e a
do adulto, do ignorante e do homem instruído, do leigo e do especialista, do
homem são e do enfermo, da pessoa normal e da privada da razão.

Por seu turno, Georges RIPERT afirmou que a culpa seria um sistema
composto por faltas, classificadas de acordo com os deveres: por exemplo, faltas contra a
legalidade, contra a honestidade, contra a aptidão física ou profissional. Estas classificações
seriam dominadas pela idéia moral de que a pessoa e os bens do próximo são sagrados. Daí o
porquê do dever de não prejudicar ninguém ter sempre pautado as teorias da responsabilidade
civil (2000, p. 206) 31.

Outros autores também se destacaram no desenvolvimento da doutrina da


culpa subjetiva. Henoch AGUIAR ensinou que o conceito de culpa envolvia “a idéia de toda
falta de um dever jurídico”, seja em sentido amplo, “com o sentido de iniuria da Lei Aquilia,
que compreende também a ofensa dolosa”, seja em sentido estrito, em que há a “idéia de
previsibilidade das conseqüências de nossos atos voluntários” (1929 apud PEREIRA, 1994, p.
67).

Já Leonardo COLOMBO desenvolveu a definição de culpa com base em


dois sentidos: um mais amplo, que compreendia o dolo e a culpa, e um mais restrito, que
compreendia apenas a culpa. Para defini-la, era preciso resgatar a noção de previsibilidade,
pois a culpa seria justamente “a não previsão de um evento que é perfeitamente previsível no
instante em que se manifesta a vontade do agente” (1944 apud PEREIRA, 1994, p. 67).

31
O autor ainda trabalha as seguintes idéias: “Sem dúvida, há casos em que a moral mais estrita pode hesitar ante
a obrigação de reparação, o autor do prejuízo parece ter sido vítima da sorte e a imputabilidade não existir. De
resto, quando a falta é ligeira e o prejuízo não podia ser previsto a moral não impõe necessariamente a reparação
do prejuízo causado. Mas a lei civil intervém então para ditar a regra de conduta. É certo que a lei civil não é a
tradução pura e simples da regra moral, nem nunca eu pretendi que houvesse uma identidade do direito e da
moral. Mas se o autor do ato não se julga culpado, deve-se fiar no julgamento dos outros homens e, quando o
juiz se pronuncia, tem o dever moral de se desonerar” (2000, p. 206). Aqui, “entra a distinção feita pelos
canonistas entre a falta moral, que supõe a consciência duma parte da inteligência e a da vontade, e a culpa
jurídica, que pode resultar duma inadvertência e que obriga em consciência a reparar o prejuízo injusto,
conforme a sentença do juiz” (2000, p. 206). Apesar de tais observações, pode-se dizer que tal perspectiva de
“falta contra deveres” traz, em si, um perfil objetivo.
27

Portanto, a culpa podia ser interpretada como um erro de comportamento,


provocado pela não observância de uma norma de conduta preexistente. O procedimento
culposo consistia num agir voluntário, consciente, mas que resultava em dano a direito alheio.
Esse comportamento sujeitava o agente à reparação, sendo que, para nascer a obrigação de
indenizar o dano, bastava a prova de que era possível conhecer as conseqüências prejudiciais
do ato. A culpa constituía, na verdade, um defeito de previsibilidade e de evitabilidade32.

Para tanto, como essa previsibilidade poderia ser aferida no caso concreto
pelo juiz? Com base no psicologismo, era difícil verificar, na prática, esse elemento interno de
cada agente ativo. Não era prático e podia resultar, algumas vezes, em decisões injustas, que
deixariam a vítima desamparada a suportar sozinha as conseqüências prejudiciais do evento
danoso.

Assim, na tentativa de fugir desse psicologismo, a voluntariedade do


comportamento, em vista da previsibilidade, passou a ser apreciada por meio de um
parâmetro objetivo, que qualificava a imputação da responsabilidade do sujeito, nos termos
da negligência, imprudência e imperícia. A fixação do modelo de conduta dependeria da
comparação dos interesses sociais, morais e econômicos que entrassem em choque. A correta
individualização do modelo de conduta deveria assumir um termo objetivo de comparação da
conduta (JANNARELLI, 2004, p. 604).

Nesse momento, surgiu a concepção de culpa segundo critérios de


concretude e de abstração, destacando-se teses de autores como os irmãos Henri e Léon
Mazeaud.

2.2. Perfil objetivo de culpa


2.2.1. Culpa in abstrato e culpa in concreto: a culpa objetiva dos irmãos Henri e Léon
Mazeaud

Nos termos desse novo viés doutrinário, a conduta podia ser verificada de
dois modos: in concreto, que adotava a noção de culpa de acordo com o paradigma da

32
Essa violação do dever preexistente pode ocorrer de diversas maneiras, constituindo as diferentes modalidades
de culpa, tais como culpa in eligendo, in vigilando, in custodiendo, in comittendo e in omittendo; culpa grave,
leve e levíssima; culpa presumida e culpa contra a ilegalidade; culpa exclusiva e culpa concorrente; culpa
contratual e extracontratual. Todavia, tais classificações não implicam na mudança do conceito de culpa; elas
são, tão-somente, “aspectos peculiares do comportamento, todos abrangidos no conceito genérico de um desvio
de comportamento por parte do agente” (PEREIRA, 1994, p. 72).
28

consciência do autor, do seu íntimo, e in abstrato, que adotava a noção de culpa de acordo
com o padrão da conduta normal e genérica dos homens quando submetidos às mesmas
circunstâncias.

À luz da concepção abstrata da culpa, as condições subjetivas e o estado de


consciência do autor foram considerados de menor importância, não sendo prático ceder à
culpa in concreto e se colocar na pele do autor. As circunstâncias internas, que incluíam os
hábitos, o caráter, o intelecto, o estado de alma do agente, deram lugar às circunstâncias
externas de ordem física, como o tempo, o lugar e o meio social (LIMA, 1998, P. 62).

O perfil objetivo pode, então, ser visto como sinônimo dessa perspectiva
abstrata, na medida em que as disposições especiais da pessoa ou seu grau de compreensão,
seus meios e possibilidades individuais, tais como educação, instrução ou aptidões, foram
dispensados e a comparação da conduta do autor com a do homem diligente e prudente passou
a ser utilizada como parâmetro. Neste contexto, a teoria dos irmãos Henri e Léon Mazeaud é,
sem dúvida, a principal representante dessa corrente que defende a culpa in abstrato,
expressando, em último grau, a própria negação do conceito tradicional de culpa.

Os autores ressaltaram, inicialmente, que a responsabilidade podia ser


concebida sob duas ópticas: uma objetiva, conhecida por Teoria do Risco, que sustentava a
desnecessidade de culpa; e uma subjetiva, segundo a qual a responsabilidade estaria
condicionada à existência da culpa moral, concretamente considerada, de caráter individual,
pessoal, interna ao indivíduo, ao agente ativo.

Para eles, todavia, a culpa somente podia ser determinada a partir de uma
perspectiva intermediária: a da culpa objetiva. A imputabilidade moral deixa de ser requisito
fundamental da culpa, pois a verificação do lado psicológico do agente deveria ser substituída
pelo parâmetro da comparação da conduta por um tipo abstrato, o bonus pater familias. O
juiz, ao julgar um caso concreto, colocaria essa figura abstrata perante as circunstâncias
externas em que o agente se encontrava na hora do evento danoso e verificaria como ele
agiria:

A conduta do agente não é, conseqüentemente, encarada através da sua


personalidade, das suas condições, ou seja, in concreto, mas o juiz terá em
conta as circunstâncias não pessoais do autor, as suas particularidades
psíquicas ou morais, porque tais circunstâncias são internas em relação ao
agente do ato danoso. Todas as vezes que o julgador considerar estas
circunstâncias internas, não fará comparação, mas considerará, diretamente,
o próprio agente e fará a apreciação da culpa in concreto (LIMA, 1998, p.
62).
29

Portanto, privilegiando o critério objetivo, os irmãos Mazeaud


determinaram que o comportamento do agente, nos termos de previsibilidade do evento
lesivo, deveria ser comparado a um tipo abstrato, o bonus pater familias. Se dessa
comparação com o comportamento do homem médio, considerado padrão de normalidade,
verificasse que o dano resultou de uma imprudência, imperícia ou negligência do agente e que
o homem-padrão não agiria de tal modo, restaria caracterizada a culpa. Incidia em culpa quem
não agisse como seria necessário, isto é, quem cometesse um erro de conduta.

A culpa observada concretamente facilitaria a verificação da prudência nas


atitudes dos indivíduos, ao passo que, abstratamente, o juiz desenvolveria um conceito de
culpa, a fim de definir o tipo do homem diligente, com base em todas as circunstâncias que
parecessem intervir na responsabilidade. A culpa abstratamente considerada seria, assim,
contrária ao ponto de partida da própria responsabilidade subjetiva, ao não apreciar a
“clarividência de espírito e a intenção do autor do ato lesivo” (RUTSAERT, 1930, p. 13 e ss.
apud LIMA, 1998, p. 59).

Seguindo essa mesma linha de pensamento, encontrava-se Henri DE PAGE,


o qual entendia que “a culpa é, muito simplesmente, um erro de conduta; é o ato ou o fato que
não teria praticado uma pessoa prudente, avisada, cuidadosa em observar as eventualidades
infelizes que podem resultar para outrem” (1934 apud PEREIRA, 1994, p. 68).

Os ensinamentos de Marcel PLANIOL também são de grande estima. Para


o jurista, culpa era “a infração de uma obrigação preexistente, de que a lei ordena a reparação
quando causou um dano a outrem” (apud PEREIRA, 1994, p. 67). Haveria, portanto, culpa
por parte daquele que agia como não deveria agir, daquele que agia com falta a um dever
preexistente, que adotava um comportamento diverso daquele que uma pessoa, conforme a
mentalidade média, adotaria.

De igual modo, defendeu Jaime Santos Briz a idéia de que a culpa era o
desvio de um modelo ideal de conduta, determinado conforme a diligência de um pater
familias cuidadoso. Para o autor, o que definia o erro era a previsibilidade, sem a qual um
bom pai de família não o teria cometido.

Dentre os doutrinadores pátrios, destacaram-se estudiosos como Alvino


LIMA, que entendia ser a culpa “um erro de conduta, moralmente imputável ao agente, e que
não seria cometido por uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias” (apud PEREIRA, 1994,
p. 69). Já Mário Moacyr PORTO conceituou culpa como uma noção social e, se um dano era
30

objetivamente ilícito, era ressarcível, ou seja, a conduta do agente deveria “ser apreciada in
abstracto, em face das circunstâncias ‘externas’, objetivas, e não em conformidade com a sua
individualidade ‘interna’, subjetiva” (1989, p. 17 apud GONÇALVES, 2007, p. 20) 33.

2.2.2. O Abuso do Direito

Dando continuidade à tendência de alargar o sentido da culpa, como o fez a


culpa objetiva, não mais se restringindo às particularidades de cada indivíduo, surgiu a Teoria
do Abuso do Direito, que trouxe uma imensa contribuição à culpa. De acordo com essa teoria,
a culpa não seria mais aferida somente nos casos em que a conduta era contrária ao Direito,
mas, também, no exercício do próprio direito. Salienta Josserand que “a culpa não recua mais
diante da existência de um direito mas investe contra o seu exercício, se ele degenera em
abuso: a culpa no exercício de um direito torna-se noção prática e corrente” (JOSSERAND,
1946, p. 38).

Diziam os jurisconsultos romanos que quem exercia um direito não cometia


falta e não estava sujeito a qualquer tipo de responsabilidade: neminem loedit qui jure suo
utitur (não causa dano a outrem quem utiliza um seu direito). Mais tarde, os próprios romanos
concretizaram em fórmula reduzida o abuso de direito, considerando que quem faz mau uso
dos direitos e os encaminha em direção errada, comete uma falta e por ela deve se
responsabilizar: summum jus, summa injuria (JOSSERAND, 1946, p. 37-38).

Na Idade Média, o abuso do direito ganhou reforço com a Teoria da


Aemulatio34, segundo a qual o “ato praticado com intenção maligna de lesar e sem uma
utilidade própria, ou com mínima utilidade, acarretava a responsabilidade do agente” (LIMA,
1998, p. 207). A Teoria da Aemulatio abrangia as matérias de direitos reais - especialmente, as
relações de vizinhança - e as relações obrigacionais. Os atos eram praticados com animus
aemulandi, o qual podia ser devidamente provado ou ser admitido mediante a dedução da
existência, ou não, de um interesse legítimo no cumprimento do ato que se desejava obstar.

33
Nesse sentido, sustentou o autor: “O exame ou avaliação das condições físicas e psíquicas do autor do dano –
idade, educação, temperamento etc. – vale para informar ou identificar as razões determinantes do seu
comportamento anormal, mas não para subtrair da vítima inocente o direito de obter uma reparação dos prejuízos
sofridos em seus interesses juridicamente protegidos” (PORTO, 1989, p. 17 apud GONÇALVES, 2007, p. 19).
34
Por sua vez, a teoria medieval da aemulatio buscou fundamentos em textos do Direito Romano, no qual,
conforme defende a doutrina majoritária, já existia uma teoria geral do abuso de direito, consubstanciada nas
Institutas de Gaio (Inst. I, 53): Male enim nostro jure uti non debemus (LIMA, 1998, p. 209).
31

Adotando esse critério subjetivista do abuso do direito, baseado na intenção


de lesar (animus aemulandi), os primeiros textos legislativos, no direito moderno, a proibir o
ato abusivo, de forma clara e genérica, foram os do Código Civil da Prússia, de 1794, que
enunciavam os seguintes princípios:

O que exerce o seu direito, dentro dos limites próprios, não é obrigado a
reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta
claramente das circunstâncias, que entre algumas maneiras possíveis de
exercício de seu direito foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com
intenção de lhe acarretar dano (LIMA, 1998, 210).

Dentre os direitos que sofreram limitações em seu exercício, em razão dos


atos emulativos, destaca-se o direito de propriedade: “Ninguém pode mal usar a sua
propriedade para lesar outrem e causar-lhe prejuízo. Constitui mau uso da propriedade todo
aquele que por sua natureza não pode ter outro fim senão o de lesar outrem” (sic) (LIMA,
1998, p. 211).

Por sua vez, o direito francês tratou do tema pela primeira vez antes mesmo
da edição do Código Civil de 1804. A proibição dos atos emulativos verificou-se,
especialmente, nas relações entre proprietários, nos direitos de vizinhança: “Não é permitido a
qualquer pessoa fazer em sua propriedade o que não lhe tem serventia e prejudica a outros”
(LIMA, 1998, p. 211).

Entretanto, com o Código Napoleão e o preceito de que todos são iguais


perante a lei, um sistema de direitos absolutos foi proclamado. O direito era visto como um
poder concebido por lei, tornando viável o seu exercício com amplitude, ainda que terceiros
fossem prejudicados, pois se tratava de uma prerrogativa protegida pela lei. O indivíduo,
assim, era considerado um ente isolado, um senhor absoluto de seus direitos, e refletia a
impossibilidade de um princípio genérico de limitação no exercício dos direitos.

Frente a essa extremada individualidade, os tribunais franceses reagiram e a


jurisprudência passou a condenar o exercício anormal e irregular dos direitos subjetivos35. Se

35
Casos característicos que demonstraram a aplicação da Teoria do Abuso do Direito são o Colmar, de 1855, e o
Clement-Bayard, de 1913. No primeiro, tratava-se de uma falsa chaminé, de grande altura, que o proprietário de
uma casa tinha construído. Essa obra, que não tinha quaisquer utilidades para o proprietário da casa, destinava-se
a fazer sombra na casa do vizinho, que recorreu à justiça para fazer cessar esse prejuízo invocando a teoria do
abuso do direito. O tribunal decidiu que “se” é dos princípios que o direito de propriedade é um direito de algum
modo absoluto, autorizando o proprietário a usar e abusar da coisa, o exercício deste direito, todavia, como de
qualquer outro, deve ter como limite a satisfação de um interesse sério e legítimo. Já o segundo caso é o
seguinte: “um proprietário rural, vizinho de um hangar onde um fabricante de dirigíveis guardava os seus
aparelhos, construiu imensas armaduras de madeira altas como casas, e com hastes de ferro, para criar
dificuldades aos dirigíveis. Verificando-se um acidente, em que um dos aparelhos foi vítima, o construtor pediu
32

o titular do direito não possui legítimo interesse na ação, far-se-á o uso abusivo de seu
direito36.

Na busca por soluções mais equânimes e de maior proteção da vítima37, a


antiga idéia do absolutismo dos direitos foi substituída pelo relativismo e dessa mudança de
paradigma, os abusos de direitos, que geravam danos, passaram a dar ensejo à
responsabilidade. Desse modo, orientada pela idéia social38, a teoria pôs em questionamento a
legitimidade de exercício do direito subjetivo pelo simples fato de ser reconhecido e atribuído
pela lei:

Neste plano, o abuso do direito, enquanto significa a condenação moral, pela


consciência colectiva, de um determinado acto, que, todavia, pelo
ordenamento positivo vigente, consiste no exercício de um direito e que, por
conseguinte, é lícito, apresenta-se como um fenômeno social de interesse
geral e, ao mesmo tempo, como um dos momentos dinâmicos da evolução
do direito (ROTONDI, 1962, p. 101 apud SÁ, 1997, p. 310).

Quando os limites objetivos da norma jurídica são ultrapassados, a ação ou a


omissão podem ferir interesses, lesar terceiros e provocar o desequilíbrio social.
Conseqüentemente, em razão desse ilícito, o agente será responsabilizado, pois a titularidade
de um direito, nos termos objetivos da norma jurídica, não dá a prerrogativa de dispensar a
vontade honesta nem de abandonar a consciência moral nas atividades humanas. O direito é o
justo poder de agir, desde que o seu titular aja dentro da sua destinação econômica e social,
sob pena de abusar de seu direito:

(...) os direitos nos são concedidos pelos poderes públicos, não para que
façamos uso dêles discricionàriamente, a torto e a direito, mas visando um
motivo determinado; instituído pela sociedade, tem missão social a cumprir,
uma aspiração, um destino de que não devemos afastá-los. Se, por exemplo,
nós os exercemos para prejudicar a outrem, fazêmo-lo desviar-se de seu
caminho, cometemos uma falta que importa responsabilidade. Não é exato

perdas e danos e demolição de tais construções. Não obstante a defesa do réu ter invocado seu direito de
propriedade sobre o imóvel onde fizera as construções, o tribunal deu ganho de causa ao dono do dirigível, com
base na teoria do abuso do direito” (AMARAL, 2003, p. 210).
36
Inclusive, o anteprojeto do novo Código Civil francês tratou do tema sob o título de “exercício normal dos
direitos”: “Art. 147 – todo o acto ou facto, que exceda manifestamente, pela intenção do seu autor, pelo seu
objecto ou pelas circunstâncias em que é realizado, o exercício normal de um direito, não é protegido pela lei e
acarreta eventualmente a responsabilidade do seu autor” (SÁ, 1997, p. 54).
37
A despeito de sua origem ser bastante antiga, a teoria do abuso do direito afirmou as suas bases no contexto
histórico-social do liberalismo capitalista, como uma resposta ao individualismo egoístico.
38
Era a época em que se expandiam os movimentos socialistas na Europa. O cenário era de conflito entre a
nascente propriedade industrial e a antiga propriedade fundiária, os direitos subjetivos concedidos e garantidos
como poderes ou prerrogativas absolutas do indivíduo em face do Estado, a formação de monopólios e certas
formas de exercício do poder patronal e das organizações operárias, entre outros fatores que influenciaram na
ordem jurídica (SÁ, 1997, p. 50-51).
33

dizer que somos responsáveis apenas quando agimos sem direito; seria mais
certo dizer, ao contrário, com Emanuel Levy, que a nossa responsabilidade
entre em ação no momento do exercício de nossos direitos; é porque
fazemos mau uso dêles, porque abusamos, que a nossa responsabilidade se
estabelece (JOSSERAND, 1946, p. 37).

Desdobramento importante desse critério objetivo de desvio de finalidade


no exercício do direito foi a Teoria do Abuso do Direito, mecanismo de restrição dos direitos
subjetivos que pretendia conciliar a existência dos direitos individuais com os da coletividade,
com vistas a satisfazer o equilíbrio social e econômico. A doutrina, então, passou a usá-la na
solução de problemas diversos, o que proporcionou a ampliação do âmbito de incidência da
responsabilidade civil.

De outro lado, entre os doutrinadores, não havia um consenso quanto ao


posicionamento da teoria no ordenamento jurídico. Os irmãos Mazeaud, por exemplo,
defendiam que o abuso de direito estava inserido na esfera geral da responsabilidade civil e
qualquer questão relativa à matéria poderia ser resolvida à luz da definição de culpa39. Já
Demogue acreditava ser o abuso de direito uma variedade do ato ilícito, ao passo que outros
autores sustentavam a autonomia da doutrina do abuso de direito, sendo o ato abusivo distinto
do ato ilícito40.

Partindo dessa distinção entre os atos geradores41 da responsabilidade civil,


Louis Josserand definiu os elementos constitutivos do abuso do direito: 1- que uma pessoa

39
O abuso de direito possuía natureza delitual ou quase-delitual, ou seja, aquele que exerce o seu direito com o
objetivo de prejudicar terceiros, comete uma culpa delitual e aquele que, mesmo sem a intenção de lesar, age
com imprudência ou negligência, exercendo seu direito de forma diferente de como faria o homem avisado,
comete culpa quase-delitual.
40
A Teoria do Abuso de Direito, contudo, foi negada por outros doutrinadores. Alguns repudiavam, de modo
absoluto, a existência de um ato abusivo do direito como categoria autônoma do ato ilícito, pois o direito cessa
onde o abuso começa. Em outras palavras, a norma jurídica fixa limites objetivos que delimitam as prerrogativas
de cada direito e, ao ultrapassá-los, comete-se um ato ilícito. Outros admitiam a existência do abuso de direito
como hipótese de responsabilidade civil, não sendo, assim, diverso do ato ilícito; e outros, mais extremistas,
negavam a existência de direitos subjetivos, sustentando a existência de simples funções econômicas e sociais.
Cumpre, ainda, ressaltar o pensamento crítico de Paul Esmein, que atacou a doutrina do abuso de direito,
declarando: “o exercício do direito, qualquer que seja a intenção do seu titular, é licito, o que equivale a defender
o direito como prerrogativa absoluta; tal doutrina substitui a culpa jurídica pela culpa moral, transformando o
juiz em censor” (LIMA, 1998, p. 230). Permitir que se limite o exercício do direito, atendendo à intenção do seu
titular, é confundir a moral e o direito, é dar à culpa moral os mesmos efeitos jurídicos atribuídos à culpa jurídica
(LIMA, 1998, p. 232). Outros escritores também criticaram a teoria do abuso de direito, à vista do perigoso
arbítrio confiado ao juiz, pois a este cabia determinar se o exercício do direito era, ou não, abusivo. Logo, ao
julgador era dado um poder que tornava inseguro todo e qualquer direito, uma vez que era possível aplicar ao
caso concreto as suas inclinações e os seus pendores filosóficos. Esqueceram-se, contudo, que a intervenção do
juiz é uma necessidade presente em todas as aplicações das normas jurídicas e ignorá-la significará a pretensão
de uma regulamentação jurídica capaz de abranger todos os casos, com precisão e clareza, de modo a ser
possível a aplicação matemática a cada caso concreto, o que se demonstra insustentável (LIMA, 1998, p. 235).
41
Para Josserand, o dano indenizável podia ser provocado por ato ilegal, por ato ilícito ou ato abusivo e por ato
excessivo. O ato ilegal era o realizado sem direito e, por conseqüência, em violação de um direito de outrem,
34

seja o titular do direito em causa e capaz de o exercer; 2 – que use do seu direito,
permanecendo nos limites objetivos que lhe são traçados de forma mais ou menos precisa pela
lei; e 3 – que o aponte numa direção diferente daquela que lhe é assinalada pelo espírito
próprio da instituição, isto é, que o utilize de algum modo à contre-sens (SÁ, 1997, p. 419).

Considerando o ato abusivo como um ato gerador de responsabilidade civil,


Josserand entendia ser o abuso de direito um desvio infligido a uma prerrogativa subjetiva que
teria sido falseada pelo seu titular, em razão de seu mau impulso, contrário aos fins sociais do
direito (SÁ, 1997, p. 415-416).

Ademais, compreendia o abuso de direito tendo em vista a noção de culpa,


mas acolhia o conceito de culpa social, que caracterizava o desvio da missão social do direito.
Aqui, julgava-se a culpa de acordo com a lesão direta da sociedade, tendo em vista o critério
social; verificava-se se, no exercício do direito, o indivíduo havia causado lesão à
coletividade:

O abuso é, pura e simplesmente, reduzido a uma das numerosas variedades


do acto fautif e porque constatar que ele figure neste lugar é tido como
essencial: a relatividade do direito subjectivo, a própria finalidade social que
o seu espírito objectivamente encerra e traduz é, assim, substituída agora
para efeitos de responsabilidade civil, na perspectiva da reparabilidade do
dano que o acto abusivo provoca, pelo critério da faute, da culpa do titular
do direito na errada direcção que imprimiu ao exercício deste (SÁ, 1997, p.
476).

O abuso de direito era considerado segundo a sua concepção finalista ou


objetiva, isto é, o ato ou omissão abusiva reportava-se à violação da finalidade do direito, de
seu espírito, a despeito dos limites objetivos fixados em lei. Já a ação ou omissão negligente
ou imprudente, característica da culpa, dizia respeito à violação dos limites objetivos da lei, da
obrigação legal preexistente. Daí a conclusão expressa por Fernando Augusto Cunha de SÁ
(1997, p. 411-412):

cuja incorreção intrínseca sujeita o ato à sanção mediante a responsabilidade civil do tipo objetivo, quer o agente
tivesse agido voluntariamente ou por erro, conscientemente ou não. Já o ato ilícito era aquele que não se
realizava em conformidade com a destinação do direito, com o espírito da instituição, resultando antes do desvio
de uma faculdade subjetiva falseada pelo seu titular. Nesse caso, a responsabilidade do titular não decorre mais
de circunstâncias objetivas, como a transgressão dos limites de um direito, mas do mau impulso dado a esse
direito, subjetivamente, abusivamente, ou seja, o ato era abusivo, pois, sendo objetivamente correto, era
subjetivamente incorreto. Por fim, o ato excessivo, embora não fosse ilícito nem ilegal, geraria responsabilidade
civil – sem culpa e puramente objetiva - se provocasse um dano excessivo ou anormal, pelo que se poderia dizer
que tal ato, ocasionando uma ruptura de equilíbrio entre os direitos conflitantes, de quem atua e de quem é
lesado, seria constitutivo de riscos, que deveriam ser suportados por quem os criou (SÁ, 1997, p. 471-476 e
MARTINS, 2002, p. 161-162).
35

(...) conclui Josserand que o verdadeiro critério do abuso do direito só pode


ser o que é retirado do desvio do direito do seu espírito, isto é, da sua
finalidade ou função social, qualquer que ela seja, económica ou moral,
egoísta ou desinteressada.
(...) O acto abusivo é, pois, o acto contrário ao espírito ou finalidade da
instituição, ou seja, a actuação intrìnsecamente anti-social e anti-funcional
por ao exercício do direito ter sido imprimida uma direcção contrária ou
disforme com a função e o espírito desse direito.

Tendo em mente as funções sociais do direito como critério para a fixação


da responsabilidade civil, essa visão da teoria do abuso de direito afirmou a relatividade dos
direitos. Não era mais possível admitir que os direitos subjetivos fossem absolutos a ponto de
ignorar que de seu exercício resultou danos a terceiros. Eles se concretizam dentro de um
ambiente social e a medida justa e verdadeira dos direitos individuais exige que se explorem
os fins econômicos, políticos e sociais do direito. Nesse sentido, assinala JOSSERAND
(1999, p. 3-4):

A esta concepción implacable, frenética de los derechos individuales, se


opone la teoría de relatividad, que lleva a admitir posibles abusos de los
derechos, aun de los más sagrados. En esta teoría los derechos, productos
sociales, como el mismo derecho objetivo, derivan su origen de la
comunidad y de ella reciben su espíritu y finalidad; cada uno se encamina a
un fin, del cual no puede el titular desviarlo; están hechos para la sociedad y
no la sociedad para ellos; su finalidad está por fuera y por encima de ellos
mismos; son, pues, no absolutos, sino relativos; deben ejercerse en el
planode la institución, com arreglo a su espíritu, o de lo contrario seguirán
una dirección falsa, y el titular que de ellos haya, no usado, sino abusado,
verá comprometida su responsabilidad para con la víctima de esa desviación
culpada42.

Esse fenômeno de “moralização do direito” (JOSSERAND apud LIMA,


1998, p. 217) fixou, junto aos limites objetivos legais, limites de caráter teleológico ou social.
Além da legalidade expressa, passaram a ter importância a eqüidade, o bem da coletividade e
a boa-fé, considerada “a fonte inspiradora de todo o direito, sua base fundamental e ao mesmo
tempo criadora do próprio direito” (GORPHE, 1928, p. 19 e 44 apud LIMA, 1998, p. 239)43.

42
“A esta concepção implacável e frenética dos direitos individuais, opõe-se a Teoria da Relatividade, que vem
admitir possíveis abusos dos direitos, ainda que dos mais sagrados. Nesta teoria, os direitos são produtos sociais,
como direito objetivo, cuja origem vem da sociedade e dela recebe seu espírito e finalidade; cada um segue um
fim, do qual não pode o titular se desviar; a sua finalidade está fora e além dele mesmo; não são absolutos e sim
relativos. Deve ser exercido no plano de sua instituição, com respeito ao seu espírito, ou do contrário seguirá
uma direção falsa e o titular terá não usado e sim abusado, e verá comprometida sua responsabilidade para com a
vítima desse desvio culposo” (tradução livre).
43
Diante da relatividade dos direitos e da impossibilidade de se definir na lei, de forma perfeita, qual o uso que
o titular deve fazer de seu direito, a tendência foi adotar o critério objetivo do desvio de finalidade, mas há outros
parâmetros de aferição do abuso de direito, como o da boa-fé, que se tornou um princípio jurídico e passou a ser
utilizado como parâmetro para o exercício de todos os direitos e para a execução das obrigações. Neste caso, a
36

Enfim, com a doutrina da relatividade, o exercício dos direitos passou a ser


pautado em limites legais e, quando o seu titular os ultrapassava, verificava-se o abuso. A
regra geral que proibia a qualquer pessoa causar, por sua culpa, prejuízo injusto a outrem,
representava, por exemplo, uma limitação dos direitos subjetivos. Poder-se-ia dizer que
aquele que não usa do seu direito nas condições normais do seu meio ou da sua época, é
responsável pelo prejuízo que causa a outrem (RIPERT, 2000, p. 171). Assim sintetiza
Georges RIPERT (2000, p. 172):

Temos, pois, que concluir daí que a jurisprudência vê uma culpa civil neste
exercício anormal do direito, porque ela impõe ao homem o dever de não
prejudicar ninguém e que este dever se precisa e se torna mais rigoroso
quando a ação prejudicial se torna mais fácil.

Interpretação contrária implicaria em resultados iníquos e absurdos e, até


mesmo, na supressão do princípio da responsabilidade civil. Abusar do direito era “cobrir com
a aparência do direito o ato que era um dever não realizar, ou pelo menos, que não era
possível realizar senão indenizando aqueles que eram lesados por esse ato” (RIPERT, 2000, p.
173).

Do exercício abusivo dos direitos, então, resultava a responsabilidade


civil44. Nesse momento, passou-se à análise dos motivos que impeliram o agente à prática
abusiva de seu direito e, logo, surgiu a divisão entre doutrinadores. Alguns defendiam a
inexistência de motivos legítimos ou de interesse do titular do direito, que caracterizavam o
exercício abusivo e implicavam a responsabilidade do agente; outros defendiam a
exclusividade da intenção de lesar como causa do dano, não sendo possível haver motivos

boa-fé era objetivamente determinada, expressa por meio de uma concepção geral, normativa, que estabelecia
uma relação de confiança recíproca entre as partes interessadas na relação obrigacional, exigindo que se agisse
com um mínimo normal de lealdade. O titular do direito deveria agir conforme as regras da correção, da lealdade
e da honra; e a violação das regras de boa-fé e eqüidade definia o uso abusivo do direito. O abuso de direito
constituiu, dessa forma, uma barreira moral ao domínio do direito e sobre a noção de boa-fé objetiva repousava o
seu fundamento (ALBERT RICHARD, 1935, p. 185 apud LIMA, 1998, p. 244).
44
Opiniões contrárias insurgem-se a essa necessidade da culpa para configurar o ato abusivo: “Desde que se
tenha do abuso uma concepção objetiva, assimilá-lo à culpa é uma empresa não só arriscada, mas inútil. O ato a
qualificar-se será considerado apenas na sua objetividade, sem que possa oferecer qualquer interesse de ordem
prática ou teórica a investigação das razões de natureza psicológica que teriam inspirado ao agente o exercício de
seu direito. (...) Qualquer ato, moralmente reprovável ou não, que, excedendo os limites da normalidade,
provoque um sério desequilíbrio entre os interesses juridicamente protegidos, é abusivo e obriga por isso o seu
autor a reparar-lhe as conseqüências lesivas. (...) Na apreciação da normalidade o juiz não precisa ater-se à
consideração do elemento intencional ou das razões subjetivas que teriam determinado o exercício do direito. A
sua tarefa limita-se a examinar, à luz de dados materiais e objetivos, se o ato danoso transborda efetivamente da
justa medida que o titular do direito deve observar por ocasião de seu exercício. Essa justa medida dos direitos
individuais obtém-se mediante exame dos seus fins econômicos e sociais e confronto entre a importância dos
interesses que o agente visa a resguardar e os interesses de terceiro por ele lesados” (MARTINS, 2002, p. 163-
165).
37

outros que justificassem o ato do titular como abusivo e, conseqüentemente, a


responsabilização do agente45.

Dentro desse universo de teses, merecem ser objeto de exposição específica


as teses de Raymond Saleilles e de Louis Josserand.

2.2.2.1. O Abuso do Direito e a Teoria de Raymond Saleilles e de Louis Josserand

Adotando como critério do abuso de direito o exercício anormal do direito,


contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, Raymond Saleilles ampliou o
conceito de culpa ao acrescentar que o caráter psicológico deveria ser afastado. O ato abusivo
era aferido conforme seu lado objetivo, ou seja, era um ato objetivamente contrário aos bons
costumes e reprovado pela consciência pública.

Por sua vez, Louis JOSSERAND, na obra “De l´esprit des droits et de leur
relativité”, apresenta a Teoria do Abuso de Direito como extensão do conceito de culpa.
Demonstrou que o titular do direito podia, ao mesmo tempo, exercê-lo e abusar das
prerrogativas atribuídas legalmente: o ato abusivo podia ser praticado em razão de um direito
determinado e ser, mesmo assim, ilícito, por contrariar a boa-fé e as regras que constituíam o
direito:

En vano se objetará que el titular ha ejercido un derecho, ya que ha cometido


una falta en el ejercido de ese derecho y es precisamente esa culpa lo que se
llama abuso del derecho; un acto cumplido de conformidad con determinado
derecho subjetivo puede estar en conflicto con el derecho en general, con el
derecho objetivo, con la juridicidad, y este conflicto es el que los romanos
habían ya entrevisto y que traducían por la máxima famosa: Summum jus,
summa injuria (1999, p. 4)46.

Então, para caracterizar o abuso de direito, o autor utilizou três critérios: o


critério técnico, o econômico e o social ou finalista.

45
A respeito desse tópico, cumpre ressaltar a verificação do dano diante da utilidade. A intenção de lesar
consubstanciada na prática de um ato deve ser repelida pelo Direito, ao passo que a utilidade pessoal no
exercício do direito deve ser protegida por lei. No entanto, quando se verifica a colisão entre esses interesses, é
necessário fazer uma comparação entre ambos para se chegar ao ponto de equilíbrio. Em virtude dessa dosagem
entre utilidade e dano, não é possível aceitar que o titular de um direito, com a intenção de lesar, exonere-se de
sua responsabilidade, tendo em vista, apenas, a prova da utilidade no exercício do direito, apesar do interesse do
lesado ser superior, moral e economicamente, às vantagens obtidas pelo titular do direito, bem como a ação deste
ser praticada de forma menos prejudicial.
46
“A falta cometida no exercício do direito é precisamente a culpa a que se chama abuso de direito; um ato
cumprido em conformidade com um determinado direito subjetivo pode estar em conflito com o direito em geral,
com o direito objetivo, com a juridicidade, e esse conflito é o que os romanos haviam previsto e traduzido pela
famosa máxima: Summum jus, summa injuria” (tradução livre).
38

O critério técnico era expresso pela culpa na execução, isto é, a culpa tem
por parâmetro a execução do direito, consistindo em ter “o titular do direito agido no
exercício do mesmo sem interesse apreciável, sem vantagem, embora sem intenção de
prejudicar, mas de tal maneira que o ato praticado é economicamente mau e condenável. É
uma culpa de ordem econômica” (LIMA, 1998, p. 225).

O critério econômico era representado pela ausência de interesse legítimo.


Isso significava que se o titular exercesse o seu direito fora de seus limites ou para a
consecução de um interesse ilegítimo, ele abusaria de seu direito. O exercício do direito era
contrário à sua destinação econômica.

Por fim, havia o critério social, expressão do desvio do direito de sua


função social. Aqui, encontra-se a verdadeira essência do abuso de direito.

Cada direito tem a sua finalidade, a sua função própria. Logo, qualquer
desvio de finalidade indica um abuso de direito, um ato contrário ao espírito e ao fim da
instituição jurídica. O juiz, perante o caso concreto, deve, então, guiar-se pelo motivo
legítimo, ou seja, o ato será normal ou abusivo a depender da legitimidade do motivo, do fim
almejado47.

Em suma, todo e qualquer direito possui uma finalidade específica, uma


destinação econômica e social e o desvio dessa finalidade caracteriza o abuso de direito. A
respeito dessa conclusão, leciona Alvino LIMA (1998, p. 233-234):

Os poderes que a lei nos confere no exercício de cada direito não têm limites
objetivos precisos e fatais; quando agimos dentro destes limites exercemos a
prerrogativa legal, o direito subjetivo, tal como diz a norma, em si mesma
considerada. Mas ao lado destes limites objetivos, outros limites são
necessários ao exercício normal do direito, sob pena do desequilíbrio social;
estes limites não os encerra o preceito legal quando define e concede cada
direito, mas são impostos pelos princípios gerais do direito, pelos princípios
da boa-fé, por princípio de ordem moral.

De outro lado, escritores, como os irmãos Mazeaud, Savatier e Ripert,


consideraram o abuso de direito um mero problema de responsabilidade, cuja solução se dava
47
Sobre o tema, vale ressaltar o entendimento de outros notáveis autores. François Gény adotava, como critério
de abuso de direito, a ruptura do equilíbrio de interesses em conflito. Ou seja, não se definia a medida justa e
verdadeira de cada direito senão com base no seu fim econômico e social e na comparação da sua importância
com à dos interesses opostos, fato este que levava o juiz a considerar os aspectos de ordem moral, social ou
econômica que se encontravam envolvidos no conflito de interesses (LIMA, 1998, p. 226). De sua parte, Pierre
de Harven entendia que o titular de um direito que, apesar de exercê-lo em condições objetivamente
irrepreensíveis, agia para alcançar fins contrários aos protegidos por lei e sem qualquer interesse legítimo, moral
ou material, praticava ato abusivo e, se causasse danos a outrem, era obrigado a repará-los (LIMA, 1998, p. 226).
39

por meio da aplicação do art. 1382 do Código Civil Francês. O ato abusivo era apenas uma
variedade do ato ilícito. Henri e Léon Mazeaud, de acordo com a sua concepção de culpa,
entendiam que o ato abusivo era um mero erro de conduta, analisando-se se uma pessoa
prudente teria sido mais diligente no exercício de seu direito. Enfim, como sustentava Ripert,
a teoria reduzia-se à seguinte constatação: “o titular de um direito subjetivo pode cometer uma
culpa no exercício de um direito” (LIMA, 1998, p. 231).

A despeito de opinião contrária, a concepção finalista foi recepcionada e


adotada por legislações diversas, como a suíça e a brasileira (LIMA, 1998, p. 243 e ss.), a
qual, inclusive, define em seu artigo 187 do Código Civil de 2002 que o abuso de direito é ato
ilícito cometido por aquele que, ao exercer o seu direito, excede os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”.

De qualquer forma, a teoria do abuso do direito teve notável repercussão no


processo de ampliação do sentido da culpa objetiva. Admitindo-se que o exercício de um
direito não era absolutamente incompatível com o conceito de culpa e que era cometer um
delito civil exercer o seu direito de certa forma, por um motivo qualquer (JOSSERAND,
1946, p. 36-37), os parâmetros objetivos tinham importância ainda maior na aferição do abuso
do direito. Não se poderia verificar a previsibilidade ou previsão de um ato que representava o
exercício do próprio direito. Daí a criação dos critérios objetivos de avaliação do uso abusivo
do direito, como o padrão do desvio de finalidade social e econômica.

2.2.3. Concepção normativa de culpa: as presunções de culpa

Além da adoção dos critérios objetivos do abuso do direito e da culpa


objetiva, novas modalidades de culpas destacaram-se no processo de expansão do sentido da
culpa, a fim de melhorar a situação da vítima de um dano (JOSSERAND, 1946, p. 39). Nesta
seara, aumentam as discussões sobre a inversão do ônus da prova48 e a culpa presumida.

Face a uma rica multiplicidade de causas geradoras de danos, a noção


tradicional de culpa demonstrava-se insuficiente. Nesse contexto, as presunções de culpa
ganharam relevo, tendo sido consagradas nos artigos 1.384, 1.385 e 1.386 do Código Civil

48
Antes, a vítima é quem deveria provar a culpa do agente pelo prejuízo causado.
40

francês (presunções iuris tantum). Apesar disso, ficaram reservadas às situações mais
complexas, como as de responsabilidade oriunda de fatos de outrem e de fatos das coisas. A
responsabilidade do autor seria inconteste, caso não provasse a presença de causa estranha ao
dano, como força maior, caso fortuito, culpa da vítima ou fato de terceiro:

Art. 1384. On est responsable non seulement du dommage que l’on cause
par son propre fait, mais encore de celui que est causé par le fait des
personnes don’t on doit répondre, ou des choses que l’on a sous sa garde.
(L. 7 nov. 1922) Toutefois, celui qui détient, à um titre quelconque, tout ou
partie de l’immeuble ou des biens mobiliers dans lesquels um incendie a pris
naissance ne sera responsable, vis-à-vis des tiers, des dommages causés par
cet incendie que s’il est prouvé qu’il doit être attribué à as faute ou à la
faute des personnes dont il est responsable. Cette disposition ne s’applique
pas aux rapports entre propriétaires et locataires, qui demeurent régis par
les articles 1733 et 1734 du code civil.
(L. n.º 70-459 du 4 juin 1970) Le père et la mère, en tant qu’ils exercent (L.
n. 2002-305 du 4 mars 2002, art. 8-V) “l’autorité parentale” [ancienne
rédactio: “le droit de garde”] sont solidairement responsables du dommage
causé par leurs enfants mineurs habitante avec eux. – L’art. 8-V de la loi n.º
2002-305 du 4 mars 2002, modifiant le présent alinéa, est applicabele dans
les iles Wallis-et-Futuna, em Polynésie française et em Nouvelle-Calédonie
(art. 19 de la loi).
Les maitres et les commettants, du dommage causé par leurs domestique et
preposés dans les fonctions auxquelles ils les ont emplolyes. Les instituteurs
et les artisans, du dommage causé par leurs élèves et apprentis pendant le
temps qu’ils sont sous leur surveillance.
(L. 5. avr. 1937) La responsabilité ci-dessus a lieu, à moins que les père et
m`cere et les artisans ne prouvent qu’ils n’ont pu empêcher le fait qui donne
lieu à cette responsabilité. Em ce qui concerne les instituteurs, les faute,
imprudences ou négligences invoquées contre eux comme ayant causé le fait
dommageable, devront être prouvées, conformément au droit commum, par
le demandeur, à l’instance49.

49
Art. 1384. Somos responsáveis não somente pelos danos provocados por nossa própria culpa, mas também por
aqueles provocados pela culpa das pessoas pelas quais somos responsáveis ou pelas coisas que temos sob nossa
guarda. Entretanto, aquele que possui, a um título qualquer, a totalidade ou parte do imóvel ou dos bens
mobiliários, nos quais um incêndio começou, será responsável com relação a terceiros, pelos danos provocados
por este incêndio somente se for comprovado que a culpa deve ser atribuída a ele ou às pessoas pelas quais é
responsável. (Lei de 7 de nov. de 1922) Esta disposição somente se aplica às relações entre proprietários e
locatários que vivem de acordo com os artigos 1733 e 1734 do código civil.
(L. n.70-459 de 4 de junho de 1970).O pai e a mãe, se exercerem (L. n.2002-305 de 4 de março de 2002, art. 8-
V) o pátrio poder [redação antiga: “direito de guarda”] são solidariamente responsáveis pelos danos
provocados por seus filhos menores que vivem com eles (Obs.: O art. 8-V da lei n.2002-305 de 4 de março de
2002, que modifica a presente alínea, é aplicável nas Ilhas Wallis-et-Futuna, na Polinésia Francesa e em Nova
Caledônia (art. 19 da lei).
Os mestres e responsáveis pelo dano provocado por seu doméstico e prepostos nas funções para as quais foram
contratados. Os professores e artesãos, pelos danos provocados por seus alunos e aprendizes durante o tempo em
que estão sob sua supervisão. A responsabilidade acima ocorre salvo se os pais e mães e os artesões
comprovarem que não puderam impedir o fato que provocou esta responsabilidade. (cf. Lei de 5 de abril de
1937). Para os professores, a culpa, imprudência ou negligência invocadas contra eles como tendo provocado o
fato danoso deverão ser comprovados de acordo como o direito comum, pelo requerente na instância (STOCO,
Rui. “Responsabilidade civil no Código Civil francês e no Código Civil brasileiro”, in Estudos em homenagem
ao bicentenário do Código Civil francês, setembro de 2004, p. 12).
41

Art. 1385. Le proriétaire d’un animal, ou celui qui s’en sert, pendant qu’il
est à son usage, este responsible du dommage que l’animal a cuasé, soit que
l’animal fût sous as gfarde, sit quíl fût égaré ou échappé50.
Art. 1386. Le propriétaire d’un bâtiment est responsible du dommage causé
par sa ruine, lorsqu’elle est arrivée par une suite du défaut d’entretien ou
par le vice de sa construction51.

Tais artigos do Código Civil francês tratavam da chamada Teoria da Culpa


na Guarda, caracterizada pelo poder, efetivo e independente, de direção, de uso e de controle
da coisa. A culpa, no que diz respeito à guarda, afasta-se da teoria clássica. Ela consiste, tão-
somente, no fato de perder a guarda da coisa a que se estava obrigado legalmente, isto é, a
responsabilidade se dá em razão de fatos resultantes de coisas das quais se tem a guarda. Não
há que se falar, aqui, em imputabilidade moral ou em atuação dentro dos padrões de
normalidade, pois o fato material da perda do poder absoluto sobre a coisa já é a própria
culpa. Esta decorre, portanto, da violação da obrigação legal da guarda da coisa, podendo ser
vista, ainda, como uma garantia direta, absoluta, que, em razão do dano causado, absorve o
risco. O guarda de uma coisa qualquer responde de pleno direito pelos danos que ela causa e
fala-se, assim, em culpa in eligendo e in vigilando (JOSSERAND, 1946, p. 40-41 e STOCO,
2004, p. 11).

Ademais, a teoria da culpa na guarda – tendo em vista, em particular, o


artigo 1.384, I, do Código Civil francês - deu origem à Responsabilidade do Fato da Coisa,
que passou a coexistir com a responsabilidade do fato pessoal fundamentado no conceito
clássico de culpa. A sua aplicação tornou-se recorrente face ao crescente número de acidentes,
em especial acidentes de automóvel, de caça, de esportes, de explosões de máquinas.

Interessante notar, ainda, o desenvolvimento da Teoria da Culpa na


Responsabilidade entre Vizinhos. A vizinhança é um dos ambientes mais propícios para se
verificar choques de interesses e os danos deles decorrentes. O problema que surge, para
muitos doutrinadores, é conseguir resolver esses conflitos tendo em mente a Teoria Clássica
da Culpa.

Não há como negar que a relação entre vizinhos é dotada de certa


particularidade: a aproximação e as vicissitudes econômicas e sociais fazem com que haja um

50
Art. 1385. O proprietário de um animal ou aquele que o usa, enquanto estiver sendo usado, é responsável pelos
danos que o animal possa provocar, quer enquanto o animal estiver sob sua guarda quer este estiver perdido ou
tiver escapado.
51
Art. 1386. O proprietário de um imóvel é responsável pelos danos provocados por estragos, quando estes são
conseqüentes de uma falta de manutenção ou de um vício de construção.
42

nível de tolerância de incômodos inevitáveis e até mesmo de prejuízos. Diante dessa


singularidade, os irmãos Mazeaud sustentaram a tese de que a responsabilidade seria do
proprietário, ainda que, em certos casos, tivesse adotado as precauções possíveis para evitar o
dano. Para eles, o fundamento encontrava-se no excesso do dano, com base no seguinte
argumento:

Um indivíduo avisado não ultrapassa os limites das perturbações normais; há


culpa desde que se ultrapassem estes limites, pois o vizinho não é obrigado a
suportar mais do que é suportável, ou seja, os vexames, os inconvenientes e
as perturbações inevitáveis, a fim de que cada um possa exercer o seu direito
de proprietário ou tenha o uso da coisa (MAZEAUD ET MAZEAUD, 1934,
p. 118 apud LIMA, 1998, p. 93).

Todavia, a crítica quanto a esse entendimento encontra-se na alegação de


que a referida teoria dispensa a análise do ato, considerando relevante, tão-somente, as
conseqüências, isto é, o valor excessivo do dano.

Sob outra perspectiva, autores como Ihering, Picard e Hauriou definiram


culpa na esfera das relações de vizinhança como a recusa de se reparar o dano sofrido pelo
uso excepcional da propriedade. Para tanto, insurgiram-se os críticos contra essa concepção
ao compreenderem que essa tese defendia a culpa em seu sentido genérico de simples
violação de qualquer obrigação (PAUL LEYAT, 1936, p. 158 apud LIMA, 1998, p. 96)52.

Por fim, existiam, ainda, as presunções absolutas (presunções et de jure),


diante das quais o autor não tinha a possibilidade de provar a ausência de erro em sua
conduta, sendo suficiente a comprovação do dano. A culpa é presumida de forma
incontestável, decorrente, tão-somente, do fato danoso em si53. Em outras palavras, a culpa
limitava-se à prática de um ato, independentemente do agente ser ou não moralmente
52
Na visão de Paul Leyat, a culpa nas relações de vizinhança difere daquela proveniente do erro de conduta, cujo
parâmetro é o comportamento do homem normal submetido às mesmas circunstâncias. Para o autor, a culpa deve
recorrer à teoria romana da immissio, criando uma espécie de culpa própria de vizinhança. Dessa forma, não
obstante a observância das leis e das precauções adotadas para evitar o dano, a responsabilidade incidirá sobre
aquele que usurpar o direito de propriedade vizinha em virtude da emissão de qualquer coisa que possa causar
dano, surgindo a culpa pelo simples fato em si da emissão (LIMA, 1998, p. 97-98).
53
Aqui, pode-se suscitar a crítica de que, na verdade, não se cogitaria da responsabilidade extracontratual
subjetiva, mas sim da própria responsabilidade objetiva. Se a presunção irrefragável impossibilita o agente do
evento danoso de produzir qualquer prova, não se poderia admitir que ele fosse responsável por culpa em razão
de não ter melhor escolhido ou fiscalizado (LIMA, 1998, p. 75). Ademais, os efeitos jurídicos de ambas têm o
mesmo princípio, ou seja, o agente do fato danoso é responsável pela reparação sem a prova da causa do evento,
sem a discussão da possibilidade de ausência de culpa, não passando a culpa presumida de uma “simples ficção
de culpa” (LIMA, 1998, p.76). Acrescenta Frederico Pezella que a presunção é um juízo preventivo interno
sobre a existência de particularidades de um fato, isto é, sustenta-se em dados da experiência que se adequam ao
fato novo. Assim, a conclusão é a de que a culpa presumida é, em última instância, o fundamento da
responsabilidade objetiva; seria uma culpa legal criada pelo legislador para atender as necessidades econômicas
e sociais, uma culpa objetiva, sem imputabilidade moral, como defendiam os irmãos Mazeaud, mas não seria a
culpa derivada da vontade que caracteriza a responsabilidade extracontratual subjetiva (LIMA, 1998. p. 76-77).
43

imputável ou de ter agido conforme os padrões de conduta. Como disse Josserand, estar-se-ia
diante de uma “culpa provável, simplesmente possível, um fantasma de culpa”
(JOSSERAND, 1936, p. 48 apud LIMA, 1998, p. 73).

Vê-se, portanto, que a culpa presumida já trazia traços de uma


responsabilidade sem culpa. A fim de atingir a reparação do dano e assegurar a proteção da
vítima, que por vezes ficava irressarcida diante dos notórios percalços inerentes à produção
das provas, a lei presumia a culpa, isto é, não visava a uma falta imputável a quem quer que
fosse e considerava apenas um fato material, objetivo, concreto, tornando o autor plenamente
responsável por força de imperativo da própria lei (MONTEIRO, 1998, p. 400). Na verdade, a
culpa legal criada pelo legislador para atender as necessidades econômicas e sociais –
principalmente no período pós-Revolução Industrial -, demonstrou as primeiras linhas de uma
responsabilidade objetiva.

3. Considerações críticas

À luz do exposto, nota-se que o sentido da culpa passou por um processo de


evolução: o foco deixou de ser o conceito clássico da culpa, com fundamento psicológico,
para se concentrar nas novas modalidades da culpa objetiva, no sentido de eliminar da
responsabilidade extracontratual o elemento subjetivo (LIMA, 1998, p. 113). Essa
transformação, para tanto, aconteceu em virtude do contexto em que se inseria o Direito, que
evolui na medida em que a sociedade torna-se mais complexa, repleta de anseios, interesses e
vontades que requerem uma resposta positiva do Direito.

A primeira vertente da culpa, a do psicologismo, prestigiava a consciência


de cada autor em um determinado caso e a composição dos danos baseava-se,
necessariamente, no erro de conduta e de previsibilidade avaliados conforme a valoração do
julgador quanto aos motivos íntimos, psicológicos e volitivos de cada agente e que teriam
sido essenciais para a ocorrência do dano. Todavia, as múltiplas atividades causadoras de
dano impossibilitavam, em muitas ocasiões, a fixação da responsabilidade com base em
critérios tão subjetivos de culpa, aumentando as discussões sobre a questão probatória na
reparação dos danos.

Para não deixar a vítima sofrer, sozinha, com as conseqüências do evento


danoso, critérios mais objetivos foram adotados e a criação do parâmetro do homem médio,
44

do bom pai de família proposto pelos irmãos Mazeaud, permitiu, de certa forma, a facilitação
da prova do dano. .

A culpa objetiva – como ficou conhecido esse padrão objetivo – dispensou


as disposições especiais da pessoa ou o seu grau de compreensão, os seus meios e
possibilidades individuais do autor do evento para se concentrar na sua conduta, isto é, para
aferir se aquela conduta teria sido praticada por um homem diligente e prudente, pelo bom pai
de família; se um homem médio poderia prever e evitar o evento danoso. Apesar de algumas
vantagens, a teoria objetiva da culpa apresenta falhas insustentáveis.

Em primeiro lugar, não é aconselhável aplicar de modo absoluto a culpa in


abstracto, pois não se desprezam certas circunstâncias de tempo, meio, classe social, usos e
costumes, hábitos sociais, não havendo um tipo de pura abstração. Sobre o assunto, reflete
Alvino LIMA (1998, p. 60):

Elementos concretos são tomados em consideração, colocando-se o tipo de


comparação nas mesmas condições em que se encontra o autor do ato ilícito,
ou seja, em face de uma realidade concreta.

O conceito de culpa depende da definição da conduta normal do homem


adaptado à vida em sociedade, ao ambiente em que vive. Destarte, um erro nesta conduta, um
desvio de comportamento, implicará a responsabilidade extracontratual. Aqui, cumpre
conhecer se o agente, ao proceder com certa conduta - seja positiva (ação), seja negativa
(omissão) - atendeu às contingências a sua volta, tendo por parâmetro a atuação do homem
prudente, normal, avisado. Se for constatado que não houve desvio de como geralmente se
procede em condições idênticas, não se cogitará do elemento culpa e, por conseqüência, da
responsabilidade.

A culpa é um erro de conduta e certos elementos pessoais são


indispensáveis para se estabelecer a responsabilidade do indivíduo em face desse erro.
Requer-se a avaliação do estado de ânimo e do estado psicológico do agente, tendo em vista a
sua razão e a sua inteligência, para se saber se poderia agir como age o bonus pater familias.
Analisa-se se o homem tem a faculdade de entender a regra geral de conduta e segui-la, se ele
tem juízo de reprovabilidade de sua conduta. O erro está justamente na hipótese do indivíduo
ter condições para prever os efeitos de seu ato ou podido prevê-los e evitá-los, como faria uma
pessoa prudente, avisada, cuidadosa.
45

O indivíduo age sem querer as conseqüências do seu ato, mas podia ou


54
devia prevê-las (voluntariedade in causa) . Há, com efeito, a liberdade quanto ao querer o
ato, mesmo que o dano seja previsto ou previsível. Isso significa que a ação é dotada da
consciência da possibilidade do perigo55 para o bem jurídico, só que não se deseja a sua
concretização; ao contrário, deseja que o perigo não se verifique56. O autor age, assim, com
defeito de diligência e consciente da reprovabilidade de sua conduta.

Esse modelo de comportamento é o do homem normal, eminentemente


humano do bonus pater familias, e não o de “um tipo ideal, um super-homem” (FERRINI
apud LIMA, 1998, p. 58)57. E por assim ser, deve-se considerar sim as particularidades do
agente, sob pena de se conceber, nas palavras de Aguiar DIAS, uma teoria de “rude crueza,
quando, por exemplo, considera culpado quem age mal por força de suas limitações de
inteligência ou dos sentidos. Que se pode censurar, por exemplo, ao homem que, por uma
fatalidade da natureza, não é tão destro, tão prudente, de raciocínio tão pronto, de vista ou
ouvidos tão bons como o average man?” (2006, p. 72).

No tocante ao abuso do direito, opiniões contrárias insurgiram-se em relação


à necessidade da culpa para configurar o ato abusivo. Pedro Baptista MARTINS sustenta que
o abuso do direito traz uma concepção objetiva e que, assimilá-lo à culpa, é uma empresa não

54
Em contrapartida, existe a voluntariedade in re, a qual retrata o agir com dolo. Nesse caso, o agente quer o
resultado, ele deseja a situação objetiva em que o bem jurídico é exposto ao perigo (VANNINI apud LIMA,
1998, p. 67).
55
A consciência do ato representa o elemento subjetivo, estabelecendo a relação moral entre a lesão material e o
autor.
56
A conseqüência lógica dessa afirmação é a de que o alienado não pode ser responsável em virtude da noção de
culpa clássica, já que não possui a faculdade de previsão. Os danos causados ficam sem reparação, pois não há
consciência dos atos, estando ausente o elemento psicológico – exceto na hipótese de responsabilidade do guarda
do alienado. Contudo, diante da necessidade de se proteger a vítima de um dano injusto, os doutrinadores
criaram a teoria da culpa anterior. Vista como resposta à manutenção do equilíbrio social e como forma de
atender os fins da eqüidade, a teoria da culpa anterior buscou os fatos anteriores que justificam a alienação
mental. Se este fato provém de fatos voluntariamente imputáveis ao alienado, de modo que ele se encontrava em
condições de prever as conseqüências prejudiciais de seus atos, deverá responder pelo ato danoso praticado em
estado de inconsciência; se era possível agir de forma diversa, evitando os atos que levaram ao estado de
demência, o fato do agente não ter se conduzido com diligência constitui culpa, denominada culpa anterior,
preexistente ou causal. A responsabilidade, assim, decorre da causa inicial voluntária. A responsabilidade por
culpa anterior pode ser configurada, por exemplo, em casos de alienação proveniente de embriaguez, de uso de
substâncias entorpecentes e de contágio de moléstias venéreas. Algumas legislações aderiram a essa teoria:
austríaca, alemã, belga, italiana e suíça (LIMA, 1998, p. 89).
57
A crítica que pode ser feita a esse método para definir culpa é a de que esse tipo abstrato não pode ser
definido, nem na lei, nem na doutrina, porque só em face de uma dada situação é que podemos julgar se o
procedimento de uma pessoa foi o de um bonus pater familias (PACCHIONI, 1933, p. 347 apud LIMA, 1998, p.
58). Para tanto, tal juízo merece censura, pois as leis apenas selecionam as ações, proibindo aquelas que são
incompatíveis com a ordem social e impondo as que são construtivas para o Direito, sendo insustentável a
pretensão de uma regulamentação jurídica capaz de abranger todos os casos, com precisão e clareza, de modo a
ser possível a aplicação matemática a cada caso concreto (LIMA, 1998, p. 235 e LOPES, 2003, p. 368).
46

só arriscada, como inútil. Assevera que qualquer ato, moralmente reprovável ou não, que,
excedendo os limites da normalidade, provoque um sério desequilíbrio entre os interesses
juridicamente protegidos, é abusivo e obriga por isso o seu autor a reparar-lhe as
conseqüências lesivas (2002, p. 163-165).

Porém, é questionável tal afirmação, uma vez que a própria nomenclatura


“abuso” revela a sua reprovabilidade, no sentido de que o juízo de ilicitude persiste e não
pode ser desprezado, isto é, um ato pode ser determinado como um direito, mas, em seu
exercício, ser um ilícito, a depender do motivo legítimo – ou ilegítimo – que guiou o titular do
direito (JOSSERAND, 1999, p. 6 e 25-27).
47

Capítulo III – Culpa e risco

1. As teorias objetivas

A despeito do esforço dos defensores da teoria da culpa em expandir o seu


sentido, com a adoção de um perfil objetivo, a culpa foi alvo de intenso ataque doutrinário.

Em razão do progresso social e da multiplicação de interesses, o número de


conflitos entre direitos aumentou, conferindo substratos para a difusão dos estudos a respeito
da responsabilidade civil. Novas teorias foram criadas com a pretensão de ampliar a proteção
das vítimas dos direitos violados, em respeito à sua dignidade. Para tanto, tais teorias
comprometeram-se com o extremismo de banir a culpa da responsabilidade civil, num
processo de objetivação desta:

Ora, não convém ir mais longe e banir completamente do domínio da


responsabilidade, pelo menos do número das eventualidades, essa noção de
culpa tão delgada, tão desprezada, tão relegada; não convém admitir que
somos responsáveis, não sòmente por nossos atos culposos, mas pelos
nossos atos pura e simplesmente, pelo menos, bem entendido, se causaram
um dano injusto, anormal a outrem? (JOSSERAND, 1946, p. 42).

Na responsabilidade subjetiva, a análise era restrita à manifestação


exclusivamente humana, sendo claramente suscetível a uma valoração ética, ora em relação à
motivação do agente, ora em relação à conduta em si. Falava-se em correção e incorreção;
licitude e ilicitude; antijuridicidade e juridicidade; aceitação e reprovabilidade. A proposta,
então, diante desse novo paradigma social, era a de que fosse desenvolvida uma noção de
responsabilidade capaz de proporcionar soluções mais justas e eficazes.

No século XIX, o Estado Moderno e o capitalismo despontaram como novas


formas de organização social e econômica. O rol de necessidades a serem satisfeitas
aumentou e os novos atores sociais exigiam maior proteção de seus direitos. No século XX,
esse processo tornou-se mais intenso e as conseqüências foram sentidas na responsabilidade
jurídica.

O modelo de responsabilidade subjetiva por ato ilícito, até então


predominante, demonstrava-se, cada vez mais, insuficiente perante os problemas sociais. Com
o desenvolvimento social – em particular, a partir da Revolução Industrial -, as atividades
tornaram-se mais perigosas e passaram a oferecer riscos para os cidadãos. Devido ao intenso
uso das máquinas nas indústrias, dos automóveis, do avião, das ferrovias, os acidentes
48

multiplicaram e viraram uma constante no cotidiano dos cidadãos e a dificuldade de se provar


a culpa em acidentes com causas cada vez mais complexas levou o legislador a abrir brechas
na concepção da Teoria Clássica da responsabilidade civil, bem como fez os tribunais
hesitarem sobre o fundamento da responsabilidade. A culpa não era mais suficiente para
regular os diversos casos de responsabilidade e se pregou o desprendimento da
responsabilidade civil de quaisquer elementos subjetivos (JOSSERAND, 146, p. 33).

Nesse cenário, a responsabilidade deveria ser objetiva e teorias surgiram


com o pretexto de solucionar adequadamente tais problemas, passando a ser conhecidas como
Teorias Objetivas, das quais são exemplo as teorias do risco, da garantia, da eficiência, dentre
outras.

Com o foco na análise do evento e dos seus resultados, a responsabilidade


objetiva, como gênero, viu-se obrigada a estabelecer novos critérios de distribuição dos danos,
privilegiando a dignidade e os interesses das vítimas, tendo em vista atividades complexas
que geravam graves riscos sociais - como as indústrias, as minas e as estradas de ferro - e que
não poderiam ser abrangidas apenas com fundamento na culpa58.

Já na Escola do Direito Natural, notava-se, em alguns autores, a idéia de que


havia, acima de tudo, o direito natural de todas as pessoas à reparação dos danos. Defendia-se
a eqüidade na responsabilização. Depois, com a contribuição da doutrina alemã, o ilícito
restringiu-se à infração de um dever jurídico e a responsabilidade civil estava apta a dispensar
o elemento anímico para se configurar: o dano era a realidade objetiva e a verificação do
elemento subjetivo da culpa havia se tornado desnecessária, isto é, a responsabilidade
desprendia-se do sentido de ilicitude e de reprovabilidade.

Nesse contexto, merecem destaque algumas teorias da responsabilidade


objetiva, principalmente as da literatura germânica. As principais teorias que sistematizam a
doutrina da responsabilidade sem culpa são cinco: o princípio do interesse ativo, o princípio
da prevenção, o princípio da eqüidade, o princípio da repartição dos danos e o princípio da
Gefährdung (DIAS, 2006, p. 68-71 e LOPES, 2003, p. 250-254).

O princípio do interesse ativo apresentou a seguinte tese: o dano deveria ser


atribuído a quem obtivesse o benefício decorrente do empreendimento, ou seja, aquele que

58
Com a Revolução Industrial, as transformações foram inúmeras, seja na ordem social, seja na ordem
econômica. Tensões emergiram e exigiram do Direito uma resposta para essa nova e complexa realidade, em
especial ao que se refere às vítimas de acidentes de trabalho. Nessa época, tomava-se consciência de que os
danos poderiam ser, além de graves, fatais.
49

explora, em seu próprio interesse, uma atividade qualquer tem a responsabilidade pelas
conseqüências da exploração, mesmo que estas sejam danos advindos de acidentes e eventos
inevitáveis.

O princípio da prevenção trouxe outra perspectiva. Aqui, o indivíduo era


estimulado a concentrar todos os seus esforços para evitar os danos intrínsecos a sua
atividade. Significava que o empreendedor, a partir do momento em que tivesse consciência
dos danos iminentes de sua atividade, adotaria as precauções além das usuais, numa expressão
de diligência máxima.

O princípio da eqüidade nasceu da concepção de que os incapazes de


discernimento também deveriam ser responsáveis pelos danos por eles provocados. A
responsabilidade não estaria mais baseada exclusivamente na culpa. Em seqüência, veio o
princípio da repartição dos danos e a defesa da socialização destes; em outras palavras: os
ônus decorrentes de um prejuízo deveriam ser arcados por todos – inclusive toda a
coletividade - que possuíssem qualquer espécie de interesse na atividade econômica causadora
do dano.

Por fim, o princípio da Gefährdung, de acordo com o referencial de que


todas as coisas e atividades têm um risco inerente (risco normal), apresentou a
responsabilidade decorrente do perigo iminente, concreto, anormal e ameaçador, que obrigava
a todos que exercessem tais atividades a evitar prejuízos para outrem e a reparar se
ocorressem.

Em face desse contexto de intensa efervescência teórica, surgiu na França a


responsabilidade objetiva pela teoria do risco, cujos principais expoentes foram, sem dúvida,
Raymond Saleilles e Louis Josserand. Ao julgarem restrito o âmbito da culpa para solucionar
os variados problemas relativos à responsabilidade civil, defenderam a ampliação do conceito
de culpa – inclusive, chegaram a adotar a noção de responsabilidade além da culpa. Era o
início da teoria da reparação do dano decorrente do fato ou do risco criado. Eis a justificativa
de Josserand:

La responsabilité moderne comporte deus pôles, de pôle objetif, où règne le


risque créé, le pôle subjetif où triomphe la faute, et c’est autour de ces deux
que tourne la vaste théorie de la responsabilité (1936, p. 49 apud LIMA,
1998, p. 41)59.

59
“A responsabilidade moderna comporta dois pólos, o pólo objetivo, ou o que rege o risco criado, e o pólo
subjetivo ou triunfo da culpa, sendo que a proximidade entre esses dois conceitos torna a teoria da
responsabilidade vasta” (tradução livre).
50

2. A teoria de Raymond Saleilles e de Louis Josserand

Tendo em vista as dificuldades de se aplicar a responsabilidade por culpa


nos casos de acidentes de trabalho, Raymond Saleilles publicou um artigo no qual apresentou
uma nova noção de responsabilidade.

Nos acidentes de trabalho, a causa imediata do dano decorre do próprio fato


relacionado à vítima, ou seja, a prova da culpa do patrão estaria, quase sempre, na omissão em
não ter tomado os cuidados necessários para evitar o dano. Assim, entendia-se que, para
excluir a responsabilidade do patrão, as precauções deveriam ser as mais severas possíveis,
mediante cuidados extraordinários, que, uma vez atendidos pelo patrão, teriam impedido os
acidentes.

Mas, tal interpretação tornava-se, com os novos tempos, insustentável.


Saleilles entendia que, nessas hipóteses, poder-se-ia falar apenas em risco profissional60, pois
a própria jurisprudência francesa não demonstrava que as medidas exigidas seriam capazes de
evitar os danos, sendo o risco ônus do patrão.

A responsabilidade civil não poderia mais limitar-se à relação de causa e


efeito entre um ato voluntário e um dano, como pretendia a responsabilidade por ato ilícito
disciplinada no artigo 1382 do Código Civil Francês. Conseqüentemente, a culpa deveria ser
vista sob outro ângulo (SALEILLES, 2001, p. 22 apud LOPES, 2003, p. 256):

Após a evolução da jurisprudência, esta relação de causa e efeito tende a se


desarticular. É a culpa, entendida como um ato voluntário, que se tem em
vista, menos na sua relação subjetiva com o acidente ou como vontade
imprudente, desatenta, mas sobretudo na sua materialidade e nos seus
elementos objetivos.

O fundamento da responsabilidade era o ato voluntário, cujos elementos


materiais são o foco de análise. Sob essa perspectiva, “não se pode dizer que haja culpa do
patrão como causa do acidente, mas se verifica um ato irregular que se imputa ao patrão, ao
colocar os riscos como seu encargo. Não há causalidade direta, mas um ato voluntário a partir
do qual se atribuem os riscos ao empregador” (LOPES, 2003, p. 256).

Em outras palavras: a partir do momento em que o empregador põe,


voluntariamente, à disposição os instrumentos para a consecução do trabalho, os acidentes
podem ocorrer. Como ele aufere os proveitos dos negócios, deve comportar os riscos a eles

60
Na França, o risco profissional foi introduzido por meio da lei de 09.04.1898.
51

inerentes. Daí a concepção da Teoria do Risco por Saleilles; para ele, “o agente que tirasse
61
voluntariamente proveito de um negócio deveria suportar seus riscos” (LOPES, 2003, p.
256).

Baseando-se na teoria do risco proveito/profissional de Saleilles, Louis


Josserand, no ensaio “Da responsabilidade pelo fato das coisas inanimadas”, de 1897,
consagrou a responsabilidade pelo Fato da Coisa e pelo Risco Criado, ampliando a teoria de
seu conterrâneo.

Tendo em vista as hipóteses em que as conseqüências de um evento danoso


devem ser suportadas pela vítima, mesmo que esta não tenha dado causa, Josserand advertiu
que não era admissível essa situação de iniqüidade. Para o autor, além das máquinas das
indústrias, outros fatores podiam gerar danos e a responsabilidade não se restringiriam a do
patrão. Por isso, alegava que quaisquer coisas que causassem prejuízos a outrem implicavam
na responsabilidade daquele que se servia ou se aproveitava delas. A conclusão a que chegou
foi a de que “à obrigação nascida do fato da indústria, deve-se substituir pela obrigação
advinda do fato das coisas, à noção de risco profissional, deve substituir pela do risco criado”
(JOSSERAND, 1897, p. 106 apud LOPES, 2003, p. 257).

Em virtude dessa proposta da Teoria do Risco Criado, a culpa não era mais
a fonte exclusiva de responsabilidade. Aqui, a responsabilidade pretendia ser mais equânime e
protetiva, pois exigia que as conseqüências do fato das coisas fossem arcadas pela pessoa que
tinha a sua guarda e delas obtinha benefícios62. Logo, até mesmo na hipótese de caso fortuito,
o encargo seria “daquele que o determinou, provocou e não daquele que somente foi vitimado
por ele” (JOSSERAND, 1897, p. 113 apud LOPES, 2003, p. 258), pois o que gerava a
responsabilidade era o risco criado, cujos danos decorriam diretamente da coisa, e não o risco
da humanidade63.

61
No direito francês, a positivação dessa teoria encontrava-se no artigo 1384 do Código Civil francês, no qual se
solidificou a responsabilidade civil por ato de terceiros aos que tivessem o poder-dever de guarda e vigilância:
“Art. 1384 – Toda a pessoa é responsável não somente pelo dano que causou por ato seu próprio, mas ainda por
aquele que foi causado por ato de pessoa pela qual devia responder ou por coisas que estão sob a sua guarda”.
62
De acordo com a responsabilidade subjetiva, se nem o possuidor da coisa nem a vítima tiverem culpa, esta
última deverá suportar o dano sem indenização. Mas, se a vítima não possui qualquer relação como o objeto, ao
passo que o proprietário ou possuidor dele retira algum benefício, não é lógico que a vítima comporte,
definitivamente, o prejuízo. Por isso, a teoria do risco criado defende que as pessoas proprietárias, possuidoras
ou detentoras assumam os riscos advindos desses objetos.
63
O proprietário responde, portanto, por caso fortuito, mas jamais por força maior, uma vez que esta provém de
fatos absolutamente independentes, de origem externa, fora de seu controle, como, por exemplo, os elementos
naturais e a guerra, denominados pelo direito inglês como os “acts of God”.
52

Em suma, de acordo com a responsabilidade objetiva pelo risco criado, a


obrigação de reparar o dano provocado por uma coisa inanimada tinha fonte legal64, existindo,
tão-somente, se o dano fosse efetivamente causado pela coisa, numa relação de causalidade
entre coisa e dano65. Ademais, o seu fundamento estava na noção de risco criado, ou seja, a
obrigação, nos termos do artigo 1384 do Código Civil francês, nasceria no encargo daquele
que criou o risco, que “deu à força a direção perigosa que ela assumiu” (JOSSERAND, 1897,
p. 124 apud LOPES, 2003, p. 259). Sobre o assunto, sintetiza Othon LOPES (2003, p. 259):

Para Josserand, a eqüidade exigia que a teoria do risco se alargasse para


além da teoria do risco proveito e do risco profissional. É que, se nem o
possuidor da coisa nem a vítima tivessem culpa no evento danoso, seria mais
justo que aquele que tivesse alguma relação com o objeto que causou o dano
respondesse pelos prejuízos. Quem voluntariamente determina um risco ao
guardar, possuir ou colocar em marcha um empreendimento deve ressarcir
os danos dele decorrentes (2003, p. 259).

3. Outras perspectivas objetivistas

Não obstante as expressivas lições de Saleilles e Josserand, não são eles os


únicos autores que merecem destaque. Outras interpretações, apesar de não constituírem o
ponto de partida das teorias objetivas, têm importância dentro da doutrina da responsabilidade
civil, a partir do momento em que promoveram a confusão entre culpa e os elementos do dano
e do nexo de causalidade, negando, em última instância, a própria existência de culpa.

Nesta seara, alguns doutrinadores defenderam que a culpa expressava o fato


em si, ou seja, era a culpa o próprio vínculo de causalidade imprescindível entre o fato e o
dano. Portanto, de acordo com essa corrente, o artigo 1382 do Código Civil francês, que tinha
por escopo a obrigação de indenizar o fato humano constitutivo do dano, trazia a seguinte
conclusão: como a culpa era resultado de ato voluntário e para a indenização bastava, tão-

64
A teoria do risco criado tinha amparo legal no artigo 1384, § 1º do Código Civil francês. O dispostitivo
determinava, ainda, segundo Ripert, a presunção geral de culpa quanto àquele que tem à sua guarda uma coisa
inanimada (2000, p. 208).
65
A respeito da teoria do risco, é interessante destacar a opinião de Ripert, principalmente no tocante à
causalidade: “Todo o prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por aquele que o causou, porque todo
problema de responsabilidade civil resolve-se em um problema de causalidade; ou ainda: qualquer fato do
homem obriga aquele que causou um prejuízo a outrem repará-lo.
Esta idéia de causalidade está nítida no art. 1382. Uma das condições da responsabilidade civil cuja observância
é controlada pela Corte de Cassação é a existência dum laço entre a culpa e o prejuízo. Mas, porque o elemento
culpa está no primeiro plano não se apercebe a importância do elemento causalidade, permitindo, aliás, a regra
da liberdade de prova para os atos materiais, a livre apreciação do juiz. Se se faz desaparecer a idéia de falta, a
idéia de causalidade passa para o primeiro plano, tomando a seu cargo a idéia de responsabilidade. O ato humano
traz consigo os riscos como uma conseqüência necessária” (2000, p. 213-214).
53

somente, a relação de causalidade voluntária entre o fato e o dano, poder-se-ia dizer que a
culpa tomava para si o sentido vulgar de causa.

Logo, a responsabilidade era isenta de qualquer idéia de imputabilidade


moral, sendo o nexo causal entre o fato e o dano suficiente para determinar o que cada um
deveria responder.

Adotando um viés que também distorcia as noções clássicas, destacou-se o


conceito criado pelo autor belga Paul Leclerq. Em linhas gerais, a tese desenvolvida foi a de
que o fato de lesar o direito de outrem constitui, por si só, uma culpa, resultando a
responsabilidade, pois o homem tem a obrigação social de agir com cautela para não lesar o
direito de terceiros (LIMA, 1998, p. 46).

Não obstante a significativa repercussão da teoria de Leclerq, muitos outros


doutrinadores discordaram do conceito adotado, sob o fundamento de que a culpa era
confundida com o dano. Os irmãos Mazeaud, por exemplo, sustentavam que, segundo essa
perspectiva, a responsabilidade seria composta por apenas dois elementos: o dano e o nexo
causal, tendo sido a culpa excluída. Eis o entendimento dos autores:

Volta-se à teoria do risco, porquanto não há diferença entre afirmar-se, com


a teoria integral do risco, que “aquele que causa o dano é responsável”, e
pretender, com a tese belga, que “o que causa um dano comete uma culpa;
logo, é responsável”. Isso é o bastante para condenar a definição proposta de
culpa, visto como os redatores do Código Civil viram, na culpa, uma
condição própria da responsabilidade, distinta do prejuízo, como o é do laço
de causalidade (MAZEAUD ET MAZEAUD apud LIMA, 1998, p. 48).

Outro ponto criticado está relacionado à ausência do elemento vontade.


Pirson e Villé atentaram para a omissão do autor nesse quesito, ao sustentar que o fato
objetivo e material da lesão do direito é suficiente para acarretar a responsabilidade. Assim,
afirmaram que a teoria assemelhava-se à do risco, sendo, até mesmo, inferior a esta, sob o
ponto de vista moral (LIMA, 1998, p. 49). Nesse sentido, insurgiu-se o professor Alvino
LIMA (1998, p. 49-50):

A simples lesão do direito de outrem importa em responsabilidade, porque


aquela lesão, como violação de uma obrigação legal, é um fato ilícito, uma
culpa. Tal afirmação, entretanto, não é verdadeira, porque nem sempre a
simples violação do direito de outrem acarreta a responsabilidade (...)
cumpre examinar o ato lesivo, a fim de verificarmos se existe ou não um fato
justificativo daquele ato. Conseqüentemente, a lesão do direito, por si só, não
pode configurar a culpa e, conseqüentemente, a responsabilidade
extracontratual, dentro da concepção subjetiva.
54

Para tanto, Henri DE PAGE observou que a concepção de Leclercq


significou a transformação completa das idéias tradicionais da responsabilidade com base na
culpa. Explicou que, conforme a interpretação da teoria, não havia que se falar em confusão
entre a culpa e a lesão do direito, bem como não se podia cogitar de que havia culpa pela
simples lesão do direito de outrem, pois se sustentou exatamente o contrário: havia
responsabilidade se um direito fosse lesado em decorrência de culpa por parte do agente
(1954, p. 788 apud LIMA, 1998, 51).

4. Observações críticas

Em virtude dos danos e prejuízos decorrentes dessa intensa funcionalização


e especialização da sociedade, a responsabilidade deixou de ter o foco nas avaliações de
conduta do agente e, conseqüentemente, na culpa, para adotar os resultados do evento danoso
como critério definidor. Daí se dizer que a responsabilidade adotou um modelo objetivo, que
visa à distribuição social dos eventos onerosos, seguindo o parâmetro da eqüidade. A
inspiração veio do desejo de não deixar o prejuízo sem reparação e de melhorar a situação
jurídica da vítima.

Dessa forma, surgiram teorias como a do risco, cuja proposta era a de aquele
que causou os riscos e deles tirou proveito, deveria responder por danos que viessem a
acontecer, independente de culpa. O centro da preocupação em matéria de responsabilidade
civil deixou de ser o homem, considerado em sua particularidade, para ser o homem coletiva e
socialmente considerado:

Dentro do critério da responsabilidade fundada na culpa não era possível


resolver um sem-número de casos que a civilização moderna criava ou
agrava; imprescindível se tornava, para a solução do problema da
responsabilidade extracontratual, afastar-se do elemento moral, da pesquisa
psicológica do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de
diligência, para colocar a questão sob um ângulo até então não encarado
devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação, e não
interior, subjetivo (LIMA, 1938, p. 87 apud DIAS, 2006, p. 64-65).

Não obstante a alegação de que a teoria do risco se justifica pelo


fundamento da eqüidade, da solidariedade social, ela não está isenta de críticas, pois o
indivíduo, com a sua alma e a sua vontade, não pode ser eliminado da fixação da
responsabilidade (DIAS, 2006, p. 85). O interesse individual não pode ser esquecido em face
55

do interesse social; em verdade, o indivíduo é o centro do Direito e, no problema da


responsabilidade civil, não pode ser deixado à margem.

Assim, apesar do crescente fervor dos defensores das teorias da


responsabilidade sem culpa, as legislações modernas não abandonaram a teoria clássica,
permanecendo a culpa, em essência, o fundamento básico da responsabilidade extracontratual.
Com efeito, esses modelos de responsabilidade não podem ser interpretados isoladamente,
existindo um relacionamento funcional entre os diversos modelos, mesmo que seus efeitos
sejam díspares66, pois o que o tempo, o progresso, o aparecimento de novas e febris atividades
humanas determinam é a adaptação das regras às necessidades atuais e às exigências
experimentadas nas práticas cotidianas (LOPES, 2003, p. 357).

O sentido de culpa, portanto, deve conviver com a noção de risco e ambos


devem ser considerados como fontes da responsabilidade civil (DIAS, 2006, p. 22-23). De
fato, o risco não pode ser ignorado, porque a culpa, muitas vezes, demonstra-se insuficiente
como fundamento da responsabilidade, tendo em vista a dificuldade acerca da prova da causa
do sinistro. O mais sensato é adotar uma posição conciliatória, ainda mais nos dias atuais, em
que há a tendência de socialização dos riscos e em que se fala, cada vez mais, em prevenção e
precaução de danos e, até mesmo, na substituição da indenização pelo seguro. Isso poderia ser
uma temeridade dadas as repercussões econômicas que acarretariam a adoção integral do
princípio do risco (DIAS, 2006, p. 41; 52-53).

Enfim, insurgir-se contra a idéia tradicional de culpa é criar uma dogmática


desafinada de todos os sistemas jurídicos, mas ficar somente com ela é entravar o progresso
(PEREIRA, 1990, apud GONÇALVES, 2007, p. 33). Como disse Bochko K. Péritch, ao
exaltar a culpa e o risco como protagonistas diametralmente opostos, a responsabilidade civil
é um suntuoso palácio, um verdadeiro tesouro histórico: Les architectes d’aujourd’hui sont en
discussion sur son style: les uns prétendet qu’il apparait classique, celui de la faute; les
autres qu’il est moderne, c’est le risque (PÉRITCH, p. 47 apud LIMA, 1998, p. 16)67.

66
Nesse sentido, conclui-se que: “Os modelos subjetivos centram sua perspectiva no ato humano, avaliando-o a
partir de sua referibilidade a um dever contido em uma norma social. Por se dirigirem à análise de uma conduta,
abrem um leque para diversos juízos éticos sobre a própria ação e a determinação precisa do agente realizador do
ato. As formas e estruturas que se construíram dentro do modelo por ato ilícito direcionam-se a avaliações de
conduta” (LOPES, 2003, p. 357).
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“Seria como a discussão, hoje em dia, entre arquitetos acerca do estilo do palácio: os que pretendem uma
aparência clássica corresponderiam à culpa; os outros que optam por um moderno, corresponderiam ao risco”
(tradução livre).
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Conclusão

Em face do exposto, pode-se dizer que a responsabilidade jurídica é fruto de


uma rica e complexa experiência histórica. O direito contemporâneo foi moldado a partir de
modelos que retomam os ensinamentos das mais antigas civilizações. E essa vivência
histórica serviu de referencial para estruturar o conhecimento e a formulação de teorias e
conceitos sobre o estudo da responsabilidade jurídica.

As normas jurídicas devem assegurar interesses, mas sempre em sintonia


com a realidade em que estão inseridas. Por isso, as normas relativas à responsabilidade foram
estruturadas, ao longo de séculos, conforme as necessidades e as contingências cada vez mais
complexas da sociedade. Diante dessa complexificação do cenário social, a experiência
jurídica vivenciou a construção de novos paradigmas. Nesse sentido, observa Franz
WIEACKER “que novas fundamentações ideológicas da ordem jurídica procuravam
constituir-se em substitutos para a justiça. Elas encontram-nos, nomeadamente, no interesse
ou nas necessidades, quer dos indivíduos, quer da sociedade ou comunidade, ou em outros
objectivos extra-jurídicos” e, assim, “o direito passa a ser explicado causalmente como
produto da vida social; compreendido do ponto de vista finalista, como meio para as
finalidades da vida” (1980, p. 14).

Inicialmente, a responsabilidade orbitava na esfera da vingança privada, da


compensação voluntária e da compensação obrigatória, em que o dano deveria ser ressarcido,
independentemente de quaisquer circunstâncias. Depois, em face de uma estrutura jurídica
organizada, passou-se a cogitar de certos elementos que influenciavam os atos dos indivíduos:
nessa época, a culpa surge como fator determinante para se caracterizar a responsabilidade.

A partir desse momento, inúmeras teses surgiram e grandes juristas


destacaram-se na tentativa de definir o que seria a culpa. Logo, interpretações diversas, e
inclusive extremistas, pautaram o estudo da culpa, que se transformou num dos pontos mais
controversos e instigantes do Direito Privado contemporâneo

Historicamente, a evolução do sentido da culpa ocorreu na medida em que


houve a mudança de seus parâmetros. De início, o centro da preocupação era o homem,
considerado em sua particularidade, talvez num reflexo da tradição judaico-cristã, que
entendia ser a culpa a quebra do compromisso com Deus, indicando uma concepção de culpa
57

interna, ligada à consciência de cada indivíduo. No século XVIII, com o Jusnaturalismo, a


idéia de culpa passou a ser o rompimento com a própria sociedade.

Tempos depois, com o desenvolvimento social, proporcionado


principalmente pela Revolução Industrial, as atividades tornaram-se mais perigosas e
passaram a oferecer riscos para os cidadãos. Devido ao intenso uso das máquinas nas
indústrias, dos automóveis, do avião, das ferrovias, os acidentes multiplicaram e viraram uma
constante no cotidiano dos cidadãos, crescendo a dificuldade de se provar a culpa em
acidentes com causas cada vez mais complexas. Daí o porquê da criação de critérios objetivos
para fixar a culpa, pois traziam consigo a idéia de abstração, de igualdade e de maior proteção
dos cidadãos, como uma resposta positiva do Direito frente aos novos anseios e às novas
necessidades.

A tendência foi a de melhorar a situação da vítima do dano, facilitando a


prova, pois não era mais admissível a vítima suportar as conseqüências do evento danoso.
Para tal, a solução apresentada foi a criação de novas modalidades de culpas, no sentido de
que a análise da culpa não se limitaria mais aos critérios subjetivistas, pois o homem era
coletiva e socialmente considerado.

A composição dos danos que antes se concentrava no erro de conduta e de


previsibilidade avaliados conforme a valoração do julgador quanto aos motivos íntimos,
psicológicos e volitivos de cada agente, passou a ser apreciada conforme um padrão objetivo,
isto é, comparava-se a conduta in concreto com um padrão in abstrato representado pelo
homem diligente e prudente, pelo bom pai de família. Verificava-se se a conduta praticada
teria sido a mesma praticada por se um homem médio, se este poderia prever, ter previsto e
evitado o evento danoso, o que dispensava a análise de quaisquer elementos subjetivos do
agente da conduta.

Por fim, neste contexto de objetivação, não se pode olvidar que surgiram
teorias que dispensavam a própria idéia culpa como pressuposto da responsabilidade civil.

Contudo, o razoável é adotar um padrão intermediário, que represente a


conciliação entre uma concepção subjetiva e objetiva de culpa, de acordo com a conjugação
de dois critérios. O primeiro deles é o objetivo e determina que o resultado é previsível
quando a previsão do seu advento pode ser exigida do homem comum normal, do indivíduo
de atenção e diligência ordinárias, correspondentes à sensibilidade ético-social. Já o segundo
critério é o subjetivo, o qual leva em consideração as condições pessoais do agente, como
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idade, sexo e grau de cultura, indagando-se se o agente podia deixar de agir, como o fez, ou,
por outra, estaria à altura de empregar a diligência comum dos homens:

Pode-se concluir que culpa se configura como a violação de um dever que o


agente podia conhecer e observar, revelando o critério da previsibilidade segundo os
padrões de comportamento médio, mas depende da definição da conduta normal do homem
adaptado à vida em sociedade, ao ambiente em que vive, de um juízo de censura, de
reprovabilidade da conduta, a depender da capacidade psíquica de entendimento e de
autodeterminação do agente (ALPA E BESSONE, 2001, p. 248).

A culpa é um erro de conduta e certos elementos pessoais são


indispensáveis para se estabelecer a responsabilidade do indivíduo em face desse erro.
Analisa-se se o homem tem a faculdade de entender a regra geral de conduta e segui-la, se ele
tem juízo de reprovabilidade de sua conduta. O erro está justamente na hipótese do indivíduo
ter condições para prever os efeitos de seu ato ou podido prevê-los e evitá-los, como faria uma
pessoa prudente, avisada, cuidadosa.

Posto isso, não se pode censurar a essencialidade do elemento culpa, a


despeito das contingências sociais que se modificam em ritmo frenético. O indivíduo ainda é
o centro do Direito e, no problema da responsabilidade civil, não pode ser deixado à margem.
Apesar das diferenças, deve-se caminhar para o mesmo fim da necessidade de ressarcir o
dano, na proteção dos direitos lesados68, e compreender que, na dificuldade de se reconhecer
uma definição exata de culpa, há que se descobrir uma noção que seja “suficientemente
flexível para atender a todas as necessidades, e suficientemente precisa para servir de guia aos
juízes” (MAZEAUD ET MAZEAUD, 1938, p. 443 apud DIAS, 2006, p. 139).

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A observação feita pelo Professor André Rouast, da Faculdade de Direito de Paris, sintetiza de forma
brilhante o tema “culpa” na responsabilidade civil: “Em nenhuma parte, o legislador rompeu, completamente,
com o princípio da responsabilidade baseada na culpa; este princípio resiste à experiência dos fatos e das idéias
novas; a teoria da responsabilidade não se transformou, mas tornou-se mais matizada, mais adaptada às
necessidades da civilização contemporânea. O conceito de culpa perdeu aquela rigidez, dentro dos moldes
clássicos, puramente moral, para objetivar-se” (ROUAST, 1939 apud LIMA, 1998, p. 28-29).
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