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Perspectiva sociológica e pluralismo jurídico: a necessidade de superação do


bacharelismo-tecnicista na formação do profissional do direito

Revista Sociologia Jurídica - ISSN: 1809-2721


http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-1/155-perspectiva-sociologica-e-pluralismo-
juridico-a-necessidade-de-superacao-do-bacharelismo-tecnicista-na-formacao-do-
profissional-do-direito Acesso em 08 fev. 2011

Elizabete David Novaes – Doutora em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras -


UNESP-Araraquara. Profa. Dra. na disciplina de Sociologia Geral e do Direito I e II da
Faculdade de Direito das Faculdades COC – Ribeirão Preto-SP.

Resumo: O artigo trata da necessária aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno


jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído, discorrendo a respeito da
importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Entende-se que a Sociologia, junto
com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a superação de uma formação
“ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem percepção crítica e
transformadora por parte dos operadores da Lei.
Considerando-se que o direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações
espaciais, entende-se que, na realidade social concreta este fenômeno não transparece como
simples expressão da vontade da classe dominante, nem tampouco como simples reflexo das
determinações econômicas. Aponta-se assim que o direito moderno institui-se como mediador
entre as classes. Aponta-se assim, para a necessidade da eclosão de um novo paradigma
jurídico, que esteja presente na formação do profissional do direito adequado às necessidades
do real.

Sumário: 1. Introdução; 2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do


direito; 3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito; 4. Considerações finais; 5.
Referências bibliográficas.

Palavras-chave: Fenômeno jurídico - formação sociológica - profissional do direito

1. Introdução

Consideramos fundamental a aplicação da perspectiva sociológica ao fenômeno


jurídico, percebido como fenômeno socialmente construído e, para tanto, pretendemos
discorrer a respeito da importância da Sociologia Jurídica nos cursos de Direito. Esta matéria
visa, fundamentalmente, contribuir para a superação de uma visão tecnicista, esvaziada de
conteúdos humanistas, que tantas vezes acomete a formação legalista do bacharel em Direito.
Entendemos que a Sociologia, junto com as demais disciplinas humanistas, visa possibilitar a
superação de uma formação “ingênua”, decorrente de um positivismo normativista, sem
percepção crítica e transformadora por parte dos operadores da Lei.
Consideradas como eixo da formação crítico-reflexiva, as disciplinas humanistas devem estar
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imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que permita a compreensão do
Direito como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como
instrumento não somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e
transformação.
Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico,
representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido,
portanto, como processo – capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas
sociais vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos
então, que o Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um
processo histórico, significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das
forças sociais presentes na sociedade que o constrói.
Por outro lado, quando o Direito é tratado como instrumento emanado unicamente do
Estado, possuindo a lei como sua única expressão, favorece a consolidação de uma formação
positivo-normativa, cuja função passa a ser muito mais informar do que formar o bacharel em
Direito. Tal tratamento fortalece o tecnicismo, impondo uma padronização da linguagem e da
leitura dos códigos, justificando e reproduzindo a realidade social. Como conseqüência,
formas sociais são reproduzidas, garantidas e mantidas as hegemonias e ideologias, sem que
se percebam as possibilidades de transformação desta realidade. Daí a importância de
transcender a visão tecnicista, bem como de transcender a visão unilateral e unidimensional,
que não absorve as contradições e os movimentos do real, especialmente aqueles que apontam
para a existência de um pluralismo jurídico.
Tomando por base essas colocações, entendemos que o profissional do direito não
deve ler o universo como se esse fosse meramente um livro de direito, já que o universo social
do qual o direito faz parte é sempre maior que o próprio direito, não podendo ser reduzido a
este. Pelas palavras de Jean Carbonnier, afirmamos que “uma certa insignificância do Direito
deve ser um dos postulados da sociologia jurídica: o direito é como uma espuma na superfície
dos relacionamentos sociais ou interindividuais” (Carbonnier, 1999, p 47).
2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito
A Sociologia do Direito possui bases originais em Emile Durkheim, especialmente a
partir dos estudos que o autor faz acerca da solidariedade social, garantida nas sociedades
complexas, pela divisão social do trabalho e por um tipo de direito restitutivo. Esta
perspectiva esteve voltada marcadamente para estudos sobre as formas de controle social,
preocupadas em fechar ou cimentar as “brechas” que se produzem na realidade social, e que
são frutos de contradições e antinomias do direito. De acordo com Gurvitch (1999), esta
forma de conceber o direito apresenta problemas que devem ser superados, uma vez que não
leva em conta a questão da pluralidade das fontes pelas quais o controle é produzido e
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exercido, não permitindo que sejam consideradas as diferentes hierarquias de controle social,
segundo diferentes contextos históricos e culturais.
Uma significativa contribuição para a sociologia do direito foi a do jurista austríaco
Eugen Erlich, que em 1912 escreveu os Fundamentos da Sociologia do Direito, afirmando que
“a Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se
primeiramente ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto pode ser observado”
(Ehrlich, 1999, p. 113). Segundo Ehrlich, as leis são parte das regulações sociais e, desse
modo, o código civil não expressa toda a complexidade do direito, uma vez que o que a lei
propõe nem sempre se efetiva realmente.

Evidentemente, o documento só mostra aquele segmento do direito vivo que está


documentado. Como se pode, pois constatar aquela parte do direito vivo, que não
está incorporada em documentos, a qual é grande e bastante importante? Não há
outros meios a não ser abrir os olhos, Informar-se através de uma observação atenta
da vida, entrevistar as pessoas e anotar suas respostas. (Ehrlich, 1999, p. 113 ).

A partir dessas rápidas inferências às idéias de Ehrlich, podemos perceber o caráter


precursor do autor no que diz respeito à elaboração de uma sociologia do direito, pautada na
investigação empírica e concreta dos fenômenos jurídicos, evidenciando o caráter social de
que estes são revestidos.
Partindo do pressuposto de que o Direito é multidimensional, podemos afirmar que
uma de suas dimensões é tomada como objeto de estudo da sociologia, cabendo a ela
investigar as causas e os efeitos das leis. Compreendendo que as leis são fenômenos sociais,
historicamente construídos, é possível afirmarmos que há causas sociais para a existência de
determinadas leis, bem como efeitos ou conseqüências sociais destas leis sobre a realidade
social em que são forjadas. Em outras palavras, a sociologia investiga o impacto social das
leis numa dada sociedade. Não se trata de observar ou julgar valorativamente as leis (o que é
papel da filosofia do direito) e sim, investigar os valores sociais que nutrem a existência de
determinadas leis, bem como sua eficácia social. Desse modo, apontamos para a importância
da pesquisa científica de cunho sociológico, que seja voltada para o universo jurídico,
envolvendo estudos de representações sociais, percepção de valores e expectativas sociais
acerca do direito, da justiça, das leis e inovações jurídicas.

A sociologia jurídica examina a influência dos fatores sociais sobre o direito e as


incidências deste último na sociedade, ou seja, os elementos de interdependência
entre o social e o jurídico, realizando uma leitura externa do sistema jurídico.
(Sabadell, 2000, p. 49)

A sociologia jurídica, em seu desenvolvimento histórico como disciplina, apresenta


inúmeras diversidades, tanto pelo seu amplo leque de objetos de investigação, bem como
pelas teorias que lhe fundamentam. Como ciência social, é marcada por diferentes “olhares”,
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que garantem a observação da realidade jurídica por diferentes prismas e dimensões. Acerca
da importância da sociologia nos cursos de Direito, afirmam Faria e Campilongo:

As grandes transformações que atingiram o Brasil durante os últimos anos – das


quais são um importante desdobramento os movimentos em favor dos direitos
humanos e de acesso à Justiça, procurando tornar mais efetiva a idéia de que o
direito é “universal” e tentando forjar, por meio de lutas políticas, formas
alternativas de lei capazes de atenuar as desigualdades sócio-econômicas, abriram
caminho para o questionamento da estrutura vigente dos cursos jurídicos. Isso fez
com que muitos juristas, pondo em questão as fronteiras tradicionais do direito com
as ciências sociais, substituindo abordagens lógico-formais por outras mais críticas e
problematizantes, historicizando a análise do direito, identificando os pressupostos
ideológicos da dogmática jurídica implícitos na cultura “técnica” dos operadores dos
códigos, colocando em novos termos o conceito de “juridicidade”, retomando a
discussão em torno do pluralismo jurídico, dando um novo tratamento ao problema
das fontes do direito e convertendo a eficácia do direito num dos temas obrigatórios
da reflexão dos juristas, passassem a defender uma ampla reformulação estrutural
desses cursos. (Faria e Campilongo, 1991, p. 25-26)

O que podemos observar é que a sociologia jurídica caminha para uma reflexão acerca
da cisão ou distanciamento existente entre o direito formalmente vigente e o direito
socialmente eficaz. Isto passa a se evidenciar à medida que o direito se torna um objeto de
investigação autônomo para a sociologia, distanciando-se da filosofia do direito e da
dogmática jurídica, clamando interesse sociológico pela emergência das lutas sociais movidas
por grupos de interesses específicos, referentes aos novos e plurais direitos sociais
(estudantes, negros, mulheres, sem-terra, etc.).
Assim, tratar sociologicamente o Direito é supor que este se situa numa realidade
socialmente construída e possui, em sua essência, um caráter social, bem como um caráter
histórico, uma vez que se constitui a partir de relações sociais historicamente determinadas. O
direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais. Possui uma
historicidade e, por isso, quando se fala da origem do direito, fala-se da origem de certo
direito, quando se diz defender o direito, o que se defende é uma certa concepção de direito
(Lyra Filho, 1982). Isso nos reporta à direta associação entre direito e política, direito e
história, direito e realidade social, evidenciando que o direito é concreto, vivo, contínuo
processo em construção e transformação. Desse modo, a sociologia aplicada ao estudo do
direito deve estar voltada para o desmascaramento das idéias jurídicas, revelando objetivos e
interesses que se ocultam por trás dessas idéias. Para tanto, é necessário que a dogmática
jurídica não prepondere, para que a investigação sociológica não seja por ela abafada. Isso é
fundamental para entendermos a própria realidade social na qual o direito se situa e atua,
como forma de intervenção racional de controle social e de expansão das liberdades.
A norma jurídica, assim como as demais normas que regulam a vida social, emana da
sociedade. Utilizando-se dos instrumentos e instituições voltados para a constituição do
direito, a norma jurídica fundamenta-se nos objetivos, crenças, valores e interesses (sociais,
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políticos, econômicos) que prevalecem na estrutura social vigente. Realidades sociais


diferenciadas condicionam, historicamente, ordens jurídicas também diferenciadas, operando
a existência de uma forte relação entre conjuntura global e normatividade jurídica. Do mesmo
modo, cada processo nacional ou grupal expressa uma realidade particular a que
correspondem instituições também particulares, dentre elas, as instituições jurídicas, sobre as
quais recaem os condicionantes sócio-culturais reforçados pelos costumes, pela moral e pelos
valores sociais.
Entendendo que o contexto social em que vivemos apresenta-se marcado por
determinações de classe, de raça/etnia e de gênero, sabemos que o poder, entidade metafísica
e abstrata, ao expressar-se concretamente, apresenta-se como proprietário dos meios de
produção, branco e adulto e, certamente, masculino. É nesse contexto de relações de poder
bem definidas que as leis são promulgadas, normas instituídas, códigos acatados.
Podemos apontar um exemplo bastante elucidativo das desigualdades e discriminações
sociais que são reproduzidas e, muitas vezes, abafadas pelas leis em vigor até que, após
muitas lutas e reivindicações, sejam modificadas. Segundo a advogada Alessandra Teixeira, o
fato dos homens presos terem o direito a visita íntima contrasta com a ausência desse direito
para as mulheres presas no Estado de São Paulo. Embora formalmente tenha sido superada a
visão de que a visita íntima pudesse ser uma regalia ou um privilégio do apenado, ainda não
foi percebida como um direito que deve também ser estendido às mulheres presas, e não
somente aos homens. Trata-se, segundo a autora, de mais uma forma de violência de gênero e
discriminação sexual a que a mulher é submetida, reforçada pelo tratamento jurídico-penal a
ela destinado.

O abandono da mulher presa é perpetuado pelo sistema penal, que além de


criminalizar, tradicionalmente, as condutas das classes desfavorecidas, lhes aplica o
tratamento penalizador o mais estigmatizante e feridor de seus direitos
fundamentais. (Teixeira, 2001, p. 04)

Num de seus ilustrativos trabalhos de pesquisa, Sérgio Adorno elabora uma crítica à
máxima do pensamento político clássico, forjada no interior do liberalismo do Estado
Moderno, que afirma a igualdade de todos perante as leis. O autor aponta que este princípio
ateve-se a uma eficácia simbólica que esteve (e está ainda) em desequilíbrio com a eficácia
material, o que o leva a questionar a relação estabelecida entre justiça social e igualdade
jurídica. Aplicada esta reflexão sobre as condições jurídicas no Brasil, Sérgio Adorno aponta
que a distribuição de justiça alcança somente alguns cidadãos; enquanto o acesso aos serviços
judiciais é dificultado e as decisões judiciárias são discriminatórias (Adorno, 1999).
Afirma Adorno que o foco da atenção processual é voltado para elementos subjetivos,
como o comportamento criminoso, virtudes e vícios dos personagens envolvidos no processo
judiciário, os dramas da vida cotidiana, a busca de comportamentos considerados dignos,
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justos, normais, universais. No decorrer dos processos penais, o crime deixa de ser um drama
social, quando outros fatores – além do próprio crime – passam a concorrer para a condenação
ou absolvição dos réus: investigação da vida pregressa e dos antecedentes dos agressores e
vítimas, imaginação hipotética de situações e circunstâncias, dedução de prováveis
comportamentos de vítimas e agressores. Assim, o processo judiciário aparece como um
constructo social, permitindo a contaminação por inúmeros preconceitos, interpretações
deturpadas e informais que podem ser confundidas com a interpretação racional dos códigos.
Objetividade e subjetividade se mesclam e se confundem.
Essas contribuições de Sérgio Adorno permitem desfazer a imagem de que a justiça
possa ser cega e neutra, uma vez que revela a complexidade dos processos judiciais,
descaracterizando a dimensão puramente técnica e jurídica dos agentes e aparelhos de
condenação. Conclui o autor, portanto, que a justiça penal é incapaz de traduzir diferenças e
desigualdades em direitos, incapaz de fazer da norma uma medida comum, incapaz de fundar
o consenso em meio às diferenças e desigualdades (Adorno, 1999).
3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito
Buscamos salientar o caráter social do direito para fazê-lo emergir como instrumento
de garantia da igualdade e justiça, que não pode ser ignorado na formação do profissional do
direito. Para este profissional, torna-se fundamental considerar o direito como processo,
entendendo-o como realidade móvel, flexível, dialógica e não estritamente “lógico”, no
sentido de não estar aprisionado ao formalismo das leis e à coerência dos fatos. O direito
nasce da luta de classes, dos conflitos sociais, do permanente desejo de libertação e superação
das desigualdades. É processo em devir, produto e produtor das transformações históricas.
Nessa perspectiva, entendemos que o direito, na sociedade capitalista, não é a pura e
simples expressão da vontade da classe dominante. Nem é o simples reflexo das
determinações econômicas, que uma concepção simplista da relação entre infra-estrutura e
superestrutura poderia nos fazer crer. Podemos dizer que o direito moderno, pela sua função
ideológica, institui-se como mediador entre as classes, uma vez que, para que o direito
apareça como justo é necessário que possa manter uma lógica coerente com os critérios de
igualdade, que possa ser utilizado como um obstáculo à exploração desenfreada da classe
dominada pela classe que está no poder. Trata-se aqui, de ocuparem-se as “brechas”, as
lacunas que o próprio direito deixa, para o exercício da justiça.
Assim, fundamental distinguir entre direito e lei, uma vez que o direito deve ser
entendido como um sistema de relações e interesses classistas, codificados através da lei,
porém, não se reduzindo a ela. De certa maneira, podemos falar em aplicação do direito
através da lei – podendo ser entendida esta lei como instrumento muitas vezes injusto para a
classe oprimida, se representar os interesses arbitrados pela classe dominante e garantidos
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pelo Estado. Contudo, também podemos interpretar o Direito como libertador, se


considerarmos que sua fonte de emanação não se restringe ao Estado, podendo nascer dos
embates e lutas sociais que marcam a vida cotidiana. Nesta perspectiva, o Direito ganha poder
de ação dialética, revelando sua essência contraditória e, conseqüentemente, transformadora.
Para que isso se concretize, contudo, torna-se fundamental construir um “direito
comprometido”, um direito que seja fruto do “conflito entre o direito posto, vigente e eficaz,
contra um direito potencial que emerge das lutas dos dominados, dos destinatários esmagados
na ordem jurídica posta.” (Aguiar, 1980, p.183)
Depreendemos assim, que o direito, dialeticamente compreendido, emerge como um
mediador entre as classes, um mediador entre as contradições do real. Lembrando Roberto de
Aguiar, sempre que existe direito é porque existe um problema que o gerou. O direito não
nasce da concordância e do consenso, pelo contrário, ele nasce do conflito das contradições
(Aguiar, 1980).
Numa sociedade de classes, a diversidade de interesses favorece uma diversidade de
consciências jurídicas e, conseqüentemente, a emergência de diferentes fontes de Direito.
Nessa perspectiva, nem todo o direito pode ser visto como direito estatal, bem como, não
podemos reduzir o direito à política e à ideologia da classe dominante. O direito estatal é parte
de uma totalidade, que por sua vez pode ser percebida como um momento no processo de
totalização. Tal percepção nos faz compreender o caráter processual e transitório do direito –
histórico, portanto! Em outros termos, o Direito é constituído pela, e constituinte da realidade
social.
Uma vez que consideremos o direito como um fato social de profundo significado,
possuidor de um caráter voltado para a normatividade e o controle social, falar em mudança
social é, necessariamente, falar em mudança do direito. De acordo com Roberto Lyra Filho, as
normas devem ser expressão do direito móvel, aquele que está em constante progresso. Mas
quando o direito é confundido com o legalismo, com normas envelhecidas, tornando-se
“direito em si”, torna-se reificado, perdendo seu caráter de processo, de instrumento de
mudança social. O direito não nasce metafisicamente, ele é fruto de um processo de lutas,
fruto de oposições e conflitos, avanços e recuos. Direito é processo, dentro do processo
histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos
movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e
opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições fazem brotar as novas
conquistas (Lyra Filho, 1982).
Segundo tal perspectiva, a proposta de mudança implica num complexo processo
social, marcado por transformações da sociedade civil. Em tal empreitada, emerge como
fundamental o papel do profissional do direito e sua inserção nas lutas democráticas. Caberá a
este profissional desempenhar a função de um intelectual orgânico, capaz de construir a
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contra-hegemonia, no sentido que dá Gramsci, a esses conceitos (Arruda Jr., 1997). Daí a
necessidade de formação de um profissional com perspectiva sociológica, capaz de dialogar
com a realidade concreta, que dá vida e eficácia às normas legais.
Sob tal ótica, percebemos a sociedade civil como sede principal das lutas
transformadoras, uma vez que é a sede do pluralismo que serve de base para os movimentos
sociais comunitários. A medida que os profissionais do direito questionam os
“descaminhamos do sistema normativo”, marcado pelo excesso de formalismo, pelo reforço
das situações de injustiça e pelos critérios arbitrários de decisão, inicia-se a construção, o
fortalecimento e a emergência de juridicidades latentes. Nesta percepção, o conceito de
anomia ganha um papel central, agora reinterpretado, porque fica “vinculado à crise estrutural
e ao desgaste de valores”, mostrando a presença de uma imposição ideológica que não
corresponde efetivamente aos valores existentes, nem tampouco à realidade concreta.
Torna-se essencial adotar-se uma perspectiva crítico-dialética, na tentativa de
relacionar anomia e mudança, voltando-se para a possibilidade de ruptura da ordem vigente.
Fundamental perceber o conflito latente entre legalidade e legitimidade, uma vez que a
legalidade expressa o interesse e forças predominantes na sociedade de classes (considerada
ideologicamente como sociedade global), enquanto a legitimidade está voltada para as
subculturas e grupos econômica e politicamente minoritários, que também possuem suas
normas e códigos.
Essa percepção passa necessariamente pelo resgate do pluralismo jurídico, que
compreende o direito como essencialmente múltiplo e heterogêneo, significando que num
mesmo espaço social podem coexistir diversos sistemas jurídicos, já que existe uma
pluralidade de fontes. Por meio da correlação entre anomia-legitimidade, estabelece-se a
importância e a possibilidade da criação de espaços sociais alternativos para o exercício do
direito, na construção de algo que podemos denominar de “legalidade alternativa”.
Como forma de ilustrar essa idéia, tomemos como exemplo os bairros de periferia:
espaços sociais de luta que possibilitam a transformação da realidade social por meio da ação
cotidiana. Observemos os grupos de moradores de bairros que, unidos por laços de
vizinhança, amizade ou parentesco, voltam-se para a discussão de problemas concretos,
experimentados na realidade dos bairros em que vivem, tornando-se com isto embriões de
organização popular, defendendo seus interesses, identificando necessidades e fortalecendo-se
nas formas de resistência que favorecem as reivindicações sociais e o alargamento de direitos
(Novaes, 1999). A esta realidade devem estar atentos os profissionais do direito em formação,
capazes de articular o universo jurídico às lutas sociais e políticas, voltando-se para as
representações sociais que animam o direito vivo.
4. Considerações finais
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Evidenciamos a ação dos chamados movimentos populares que caracterizam uma


anomia emergente, por meio do fortalecimento da capacidade de mobilização e organização
das lutas populares, ao ponto de oferecerem propostas concretas de democracia da sociedade e
alternativas para o estabelecimento de um poder popular. Entendemos que aqui se encontra
uma importante fonte de ação política e de exercício do direito, constituído sobre o pluralismo
jurídico, que necessariamente passa por uma compreensão sociológica da realidade jurídica e
social por parte do profissional do direito.
Por isso, amarrando as considerações e reflexões tecidas até o momento, apontamos
para a necessidade da eclosão de um novo paradigma jurídico, que esteja presente na
formação do profissional do direito adequado às necessidades do real. Um paradigma calcado
na construção e reconhecimento de um pluralismo participativo e democrático, capaz de
perceber a emergência de novos direitos nascidos dos movimentos sociais populares. Tais
profissionais, verdadeiramente comprometidos com a eficácia real das leis por meio de sua
legitimidade, contribuirão para a legitimação de novos sujeitos de direito, democratizando os
diferentes espaços sociais e favorecendo a busca por formas alternativas de resoluções de
conflitos que fortaleçam a sociedade civil e a construção da verdadeira cidadania. Como
explicita Antonio Carlos Wolkmer,

Este pluralismo ampliado e de novo tipo, além de possuir certos pressupostos


fundantes de existência material e formal, encontra a força de sua legitimidade nas
práticas sociais de cidadanias insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por
sua vez, fontes autênticas de nova forma de produção dos direitos, direitos
relacionados à justa satisfação das necessidades desejadas. (Wolkmer, 2001, p. 347)

O profissional do direito que não estiver afeito a estas percepções e perspectivas,


estará concorrendo para reproduzir os anacronismos do bacharelismo e as arbitrariedades do
tecnicismo, em prejuízo da realização de um ideal de justiça que favoreça uma sociedade
igualitária, que sirva a um direito sustentado nas bases sólidas da eficácia social, e não
engessado no limitado formalismo das leis.
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