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1. Introdução
imbricadas entre si, num trabalho de formação transdisciplinar que permita a compreensão do
Direito como fenômeno pluridimensional, multifacetado e complexo, capaz de atuar como
instrumento não somente de repressão, mas também (e principalmente) de mudança e
transformação.
Podemos afirmar que a Sociologia, voltada para a compreensão do fenômeno jurídico,
representa um importante passo para uma concepção dialética do Direito, compreendido,
portanto, como processo – capaz não só de representar os interesses dominantes das estruturas
sociais vigentes mas, principalmente, caminhar para a ruptura dessas estruturas. Entendemos
então, que o Direito não é simples ideologia (embora se recubra desta também), mas um
processo histórico, significado pela ação concreta e constante, decorrente do embate das
forças sociais presentes na sociedade que o constrói.
Por outro lado, quando o Direito é tratado como instrumento emanado unicamente do
Estado, possuindo a lei como sua única expressão, favorece a consolidação de uma formação
positivo-normativa, cuja função passa a ser muito mais informar do que formar o bacharel em
Direito. Tal tratamento fortalece o tecnicismo, impondo uma padronização da linguagem e da
leitura dos códigos, justificando e reproduzindo a realidade social. Como conseqüência,
formas sociais são reproduzidas, garantidas e mantidas as hegemonias e ideologias, sem que
se percebam as possibilidades de transformação desta realidade. Daí a importância de
transcender a visão tecnicista, bem como de transcender a visão unilateral e unidimensional,
que não absorve as contradições e os movimentos do real, especialmente aqueles que apontam
para a existência de um pluralismo jurídico.
Tomando por base essas colocações, entendemos que o profissional do direito não
deve ler o universo como se esse fosse meramente um livro de direito, já que o universo social
do qual o direito faz parte é sempre maior que o próprio direito, não podendo ser reduzido a
este. Pelas palavras de Jean Carbonnier, afirmamos que “uma certa insignificância do Direito
deve ser um dos postulados da sociologia jurídica: o direito é como uma espuma na superfície
dos relacionamentos sociais ou interindividuais” (Carbonnier, 1999, p 47).
2. A perspectiva sociológica na formação do profissional do direito
A Sociologia do Direito possui bases originais em Emile Durkheim, especialmente a
partir dos estudos que o autor faz acerca da solidariedade social, garantida nas sociedades
complexas, pela divisão social do trabalho e por um tipo de direito restitutivo. Esta
perspectiva esteve voltada marcadamente para estudos sobre as formas de controle social,
preocupadas em fechar ou cimentar as “brechas” que se produzem na realidade social, e que
são frutos de contradições e antinomias do direito. De acordo com Gurvitch (1999), esta
forma de conceber o direito apresenta problemas que devem ser superados, uma vez que não
leva em conta a questão da pluralidade das fontes pelas quais o controle é produzido e
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exercido, não permitindo que sejam consideradas as diferentes hierarquias de controle social,
segundo diferentes contextos históricos e culturais.
Uma significativa contribuição para a sociologia do direito foi a do jurista austríaco
Eugen Erlich, que em 1912 escreveu os Fundamentos da Sociologia do Direito, afirmando que
“a Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se
primeiramente ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto pode ser observado”
(Ehrlich, 1999, p. 113). Segundo Ehrlich, as leis são parte das regulações sociais e, desse
modo, o código civil não expressa toda a complexidade do direito, uma vez que o que a lei
propõe nem sempre se efetiva realmente.
que garantem a observação da realidade jurídica por diferentes prismas e dimensões. Acerca
da importância da sociologia nos cursos de Direito, afirmam Faria e Campilongo:
O que podemos observar é que a sociologia jurídica caminha para uma reflexão acerca
da cisão ou distanciamento existente entre o direito formalmente vigente e o direito
socialmente eficaz. Isto passa a se evidenciar à medida que o direito se torna um objeto de
investigação autônomo para a sociologia, distanciando-se da filosofia do direito e da
dogmática jurídica, clamando interesse sociológico pela emergência das lutas sociais movidas
por grupos de interesses específicos, referentes aos novos e plurais direitos sociais
(estudantes, negros, mulheres, sem-terra, etc.).
Assim, tratar sociologicamente o Direito é supor que este se situa numa realidade
socialmente construída e possui, em sua essência, um caráter social, bem como um caráter
histórico, uma vez que se constitui a partir de relações sociais historicamente determinadas. O
direito sofre mudanças no decorrer do tempo e nas configurações espaciais. Possui uma
historicidade e, por isso, quando se fala da origem do direito, fala-se da origem de certo
direito, quando se diz defender o direito, o que se defende é uma certa concepção de direito
(Lyra Filho, 1982). Isso nos reporta à direta associação entre direito e política, direito e
história, direito e realidade social, evidenciando que o direito é concreto, vivo, contínuo
processo em construção e transformação. Desse modo, a sociologia aplicada ao estudo do
direito deve estar voltada para o desmascaramento das idéias jurídicas, revelando objetivos e
interesses que se ocultam por trás dessas idéias. Para tanto, é necessário que a dogmática
jurídica não prepondere, para que a investigação sociológica não seja por ela abafada. Isso é
fundamental para entendermos a própria realidade social na qual o direito se situa e atua,
como forma de intervenção racional de controle social e de expansão das liberdades.
A norma jurídica, assim como as demais normas que regulam a vida social, emana da
sociedade. Utilizando-se dos instrumentos e instituições voltados para a constituição do
direito, a norma jurídica fundamenta-se nos objetivos, crenças, valores e interesses (sociais,
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Num de seus ilustrativos trabalhos de pesquisa, Sérgio Adorno elabora uma crítica à
máxima do pensamento político clássico, forjada no interior do liberalismo do Estado
Moderno, que afirma a igualdade de todos perante as leis. O autor aponta que este princípio
ateve-se a uma eficácia simbólica que esteve (e está ainda) em desequilíbrio com a eficácia
material, o que o leva a questionar a relação estabelecida entre justiça social e igualdade
jurídica. Aplicada esta reflexão sobre as condições jurídicas no Brasil, Sérgio Adorno aponta
que a distribuição de justiça alcança somente alguns cidadãos; enquanto o acesso aos serviços
judiciais é dificultado e as decisões judiciárias são discriminatórias (Adorno, 1999).
Afirma Adorno que o foco da atenção processual é voltado para elementos subjetivos,
como o comportamento criminoso, virtudes e vícios dos personagens envolvidos no processo
judiciário, os dramas da vida cotidiana, a busca de comportamentos considerados dignos,
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justos, normais, universais. No decorrer dos processos penais, o crime deixa de ser um drama
social, quando outros fatores – além do próprio crime – passam a concorrer para a condenação
ou absolvição dos réus: investigação da vida pregressa e dos antecedentes dos agressores e
vítimas, imaginação hipotética de situações e circunstâncias, dedução de prováveis
comportamentos de vítimas e agressores. Assim, o processo judiciário aparece como um
constructo social, permitindo a contaminação por inúmeros preconceitos, interpretações
deturpadas e informais que podem ser confundidas com a interpretação racional dos códigos.
Objetividade e subjetividade se mesclam e se confundem.
Essas contribuições de Sérgio Adorno permitem desfazer a imagem de que a justiça
possa ser cega e neutra, uma vez que revela a complexidade dos processos judiciais,
descaracterizando a dimensão puramente técnica e jurídica dos agentes e aparelhos de
condenação. Conclui o autor, portanto, que a justiça penal é incapaz de traduzir diferenças e
desigualdades em direitos, incapaz de fazer da norma uma medida comum, incapaz de fundar
o consenso em meio às diferenças e desigualdades (Adorno, 1999).
3. O pluralismo jurídico e o profissional do direito
Buscamos salientar o caráter social do direito para fazê-lo emergir como instrumento
de garantia da igualdade e justiça, que não pode ser ignorado na formação do profissional do
direito. Para este profissional, torna-se fundamental considerar o direito como processo,
entendendo-o como realidade móvel, flexível, dialógica e não estritamente “lógico”, no
sentido de não estar aprisionado ao formalismo das leis e à coerência dos fatos. O direito
nasce da luta de classes, dos conflitos sociais, do permanente desejo de libertação e superação
das desigualdades. É processo em devir, produto e produtor das transformações históricas.
Nessa perspectiva, entendemos que o direito, na sociedade capitalista, não é a pura e
simples expressão da vontade da classe dominante. Nem é o simples reflexo das
determinações econômicas, que uma concepção simplista da relação entre infra-estrutura e
superestrutura poderia nos fazer crer. Podemos dizer que o direito moderno, pela sua função
ideológica, institui-se como mediador entre as classes, uma vez que, para que o direito
apareça como justo é necessário que possa manter uma lógica coerente com os critérios de
igualdade, que possa ser utilizado como um obstáculo à exploração desenfreada da classe
dominada pela classe que está no poder. Trata-se aqui, de ocuparem-se as “brechas”, as
lacunas que o próprio direito deixa, para o exercício da justiça.
Assim, fundamental distinguir entre direito e lei, uma vez que o direito deve ser
entendido como um sistema de relações e interesses classistas, codificados através da lei,
porém, não se reduzindo a ela. De certa maneira, podemos falar em aplicação do direito
através da lei – podendo ser entendida esta lei como instrumento muitas vezes injusto para a
classe oprimida, se representar os interesses arbitrados pela classe dominante e garantidos
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contra-hegemonia, no sentido que dá Gramsci, a esses conceitos (Arruda Jr., 1997). Daí a
necessidade de formação de um profissional com perspectiva sociológica, capaz de dialogar
com a realidade concreta, que dá vida e eficácia às normas legais.
Sob tal ótica, percebemos a sociedade civil como sede principal das lutas
transformadoras, uma vez que é a sede do pluralismo que serve de base para os movimentos
sociais comunitários. A medida que os profissionais do direito questionam os
“descaminhamos do sistema normativo”, marcado pelo excesso de formalismo, pelo reforço
das situações de injustiça e pelos critérios arbitrários de decisão, inicia-se a construção, o
fortalecimento e a emergência de juridicidades latentes. Nesta percepção, o conceito de
anomia ganha um papel central, agora reinterpretado, porque fica “vinculado à crise estrutural
e ao desgaste de valores”, mostrando a presença de uma imposição ideológica que não
corresponde efetivamente aos valores existentes, nem tampouco à realidade concreta.
Torna-se essencial adotar-se uma perspectiva crítico-dialética, na tentativa de
relacionar anomia e mudança, voltando-se para a possibilidade de ruptura da ordem vigente.
Fundamental perceber o conflito latente entre legalidade e legitimidade, uma vez que a
legalidade expressa o interesse e forças predominantes na sociedade de classes (considerada
ideologicamente como sociedade global), enquanto a legitimidade está voltada para as
subculturas e grupos econômica e politicamente minoritários, que também possuem suas
normas e códigos.
Essa percepção passa necessariamente pelo resgate do pluralismo jurídico, que
compreende o direito como essencialmente múltiplo e heterogêneo, significando que num
mesmo espaço social podem coexistir diversos sistemas jurídicos, já que existe uma
pluralidade de fontes. Por meio da correlação entre anomia-legitimidade, estabelece-se a
importância e a possibilidade da criação de espaços sociais alternativos para o exercício do
direito, na construção de algo que podemos denominar de “legalidade alternativa”.
Como forma de ilustrar essa idéia, tomemos como exemplo os bairros de periferia:
espaços sociais de luta que possibilitam a transformação da realidade social por meio da ação
cotidiana. Observemos os grupos de moradores de bairros que, unidos por laços de
vizinhança, amizade ou parentesco, voltam-se para a discussão de problemas concretos,
experimentados na realidade dos bairros em que vivem, tornando-se com isto embriões de
organização popular, defendendo seus interesses, identificando necessidades e fortalecendo-se
nas formas de resistência que favorecem as reivindicações sociais e o alargamento de direitos
(Novaes, 1999). A esta realidade devem estar atentos os profissionais do direito em formação,
capazes de articular o universo jurídico às lutas sociais e políticas, voltando-se para as
representações sociais que animam o direito vivo.
4. Considerações finais
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ARRUDA Jr., Edmundo Lima. Direito moderno e mudança social. Belo Horizonte: Del Rey,
1997.
DINIZ, Melillo. “Qual a verdadeira face do direito?” In: Sousa Jr., José Geraldo (org)
Introdução crítica ao direito: o direito achado na rua. V.1. Brasília: UNB, 1993.
FARIA, J.E. e CAMPILONGO, C.F. A sociologia jurídica no Brasil. Porto Alegre: Fabris,
1991.
SABADELL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000.
SOUSA Jr., José Geraldo. Para uma crítica da eficácia do direito. Porto Alegre: Fabris
Editor, 1984.
SOUSA Jr., José Geraldo (org) Introdução crítica ao direito: o direito achado na rua. V.1.
Brasília: UNB. 1993.
SOUTO, Cláudio. e FALCÃO, Joaquim. Sociologia e direito. São Paulo: Pioneira, 1999.
TEIXEIRA, Alessandra. Jornal Juízes para a democracia. Ano 5, nº 124 – jun/jul – 2001.