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O PADRÃO DE BELEZA IMPOSTO PELA SOCIEDADE BRASILEIRA


INFLUENCIA NO DESENVOLVIMENTO DE DISTÚRBIOS PSICOLÓGICOS

Lila Ribeiro Conde Domingues1

SUMÁRIO
Introdução; 1. Contexto Histórico da Mulher Brasileira; 2. O Meio Social Como Influência
Direta Para a Evolução dos Distúrbios Psicológicos; 3. A Atuação da Indústria da Moda e da
Mídia no Progresso do Culto ao Corpo; Considerações Finais; Referências.

RESUMO
Este artigo tem como intuito promover a reflexão e, consequentemente, a conscientização sobre
o tema do padrão de beleza imposto pela sociedade brasileira que influencia no
desenvolvimento de distúrbios psicológicos. Para se compreender a problemática é necessário
inteirar-se do contexto histórico da mulher brasileira, marcado pela imposição patriarcal
machista, limitando sua liberdade e estabelecendo condutas a se seguir. Ademais, interligando
os fatores sociais do contexto onde se vive, a cultura, e como os paradigmas familiares atuais,
novamente, exercem interferência na autoestima e na visão estética pessoal e, portanto, como a
mídia em consonância com a indústria consumista da moda agravam um problema tão sério
como a anorexia e a bulimia.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher; Sociedade; Padrão de beleza; Distúrbios Psicológicos.

INTRODUÇÃO
A precisão de se impor padrões de beleza na sociedade brasileira está enraizada há
muito, apesar de que a cada momento da historiografia social as exigências mudam. A mulher,

1
Graduanda em Direito – Escola de Direito de Brasília/Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, Distrito
Federal
Email: lilaconde5@gmail.com
2

principal personalidade da estética social, tem uma longa trajetória de imposições de conduta,
vestimenta entre outros ritos que fazem jus a determinada época.

Atualmente, com a globalização e o processo de expansão da mídia, a reprodução de um


padrão ideal de beleza alicerçado na magreza e em um corpo franzino, com poucas formas, tem
ganhado abrangência e adeptas, tendo como inspiração o mundo da moda com suas modelos
esqueléticas e pálidas.

A complexa problemática é que o culto ao corpo tem se tornado um estilo de vida, e não
é o saudável e sim, a obsessão em se conseguir, a qualquer custo, a magreza extrema, resultando
no surgimento de distúrbios psicológicos graves, como a anorexia e a bulimia nervosa.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela


consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade bio−política.2

A sociedade tenta de todas as maneiras controlar seus indivíduos, e a estipulação de um


padrão de beleza é uma forma de manipular uma grande maioria que visa a autossatisfação e a
felicidade promovidas por meio desse paradigma de manequim 34. Por meio do domínio que
exerce, quem não segue e não está dentro do padrão imposto, não está apta a fazer parte do
círculo social, ou seja, a necessidade de participar e de ser vista pela sociedade é tamanha que
as mulheres estão cada vez mais dispostas a fazer qualquer coisa para atingir esse objetivo
inalcançável.

O clímax se dá a partir do momento que a saúde da mulher é posta à prova a fim de


alcançar o menor número da balança, desenvolvendo transtornos alimentares, recorrendo a
diversas técnicas para intensificar o emagrecimento, como por exemplo, a inanição, indução ao
vômito, práticas físicas intensas, autoimagem destorcida e, em casos extremos, podendo levar
à óbito.

Destarte, este artigo busca contribuir para a maior conscientização e mudança da


realidade social, alertando para o fator prejudicial de se impor um padrão de beleza ideal na
sociedade brasileira, por meio do contexto social, da mídia e da indústria da moda. À vista
disso, a problemática reflexiva que se apresenta é:

2
FOUCAULT, Michel - Microfísica do Poder. 1979 p.80
3

Quais fatores sociais brasileiros contribuem para o avanço de distúrbios psicológicos


em mulheres, atrelado a transtornos alimentares por meio de seu padrão ideal de beleza?

1. O CONTEXTO HISTÓRICO DA MULHER BRASILEIRA


A mulher brasileira tem, recorrentemente, surgido sob a ideia de estereótipos, dando
uma impressão de imobilidade ilusória. E a história, desde o século XIX, tem dado à mulher
um espaço demarcado cuidadosamente pela representação e ideais masculinos dos
historiadores, que há pouco tempo, ainda era produzido com exclusividade. Somente nos anos
1980 o tema emergiu como um campo de pesquisa científica, ganhando abrangência dentro da
historiografia.3

Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre entram em consonância que o reconhecimento das
mulheres no período colonial era restritamente para o uso luxurioso do corpo.4 As mulheres
negras, em especial, eram objeto sexual de seus senhores, pois as sinhás tinham os corpos
marmóreos, brancos e frios, sem prazer.5

Há muito a mulher é idealizada, talvez não da mesma forma em cada etapa da história
social, mas ainda assim, “vende-se” a imagem de uma mulher perfeita: virgem, submissa, mãe,
devota à religião e que reprime seus desejos sexuais, agindo como o marido determina e
seguindo os preceitos da Igreja quanto à conduta feminina. Ainda na contemporaneidade a
mulher é limitada, apesar de seus esforços de inserção no meio social por intermédio de
movimentos, como o feminismo, que luta pela igualdade de gêneros, mas a cultura patriarcal é
intrínseca à sociedade brasileira, dificultando o ingresso feminino completo na sociedade.

No Brasil colonial, o papel da mulher revela a postura machista que predominava, um


sistema de dominação, juntamente com os dogmas da Igreja, pois atribuía um papel submisso
e de dependência, ratificando uma diferenciação e estabelecendo padrões de conduta social, nos
quais eram tomados como alicerce familiar. Às mulheres cabia a incumbência de organizar a
casa e a responsabilidade dos filhos, ou seja, sua imagem não se desvinculava do aspecto
familiar e doméstico. A vida feminina sempre restrita ao desempenho doméstico e à assistência
à família, tendo o dever de fortalecer os laços.

A realidade da mulher dentro do contexto social brasileiro é acompanhada, desde os


primórdios, da discriminação e da objetificação de seu corpo. Inúmeros autores brasileiros

3,4,5
DEL PRIORE, Mary – A mulher na história do Brasil. 4.ed. – São Paulo: Contexto, 1994. p. 11, 12.
4

fazem comparações escrachas à função feminina na sociedade. Roberto Damatta, em seu livro
O que faz o brasil, Brasil? expõe uma metáfora um tanto quanto machista sobre o papel da
mulher:

Mas há comida e comidas. Falamos que “mulher oferecida não é


comida”, num trocadilho chulo mas revelador da associação, intrigante para
estrangeiros, entre o ato sexual e o ato de ingerir alimentos. Entre a mulher da
rua, a prostituta, ou a mulher que controla e é dona de sua capacidade de
sedução e sexualidade, e certos tipos de alimento. Assim, a mulher que põe à
disposição do grupo (da família) seus serviços domésticos, seus favores
sexuais e sua capacidade reprodutiva tornam-se a fonte de virtude que, na
sociedade brasileira, se define de modo pastoral e santificado. É a virgem, a
esposa e a mãe que reside nas casas e que jamais é comida ou poderá virar
comida: presa fácil de homens que se definem como sexualmente vorazes. Ou
melhor, tais mulheres podem ser comidas, mas primeiro são transformadas em
noivas e esposas. O bolo do casamento e o banquete que segue a cerimônia
podem muito bem ser vistos como um símbolo dessa “comida” que será a
noiva, algo elaborado e, sobretudo, socialmente aprovado pelos homens do
seu grupo. Ora, a mulher da rua, essa que é a comida de todos, é algo muito
diferente, conforme já assinalei acima. Em contraste com a mãe, a virgem e a
boa esposa, ela surge como aquela mulher que pode literalmente causar
indigestão nos homens, provocando a sua perturbação moral. Dessas mulheres
deve-se fugir – diz a moral brasileira tradicional –, mas sem elas, reza
paradoxalmente essa mesma ética, o mundo seria insosso como uma comida
sem sal. As mulheres da vida, na nobre metáfora brasileira, estão para as
mulheres da morte assim como as comidas fáceis e potencialmente indigestas,
mas deliciosas na sua ingestão escondida e apaixonada, estariam para as
comidas caseiras que eventualmente podem perder a capacidade de deleitar,
servindo tão-somente para alimentar...6

Pode-se afirmar que dentro dessa cultura de valorizar ao máximo a mulher pelo corpo
ao invés de valorizá-la pelo que ela é, tenha se tornado uma válvula de escape para a mulher se
expressar através de seu estereótipo, mostrando o que é, como pensa, como se comporta, entre
outros conceitos, por meio de seu corpo, sua vestimenta e sua compostura. Destarte, o culto ao
corpo tomou grandes proporções e se tornou o enfoque principal para que uma mulher seja
admirada, para que se encaixe no padrão de beleza e para que seja aceita dentro de suas
perspectivas sociológicas. A necessidade de se ajustar dentro da sociedade é explicada por Peter
Berger, em seu livro Perspectivas Sociológicas: Uma Visão Humanística, descreve exatamente
como se dá o processo de enquadramento por meio da localização social:

A sociedade determina não só o que fazemos, como também o que


somos. Em outras palavras, a localização social não afeta apenas nossa
conduta; ela afeta também nosso ser.”[...] “ O significado da teoria do papel
poderia ser sintetizado dizendo-se que, numa perspectiva sociológica, a

6
DAMATTA, Roberto – O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 39, 40.
5

identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmente e transformada


socialmente.7

Haja vista, a identidade não é uma coisa preexistente, sua atribuição se dá em atos de
seu reconhecimento social, ou seja, aplicando ao parâmetro da mulher, ela é aquilo que os outros
creem que ela seja. E como a sociedade padroniza tudo, para que se torne um senso comum, o
protótipo de mulher ideal não poderia ser diferente e, para que essa identidade perdure, é preciso
que a sociedade sustente, com bastante regularidade, levando em conta a maior quantidade de
adesões.

2. O MEIO SOCIAL COMO INFLUÊNCIA DIRETA PARA A EVOLUÇÃO


DOS DISTÚRBIOS PSICOLÓGICOS
Levando em conta o conceito de Peter Berger quanto à relação do homem na sociedade,
é plausível afirmar que o meio onde habita tem uma forte influência em suas ações e
personalidade. Além de todo o sistema de controle social institucionalizado, ele descreve outro
ambiente que exerce intensa interferência:

Por fim, o grupo humano no qual transcorre a chamada vida privada da


pessoa, ou seja, o círculo da família e dos amigos pessoais, também constitui
um sistema de controle. Seria erro grave supor este seja necessariamente o
mais débil de todos, apenas por não possuir os meios formais de coerção de
alguns dos sistemas de controle. É nesse círculo que se encontram
normalmente os laços sociais mais importantes de um indivíduo. A
desaprovação, a perda de prestígio, o ridículo ou o desprezo nesse grupo mais
íntimo têm efeito psicológico muito mais sério que em outra parte.8

Segundo o sociólogo norte-americano Talcott Parsons, as principais funções da família


é a socialização primária e a estabilização da personalidade. A socialização primária é entendida
como o processo em que o indivíduo aprende a se tornar um membro da sociedade, ou seja,
imposição de padrões são fixadas à pessoa;9 e a estabilização da personalidade compreende-se
ao papel desempenhado pela família ao fornecer estrutura psicológica desde a infância até a
idade adulta .10

BERGER, Peter L – Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, 2011. p. 88, 89 e 107,
7, 8

112.

9
BERGER, Peter L; BERGER, Brigitte – Socialização: como ser um membro da sociedade, cap.13,
Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. 21.ed. – s.I: LTC, 2008. p. 204.
10
GIDDENS, Anthony – Sociologia. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 152.
6

Tendo em vista essas definições sobre como a família e outras pessoas próximas
influenciam no estilo de vida do indivíduo, Freud11, Nancy Chodorow12, entre outros autores
da psicanálise, expõem a relação conturbada que existe entre mãe e filha e a interferência que
a primeira exerce quanto às influências sociais que, muitas vezes, ultrapassam os limites e se
tornam manipulação.
A imposição de expectativas em todos os âmbitos da vida da mulher, acarretam em
algumas, a obsessão em superar a confiança depositada, em suma, a relação com o corpo e seus
cuidados. Mães manipuladoras e autoritárias têm o hábito de controlar suas filhas em todos os
aspectos, principalmente no que se refere à como atingir e permanecer no padrão de beleza
ideal.13 Nessa perspectiva, o desenvolvimento de distúrbios psicológicos se inicia, por exemplo,
com a anorexia e a bulimia nervosa. Vale ressaltar que, não somente a mãe exerce a carga de
pressão, mas como também todo o contexto social que a mulher está inserida.
A obsessão em viver em busca de atingir o corpo ideal, a beleza plena e a aceitação da
sociedade têm se tornado um problema de saúde pública. As taxas de diagnósticos de anorexia
e bulimia no Brasil tem aumentado a cada ano, isto é, 150 mil casos de anorexia por ano e 2
milhões de casos de bulimia, dados que comprovam o quanto é perigoso essa luta por alcançar
um padrão que não cabe a todas as mulheres pelo simples fato de haver uma gama de elementos
genéticos que culminam na formação de um determinado modelo de corpo.14
Estar bela, malhada, sentir-se bem consigo mesma. Não ter gordurinhas
sobrando. Ter um corpo rígido, cabelos e peles impecáveis. Ser admirada por
sua beleza ou por seu corpo em forma. Ter um corpo perfeito. Encaixar-se nos
padrões de beleza massificados. Cultuar os esforços físicos para que ele
desabroche em sua melhor forma.
Estas falas, todas nativas, apontam para um processo central das últimas
décadas (1980-2000), que é o culto ao corpo. Embora seja quase impossível
estabelecer com certeza quando as expressões "culto ao corpo" e "cultura do
corpo" apareceram pela primeira vez, numerosos antropólogos, sociólogos e
historiadores vêm se utilizando destes termos para designar um
comportamento onde o corpo figura como elemento central e definidor de
identidades.15

A mulher passa a ser responsabilizada pela sua imagem a tal ponto que ela tem a
obrigação de se manter bela e de recorrer a intervenções, independentemente de quais sejam,

11
FREUD, Sigmund - Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976
12
CHODOROW, Nancy – Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Ed. Rosa dos
Tempos, 2002.
13
SOUZA, Karina C. V – O feminino na estética do corpo: uma leitura psicanalítica. Tese para obtenção do
título de Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, 2007. p. 112, 113.
14
Fontes: Hospital Israelita Albert Einstein. Google, 2016.
15
BERGER, Mirela – Corpo e Identidade Feminina. Tese do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2006. p. 131, 132.
7

para permanecer dentro do padrão, reforçando assim, estereótipos e construções de gênero.


Antoine Prost, embasa com estrutura a realidade contemporânea da estética e como a mulher
dá importância ao corpo:
De fato, o corpo se tornou o lugar da pessoa. Sentir vergonha do próprio
corpo seria sentir vergonha de si mesmo. As responsabilidades se deslocam:
nossos contemporâneos se sentem menos responsáveis dos que as gerações
anteriores por seus pensamentos, sentimentos, sonhos e nostalgias; ele os
aceitam como se lhe fossem impostos de fora. Em contraposição, habitam
plenamente os seus corpos: o corpo é a própria pessoa. Mais do que
identidades sociais, máscaras ou personagens adotadas, mais até do que ideias
e convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa.
Portanto, já não existe mais vida privada que não suponha o corpo. A
verdadeira vida não é mais a vida social, do trabalho, dos negócios, da política
ou da religião: é a das férias, do corpo livre e realizado.16

A beleza se tornou uma espécie de capital simbólico que a define como status social e
representação de sucesso. Consequentemente, essa pressão prescrita desencadeia o citado
acima, distúrbios psicológicos, e que resultam em efeitos devastadores, levando à morte, em
casos extremos. A anorexia e a bulimia nervosa têm tomado cada vez mais espaço em discussões
sociológicas e da psicanálise, pois as mulheres, principalmente as adolescentes, estão em busca
do ideal inalcançável do corpo perfeito e, essa insatisfação é advinda da baixa autoestima, fruto
do padrão de beleza imposto pela sociedade e veiculado pela mídia.
No que tange ao culto do corpo, a sociedade influi de tal forma na vida da mulher ao
ponto de fazê-la se tornar escrava da própria estética. À vista disso, o investimento em dietas,
excesso de exercícios, inanição e outros métodos a fim de alcançar a magreza, desencadeia a
anorexia, caracterizada pela aversão aos alimentos, onde a mulher tem uma visão deturpada de
seu corpo, sentindo-se cada vez mais gorda, enquanto a realidade é outra, ela se torna mais
magra, podendo até mesmo, vir a óbito por complicações. Essa recusa em manter o peso normal
para a estatura individual é traduzida pelo medo constante de engordar e, vencer a fome
transforma-se em uma questão de valor pessoal, pois o desejo de se manter cada vez mais magra
se torna uma imposição reforçando sua identidade individual. Em contrapartida, a bulimia se
caracteriza pela compulsão alimentar, pois impõe-se regras dietéticas muito rígidas, que não
conseguem cumprir e, logo após a ingestão exagerada de alimento, advinda da ansiedade e
frustração, o sentimento de culpa predomina levando a mulher a induzir o vômito ou fazer uso
de laxantes.17

16
PROST, Antoine – Fronteiras e Espaços do Privado (História da Vida Privada da 1º Guerra a nossos
Dias). São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 105, 106.
17
CARDOSO, Sônia Cristina M. – Para uma abordagem sociológica dos distúrbios alimentares. IV
Congresso Português de Sociologia. Coimbra, Portugal, 2000.
8

É comprovado que mulheres vítimas desses transtornos alimentares sofrem de baixa


autoestima, depressão, ansiedade, descontrole emocional e físico e intolerância à frustração. A
constante que determina essa situação é, geralmente, a pressão de uma sociedade cada vez mais
competitiva, o estresse, experiências traumáticas que, associadas ao culto ao corpo perfeito,
desestruturam o psicológico de muitas mulheres, levando-as a maltratar seu próprio organismo
em virtude de um objetivo inviável.
Nessa conjuntura, é viável relatar a experiência de uma jovem de 18 anos, que desde os
11 anos sofre com o transtorno alimentar e psicológico da bulimia:
Começou quando eu tinha uns 11 anos. Tive uma adolescência muito
precoce, por isso a vaidade veio muito cedo também. Eu nunca fui magra, mas
eu sempre quis ser. A mãe de uma amiga sempre me lembrava como eu estava
‘redondinha’, foi quando eu comecei a perceber que as pessoas magras são
consideradas mais bonitas, a roupa cai melhor, os meninos reparam mais, a
aceitação dentro do contexto social é maior, etc. Eu sempre gostei muito de
doce, e comecei por eles, eu comia e vomitava, com uma frequência absurda,
às vezes mais de três vezes por dia eu forçava o vômito. Até hoje tenho uma
facilidade muito grande para induzir o vômito em razão do tempo que fiz isso.
Depois dos doces comecei a fazer a mesma coisa quando almoçava, lanchava,
jantava ou sempre que comia alguma coisa que eu pensava que me faria
engordar. Quando entrava em crise também via minha imagem no espelho
distorcida. Emagreci muito rápido, mas tive problemas estomacais que trato
até hoje. Tive gastrite nervosa, que deveria ser temporária, mas se tornou uma
gastrite crônica. Quase toda semana ia para o hospital tomar soro por conta da
fraqueza que sentia todos os dias. A má alimentação e a indução do vômito
me deixavam cada vez mais fraca. Minha mãe levou um tempo até perceber o
porquê de eu estar sempre doente, até que contrai hepatite A e, por conta da
imunidade baixa, tive complicações sérias. Fiquei ao ponto de fazer transfusão
sanguínea. Ao melhorar da hepatite, descobri uma anemia severa, que tratei
até o ano passado (2015) com remédio antes das refeições. Com a ajuda do
psicólogo e da minha mãe aos poucos eu melhorei, me conscientizei que fazia
mal para mim e que não valia à pena. Mas até hoje eu tenho gastrite, faço
acompanhamento para regular a anemia e às vezes, ainda forço o vômito.
Principalmente quando acho que estou acima do meu peso normal ou quando
uma roupa não fica tão bem quanto deveria, não é com frequência, mas me
sinto mal quando faço isso e não conto para ninguém quando acontece. A
compulsão alimentar ainda ocorre quando estou durante a TPM, em situações
de estresse constante ou alteração emocional. Tenho medo de voltar a induzir
o vômito e fazer isso para sempre. Se eu passar quatro dias sem comer direito
e vomitando o que eu conseguir comer, emagreço 2kg com facilidade.18

No que concerne à consciência coletiva, é verossímil afirmar que por ser um conjunto
de crenças, senso comum dos membros da sociedade e que tem autonomia para ter vida própria
e ser um sistema determinado, pode-se aplicar à situação de como o meio social que a mulher
se relaciona tem influência direta em suas ações, tendo como base o relato da jovem vítima da

18
Pesquisa realizada em outubro de 2016.
9

bulimia. Exerce-se uma forte dominação em quais recursos ela irá recorrer para se encaixar na
sociedade e ter aceitação majoritária.19

3. A ATUAÇÃO DA INDÚSTRIA DA MODA E DA MÍDIA NO PROGRESSO


DO CULTO AO CORPO
Na contemporaneidade, o culto ao corpo perfeito tem tomado uma abrangência cada vez
maior, sendo um importante instrumento para manter boas relações sociais. Logo, a mídia
desfruta dessa imposição do padrão de beleza para manipular a sociedade e lucrar com a ampla
reprodução, incutindo nas pessoas o desejo de fazer parte de um contexto que cultua a “cópia
do outro”, pois o que é belo deve ser mostrado e copiado. A indústria da moda e do consumismo
apresenta como técnica a padronização e a produção em série instigando um estilo de vida em
que a mulher precisa alcançar as expectativas do corpo perfeito, fazendo com que ela se torne
uma prisioneira de sua própria vaidade.

Ela [a mulher] continua submissa. Submissa não mais às múltiplas


gestações, mas à tríade de "perfeição física". A associação entre juventude,
beleza e saúde, modelo das sociedades ocidentais, aliada às práticas de
aperfeiçoamento do corpo, intensificou-se brutalmente, consolidando um
mercado florescente que comporta indústrias, linhas de produtos, jogadas de
marketing e espaços nas mídias. A intensificação desse modelo corporal é tão
grave, que suas consequências na forma de técnicas e práticas vêm sendo
largamente discutidas por sociólogos e historiadores. A pergunta que ainda
cabe é: que tipo de imagem preside a ligação entre as mulheres e essa tríade?
Foi sempre assim? O que mudou? O interesse dessas perguntas é que a
imagem corporal da mulher brasileira está longe de desembaraçar-se de
esquemas tradicionais, ficando longe, portanto, da propalada liberação dos
anos 1970. Mais do que nunca, a mulher sofre prescrições. Agora, não mais
do marido, do padre ou do médico, mas do discurso jornalístico e publicitário
que a cerca. No início do século XXI, somos todas obrigadas a nos colocar a
serviço de nossos próprios corpos. Isso é, sem dúvida, uma outra forma de
subordinação. Subordinação, diga-se, pior do que a que se sofria antes, pois
diferentemente do passado, quando quem mandava era o marido, hoje o algoz
não tem rosto. É a mídia. São cartazes da rua. O bombardeio de imagens na
televisão.20

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A vontade que a
mídia capitalista incita nas mulheres ao querer ser iguais às modelos, por exemplo, as mantém
tão reféns em corpo e alma que sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido. Como já

19
ARON, Raymond - As etapas do pensamento sociológico. A geração da passagem do século, DURKHEIM,
Émile. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 462
20
DEL PRIORE, Mary - Corpo a Corpo com a Mulher: Pequena História das Transformações do Corpo
Feminino no Brasil. São Paulo: Senac, 2000, p.15.
10

mencionado nos tópicos acima, a imagem da perfeição estética está intrinsecamente ligada ao
sucesso e, consequentemente, à autossatisfação. Essa concepção tem como premissa a
credibilidade midiática quanto às modelos, artistas de televisão, revistas e cinema, que são
considerados protótipos perfeitos e reais a serem copiados.

Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da


indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria
imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a
disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais.
[...] Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos
consumidores: eis por que são aceitos sem resistência. De fato, o que explica
é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do
sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual
a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os
economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade
técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter
compulsivo da sociedade alienada de si mesma.21

A cultura do corpo é tão inerente à sociedade brasileira ao ponto de que nada é mais
importante e melhor do que ser magra. Lucien Sfez, declarou que a relevância dada ao corpo é
tanta que substituiu o culto à informação por uma “religião” biogenética, moldada na utopia do
corpo.22 Dessa forma, não somente a relação do contexto social interfere no desenvolvimento
de distúrbios psicológicos como também, a mídia e a indústria da moda que vendem a perfeição
ligada à magreza excessiva como um padrão ideal de beleza.

A internet tem se mostrado uma grande aliada à disseminação de informações


tendenciosas e prejudiciais com relação à anorexia e a bulimia nervosa, havendo uma gama de
perfis em redes sociais, blogs e sites que apoiam o progresso dos distúrbios alimentares, até
mesmo apelidam a anorexia como “Ana” e a bulimia como “Mia”, ou seja, referindo-se a esses
distúrbios como amigas. No âmbito da indústria da moda a realidade não é diferente, muitas
modelos morreram devido a complicações em detrimento dos transtornos alimentares. Quanto
mais magra a modelo, menos “competição” há entre o seu corpo e a roupa, isto é, tem a função
de uma espécie de cabide.

A ideia de magreza está tão disseminada ao ponto de a mulher nunca estar satisfeita com
seu corpo, mesmo que use de artifícios para tentar padronizá-lo de acordo com o senso comum.

21
ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max – Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 114.
22
SFEZ, Lucien - "Saúde perfeita é a utopia do final de século". Jornal O Estado de São Paulo, 7 de outubro
de 1996, n. 788, ano 16.
11

Interessante notar que o padrão de beleza de alguns anos atrás era inteiramente diferente, por
exemplo, a mulher do início do século passado deveria apresentar depósitos de gorduras, ter
quadris largos, coxas grossas, abdômen marcado e seios fartos para se adequar ao perfil de
beleza da época. No período pré-industrial, a mulher que apresentava um quadro de obesidade
era tido como o padrão ideal, pois representava força e tinha energia suficiente para enfrentar
as dificuldades e proteger a família. Nos dias de hoje, o enfoque de corpo ideal é cultuado pela
magreza excessiva, palidez e poucas formas corporais.

Atualmente, um corpo bonito e perfeito, seja de homem ou de mulher, é sinônimo de


realização e felicidade. Com isso, o marketing usa da ludibriação da mídia e da indústria
consumista para envolver cada vez mais mulheres a comprar o modelo de estética ideal. A
publicidade é o elixir dessa padronização corporal perfeita, e quanto mais pessoas aderem a
esse estilo, mais perpetuado é. A necessidade, portanto, de ser bem aceita em um contexto
social, sentir-se satisfeita com a aparência e fazer parte do padrão de beleza estabelecido pela
sociedade é tamanha que a mulher está disposta a tudo para alcançar o objetivo do tão sonhado
corpo perfeito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do delineamento feito no decorrer deste artigo, é plausível afirmar que o padrão
de beleza ideal imposto pela sociedade agrava o desenvolvimento de distúrbios psicológicos,
como a anorexia e a bulimia nervosa, por exemplo.

É sabido que a sociedade brasileira valoriza ao extremo o consumo e os valores materiais


e estéticos que governam a vida de uma maioria feminina, tornando-se mandamentos essenciais
para a convivência social. E, aproveitando-se desse parâmetro, a indústria cultural tem vendido
um padrão de beleza interligado ao culto do corpo, tendo como premissa o objetivo de se
conseguir a extrema magreza, podendo assim, se encaixar nos padrões sociais e fazer parte do
contexto social determinado.

No entanto, a busca pela perfeição é em vão, impossível de se conseguir atingir esse


paradigma estético, mesmo que de maneira saudável, pois cada mulher tem seu fenótipo e
estrutura corporal. Apesar disso, mais de 2 milhões de mulheres todo ano, são diagnosticadas
com algum tipo de distúrbio psicológico, advindo da tentativa de atingir o corpo perfeito.
12

Faz-se necessário dar maior atenção a esse problema que tem crescido progressivamente
e se tornado uma questão de saúde pública. Muitas mulheres já perderam a vida por não saberem
dosar o limite da vaidade e por comprar a falsa satisfação da autoimagem através da publicidade
que divulga uma realidade falaciosa e equivocada no que diz respeito à cultura do corpo.

O primeiro passo para contornar a situação agravante dos crescentes casos de anorexia
e bulimia é a desmistificação do padrão ideal de beleza e a cultura ao corpo, que tomou conta
até mesmo da importância dada aos valores internos do ser e, conscientizar as mulheres de que
não adianta tentar alcançar um modelo perfeito de corpo se a estrutura corporal não permite
chegar a um resultado igual. É de suma importância ter uma vida saudável com práticas de
exercícios físicos e alimentação saudável, mas o mais fundamental é ter amor próprio e se
aceitar como é, tentando melhorar o que for viável dentro dos limites que a saúde permitir.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W; HORKHEIMER, Max – Dialética do Esclarecimento: fragmentos


filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 114.
ARON, Raymond - As etapas do pensamento sociológico. A geração da passagem do
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