Você está na página 1de 15

COLETIVO PERSEGUIDAS

Sumário
O QUE É A FEMINILIDADE?...........................................................................................................2
A SOCIALIZAÇÃO FEMININA E OS RITOS DE GÊNERO……………………….…..…………3
APLICAÇÃO DA FEMINILIDADE EM CORPOS NÃO-BRANCOS…………..………….5
FEMINILIDADE E CAPITALISMO: O porquê de radicais sul-coreanas
estarem certas em suas propostas………………………………………………………….………….……..8
“COMO ROMPER COM A FEMINILIDADE?”: Um convite a todas as
mulheres brasileiras………………………………………………………………………………………………………...13

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


1
COLETIVO PERSEGUIDAS

O que é feminilidade?
A feminilidade é um conjunto de práticas e comportamentos criados pelo
patriarcado, que são impostos à socialização de fêmeas humanas desde o
começo da vida da criança nascida com a genitália feminina, ditando a
qualificação e a preparação para o “ser mulher”. Tais práticas possuem o objetivo
de moldar fêmeas na dinâmica de submissão aos heteropatriarcas, de modo que
condiga com o esperado pelos homens e que facilite o acesso desses aos corpos
das socializadas mulheres.

Os ritos femininos de enfeitar-se, vestir roupas que impossibilitam a livre


mobilidade corporal – a exemplo de saltos, saias justas, decotes – pintar-se,
mutilar-se para fins estéticos, depilar-se para manter o corpo infantilizado
(cultuado pelos homens, pois a pedofilia é intrínseca ao mundo masculinista),
manter os cabelos longos, dentre diversas atividades estéticas, são praticados
pelas mulheres das mais diversas etnias globais, mantendo-as encarceradas no
ciclo de submissão e de entrega aos machos. Isso se confirma, pois a feminilidade
nada mais é do que o confinamento físico e psicológico de mulheres perante a
manipulação e a criação de padrões do desejo brutal e desumano dos homens.

Logo, a feminilidade é a condição depositada na existência de fêmeas para que


transitem e ocupem a posição do “tornar-se mulher”, tão explicitado
anteriormente por Beauvoir e detalhado por Andrea Dworkin em sua famosa
colocação: ​“A mulher não nasce, ela é feita. E no fazer, sua humanidade é
destruída. Ela se torna símbolo disso, símbolo daquilo: mãe da terra, puta do
universo; mas ela nunca se torna ela mesma, porque a ela é proibido fazer tal.”

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


2
COLETIVO PERSEGUIDAS

A socialização feminina e os ritos de


gênero
Em termos de gênero e sociedade, observa-se que são impostos aos indivíduos,
mesmo antes do nascimento, papéis de gênero, os quais atuam como
marcadores sociais, de acordo com a genitália da criança. “Chá de revelação” é
uma festa da cultura brasileira, na qual se descobre o sexo do bebê e,
posteriormente, impõe-se o papel de gênero sobre ele. Se a bebida ficar rosa, logo
se é menina, se ficar azul, é menino. Se, ao estourar o balão, saem enfeites rosas:
menina; se os enfeites são azuis: menino. E por aí vai. Rapidamente acontece toda
uma preparação social em cima da infância. Brinquedos nas lojas são separados
entre “de meninas” e “de meninos”, assim como material escolar, para além dos
próprios quartos rosas ou azuis, dentre tantos outros marcadores.

Aprofundando-se nesses aspectos, é de conhecimento geral que todo esse


preparo é um grande peso em nossa socialização. Tudo o que gira em torno da
vida de meninos, até o modo como serão tratados e incentivados, será com base
no denominado gênero masculino. Eles serão incentivados a pensar em sua
carreira profissional, de modo direto ou indireto. Serão ensinados, também, a
provar sua masculinidade, em termos pobremente venerados, “pegando
mulheres”, porém não se apegando a elas, tampouco sendo o casamento uma
grande preocupação. Já na vida das meninas, elas serão induzidas, desde cedo, a
pensar sobre casamento e maternidade. Esses são os objetivos gerais da vida de
qualquer menina. É devido a isso que, quando se trata de meninas dos 13 aos 17
anos saindo de escolas por estarem grávidas (engravidadas, majoritariamente por
homens adultos, ou seja, estupradores e pedófilos), o fato não é tratado como
absurdo, sendo normalizado. Não é um absurdo, em termos de sociedade geral, o
fato de uma criança ou uma adolescente evadir a escola e ter seu processo de
aprendizado interrompido ou atrasado, fazendo com que desistam de suas
futuras carreiras profissionais, enquanto grávidas, uma vez que mais tarde, esse
seria o objetivo final de sua vida.

Entretanto, observando a fundo esse rito de socialização e aprisionamento de


fêmeas humanas, para alcançarem os tão esperados objetivos, elas perpassam
outro: ​serem bonitas​. Barbies, Bratz e tantas outras bonecas, todas estão sempre
pintadas. Em desenhos e séries infantis, momentos de “vaidade” (limpeza de pele,
maquiagem, pentear os cabelos, fazer as unhas) são dados e entendidos como
sagrados, ou seja, como um alívio para todas as mulheres em dias estressantes,
ou para “melhorar a autoestima”, como vemos em filmes (Legalmente Loira,
Clube dos Cinco, Meninas Malvadas, Garotas S.A, entre outros filmes, desde os
“​cults​” aos "​pops​"). No final, compreende-se a finalidade para a qual as fêmeas
precisam estar atraentes: encontrar um parceiro/namorado/marido. Apenas

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


3
COLETIVO PERSEGUIDAS

assim existirá a possibilidade do cumprimento dos outros dois objetivos maiores


em suas vidas, impostos pelo patriarcado.

(Bonecas “Bratz”, influências diretas na


vida de meninas, principalmente negras)

A partir disso, cria-se conceitos que


são usados para justificar uma falsa
vaidade nas vidas de meninas e
mulheres. Exemplificando: muito
se é usado o jargão “a beleza dói”,
um dito popular que é cultuado
como crença. Assim, meninas são
submetidas, desde muito cedo, a
práticas cada vez mais violentas,
sendo justificadas com a própria
invenção de “essência feminina”.
Como consequência, meninas
vivem, até o fim de suas vidas, em
uma guerra contra outras meninas
e contra elas mesmas. Elas procuram sempre um padrão de beleza inalcançável,
que sequer existe naturalmente. O que realmente existe são as mazelas na saúde
física e psicológica derivadas de tais práticas: disforia e dismorfia corporal,
transtorno de ansiedade, depressão, anorexia, bulimia.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


4
COLETIVO PERSEGUIDAS

Aplicação da feminilidade em corpos


não-brancos
Em mulheres não-brancas, as práticas de feminilidade são aplicadas de maneira
ainda mais violenta, uma vez que o racismo atua fielmente ao lado do
patriarcado. Mulheres negras, por exemplo, são submetidas desde sempre ao
auto-ódio, procurando incansavelmente por uma validação da branquitude, o
que faz com que todas as práticas de feminilidade sejam, também, interligadas às
práticas de embranquecimento.

Na cultura brasileira, o cabelo é visto como um forte marcador social. Mulheres de


cabelos crespos, majoritariamente negras, são, desde muito novas, apresentadas
a fortes químicas para alisamento capilar, sendo esse um processo relatado por
muitas como doloroso e desconfortável. Além disso, em várias comunidades
periféricas, quando duas mulheres rivalizam entre si (quase exclusivamente em
situações que envolvem traição aos casamentos com homens), elas se agridem
em um confronto direto com uso de violência física e, consequentemente, seus
cabelos são cortados ou raspados, representando um motivo de vergonha,
repressão e humilhação. Raspar o cabelo, então, se torna motivo de linchamento
social, perpetuando a ideia, no imaginário social, de que mulheres se tornam
menos mulheres quando esse ato é consumado. Isso também pode ser
exemplificado quando mulheres negras de cabelos raspados são chamadas,
pejorativamente, de “pão careca” em diversos locais do país. Também é válido
analisar que quando famosas (que possuem poder de influência sobre outras
mulheres) raspam o cabelo, essas compensam a feminilidade usando
maquiagem e jóias em excesso.

De certo, a feminilidade estética está presente de maneira duplamente fortificada


e sufocante na vida de mulheres não-brancas. Para registrar exemplos que
possam comprovar, tem-se, primeiramente, a ideação misógina de homens
japoneses, conhecida como “Yamato Nadeshiko”, cuja definição a grosso modo
seria “A Mulher Japonesa Ideal/Tradicional”. Nadeshiko é uma pequena e delicada
flor japonesa que inspirou os patriarcas a criarem o molde de personalidade e
estética das mulheres, o qual pode ser categorizado por:

– Ser “pura”, casta e devota ao marido;


– Ser feminilizada, enfeitando-se com adornos considerados femininos e
gesticulação/comportamento feminilizado/docilizado;
– Cumprir o papel de cuidar (leia-se: trabalhar) da casa e dos filhos;
– Nunca discordar do marido.

Não somente, a Yamato Nadeshiko foi o símbolo feminino da propaganda do


governo japonês, durante a Segunda Guerra Mundial, para silenciar e encobrir as

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


5
COLETIVO PERSEGUIDAS

mulheres japonesas que organizavam tropas, lutavam armadas ao lado dos


homens e resistiam ao padrão estipulado. A mulher tradicional e considerada
digna seria aquela cuja responsabilidade estava em preparar e proteger os filhos
durante a guerra, aturando a miséria, a pobreza e as dores do período de conflito.
Mais tarde, na cultura popular japonesa, Yamato Nadeshiko foi retratada como
personagem de uma história ​mangá​, virando ​anime posteriormente. A história
consiste em garotos adolescentes que possuíam a missão de transformar a
personagem feminina em uma Nadeshiko, visto que essa usava apenas roupas
escuras e gostava de coisas consideradas “não femininas/delicadas”.

Ainda falando de mulheres asiáticas, sabe-se que as práticas torturantes de


feminilidade também condicionaram diversas dessas a servirem aos homens
americanos e nativos de seus países como compensadoras sexuais, as chamadas
“Mulheres de Conforto”, cuja realidade era baseada na prostituição e no estupro
massivo que garantia a “satisfação e descanso sexual” das tropas
norte-americanas e dos homens em guerra que defendiam os territórios locais,
durante as invasões e guerreamentos entre nações. A consequência de tais fatos
se deu pela hiperssexualização das mulheres amarelas, extremamente
fetichizadas, pornificadas e visualizadas como seres dóceis, incapazes de reagir ou
se rebelar contra os homens, frágeis e insinuantes para o sexo masculino, que
buscavam o abuso sexual como compensador de sua rotina de guerra. Nesse
sentido, a ideia de que a mulher deve estar bem aparentada, esperando pelo
homem, para que ela seja usada por ele, tomava (e ainda toma) os pensamentos
masculinistas.

O fato é que, enquanto mulheres amarelas estavam sendo moldadas nas


características mencionadas, mulheres nativas africanas, afrodescendentes e
indígenas estavam sendo animalizadas e também estupradas, porém na visão de
que eram (e ainda consideram que sejam) resistentes à violência –
principalmente sexual –, propícias para a escravidão e serventia com o corpo,
selvagens e totalmente incapacitadas de corresponderem a qualquer outra coisa
senão o sexo brutal (estupro) e a bestialização de seus comportamentos para o
aprisionamento nos trabalhos escravos.

O processo de colonização da América atesta o mencionado, pois sabe-se que


colonizados os territórios, também foram colonizados sexualmente os corpos de
mulheres e crianças. A desumanização de mulheres indígenas e pretas
perpassam os dias atuais. Suas vestes e caracterizações éticas se tornaram
usufruto do capitalismo, a feminilidade comportamental que já confinava
mulheres dentro de seus próprios grupos familiares – pois o heteropatriarcado
não é exclusividade do homem branco – se tornou um molde ainda mais
expressivo na mão da branquitude, haja vista que se tornar aceita pelos homens
brancos se tornou uma busca inesgotável, a qual eles mesmos implantaram
nessas mulheres.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


6
COLETIVO PERSEGUIDAS

A propósito, ser um objeto de desejo sexual sem pudores, para a mulher, é a base
de sua socialização. É nesse ponto em que a feminilidade se expressa de maneira
mais desesperada e voraz: quando fêmeas, desde novas, vivem as práticas hostis
de heterossexualização e feminilização para que, mais tarde, o resultado disso
seja o olhar, o elogio simbólico e o sexo com ele: o ​homem​.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


7
COLETIVO PERSEGUIDAS

Feminilidade e Capitalismo: ​O porquê de


radicais sul-coreanas estarem certas em suas propostas

O capitalismo surgiu após o patriarcado e o racismo deixarem um terreno fértil


para os exploradores. Entende-se como capitalismo, um sistema econômico que
existe somente devido à exploração do trabalho e da mão-de-obra da classe
trabalhadora, tendo como os agentes os próprios burgueses. Estes burgueses são
os patriarcas brancos. Entretanto, referenciados a classe trabalhadora, pontuados
são os homens, nunca as mulheres.

Atualmente, muitas mulheres usam da feminilidade (criada pelos patriarcas) para


ganhar sustento. Ou seja, o capitalismo faz com que elas reproduzam a lógica
patriarcal para sempre mantê-las aprisionadas a sua opressão enquanto fêmeas
humanas. Normalmente são encontradas mulheres trabalhando no ramo da
beleza; mulheres pobres trabalham informalmente como manicures/pedicures,
cabeleireiras, designers de sobrancelhas, maquiadoras, até adentrarem a grandes
empresas de salões de beleza, passando ao trabalho formal. Deste modo, o
capitalismo glamouriza tal opressão, tornando o questionamento das práticas
ligadas à feminilidade quase impossível, uma vez que é a partir destes trabalhos
que mulheres fazem sua renda.

Na série coreana “True Beauty” (Beleza Verdadeira), a protagonista Lim Jukyung


sofre bullying (e até tenta suicídio) por, aparentemente, ser considerada feia. O
fato é que a personagem possui apenas um problema dermatológico no rosto,
evidenciando espinhas, para além de usar roupas confortáveis como calças e
moletons de cores neutras. Mesmo assim, a menina passa a se mascarar com
muita maquiagem, ficando irreconhecível para os colegas da nova escola e
atraindo os olhares dos homens. Vivendo em uma amarra complementamente
sufocante de nunca se mostrar sem maquiagem, Jukyung se torna, mais tarde,
maquiadora, compreendendo que o ramo da beleza “salva as vidas” de meninas
que, como ela, foram rechaçadas por não estarem extremamente feminilizadas
ou padronizadas. Nesse exemplo adicional, é explícito como o liberalismo e a
misoginia andam de braços dados. Mulheres pobres e pouco ligadas à
feminilidade estética se moldam para a cultura e para o trabalho ligados a essa
opressão, considerando que a existência da mulher é a existência apenas em
condições moldadas para o feminino.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


8
COLETIVO PERSEGUIDAS

(Personagem Lim Jukyung, em suas


versões “feia” e “bonita”, na série
“True Beauty”)

Além de “True Beauty”,


diversas outras séries e filmes,
principalmente
norte-americanos, mostram
em seus enredos como
adolescentes no ensino médio
são pressionadas a se
enfeitarem, bem como a se
hiperssexualizarem, para
serem socialmente aceitas.
Caso contrário, sofrem
bullying e são excluídas de grupos ditos “populares” no ambiente escolar. A
recente série da HBO, “Euphoria”, exemplifica a questão da sexualização com a
história de Kat Hernandez, que ainda não tinha feito sexo pela primeira vez,
enquanto suas amigas a pressionavam a fazer, por meio de piadas e hostilização.
Kat tem sua primeira experiência sexual, sendo alvo de estereótipos sexuais por
ser gorda e, logo após o ato sexual consumado, ela procura se sexualizar para
estar inserida na vida agitada de suas amigas. Também pode-se apontar outras
problemáticas nesta série, como a culto à depilação e ao acesso à pornografia.
Nisso, o pensamento de Gail Dines a respeito da mulher ser aprisionada na busca
pela posição de ​“fodível​”, para que não se torne i​ nvisível,​ pode ser confirmado.

(Personagem Kat Hernandez, antes e após


processo de hiperssexualização)

Para além das problemáticas


apontadas no parágrafo anterior, é
explícita a violência direta do
capitalismo contra as mulheres no
ramo da beleza: cirurgias plásticas
têm atingido mulheres de quase
todas as idades. Sendo assim, a
mutilação contra os corpos de
fêmeas humanas é tido como
socialmente normal e quase
inevitável, como se esse fosse o
destino a ser alcançado por todas
que possuírem condições
financeiras para tal.

O Brasil é um dos países com maiores números de cirurgias plásticas


acumulados. Aumento de seios, clareamento da vulva, “recolocação” de hímen,

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


9
COLETIVO PERSEGUIDAS

ninfoplastia (redução dos grandes lábios da vulva), aumento dos glúteos,


lipoaspiração, harmonização facial, bichectomia, preenchimento labial. Todos
esses e muitos outros ritos violentos são agravantes da beleza que se tornaram,
há muito tempo, um sonho de consumo das mulheres brasileiras. A mutilação de
corpos saudáveis é vista como “melhoria” e investimento em beleza, soando
como algo sem risco ou problemática alguma.

As culturas populares que se organizam diante de subculturas, gêneros musicais


e agrupamentos de estilo, de maneira repetitiva, estimulam mulheres a usarem a
feminilidade como representação da própria personalidade, tornando a figura
feminina um símbolo de imagem a depender do modo como tais culturas se
expressam. Em termos de cultura preta, por exemplo, mulheres têm se alienado
com a ideia de que o uso de unhas alongadas e afiadas representam algum tipo
de resistência cultural e étnica. Para além das unhas, é persistente o uso
excessivo de maquiagens como ​gloss labial, cílios postiços extremamente
volumosos, perucas alisadas e roupas evidentemente sexualizadas, apertadas,
feitas com tecidos que evidenciam cada parte do corpo da fêmea que é
comumente hiperssexualizado. A cultura da preta “baddie” – como são
chamadas as mulheres pretas que cultuam tais expressões de feminilidade
marcadas pelo hiphop – tem feito com que o mercado capitalista venda
expressivamente mais, acarretando a consequência de que mulheres de todo o
planeta assumam uma posição obsessiva pelo padrão ideal enquanto preta
visada pela cultura do rap.

O discurso de resistência diante das práticas de feminilidade impostas às


mulheres pretas tem suprido o trabalho do capitalismo de injetar o plano liberal
no feminismo camuflado como propriamente negro, para manipular e encojarar
mulheres a permanecerem na linha de opressão, uma vez que adotam o vício
pelos cachos perfeitos, pela estética vangloriada por homens negros e pelo
“empoderamento” que, na verdade, as empobrece financeiramente e
psicologicamente.

(Mulher negra inserida na estética “baddie”,


influenciada pela cultura do hiphop)

Sob tais análises, pela perspectiva


feminista radical, compreende-se que o
rompimento com tais práticas, de
maneira absoluta, é um caminho que não
pode ser desconsiderado de forma
alguma. Cumprir com a ​práxis (prática)
radical, tendo em mente toda a teoria
com que concordamos, significa
radicalizar as nossas pessoalidades para

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


10
COLETIVO PERSEGUIDAS

que radicalizemos os nossos meios e, depois, o nosso mundo.

O Coletivo Perseguidas, de maneira cotidiana, pauta e valoriza a atividade de


radicais sul-coreanas que, em seus meios, já compreendem e efetivam a prática
de rompimento total com a feminilidade estética e com a quebra de ritos
heterossexualizados, como o casamento, a gravidez, o sexo com homens, a
inclusão masculina em seus ambientes, entre outros. Acreditamos que cumprir
com o radical dessa forma nos orienta, de forma organizada, a sobreviver com
maior qualidade de vida dentro do sistema heteropatriarcal, tentando romper
com ele. Não há possibilidade de ver o feminismo radical operar com grandeza se
mulheres alinhadas ao radical não efetivarem a sua politização e quebra com o
mundo masculinista.

Sheila Jeffreys menciona, em “Beleza e Misoginia”, que não há condição existente


para que a feminilidade estética e comportamental seja benéfica ou praticável de
modo a não oferecer riscos para as mulheres no mundo. Feminilidade não pode
ser, nem nunca será uma escolha, pois à fêmea humana nunca foi apresentado
nenhum outro sistema fora do que existe como nossa opressão: o patriarcado
heterossexual. Se a feminilidade fosse possível como livre escolha, homens a
praticariam da mesma forma e na mesma proporção desde o início. Mas, por
serem eles os criadores de todos os marcadores sociais considerados femininos,
compreende-se que o propósito é único e bem articulado: oprimir, reduzir,
desumanizar, empobrecer, ridicularizar e acessar mulheres. Ou, além disso, matar,
pois a fêmea, quando transformada socialmente em mulher, corre risco de vida
ao se relacionar com homens, ao passar pela mutilação estética de seus corpos,
ao deixar de comer para manter a magreza, ao adoecer psicologicamente, ao ser
assassinada massivamente pelos machos.

Posto isso, atesta-se, também, que o projeto político dos homens é tão grandioso
e potente que, caso a mulher rejeite toda a expressividade da feminilidade, logo
será categorizada e empurrada para a transição, pois dentro do patriarcado,
jamais seria possível que a fêmea existisse sem ser feminina. Ademais,
transicionar mulheres lésbicas e/ou desfeminilizadas também é rentável para o
mundo dos homens, uma vez que a mutilação dos seios e a hormonização
também compreendem um alto valor que enriquece as grandes indústrias e
engrandecem a amarra social.

Em conclusão, todo o mencionado demonstra, de modo a tornar transparente


como a feminilidade é um núcleo de venda, dominação e manipulação, que
seguir o exemplo de feministas radicais que já agem contra tais marcadores é um
ato de prosperar dentro do ativismo de mulheres. Centralizar a existência em
outras mulheres, perceber e estimular o amor e a expressividade ativa entre
mulheres, romper com a beleza – pois ela sequer é necessária –, romper com os
mecanismos da heterossexualidade (que é compulsória para todas as mulheres,
haja vista o aprendido com Adrienne Rich, Monique Witting e tantas outras

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


11
COLETIVO PERSEGUIDAS

companheiras e teóricas radicalizadas) e romper com o comportamento


feminilizado e programado, tudo isso condiz com impulsionar o radical e fazer,
assim, com que a teoria se torne prática.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


12
COLETIVO PERSEGUIDAS

“Como romper com a feminilidade?”:


Um convite a todas as mulheres brasileiras

Como convite a todas as mulheres, especialmente em plano brasileiro, o Coletivo


Perseguidas apresenta, trazendo ao Brasil, o projeto de atuação do movimento
#TireOEspartilho.

“Tirar o espartilho” se tornou uma grande mobilização feminista na Coreia do Sul


a partir de meados do ano de 2015, fazendo com que mulheres economizassem
valores altíssimos de dinheiro que anteriormente eram gastos com cirurgias
plásticas, maquiagens, produtos dermocosméticos e roupas feminilizadas.
Mulheres sul-coreanas se inspiraram na obra radical de Sheila Jeffreys, “Beleza e
Misoginia”, reconhecendo que a feminilidade é como o real aprisionamento,
desconforto e sufocamento do usar de um espartilho, o que fez nascer o nome do
movimento – que também faz referência à tradução do título do livro em
coreano.

(Foto tirada após a realização


de ato para o movimento
#TakeOffTheCorset, na Coreia
do Sul)

Nessa perspectiva, as
radicais da Coreia vêm
realizando o ato de
rasparem os cabelos (ou
utilizarem cortes
realmente curtos),
quebrarem suas
maquiagens,
desfazerem-se de roupas
feminilizadas e
repensarem os comportamentos atrelados à feminilidade e à heterossexualidade
compulsória, partindo para o separatismo lésbico ou celibatário.

Sendo assim, a qualidade de vida e o avanço do feminismo radical sul-coreano é


evidente, haja vista que a ​práxis (prática) materialista radical vem sendo
cumprida com dedicação, entrega e responsabilidade.

Portanto, pensando em cuidar das nossas, aqui no Brasil, o Coletivo Feminista


Perseguidas convida todas as mulheres a abraçarem e participarem da
campanha #TireOEspartilho.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


13
COLETIVO PERSEGUIDAS

A ação fica à mercê de cada companheira, mas se concentra no desprendimento


de algum eixo, ou de forma integral, da feminilidade estética, podendo acontecer
no ato de raspar o cabelo ou quebrar as próprias maquiagens – pois
compreendemos que repassá-las (doando ou vendendo) para outras mulheres
seria envolvê-las, também, no espartilho. De modo semelhante às coreanas,
sugere-se a gravação de um pequeno vídeo ou foto durante a realização do
rompimento com o espartilho, para que esse material possa ser publicado nas
redes sociais com a hashtag do movimento. Essa divulgação impulsionará as
demais irmãs a realizarem o mesmo, libertando cada vez mais mulheres ao se
sentirem inspiradas umas pelas outras.

(Feminista radical,
Summer Lee, antes e após
o processo de
desfeminilização estética,
retirada do espartilho)

Mulheres já em
processo de
desfeminilização ou
que já tenham o feito
esteticamente
podem também
participar através da
publicação de
comparativos “antes e depois” com fotos, relatando a própria experiência e
convidando ainda mais mulheres para efetuarem a mesma atividade.

Desejamos que cada vez mais mulheres brasileiras experimentem o poder do


radicalizar de suas vidas, extraindo o necessário para sobreviverem o mais longe
possível das amarras heteropatriarcais.

Entregamos a todas o convite de cuidado, de conhecimento e de como iniciar a


nossa caminhada rumo à libertação. Estudemos, tenhamos coragem, tiremos o
espartilho, quebremos a corrente da feminilidade, mulheres. Avante.

Quebrar para romper, romper para libertar.

#TireOEspartilho

LUTEMOS​.

ANA CLARA SOUZA E JULIA BORGES


14

Você também pode gostar