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03/08/2023, 17:01 Ser uma adolescente negra pode matar-te por dentro | por Yasmin Morais | QG Feminista | Médio

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Ser uma adolescente negra pode matar-te por dentro


Como o racismo estrutural adoece meninas pretas

Yasmin Morais · Seguir


Publicado em QG Feminista
8 minutos de leitura · 20 de fevereiro de 2019

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Imagem retirada da Internet

Este artigo é protegido por Creative Commons CC BY-NC-ND, só permitindo que seja utilizado desde que atribuam crédito ao
autor, mas sem que possa alterá-lo de nenhuma forma ou utilizá-lo para fins comerciais.

“A preguiça na minha adolescência foi de várias partes e por vários motivos. Por eu ser negra, lésbica e feminista! Eu queria dormir e
não acordar mais, sabe? Ou só quando isso tudo tinha passado, e todos os dias eu me perguntava, muitas vezes até me culpava por
aquilo que tudo era conhecido. ” — DS (entrevistada)

De todos os períodos os quais vivenciamos ao longo da vida, a adolescência demarca-se enquanto um divisor de águas.
Nossas relações abruptamente deixam de se limitar à família, aos cuidadores ou à escola e se expandem para o mundo. Um
mundo nada acolhedor às mulheres, sobretudo, negras. Conflitos a respeito do corpo, personalidade e personalizados são de
praxe, porém, em uma sociedade completamente adoecida, onde vigora um campo minado de sexualização precoce,
indústria da moda, do entretenimento, pornográfica e farmacêutica, as adolescentes são constantemente fustigadas.
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Alinhando tais vivências ao racismo estrutural, os adolescentes negros são mantidos à situações específicas duplamente
maléficas ao seu processo de desenvolvimento.

Do porquê da adolescência negra e branca são diferentes


A socialização imposta às mulheres negras e brancas, em uma sociedade segmentada pela superioridade racial, diverge
completamente. No Brasil, mulheres negras são direcionadas a um amadurecimento precoce em diversos segmentos
sociais. Alguns, tratando-se de maioria em comunidades periféricas, iniciam-se em trabalhos variados mal remunerados,
são socializadas para contribuir no sustento da família e instruídas a tornarem-se “donas de casa”, precocemente. Ainda
quando oriundas de famílias em classe social favoráveis, mulheres negras vivenciam processos que forçam-nas a incorporar
um amadurecimento precoce. Tais fatores, conduzem-se à ratificação de um dos mitos a rondarem meninas pretas: a mulher
madura .

Tal mito, faz-se presente em comunidades e repete-se igualmente nas grandes cidades do país, apesar de apresentar nuances
diferenciadas. Por um lado, a mulher madura não se manifesta somente na aquisição de maiores responsabilidades, mas
também, na rápida corte entre a infância e a adolescência na qual meninas negras são incorporadas. Comumente
relacionados ao mito da “força” e “promiscuidade”, tais garotas são incentivadas a abdicar de comportamentos infantis e
incorporam um papel “amadurecido”, ainda em idade infantil. Pesquisas comprovam que uma parcela da sociedade
considera meninas negras “menos inocentes”, em relação a brancas da mesma idade. Desde a infância, mulheres negras são
alvo de maiores desconfianças, maus tratos e punições.

“ Desde bebês, as crianças negras são mais punidas do que as crianças brancas, recebem apelidos depreciativos e, nas situações de
conflito, são as preteridas ou as culpadas. ”

— Ellen de Lima Souza, pedagoga, mestre, doutoranda e diretora do Itesa (Instituto de Tecnologia, Especialização e
Aprimoramento Profissional).

Tal ótica reaplica-se na adolescência. A sociedade aguardava de garotas negras a performance de estereótipos relacionados à
brutalidade, promiscuidade e igualdade, fazendo-as vivenciar uma condição de sufocamento. Há o desejo de desenvolver sua
personalidade e subjetividades, contudo, parecem-se impelidas a incorporar estereótipos, ainda que para sofrer menor
exclusão de círculos sociais. O racismo manifesta-se violentamente nas fases iniciais da vida, quando deseja-se o convívio
social intensamente. Deste modo, toma-se a consciência da disparidade de tratamentos oferecidos a brancas, mestiças e
negras.

“ No início da adolescência, lá pelos 13/14 anos eu percebi que os meninos me cumprimentavam diferente em relação às minhas
amigas. Eles davam beijinhos nos rostos delas e para mim era sempre um aperto de mão. ” — KS (entrevistada)

Comumente alvo de comentários pejorativos, atrelados à institucionalização social de uma feminilidade eurocêntrica,
meninas negras adotadas, por vezes, cultivando ódio imenso por suas características físicas. Cabelos crespos, narizes largos
e lábios volumosos, tornam-se em algozes. Nesta fase, fiquei relacionam o ódio recebido ao racismo, portanto, acabam por
interpretar-se de um problema inerente a elas. “ A culpa é nossa, por sermos tão escuras ou possuímos cabelos tão crespos. Por
sermos mais altos ou mais gordas, por termos corpos tão avantajados ou musculosos”.

A construção social da feminilidade, dá-se no interior de uma ideologia fomentada pelo patriarcado no intuito de aprisionar
a fêmea branca. Feminilidade tal a compreender, jamais tratara-se de um conceito interessado em abarcar as vivências de
mulheres negras. O padrão de opressão é caucasiano, deste modo, pretas são duplamente extirpadas, para que nele caibam.
Nossa repressão tece-se por vias diferenciadas. A questão estética, extremamente relacionada à maquiagens, pele clara,
delicadeza, passividade e amabilidade exacerbadas, em nós, são substituídas pela maternidade e heterossexualidade
compulsória, complexos de servidão e inferioridade, sob uma perspectiva de exploração dos corpos, não somente por conta
do sexo , contudo, da raça. A sociedade erotiza e coloniza duplamente a existência de mulheres negras.

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Pesquisa relacionada às capas de revistas teen e femininas ao longo das décadas. Como pode-se perceber, há a
vigência de uma hiper-representação branca, estereotipada e elitizada. enfim, não há resultados para capas de
revistas com a presença de mulheres e adolescentes negras.

O repúdio ao corpo negro se manifesta principalmente através das representações midiáticas e sociais do adolescente. Em
revistas, filmes, séries e pesquisas digitais guiadas por algoritmos, o jovem a ser representado é majoritariamente branco. As
vivências expressas em revistas ou sites teen , eram tão somente relacionadas a um cenário excludente. Nesta sociedade
capitalista, consumista e hiperconectada, não estar largamente retratado em veículos midiáticos, eletrônicos e sociais,
transmite uma única mensagem: tu não existe, ou ao menos, não deveria existir .
Socialização, sentimentos e saúde mental
O processo de socialização das fêmeas humanas, submete-nos a padrões, estereótipos, conceitos e vivências extirpadoras,
doentias e repressivas. Tais processos, afetam a saúde mental feminina. Porém, pesquisas comprovaram que a vivência da
repressão patriarcal aliada ao racismo, transforma tal cenário em uma intensa tortura psicológica. Estatísticas recentes
sobre suicídios no Brasil, levam-nos à um número de ocorrências maior entre jovens negros, especialmente, adolescentes
do sexo feminino:

“A cada 10 suicídios envolvendo adolescentes e jovens seis ocorreram em negros. No sexo feminino, o risco de suicídio em
adolescentes e jovens negras foi até 36% maior do que nas brancas.”

Fonte: Parceria para reduzir o índice de suicídio na população negra

A saúde mental de jovens negras é negligenciada desde sua base. A precariedade antidemocrática e a ausência de políticas
públicas que viabilizem o acesso aos cuidados psicológicos e psiquiátricos, acaba por conduzi-las a um maior
aprofundamento em patologias psiquiátricas, tais, os transtornos alimentares, depressão e TAG (Transtorno de Ansiedade
Generalizada).

Ser continuamente associado a estereótipos racistas, atinge uma questão extremamente explorada na adolescência: a
sexualidade. Se a adolescente branca é sexualizada nos parâmetros de “ninfeta”, “pura”, a “despertar o desejo” dos homens,
adolescentes negras são sexualizadas sob um viés contrário, por serem classificadas como “negrinhas promíscuas”, “sujas” e
“oferecidas ”. Neste ponto, cabe enfatizar que crianças e adolescentes negras encabeçam estatísticas de vítimas de pedofilia
e estupro na sociedade brasileira. Meninas pretas estão mais sujeitas a abusos, exploração sexual e gravidez precoce.

Adolescentes negras vivenciam a dualidade dos estereótipos racistas relacionados ao sexo. Há uma faceta
hipersexualizadora, concomitantemente, um viés dessexualizador por parte daqueles da mesma idade. Os relatos de
rejeições na adolescência, são constantes. Ao passo de que são cobiçadas ao extremo desde o despontar dos seios, são

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preteridas ao máximo em espaços onde o cerne não trata-se da exploração, mas sim, amor. Durante séculos, mulheres
pretas não foram concebidas enquanto dignas de amor. Em uma fase da vida na qual tudo o que almejamos é a aceitação e
integração à um grupo, tal rejeitado pode tornar-se fatal.
“Não está belo em mim, não sou branca”
Se adolescentes brancas são arduamente perseguidas pelo mito da beleza (*), teorizaram que negras são perseguidas pelo
mito da não-beleza (*). A feminilidade enquanto construção sócio-histórica, patriarcal e capitalista, utiliza-se de subterfúgios
das características normalmente associadas às mulheres caucasianas, para exercer sobre as mesmas, o seu jugo. Nesta
sociedade, arquitetada após longos processos de colonização, a mulher negra, em suas características africanas, fora alocada
em uma extremidade. Tornando-se assim: a não-mulher . Seus traços físicos, culturais e subjetivos, em nada alocam-se nos
padrões da feminilidade.

“ Até os 16 anos eu achava que não podia usar cordão de ouro fininho delicado porque só ficava realmente bonito em mina branca
porque elas eram mais “delicadas”. ”- GI

“ Eu achava que cabelo grande era só pra quem tinha cabelo liso, porque igual o meu era sujo. " - BA

“ Eu não tinha nem coragem de furar meu nariz porque achava que meu nariz não era fino e delicado o suficiente pra isso. ”- TP

“ Eu não pintava a unha com esmaltes coloridinhos porque achava que só combinava nas meninas brancas. " - EU IA

“ Eu achei que não ficava bem de (sic) cardigã porque era muito grosseira. Tentei deixar a unha crescer pra ficar menos agressivo. Até
queria pras brancas da escola como fazia pra ser mais delicada.” — FN

“ Eu não usava roupa aparecendo sutiã porque achava que só ficava bonito em meninas brancas e em mim ficaria muito desleixado
(até hoje isso permanece porém começou a usar). ”-ML

“ Comprei um óculos dourado de armação fina porque vi em branco pensando que ia ficar deixado em mim como fica nelas, porém me
olho no espelho e me vejo suja e grosseira de certa forma, não sei explicar. ”-TM

Mulheres negras são mantidas ao “não-lugar” na feminilidade, através de processos puramente sociais, culturais, religiosos e
familiares. Ser socializada enquanto mulher, nos molda desta feminilidade, é cruel e adoecedora. Porém, ser uma fêmea
humana e não encaixar-se em tais moldes, lança-nos em um espaço de subalternidade maior. Quando adolescentes, tal
processo se desenvolve complexo dos quais dificilmente livraremos-no-emos. As perspectivas da negritude são alocadas no
patamar mais sujo e socialmente indesejável, levando adolescentes negras a tentarem afastar-se de tudo o que expressa e
demarca sua negritude, desejando imergir em um mundo feminilizado e branco .

Conclusão
Quando adolescentes, desejamos a descoberta do mundo. Ávidos, buscamos incessantemente por acolhimento, auto-
identificação, satisfações pessoais e… amor . As vivências relatadas por mulheres negras, em uma perspectiva estrutural e de
classe, demonstram-nos as diferentes nuances fortalecidas pela opressão patriarcal aliada ao racismo. A implementação de
espaços étnicos inclusivos e étnicos centrados para mulheres negras possui uma enorme importância. Tal mudou, estende-
se não somente ao viés social, contudo, deve alocar-se no próprio feminismo. Carecemos de compreender a manipulação e
variantes dessas opressões, para que possamos desenvolver represálias, cuidados e alternativas às vivências traumáticas de
adolescentes negras no Brasil.

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Arte por: “Gregg DeGroat”

(*) O mito da beleza trata-se do emaranhado de estereótipos sócio-culturais e históricos fomentados pelo sistema patriarcal acerca das
concepções do belo e como estas se aplicam às mulheres. Catalogando-as e hierarquizando-as.

(*) O mito da “não-beleza” trata-se de um termo cunhado por mim para exemplificar a exclusão de mulheres racializadas, em
especial, negras, dos conceitos pré-estabelecidos de feminilidade, delicadeza e mulheridade.

COMO CITAR ESTE ARTIGO ACADEMICAMENTE : MORAIS, Yasmin. “Ser uma adolescente negra pode matar-te por dentro”.
Medium, 2019. Disponível em: <URL>. Acesso em: dia, mês e ano.

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Escrito por Yasmin Morais


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Escritora, fundadora do projeto Vulva Negra e discente em Jornalismo. Acompanhe o meu trabalho no link a seguir: https://linktr.ee/YasminMorais

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