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Belo Horizonte, 03 de dezembro de 2020

Querido Victor,

Ler a escrita do caso que você atendeu me fez lembrar de alguns dos nossos encontros de supervisão
– coletiva e individual. Emocionei-me, assumo, ao ler a sua tentativa de expressão, por meio das palavras, da
experiência de atendimento de Judith. Você e cada uma das pessoas que iniciaram o trabalho clínico de
supervisão no Serviço de Psicologia das Clínicas Integradas do UniBH, comigo, sob a orientação da
Psicanálise, no primeiro semestre deste ano, sabem o quanto gosto de brincar, de inventar, de tocar com as
palavras. Assim, uma vez que as suas palavras me tocaram, buscarei, por meio dessa carta, tocar você.
Em um ano marcado por afastamentos e por temores de acariciar, eu me recuso a tecer comentários
sobre um caso clínico como o de Judith por meio de um instrumento estritamente acadêmico como um ensaio
ou um artigo... O seu trabalho, meu querido, ensina-me sobre técnica, mas, principalmente, sobre condições
de vida.

A história dessa nossa disciplina singular, a Psicanálise, Victor, é marcada por episódios que nos
provocam orgulho, mas, também, por alguns outros, reconheçamos, que nos causam vergonha – muita
vergonha. Um destes episódios – inclusive, contestado por Jacques Lacan e os seus alunos, conforme você
sabe... – foi caracterizado pelo impedimento de acesso dos idosos ao tratamento psicanalítico. As organizações
de Psicanálise, apoiando-se numa observação de Freud (1905 [1904]/1996), alegavam que um dos critérios de
admissibilidade para a Psicanálise seria a idade – não podia ser muito novo, mas, também, velho não era bem-
vindo no consultório psicanalítico. No texto Sobre a Psicoterapia, encontramos a orientação de Freud (1905
[1904]/1996):

A idade dos pacientes desempenha um papel na escolha para tratamento psicanalítico, posto
que, nas pessoas próximas ou acima dos cinquenta anos, costuma faltar, de um lado, a
plasticidade dos processos anímicos de que depende a terapia – as pessoas idosas já não são
educáveis – e, por outro lado, o material a ser elaborado prolongaria indefinidamente a duração
do tratamento. O limite etário inferior só pode ser determinado individualmente; as pessoas
jovens que ainda não chegaram à puberdade são, muitas vezes, esplendidamente
influenciáveis. (p.164)

Servindo-se desta indicação e de algumas outras, analistas influentes da IPA (Associação Internacional
de Psicanálise) publicaram listas de contraindicações à Psicanálise. Como nos recorda Jacques-Alain Miller
(1999),

Houve um tempo em que os psicanalistas tentaram definir critérios e detalhar aquilo que se
chamava, por sinal, principalmente em inglês, as condições de analisabilidade, as condições
que fazem com que um sujeito seja analisável. Era preciso a transferência, sem dúvida, mas
igualmente a capacidade de analisar a transferência. Era preciso o reinado da regra, sem o qual
nada de associação livre, nada de consultas periódicas, nada de pagamentos pontuais, nada de
aceitação de interrupção das sessões, de fins de semana, de férias. (...) Em terceiro lugar, havia
as condições de idade – nem muito jovem, nem muito velho, para resumir. Havia, por fim, as
condições da cultura, um domínio suficiente da língua, do “material verbal”, como se dizia,
etc. (p.52)

O mundo psicanalítico recomendou o elitismo, não questionou o preconceito linguístico e alimentou o


etarismo – não se deu por acaso a excomunhão de Jacques Lacan... Essas duras constatações renderiam, cada
uma delas, uma tese de doutorado. Se houver da sua parte desejo para abordá-las, numa perspectiva crítica,
no futuro, desde já, manifesto meu agradecimento a você.
Orientado pela Psicanálise Aplicada proposta por Lacan, você, Victor, me proporcionou mais uma
prova de que “não há contra-indicações ao encontro com um psicanalista” (Miller, 1999, p.55). Ao atender
Judith, é bonito notar!, o analista aprendeu a consentir com o uso que o sujeito faz de sua presença. Este uso,
em muitos casos, jamais será assertivamente nomeado. Mas os seus efeitos se mostram... E, se posso lhe dizer
com segurança alguma coisa sobre o fazer do psicanalista, está aí: um notável praticante da Psicanálise não é
aquele que faz interpretações mirabolantes ou intervenções de cunho (quase) profético; um bom analista é
aquele que sabe que a sua presença será usada de um jeito singular pelo sujeito escutado. Ou melhor, a pessoa
atendida só chega ao estatuto de sujeito, em uma experiência analítica, quando usa o analista – como um
objeto. E assim, o tratamento pode caminhar... O de Judith, caminhou, dirigido por esse analista-objeto.

Roland Barthes (1981), em o seu Fragmento de um discurso amoroso, lembra-nos que a última
constatação sobre Werther, de Goethe, passa pela solidão: “Quando o corpo de Werther é levado de noite para
um canto do cemitério, perto de duas tílias (a árvore do perfume simples, da lembrança e do adormecimento),
“nem um padre o acompanhava” (é a última frase do romance)” (p.182). A Bíblia, desde o começo, anuncia a
perspectiva do deus judaico-cristão sobre o estar sozinho: “Não é bom que o homem esteja só” (Gênesis 2.18).
E, torna-me inevitável!, é essa não-bondade que Judith vem tratar: “um agravamento do sentir-se sozinha”
(Hugo, 2020, p.01).
Acerca dessa solidão, passa-me pela cabeça, enquanto lhe escrevo, duas camadas que não se excluem
uma à outra: a solidão do envelhecimento enquanto produção psicossocial e a solidão característica do gozo,
do Um-sozinho, que marca cada umdivíduo ou ser falante. Espero, em breve, me encontrar pessoalmente com
você e, com toque, vinho e boas risadas, falarmos sobre essas duas dimensões da solidão.
Por enquanto, meu futuro colega de profissão, obrigado pela gentileza, sempre presente em cada
encontro de supervisão clínica, e pelo decidido “sim!” que você falou à Psicanálise Aplicada!
Valeu, mesmo!

Hugo Bento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Barthes, Roland. Fragmento de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1981.
Freud, Sigmund. Sobre a Psicoterapia (1905 [1904]). In:______. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. VII.

Hugo, Victor. Relatos do dia-a-dia. Apresentação de trabalho. Seminário Clínica Escola de Psicologia
UniBH, Belo Horizonte, dez. 2020.

Miller, Jacques-Alain. As contra-indicações ao tratamento psicanalítico. Opção Lacaniana, nº 25, 1999. p.


52-55.

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