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CONSTRUINDO

A EQÜIDADE:
ESTRATÉGIA PARA IMPLEMENTAÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA A SUPERAÇÃO DAS
DESIGUALDADES DE GÊNERO E RAÇA
PARA AS MULHERES NEGRAS
Apresentação

Há muito tempo nós mulheres negras temos nos mobilizado para


que a sociedade brasileira seja justa e equitativa. Esta mobilização
inclui a pressão para o desenvolvimento de diferentes inciativas
estatais e governamentais capazes de alterar significativamente a
exclusão social que enfrentamos e que permitam a constituição
de uma sociedade efetivamente democrática. Um dos pontos
fundamentais de nossa luta tem sido o reconhecimento do papel
do Estado na produção de ações capazes de reduzir o impacto
que o racismo, o sexismo e a lesbofobia têm em nós e nossas
vidas. Uma vez que reconhecemos que, sem a colaboração do
Estado, que tem atuado principalmente na defesa dos interesses
de uma minoria, o racismo, o sexismo, a lesbofobia e as demais
iniquidades não teriam ido tão longe.

Vem desta perspectiva a crescente demanda pela elaboração


de políticas públicas inclusivas, democráticas, anti-tacistas e
anti-sexistas e anti-lesbofóbicas. Demandas que têm resultado
em iniciativas estatais, principalmente a partir do governo federal,
mas que atingem também os demais níveis de governo e os
poderes legislativo e judiciário que, de maneiras diferentes,
têm a responsabilidade constitucional de responder às nossas
reivindicações e propostas.

No entanto, os avanços atuais ainda não são suficientes para


produzir alterações significativas e imediatas na vida das mulheres
negras. Isto se deve principalmente às deficiências e limitações das
políticas em curso, resultantes das resistências interpostas por
representantes de interesses contrários, mas também pelas
inconsistências técnicas e políticas que estas ações experimentam.

Esta publicação, elaborada pela Articulação de Organizações de


Mulheres Negras Brasileiras/AMNB, propõe-se a colaborar para
que os melhores resultados sejam atingidos, a partir da atuação
qualificada das mulheres negras, de profissionais e gestores
públicos. Contribuindo assim para a qualidade das políticas públicas
e, em última instância, para a democracia.
Gênero, raça e
interseccionalidade
Ser mulher negra significa muitas coisas diferentes, uma vez que somos diferentes umas das outras:
somos pessoas, indivíduos, portanto únicas. Ainda assim, classificadas como um grupo, as mulheres
negras, temos em comum fortes marcas decorrentes da existência do racismo, que cria um
conceito e uma hierarquia de raça. E onde o que representamos, como negras, é considerado
inferior, discriminado e desqualificado. E há também a marca da desqualificação do sexo feminino
estabelecida pelo sexismo, que traz também a noção de heterossexualidade compulsória,
condenando comportamentos sexuais diferentes. O que pode provocar outras formas de violência
e discriminação que, quando voltadas para mulheres homossexuais, são denominadas lesbofobia.
Sociedades racistas, sexistas e lesbofóbicas como vivenciamos na Diáspora Africana (ou seja, nos
diferentes lugares, países e continentes onde africanos e afrodescendentes se instalaram a partir
do tráfico transatlântico de escravos), constróem privilégios para um grupo minoritário de sujeitos.
São pessoas e grupos que carregam as caracaterísticas tidas como ideais:os brancos, os homens;
os heterosexuais e, entre eles, os adultos; os que residem nas cidades, especialmente nas regiões
de maior poder político e econômico; os que não têm qualquer deficiência ou qualquer outra
característica tida como desvantajosa ou inferior.

Como podemos ver, são muitos fatores capazes de criar diferentes identidades, uns tendo maior
impacto que outros na definição das condições de vida de pessoas e grupos, tanto no que se refere
aos privilégios como, no outro extremo, à exclusão social. O que quer dizer também que maiores
ou menores vulnerabilidades (ou seja, maior probabilidade de sofrer impactos – violências,
discriminações e etc - da visão negativa que estas identidades podem ter em determinadas
sociedades) serão criadas a partir destas características, fazendo com que isolar uma delas em
detrimento de sua interação torne a tarefa de realização integral dos direitos humanos individuais
e coletivos mal sucedida.

A força do racismo no Brasil é o principal fator de produção de desigualdades seja entre mulheres
e homens, seja entre mulheres, como os diferentes dados de diferentes centros de pesquisa e
fontes de informação à disposição demonstram. Assim, para a melhoria das condições de vida
das mulheres negras, o enfrentamento ao racismo é fundamental e prioritário. Por outro lado, não
reconhecer o papel que o sexismo tem
pode fazer com que se reforce
desigualdades seja entre negros,
seja entre outros grupos identitários. Raça
Assim, tem grande utilidade nestes
casos a utilização do conceito de
interseccionalidade.Trata-se de Gênero
um conceito que afirma a coexistência
de diferentes fatores (vulnerabilidades, Classe
violências, discriminações), também
chamados de eixos de subordinação,
que acontecem de modo simultâneo
na vida das pessoas. Desse modo, é um Moradia
conceito que ajuda a compreender a
complexidade da situação de indivíduos Idade
e grupos, como também a desenhar
soluções mais adequadas.
A interseccionalidade corresponde ao encontro (intersecção) dos diferentes fatores na vida de cada
mulher ou grupo de mulheres. O ponto central onde, como se verifica na figura a seguir, a cor fica
mais intensa, significa a interseccionalidade que produz a forma concreta como estes diferentes
fatores agem sobre as pessoas em geral e as mulheres negras em particular.

Raça

Classe

Moradia

Gênero
Idade
Desde a perspectiva da interseccionalidade, é possível pesquisar e visibilizar a existência ou não de
desvantagens produzidas pela sociedade desigual sobre as pessoas. No caso das mulheres negras,
estas desvantagens podem ser resultantes das discriminações de raça/ ser negra; de gênero/ ser do
sexo feminino; de classe social/ ser pobre, de moradia/ residir em favelas ou em áreas rurais afastadas;
de idade/ ser jovem ou idosa. E podem- se somar à orientação sexual/ ser lésbica; à presença de
deficiência ou não, e muito mais.

Um aspecto que a interseccionalidade permite destacar é a impossibilidade de, na elaboração e


gestão de políticas para a eqüidade, se isolar ou privilegiar qualquer uma das características atuantes
na vida de indivíduos e grupos, seja raça, gênero, classe social ou qualquer outro. O isolamento
prejudica a percepção da complexidade, das correlações e das potencializações entre eles. O que,
apesar de permitir a simplificação de diagnósticos e ações, termina não apenas excluindo pessoas e
grupos, como principalmente, favorecendo, no interior destes grupos, àqueles sub-grupos em posição
de privilégio.

Por exemplo, quando se isola os aspectos de gênero, e dentro deles, as mulheres, são as mulheres
brancas que, de forma mais efetiva, terão suas necessidades atendidas. Uma vez que as vantagens que
o racismo confere vão permitir às mulheres brancas o acesso privilegiado e bens e políticas, quando
comparadas às mulheres negras e indígenas. Ou então, quando o fator que se quer destacar ou
atender são os aspectos raciais e, dentro deles, a raça negra; as ações empreendidas com base
somente na raça resultarão no atendimento privilegiado aos pontos de vista e necessidades dos
homens negros em detrimento dos interesses das mulheres negras. Uma vez que o sexismo confere
aos homens maior mobilidade e visibilidade diante das mulheres. Estes privilegiamentos poderão ser
potencializados por outros fatores, dando contornos mais complexos às desigualdades.

A utilização da perspectiva da interseccionalidade permite compreender e enfrentar de forma mais


precisa a articulação entre as questões de gênero e raça, uma vez que estes não se desenvolvem de
modo isolado nem afastam outros fatores passíveis de produzir desigualdade e injustiça da vida cotidiana
das pessoas. E mais, a presença concomitante de outros fatores potencializa os efeitos de ambos,
bem como oferece as condições necessárias para que outras violações de direitos ou de criação de
privilégios e desigualdades se instalem. Por exemplo: imagine uma mulher negra. Sabemos que por
causa do racismo e do sexismo, esta mulher terá muito mais chances de ter baixa escolaridade, se
comparada @s branc@s 1. E porque ela tem baixa escolaridade, tem mais chance de não conseguir
um bom emprego. E aí ela tem mais chances de ser pobre. O que a torna mais vulnerável a doenças,
à violência, etc. Assim, cada característica acaba fazendo com que outros fatores se instalem na vida
dela, tornando sua vulnerabilidade a uma série de problemas, seja sociais, políticos ou pessoais
infinitamente maior do que se fosse um homem branco.

Assim, ações, políticas e programas voltados para as mulheres negras devem necessariamente
considerar a necessidade de enfrentar não apenas o racismo e o sexismo, como também as
iniquidades decorrentes da pobreza, da baixa escolaridade, das condições precárias de saúde, da
distância dos grandes centros e das dificuldades de acesso a transportes coletivos, das diferenças
culturais, das diferentes orientações sexuais e da lesbofobia, das necessidades específicas de cada
pessoa, e demais fatores que interagem na vida destas mulheres específicas. Considerando sua
capacidade de produzir e aprofundar vulnerabilidades, ou de fornecer elementos que permitam a
elas o confronto cotidiano com as desvantagens vividas e a produção de estratégias de reafirmação
de sua condição de agentes de resistência e mudança social.

A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários


modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla
discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e
políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo
aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Kimberlé Crenshaw, Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da


Discriminação Racial Relativos ao Gênero, 2002, p. 177

Mulher negra
no centro da política
O que foi apresentado até aqui afirma que, para que as mulheres negras tenham suas demandas e
necessidades atendidas, não são suficientes as políticas chamadas universais, ou seja, voltadas para
grupos maiores, como por exemplo, as mulheres em geral ou a população negra. Ao contrário, a
experiência brasileira e os dados apontam que as políticas universais para mulheres, por não
considerar especificidades e desigualdades entre elas, têm privilegiado as mulheres brancas,
especialmente aquelas residentes nos grandes centros urbanos. Dito de outra forma, a presença
do racismo e outras desigualdades têm resultado no privilegiamento de um grupo minoritário de
mulheres no acesso às conquistas da luta feminista.

1
A utilização de @ indica a utilização de termos que abarcam os dois sexos, mulheres e homens.
O mesmo tem acontecido em relação a políticas voltadas para a população negra - ou suas formas
genéricas e atenuadas chamadas de ‘’promoção da igualdade racial’’- que, ao endereçar suas ações a
um universo amplo demais, que no Brasil inclui mulheres e homens negr@s, judeus, árabes/muçulmanos
e ciganos - acaba por invisibilizar as diferenças e desigualdades dentro do mesmo grupo racial,
permitindo assim um acesso diferenciado, e privilegiado, de alguns. No caso da população negra, os
homens negros em geral podem estar sendo privilegiados, em consequência da presença do sexismo
na sociedade e nas estruturas de poder e gestão de políticas públicas. Ou mesmo homens e mulheres
negr@s de maior escolaridade, ou @s que residem em grandes centros urbanos, ou @s heterossexuais,
ou que não têm qualquer deficiência, etc.

Da mesma forma, tendem a ser isuficientes inciativas que, de modo genérico, são colocadas sob a
rubrica de “gênero e raça”. Se por um lado esta formulação retrata o avanço da luta pela visibilização
das mulheres negras e suas bandeiras, ela não é sufuciente para garantir que os interesses deste
grupo sejam atendidos de forma específica.

Para que se possa garantir que as mulheres negras sejam postas no centro das políticas públicas para
a produção da eqüidade, é preciso pôr em ação diferentes mecanismos e buscar desmontar de
forma simultânea os diferentes eixos de subordinação. Afinal, já sabemos que são múltiplos os fatores
atuantes na produção dos dilemas e desigualdes que enfrentamos. No caso da formulação,
monitoramento e avaliação das políticas públicas, a centralidade das mulheres negras precisa ser
desenhada numa abordagem múltipla e simultânea de diferentes aspectos. Entre eles estão: definição
de prioridades; metas diferenciadas; magnitude das ações; orçamento específico e participação
na formulação, monitoramento e avaliação das propostas.Veremos cada um deles a seguir:

a Definição de prioridades: refere-se à elaboração de agendas de trabalho, de políticas e


ações baseadas nas necessidades das mulheres negras. O que significa dizer que se deve dar atenção
àquelas ações e políticas capazes de alterar de modo significativo suas condições de vida, com efeitos
no curto, médio e longo prazos. Não esquecendo de que existem diferenças também entre as
mulheres negras que podem se traduzir em demandas diferentes. No caso da definição de prioridades,
algumas perguntas podem ajudar. Entre elas, estão: qual o ou os problemas principais na vida das
mulheres negras? De que forma o racismo, o sexismo, a lesbofobia e os demais fatores contribuem
para produzir este quadro? De que forma estes problemas as afetam? Qual o caminho ou caminhos
para mudar este quadro?

b Magnitude das ações: define o tamanho da ação capaz de produzir impacto significativo
sobre o grupo. Por exemplo, se a política ou ação se propõe a alterar a vida de todas as mulheres
negras, é preciso considerar que, em números de 2005, éramos cerca de 46 milhões de pessoas.
Ou seja, é preciso produzir inciativas desta magnitude, ainda que de forma escalonada. Ainda que se
possa priorizar grupos menores dentro deste conjunto. Assim, políticas para as mulheres negras têm
como horizonte uma população deste tamanho. Mas se, entre as mulheres negras, buscarmos
desenvolver ações para aquelas que estão no mercado de trabalho e dentre elas, as trabalhadoras
domésticas, devemos considerar que elas são cerca de 7 milhões de trabalhadoras e é para este
conjunto que a ação deve se dirigir. Considerando-se também que, se não há condições imediatas de
trabalhar com todo este contingente, é preciso fazer um plano detalhado que contenha a informação
de quanto tempo se levará para atingir todo o grupo e as razões que levaram a eleger um percentual
menor para começar. Ou seja, as ações precisam ter um tamanho suficiente para alterar a forma de
subordinação ou desvantagem para uma quantidade significativa de mulheres negras e que, a partir
daí, permitam que o grupo como um todo tenha condições de seguir lutando e contribuindo para a
transformação das condições de trabalho das demais.

c Metas diferenciadas: naquelas políticas universais, ou seja, voltadas para para uma população
em geral, como todas as mulheres, todos os negros ou toda a população brasileira, por exemplo, é
preciso estabelecer metas diferenciadas para cada sub-grupo e para as mulheres negras em particular.
Uma vez cada sub-grupo pode experimentar condições de vida desiguais e, o sub-grupo de mulheres
negras apresentam piores indicadores em muitos aspectos. Assim, maior esforço deve ser dirigido
àquelas em piores condições, gerando metas diferenciadas. Por exemplo, para a redução da
mortalidade materna no Brasil em 50% (número fictício), por exemplo, será preciso desenvolver
ações diferenciadas ou mais intensas capazes de provocar uma redução maior, de 70% ou mais
(número fictício) entre aquelas com maiores taxas de mortalidade (as mulheres negras) e, a partir
de então, reduzir as taxas gerais.

d Orçamento: ações, programas e políticas requerem recursos financeiros e humanos para


serem desenvolvidos. A disponibilização de recursos em quantidade e qualidade é um importante
indicador de prioridade e das possibilidades de se chegar, efetivamente, aos resultados definidos
previamente. Assim, toda a política que têm por prioridade a redução das iniqüidades raciais e de
gênero, deve considerar que a interseccionalidade afeta mais as mulheres negras e, com isso, priorizar
este grupo na alocação de recursos humanos, materiais e financeiros. Estes recursos devem estar
disponíveis no tempo adequado para que se produza os resultados esperados e de modo sustentável
e duradouro. E que sejam utilizados de forma transparente, ou seja, que permitam que as mulheres
negras e o restante da sociedade fiscalizem e avaliem sua aplicação. Assim, é necessário que se
responda às seguintes perguntas: quanto recurso está disponível?; quem controla estes recursos?;
quem parece controlar?; para que este recurso está sendo usado?; a quem ele beneficia?; a quem
ele deveria beneficiar?; eles estão sendo administrados de forma transparente? o grupo beneficiário
participa de seu gerenciamento? Ou seja, é preciso saber se os recursos estão sendo aplicados por
aquel@s que tem o dever de aplica-los, da forma como foi proposta e para beneficiar quem mais
necessita dele.

e Participação: um dos requisitos fundamentais para uma boa gestão do interesse público e da
democracia é a participação social. No caso das políticas de eqüidade, é importante que os grupos
para quem as políticas são dirigidas possam ser interlocutor@s privilegiad@s nas diferentes etapas
de seu desenvolvimento, ou seja, na formulação, no monitoramento e na avaliação das políticas
implantadas. A participação de mulheres negras de diferentes origens e características nas diferentes
etapas pode contribuir, desse modo, para aproximar governos, gestores e profissionais dos modos de
vida, das visões de mundo, dos interesses e necessidades deste grupo, o que certamente vai facilitar e
melhorar a qualidade e amplitude da ação. Participação que, para ser efetiva, requer que as instâncias
de controle social adotem mecanismos, condutas e linguagens adequados à formas de atuação e
linguagem das mulheres negras.

Prioridades

Metas
Magnitude específicas
Políticas
para
mulheres
negras

Orçamento Participação
Racismo institucional
Também chamado de racismo sistêmico, é um conceito criado para assinalar a forma como o
racismo penetra as instituições, resultando na adoção dos interesses, ações e mecanismos de
exclusão perpetrados pelos grupos dominantes através de seus modos de funcionamento e da
definição de prioridades e metas de realização. No caso da maioria dos países da Diáspora Africana
– no Brasil inclusive – este conceito fala, para além do privilégio branco, de suas ações para controle,
manutenção e expansão destes privilégios através da apropriação do Estado.

Assim, para que os interesses das mulheres negras possam ser atendidos através de políticas públicas,
é preciso modificar as formas de funcionamento das instituições responsáveis pela formulação,
execução e monitoramento destas políticas. Ou seja, o Estado brasileiro como um todo e cada uma
de suas parte e diferentes poderes (legislativo, judiciário e executivo) precisam ser alterados para
afastar os mecanismos discriminatórios já em curso que tem resultado no privilégio dos brancos,
tanto nas posições de gestão quanto nas ações e políticas desenvolvidas.

Estas modificações devem, sem abandonar as medidas de enfrentamento do heterossexismo


institucionalizado, incluir:

Desenvolvimento de ações afirmativas que possibilitem a participação de mulheres negras nas


diferentes etapas e posições de gestão e execução das políticas públicas, o que incluí estímulos à
capacitação deste grupo quando necessário;

treinamento das equipes para superação dos preconceitos;

desenvolvimento e adoção de medidas de estímulo às ações e condutas anti-racistas, anti-sexistas


e anti-lesbofóbicas ;

desenvolvimento e adoção de medidas punitivas para os casos de discriminação e preconceito,


bem como de descumprimento de metas específicas;

divulgação de dados e adoção de indicadores de acompanhamento e avaliação segundo cor e


sexo de indivíduos e grupos atendidos;

demonstração cotidiana do compromisso de gestores com o desenvolvimento de políticas de


eqüidade, de superação do racismo, do sexismo, da lesbofobia e dos preconceitos.

[O racismo] persiste porque a organização é falha em aberta e adequadamente


reconhecer e abordar sua existência e causas através de política, exemplo e liderança.
Sem reconhecimento e ação para sua eliminação, o racismo pode prevalecer como
parte do ethos ou da cultura da organização. Isto é uma doença corrosiva.

Sir William MacPherson, citado por Alexandre, 1999, p. 3


Liderança
No desenvolvimento de ações e políticas para as mulheres negras, é importante também o fortalecimento
de sua liderança, de modo a permitir a mobilização social permanente necessária ao fortalecimento
das articulações no interior da sociedade civil e entre esta e gestores e profissionais, para o alcance
da eqüidade.

Como sabemos, o racismo, o sexismo, da lesbofobia e sua interseccção com diferentes fatores
produzem grandes impactos sobre a vida das mulheres negras, inclusive aquelas dedicadas à ação
política e à atuação coletiva. Enfrentar estes dilemas pode contribuir também para a atuação mais
consistente deste segmento nos diferentes espaços de debate público. Que resultará, certamente,
numa melhor qualidade das políticas e ações a serem desenvolvidas e em desenvolvimento, como
também num ganho para a democracia.

E quais são as necessidades das mulheres negras para o exercício de liderança e para maior atuação
política?

a As dificuldades materiais são graves, uma vez que a maioria das mulheres negra é pobre.
E aquelas que não são, ocupam os limites inferiores de conforto material de sua classe social.
Estas dificuldades estão sempre interferindo nas suas possibilidades de ação, tornando a mobilização
mais penosa e custosa. Assim, deve-se articular programas de combate à pobreza e às desigualdades
para o segmento como um todo, com maior ênfase para aquelas com maiores limitações financeiras.
Ao mesmo tempo, programas de bolsas de ação para lideranças também serão importantes em
casos específicos e em prazos determinados.

b Muitas lideranças negras trabalham em isolamento político. Ou seja, o racismo faz com que
grande parte das lideranças política de outros movimentos sociais não reconheça a atuação destas
mulheres. Ou reconheça de maneira inferiorizada, folclorizada, e desqualifique suas bandeiras e
propostas. É preciso oferecer às mulheres negras ferramentas para trabalhar e transpor estas barreiras
e poder desenvolver articulações mais amplas, para além das comunidades onde trabalham e são
legitimadas;

c A violência dentro das comunidades onde atuam (policial e do tráfico de drogas principalmente,
fortemente marcadas pela violência racista e sexista) e a ausência de políticas públicas que atendam
a seus direitos básicos são ameaças cotidianas que estas mulheres enfrentam. Muitas vezes estas são
barreiras intransponíveis. É necessário, então, o desenvolvimento de diferentes estratégias de combate
à violência, que devem dirigir olhar e ações específicas para estas mulheres negras,uma vez que a
maioria vive nas regiões metropolitanas e em áreas degradadas e de grande violência. No caso das
lideranças negras da área rural (camponesas e quilombolas), é preciso visibilizar e enfrentar a violência
dos latifúndios, dos proprietários das monoculturas em expansão e de grilheiros, que muitas vezes
lhes dirigem ameaças de morte.Tanto nas cidades quanto no campo, uma rede de proteção à vida
destas lideranças é urgente e fundamental.

d As mulheres negras atuantes na política também necessitam de ferramentas que qualifiquem


suas ações de advocacy e de formulação de políticas públicas pensando na interseccionalidade de
racismo com sexismo, pobreza, lesbofobia, presença de deficiência e os demais fatores capazes
de produzir ou ampliar sua vulnerabilidade às iniquidades. Programas de educação, informação e
intercâmbio são fundamentais, bem como a disponibilização de bolsas de estudo em diferentes
áreas do conhecimento.
e As lacunas materiais que estas mulheres enfrentam estão diretamente vinculadas à pobreza em
que vivem e atuam. Facilitação do acesso deste grupo a equipamentos como telefones, computadores,
energia elétrica, etc,bem como material bibliográfico específico e em linguagem adequada estão
entre os insumos necessários ao fortalecimento de sua ação política.

f Uma ação informativa e educativa voltada para os demais movimentos sociais, políticos, gestores
e profissionais das políticas públicas (campanhas, programas deformação, etc) também contribuirá
para dar suporte à ação das lideranças negras. Mas estas ações devem ser desenvolvidas em parceria
com as mulheres negras.

g Suporte para o desenvolvimento de programas de qualificação (ou adequação) das políticas


específicas em curso nas áreas de saúde, direitos reprodutivos, habitação, trabalho e renda, direitos
humanos (dhesca), educação, acesso à terra e ao crédito, entre outras, às necessidades das mulheres
negras deve também constar da agenda de desenvolvimento de liderança. Estabelecendo também
mecanismos que garantam a atuação das lideranças negras na formulação, e nos processos de
monitoramento e avaliação destas políticas.

Muitos caminhos
São múltiplos os desafios colocados na trajetória política das mulheres negras, alguns são novos, mas
a maioria deles já conhecemos e enfrentamos ao longo de muitos anos. É possível afirmar, então, que
estes desafios não têm sido suficientes para impedir nossa luta e nossa mobilização. O fato desta
publicação ter como objetivo contribuir para ações de melhoria da atuação do Estado brasileiro e
de ampliação da democracia demonstra, ao contrário, que o trabalho vem sendo desenvolvido, que
o caminho vem sendo percorrido – ainda que os passos venham de muito longe.

A Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras acredita que,além de buscar conhecer


profundamente cada detalhe de cada ação, de cada projeto, de cada programa, de cada política, de
cada governo, é fundamental ter a seu alcance ferramentas para a análise critica, para o debate e
proposição de alternativas e para desenhar horizontes de justiça para as mulheres negras. E,
principalmente, para se fazer ouvir de modo consistente e coerente, buscando corresponder aos
sonhos, desejos e projetos que nós mulheres negras vimos desenhando, juntas ou separadas, há
muito tempo. Mas com o compromisso de fazer um país livre do racismo, do sexismo da lesbofobia
e das demais iniquidades. Um país melhor, portanto.
Articulação de Organizações de
Mulheres Negras Brasileiras/AMNB
A Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras/AMNB foi
fundada no ano 2000 por um conjunto de mulheres negras integrantes
de organizações não-governamentais de mulheres negras, das diferentes
regiões do país. Atualmente integram a AMNB vinte e sete organizações
lideradas por mulheres negras de todas as regiões do país, a saber:

ACMUN - Associação Cultural de Mulheres Negras • Rio Grande do Sul


AMMA Psique e Negritude • São Paulo
Bamidelê - Organização de Mulheres Negras da Paraíba • Paraíba
CACES • Rio de Janeiro
Casa da Mulher Catarina • Santa Catarina
CEDENPA - Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará • Pará
Coletivo de Mulheres Negras Esperança Garcia • Piauí
CONAQ - Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas • Maranhão
Criola • Rio de Janeiro
Eleekó • Rio de Janeiro
Felipa de Sousa • Rio de Janeiro
Geledés - Instituto da Mulher Negra • São Paulo
Grupo de Mulheres Negras Malunga • Goiás
Irohin • Brasília
IMENA - Instituto de Mulheres Negras do Amapá • Amapá
Instituto Negras do Ceará • Ceará
Kilombo • Rio Grande do Norte
Casa Laudelina de Campos Melo • São Paulo
Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa • Maranhão
Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras • Rio Grande do Sul
Mulheres em União • Minas Gerais
Nzinga • Minas Gerais
Observatório Negro • Pernambuco
OMIN - Grupo de Mulheres Negras Maria do Egito • Sergipe
SACI - Sociedade Afrosergipana de Estudos e Cidadania • Sergipe
Uiala Mukagi • Pernambuco
Kuanza • São Paulo

Entre estas, são eleitas as integrantes do colegiado de coordenação, que é atualmente formado
por cinco organizações.

ACMUN - Associação Cultural de Mulheres Negras


Bamidelê - Organização de Mulheres Negras da Paraíba
Casa Laudelina de Campos Melo
Criola
Geledés - Instituto da Mulher Negra
O objetivo inicial era estabelecer as condições adequadas para a participação deste segmento no
processo de mobilização e desenvolvimentos da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Xenofobia e Intolerâncias Correlatas/ CMR (África do Sul, Durban, de 28 de agosto a 8 de setembro
de 2001).

Esta mobilização respondia à compreensão generalizada entre as organizações de mulheres negras


de ser a dimensão raça – e o racismo – o principal fator de produção das condições de vida
adversas em que vivemos. Compreensão esta compartilhada com o restante das organizações negras
brasileiras e latino-americanas. Isto exigiria atuação intensa na agenda das Nações Unidas, dedicada
especificamente ao tema. E, por outro lado, dava materialidade ativa ao consenso entre as
organizações fundadoras, da necessidade de protagonismo das mulheres negras em todo o processo,
de modo a produzir resultados adequados aos interesses deste grupo específico.

Tais expectativas, diga-se, foram plenamente alcançadas, com importante destaque obtido pela
atuação das mulheres negras brasileiras, principalmente ao longo do processo latinoamericano
(Conferência das Américas contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, Santiago, 2001).
Tendo a AMNB atuado intensamente em todo o processo preparatório (PrepCons), como também
durante a Conferência Mundial propriamente dita, em Durban, tanto no processo voltado para a
sociedade civil, quanto no acompanhamento (e advocacy) ao longo das agendas governamentais.

Na revisão de seus objetivos empreendida no período após a III CMR, as integrantes da AMNB
redefiniram seu caminho de atuação, assumindo a tarefa de advocacy no terreno das políticas
públicas nacionais, de modo a introduzir a perspectiva da igualdade racial e de gênero nos diferentes
programas de ação governamentais, nos diferentes níveis da administração pública. Dando maior
ênfase à administração federal, em particular à políticas voltadas para as mulheres e para igualdade
racial, além daquelas de desenvolvimento e de saúde. As ações previstas para o período pós-
Conferência foram:

Contribuir para o fortalecimento das ONGs de mulheres negras, capacitando-as para intervenção
política qualificada;

Ampliar e consolidar a intervenção da Articulação no cenário nacional e internacional;

Implementar e monitorar os resultados da III Conferência Mundial contra o Racismo;

Monitorar políticas públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal para a melhoria da qualidade
de vida das mulheres negras e da comunidade negra;

Construir estratégia para inserção da temática da mulher negra na mídia nacional.

A amplitude da demanda e das ações a que a AMNB se comprometeu a desenvolver tem


esbarrado em desafios decorrentes das insuficiências de infra-estrutura disponível às organizações de
mulheres negras, da necessidade de maior qualificação em alguns dos temas trabalhados, bem como
o desenvolvimento de um sistema ágil de monitoramento e avaliação de ações e objetivos.

Ainda assim, ao longo de 06 anos de atuação, a AMNB tem se destacado como interlocutora tanto
de governos, quanto da sociedade civil e de agências multilaterais e internacionais, em temas relativos
aos interesses das mulheres, adolescentes e meninas negras na diferentes esferas.
Grupos de Trabalho
Democracia e Participação
Comunicação e Imagem
Políticas Sociais
Desenvolvimento

Participação em Conselhos
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher/ CNDM
Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial/ CNPIR
Conselho Nacional de Saúde/ CNS

Integra Articulações da Sociedade Civil


Inter-Redes
Fórum Social Mundial (Comitê Internacional/ Comitê Hemisférico)
Jornadas pela Legalização do Aborto Legal e Seguro
Diálogos da Sociedade Civil contra o Racismo
Campanha 16 Dias de Ativismo contra a Violência Contra a Mulher
Aliança de Parentesco – articulação entre organizações de mulheres negras e mulheres indígenas
Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida 10 anos
Fórum Paralelo da Previdência

Ao mesmo tempo a AMNB tem buscado alternativas de fortalecimento interno e da atuação


política e institucional das mulheres negras, realizando periodicamente atividades de formação, de
análise política e da produção de conteúdos.

Secretaria Executiva da AMNB


CRIOLA
Av. Presidente Vargas, 482 - sobreloja 203 - Centro
CEP 20.071-000 - Rio de Janeiro - RJ
www.amnb.org.br E-mail: amnb@uol.com.br
Telefax. 55 21. 2158-6194 e 2518-7864
Ficha Técnica

Brasil. Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras/AMNB

Construindo a Equidade: Estratégia para Implementação


de Políticas Públicas para a Superação das Desigualdades
de Gênero e Raça para as Mulheres Negras. RJ: 2007.

Redação • Jurema Werneck


Projeto Gráfico• Luciana Costa Leite
Foto de Capa• Uwe Ommer
Tiragem• 1ª edição - 2007 - 1.000 exemplares

Esta publicação contou com o apoio financeiro de

Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher


Escritório Regional para o Brasil e o Cone Sul

Esta publicação faz parte do Projeto Avaliação das Políticas Públicas Federais
para a Redução das Desigualdades que atingem às Mulheres Negras,
desenvolvido pela AMNB, através de CRIOLA. O referido Projeto visa
contribuir para a elaboração, implementação, monitoramento e avaliação
de políticas públicas capazes de efetivamente alterar o quadro de
subordinação vivido pelas mulheres negras nas diferentes regiões do país.
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