Você está na página 1de 15

GÊNERO E MATERNIDADE: aspectos de uma construção histórica

Camila Dourado Neves1

RESUMO

O presente trabalho realiza síntese histórica no que se ref ere a


construção social da maternidade associada ao gênero. Inicialmente é
realizado apanhado acerca do tema à época do Brasil Colônia, seguido
de análise da matéria no contexto da Revolução Industrial associado
ao contexto da sobrecarga da mulher negra nessa esf era. E,
f inalmente, o cuidado como atribuição f eminina é abordado com o
objetivo de problematizar a temática.

Palavras-chave: Gênero; Maternidade; Cuidado

ABSTRACT

The presente work perf orms a historical synthesis with regard to the
social construction of motherhood associated with gender. Initially, an
overview of the theme at the tim of Colonial Brazil is carried out,
f ollowed by the Industrial Revolution associated with the context of the
burden of black women in this sphere. And, f inally, care as a f emale
attribution is approached with the aim of problematizing the theme.

Key-words: Gender; Maternity; Caref ul.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo realizará uma síntese histórica da construção da maternidade na


sociedade. Associado a papéis de gênero construídos socialmente, a mulher na
história da humanidade tem essa incumbência muito bem demarcada e obrigatória.
De modo velado e naturalizado, o público feminino tem sua sociabilidade formada a
partir dos cuidados domésticos e maternos.

1Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão ; Especialista em Políticas


Públicas e Gestão da Assistência Social pela Faculdade Laboro ; camilaneves96@gmail.com.
Desse modo, gênero como categoria de análise será abordado neste estudo
partindo-se da perspectiva de que se trata de uma organização social da relação entre
os sexos. Essa abordagem rejeita as explicações biológicas da subordinação do
gênero feminino ao masculino, considerando que tanto os fatores sociais, quanto os
biológicos influenciam nas construções relacionadas ao gênero. Este conceito é
defendido por Joan Scott, em seu texto “Gênero: uma categoria útil de análise
histórica” (1995).

Ademais, abordar-se-á o tema sob a perspectiva histórico-dialética a fim de


expor que não basta no contexto do estudo da história da mulher e de sua participação
social, estudar gênero de maneira isolada das categorias raça e classe, tendo em vista
que as três “caminham” conjuntamente, se sobrepondo e se confundindo no dia a dia
de muitas mulheres. Assim, a exposição da totalidade dessas vivências será um objeto
de interesse neste ensaio.

Diante do exposto, este trabalho tem como objetivo geral realizar um


apanhado histórico no âmbito da maternidade associada ao gênero feminino e tem
como objetivos específicos caracterizar os papéis da mulher na sociedade brasileira,
problematizar as discrepâncias identificadas nas responsabilidades de homens e
mulheres nesse contexto e expor as desigualdades raciais desse movimento.

Para alcançar os objetivos acima descritos, este trabalho foi dividido em três
seções, “Gênero e Brasil colônia: uma construção cerceada”; “A mulher na revolução
industrial: emancipação ou interesse econômico?”; e “A mulher e o papel de
cuidadora”

2 GÊNERO E BRASIL COLÔNIA: uma construção cerceada

No contexto colonial brasileiro, se gestou grande parte da essência social que


a mulher possui atualmente. Os comportamentos ideais ao feminino influenciados pela
Igreja Católica têm seu cerne originado por um discurso moralizador cristão que fazia
parte de todas as instâncias e reverberava de forma significativa na vida das mulheres.
O cumprimento das obrigações matrimoniais de “amor” e “respeito” designados
a mulheres tinha resguardo legal, podendo seus maridos castigá-las caso fossem na
contramão desses deveres (Del Priore, 1997). A Igreja Católica foi elemento influente
na construção da imagem da mulher naquela época, o controle sobre o corpo feminino
se construiu de modo que até os dias atuais resquícios dessa prática são visualizadas
na sociedade brasileira.
A construção do feminino no Brasil Colônia teve, ainda, a marca da separação
entre mulheres que eram para casar e mulheres inteiramente sexualizadas. As
primeiras deviam ter características como o recato, a pele branca e condições
financeiras de arcar com o dote do casamento; já o segundo grupo normalmente
advinha de classes sociais subalternizadas, podendo ser negras e escravas. Nesse
sentido, a conhecida frase de Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande & Senzala”
sinaliza tal realidade: “Branca para casar, mulata para f... e negra para trabalhar”
(FREYRE, 2003, p. 73).

No entanto, apesar da imposição, pela Igreja Católica, de normas a serem


seguidas pelas mulheres, não eram todas que dispunham de condições sociais ou
materiais para seguir tais condutas (DEL PRIORE, 1997). Havia, segundo Mary Del
Piore (1997), um sistema hipócrita em vigor, uma vez que as dificuldades que as
mulheres negras, mulatas, escravas e ex-escravas enfrentavam, impunham a elas
imposições que as excluíam do modelo de mulher limitada ao lar, casta e virginal.
Essas obrigações envolviam justamente a necessidade de trabalhar fora de casa,
manter relações com homens casados e a prostituição.

Os estereótipos se estendiam a variadas esferas do universo feminino, no


caso da maternidade não era diferente, a imagem da mãe foi criada de maneira
associada ao cuidado integral, disponibilidade ilimitada, capacidade de fazer qualquer
coisa pela sobrevivência de seus filhos, santidade, dentre outras características
relacionadas a essa figura. Isso se constrói, no entanto, a partir de uma realidade que
não é alcançável à todas, e nem foi o padrão observado à época, já que muitas não
tinham a possibilidade de fornecer os subsídios necessários para tanto. Além disso,
no período, o desconhecimento científico acerca de enfermidades se fazia presente,
fato que limitava sobremaneira a sobrevivência das crianças.

Nesse sentido, a maternidade, como uma incumbência feminina “sagrada” e


“natural”, na prática era uma vivência que poderia se tornar torturante e sacrificante
para a mulher, já que ficavam sujeitas às vontades e condições materiais masculinas
e, assim que o sustento dos homens deixava de existir, essas mulheres com suas
crianças ficavam à mercê da miséria. A maternidade, portanto, era desenhada pela
Igreja, pelo Estado e pela Medicina a partir de moldes irreais socialmente falando,
assim, ser mãe na Colônia era um desafio de sobrevivência a várias realidades.
Apesar do sofrimento, da inviabilidade de criação das crianças em muitas situações e
dos consequentes relatos de abandono, a Igreja ainda incentivava as mulheres a
engravidarem já que “os filhos, e a reprodução, eram louvados como graças divinas,
independente de se criarem ou não” (DEL PRIORE, 1997, p. 50).

Desta forma, percebe-se que, à época, a mulher era fortemente “moldada” por
costumes morais, sem serem consideradas suas possibilidades materiais ou seus
interesses pessoais e/ou sociais. A vida em família era marcada pela hipocrisia,
homens faziam o que queriam e as mulheres eram submetidas, tendo sua dignidade
frequentemente violada por esse contexto. Essa situação, como será visto a seguir,
pode ser observada em grande parte da história das mulheres, apenas se
reconfigurando conforme os tempos históricos, de modo que com o passar dos anos
e as transformações sociais, percebe-se que a questão de gênero se confunde com a
história da sociedade como um todo.

3 A MULHER NA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL: emancipação ou interesse


econômico?

Em meados do século XX, conforme postula Bruna Angotti (2012), a


sociedade brasileira foi marcada por uma mudança de rotina em suas cidades, em
razão das transformações econômicas ligadas à estrutura cafeeira vigente no país. As
elites rurais passaram a tentar adequar à sua rotina o dia-a-dia vivido nas grandes
metrópoles, com o objetivo de manter uma aproximação com os costumes do “mundo
civilizado”. Assim, o perfil da aristocracia da época se modificou, em razão da
mudança de contexto da sociedade.

Houve, nessa conjuntura, um considerável aumento populacional nos centros


urbanos, que se deu no Brasil de forma desorganizada e não planejada. As mudanças
ocorridas à época se caracterizaram apenas como travestidas de progresso, ou seja,
a sociedade brasileira apenas seguiu a tendência mundial sem grandes preocupações
com suas peculiaridades, trazendo práticas incompatíveis com a realidade nacional.
(ANGOTTI, 2012)

O referido processo de urbanização das cidades, trouxe mudanças à estrutura


patriarcal fincada no Brasil, e a rotina das mulheres em sociedade se transforma.
Antes, o modelo observado na classe média brasileira era o de mulheres donas de
casa e limitadas ao lar, enquanto aos homens ficava reservado o labor externo e a
vida pública. No entanto, com a necessidade de mão de obra, a partir da ascensão da
Revolução Industrial, esse cenário se modifica, passando as indústrias a incluírem o
trabalho feminino. As mulheres passam, portanto, a terem um espaço em ambientes
antes ocupados apenas por homens.

Destarte, com o início da industrialização a presença de mulheres no mercado


de trabalho foi visualizada de forma massiva. Porém, apesar dessa presença em
diversos âmbitos do espaço público, não deixaram de existir determinações que a
sociedade impunha referente aos comportamentos femininos. Logo, elas passaram a
frequentar espaços para além do doméstico, acompanhando os homens, mas sempre
ocupando papeis de patamar inferior.

As transformações no mundo urbano trouxeram à mulher uma nova


perspectiva ante a sociedade, perspectiva esta que tinha um caráter paradoxal, já que
segundo Angotti (2012) ao mesmo tempo em que essas mulheres deveriam estar bem
apessoadas em público, não poderiam demonstrar futilidade e preocupação apenas
com a aparência. Dessa maneira,
[...] o f ato de as mulheres passarem a ocupar o espaço urbano, seja para o
trabalho, seja para o lazer, não signif ica que as exigências sociais sobre elas
af rouxaram e que os “olhares” da sociedade citadina seriam mais brandos
que os do patriarca. (ANGOTTI, 2012, p. 93)

Logo, mesmo com a ascensão da mulher à vida pública, sua imagem ainda é
associada ao doméstico, se estabelecendo com isto um problema até hoje insolúvel,
sintetizado no fato de que “a domesticidade se transformaria nos séculos seguintes,
sem que fosse superada a conexão entre a valorização social das mulheres e o
universo doméstico familiar” (BIROLI, 2018, p. 95). Essa desigualdade se perpetua
até os dias atuais e se demonstra por meio de jornadas de trabalho múltiplas, avanço
de uma indústria cosmética associada a padrões de beleza inalcançáveis, uso da
imagem da mulher vinculada ao sensual, dentre outros fatores que evidenciam a
disparidade entre o feminino e o masculino.

A inserção das mulheres em uma vida mais política exigia delas excelência
nas suas funções de mães e esposas (BIROLI, 2018), ou seja, havia a necessidade
de um “equilíbrio” dessas atividades a fim de demonstrar que o fato de estarem
exercendo outras responsabilidades não influenciava em seu papel “natural”.

Isso se reflete na constatação de que o doméstico sempre é vinculado ao


feminino, isto é, a mulher é quem tem a responsabilidade maior dentro dos afazeres
domésticos. Desse modo, percebe-se que mesmo depois de diversas mudanças
nesse cenário, as raízes e a essência do patriarcado não se modificaram de forma
substancial, ficando evidentes as exigências desiguais a que estão sujeitas as
mulheres em todos as esferas.

Nesse sentido, percebe-se que as mudanças sociais, econômicas e políticas


de uma dada realidade influenciam em variadas esferas da existência humana e a
vida familiar não se descola dessa referência. Seguindo esse raciocínio, Flávia Biroli
(2018) aponta que a “família é situada na história, não na natureza” e, com o advento
da sociedade burguesa, o modelo de família pautado na imposição de valores
burgueses ascendeu. A heteronormatividade, o amor romântico, o ideal de
maternidade e a domesticidade feminina estavam na base dos princípios valorizados
por esse padrão.

3.1 A negritude como extensão da sobrecarga feminina

Associava-se a presença da população negra ao subdesenvolvimento da


sociedade, à pobreza e à miséria, sendo imprescindível para uma boa imagem da
nação o seu branqueamento. (ANGOTTI, 2012) O Movimento de Eugenia,
materializado pelo incentivo estatal a casamentos “saudáveis” e de mesma raça,
passa a ser visualizado à época. Para dirimir temas como traição, prostituição e
virgindade que passam a se manifestar a partir da ascensão do feminino n o espaço
público, a família – heteronormativa branca - passa a ser valorizada de maneira
tendenciosa pelo Estado.

A prática do embranquecimento da população se torna, no entanto, inviável


uma vez que a construção-sócio-histórica do Brasil teve como pilar a escravização da
população africana negra. Esta que foi trazida de forma massiva para o território
nacional, se reproduziu e se fixou como nação por séculos. As populações negras, de
forma intrínseca ao desenvolvimento da sociedade brasileira, se incorporaram às
massas, não de forma homogênea e harmoniosa, mas desordenada e hostilizada
pelos colonizadores, construindo sua história associada à do Brasil.

Diante disso, compreende-se que a mulher negra como protagonista de sua


jornada no Brasil, esteve inserida, segundo Angotti (2012), nessa realidade de
marginalização e subvalorização. Consideradas inferiores às mulheres brancas,
muitas delas viviam sozinhas, visto que a tendência da época era o
embranquecimento da população, sendo a manutenção de um relacionamento com
uma negra, mal visto pela sociedade. A estratificação social se configura de modo que
os homens brancos estão no topo da pirâmide e as mulheres negras na base, assim,
o grupo com quem menos se almejava ter um relacionamento seria este último.
Penetrados pelo machismo e pelo racismo, muitas vezes homens negros e
brancos optavam por construir relações duradouras com mulheres. Assim, as
mulheres negras, acabavam por viver na solidão e em grande parte responsáveis pelo
sustento da casa. Tais características se configuram como resquícios deixados pela
escravidão, ficando reservado a elas um estigma social cruel.

Nesse sentido, é possível depreender que as mulheres pretas e pobres se


inseriam em um cenário divergente das brancas de classe média. Além de recair sobre
as primeiras, determinações sociais impostas a todas as mulheres da época – a
obrigação do matrimônio, o sexo somente dentro do casamento, a maternidade, o
recato -, essa parcela da população tinha também que se preocupar com o sustento
da casa e com a sua sobrevivência de forma concreta, já que em muitas das situações,
somente o trabalho do marido não era suficiente, ou simplesmente não eram casadas,
sendo mães solo (fator configurado como desviante para a sociedade da época).

Assim, além da desigualdade de homens e mulheres, há ainda a desigualdade


entre as mulheres, que se evidencia quando o ideal de família burguesa é visualizado,
e este foi valorizado sobremaneira no período que sucedeu a avanço do capitalismo.
Família e maternidade, segundo Biroli (2018), está permeado em duas dimensões
primordiais no que se refere à vivência das mulheres: o controle e o privilégio.

A família como forma de controle está associada principalmente à imposição


de modelos de vida que envolve a criação dos filhos e o cuidado da casa, este atinge
principalmente mulheres brancas e abastadas que almejam a inserção no mercado de
trabalho como forma de uma vida plena e independente. Já a dimensão do privilégio
muito se conecta às mulheres que necessitam, como forma de sobrevivência, se
manter distanciadas do seio do lar para manter a subsistência familiar, assim,
trabalhar fora de casa não é uma escolha e estar em casa e participar da criação dos
filhos acaba representando uma regalia.

Segundo Biroli (2018), embasada em Kollontai (1920), a inserção da mulher


no mercado de trabalho as colocava no mesmo patamar que os homens, teoricamente
falando. Sob essa perspectiva, não bastava essa incorporação da mulher em funções
remuneradas sem que o contexto urbano se adequasse à ausência delas de forma
integral no ambiente doméstico.

Ademais, a autora aponta que há uma relação entre o acesso a creches,


autonomia das mulheres, igualdade de gênero e empregabilidade das mães e que,
além disso a inserção das crianças em creches atua de forma intra e interfamiliar, isto
é, além de impactar na realidade das mães, a criança também é beneficiada com
relação ao acesso ao conhecimento e às suas chances de ascender socialmente no
futuro, assim, as desigualdades entre as diferentes realidades tende a diminuir. Desse
modo, o amparo estatal no sentido de oferecer condições que garantam o cuidado dos
filhos em paralelo com a presença da mulher no mercado de trabalho, traz implicações
à mãe, à criança e à futura renda familiar, podendo quebrar um ciclo de
vulnerabilidades vivido por determinado grupo.

Desta forma, percebe-se que a relação maternidade/mulher varia de acordo


com a realidade vivida por esses sujeitos. A autonomia delas e a criação dos filhos é
um debate importante nesse contexto, que demonstra a discrepância das diversas
vivências de maternidade. As desigualdades entre mulheres de classes abastadas e
mulheres empobrecidas são evidentes e quando se trata da vivência entre homens e
mulheres, essa situação é marcada pela divisão sexual do trabalho. Assim, é
fundamental refletir ainda, as razões pelas quais a maternidade é associada ao
feminino de forma tão marcante e os contextos e os determinantes que permeiam
esse cenário.

4 A MULHER E O PAPEL DE CUIDADORA

A reprodução de valores morais no cotidiano social, faz com que a criticidade


das ações sejam esquecidas, o que normaliza o que é convencionado socialmente,
havendo a falta de questionamento de determinado costume. É o que acontece com
o fato de às mulheres serem incumbidos determinados papéis como o do cuidado,
seja de seus filhos, seja de pessoas enfermas ou idosas da família. Ao se refletir sobre
o cuidado aos filhos, não se está questionando a necessidade de uma criança contar
com zelo, mas pondo sob questionamento da mulher ter esse papel como central e
muitas vezes exclusivo.

Esse cenário, se colocado em observação, é permeado por diversas


necessidades que não são só as domésticas ou familiares. Ou seja, a sociedade, os
meios de produção e o sistema, capitalista e patriarcal necessitam da mulher
cumprindo este papel para que se mantenha o funcionamento da estrutura social
como é. Os privilegiados prezam pela manutenção de seus privilégios e a posição da
mulher como mantenedora da “harmonia familiar”, do provimento dos afetos e da
responsabilização do âmbito doméstico são fundamentais para tal conservação.

A concepção de maternidade como um elemento intrínseco ao gênero


feminino, foi construída na sociedade e no ideário das mulheres (e dos homens) a
partir do século XIX. De acordo com Brochard (1872) citado por Badinter (1985) essa
função natural e instintiva das mulheres surge relacionada às necessidades da criança
e aos interesses da sociedade e da família. A mulher passa a ser responsável não só
pela formação física da criança em seu ventre, mas também pela educação, pelo
ensinamento da moral vigente e da religião e pela futura emancipação do adulto que
irá se formar.

Nessa perspectiva, o papel da família é fundamental no processo de


identificação da mulher enquanto pertencente a essa função, “dado que a mulher é
acima de tudo esposa e mãe, sua educação deverá fortificá-la nessa dupla função”
(BADINTER, 1985, p. 248). É no seio familiar que os indivíduos aprendem a se
comportar como homens ou como mulheres, e aprendem seu papel social (Daros e
Guedes, 2009). Isto é, a influência da família na identidade de gênero do sujeito se
faz como fator que está na gênese do conjunto de determinantes que fazem com que
a mulher, o homem e a sociedade indiquem determinados papéis aos diferentes
gêneros.
É importante ressaltar, ainda, que o processo de emancipação da mulher
trouxe-lhe mais independência financeira e a possibilidade de não ter um homem
como seu fiador, no entanto, a elas não deixou de ser associado o doméstico, a
maternagem e os cuidados do lar. Ou seja, apesar do avanço - inclusive com
legislações que consideram que historicamente as mulheres foram oprimidas,
nivelando homens e mulheres no que se refere à participação cidadã - elas ainda são
subjugadas pela sociedade em variados aspectos. Hoje estão sobrecarregadas, uma
vez que houve o ganho de certa autonomia, mas a sociedade não transformou suas
convicções no sentido de desassociar a figura da mulher ao lar.

Essa associação da mulher ao doméstico – o que inclui a maternidade - limita


a atuação delas em outros espaços, isto porque, “a maternidade é um fator que reduz
a autonomia relativa, individual e coletiva, das mulheres” (BIROLI, 2018, p. 107), e o
que é notório nesse quadro é que mesmo com todas as conquistas desse público as
desigualdades ainda são evidentes.

Desse modo, embora tenha havido progresso, o tempo disponibilizado pelas


mulheres ao cuidado doméstico continuou sendo superior ao dos homens, abreviando
seu tempo de participação na vida pública e, por conseguinte, na vida política. Essa
problemática, segundo Biroli (2018), é concebida como uma dificuldade para a
democracia, tendo em vista que essa desigualdade destinada aos diferentes gêneros,
no que se refere ao cuidado, restringe a vivência do feminino nas agendas públicas.

Nesse sentido, às mulheres, o direito à democracia e à participação política


fica defasado e limitado em razão de suas obrigações sociais com o lar, que desde
muito tempo são construídas como naturais. A naturalidade dessas obrigações
domésticas foi enraizada na sociedade de maneira tão marcante que não se percebe
o controle, as restrições, tampouco a múltipla jornada de trabalho a que está su jeito o
sexo feminino. Assim, é possível compreender, que as influências sociais perpassam
pelo gênero feminino de maneira singular e que o padrão de desdobramento desse
contexto está atrelado aos jogos de interesses que variam conforme a sociedade se
desdobra.
Esse papel do cuidado que é construído no ideário feminino desde muito cedo,
é concebido e idealizado como uma função prazerosa e instintiva, que nasce com a
mulher, sendo esse compromisso idealizado como uma atribuição orgânica. O cuidar,
desse modo, é vinculado ao feminino como um processo biológico e não social. (Daros
e Guedes, 2009)

Ser mãe passa a ser disseminado como um sonho, que deve ser almejado
por todas. A mulher, mesmo que em seu íntimo não deseje ser mãe deve sê-lo, sob a
pena de julgamento moral da sociedade. A mulher que não segue seu suposto dever
natural, seja não concebendo uma criança, seja concebendo e não a priorizando ou
não seguindo aquilo que é esperado como uma criação exemplar, é taxada como
“desnaturada” - como o próprio termo sugere “que ou aquele que é destituído dos
sentimentos considerados como naturais”2.

Apesar da disseminação da maternidade como algo positivo e a ser almejado,


a atribuição materna foi também construída através da valorização do sacrifício. Para
que a mulher seja uma “mãe exemplar” e admirável muitas vezes ela precisa abdicar
de planos anteriores para dar seguimento ao seu papel de mãe. O pai, por sua vez,
apesar de alguns também se dedicarem a essa função, grande parte não se priva de
seus desejos pessoais para se devotar à paternidade, ao contrário do que é visto no
sexo oposto.

A sociabilidade da mulher construída em torno do cuidar, muitas vezes priva


a execução de projetos pessoais, uma vez que o peso e o tempo destinado a essa
função deve ser integral e infalível - não há espaço e nem perdão para falhas quando
se trata do cuidado materno. Quando a mulher escolhe prosseguir com suas
realizações pessoais, há um volumoso desgaste envolvido nesse processo e, caso
decida priorizá-las, o julgamento sobre tal decisão é inevitável. A sociedade está em
constante vigilância no que se refere às ações de uma mãe, desse modo,

2 Def inição encontrada no Dicionário Online de Português, disponível em dicio.com.br/desnaturado


“enclausurada em seu papel de mãe, a mulher não mais poderá evitá-lo sob pena de
condenação moral” (BATINDER, 1985, p. 238)

Badinter (1985) denomina tal característica como “a ideologia do devotamento


e do sacrifício”, a qual se associa à concepção de que a maternidade deve ser
praticada independente da falta de vocação ou prazer de determinada mulher por esse
papel. Nesse sentido, foi con cebido nos valores sociais (e não biológicos) que a
mulher deve ser mãe ainda que sua vontade não seja essa.

Às mulheres foi imposto um manual não escrito de como ser mãe. O exercício
da maternidade deve seguir um padrão de regras indefectíveis e a sociedade está
sempre em alerta para analisar se está ou não de acordo com aquilo que se espera
de uma boa progenitora. A necessidade de se impor uma “receita” de como executar
os encargos da maternidade só demonstra como essa incumbência não é, de forma
intrínseca, natural às mulheres. Conforme enuncia Badinter (1985):

Essa insistência geral em f alar de ‘deveres’ da mãe tende a mostrar que as


coisas não caminhavam bem por si mesmas. Por mais que se af irmasse por
toda parte que ‘o coração da mãe é um abismo insondável de ternura, de
devotamento e de sacrif ício, etc.’ essas palavras eram sempre completadas
por outras, mais normativas e imperativas. Enunciava-se uma longa lista de
deveres a que nenhuma mãe devia se f urtar. Prova, sem dúvida de que a
natureza precisava ser solidamente respaldada pela moral! (BADINTE R,
1985, p. 269)

Em consequência dessa disseminação do espírito de devoção aos filhos


atribuído às mulheres, o papel paterno foi reduzido. Algumas das justificativas para
este fenômeno está na formação do homem, que é um sujeito social com suas funções
voltadas ao econômico e ao trabalho fora de casa, não tendo, portanto, “vocação” para
tal ofício que exige cuidado e delicadeza. Além disso, o pai, por possuir outras
atividades, não possui tempo - por ter seu volume de atribulações voltado para o
trabalho fora de casa - para se dedicar à criação e à instrução moral dos filhos. Ou
seja, tal recuo do homem ao cuidado, é explicado em razão da sua “natureza” e da
biologia que se volta a outros interesses. (BADINTER, 1985)
As funções paternas, portanto, se limitam a serem adicionais,
complementares às da mãe. Há a participação do homem na criação do filho, no
entanto, aquele que não se dispõe a executá-la não é alvo da mesma desonra moral
a que é submetida a mulher. Se o homem não é um bom pai, ou não o é, isso não lhe
faz um “desnaturado”. Ou seja, a função paterna existe, mas não exige o mesmo
esforço e renúncia que são exigidos da mãe.

O que se pode perceber é que foi construída uma relação paterna mais
distanciada, apesar de existir o papel paterno, essa atuação não é tão intensa quanto
a das mulheres. Aos homens, por estarem como “coadjuvantes” nesse processo, não
são exigidos de forma tão acentuada a dedicação e os cuidados exigidos das
mulheres. O sacrifício pelo lar, por exemplo, não se faz presente nas obrigações da
vida masculina, de modo que os homens são mais livres para seguirem seus anseios.

Assim, percebe-se que a construção social de homens e mulheres, as


diferentes funções atribuídas aos gêneros e um ideário social que reproduz essa
conjuntura, determina à mulher o encargo de manter-se sempre junto de sua criança,
independente do espaço.

5 CONCLUSÃO

À face do exposto, pôde-se perceber que conforme as necessidades sociais


e produtivas se modificam, os comportamentos, costumes e papéis podem também
se transformar. A sociedade é composta por diversas instâncias e setores que se
articulam, e o funcionamento de uma influencia no funcionamento da outra. Desse
modo, percebe-se que os estudos e a vivência do gênero feminino na história
perpassam por diversas fases, contextos e realidades. A mulher, como sujeito social,
faz parte da construção da sociedade como é hoje e os diversos cenários e interesses
em jogo interferiram nessa atuação. Logo, a discussão de gênero, que está
intimamente atrelada à sociedade como um todo, abarcando homens e mulheres,
constrói constantemente vínculos e determinações que são indissociáveis das
interferências da coletividade.
Apesar dessas variações temporais, é ponto pacífico nessas oscilações a
presença e influência central do patriarcado. Muitas foram as características e
dimensões visualizadas no decorrer da construção histórica da mulher na sociedade,
no entanto, foi comum a todas elas a intervenção substancial do patriarcado. Desse
modo, ainda que a maternidade seja função inerente ao gênero feminino, a influência
do homem nesse processo se mostrou imponente.

REFERÊNCIAS

ANGOTTI, Bruna. Entre As Leis Da Ciência, Do Estado e de Deus: o surgimento


dos presídios femininos no Brasil - 2a ed revisada. – San Miguel de Tucumán:
Universidad Nacional de Tucumán. Instituto de Investigaciones Históricas Leoni Pinto,
2018. Libro digital, PDF.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: os limites da democracia no Brasil – 1. Ed.
– São Paulo: Boitempo, 2018.
GUEDES, Olegna de Souza; DAROS, Michelli Aparecida. O cuidado como
atribuição feminina: contribuições para um debate ético. Serviço Social em Revista,
Londrina, v. 1, n. 12, p. 122-134, dez. 2009. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/ssrevista/article/view/10053/8779. Acesso
em: 11 jun. 2023.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. Coordenação de textos de
Carla Bassanesi, 1997. São Paulo: Contexto, 678p.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala. 2.ed. São Paulo: Imprensa Paulista,
1933-1934
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
realidade, vol. 20, n.2, jul/dez, Porto Alegre, 1995.

Você também pode gostar