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Departamento de Sociologia

Mediatização do crime e da justiça na imprensa portuguesa.

Um estudo de caso

Ana Carolina Velez Troeira

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação

Orientador:

Doutor Pedro Miguel Pereira Neto

Professor Auxiliar Convidado do ISCTE-IUL

Outubro, 2019
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, pela preocupação e incentivo para sempre ser mais e melhor. Por existir.

À minha irmã, a minha eterna companheira, pela paciência e palavras de incentivo. Pelas
revisões, pelos conselhos. Obrigada, mana.

Ao Diogo, por acreditar em mim quando a força me falhava, por me acompanhar neste
percurso que nem sempre foi fácil. Pela paciência nos últimos tempos.

Ao meu orientador, professor Pedro Pereira Neto, pela disponibilidade, ajuda e conselhos
prestados.

Aos meus amigos, a quem falhei várias vezes em presença ao longo dos últimos tempos.

ii
RESUMO

Os meios de comunicação social, em consequência dos acontecimentos que selecionam


para sugerir ao espaço público e através das formas como os representam, ajudam a construir
conhecimento e a própria realidade social. Partindo desta perspetiva, um dos acontecimentos mais
noticiados pelos meios de comunicação social prende-se com o crime e o sistema de Justiça.
Muitas vezes, os média transformam-se eles próprios em condutores de investigações, com a
noção de que as histórias deste tipo criam audiências, procuram obter o lucro adjacente à
exploração de temas criminais. Para além disso, a crescente mediatização do crime e da Justiça e
a forma como os meios de comunicação social tendem a fazer a sua cobertura, pode acabar por
produzir, junto do público, representações acerca do sistema judicial e do seu funcionamento,
bem como ajudar a construir as imagens dos envolvidos nos casos colocando-os, por diversas
vezes, em posições sem defesa possível.

Partindo deste pressuposto, a seguinte dissertação tem como objetivo principal identificar
de que são forma são construídas as notícias relacionadas com o crime e a Justiça, estabelecendo
comparações entre a imprensa de referência e a sensacionalista. O que aqui se pretende analisar é
a forma como o caso do desaparecimento de Madeleine McCann foi representado em cada um
dos jornais analisados, estabelecendo comparações. Para isso, procedeu-se à Análise de Conteúdo
das notícias publicadas em dois jornais de grande circulação portugueses, o Público e o Correio
da Manhã, entre maio de 2007 e julho de 2008.

Palavras-Chave: Mediatização; Crime; Justiça; Acontecimentos Mediáticos; Julgamentos


Mediáticos; Madeleine McCann.

iii
ABSTRACT

The media, as a result of the events they select to suggest to the public space and through
the ways in which they represent them, help to build knowledge and the social reality itself. Based
on this perspective, one of the events most reported by the media, it is related to crime and the
justice system. Often, the media become themselves investigators of these cases, with the notion
that stories of this kind create audiences, seek to get the profit of exploitation of criminal issues.
In addition, the increasing mediatization of crime and justice and, the way in which the media
tend to make its coverage, may end up producing representations about the judicial system and
its functioning, as well as helping to build the images of those involved in the cases by placing
them, several times, in positions without possible defense.

Based on this assumption, the following dissertation has as main objective to identify how
news related to crime and justice is constructed, establishing comparisons between the reference
press and the sensationalist. What is intended to be examined here, is the way the case of
Madeleine McCann's disappearance was represented in each of the newspapers analyzed,
establishing comparisons. For this, it was used the Content Analysis, to analise the news published
in two Portuguese newspapers, the Público and Correio da Manhã, between May 2007 and July
2008.

Keywords: Mediatization; Crime; Justice; Media Events; Media Trials; Madeleine McCann.

iv
ÍNDICE

AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................................ii
RESUMO ...................................................................................................................................................iii
ÍNDICE DE FIGURAS ............................................................................................................................. vi
GLOSÁRIO DE SIGLAS ........................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1. OS MÉDIA NA SOCIEDADE ......................................................................................... 3
1. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO CONSTRUTORES DA REALIDADE
SOCIAL .................................................................................................................................................. 3
1.2 MUDANÇAS NOS PARADIGMAS DOS EFEITOS ............................................................... 4
2. O AGENDA SETTING, PRIMING, FRAMING E NEWSMAKING NA RELAÇÃO COM OS
ACONTECIMENTOS ........................................................................................................................... 5
2.1 ACONTECIMENTO E OS MÉDIA .......................................................................................... 5
2.2 DA HIPÓTESE DO AGENDA-SETTING, AO PRIMING, FRAMING E NEWSMAKING
............................................................................................................................................................. 6
CAPÍTULO 2. MÉDIA, CRIME E A JUSTIÇA ................................................................................... 11
1. MEDIATIZAÇÃO DO CRIME E DA JUSTIÇA..................................................................... 11
1.1 A NOTICIABILIDADE DO CRIME....................................................................................... 12
2. A COBERTURA MEDIÁTICA DOS CASOS DE CRIME E JUSTIÇA ............................... 13
2.1 JULGAMENTOS MEDIÁTICOS E JUSTIÇA TABLÓIDE ............................................... 15
3. MÉDIA E O SISTEMA DE JUSTIÇA: UMA RELAÇÃO DE TENSÃO ............................. 17
CAPÍTULO 3. O ESTUDO DE CASO ................................................................................................... 21
1. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO ................................................................................. 21
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DE DADOS ................................................................................................... 23
1. ABORDAGEM QUANTITATIVA ............................................................................................ 23
1.1 NÚMERO DE NOTÍCIAS E PRESENÇA NA CAPA ........................................................... 23
1.2 FORMATO ................................................................................................................................ 25
1.3 AS FONTES ............................................................................................................................... 25
1.4 TOM DE COBERTURA ........................................................................................................... 27
2. ABORDAGEM QUALITATIVA ............................................................................................... 28
2.1 MÉDIA ....................................................................................................................................... 28
2.2 ENVOLVIDOS NO PROCESSO ............................................................................................. 30
2.3 INVESTIGAÇÃO ...................................................................................................................... 33
CONCLUSÃO .......................................................................................................................................... 37
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 41
ANEXOS ..................................................................................................................................................viii

v
ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1. Distribuição das notícias por jornal

Figura 2. Presença do caso na primeira página

Figura 3. Formato da notícia por jornal

Figura 4. Fontes de informação do corpus total

Figura 5. Fontes de informação por jornal

Figura 6. Tom de cobertura no corpus total

Figura 7. Tom da cobertura por jornal

vi
GLOSÁRIO DE SIGLAS

PJ – Polícia Judiciária

CM – Correio da Manhã

vii
INTRODUÇÃO

Os meios de comunicação social assumem um elemento fundamental no quotidiano dos


indivíduos, uma vez que definem a agenda e os assuntos que serão debatidos no espaço público,
exaltando uns e deixando outros no esquecimento ou numa realidade distante. Por um lado, fornecem
uma linha interpretativa dos acontecimentos que nos rodeiam ou, pelo menos, fornecem às audiências
os elementos essenciais para que estas possam formar as suas próprias interpretações, com mais ou
menos objetividade e, tal como nos dizem alguns autores, embora a forma como o público recebe a
informação não seja completamente passiva e acrítica (Guibentif e Sacco, apud Gomes, 2015), grande
parte das perceções da realidade, sobretudo em casos de realidades distantes, é-lhes fornecida pelos
média (Lippmann apud idem, 2015).

Um dos temas que mais interesse desperta nos meios de comunicação social, pelo seu elevado
grau de noticiabilidade, é o dos casos criminais e ligados ao sistema de Justiça. Conscientes do crescente
interesse por parte do público acerca de histórias deste tipo, os média exploram estas temáticas
diariamente tornando-se, em alguns casos, eles próprios condutores de investigações. Neste contexto,
segundo alguns autores que serão enunciados ao longo desta dissertação, a crescente mediatização do
crime e da Justiça, bem como as tendências observadas na sua cobertura, podem produzir imagens
negativas do sistema judicial, das atuações policiais e dos próprios envolvidos nos processos. A
mediatização deste tipo de casos, através da forma como os média tendem a fazer a sua cobertura, leva
a que estes por vezes sofram um pré-julgamento antes de chegarem aos tribunais. Esta tendência, que
alguns autores caraterizam como «julgamentos mediáticos» assume, muitas vezes, um estilo de
cobertura a que Richard Fox chamou de «justiça tablóide», cujas características, a par deste tipo de
julgamentos, serão explorados no decorrer deste trabalho.

Assim, a dissertação que se segue tem como objetivo identificar de que forma são construídas
as notícias de crime na imprensa portuguesa e compreender se se observam diferenças entre dois jornais
de grande circulação em Portugal, entre a imprensa considerada sensacionalista e a de referência. Nesse
sentido, a investigação que aqui se pretende realizar é justamente uma tentativa de compreender de que
forma os média, e nomeadamente a imprensa escrita, representam eventos relacionados com a Justiça,
os envolvidos no processo, a que fontes de informação recorrem, como representam o sistema judicial
e de que forma isso poderá exercer uma influência na perceção pública dos atos criminais e da Justiça.

Para isto, recorreu-se a um estudo de caso, o caso do desaparecimento de Madeleine McCann,


em 2007. A criança inglesa desapareceu a 4 de maio de 2007 no Algarve, enquanto passava férias com
os seus dois irmãos, os seus pais Kate e Gerry McCann e um grupo de amigos do casal, todos eles
ingleses. As circunstâncias do seu desaparecimento, do apartamento onde dormia com os irmãos no
aldeamento turístico Oceon Club na Praia da Luz, enquanto os seus pais jantavam a poucos metros,

1
permanecem uma incógnita até aos dias de hoje. O caso que foi marcado por diversas polémicas, com
os pais a serem constituídos arguidos, elementos da Polícia Judiciária a serem demitidos e acusações
inglesas à atuação da polícia portuguesa, forneceu conteúdos noticiosos durante meses, tanto nos média
nacionais como internacionais e, apesar de já se terem passado praticamente 12 anos após o
desaparecimento da menina inglesa, os média continuam a fazer correr tinta sobre o caso, sendo um
tema que decerto ainda estará muito presente na memória tanto nacional, como internacional.

O interesse neste caso específico, justificasse pelo facto de ser um dos mais interessantes casos
ocorridos em Portugal para investigar o que aqui se pretende. Neste contexto, foram analisadas as
notícias acerca do caso, entre maio de 2007 e julho de 2008, em dois jornais de grande circulação
portugueses situados em polos jornalisticamente opostos, o Público e o Correio da Manhã. Para a sua
análise recorreu-se à Análise de Conteúdo, tanto quantitativamente como qualitativamente, de forma a
obter resultados mais abrangentes e esclarecedores que permitissem o seu cruzamento e,
consequentemente, conclusões amplas acerca da cobertura do caso em questão.

A dissertação que se segue encontra-se dividida em quatro capítulos. No primeiro, será dado
conta dos média enquanto construtores da realidade social, através de hipóteses como o Agenda-Setting,
Priming, Framing e o Newsmaking, bem como a sua relação com os acontecimentos, conceito também
abordado neste capítulo. Já no segundo capítulo, são expostas algumas noções acerca da mediatização
do crime e da Justiça, que a justificam e caracterizam; neste capítulo, é ainda abordada a relação de
tensão entre o sistema de Justiça em Portugal e a comunicação social, assente nos seus pontos de colisão:
a liberdade de imprensa e o segredo de justiça. De seguida, no terceiro capítulo, é definida mais
detalhadamente a metodologia utilizada para a investigação e, no Capítulo 5, apresentados os resultados
daqui decorridos. Por fim, na conclusão, procurou-se representar os principais resultados da pesquisa
cruzando-os, sempre que possível, com a literatura exposta nos capítulos de enquadramento teórico.

2
CAPÍTULO 1. OS MÉDIA NA SOCIEDADE

«O jornal não é um espelho da realidade, mas um holofote móvel.»

(Gitlin apud Penedo, 2003b: 29)

1. OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO CONSTRUTORES DA


REALIDADE SOCIAL

O papel de destaque dos média não é um fenómeno novo e, desde o seu aparecimento, que é
inegável que têm desempenhado um papel ativo e transformador socialmente, assumindo uma
importância inquestionável no quotidiano de cada um de nós. Estes exercem uma função de controlo
social e, segundo Marshall McLuhan, moldam realidades quotidianas através das suas representações,
fornecendo critérios e referências para a produção e manutenção do senso comum (apud Silverstone,
2002: 20) representando, igualmente, as normas e os seus desvios.

Nos estudos sobre jornalismo, é referida a existência de uma visão, seguindo vários autores, em
que as notícias assumem um papel preponderante na construção social da realidade, não se limitando a
reproduzi-la, mas intervindo nesse processo. Neste seguimento, os jornalistas e os seus discursos,
intervêm na construção das condições e no modo como a realidade é compreendida pelas audiências,
oferecendo-lhes quadros de referência e interpretativos quanto ao que é noticiado e trazido para o espaço
público (Correia, 2012).

Desta forma, a prática jornalística, assente em princípios deontológicos como a objetividade e


a imparcialidade, fez com que os seus profissionais nos anos 20 começassem a ser vistos como porta-
vozes da sociedade, supondo-se que sempre se mantinham fiéis aos acontecimentos tal e qual como estes
ocorriam. Esta ideia, que sustenta a primeira grande teoria do jornalismo e o caraterizava como espelho
da realidade, começou a mudar a partir dos anos 40 do século passado, quando surgiram novas
perspetivas que demonstravam que a prática jornalística «afinal de contas, não era tão transparente como
se supunha» (Araújo, 2013: 35).

Neste processo, Traquina diz-nos que os jornalistas não são meros observadores passivos, mas
sim, participantes ativos na construção da realidade, graças a elementos como o uso de «uma linguagem
que nunca se afigura neutral ou inocente, aos aspetos organizativos e orçamentais que intervêm na
representação dos acontecimentos ou, ainda, ao modo como os jornalistas dispõem de uma rede noticiosa
graças à qual procuram obstar à imprevisibilidade dos acontecimentos» (Correia , 2012: 83).

3
No processo de construção da realidade pelos meios de comunicação social, existem algumas
tendências da communication research que são representativas da forma como os média orquestram a
informação que é prestada e qual é relevante noticiar. São elas a hipótese do agenda-setting, priming,
framing e a hipótese do newsmaking. Estas tendências, que pela sua pertinência assumem um papel
importante nos efeitos dos média e no seu papel como construtores da realidade, serão expostas e
debatidas mais adiante no decorrer deste capítulo.

Neste seguimento, e como afirma Mauro Wolf (1987), a questão da forma como os média
constroem a realidade social e a passagem para esta atitude, está intimamente ligada à questão dos
efeitos. Como tal, torna-se imperativo deslindar algumas das transformações ocorridas nesse domínio,
o das teorias dos efeitos.

1.2 MUDANÇAS NOS PARADIGMAS DOS EFEITOS

As atitudes em relação aos efeitos dos meios de comunicação social e os seus posicionamentos,
têm sofrido algumas alterações ao longo do tempo e com o decorrer das investigações na área. Segundo
Wolf (1987), e citando Schulz, durante muito tempo os estudos sobre os efeitos dos meios de
comunicação social estiveram associados àquilo a que o autor define como «Transfermodell der
Kommunikation». Este paradigma, implicava que os processos comunicativos seriam assimétricos, em
que existia um sujeito ativo que emitia um estímulo e um passivo, que impressionado reagiria; que a
recepção seria individual, um processo que diz respeito a cada individuo e que devia ser estudado
individualmente; que a comunicação seria intencional, em que o comunicador teria sempre em mente
um determinado objetivo/efeito; e que, os processos comunicativos seriam episódicos, sendo o inicio e
o fim da comunicação limitados e com um efeito isolável e independente.

O paradigma acima mencionado, modificou-se bastante e alguns dos seus pressupostos foram
abandonados ou transformados. Passou-se dos efeitos entendidos como mudanças a curto prazo para
efeitos a longo prazo e, segundo Roberts, adquiriu-se a consciência de que «a comunicação não intervém
diretamente no comportamento explicito; tende isso sim, a influenciar o modo como o destinatário
organiza a sua imagem do ambiente» (apud Wolf, 1987: 126).

De acordo com o mesmo autor, estas mudanças estão em primeiro lugar relacionadas com o tipo
de efeito, que deixou de dizer respeito às atitudes, aos valores e aos comportamentos das audiências,
passando para a consciência de «um efeito cognitivo sobre os sistemas de conhecimento que o individuo
assume e estrutura de uma forma estável, devido ao consumo que faz das comunicações de massa»
(Wolf, 1987: 126). Em segundo lugar, mudam os efeitos em termos temporais, deixando de ser
compreendidos como pontuais, mas cumulativos e prolongados no tempo. Abandonou-se, também, a

4
perspetiva dos efeitos intencionais para os efeitos latentes, implícitos no modo como determinadas
distorções na produção das notícias se refletem na forma como os próprios destinatários, a audiência,
compreendem os acontecimentos (idem, 1987).

Neste quadro, a influência dos meios de comunicação é admitida sem discussão, pois estes
ajudam a «estruturar a imagem da realidade social, a longo prazo, a organizar novos elementos dessa
mesma imagem, a formar opiniões e crenças novas» (Roberts apud Wolf, 1987: 128).

2. O AGENDA SETTING, PRIMING, FRAMING E NEWSMAKING NA RELAÇÃO COM


OS ACONTECIMENTOS

Tal como afirmado anteriormente no decorrer deste capítulo, existem algumas hipóteses que
pelo seu contributo explicativo da construção social da realidade através dos média, bem como dos
acontecimentos que a integram, são importantes pontos a abordar se tivermos em conta a linha
investigativa desta dissertação. Mas, antes de debater acerca do agenda-setting, priming, framing e da
hipótese do newsmaking, torna-se imperativo deslindar o próprio conceito de acontecimento em si.

2.1 ACONTECIMENTO E OS MÉDIA

Acontecimento é um conceito fundamental para o Jornalismo. Este distingue-o dos factos, dado
que se mantêm no espaço e no tempo por romperem com a normalidade da nossa experiência (Zamin,
2012). Podemos enunciar, então, o facto como algo que ocorre, e o acontecimento como o que é
representado nos meios de comunicação social.

Partindo desta perspetiva e, tal como nos diz Véron (apud Martins, 2013: 14), «os
acontecimentos não existem senão na exata medida em que os media os constroem». Concordando,
Charaudeau diz-nos que o acontecimento resulta da narração de um ato, em que ocorrem jogos de
seleção e de escolha e, que «para que um acontecimento exista é necessário nomeá-lo» (apud França e
Almeida, 2008: 4). Também para Traquina, «as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e
textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento» (apud Carvalho, 2016:).

Os acontecimentos são construídos, na medida em que lhes são impostos enquadramentos e que
lhes são atribuídos sentidos com base nos modos de produção próprios de cada jornal. Assim, e segundo
Mouillaud, o acontecimento é «como a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema de
informação, o conceito de facto» (apud Andrade, 2018: 12).

5
1
Alguns acontecimentos, pelos valores-notícia que possam conter, sofrem uma
espetacularização maior em detrimento de outros. A estes acontecimentos, podemos defini-los como
acontecimentos mediáticos que segundo Dayan e Katz (1992), se traduzem numa relação entre os média
e os acontecimentos que, por um lado, privilegia a cobertura de grandes momentos e acontecimentos
marcantes e, por outro, destaca o facto dos acontecimentos mediatizados se tornarem em grandes
espetáculos. Apesar da teoria dos media events, na concepção original dos dois autores, se dirigir a
acontecimentos pré-planeados e esperados, como casamentos reais ou competições desportivas, a teoria
sofreu uma atualização de um dos autores originais (Dayan), que lhe acrescentou os escândalos e as
catástrofes naturais ou provocadas, como ataques terroristas (França e Lopes, 2017). Os acontecimentos
mediáticos, ou media events, são então acontecimentos altamente mediatizados, que captam tanto a
atenção de diversos meios de comunicação social, como das audiências que alimentam, igualmente, essa
mediatização.

Neste processo da narração dos factos, os média orquestram tanto os que se tornarão em
acontecimentos, como os factos que merecem mais destaque nesse processo, como iremos ver de seguida
através das hipóteses, construindo, muitas vezes, o acontecimento através de perspetivas que melhor
servem os seus interesses.

2.2 DA HIPÓTESE DO AGENDA-SETTING, AO PRIMING, FRAMING E


NEWSMAKING

As investigações relativamente ao Agenda-Setting, tiveram origem nos estudos de Maxwell


McCombs e Donald Shaw em 1972, em que se sustentava uma relação de causalidade entre a agenda
dos média e a perceção pública dos temas relevantes do quotidiano (Penedo, 2003b). De uma forma
sucinta, esta hipótese defende que:

«em consequência da acção dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o
público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos
específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos
seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio
conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma
importância que reflecte de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos,
aos problemas, às pessoas» (Shaw apud Wolf, 1987: 130).

1 Os valores-notícia, enquanto componentes da noticiabilidade, serão explicados mais à frente no decorrer deste capítulo.

6
Em suma, a hipótese do agenda-setting, ou agendamento, constitui um tipo de efeito social em
que os meios de comunicação social, nas suas várias vertentes e através da seleção que fazem das
notícias, influenciam de maneira determinante os temas a discutir no espaço público, influenciando,
igualmente, a compreensão da realidade social.

O conceito de Priming (sugestão), por sua vez, foi introduzido em 1987 por Iyengar e Kinder
nos seus estudos acerca da comunicação de massas. Na perspetiva destes dois autores, os média ao
chamarem a atenção para alguns temas e deixando outros de parte, influenciam os padrões a partir dos
quais os governos, políticos, entre outros, são julgados (Iyengar e Kinder., apud Almeida, 2017),
sugerindo às audiências que questões específicas devem usar como referências. Muitas vezes, o Priming
é entendido como uma extensão do Agenda-Setting e, segundo esta hipótese, os média podem moldar
os aspetos que o público tem em consideração ao fazerem julgamentos sobre determinado tema
(Scheufele e Tewksbury, 2007).

Já o Framing (enquadramento), teve origem na pesquisa sociológica de Goffman (1974),


Tuchman (1978) e Gitlin (1980). Os autores focavam-se na forma como os enquadramentos informavam
a produção noticiosa, bem como nas suas implicações ideológicas (Carragee et al., apud Almeida, 2017).
O enquadramento, baseia-se na ideia de que a forma como um determinado assunto é caraterizado nas
notícias, pode ter uma influência em como este é compreendido pelas audiências e consequentemente
moldar a sua opinião. Este termo refere-se, então, aos modelos de apresentação que os jornalistas
utilizam para expor a informação (Scheufele e Tewksbury, 2007). À semelhança do verificado para o
agendamento, o enquadramento envolve dois processos: o de seleção e o de saliência, nos quais o
jornalista realça certos aspetos dos acontecimentos em vez de outros (Entman apud Fernandes, 2016).
Assim, «enquanto o priming se refere à «ligação entre os efeitos do agendamento e a expressão de
opiniões» (Neto, 2012: 20-21), o framing pode ser definido como o “esquema de formatação,
estruturação e interpretação do modo como pensamos”» (Neto apud Almeida, 2017: 17).

Por sua vez, a hipótese do newsmaking considerada uma atualização da teoria do gatekeeping -
que se focava mais na seleção, a par do agenda-setting, priming e do framing - é uma teoria que ajuda
a sustentar o papel de destaque que os média assumem como construtores da realidade social. Esta
hipótese, procura entender o processo de produção das notícias e os seus critérios de noticiabilidade.
Como sublinha Wolf, a noticiabilidade define-se como, «o conjunto de elementos através dos quais o
órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que
selecionar as notícias» (apud Fernandes, 2011:12).

O autor Nelson Traquina oferece-nos, também, uma definição de noticiabilidade. Para este,
noticiabilidade são:

7
«conjunto de critérios e operações que fornecem a aptidão de merecer um tratamento
jornalístico, isto é, possuir valor como notícia. Assim, os critérios de noticiabilidade são o
conjunto de valores-notícia que determinam se um acontecimento ou assunto, é suscetível
de se tornar notícia, isto é, de ser julgado como merecedor de ser transformado em matéria
noticiável e, por isso, possuindo “valor-notícia”» (Traquina apud Silva, 2010: 175).

Nesta perspetiva, os valores-notícia acabam por ser uma das componentes da noticiabilidade e
tanto podem integrar o processo de seleção da informação como o de construção, servindo de linha
orientadora para quais factos se tornarão notícia transformando-se, consequentemente, em
acontecimentos. Partindo desta perspetiva, vários foram os autores que exploraram a temática dos
valores-notícia e os definiram, como é o caso de Mauro Wolf, Ericson, Chan (1987), entre outros. No
entanto, a lista de valores-notícia que aqui será apresentada é a de Nelson Traquina, por se demonstrar
marcadamente a mais completa e abrangente. Segundo Nelson Traquina (2002), os valores-notícia
podem ser classificados em duas categorias distintas: os de seleção e os de construção. No que diz
respeito aos valores-notícia de seleção, associados aos critérios que os profissionais aplicam na escolha
de uns acontecimentos em detrimento de outros, Traquina subdivide-os em dois grupos: os substantivos
e os contextuais.

Relativamente aos critérios substantivos, o autor identifica 10 valores-notícia. Os primeiros são a


morte e a notoriedade. Outros valores-notícia são a proximidade, tanto geográfica como cultural dos
factos; a sua relevância; a novidade, retomando a um assunto quando algo de novo sobre ele surge;
também o tempo aqui é relevante, tanto por o que é noticiado ser atual, como é este que justifica a
noticiabilidade (outro valor-notícia) do que ocorreu no passado (por exemplo assinalar-se a data de um
acontecimento marcante nos média). Para além destes valores-notícia substantivos, o autor identifica
ainda o inesperado, o conflito ou a controvérsia, e a infração, em que os processos de crime estão
inseridos. Passando à segunda categoria de valores-notícia de seleção, os critérios contextuais, Traquina
apresenta-nos 5. O primeiro é a disponibilidade, que está relacionado com a facilidade de cobertura dos
acontecimentos e os meios e recursos que estes exigem. O segundo valor-notícia é o equilíbrio, que está
relacionado com a quantidade notícias nos vários órgãos de comunicação acerca de um assunto em
questão. Por fim, temos o critério do dia noticioso, que é justificado pelo facto de existirem dias mais
ou menos ricos em valores-notícia: um acontecimento com valor-notícia pode ter a sua relevância
diminuída pela ocorrência de acontecimento que seja mais inesperado.

Para além dos critérios de seleção enunciados, Nelson Traquina apresenta-nos os valores-notícia
de construção. Considerados pelo autor como qualidades da construção de uma notícia, funcionam como
linhas orientadoras para a construção dos produtos noticiosos, sugerindo a que informação deve ser dada
prioridade e qual deve ser, por outro lado, excluída da notícia. O primeiro valor-notícia que para

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Traquina merece ser incluído no processo de elaboração da notícia é a simplificação, na medida em que
quanto menos a informação for confusa e complexa, maior é a probabilidade de ser compreendida e
valorizada. Outro valor-notícia é a amplificação, na medida em que quanto maior for o alcance de um
acontecimento ou história maior será, também, a probabilidade de ser notada. Dentro dos valores de
construção, o autor apresenta-nos também a relevância, que se traduz no papel que os jornalistas
assumem na construção da notícia, para demonstrar às suas audiências que um determinado
acontecimento tem significado e é relevante. O antepenúltimo valor-noticia é a personalização.
Relativamente a este valor, Traquina explica que ao personalizar uma notícia, nomeadamente as pessoas
envolvidas, os jornalistas permitem que as audiências entendam melhor o que está a ser transmitido. O
quarto valor-notícia é a dramatização, que está relacionado com o caráter sensacionalista das notícias, o
relevo de aspetos negativos e críticos que apelam à função emotiva dos média.

9
10
CAPÍTULO 2. MÉDIA, CRIME E A JUSTIÇA

«As coisas são notícia porque traduzem mudança, imprevisibilidade e a natureza


conflitual do mundo»

(Hall apud Penedo, 2003b: 41)

1. MEDIATIZAÇÃO DO CRIME E DA JUSTIÇA

Uma das áreas que tem vindo a suscitar um interesse crescente por parte do público é a dos
casos de crime, as atividades dos tribunais e o Direito Penal. Isto porque, como afirma Luhmann, existe
uma especial apetência por parte da opinião pública pela apresentação dos conflitos e situações
extraordinárias do quotidiano (apud Lourenço, 2013), uma vez que este tipo de histórias acarretam em
si uma grande carga dramática, exacerbando sentimentos e estimulando o voyeurismo por parte do
público (Penedo, 2003a).

As notícias relacionadas com o crime e Justiça, sempre causaram impacto na sociedade e os


média, ao longo do tempo, foram observando o seu potencial noticioso. Segundo alguns autores, este
interesse registou-se, sobretudo, a partir dos anos 70 do século passado quando em alguns países se
desencadeou uma grande onda de litigiosidades (Santos apud Araújo, 2013) e, como tal, as investigações
criminais, o crime e os próprios tribunais passaram a ser alvo de uma visibilidade sem precedentes
(Surette apud Araújo, 2013).

O marcado interesse das audiências pelas histórias que representam o desvio e o extraordinário,
tem levado os média a explorar eventos dessa natureza transformando-se, por diversas vezes, em
condutores de investigações e, ao explorar situações deste tipo, muitos meios de comunicação social
fazem-no com o intuito de obter o lucro que daí deriva (Freitas, 2018). Este aspeto, é justificável pela
empresarialização dos órgãos de comunicação social, que fez com que o lucro se tornasse um dos
principais fatores na decisão de que acontecimentos tornar notícia, e em que a observação de que o crime
e o drama adjacente e aumentam as vendas, colocou estas histórias sob o olhar atento dos jornalistas.

Neste contexto, assente no interesse do público e no seu valor comercial, os média foram
assegurando um papel de mediador entre os cidadãos e as decisões dos tribunais, tornando o sistema
judicial e as investigações criminais que outrora permaneciam restringidas aos seus espaços de atuação,
acessíveis ao cidadão comum (Lourenço, 2013).

Tal como nos diz Surette (apud Machado et al., 2009), ainda que as audiências não sejam
completamente passivas, a crescente mediatização do crime e da Justiça e a forma como os média fazem

11
a sua cobertura, tende a produzir junto do público avaliações negativas acerca do sistema de justiça
criminal e, até mesmo, das atuações policiais, assumido desta forma um importante papel na construção
social da realidade criminal. Neste processo, a mediatização de casos criminais, tanto os resolvidos como
os não-resolvidos, podem reforçar imagens de ineficácia da polícia e dos tribunais (Machado et. al.,
2012) que, «de resto são coincidentes com representações negativas e sentimentos de distanciamento
em relação ao sistema de justiça em Portugal, encarado como moroso, ineficiente e discriminatório»
(Cabral, et al.; Santos, et al. apud idem, 2012: 157).

Os meios de comunicação social parecem, desta forma, exercer um duplo efeito: para além de
poderem exercer uma influência sobre a forma como os envolvidos no processo são vistos pelas
audiências - tema que iremos explorar mais à frente neste capítulo, podem ainda, exercer impacto sobre
a forma como estas observam o sistema de Justiça e as atuações policiais.

1.1 A NOTICIABILIDADE DO CRIME

Alguns dos fatores em que podem assentar a tendência observada nos média, de mediatização
do crime e do sistema judicial, estão relacionados precisamente com a sua noticiabilidade e,
consequentemente, os valores-notícia adjacentes a estes acontecimentos.

Tal como já foi referido no capítulo anterior, a noticiabilidade de um acontecimento está


diretamente relacionada com os valores-notícia que este possa conter. Ao reter em si um ou mais valores-
notícia, determinado acontecimento é considerado noticiável e merecedor de se tornar em notícia
integrando, dessa forma, a realidade social. Acontece que os casos relacionados com o crime e a Justiça,
acarretam em si um elevado nível de noticiabilidade, nomeadamente por romperem com o normal
funcionamento da sociedade, serem imprevisíveis e representarem a natureza conflitual do mundo (Hall
apud Penedo, 2003a).

Os valores-notícia dos casos criminais, tal como já foi mencionado, estão intimamente ligados
à configuração de um dado crime como a imprevisibilidade, porque «quanto menos previsível for, mais
probabilidades tem de se tornar noticia e de integrar assim o discurso jornalístico» (A. Rodrigues apud
Penedo: 2003a). Para além disso, a singularidade, ou seja, tudo aquilo que transcende as expetativa, é
apresentada por Hall como um valor-notícia por excelência, à qual se juntam outros valores como os
acontecimentos dramáticos, acontecimentos suscetíveis de personalização e expressão de sentimentos
(apud idem, 2003a), bem como a proximidade cultural e geográfica e o envolvimento de personalidades
com estatuto social relevante (Machado et al. apud Araújo, 2013).

A este conjunto de valores-notícia, Surette (apud Araújo, 2013) acrescenta outros dois que,
segundo o autor, justificam a forte noticiabilidade dos dramas criminais: a periodicidade e consonância.

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O primeiro valor-notícia, está relacionado com a possibilidade de através de um caso, ser possível aos
média criarem diferentes narrativas, alimentando o próprio caso e explorando o seu potencial dramático.
Por outro lado, a consonância, já referida anteriormente através de Traquina, está relacionada com o
facto de os média, através de um caso específico, terem a possibilidade de estabelecer ligações com
outros casos criminais parecidos ou que possam de alguma forma ser conectados.

2. A COBERTURA MEDIÁTICA DOS CASOS DE CRIME E JUSTIÇA

A cobertura jornalística de casos relacionados com o crime e o sistema judicial, bem como a
sua influência na construção da realidade social destas questões (Meyer apud Randall et al., 1988), tem
dado origem a várias investigações que, tendo em conta o foco investigativo desta dissertação, são
importantes a realçar.

Uma das principais tendências na cobertura destes fenómenos, é o exagero das notícias pelos
meios de comunicação em geral, acrescendo a forma como relatam as histórias dos alegados criminosos
e as vítimas alimentando, muitas vezes, estereótipos de pessoas e mitos urbanos sobre o crime
(McCombs apud Gomes, 2015). De um modo geral, vários estudos acerca da representação do crime
nos média concluíram que estes exercem influência na perceção pública acerca destes casos,
nomeadamente na sua frequência ou gravidade. Por exemplo, a cobertura generalizada e frequente num
curto espaço temporal de casos de assalto à mão armada, pode levar a audiência a acreditar que o seu
número está a aumentar quando, na verdade, foi a sua cobertura que aumentou. Em Portugal, foram
realizadas análises que corroboram esta perspetiva, concluindo que existe uma «sobrerrepresentação do
crime nos meios de comunicação em relação aos dados oficiais» (Penedo apud Budó, 2012: 109).
Situações deste tipo, podem levar àquilo a que Cohen (1972) chama de «pânico moral» e até mesmo ao
medo generalizado do crime, que apesar de não nos interessar aqui explorar estas questões, não poderiam
deixar de ser mencionadas.

Para além disto, segundo Sherizen (apud Randall et al., 1988), existe uma tendência observada
nos média para o realce e mediatização de certos aspetos do sistema de justiça criminal, ignorando
outros. Assim, como forma de simplificação e dramatização, as agências noticiosas tendem a focar-se
mais nas fases iniciais do processo, como a descoberta do crime em si e a apresentação inicial dos
suspeitos, deixando de lado os veredictos finais e as sentenças da maior parte dos casos o que pode
transmitir uma imagem de ineficácia do sistema judicial.

Para Ray Surette (apud Araújo, 2013), existem três características que podem ser associadas à
mediatização destes fenómenos, tanto na fase de investigação como na fase de julgamento. Segundo
este autor, estas características são a serialização, a personificação e a comodificação. A primeira

13
característica, está relacionada com a observação de que nestes casos, os média tendem a dividir os
vários momentos- como se de episódios de séries televisivas criminais se tratassem, por exemplo-, com
conteúdos criados a partir do que já se sabe sobre o caso e sobre aquilo que acontecerá, num formato
quase que coincidente às «cenas dos próximos episódios». Por outro lado, a personificação está
estreitamente ligada ao realce das suscetibilidades dos envolvidos, em detrimento das próprias ações do
caso. Nesta perspetiva, está incluída a exploração das vidas pessoais, particularidades íntimas e
características pessoais dos alegados envolvidos num processo, dos suspeitos e arguidos, bem como
daqueles que os rodeiam. O realce de aspetos deste tipo no discurso jornalístico, ajuda a criar imagens
dos envolvidos, seja de vítima ou criminoso, para além de tornar os casos mais apelativos às audiências
e exacerbar o drama e impacto emocional (Bennet apud Randall et al., 1988). A última caraterística
apresentada por Ray Surette, é a comodificação: esta característica insere-se na lógica comercial cada
vez mais comum nos meios de comunicação social, no facto das histórias serem construídas para serem
vendidas, como se de mercadorias (commodities) se tratassem (apud Araújo, 2013).

Para além disto, Surette (apud Araújo, 2013) afirma ainda, que estas caraterísticas são comuns
a outros formatos mediáticos, como as séries televisivas americanas acerca de investigações criminais,
do estilo CSI etc, que combinam a ficção e o entretenimento. Segundo Machado e Santos, isto justifica
a familiaridade do público com as narrativas jornalísticas que seguem esse rumo em determinados casos,
podendo observar-se um esbatimento das fronteiras entre ficção e realidade, tendo em conta o
dramatismo na mediatização de certos casos criminais (apud idem, 2013).

Partindo desta perspetiva, torna-se pertinente a introdução de um outro conceito importante na


mediatização do crime e da justiça, e que contribui para este esbatimento entre a ficção e a realidade: o
infotainment. O infoentretenimento, é um termo que resulta da junção de “informação” e
“entretenimento” e cuja presença tem vindo a aumentar nos últimos anos nos diferentes meios de
comunicação social, especialmente os ditos sensacionalistas. Segundo Filho, na perspetiva do
infoentretenimento, existe uma tendência observada nos vários média, para o desenvolvimento de temas
mais populares e humanos, «personalizando cada vez mais a notícia e as suas personagens e, grosso
modo, investindo mais na emoção do que na razão» (apud Pacheco, 2017: 29). Deste processo, resulta
uma espetacularização das notícias, dando primazia ao insólito, ao extraordinário e ao chocante, como
uma técnica para prender as audiências (Canavilhas apud idem, 2017).

Já para Peelo (2006), a construção e o estilo das narrativas dos média em situações de crime,
são muitas vezes feitos de forma a situar as audiências no papel de «testemunhas mediadas». Segundo
esta autora, os jornais criam formas que convidam o leitor a posicionar-se relativamente aos retratos dos
criminosos, vítimas e familiares, exponenciando o efeito dramático daquilo que é narrado, o que pode
contribuir para a construção das narrativas públicas sobre o crime e, consequentemente, a opinião sobre
os factos.

14
Outra questão importante no contexto da cobertura do crime e dos assuntos relacionados com o
sistema judicial, é a das fontes. As fontes de informação são fundamentais na produção noticiosa e
segundo Santos (apud Brites, 2010), os jornalistas dão primazia às fontes oficiais. No que diz respeito
às notícias que envolvem o crime e a justiça, «os media parecem estar mais fortemente dependentes das
instituições de controlo de crime para as suas ‘estórias’ do que praticamente em qualquer outra área. A
polícia, (…) e os tribunais constituem um quase monopólio como fontes de notícias de crime nos media»
(Hall apud idem, 2010). Neste contexto, o discurso policial surge como uma forma de legitimar o
discurso jornalístico e a informação que é prestada (Gomes, 2011). Para Schlesinger (apud Machado et
al., 2008), as instituições judiciárias enquanto fontes, tentam influenciar o conteúdo das notícias acerca
destes temas o que, em Portugal, à informalidade das relações entre e Justiça e os meios de comunicação
social, é muitas vezes identificado como as «fontes junto do processo». No entanto, esta relação informal
e a informação que é prestada sob a alçada do anonimato das fontes policiais, acarreta algumas
preocupações, uma vez que «por a informação ser atribuída a fontes autorizadas, o jornalista que faz a
citação apoia-se nestas, construindo um facto, raramente confirmado pelo próprio junto de outras fontes,
e que faz o jornalista parecer independente, imparcial e objectivo (apud idem, 4: 2008). Para Machado
e Santos (2008), o uso destas fontes, pode comprometer o direito à privacidade e reputação dos
envolvidos nos processos

Por outro lado, as fontes não oficiais, apesar de não marcarem tanta presença nas notícias como
as oficiais são, também, diversas vezes utilizadas pelos jornalistas para fornecer conteúdo às notícias,
isto porque, «os jornalistas necessitam de outras fontes, que fornecem ângulos diferentes às estórias e
levam à construção de notícias escandalosas e dramáticas» (Santos apud Silva, 2008: 26). Neste
contexto, a voz dos indivíduos como fonte de informação, seja na posição de vítima ou testemunha do
crime, servem como uma forma de imprimir emotividade ao conteúdo que é noticiado (Carvalho apud
Gomes, 2011).

2.1 JULGAMENTOS MEDIÁTICOS E JUSTIÇA TABLÓIDE

A mediatização de determinados casos relacionados com o sistema judicial e o crime, bem como
a forma como os meios de comunicação social, especialmente os sensacionalistas, tendem a fazer a sua
cobertura, leva a que estes casos e os seus envolvidos, muitas vezes, sofram uma espécie de pré-
julgamento mesmo antes de chegarem a ser oficialmente julgados pelos tribunais, o que pode influenciar
a perceção pública acerca do caso e dos seus envolvidos.

«Julgamentos mediáticos» é o termo utilizado por Ray Surette, autor que tem acrescentado
bastante ao estudo média/crime, para definir e caraterizar o processo de alta de mediatização a que
alguns casos criminais são sujeitos. Segundo ele, estes podem ser definidos como «eventos noticiosos

15
regionais ou nacionais durante os quais os média cooptam o sistema de justiça criminal como fonte de
abundante drama e entretenimento. São, com efeito, mini-séries dramáticas construídas em torno de um
caso criminal real» (apud Machado et al., 2010: 59). Assim, segundo este autor, os julgamentos
mediáticos estão relacionados com o frenesim causado pelos média após a descoberta de um crime
mesmo antes de estes alcançarem as barras dos tribunais e que podem até mesmo forçar condenações
antecipadas (apud Araújo, 2013). O autor estabelece, ainda, uma tipologia que serve para enquadrar os
vários tipos de julgamento mediático proeminentes: «abusos de poder e de confiança» (em que os atores
políticos assumem um lugar de destaque); «ricos corrompidos» (crimes sexuais, cometidos por
indivíduos com elevado estatuto social, por exemplo); e «males estranhos» (que envolvem, sobretudo,
crimes cometidos por grupos sociais minoritários) (Surette, 2002). Na perspetiva de Ray Surette,

«(…) apesar das suas poucas ocorrências, os julgamentos mediáticos são cruciais na
construção social das imagens do crime e da Justiça por vastas audiências de cidadãos
comuns» e que, «os julgamentos mediáticos envolvem a construção social de certos casos
judiciais que são tomados pelos media, comodificados e mercantilizados como produtos de
entretenimento para massas» (apud Araújo, 2013: 25).

Já Chris Greer e Eugene McLauglin (2012), chamam ao processo de pré-julgamento em


situações de crime e processos judiciais, «julgamentos pelos média». Os meios de comunicação social,
nestes casos, comportam-se como procuradores da opinião do público e tentam exercer funções paralelas
de justiça (Greer e McLauglin, 2012). Neste processo, a esperada objetividade do processo e do
jornalismo, podem dar lugar- e concordando com Surette-, à especulação sensacionalista e moralista
sobre as ações e motivos dos indivíduos alegadamente envolvidos num processo. Segundo Greer e
McLauglin, o escrutínio judicial de «provas irrefutáveis» cede lugar à divulgação em tempo real de
revelações, muitas vezes obtidas através de informantes pagos, de conteúdos gerados pelos utilizadores
e de rumores e conjeturas provenientes de «fontes bem colocadas». Os meios de comunicação social
assumem, desta forma, o lugar de acusação podendo colocar os envolvidos nos processos numa posição
sem defesa possível.

Neste processo, os casos que são alvo de mediatização, e muitas vezes aqueles que envolvem
crianças, são propícios ao desenvolvimento de um estilo de cobertura mediática a que Richard Fox (apud
Machado et al., 2009), por sua vez, chamou de «justiça tablóide». Segundo este autor, a cobertura
mediática do estilo justiça tablóide apresenta algumas características que lhe são intrínsecas, e podem
ser observadas tanto através das próprias audiências como através dos meios de comunicação social.
Uma das características argumentadas pelo autor, é o facto de os média neste processo deixarem de lado
o seu caráter informativo, em prol de um formato de entretenimento. A cobertura de um caso judicial

16
acaba por se dedicar mais aos pormenores e caraterísticas dos envolvidos no processo, do que às
questões de fundo do caso. Uma outra característica associada à cobertura mediática do estilo justiça
tablóide, está relacionada com o grande volume de espaço ocupado com a questão nos diferentes órgãos
de comunicação social. Por fim, terceira característica que Richard Fox associa ao estilo de cobertura
justiça tablóide, é a presença de um público que anseia por assistir ao decorrer do caso e aos seus
procedimentos, podendo, dessa forma, adquirir compreensão acerca do sistema de justiça e avaliar o
mesmo (apud Machado et al. 2009).

Esta tendência na cobertura dos casos que de alguma forma rompem com o normal
funcionamento da sociedade, faz com que os cidadãos revelem grande familiaridade com estes e os seus
protagonistas, o que não se reflete, no entanto, no conhecimento acerca do funcionamento do sistema
de justiça criminal. Segundo Machado et al. (2009), isto é justificável porque, quando os cidadãos
recebem muita informação sobre o sistema judicial através de casos extraordinários, não estão a receber
uma imagem completamente transparente e real do normal funcionamento do sistema e, por isso,
parecem criar-se baixos níveis de confiança no sistema judicial.

Em território português, podemos facilmente enunciar aqui alguns casos que se podem associar
à cobertura estilo justiça tabloide, e aos julgamentos mediáticos, nomeadamente o caso «Casa Pia», o
caso «Maddie»- sobre o qual este trabalho se debruçará- e, mais recentemente, podemos também
mencionar o caso «Luís Grilo». Segundo Costa et al. (apud Machado et al., 2009), casos como estes
que acabaram de ser destacados, têm aberto caminho para um maior alcance do sistema de Justiça,
expondo aos cidadãos comuns, através da sua mediatização, discussões e linhas de reflexão sobre o
funcionamento da justiça, atuações policiais, entre outros.

3. MÉDIA E O SISTEMA DE JUSTIÇA: UMA RELAÇÃO DE TENSÃO

O fenómeno da mediatização da justiça e do crime que tem até aqui vindo a ser exposto, tal
como nos diz Prior (2011), tem conduzido inevitavelmente à consciencialização acerca da dificuldade
de relacionamento que existe entre a Justiça e os meios de comunicação social.

A dificuldade de relacionamento entre estas duas instâncias, «é explicada pela própria lógica de
funcionamento de cada sistema. Enquanto os meios de comunicação se regem pelo princípio da
publicidade, no sentido em que procuram tornar tudo comum, visível, a Justiça tende para uma
comunicação esotérica, «egocêntrica», adoptando, sobretudo na fase de inquérito, uma linguagem onde
é o segredo que prevalece» (Prior, 2011: 1281). Ora, a fase de inquérito, é justamente a fase que mais
atrai os meios de comunicação social. É esta a fase que alimenta as manchetes dos jornais, que permite
a especulação jornalística através de fontes anónimas e de fugas de informação, promovendo a

17
dramatização e aumentando as audiências (idem, 2011). Este aspeto, está intimamente ligado a um dos
pontos cruciais de colisão entre os meios de comunicação social e o sistema judicial: a liberdade de
imprensa e o segredo de justiça.

O segredo de justiça em Portugal, está consagrado constitucionalmente pelo artigo 20º da


Constituição da República Portuguesa (CRP) e pelo Decreto-lei nº48/2007, de 29 de agosto, artigo 86º
do Código Penal. Este pressupõe que notícias acerca de um caso em segredo de justiça que coloquem
em causa os suspeitos e que façam referências a elementos da vida privada dos envolvidos, possam
incorrer em situações de violação do mesmo. Por outro lado, o artigo 38º da CRP garante, também, a
liberdade de imprensa e o direito dos meios de comunicação social de informar a sociedade sobre os
assuntos que lhe importem e que sejam de relevo (Contreiras et al., 2016). Deste modo, parece existir
uma relação conflituosa entre o direito à informação e liberdade de imprensa, e o direito à presunção da
inocência dos indivíduos, uma vez que, podem colidir nos seus próprios propósitos. Se por um lado o
segredo de justiça visa garantir o sucesso da investigação e proteger as pessoas envolvidas no processo,
que presumindo-se inocentes podem ver a sua privacidade e honra denegridas, por outro, a liberdade de
imprensa e o direito à informação podem colocar estes aspetos em causa através da divulgação de
informações pouco fidedignas e que colocam os suspeitos, tal como exposto no ponto anterior, numa
posição de culpabilidade sem que a tenham oficialmente adquirido.

A violação do segredo de justiça por parte dos meios de comunicação social está relacionada,
também, com a própria conceção de tempo nos dois sistemas, que é outro dos pontos-chave na relação
de tensão entre os média e a Justiça. Se por um lado o sistema judicial e os processos que envolvem
exigem serenidade, ponderação e tempo para a apreciação dos factos e tomada de decisões; no tempo
jornalístico, por outro, é exigida urgência e «quase simultaneidade entre o acontecimento e a sua difusão,
correndo, nesta avidez de ser o primeiro a noticiar o evento, o risco de proceder a uma pouco criteriosa
recolha de informação e uma quase nula confirmação dessa informação» (Lourenço, 2013; 225). No
mesmo sentido, também Contreiras defende que:

«Nessa procura pela exclusividade, na luta contra a concorrência e no cumprimento das


“normas” do mercado cada vez mais presentes nas redações – e alimentadas pelas próprias
empresas e direções jornalísticas –, o jornalismo pode incorrer em violações do segredo de
justiça e de “outros direitos constitucionalmente consagrados como direitos fundamentais
da pessoa humana” (Évora, 2004: 2)» (Contreiras et al., 2016: 110).

Tal como nos dizem Fidalgo e Oliveira (2005), a Justiça e a Comunicação Social estão
«condenadas» a viver em conjunto em prol de princípios de transparência da administração da justiça e,
por isso, o «campo da justiça tem de se ajustar à velocidade da informação, sob pena do segredo de

18
justiça, tal como está fixado, ser «um dever que os jornalistas têm o direito de violar» (Lopes apud
Contreiras et al., 2016: 111).

19
20
CAPÍTULO 3. O ESTUDO DE CASO

1. METODOLOGIA DA INVESTIGAÇÃO

Esta dissertação tem como tema o caso do desaparecimento de Madeleine Mccann, em linha
com a mediatização do crime e da Justiça na imprensa portuguesa. Tendo como objeto de estudo as
notícias acerca do acontecimento, procurou-se responder à seguinte questão de partida: «De forma
representam os média, casos de Justiça e crime, a sua investigação e os atores envolvidos?». Partindo
das noções teóricas acerca da mediatização do crime e da Justiça, formularam-se as seguintes hipóteses:

- H1: Os meios de comunicação social, através dos seus discursos, podem ajudar a criar
representações de culpabilidade ou inocência acerca dos envolvidos;

- H2: Os meios de comunicação social, através das suas narrativas, ajudam a criar representações
sociais acerca do sistema de Justiça e da atuação policial;

- H3: A exposição mediática do caso estudado, apresenta caraterísticas da «justiça tablóide» e


dos «julgamentos mediáticos».

Para desenvolver os pontos enunciados, foram recolhidas as notícias acerca do caso em dois
jornais de grande circulação em Portugal: o jornal Público e o Correio da Manhã. A escolha destes dois
jornais, recai sobre as diferenças editoriais e público alvo, sendo que: o Público se apresenta como um
jornal mais intelectual, privilegiando os temas políticos, culturais e económicos (Mesquita e Rebelo,
1994) e, o Correio da Manhã, mais popular e sensacionalista, que enfatiza os temas desportivos, os
escândalos e o entretimento popular (Sparks, 2000). Com esta diferença jornalística, pretendeu-se uma
análise mais abrangente e, consequentemente, comparativa entre os dois jornais. As notícias para
análise, foram recolhidas em ambos os jornais entre o dia 3 de maio de 2007, data em que se deu o
desaparecimento, e dia 22 de julho de 2008, uma vez que o processo foi encerrado a dia 21 do mesmo
mês, tendo este espaço temporal sido escolhido de forma a obter uma análise alargada do acontecimento
e das suas representações.

As notícias do jornal Público, foram recolhidas através do Laboratório de Ciências da


Comunicação do ISCTE. Já as do Correio da Manhã, foram recolhidas através do arquivo da Biblioteca
Nacional de Portugal, num processo demorado tendo em conta a inúmera quantidade de jornais a que
foi necessário ter acesso. Deste processo foram excluídos editoriais e artigos de opinião, resultando 136
notícias do Público e 317 do Correio da Manhã, perfazendo um total de 453 notícias para análise.

A Análise de Conteúdo pode seguir abordagens quantitativas ou qualitativas em que, «(…) a


primeira obtém dados descritivos através de um método estatístico (…)» e «a segunda corresponde a

21
um procedimento mais intuitivo, mas também mais maleável e mais adaptável» (Bardin apud Dantas,
2016: 270). Nesta investigação, a técnica foi utilizada em ambas as vertentes descritas e, seguindo as
fases de Laurence Bardin (1977): a pré-análise, exploração do material e o tratamento de resultados,
inferência e interpretação.

Numa primeira fase, a quantitativa, as notícias dos dois jornais foram analisadas tendo em conta
o seu formato jornalístico e, para isso, foram categorizadas em 3 tipos, consoante o que melhor se
adequasse ao seu formato: breve, notícia de desenvolvimento, consoante a sua dimensão e importância
relativamente às restantes notícias, e reportagem.

Dentro da abordagem quantitativa, foi também analisado o tipo de fontes que deram origem à
informação difundida pelos jornais, entre oficiais e não-oficiais. As peças jornalísticas que
mencionassem indivíduos e/ou instituições ligadas ao caso de forma direta, foram categorizadas como
«oficiais» e, quando não existia menção às fontes ou estas provinham de outros meios de comunicação
social, por exemplo, foram interpretadas como «não-oficiais». Também a menção às fontes como «fonte
junto do processo» ou semelhante, foram igualmente categorizadas como não-oficiais, tendo em conta
que a origem da informação não seria atribuída a alguém ou a alguma instituição judicial de forma
transparente.

As notícias de cada jornal foram ainda, categorizadas consoante o seu tom predominante na
cobertura, entre «Neutro» e «Acusatório». A utilização destes dois indicadores, justifica-se pelo
propósito desta investigação, que tendo em conta que pretende aferir se os média ajudam a construir a
imagem dos envolvidos no processo e a imagem das próprias instâncias judiciais, o uso deste indicador
pode facilitar o processo interpretativo e ajudar a reunir as conclusões que aqui se pretendem. Para além
disso, foi também analisada a presença nas primeiras páginas de cada jornal, de modo a compreender a
importância que cada um dos jornais deu ao caso dentro das suas próprias edições.

Numa segunda fase, a qualitativa, de forma a facilitar o processo de comparação na cobertura


mediática dos dois jornais, ambos foram analisados quanto ao discurso em si. Foram desenvolvidas
categorias, segundo os temas que se demonstraram pertinentes ao longo da exploração do material, e os
que aqui se pretendem compreender. Tendo em conta que o principal objetivo desta dissertação é
analisar de que forma foi representado o caso nos média e, nomeadamente o sistema de justiça e os
envolvidos no processo, após a sua leitura flutuante, as notícias foram agregadas segundo 3 categorias:
«Média», «Envolvidos no Processo» e «Investigação». A categoria «Investigação», justifica-se pelo
facto de querermos aqui analisar de que forma foi representada a atuação policial e os aspetos de ordem
judicial; já a categoria «Envolvidos no Processo», foi criada a partir da expetativa de compreender de
que forma foram representados os atores dentro do caso, de forma a compreender como as suas imagens
foram construídas ao longo da narração do caso e se podem ter construído para a construção imagens de
culpabilidade ou inocência.

22
CAPÍTULO 4. ANÁLISE DE DADOS

1. ABORDAGEM QUANTITATIVA

Neste ponto da investigação, tal como definido na metodologia, as notícias de ambos os jornais
acerca do caso Maddie foram analisadas quantitativamente, quanto ao seu número, presença na capa e
formato, de modo a compreender o grau de destaque dado por cada um dos jornais analisados ao caso
nas suas edições. Dentro da abordagem quantitativa, foi também analisado o tipo de fontes mais
utilizadas na sua cobertura mediática, bem como o tom predominante de cada uma das notícias, de modo
a compreender se eram possíveis de observar marcadores discursivos que acusassem os McCann ou a
atuação policial. Desta análise, foi possível tecer algumas conclusões, que passarão de seguida a ser
enunciadas.

1.1 NÚMERO DE NOTÍCIAS E PRESENÇA NA CAPA

Neste ponto será feita uma análise geral das notícias de ambos os jornais, Público e Correio da
Manhã, quanto ao número de peças jornalísticas difundidas por estes, a sua distribuição temporal e
espaços ocupados nas suas edições.

Ao longo dos 14 meses analisados, compreendidos entre maio de 2007 e julho de 2008, o caso
esteve presente em ambos os jornais praticamente todos os meses. Apesar disso, foi o Correio da Manhã
(CM) o que mais noticiou o caso, com cerca de 70% do total de notícias analisadas. Já o jornal Público,
apesar de também ter regularmente noticiado o caso Maddie, como ficou conhecido, formou cerca de
30% do total de 453 notícias.

O CM manteve uma cobertura do caso regular, noticiando quase diariamente o acontecimento


e dedicando um grande número de páginas ao caso (480 páginas em 317 peças jornalísticas). Através da
Figura 1 (em anexo), é possível observar a constante cobertura do caso desde o seu início, atingindo
picos nos momentos em que se deram os desenvolvimentos mais importantes. Nomeadamente no mês
de maio, o mês em que se deu o desaparecimento em si; agosto, altura em que os cães pisteiros 2
detetaram vestígios ligando, alegadamente, os McCann ao desaparecimento; e setembro, aquando da
constituição dos pais da criança como arguidos.

O Correio da Manhã manteve uma cobertura quase diária nos meses a seguir ao
desaparecimento, apenas se demonstrando uma diminuição a partir de janeiro de 2008, aumentando

2
Cães pisteiros da polícia inglesa, que detetaram vestígios biológicos no apartamento dos McCann e na sua
carrinha.

23
novamente em abril e julho do mesmo ano, após o encerramento do inquérito judicial. A cobertura
sistemática do referido jornal, pode associar-se às características enunciadas no enquadramento teórico
relativamente ao conceito de serialização proposto por Surette, que nos diz que os meios de comunicação
social tendem a fazer a cobertura de casos criminais como se de mini-séries se tratassem, com conteúdos
a partir do que já se sabe sobre o caso e sobre o que acontecerá, como as «cenas dos próximos episódios».
Esta característica, foi bastante observada na cobertura do CM uma vez que, por diversas vezes, as
notícias nada conferiam de novo ao caso, apenas davam conta dos próximos passos da investigação ou
do que poderia ocorrer, como é o caso das notícias que davam conta dos prazos previsíveis para o fim
do segredo de justiça ou de novos interrogatórios, por exemplo, que muitas vezes não se vieram a
verificar dentro dos parâmetros estabelecidos.

O jornal Público, por sua vez, apesar de contar com um número substancialmente menor de
peças comparativamente ao CM, também manteve o caso na sua agenda durante os 14 meses e dedicou
um total 158 páginas ao caso, distribuídas por 136 peças jornalísticas. Através da Figura 1, em anexo,
podemos verificar o número de notícias publicadas ao longo dos meses em análise. Verifica-se uma
grande cobertura no mês de maio, tal como no CM. No entanto, e ao contrário do jornal em comparação,
diminuiu a sua cobertura nos meses seguintes, aumentado em agosto e setembro de 2007, devido às
pistas descobertas pelos cães pisteiros na investigação e à constituição dos McCann como arguidos no
processo. O número de publicações relativamente ao caso foi decrescendo nos meses seguintes,
verificando-se um pico em abril de 2008, ainda assim, apenas com 8 notícias publicadas e em julho do
mesmo mês, devido ao encerramento do inquérito.

É de salientar, também, a presença do caso nas primeiras páginas de cada um dos jornais. A
pertinência deste aspeto, é justificável pelo facto das primeiras páginas serem como que a «janela» para
o jornal e darem conta dos conteúdos noticiosos mais relevantes em cada uma das edições.

Através do Figura 2 (em anexo), é possível observar o destaque dado por cada um dos jornais
ao caso em análise. O Correio da Manhã, em 317 notícias, fez menção ao caso na primeira página em
180 edições, cerca de 56% do total de notícias. Já o Público, mencionou o desaparecimento de Madeleine
McCann na capa das suas edições 31 vezes, cerca de 23% do total de notícias. Deste indicador observa-
se, uma vez mais, um destaque substancialmente maior nas edições do Correio da Manhã relativamente
ao jornal Público.

A diferença quantitativa na cobertura dos dois jornais, bem como a presença do caso na capa,
pode ser justificada precisamente pela natureza jornalística de cada um, tendo em conta que se
encontram em polos opostos jornalisticamente.

24
1.2 FORMATO

Tal como mencionado na descrição da metodologia, cada uma das notícias analisadas foi
categorizada consoante o seu género jornalístico, ou formato. As categorias usadas para esta análise
foram: Breve, Notícia de Desenvolvimento e Reportagem. A distinção entre as duas primeiras
categorias, foi realizada tanto através do número de parágrafos e dimensão do texto, como pelo destaque
relativamente a outras notícias, quando aplicável, que constassem nas mesmas páginas em cada um dos
meios impressos.

Na Figura 3, em anexo, pode observar-se a distribuição quantitativa das peças jornalísticas de


cada jornal relativamente ao seu género e consoante as categorias descritas.

O género que mais se verificou na cobertura do caso no CM, foi o das notícias de
desenvolvimento, observando-se que as notícias de grande teor informativo constituíram cerca de 66%
do corpus em análise. A este seguiu-se o formato breve, com cerca de 30% e as reportagens, com 4%.

Já no Público, e contrariando as tendências observadas no primeiro jornal, as notícias de índole


breve foram o tipo mais privilegiado, com uma percentagem de aproximadamente 60%. Das notícias
breves, 16% estavam contidas à secção do jornal “Q.B”, que nunca dispensava mais do que 3 linhas ao
caso do desaparecimento e, 4% em pequenas notas de cabeçalho, sem grande destaque dentro do próprio
jornal. Ao formato breve, seguiram-se as notícias de desenvolvimento (36%), e as reportagens,
contabilizando apenas 4% do total de notícias analisadas.

Através destes números, é possível inferir que o Correio da Manhã deu maior destaque ao caso
do desaparecimento de Madeleine McCann, na Praia da Luz em maio de 2007, com 209 notícias de
desenvolvimento. Por sua vez, o jornal Público, manteve uma cobertura mais distanciada no caso, com
menos notícias publicadas e dando primazia à exposição breve das mesmas, com 81 notícias neste
formato que foi o que maior expressão assumiu na cobertura do caso. No que diz respeito às reportagens,
ambos os jornais apresentaram números reduzidos, o CM com 13 reportagens acerca do caso e o Público
com 6.

1.3 AS FONTES

No que diz respeito às fontes e tal como foi mencionado no enquadramento teórico, estas são
fundamentais na produção noticiosa e na atividade jornalística. São as fontes que dão origem à
informação em bruto que, transformada em notícia e por sua vez em acontecimento, pode influenciar a
forma como a realidade é construída.

25
De forma a verificar tanto a qualidade da informação, como legitimidade das fontes de onde
esta surgiu, procurou-se analisar o tipo de fontes mais utilizadas na cobertura mediática do caso em
estudo em ambos os jornais. Como descrito anteriormente na definição da metodologia de investigação,
estas foram categorizadas entre «Oficial» e «Não-oficial».

Após a análise das notícias que formavam o corpus total desta investigação, verificou-se que,
em ambos os jornais, foram as fontes não-oficiais as que mais marcaram presença ao longo do período
analisado (Figura 4), com uma percentagem de 77% do total de notícias analisadas.

No Correio da Manhã, das 317 notícias redigidas entre maio de 2007 e julho de 2008, 276
continham informações maioritariamente provenientes de fontes não-oficiais (Figura 5), perfazendo
cerca de 87% do total. Neste jornal, apenas 13% das notícias estavam marcadamente associadas a
entidades como a Polícia Judiciária ou outras entidades judiciais relevantes e fidedignas e, como tal,
oficiais.

O Público, por sua vez, ofereceu aos seus leitores uma cobertura mais oficializada do caso do
desaparecimento de Madeleine McCann e dos seus desenvolvimentos. Do total de 136 notícias, apesar
de 55% serem provenientes de fontes não-oficiais, em comparação com a percentagem do CM, o recurso
a fontes oficiais foi substancialmente maior, cerca de 45% em comparação aos 13% do primeiro.

Desta perspetiva, pode ser constatada uma cobertura mediática do caso mais transparente e
cuidada por parte do Público, com maiores esforços em fornecer aos seus leitores uma informação
devidamente verificada e identificada a entidades relevantes comparativamente ao CM. Aspeto já
esperado consoante a natureza editorial de cada um dos jornais.

Relativamente às fontes de informação utilizadas, outra vertente analisada e que é importante


realçar, foi o recurso a termos do tipo «fonte junto do processo». Como mencionado anteriormente, as
fontes de informação desta forma referenciadas, foram categorizadas como não-oficiais e contabilizadas
em cada um dos jornais.

No CM, da percentagem de fontes não-oficiais, cerca de 32% estavam caraterizadas como fontes
junto do processo e, no jornal Público, a sua percentagem foi de cerca de 19%. Tal como referenciado
no capítulo de enquadramento teórico, a informalidade na relação das entidades policiais e judiciais com
os média, leva por diversas vezes à divulgação de informação sob forma «anónima». No caso específico
do desaparecimento de Maddie, esta foi uma forma bastante utilizada para legitimar o discurso
jornalístico. No entanto, e partindo da perspetiva enunciada por Schlesinger, o uso deste tipo de fontes
pode ter consequências na produção de conhecimento acerca do caso e dos seus envolvidos,
comprometendo a sua privacidade, reputação e contribuindo para uma suspeição acerca dos alegados
envolvidos no processo, aspeto que será analisado posteriormente no decorrer deste capítulo.

26
1.4 TOM DE COBERTURA

Outro aspeto analisado durante esta investigação, foi o tom predominante na cobertura do Jornal
Público e Correio da Manhã. Tendo em conta que, o foco principal deste trabalho é compreender de que
forma os meios de comunicação social representam eventos de ordem criminal e, nomeadamente, a
forma como podem construir imagens negativas dos envolvidos no processo e do sistema judicial,
também este ponto se afigurou relevante categorizar.

Em ambos os jornais, cada uma das notícias analisadas foi categorizada consoante o seu tom
predominante, entre «Acusatório» e «Neutro» e, dessa categorização, foi possível tecer algumas
considerações que passarão, de seguida, a ser enunciadas.

Tendo em conta o corpus total em análise, foi possível verificar que na cobertura do caso em
análise, foi o tom neutro o predominante, com cerca de 81% (Figura 6). No entanto, os dois jornais
apresentaram tons de cobertura distintos.

O CM, do seu total de notícias acerca do desaparecimento, 75% tinham um tom predominante
neutro, sem marcadores discursivos que pudessem ser vistos como acusações tanto à investigação como
aos envolvidos no processo (Figura 7). Quanto ao tom acusatório, em 25% das notícias podiam ser
observados juízos de valor ou formas discursivas que passavam aos seus leitores culpas, acusações e
caraterizações negativas. Dentro das notícias de tom predominantemente acusatório, 84% foram contra
os McCann e amigos, 6% contra a atuação policial e 10% quanto ao envolvimento de Robert Murat3 no
caso. Neste ponto não iremos desenvolver as formas como o tom acusatório se materializou
relativamente a estes agentes, uma vez que esta vertente será mais detalhadamente analisada mais à
frente no decorrer deste capítulo.

Já o jornal Público, do seu total de 136 notícias acerca do caso e dos seus desenvolvimentos, a
esmagadora maioria continha um tom predominantemente neutro, contando com uma percentagem de
95%, que se pode observar através da Figura 7 em anexo. O tom acusatório configurou 5% da sua
cobertura e que, materializou um total de 7 notícias. Tal como no CM, dentro do tom acusatório, foi
possível ainda observar que 5 das 7 notícias continham informações que podiam colocar a atuação
policial em causa e 2 que continham discursos negativos quanto aos McCann.

Comparando os dois jornais analisados, podemos concluir que ambos recorreram a um tom
predominantemente neutro nas suas representações do caso e, nomeadamente nas diligências e
desenvolvimentos do mesmo, demonstrando que a maioria da cobertura foi feita de uma forma

3 Robert Murat – primeiro suspeito no caso Maddie.

27
meramente expositiva e informativa do caso em si. No entanto, podemos verificar algumas diferenças
percentuais nas notícias categorizadas como acusatórias. Neste contexto, foi o CM, que demonstrando
o seu carácter sensacionalista, orientou a sua cobertura do caso de forma acusatória, com uma
percentagem de 25% em comparação com a de 5% do Público.

2. ABORDAGEM QUALITATIVA

Tal como mencionado na definição da metodologia desta investigação, para além da análise
quantitativa do corpus de notícias, este foi ainda analisado numa vertente qualitativa. Se a quantitativa
serviu para melhor esclarecer aspetos como a forma, os tipos de fontes utilizadas, o destaque dado ao
caso e o tom predominante da cobertura, a qualitativa deu-se pela necessidade de interpretar os
conteúdos explícitos dos discursos no Público e Correio da Manhã.

Tendo em conta que o principal objetivo desta dissertação, é compreender de que forma os
meios de comunicação social representam acontecimentos relacionados com o crime e o sistema de
Justiça, bem como a forma como estes ajudam a criar imagens de culpabilidade ou inocência dos
envolvidos no processo, a Análise de Conteúdo no seu pólo qualitativo foi imperativa para desenvolver
os temas propostos em profundidade.

Para isso, o discurso das notícias de cada um dos jornais foi analisado e foram retidas as formas
como o caso foi representado ao longo dos 14 meses, quais os principais temas abordados, como foram
representados os McCann ao longo do tempo e as questões relacionadas com o sistema judicial e a
atuação policial. Dessa análise, resultaram 3 categorias, «Média», «Envolvidos no Processo» e
«Investigação», que passaram de seguida a ser expostas.

2.1 MÉDIA

A cobertura mediática no jornal Público foi feita de uma forma bastante distanciada e objetiva:
características já enunciadas na análise quantitativa. Face aos desenvolvimentos do caso e diligências
que iam sendo levadas a cabo pela PJ, as notícias analisadas demonstraram que o seu discurso não
revelou momentos em que foi possível observar juízos de valor.

No entanto, um dos aspetos mais observáveis na cobertura do Público, foi o realce do


envolvimento dos próprios meios de comunicação no caso- «houve outros casos de histeria mediática.

28
Mas nenhum como este4». Desde o seu início, que as notícias do referido jornal se focaram na agitação
que o desaparecimento de Maddie exerceu nos meios de comunicação social, tanto no que se refere à
sua presença na Praia da Luz como às informações difundidas por estes. Neste contexto, o Público parece
ter atribuído maior destaque ao próprio frenesim mediático em torno do caso do que ao caso em si.

Foram várias as notícias em que o Público criticou o aparato mediático à volta do


desaparecimento de Madeleine McCann, dando conta, por diversas vezes, da insatisfação e
«enfadamento», nomeadamente dos locais da Praia da Luz pela presença constante da imprensa no local,
questionando tudo e todos naquela localidade, bem como a má publicidade que lhe ofereceu. Neste
contexto, o Público, esforçou-se em explicar e questionar o porquê da atenção exagerada que o caso
estava a receber desde muito cedo:

«Muitos estudos foram feitos sobre os interesses dos media. Também sobre os seus
mecanismos obscuros e as suas perversões. Especialistas falam, desde há anos, num
fenómeno que designam por SMBD, “Síndroma da Menina Bonita Desaparecida”. Há
muitos casos, alguns flagrantes, de cobertura mediática desproporcionada de
desaparecimentos de meninas loiras (…). A teoria da SMBD não explica tudo. Algo está a
mudar na relação das audiências com os media? Estamos perante uma nova geração de
reality shows que se alimenta de dramas verdadeiros? Trata-se do último grau do
voyeurismo ou entrámos numa nova era em que as populações e os media dão as mãos na
busca da justiça?»5

No Correio da Manhã, apesar de em diversas notícias serem os média internacionais a sua


principal fonte de informação, a menção ao papel dos meios de comunicação social foi observável, com
uma intensidade substancialmente mais reduzida relativamente ao Público. Ao longo da cobertura do
caso, o CM apresentou inúmeras vezes a secção «O Caso Visto em Inglaterra», que dava conta das
informações transmitidas por jornais ingleses. Apesar disso, e de também se focar nos próprios meios
de comunicação social, o CM deu prioridade a outras questões no seu enquadramento do caso, como na
caracterização de suspeitos e diligências policiais.

4 Público, 03/06/2007 - Página 12.

5 Público, 03/06/2007 - Página 12.

29
2.2 ENVOLVIDOS NO PROCESSO

Na categoria «Envolvidos no Processo», pretendeu-se analisar de que forma as personagens


principais do caso foram retratadas. Nesse contexto, existiu uma tentativa de compreender de que forma
foram os McCann representados ao longo das narrativas, uma vez que se demonstraram como uma das
peças chave no caso, recebendo grande destaque por parte dos meios de comunicação social.

Nas notícias recolhidas, analisou-se de que forma as suas imagens foram construídas e como se
foram transformando à medida que iam sendo revelados os novos desenvolvimentos que, muitas vezes,
foram colocando os pais de Maddie no centro da questão como alegadamente responsáveis pelo
desaparecimento.

O jornal Público não demonstrou grande interesse em explorar a temática dos McCann,
interessando-se noutros aspetos do caso, como exposto no ponto anterior. Dentro da questão dos média,
o Público pareceu desde cedo demonstrar interesse em noticiar o aparato mediático, alimentado
inclusivamente pelos próprios McCann.

«Para transmitir à comunicação social que o drama está a ser vivido com alguma
serenidade, o casal McCann passeou-se com os outros dois filhos pela mão, junto ao
aldeamento, deixando-se filmar e fotografar. E, ao fim de algum tempo, numa segunda
operação de charme- de mãos dadas, e a uma distância suficiente para serem captadas
imagens- voltaram a aparecer em público.»6

No entanto, entre junho e junho de 2007, no que diz respeito aos McCann, nas suas poucas
referências, o Público pareceu dar enfoque à sua fé, nas várias idas à missa e até na visita ao Papa.
Durante este período, que antecedeu a constituição dos pais como arguidos no processo, o seu
sentimento de «culpa» por terem deixado as crianças sozinhas foi noticiado tanto no Público como no
CM. Em ambos os jornais, os pais de Maddie no início do caso foram caraterizados mais como umas
vítimas das circunstâncias, do que contendo alguma culpa, apesar de nos dois jornais ter sido dado
destaque ao facto de terem deixado as crianças sozinhas no apartamento.

Tanto no Público como no CM, existiram, ainda, diferenças na caracterização do casal: Kate foi
desde cedo caracterizada como «frágil», «emocional» e direcionada à família, num discurso mais
emotivo «Kate McCann- que viveu o pior dia da mãe da sua vida- nunca largou o ursinho cor-de rosa

6 Público, 06/05/2007 – Página 8.

30
de peluche da filha»7-Gerry, caracterizado como mais forte e direcionado à carreira, foi mencionado de
forma direta pelas suas declarações, transparecendo uma imagem de firmeza e determinação.

No CM, existiram maiores esforços em caracterizar os McCann, fornecendo várias informações


acerca da sua vida pessoal e profissional, apoiando-se em depoimentos de vizinhos do casal para criar a
sua imagem- «protetores e amigos dos 3 filhos»8. Até agosto de 2007, pareceu existir inclusivamente
um esforço por parte do CM em deixar claro que era a tese de rapto a mais provável, marcando a posição
de que o casal nada teria a ver com o desaparecimento da filha.

O discurso em defesa dos McCann começou a mudar a partir de agosto de 2007, aquando da
chegada dos cães pisteiros de Inglaterra e a descoberta de vestígios no apartamento dos McCann, no
Oceon Club, e na sua carrinha, alugada quase um mês depois do desaparecimento. A teoria de rapto foi
abandonada e deu-se início à representação de que a menina havia, afinal, morrido no apartamento.

A postura adotada pelo Público, nesta fase, manteve-se distanciada e sem procurar atribuir culpas
de homicídio aos pais da criança, procurou demonstrar várias vezes, através do discurso policial que
estes não seriam suspeitos, «a Judiciária reafirma que os pais da criança não são suspeitos»9. Face aos
vestígios encontrados no apartamento, o jornal pareceu focar-se no facto de este já ter sido limpo e
alugado por outras pessoas, bem como em apresentar algumas interrogações- «Como é que os cães
britânicos desvendaram vestígios onde a Polícia científica recolheu amostras e nada encontrou?10».

A preocupação em manter uma cobertura sem recurso a juízos de valor, manteve-se no Público
até mesmo depois dos McCann serem constituídos arguidos, em setembro de 2007. Neste ponto, o
Público, preocupou-se em descrever as provas que existiam contra os McCann e as questões que terão
ficado sem resposta no interrogatório a Kate. Apesar disto, demonstrou esforços em deixar claro que as
provas não seriam suficientes para acusar o casal e, em declarações que esclareciam a natureza da sua
acusação, pode ler-se «Os pais de Madeleine não são suspeitos de homicídio, mas de ocultação de
cadáver. PJ insiste no acidente11».

O Correio da Manhã, por sua vez, apresentou diversas formas discursivas que apontavam para os
McCann como responsáveis pela morte da filha. Foram concentrando esforços em descrever as
contrariedades alegadamente encontradas nos depoimentos do casal e dos amigos que os acompanhavam

7 Correio da Manhã, 07/05/2007 - Página 6.

8 Correio da Manhã, 05/05/2007 – Página 4.

9 Público, 19/08/2007 – Página 9.

10 Público, 07/08/2007 – Página 5.

11 Público, 11/08/2007 – Página 6.

31
durante as férias, descrevendo-os com uma «enorme falta de rigor» e afirmando que nas horas que
antecederam ao desaparecimento «ninguém viu Madeleine com vida para além dos pais12». No discurso
do CM, Kate foi especialmente lesada, chegando a publicar que esta «sempre levantou dúvidas aos
investigadores13». A partir da descoberta dos vestígios no apartamento e na carrinha dos McCann, e da
constituição dos pais como arguidos, Kate passou de mãe sofredora a «histérica» e «descontrolada», e
até mesmo agressiva com os filhos. Apesar de Kate e Gerry terem sido ambos constituídos arguidos,
observou-se no CM uma distinção entre os dois, sendo sempre acrescentadas culpas à mulher- «Kate
parecia ter momentos de agressividade perante os filhos, sendo o pai, embora mais ausente, quem
revelava maior controlo emocional14».

Ao contrário do Público, que se afastou de especulações e fez questão de esclarecer que os pais
seriam suspeitos por ocultação de cadáver, a divulgação dos McCann e das suspeitas sobre si foram
descritas de forma diferente pelo CM. O Correio da Manhã noticiou ao longo do tempo, a constituição
dos pais como arguidos como se as provas existentes fossem completamente claras, acusando-os de
matar e esconder o corpo da filha.

«Kate e Gerry são formalmente suspeitos da morte e da ocultação do cadáver de Madeleine.


O sangue encontrado no carro do casal, que só foi alugado 25 dias depois de a menina ter
desaparecido, fez mudar todo o cenário. A convicção da Polícia Judiciária é agora de que
foram os pais que mataram a criança, esconderam o corpo e depois simularam o rapto.15»

Contrariando a tendência observada no Público, que reduziu a sua cobertura nos meses seguintes
à constituição dos McCann como arguidos, devido à inexistência de desenvolvimentos importantes no
caso, o CM manteve a sua cobertura quase diariamente. Durante esse período, o CM concentrou esforços
em relatar todo e qualquer pormenor adjacente ao caso. Os avistamentos, as pistas várias vezes sem
fundamento, os passos e dia-a-dia dos McCann em Inglaterra e muita informação repetida e especulativa.
Os McCann, neste período viram a sua vida publicada, especialmente Kate, que viu o seu diário ser
divulgado, a sua saúde mental posta em causa, os seus hábitos de compra expostos como um «vício» e
até a sua vida na época da faculdade vasculhada, noticiando o CM que esta preferia as atividades
noturnas e o álcool aos estudos.

12 Correio da Manhã, 07/08/2007- Página 4

13 Correio da Manhã, 07/10/2007 – Página 5.

14 Correio da Manhã, 10/10/2007 – Página 4.

15 Correio da Manhã, 98/10/2007 – Página 4.

32
2.3 INVESTIGAÇÃO

A investigação do caso e as diligências levadas a cabo pela Polícia Judiciária, foram um dos
principais temas noticiados, tanto no Jornal Público como no Correio da Manhã.

No Correio da Manhã, a cobertura da investigação foi feita de forma exaustiva. Ao longo dos
14 meses analisados, além da cobertura dos passos do casal McCann e da exploração das suas vidas
privadas, cada passo da investigação foi esmiuçado ao pormenor, dando conta de cada prova, de cada
interrogatório, de cada passo da Polícia Judiciária. E, quando nada de novo havia para noticiar, o CM
repetia informação, sem algo de novo lhe acrescentar. Neste contexto, a secção «Filme do Dia», marcou
presença ao longo de toda a cobertura, um espaço que ao longo do tempo ia dando conta dos passos da
investigação.

O CM, por diversas vezes publicou notícias acerca da polícia e da sua atuação, que pareciam
colocar em causa a sua capacidade e competência para lidar com casos deste tipo- nomeadamente, se a
polícia teria meios para fechar fronteiras ou estradas, respondendo que «Não. Tanto a GNR e a PSP do
Algarve têm falta de meios16». Deram, também, destaque ao facto de a PJ não ter uma base de dados de
pedófilos, dependendo por isso das autoridades inglesas - «PJ anda há três anos para criar uma base de
dados sobre pedófilos», podia ler-se em letras garrafais na edição de 9 de maio, 2007. Para além disso,
o CM pareceu, ainda, dar destaque ao tratamento diferenciado que o desaparecimento de Maddie recebeu
relativamente a desaparecimentos de crianças portuguesas, como Joana Cipriano, apoiando-se em
declarações do advogado da mãe, então presa: «A Joana era portuguesa e pobre e a Madeleine não é
portuguesa e é de condição superior. Há embaixadores, há helicópteros, há tudo. A Joana só teve direito
a uma escavadora17».

Verificou-se, também, uma cobertura detalhada de polémicas que se desenvolveram à volta da


investigação do caso. Dentro dessas polémicas, exploraram a temática da demissão de Gonçalo Amaral
da posição de coordenador da PJ com dramatismo: «fazia 48 anos e a prenda de aniversário da polícia
que serve há 17 anos já se adivinhava desde as primeiras horas da manhã18». Ao longo de todo o período
analisado, o afastamento deste elemento, foi apresentado como se tivesse origem em pressões inglesas,
por este saber «demais» e ser bastante criticado em Inglaterra, sendo até mencionado como «bode
expiatório» da situação. Este aspeto, pode ter contribuído para a representação da PJ como uma
instituição permeável a pressões exteriores, sem capacidade para as evitar.

16 Correio da Manha, 07/05/2007 - Página 4.

17 Correio da Manhã, 09/07/2007- Página 5.

18 Correio da Manhã, 03/10/2007 – Página 6.

33
Apesar disso, verificou-se, por diversas vezes, a presença de um discurso de defesa da Polícia
Judiciária ao longo da sua cobertura, por exemplo, através de declarações de repórteres ingleses, que
davam conta de que, «reparos à polícia são injustos19» ou, até mesmo através da voz de Cavaco Silva-
«seria difícil fazer mais do que tem vindo a ser feito20». Destacaram, também, factos como o adiamento
de férias por parte dos investigadores, para continuarem a trabalhar no caso e o número de meios
envolvidos, bem como resultados de sondagens em que os portugueses, na sua esmagadora maioria,
encaravam o trabalho policial como positivo.

Outro aspeto bastante noticiado acerca da investigação pelo CM e que é importante realçar, é o
dos seus discursos acerca dos vestígios de ADN encontrados. Este jornal, ao longo da sua cobertura, foi
construindo as suas representações acerca de tais provas, como se estas fossem inequívocas, infalíveis.
Em várias das suas edições, estas representações foram construídas através de afirmações como: «há
uma correspondência de 78,95% do perfil genético de Maddie relativamente ao vestígio de sangue
encontrado no carro usado pelos McCann21» e «foram encontrados vestígios de sangue compatíveis em
quase 100% com o da menina desaparecida22», passando a imagem de que os resultados seriam claros,
acusando os McCann. Para além disso, o CM estabeleceu um paralelismo com séries norte-americanas,
acerca de investigações criminais para explicar a técnica de análise usada, descrevendo-a como «A
técnica da série ‘CSI’ 23 », explicou a Low Copy Number, como a técnica popularizada pela série
televisiva, ficcionando as análises do caso Maddie e apelando às representações que o público tem
através das séries televisivas.

Ao contrário do Correio da Manhã, a cobertura do Público da investigação e do seu meio


envolvente, tentou evitar tendências sensacionalistas e informações especulativas. No entanto, tal como
observado no CM, este jornal noticiou alguns factos que de certa forma podiam colocar a atuação
policial em causa, nomeadamente aquando da descoberta de vestígios no apartamento dos McCann:
«Porque é que a Polícia Judiciária não selou logo o quarto?24». Este aspeto foi noticiado várias vezes,
incluindo na sua edição de 3 de fevereiro de 2008 em que, inclusivamente, tal como o CM, interrogavam:
«O afastamento do inspector Gonçalo Amaral da diretoria de Portimão não se deveu em parte, ao

19 Correio da Manhã, 06/05/2007 - Página 8.

20 Correio da Manhã, 13/05/2007- Página 33.

21 Correio da Manhã, 09/09/2007 – Página 4.

22 Correio da Manhã, 16/09/2007 – Página 5.

23 Correio da Manhã, 30/11/2007 – Página 8.

24 Público, 07/08/2007 – Página 5.

34
reconhecimento dessas falhas da investigação?25». Para além disso, destacou a grande intervenção do
Estado inglês no caso, dando conta de eventuais pressões exteriores à investigação e, que o
«Esclarecimento do caso Maddie teria consequências políticas “muito chatas”26».

Ainda assim, o Público pareceu manter um discurso maioritariamente positivo acerca da atuação
policial nas suas edições, logo desde início, apoiando-se em declarações de entidades de relevo como a
Ministra dos Negócios Estrangeiros britânica que, «deu conta do reconhecimento pelo serviço prestado
pela polícia portuguesa27» e também, do então embaixador britânico em Portugal, que caracterizada o
trabalho das autoridades «verdadeiramente excepcional28». Apresentaram resultados de sondagens sobre
a atuação policial que a apontavam como positiva, deram, também, conta dos esforços «nunca antes
vistos» da polícia e no seu trabalho contínuo da PJ - «os investigadores continuam a trabalhar no caso
até altas horas da noite (…). Nas instalações da PJ, as luzes não se apagam senão muito tarde29».

Ao contrário do Correio da Manhã, o Público pareceu procurar manter uma postura distanciada
quanto à forma como representaram as análises de ADN enquanto provas factuais: enquanto o CM,
durante a sua cobertura, representou tais evidências como decisivas para o caso e para a tese de
homicídio, o Público procurou deixar claro que estas seriam «inconclusivas para a investigação30». Este
último jornal, procurou em várias das suas edições explicar todo o processo à volta do ADN,
esclarecendo como é feita a sua análise e interrogando se é possível dar certezas absolutas de
corresponder a determinada pessoa, respondendo que «nunca se pode falar em 100 por cento de certeza,
uma vez que para tal seria preciso testar toda a população mundial31».

Além disso, o Público ao longo de todo o período em análise, demonstrou grande preocupação
em esclarecer questões relacionadas com o sistema de Justiça em Portugal. Nas suas edições, o esforço
para manter os seus leitores a par de termos jurídicos como «arguido», «acusado», e «testemunha»,
sobre o significado do termo de identidade e residência e acerca do segredo de Justiça e as suas
implicações, foi notória.

25 Público, 03/02/2008- Página 9.

26 Público, 06/04/2008- Página 10.

27 Público, 15/05/2007 – Página 10.

28 Público 15/05/2007- Página 10.

29 Público, 26/11/2007- Página 4.

30 Público, 10/10/2007 – Página 10.

31 Público, 14/09/2007- Página 11.

35
36
CONCLUSÃO

O caso do desaparecimento de Madeleine McCann, foi um dos casos mais mediáticos de que há
memória em Portugal, tendo sido explorado pelos meios de comunicação social durante um longo
período de tempo. A espetacularização de que este caso foi alvo e que o tornou em acontecimento
mediático, pode justificar-se, precisamente, pela sua noticiabilidade, cujos factores foram descritos no
enquadramento teórico deste trabalho. Este acontecimento, conteve em si diferentes valores-notícia, cuja
conjugação o tornou especialmente noticiável e num dos casos mais apetecíveis para os meios de
comunicação social, que lhe dedicaram longas horas de emissão e inúmeras páginas de jornal. Dentro
desses valores-notícia, podemos destacar a sua imprevisibilidade, que tendo em conta o panorama
criminal em Portugal e o facto deste tipo de casos não serem comuns, foi determinante. A este, podemos
acrescentar o facto de se ter apresentado como um acontecimento dramático, uma vez que foi um caso
muito suscetível de personalização e expressão de sentimentos. Para além destes, podemos ainda
acrescentar ao caso o valor-notícia da periodicidade, e segundo Surette, uma vez que este acontecimento
forneceu várias informações e matéria noticiável ao longo do tempo; e o da consonância, sendo que
através dele, foi possível estabelecer ligações e narrativas acerca de outros casos de desaparecimentos.
A estes valores-notícia, podemos acrescentar-lhes a proximidade geográfica e a disponibilidade que,
neste caso, acabaram por estar relacionados, tendo em conta que o caso se passou em Portugal e por isso
interessou aos média portugueses e, pelo mesmo motivo, foi um caso cujas informações foram de fácil
acesso– um caso que permitiu aos meios de comunicação social, preencher os seus espaços sem exigir
muitos recursos.

Os valores-notícia, que acabaram de ser enunciados foram para ambos os jornais, um critério
para a cobertura do caso de Madeleine McCann, tendo em conta o destaque dado ao acontecimento.

Neste seguimento, e procurando responder à questão «De forma representam os média, casos
de Justiça e crime, a sua investigação e os atores envolvidos?», após a revisão da literatura sobre o tema,
foram analisadas as notícias acerca deste caso em dois jornais portugueses de grande circulação: Correio
da Manhã e Público. Através da Análise de Conteúdo, primeiramente numa abordagem quantitativa, na
qual se analisou o número de peças acerca do caso, formato, fontes e tom da cobertura e, seguidamente,
numa abordagem quantitativa, na qual se analisaram os discursos acerca dos temas a que deram mais
destaque (Média, Envolvidos no Processo e Investigação), foi possível observar algumas diferenças e
tendências na cobertura do caso em análise.

No Correio da Manhã, o caso foi noticiado de forma exaustiva, dando conta de cada
desenvolvimento na investigação, de cada passo dos McCann e de cada novo facto que fosse surgindo,
acrescentasse ele ou não informações relevantes para a sua construção. O referido jornal, deu grande
destaque ao caso, noticiando-o praticamente todos os dias nos meses que aqui foram analisados.

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Dedicou-lhe muito espaço nas suas primeiras páginas, bem como nas suas edições, se tivermos em conta
que o formato privilegiado foram as notícias de desenvolvimento. Em comparação, o jornal Público
pareceu não lhe dar tanta importância, com um menor número de notícias ao longo dos 14 meses
analisados, não dedicando tanto espaço a este acontecimento, tanto nas suas edições, prevalecendo o
formato breve, como nas suas primeiras páginas.

Outra diferença assinalável entre os dois jornais, foi o tom predominante das suas coberturas.
Apesar de em ambos os jornais o tom neutro ter sido o mais observado, foi possível estabelecer algumas
diferenças entre estes. Posto isto, enquanto no Correio da Manhã, 25% das suas notícias continham um
tom predominantemente neutro, em comparação com o Público, este pareceu exercer mais juízos de
valor relativamente aos envolvidos no processo e à atuação policial.

Os resultados quantitativos relativamente ao tom predominante de cada um dos jornais, podem


aqui ser interligados à análise qualitativa feita acerca dos envolvidos no processo. Neste contexto, e
tendo em conta que 84% das notícias com tom acusatório no Correio da Manhã se dirigiam em acusações
aos pais de Maddie, podemos concluir que este jornal apostou esforços em construir uma imagem de
culpabilidade acerca destes. Ao longo de toda a sua cobertura, e após a constituição destes como
arguidos no processo, o CM não se poupou em esforços para acusar os pais da criança desaparecida,
especialmente a mãe, assim que começaram a surgir informações que os pudessem ligar ao seu
desaparecimento, utilizando cada indício como se à partida se materializasse como prova factual contra
os McCann. Para ajudar a construir estas representações, o CM recorreu maioritariamente a fontes não
oficiais e, sobretudo, sob o anonimato de designações como «fonte junto do processo», que legitimassem
a informação que estava a ser transmitida. Por sua vez, e tendo em conta a sua percentagem
substancialmente menor de notícias de tom acusatório, o Público não demonstrou interesse em construir
a imagem de culpabilidade dos McCann parecendo, pelo contrário, concentrar-se em deixar claro que
tipo de acusações podiam surgir e que, as provas não se apresentavam como elementos suficientemente
claros ou infalíveis para que estes pudessem ser acusados.

No que diz respeito a representações acerca da atuação policial e da investigação, que tal como
referido na análise dos resultados desta pesquisa, foi um dos principais temas expostos em cada um dos
jornais, foi possível tecer algumas conclusões. Em ambos os jornais, os discursos relativamente à
atuação policial apresentaram-se como maioritariamente positivos, ao divulgarem resultados de
sondagens que davam conta da satisfação acerca desta e do relato dos esforços nunca antes vistos da
polícia portuguesa para encontrar Madeleine McCann, bem como através do discurso direto de
personalidades relevantes. Ainda assim, e por outro lado, também foi possível observar discursos que
pudessem colocar em causa a forma de trabalhar da PJ e a forma como o caso foi tratado. Dando conta
de polémicas dentro da organização, bem como insinuação de que haveria pressões inglesas (do Estado
e da Polícia), os dois jornais podem ter transmitido uma imagem de ineficiência da polícia portuguesa.

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Para além disso, o CM, por exemplo, ao apresentar os vestígios de ADN encontrados como inequívocos
e decisivos para a investigação, pode ter transmitido uma imagem de ineficácia do sistema judicial, pois
se os resultados seriam claros, porque não foram os pais condenados? Em oposição, o Público
demonstrou uma preocupação notória em informar os seus leitores acerca do funcionamento do sistema
judicial, esclarecendo os seus termos e processos, bem como acerca dos vestígios de ADN, não perdendo
tempo em especulações e informações sensacionalistas.

Assim, enquanto que o Correio da Manhã procurou manter uma cobertura sensacionalista da
investigação e do que a envolvia, fomentando o infoentretenimento e num estilo e cobertura do tipo
«justiça tabloide», assente maioritariamente em fontes não-oficiais, o Público demostrou uma cobertura
mais séria, que fornecesse aos seus leitores os meios para formarem as suas próprias opiniões acerca do
caso do desaparecimento de Madeleine McCann.

Concluindo, a cobertura mediática do caso apresentou muitas das caraterísticas associadas aos
«julgamentos mediáticos», na medida em que foi um caso em que os média cooptaram o sistema de
justiça criminal como fonte abundante de drama e entretenimento (Surette apud Machado et al., 2010)
e que, a especulação sensacionalista e moralista acerca das ações dos McCann, especialmente no CM,
foi notória. Para além disto, a cobertura do caso, apresentou ainda caraterísticas enunciadas por Ray
Surette, como a serialização, nomeadamente no Correio da Manhã, através da cobertura constante do
caso, como se de uma mini-série se tratasse; e a personalização, que está estritamente ligada ao realce
das suscetibilidades dos envolvidos, a exploração das suas vidas privadas, particularidades intimas e
caraterísticas pessoais, foi visível em ambos os jornais, embora com maior incidência no Correio da
Manhã. Para além disso, as narrativas dos jornais, ao forneceram cada detalhe da investigação podem,
também, ter colocado os leitores enquanto «testemunhas mediadas» (Peelo, 2006), pois ao manter a
audiência a par de toda a investigação e dos seus pormenores, convidaram o leitor a participar no
processo, como se também eles estivessem envolvidos.

Para além disso, é importante realçar que este caso, foi representativo da relação de tensão entre
o sistema de Justiça e os meios de comunicação social. Na medida em que, por se tratar de um caso de
que há data das notícias analisadas se encontrava sob o segredo de Justiça, os meios de comunicação
social para responder às expectativas dos indivíduos, que ansiavam estar a par de todo e qualquer
pormenor acerca do caso, procuraram obter informações através das fontes possíveis. Este aspeto, aliado
ao recurso generalizado a fontes sob o anonimato de «fontes junto do processo», pode ter contribuído
para denegrir a honra dos envolvidos e a invasão da sua vida privada, direito consagrado através do
segredo de Justiça, não existindo forma de identificar devidamente a origem da informação e a sua
legitimidade.

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ANEXOS

FIGURA 1. DISTRIBUIÇÃO DAS NOTÍCIAS POR JORNAL

FIGURA 2. PRESENÇA DO CASO NA PRIMEIRA PÁGINA

viii
FIGURA 3. FORMATO DE NOTÍCIAS POR JORNAL

FIGURA 4. FONTES DE INFORMAÇÃO DO CORPUS TOTAL

ix
FIGURA 5. FONTES DE INFORMAÇÃO POR JORNAL

FIGURA 6. TOM DE COBERTURA NO CORPUS TOTAL

x
FIGURA 7. TOM DA COBERTURA POR JORNAL

xi

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