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Apontamentos de Direito Internacional Privado - T Ano Letivo 2017/2018

DIREITO
INTERNACIONAL
PRIVADO

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Apontamentos de Direito Internacional Privado - T Ano Letivo 2017/2018

INTRODUÇÃO
Noção de Direito Internacional Privado

O DIP é o ramo do direito que “procura formular os princípios e regras conducentes à


determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações privadas
internacionais, e bem assim assegurar o reconhecimento no Estado do foro das situações
jurídicas puramente internas, mas situadas na órbita de um único sistema de direito estrangeiro”.

— A. FERRER CORREIA

Objeto do Direito Internacional Privado

O objeto do DIP são as relações privadas internacionais: relações entre pessoas ou


entidades que se apresentam desprovidas de poderes de autoridade (ou seja, se apresentam em
pé de igualdade) que se encontram em contacto com mais que uma ordem jurídica. Por isso,
também podem ser designadas de “relações plurilocalizadas” ou “atravessadas por fronteiras”,
ou ainda, nos termos de ANABELA GONÇALVES “relações privadas que atravessam fronteiras”.

Classificação de JITTA das relações privadas

1. Relações privadas puramente internas: relações jurídico-privadas que estão apenas em


contacto com a ordem jurídica do foro, isto é, com a ordem jurídica de referência, a que pertence
o órgão de aplicação do direito (p.e. tribunais) ao qual é entregue a tarefa de decidir e resolver a
questão suscitada.

Estas não suscitam problemas de DIP, visto ser diretamente aplicável a lei do foro.

Ex.: CCV realizado em PT, entre A e B (de nacionalidade PT e residência habitual em PT),
relativamente a um imóvel situado em PT.

2. Relações privadas relativamente internacionais: relações jurídicas internas relativamente


a um ordenamento jurídico que não é o do foro, ou seja, têm a natureza de puramente internas
em relação a um ordenamento jurídico estrangeiro.

Suscitam problemas de DIP se vierem a entrar em contacto com uma ordem jurídica que não é
aquela à luz da qual nasceram, a fim de serem aí reconhecidas. Embora não haja aqui
propriamente um problema de determinação do direito aplicável (choice of law), já que só uma lei
estava ab initio em contacto com estas situações, suscita-se aqui, na ordem jurídica do foro, uma
questão de reconhecimento internacional de direitos adquiridos no estrangeiro.

Ex: CCV realizado em Espanha, entre A e B (de nacionalidade espanhola e residência habitual em
Espanha), relativamente a um imóvel situado em Espanha.

3. Relações privadas absolutamente internacionais: relações jurídicas que estão ab initio


em contacto com mais de um ordenamento jurídico, através dos seus elementos. São as
relações plurilocalizadas por excelência.

O problema de DIP que se coloca é o da determinação da lei aplicável - choice of law.

Ex: CCV realizado em PT, entre A (de nacionalidade espanhola e residência em Madrid) e B (de
nacionalidade PT e residência em Lisboa), relativamente a um imóvel situado em Espanha.

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Âmbito do Direito Internacional Privado

As relações privadas internacionais têm uma relevância cada vez mais acentuada num mundo
contemporâneo, em razão das migrações de trabalhadores, do êxodo de refugiados políticos,
dos movimentos de capitais, dos fluxos de bens e serviços, das deslocações turísticas, das
transferências de tecnologia, do desenvolvimento dos transportes e das comunicações
internacionais, com relevo para o extraordinário desenvolvimento das transferências eletrónica de
dados de todos os tipos à escala global, de que a internet é o mais recente exemplo.

A mundialização ou globalização da economia a que hoje se assiste torna cada vez mais
frequentes as relações que extravasam o âmbito de cada comunidade estadual ou nacional,
obrigando os sujeitos de direito a lançar cada vez mais o olhar para além das ordens jurídicas
nacionais. Com efeito, as relações privadas internacionais reclamam uma disciplina jurídica.

Na regulamentação de questões privadas internacionais é importante ter em conta que o DIP


tenta preservar a continuidade e estabilidade das relações jurídico-privadas, de forma a que as
fronteiras políticas que existem não sejam um entrave ao exercício de direitos privados, bem
como a diversidade das ordens jurídicas.

O âmbito do DIP compreende, enquanto ramo de direito objetivo:

- Normas de conflito: normas que designam a lei aplicável a uma relação internacional:

• de fonte nacional: arts. 25º - 65º CC

• de fonte internacional: Convenção de Roma

• de fonte UE: regulamentos Roma I e Roma II

- Normas acessórias das normas de conflito: regulam a aplicação das normas de conflito e
permitem o controlo e a correção pelo julgador do resultado material da aplicação das normas de
conflito (arts. 14-24º CC).

Exemplos:

• normas de direito da nacionalidade: conjunto de normas de direito material que regulam e


fixam os pressupostos de aquisição/atribuição, manutenção e perda da nacionalidade de
determinado Estado (Lei nº 37/81). A nacionalidade é um elemento de conexão relevante do
DIP em matéria de estatuto pessoal.

• normas sobre direito dos estrangeiros: conjunto de normas e princípios que definem a
capacidade dos estrangeiros para serem titulares de direitos, em contraposição com os
direitos que são atribuídos aos nacionais. (ex: art. 14º e 15º CRP)

• normas sobre reconhecimento de sentença estrangeira e outros atos públicos


estrangeiros sobre direitos privados: ex.: art. 978º ss. CPC; Regulamento (UE) 1215/2012.

• normas sobre reconhecimento de sentenças proferidas pelo tribunal arbitral:


complementam, fixam pressupostos e limites, resolvendo conflitos de jurisdição previstos
nos arts. 62º e 63º CPC e no Reg. (UE) 1215/2012.

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MÉTODOS
Modos de regulamentação das relações privadas internacionais

1.1) 1.1.1) comum


direito material do
1) Estado do foro 1.1.2) especial
Método
MATERIAL 1.2) 1.2.1) aplicável às relações internas e internacionais
direito material
uniforme 1.2.2) aplicável apenas às relações internacionais

2)
Método
CONFLITUAL

1) Método Material

1.1) Direito material do Estado do foro

1.1.1) Comum

Submeter as questões privadas internacionais às normas materiais da ordem jurídica


de cada Estado, como se de relações puramente internas se tratasse - Sistema do
Territorialismo ou Lex Forismo.

- Vantagens: boa administração da justiça (os órgãos que aplicam o direito estão
mais familiarizados com o direito material interno) e maior celeridade;

- Desvantagens: a solução variaria em função do país onde fosse resolvido;


imprevisibilidade e desarmonia; frustra a expectativa das partes e viola o princípio da
confiança; fomenta o forum shopping, criando desigualdades.

Este método não é aplicado atualmente.

1.1.2) Especial

Submeter as relações privadas a um sistema de normas de direito material especial,


dentro de cada Estado, formulado pelos próprios para regular estas relações.

No nosso ordenamento jurídico temos, p.e., arts. 51º nº3, 54º nº2 CC, 3º nº2 CSC.

Dentro deste grupo temos as Normas de Aplicação Imediata (NAI), que são
“normas materiais, espacialmente autolimitadas que, pelo fim social que visam atingir e
pela especial intensidade valorativa que revestem, reclamam a sua aplicação
independentemente do âmbito de competência da ordem jurídica a que pertencem,
derrogando o sistema conflitual geral do Estado do foro. São, por isso, designadas de
normas à prova de conflitos.”

— ANABELA GONÇALVES

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Características das NAI

- Normas materiais: as NAI vão-nos dar a solução material para o caso concreto,
ao contrário das normas de conflito que apenas indicam a lei competente para
resolver o litígio (leis formais);

- Podem revestir natureza pública ou privada;

- Normas imperativas;

- Reclamam a sua aplicação ao caso concreto, quer expressa (art. 2223º CC), quer
implicitamente (art. 57º CRP);

- A sua aplicação resulta de uma norma de conflitos unilateral ou do objeto/fim da


NAI (fins sociais, como a proteção da parte mais fraca);

- Caráter de territorialidade (salvaguarda de interesses nacionais de cada Estado);

- Autónomas (não estão dependentes do sistema conflitual);

- Excecionais (caso contrário, colocariam em causa o sistema conflitual);

- Apesar de conterem a solução material, também contêm uma conexão: ao


contrário das normas de conflitos, estas não estão sujeitas às conexões definidas
pelo sistema conflitual; elas próprias definem as suas conexões.

O art. 2223º CC é exemplo de uma NAI. É uma norma material formulada para
resolver uma situação plurilocalizada e determina o seu âmbito de aplicação espacial.
[remeter do art. 65º nº2 para o 2223º CC]

O art. 53º CRP também foi considerado uma NAI depois da decisão nesse sentido
pelo SJT num acórdão de 03/08/1988. MOURA RAMOS define-lhe o âmbito de aplicação:
salvaguarda da segurança no emprego quando esteja em causa, ou um contrato de
trabalho executado em território nacional, ainda que sujeito a lei estrangeira, ou ainda
contratos de trabalho em que o trabalhador é PT ou residente em PT, tendo sido
contratado por uma empresa PT, ainda que o contrato seja executado no estrangeiro.

As NAI podem ser aplicadas em cumulação com as normas materiais da lei aplicável
(quando se estão a discutir várias questões e uma delas é regulada por uma NAI,
enquanto que a outra é regulada pela lege causae) e podem ter um caráter de primazia
em relação à lei aplicável, podendo ainda atuar como pressuposto/requisito da norma
material da lei aplicável.

As NAI podem pertencer ao ordenamento jurídico do foro ou a um ordenamento


jurídico estrangeiro. Normalmente, quando pertencem ao ordenamento jurídico do foro,
não se levantam muitos problemas na sua aplicação. Já quando estão em causa NAI
estrangeiras, a regra é que não há obrigação de reconhecimento de efeitos; cada Estado
é que estabelece as condições de reconhecimento ou não de efeitos, através de normas
de reconhecimento (ex: art. 7º nº1 CRoma, art. 9º nº3 Roma I, etc.).

Não havendo norma de reconhecimento, os tribunais podem reconhecer efeitos às


NAI estrangeiras com base na cooperação entre os Estados ou nos princípios gerais de
DIP (tutela da confiança e harmonia dos julgados). No entanto, se a NAI estrangeira
colocar em causa interesses do Estado do foro, valores fundamentais, não se
reconhecem os seus efeitos. Em PT, como existem poucas normas de reconhecimento
de efeitos a NAIs, vamos buscar o fundamento para as reconhecer aos princípios e
valores fundamentais dos Estados.

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Há uma divergência doutrinal quanto à questão de saber se as NAI se integram no


método substancialista ou conflitualista:

• MARQUES DOS SANTOS - método substancialista: encara as NAI como exceção ao


sistema conflitual, visto que a sua aplicação sobrepõe-se a este;

• DÁRIO MOURA VICENTE - método conflitual: equipara o funcionamento das NAI ao


método conflitual, pela exigência de uma conexão.

• ANABELA GONÇALVES - figura híbrida: a definição das NAI não obedece à lógica
tradicional, aplicando-se em função de determinados fins que o legislador considera
essenciais, independentemente de ser ou não a mais próxima da situação (ao contrário
das normas de conflitos, que procuram a conexão mais estreita). As NAI são, assim,
normas mistas, porque têm uma conexão, mas também a solução material para o caso
concreto, estando numa fase intermédia entre o método conflitual e o método material/
substancialista.

“As NAI estão para o método substancialista ou material como as normas de conflito
materiais estão para o método conflitual: representam uma evolução de ambas na
regulamentação das questões privadas internacionais.” (ANABELA GONÇALVES)

[importante: noção, características, questões dos métodos, reconhecimento de efeitos a NAI estrangeiras]

1.2) Direito material uniforme

1.2.1) Aplicável às relações puramente internas e às relações internacionais

São leis comuns a vários Estados (convenções) por força das quais as relações
privadas internacionais serão tratadas da mesma forma que as relações puramente
internas, isto é, são leis uniformes que regulam da mesma forma as relações internas e
internacionais (ex: Convenções de Genebra sobre Letras e Livranças).

Apesar de as normas serem idênticas, podem igualmente surgir desuniformidades,


em resultado de divergências na interpretação e na integração de lacunas (exceto no
direito material uniforme de fonte na UE, pois o TJUE garante a uniformização das
normas).

1.2.2) Aplicável apenas às relações internacionais

São normas especificamente formuladas para regular as relações privadas


internacionais e adotam a designação de direito do comércio internacional (ex: Reg. (UE)
nº 40/94 que regula a Marca Comunitária).

- Vantagens:

• são mais adequadas às especificidades do comércio internacional;

• facilitam a tarefa de determinação da lei aplicável;

• harmonia jurídica internacional e maior previsibilidade das decisões.

- Desvantagens:

• abrangem aspetos parcelares, já que a unificação internacional é morosa e difícil


de alcançar (é necessária a adesão de todos os Estados a determinada convenção);

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• dificuldade de alteração das convenções, o que não permite acompanhar a


realidade económica e social em constante mutação;

• podem surgir questões interpretativas e de integração que invalidam o objetivo


de uniformização (exceto em relação à UE);

• é necessária uma conexão com a ordem jurídica para que sejam aplicadas (é a
própria convenção que a determina - critério da internacionalidade relevante).

De referir ainda, enquanto realidades próximas ao método substancialista (mas dele


distintas): Lex Mercatoria (conjunto de normas com caráter material, constituído pelos
usos e práticas do comércio internacional que tem grande efetividade nas relações
comerciais internacionais pela sua adoção voluntária) e Soft Law (leis modelo, corpo de
normas uniformes propostas aos Estados para que as adotem ou não).

2) Método Conflitual

Este método opera através de Normas de Conflitos: normas que regulam as relações
privadas internacionais através da remissão para uma das ordens jurídicas com a qual a
relação plurilocalizada está ligada, ligação esta feita através de elementos de conexão.

Estas normas têm 2 funções:

- delimitar o âmbito de aplicação do direito material do Estado do foro;

- conferir eficácia na ordem jurídica interna a normas materiais estrangeiras.

[nos casos práticos temos sempre de começar por normas de conflitos PT, porque essas é que vão
dizer se aplicamos a lei PT ou estrangeira]

Assentam em 2 pressupostos:

1. Existência de limites espaciais de aplicação do direito: as ordens jurídicas dos Estados


não têm aplicação universal, pelo que a lei PT só se aplicará às situações que, de acordo com
as normas de conflito, estejam submetidas a ela);

2. Pluralidade e diversidade de ordens jurídicas: o método conflitual fundamenta-se na


tolerância e respeito pela diversidade de soluções que cada ordem jurídica oferece.

As normas de conflitos de leis no espaço

Características das normas de conflitos

1. Normas formais e indiretas: não fornecem por si próprias a regulamentação das relações
privadas internacionais, mas indicam a ordem jurídica com se vai procurar a solução;

2. Normas de remissão ou conexão: remetem para determinado ordenamento jurídico que


vai decidir, através de um elemento de conexão;

3. Normas imperativas: a aplicação da lei designada não é derrogável pelas partes;

4. Normas que operam por categorias de relações ou questões jurídicas: daqui resulta
que a mesma questão da vida privada internacional possa ser regulada por ordens jurídicas
diferentes - dépeçage (desmembramento da relação jurídica - quando as relações são reguladas
nos seus diferentes aspetos por ordens jurídicas diferentes);

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5. Normas localizadoras: designam a lei melhor localizada para regular a questão, sem
prejuízo da importância do resultado material, como a proteção da parte mais fraca;

6. Guardam o controlo do resultado material: em certos casos, o julgador pode afastar ou


modificar a solução que resulta do direito aplicável. Temos 2 mecanismos:

A) Reserva da Ordem Pública Internacional (ROPI): é um limite à aplicação de lei


estrangeira, bem como ao reconhecimento de decisões estrangeiras e é acionável quando o
resultado da aplicação da lei remetente põe em causa princípios absolutamente fundamentais
do Estado do foro.

B) Adaptação: de expressão jurisprudencial, aplica-se quando as normas aplicáveis não se


ajustam entre si, frequentemente por efeito do dépeçage. MARQUES DOS SANTOS comparava
esta situação à de um carro construído a partir de peças avulsas de marcas diferentes; pode
parecer um automóvel, mas é possível que não consiga andar. Assim, por vezes, tida a
solução, é necessário fazer algumas correções tendo em conta o resultado material que se
quer atingir.

A origem das normas de conflitos - a escola universalista e a harmonia dos julgados

Desde o séc. XIV ao séc. XIX, as relações privadas internacionais eram reguladas por meio do
Método Estatutário: os conflitos de leis eram resolvidos através da interpretação de leis;
procurava-se ver as situações de vida que as mesmas queriam regular e aplicava-se um dos 3
tipos de estatutos:

• estatutos pessoais: aplicáveis às pessoas (domicílio);

• estatutos reais: aplicáveis às coisas (lugar da situação);

• estatutos mistos: aplicáveis aos atos jurídicos (lugar da prática do ato).

Este método tinha um caráter rudimentar de resolução de conflitos, composto por um leque
muito limitado de conexões, além das dificuldades na classificação e aplicação dos estatutos.

No séc. XIX, Savigny contrapõe ao método estatutário o Método Universal, fundamentado na


ideia de que há uma igualdade entre a ordem jurídica do foro e as ordens jurídicas estrangeiras,
todas integradas numa comunidade de direito.

Além disso, parte do conceito de relação jurídica, enquanto, até aí, os estatutários olhavam
para a norma. Assim, é aplicável a lei vigente na sede da relação jurídica: ordem jurídica que
apresenta uma conexão mais estreita com essa relação jurídica.

Para Savigny, o ideal do DIP era a Harmonia dos Julgados ou harmonia jurídica internacional.
As relações jurídico-privadas internacionais deviam ter a mesma solução onde quer que fossem
apreciadas, pelo que os Estados deviam adotar as mesmas normas de conflitos. No entanto, este
objetivo de harmonia dos julgados tornava a justiça do DIP puramente formal, sem ter em conta o
resultado material.

As críticas norte-americanas

A metodologia de Savigny revelou-se alheia às questões de justiça material, sem se preocupar


com o resultado da aplicação das normas de conflitos nem com os interesses públicos dos
Estados. Assim, nos anos 30 do séc. XX, deu-se a Revolução Metodológica Norte-Americana
e o surgimento de várias posições em relação ao conflito entre duas ordens jurídicas:

• David Cavers (result selective approach) e Robert Leflar (better rule): deve-se aplicar a
norma que é melhor do ponto de vista material;

• Von Mehen (norm ad hoc): o juiz deve construir uma norma material ad hoc, combinando
ambas as normas em conflito;

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• Currie (governmental interest analysis): deve aplicar-se a lei do Estado que tem maior
interesse que as suas normas sejam aplicadas ao caso concreto;

• Baxter (comparative impairment): deve aplicar-se a lei do Estado cujos objetivos legislativos
saiam mais prejudicados pela não aplicação das suas normas;

• Ehrenzweig (lex fori): aplicação da lei do foro.

Todas estas teorias foram efetivamente aplicadas pelos tribunais, pelo que o direito americano
criou o 2nd Restatement, com o objetivo de flexibilizar a norma de conflitos. Encontramos aqui
as open ended rules, que levam ao primado da justiça do caso concreto sobre a ideia de
harmonia dos julgados.

Todas estas propostas norte-americanas foram alvo de críticas como: o excessivo casuísmo,
arbitrariedade, incerteza, imprevisibilidade e excessiva importância atribuída aos interesses
económicas, sociais e políticos na resolução dos conflitos.

Estudo metodológico atual do DIP

A renovação metodológica recente reveste duas vertentes:

A) Abertura do DIP a uma pluralidade de métodos

Além do método conflitual, recorremos também aos métodos materiais e substancialistas


(normas especialmente formadas para resolver questões privadas internacionais, como
normas do direito do comércio internacional e NAI), e mesmo o método conflitual é
influenciado pelo método material e vice-versa.

B) Flexibilização das normas de conflitos

A regulamentação das relações plurilocalizadas não é indiferente ao conteúdo das normas


em presença e ao resultado material da sua aplicação, pelo que avultam, não só interesses
individuais, como também públicos e sociais.

O julgador tem um papel modelador na regulamentação das relações privadas


internacionais, através de:

• normas que conferem ao tribunal a faculdade de determinar, em cada caso, a conexão


mais estreita entre a situação da vida a regular e certo ordenamento jurídico (ex: art. 52º
nº2 CC e art. 4º CRoma);

• normas que se consagram como cláusulas de exceção: mecanismos de correção do


funcionamento das normas de conflitos de caráter rígido; permitem a aplicação de uma lei
da qual os factos são mais próximos do que aquela que é designada pela norma de
conflitos (ex: art. 6º nº2 in fine CRoma);

• normas de conflito materiais ou substanciais, com a finalidade de atingir o resultado


material pretendido, como a proteção da parte mais fraca da relação jurídica, relegando
para 2º plano o elemento localizador (ex: art. 6º CRoma).

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A JUSTIÇA E OS PRINCÍPIOS GERAIS DO DIP


Conceito, relevância e significado

O entendimento sobre os valores e princípios a que obedece a regulamentação das relações


privadas internacionais é importante para compreender certas soluções do nosso ordenamento
jurídico, para integrar lacunas, para a adaptação das normas de conflitos, etc.

Assim, os princípios de DIP têm relevância a 3 níveis fundamentais:

• Relevância dogmática: permitem determinar o sentido geral do DIP, os fins a que se dirige,
assim como para estabelecer a unidade do DIP;

• Relevância hermenêutica: são indispensáveis à interpretação da norma de conflitos,


sobretudo num sistema como o nosso que prima pela unidade do sistema jurídico;

• Relevância heurística: são fatores de auxílio do juiz na descoberta da resolução do direito


no caso concreto.

O DIP partilha a mesma justiça que os ramos de direito privado; a forma como estes princípios
se apresentam no DIP é que é diferente, porque se adapta ao objeto da disciplina, ou seja, as
relações privadas internacionais.

Os princípios do DIP

Os princípios do DIP dividem-se em:

• Princípios que exprimem valores individuais, que dizem respeito ao indivíduo e à


realização dos bens próprios, dos seus fins:

- dignidade da pessoa humana

- autonomia da vontade

- tutela da confiança

- igualdade

• Princípios que exprimem valores sociais, que dizem respeito à sociedade/comunidade e à


prossecução dos bens comuns:

- proteção da parte mais fraca

- salvaguarda da soberania nacional

- salvaguarda da paz social

- preservação da identidade cultural

Princípios que exprimem valores individuais

1. Princípio da dignidade da pessoa humana


Resulta do art. 1º CRP e é a base de todas as ordens jurídicas.

No DIP traduz-se no reconhecimento da personalidade jurídica e direitos de personalidade,


e ainda no reconhecimento aos estrangeiros da suscetibilidade de serem titulares de direitos
na ordem jurídica interna (art. 15º nº1 CRP e 14º CC). Também se reflete na sujeição das
matérias de estatuto pessoal à lei pessoal (art. 25º ss. CC).

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2. Princípio da autonomia da vontade

Traduz-se na capacidade de conformar as suas relações jurídicas e celebrar negócios.

No DIP as partes podem, quando o legislador o permite, modelar as relações jurídicas


privadas, escolhendo em certos domínios a lei aplicável à relação (ex: art. 3º CRoma).

Visa-se a certeza e previsibilidade do regime jurídico aplicável, já que as partes sabem,


desde o início, através de que lei aquela relação jurídica vai ser regulada. Além disso, ninguém
está em melhor posição dos que as partes para saber quais são os seu interesses e qual a lei
que melhor os tutela.

3. Princípio da tutela da confiança

Traduz-se na salvaguarda dos direitos e posições jurídicas adquiridas por sujeitos privados
entre estes e pelo próprio Estado. Tutela valores individuais e é condição do equilíbrio social e
da paz jurídica, já que estes valores assentam na confiança e nas expectativas jurídicas das
partes.

Este princípio manifesta-se no nosso ordenamento jurídico, particularmente no DIP, através


de vários mecanismos com o objetivo de salvaguardar as legítimas expectativas das partes:

- desvios à competência da lei pessoal, quanto aos indivíduos: art. 28º e 31º nº2 CC,
11º CRoma; art. 36º nº1 e 65º nº1 CC, quanto à validade formal dos negócios;

- princípio da proximidade ou da conexão mais estreita: as pessoas orientam-se pelo


direito mais previsível para tutelar as suas expectativas jurídicas, respeitando a ligação
natural entre a lei e a relação jurídica. Este princípio, apesar de ser a justificação do método
conflitual em geral, também justifica alguns mecanismos do DIP atual que flexibilizam a
norma de conflitos, como as cláusulas gerais de conexão mais estreita;

- conexões alternativas: para favorecer a validade do negócio (art. 36º nº1, 65º nº1 CC);

- mecanismos de autolimitação do Estado do foro:

• cláusulas de exceção: permitem que seja aplicada uma lei mais próxima ao caso
concreto, salvaguardando as expectativas das partes (ex: art. 6º nº2 in fine CRoma);

• normas de reconhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro;

• reenvio: assegurar a estabilidade/continuidade das relações privadas internacionais.

4. Princípio da igualdade

Assegurar o tratamento de forma igual ao que é igual e diferente ao que é diferente.

Em DIP implica uma valoração uniforme das relações privadas internacionais e das relações
sociais, na ordem jurídica interna e internacional. Assim, as relações plurilocalizadas devem,
na medida do possível, ser julgadas pelas mesmas normas onde quer que sejam apreciadas.

Tem aqui relevância o Princípio da Harmonia de Julgados de Savigny, que responde à


intenção primeira do direito de conflitos de assegurar a continuidade e uniformidade da
valoração das situações plurilocalizadas, e é conseguido através de:

- adoção dos mesmos elementos de conexão entre os Estados e preferência pelas normas
de conflito bilaterais;

- aplicação dos mesmos elementos a nacionais e estrangeiros e eliminação de elementos


discriminatórios da norma de conflitos;

- sistema de reconhecimento de um sistema de direitos adquiridos no estrangeiro;

- resolução dos conflitos de sistemas através da consagração do reenvio.

Ignorar este princípio “seria o mesmo que negar, pura e simplesmente, o DIP.” (A. FERRER
CORREIA)

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O princípio da igualdade tem ainda outra vertente em DIP: o Princípio da Harmonia


Jurídica Interna ou Material, que transmite a ideia de unidade do sistema jurídico, ou seja,
que no sei do ordenamento jurídico as contradições ou antinomias normativas são intoleráveis.
Estas situações acontecem quando a controvérsia respeita a duas relações jurídicas distintas,
submetidas a leis diferentes, e no entanto tão estreitamente interligadas que a decisão quanto
a uma delas atingirá forçosamente a outra.

Ex de KEGEL: um grego, residente em Atenas, pretende que lhe seja permitido visitar de vez em
quando o seu filho natural, que reside com a mãe em Hamburgo; a mãe opõe-se. Se de acordo com
o direito de conflitos do foro a relação entre mãe e filho estiver sujeita à lei nacional da mãe e a
relação entre o filho e o pai sujeita à lei pessoal deste, aparece-nos este tipo de conflito.
Efetivamente, enquanto segundo o direito alemão a mãe pode opor-se com êxito à pretensão, esta
surge plenamente fundada segundo o direito grego.

Uma decisão que localize o problema no quadro das relações entre pai e filho natural - que será
neste caso favorável ao pai - irá repercutir-se inevitavelmente no status da mãe.

Eis um caso em que entre dois preceitos materiais oriundos de ordenamentos distintos se
estabelece claramente uma relação de mútua exclusão. E como ambos se tornam aplicáveis no
âmbito da lex fora e em virtude de normas de conflitos dessa lei, tudo se passa como se a antinomia
surgisse entre normas materiais do próprio sistema jurídico local.

Cabe ainda mencionar o Princípio da Paridade de Tratamento. Este princípio determina


que o DIP deve colocar os diferentes sistemas jurídicos em pé de igualdade, de modo a que
uma legislação estrangeira seja considerada competente sempre que, se ela fosse a lex fori e
as mesmas circunstâncias ocorrentes, a lex fori se apresentasse como aplicável. (A. FERRER
CORREIA)

Princípios que exprimem valores sociais

1. Princípio da proteção da parte mais fraca

O direito privado parte da ideia de igualdade entre as partes. Por isso, quando numa
relação jurídica uma das partes não está em posição de igualdade, o legislador tem de arranjar
forma de proteger a parte mais fraca, de modo a igualar a relação jurídica.

(ex: relação de consumidores, art. 5º CRoma)

2. Princípio da salvaguarda da soberania nacional

Pressupõe a salvaguarda da autodeterminação dos Estados ao nível da organização


económica e social.

É esta preocupação que está na base das regras de conflito que mandam aplicar a lex res
sitiae em matéria de direitos reais (art. 46º CC), tendo em vista que o Estado com melhor
competência será o que em melhores condições se achar para impor o acatamento dos seus
preceitos.

3. Princípio da salvaguarda da paz social

Tem como propósito garantir a convivência pacífica, para que o Estado consiga disciplinar
os conflitos que ocorram no seu território (ex: aplicação da lei da prática do facto ilícito na
responsabilidade extracontratual, art. 45º CC).

Também a reserva de ordem pública internacional tem como fundamento este princípio.

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4. Princípio da preservação da identidade cultural das pessoas

Este é um valor social, mas está também relacionado com os valores individuais,
designadamente, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Manifesta-se através de:

- aplicação da lei da nacionalidade às matérias sociais, de modo a tentar manter uma


ligação entre os indivíduos nacionais que estão longe da pátria e o seu país de origem;

- reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas;

- reconhecimentos de direitos adquiridos no estrangeiro.

EM SUMA:
O DIP tem a sua justiça própria, inconfundível com a do direito material.

A escolha da lei competente para reger uma relação determinada não é, por via de regra,
função do conteúdo da lei, mas de ser ela a que se encontra em melhor posição ou a que exige
os melhores títulos para intervir.

No entanto, a justiça do DIP não tem autonomia face à justiça do direito material.

Mesmo quando a escolha da lei aplicável não é determinada pela obtenção de certo resultado
material, ainda assim a eleição do elemento de conexão decisivo baseia-se em princípios e
valores que em grande medida são comuns aos princípios de direito privado, mas no DIP são
adaptados às circunstâncias especiais que decorrem do objeto da disciplina (as relações
privadas internacionais).

Assim, há apenas uma concretização diferente dos princípios de direito privado.

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O DIP E OUTRAS DISCIPLINAS JURÍDICAS


O DIP e o Direito Constitucional

Quanto às relações que podem existir entre as normas de conflitos e o direito constitucional
suscitam-se diferentes ordens de problemas:

1. Sujeição das normas de conflitos aos princípios constitucionais: as normas de conflitos


estão sujeitas à CRP; não são preceitos axiologicamente neutros mas visam a realização de
valores que inspiram a ordem jurídica através da escolha de elemento de conexão;

2. Admissibilidade do controlo de normas materiais estrangeiras competentes que


colidam com a CRP: a doutrina divide-se:

• A. FERRER CORREIA adota uma posição mais restritiva, dizendo que só se deve recusar a
aplicação das normas estrangeiras se essa aplicação puser em causa princípios absolutamente
estruturantes da nossa ordem jurídica.

• JORGE MIRANDA, por sua vez, adota uma posição excessiva que alarga esta possibilidade de
controlo a qualquer questão de direito estrangeiro, por força do art. 204º CRP.

• MOURA RAMOS assume uma posição intermédia, baseada em olhar para as normas
constitucionais e adotar um procedimento análogo ao das NAI (por interpretação da norma,
determinar o seu âmbito de aplicação caso a caso) - posição adotada.

3. Admissibilidade do controlo da constitucionalidade do direito estrangeiro aplicável


pelos tribunais portugueses, à luz da Constituição desse Estado:

• se as normas tiverem sido declaradas inconstitucionais no país de origem - inaplicáveis;

• se as normas não tiverem sido declaradas inconstitucionais no país de origem:

• e os tribunais ordinários não puderem fazer controlo de constitucionalidade - aplicáveis;

• e os tribunais ordinários puderem fazer controlo de constitucionalidade - há a possibilidade


de não aplicação se houver decisões anteriores no sentido da inconstitucionalidade.

O DIP e o Direito da União Europeia

A adoção de regras uniformes de DIP comuns aos Estados-Membros começou por ter lugar
no desenvolvimento do programa convencional previsto no Tratado de Roma, que provocou o
aparecimento de novas fontes de criação de disposições de DIP.

O DIP e o Direito Comparado

O direito comparado é uma ciência que tem por objecto o estudo das ligações, semelhanças e
diferenças entre as diversas ordens jurídicas, comparando normas e na sua globalidade.

O direito comparado tem grande importância para o DIP nos seguintes âmbitos:

1) Interpretação e aplicação do direito estrangeiro;

2) Operação de qualificação (aferir se existe ou não correspondência funcional entre a norma


designada pela norma de conflitos e os visados pelo conceito-quadro);

3) Reciprocidade de certas regras de conflitos, e a necessidade de recorrer à comparação


jurídica para verificar se os pressupostos estão ou não preenchidos;

4) Reconhecimento no Estado do foro de efeitos a um direito subjectivo aí desconhecido.

Para tudo isto é necessário proceder à comparação jurídica, daí que o direito comparado seja
no DIP da maior importância.

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FONTES E ÓRGÃOS DE APLICAÇÃO DAS NORMAS DE


CONFLITOS
Fontes das normas de conflitos

Fontes Internacionais

a) Convenções Internacionais

Estes instrumentos têm sido elaborados com o objetivo de harmonizar/unificar o direito


de conflitos, já que grande parte do DIP em PT é de fonte convencional.

• Convenção de Haia

• Comissão Internacional do Estado Civil

• Convenções de Bruxelas e Roma

São fonte autónoma e imediata de direito.


b) Costume Internacional

Há hoje regras de aplicação generalizada (ex: lex res sitiae) amplamente divulgadas no
DIP de alguns países, que poderiam constituir verdadeiras regras de DIP costumeiro.

No entanto, a doutrina rejeita a ideia da existência do costume internacional porque não


há a condição da obrigatoriedade da conduta e o âmbito destas regras é variável
c) Princípios Gerais de DIP

Estes princípios impõem limites aos Estados na regulamentação das relações privadas
internacionais, principalmente, pelo princípio da tutela da confiança e da nacionalidade.

Fontes Internas

a) Lei

É a fonte primordial de DIP, embora nem sempre tenha sido assim.

O sistema conflitual do CC é complementado por: CCom, CSC, CMVM, EIRL,…


b) Jurisprudência

Há certos países em que a jurisprudência é fonte primordial de DIP (ex: França e


Common Law). Em PT a jurisprudência em casos de DIP é relativamente escassa, dada a
completude do nosso sistema conflitual.

Isto não significa que os nossos tribunais não tenham um papel criador/modelador em
matéria de DIP, com caráter complementar à lei. Nas situações em que se exige ao julgador
uma valoração do caso concreto, este acaba por ter um papel decisivo (ex: adaptação).
c) Doutrina

É mera fonte de direito, ou seja, fonte indireta. É um modo de revelação e não de criação
do direito, mas é extremamente importante porque influencia a consagração, interpretação
e integração das normas de conflitos

Fontes da UE
• Regulamento Roma I

• Regulamento Roma II

• Regulamento Bruxelas, etc.

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Órgãos de aplicação das normas de conflitos

Órgãos Internos

• tribunais;

• conservadores do Registo Civil;

• notário;

• cônsules portugueses no estrangeiro, quando exercem funções consulares e notariais.

Órgãos Internacionais

• Tribunal Internacional de Justiça (TIJ): pode julgar relações privadas internacionais quando
submetidas pelos Estados da ONU, para proteção de interesses privados e da diplomacia;

• Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE): pronuncia-se quando está em causa:

- cláusula compromissória contida num contrato de direito privado celebrado da UE;

- responsabilidade extracontratual da UE;

- Convenção de Roma;

- a título prejudicial.

Tribunais Arbitrais

A arbitragem internacional ou arbitragem de comércio internacional é atualmente uma forma


de resolução de questões privadas internacionais, sobretudo em áreas que emergem no
comércio.

Tem como vantagens:

• neutralidade do foro;

• maior facilidade de reconhecimento das decisões;

• dispensa de patrocínio judiciário;

• menor formalismo e maior rapidez;

• confidencialidade do processo;

• entrega das questões aos técnicos em função da sua qualidade.

As desvantagens passam por:

• despesas elevadas (excluem as causas de pequeno valor).

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A REGRA DE CONFLITOS
Objeto e função das normas de conflitos

O objeto da norma de conflitos é a simbiose de um conteúdo jurídico com um conteúdo


factual, ou seja, é a situação de vida juridicamente caracterizada em razão do conteúdo jurídico
que lhe imputam as normas de certo ordenamento.

Estas normas têm uma dupla função:

1. disciplinar as relações privadas internacionais;

2. designar a ordem jurídica local em cujas normas materiais devemos procurar a disciplina da
regulamentação dessas relações:

- dizer quais as situações plurilocalizadas às quais se aplica a ordem jurídica do foro , ou


seja, delimitar o domínio de aplicação das leis materiais do ordenamento onde vigora
(normas de conflito unilaterais); ou

- indicar a lei competente para dirimir qualquer questão jurídica concreta que seja
subsumível à respetiva categoria conflitual, quer essa lei seja do país onde o problema se
levanta ou uma lei estrangeira (normas de conflito bilaterais).

Apesar desta distinção, o unilateralismo e o bilateralismo são duas formas de a norma


desempenhar a mesma função.

As normas de conflitos resolvem conflitos de lei, mas também têm em consideração a


situação concreta e os interesses que o legislador considera essenciais, daí a possibilidade de
adaptação ou correção do resultado decorrente da aplicação de determinada lei indicada pela
norma de conflitos.

Estas normas fazem uma regulamentação indireta da questão privada internacional, já que
remetem para a ordem jurídica onde o julgador vai buscar a solução da questão.

A natureza das normas de conflitos

As normas de conflitos são normas de direito:

- privado, porque regulam as relações entre sujeitos particulares ou entes públicos despidos
de poderes públicos; e

- especial, porque não ditam a regulamentação da questão, sendo dotadas de uma estrutura
específica, e porque regulamentam relações privadas especiais, isto é, as internacionais.

A estrutura geral das normas de conflitos

As normas de conflito têm uma estrutura tripartida:

1. Conceito-quadro (previsão)

2. Elemento de conexão

3. Consequência jurídica (conexão)

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1. Conceito-quadro (previsão): conceito técnico-jurídico com a função de recortar, dentro de


cada ordem jurídica indicada pelo elemento de conexão, qual a categoria normativa a aplicar.

Este elemento tem uma certa capacidade expansiva, visto que para a definição desse
conceito técnico-jurídico vamos admitir conteúdos de outras ordens jurídicas que aí
desempenham a mesma função que desempenham na nossa.

2. Elemento de conexão: elemento individualizador da norma de conflitos, que liga o


conceito-quadro e a consequência jurídica, ou seja, a conexão, indicando a ordem jurídica
potencialmente aplicável. Tem a tarefa de “localizar” a situação jurídica num espaço legislativo
determinado. Pode ser:

- relativo ao sujeito: nacionalidade, residência habitual,…;

- relativo ao objeto: lugar da situação da coisa,…;

- relativo ao lugar da prática do ato jurídico: o lugar da celebração do negócio,…;

- outra: permitir às partes a escolha da lei aplicável, ou estabelecer uma diretriz de caráter
geral que indica ao julgador como encontrar a lei aplicável (conexão mais estreita).

3. Consequência jurídica (conexão): declaração de aplicabilidade de preceitos jurídico-


materiais da lei que for designada pelo elemento de conexão; direito concretamente aplicável;
atribuição de competência a uma ou mais ordens jurídicas.

Quanto à consequência jurídica as normas podem ser:

- unilaterais: remetem apenas para a lei do foro;

- bilaterais: enunciam a sua consequência jurídica em termos absolutamente genéricos,


pelo que remetem tanto para a lei do foro como para uma lei estrangeira; a estas normas
“não corresponde uma única consequência jurídica, mas tantas quantos os ordenamentos
existentes.” (BAPTISTA MACHADO)

- bilaterais imperfeitas: remetem tanto para a lei do foro como para uma lei estrangeira;
no entanto, abarcam apenas as situações em que há uma ligação com o estado do foro
(ex.: art. 51º CC).

A conexão pode ser:

- singular: quando a norma de conflitos remete para 1 ordem jurídica (no entanto, pode
uma conexão singular remeter para mais do que 1 ordem jurídica, por exemplo, quando o elemento
de conexão é a nacionalidade - determinado indivíduo pode ter duas ou mais nacionalidades, pelo
que terá de se ter em consideração apenas a nacionalidade que traduza in concreto, a vinculação
mais viva e mais real):

• simples: designa diretamente a ordem jurídica (art. 46º CC);

• subsidiária: prevenindo a hipótese de faltar o elemento erigido em fator primário de


conexão, a norma designa o elemento sucedâneo a que em tal hipótese haverá que
recorrer, ou seja, designa duas ou mais ordens jurídicas, mas a aplicação da segunda
depende da não aplicação da primeira (art. 52º CC); destina-se a obviar uma situação
de impasse;

• alternativa: designa duas ou mais ordens jurídicas, sendo que funciona o que, no
caso concreto, permita obter o resultado desejado (art. 65º CC), normalmente, com o
objetivo de garantir a validade de um ato, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituição ou extinção de certa situação jurídica;

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• optativa: confere a um dos sujeitos o direito de optar por uma ou mais leis das
designadas (em caso de dano ambiental, o lesado pode escolher a lei que o favorece),
cumprindo assim o seu objetivo material de proteção do lesado;

• acessória: designa como lei aplicável aquela que se aplica a outra questão conexa
com a primeira para evitar o excessivo desmembramento da mesma situação -
dépeçage (art. 35º nº1 CC).

- plural ou cumulativa: quando a norma de conflitos remete para 2 ou mais ordens


jurídicas:

• simples: subordina a produção de certo evento jurídico ao acordo de duas leis, ou


seja, à satisfação dos requisitos estabelecidos em cada uma delas, com vista a evitar a
criação de situações que não possam aspirar ao reconhecimento num dos Estados
com elas mais estreitamente conexos (art. 33º nº3 CC) - (Ex: uma sociedade com sede em
PT quer transferir a sua sede para a HOL; é possível transmitir a sede de uma pessoa coletiva
para outro país, mantendo a personalidade jurídica, mas é necessário que tanto a lei PT como a
lei HOL concordem);

• condicionante ou limitativa: quando um ordenamento jurídico tem um papel


primordialmente competente e o outro tem uma função limitativa (art. 27º CC).

Normas de conflitos no Código Civil - Lei pessoal

Art. 25º - Âmbito da lei pessoal


Este artigo consagra o que nós chamamos de matérias de estatuto pessoal:

1. estatuto dos indivíduos;

2. capacidade;

3. relações familiares e sucessórias

O elenco não é taxativo, visto que temos de acrescentar às matérias de estatuto pessoal a
questão dos direitos de personalidade (art. 27º), início e termo da personalidade jurídica (art. 26º)
e tutela e institutos análogos (art. 30º).

O conceito-quadro é o estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas e as relações de


família e sucessões; o elemento de conexão é encontrado no art. 31º nº1, que determina que a
lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; a consequência jurídica é a aplicação da lei
pessoal.

Por afetarem a pessoa na totalidade da sua esfera jurídica, ou em parte essencial para a vida
de cada sujeito, o legislador entendeu submeter as matérias de estatuto pessoal a uma legislação
definida em função dos estados, qualidades ou situações que elas regulam.

O facto de se submeter estas matérias à lei pessoal (lei da nacionalidade) decorre do princípio
da unidade e estabilidade do estatuto pessoal. Além disso, a consagração destas matérias à lei
pessoal decorre também de uma conceção personalista do direito, que coloca a dignidade da
pessoa humana na base do ordenamento jurídico (art. 1º CRP).

Art. 26º - Início e termo da personalidade jurídica


O conceito-quadro é o início e termo da personalidade jurídica; o elemento de conexão é
encontrado no art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo;
a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal.

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Os eventuais problemas que poderão surgir sobre esta matéria esta relacionados com
diferenças entre ordenamentos jurídicos sobre o estabelecimento do início e termo da
personalidade jurídica (ex: em PT o início da personalidade jurídica dá-se com o nascimento
completo e com vida; em ESP, só após 24h de vida).

Art. 27º - Direitos de personalidade


O conceito-quadro é a atribuição, existência e limitação do conteúdo dos direitos de
personalidade; o elemento de conexão é encontrado no art. 31º nº1, que determina que a lei
pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; a consequência jurídica é a aplicação da lei
pessoal.

Assim, esta norma só vai ser aplicável quando estiver em causa a existência de um direito de
personalidade, formas de tutela desse direito ou as suas restrições. Se a questão for relacionada
com a responsabilidade civil decorrente da ofensa de um destes direitos, não é regulada por este
artigo, mas sim pelo art. 45º CC e o regulamento Roma II.

Art. 30º - Tutela e institutos análogos


O conceito-quadro é a tutela e outros meios de suprimento da incapacidade (art. 138º ss.); o
elemento de conexão é encontrado no art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da
nacionalidade do indivíduo; a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal.

Art. 32º - Apátridas


Sendo que a lei a aplicar em matérias de estatuto pessoal é a da nacionalidade (lei pessoal),
no caso dos apátridas (quem não tem nacionalidade), será aplicada a lei do lugar onde tiverem a
residência habitual (RH). O elemento de conexão é o lugar da RH do indivíduo; a consequência
jurídica é a aplicação da lei do lugar onde tem a RH.

Segundo LIMA PINHEIRO, sobre a Convenção de Nova Iorque (1954), no seu art. 12º nº1, a lei
pessoal dos apátridas será a lei do país onde tem o seu domicílio (RH do art. 32º) e,
subsidiariamente e na falta de RH, devemos aplicar a lei da residência (residência ocasional). O
mesmo sucede no caso dos refugiados, desta vez por força da Convenção de Genebra (1951).

Concluindo, as normas de conflitos que se encontram no CC em matéria de estatuto


pessoal revogam o art. 25º, uma vez que é uma norma geral.

Uma das matérias mais importantes e que suscita mais problemas é a questão da capacidade
dos sujeitos estabelecerem relações jurídicas. Regra geral, temos a capacidade estabelecida no
art. 25º, mas há regras específicas, por exemplo, para a capacidade para contrair casamento e
para a capacidade relacionada com a constituição de dtos reais.

Na capacidade de exercício será também regulada pela lei pessoal a questão da maioridade e
emancipação (art. 29º). A este artigo está subjacente a ideia de que uma vez maior, sempre
maior; não é pelo facto de alguém perder determinada nacionalidade que perde a maioridade.

Art. 33º - Pessoas coletivas


O conceito-quadro está presente no nº2 do art. e engloba a capacidade; a constituição,
funcionamento e competência dos órgãos; os modos de aquisição e perda da qualidade de
associado e os correspondentes direitos e deveres; a responsabilidade da pessoa colectiva e a
dos seus órgãos e membros perante terceiros; a sua transformação, dissolução e extinção; o

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elemento de conexão é encontrado no nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da sede
principal e efetiva da pessoa coletiva; a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal.

Em regra, a lei pessoal das pessoas coletivas é aquela onde se encontra localizada a sede
principal e efetiva da administração, porque se entende que é aquela que representa a maior
ligação entre a pessoa coletiva e determinado Estado (unidade e estabilidade do estatuto
pessoal). No entanto, há ordenamentos jurídicos que determinam a lei pessoal tendo em conta o
interesse da própria pessoa coletiva (possibilidade escolha da lei) ou de acordo com o centro da
exploração da atividade principal do local onde são decididos os principais negócios.

O CSC, por outro lado, oferece-nos uma norma específica sobre a lei pessoal das pessoas
coletivas, que afasta o art. 33º. O art. 3º nº1 CSC diz que a lei pessoal das pessoas coletivas é a
sede principal e efetiva da sociedade, mas oferece um desvio: se a sede estatutária for em PT, é
esta a lei aplicável. Trata-se de uma norma de conflitos unilateral, que só vale para as situações
em que a sociedade tem sede estatutária em PT. [remeter do art. 33º CC para o 3º CSC]

Art. 34º - Pessoas coletivas internacionais


Pessoas coletivas internacionais são aquelas que devem a sua criação a uma fonte
internacional, como um tratado ou uma convenção, por exemplo, o Banco Internacional para a
Reconstrução e Desenvolvimento e ainda a Corporação Financeira e Internacional.

O conceito-quadro é o do nº2 do art. 33º, já referido; o elemento de conexão é a autonomia


da vontade da pessoa coletiva (já que a lei aplicável é a designada na convenção ou nos
estatutos) ou, subsidiariamente, o lugar da sede principal; a consequência jurídica é a aplicação
da lei acordada pelas partes ou, subsidiariamente, a lei do lugar da sede principal.

Art. 35º - Declaração negocial


O conceito-quadro é a perfeição, interpretação e integração da declaração negocial e falta e
vícios da vontade (nº1); o elemento de conexão é a substância do negócio jurídico - esta é uma
conexão acessória dependente, ou seja, para saber qual é a lei aplicável é necessário recorrer a
outra norma de conflitos para onde esta remete (o negócio pode ser um casamento, uma doação,
um contrato sobre direitos reais, etc.), ou seja, para o art. 41º ou 42º; a consequência jurídica é
a aplicação da lei pessoal.

Art. 36º - Forma da declaração


O conceito-quadro é a forma da declaração negocial; o elemento de conexão é a
substância do negócio jurídico (conexão acessória dependente) ou o lugar em que é feita a
declaração - ha aqui conexões alternativas que não são puras, porque o sujeito pode escolher
entre a lei da substância e a lei do lugar da declaração, salvo nos casos em que a lei reguladora
da substância exige determinada forma para que aquele negócio seja válido; a consequência
jurídica é a aplicação da lei da substância ou do lugar da declaração.

O lugar da declaração é aquele em que a declaração é efetivamente emitida.

Se se tratar de um negócio jurídico unilateral em que a atividade declarativa, de algum modo,


se processa ao longo do tempo, o lugar da declaração será aquele em que o processo se
completar (por exemplo, um PT residente em PT começa a redigir o seu testamento em PT, viaja para
Londres, e termina a redação do mesmo com assinatura em Londres - o lugar da declaração é onde o
processo se completou, ou seja, em Londres).

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Art. 37º - Representação legal


O conceito-quadro é a representação legal; o elemento de conexão é uma conexão
acessória dependente, que determina que a lei aplicável é a mesma lei que regula a relação
jurídica de que nasce o poder representativo (por exemplo, se estivesse em causa o poder
representativo dos pais em relação aos filhos, procura-se a norma de conflitos que regula as
responsabilidades parentais, ou seja, o art. 57º); a consequência jurídica é a aplicação da lei
reguladora que nasce do poder representativo.

Art. 38º - Representação orgânica


O conceito-quadro é a representação da pessoa coletiva por intermédio dos seus órgãos; o
elemento de conexão é encontrado no art. 3º CSC, que determina que a lei pessoal é a lei da
sede principal e efetiva; a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal.

Art. 39º - Representação voluntária


O conceito-quadro é a representação voluntária, nomeadamente a existência, extensão,
modificação e efeito dos poderes representativos; o elemento de conexão é o local onde os
poderes representativos são exercidos; a consequência jurídica é a aplicação da lei do local
onde os poderes representativos são exercidos. (nº1)

Os nºs 2 a 4 apresentam as exceções a estar regra do nº1.

Art. 40º - Prescrição e caducidade


O conceito-quadro é a prescrição e caducidade; o elemento de conexão é uma conexão
acessória dependente, que determina que a lei aplicável é a que regula o direito a que a
prescrição ou a caducidade se referem (por exemplo, se estivesse em causa a prescrição no âmbito da
responsabilidade civil extracontratual, procura-se a norma de conflitos que regula a responsabilidade civil
extracontratual, ou seja, o art. 45º); a consequência jurídica é a aplicação da lei reguladora que
nasce do poder representativo.

Art. 41º - Obrigações provenientes de negócios jurídicos


Este artigo e o art. 42º referem-se a obrigações contratuais. Assim, só se aplicam se não
estiverem preenchidos os âmbitos material, temporal e espacial da Convenção de Roma ou do
Regulamento Roma I.

O conceito-quadro são as obrigações provenientes de negócios jurídicos e a substância do


negócio jurídico; o elemento de conexão é a autonomia das partes; a consequência jurídica é
a aplicação da lei que os sujeitos tiverem designado ou houverem tido em vista.

No entanto, o nº2 deste artigo limita a possibilidade de escolha de lei: tem que recair sobre
uma lei que corresponda a um interesse sério, dos parâmetros regulamentares, ou que tenha uma
conexão com algum dos elementos do negócio jurídico. As partes não podem escolher uma lei
que não tenha qualquer conexão com a relação jurídica, por exemplo, só por interesse fiscal.

Quando as partes não escolherem uma lei aplicável ao contrato, ou quando a escolha não
cumprir os critérios deste nº2, aplica-se o art. 42º.

Art. 42º - Critério supletivo


A lei faz aqui uma divisão entre os tipos de negócios jurídicos.

Quando estiver em causa um negócio jurídico unilateral, aplicamos a lei da RH do declarante.

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Nos contratos em geral, aplicamos a lei da RH comum das partes; na falta desta, se o contrato
tiver natureza gratuita, aplicamos a lei da RH de quem atribuiu o benefício, e nos restantes
contratos, aplicamos a lei do lugar da celebração.

Os arts. 41º e 42º CC, bem como a Convenção de Roma e Roma I vão regular quase tudo o
que diga respeito a contratos. O que se exclui é a capacidade, que tem normas próprias, e a
declaração negocial (art. 35º).

Art. 43º - Gestão de negócios


O conceito-quadro é a gestão de negócios; o elemento de conexão é o lugar onde decorre
a atividade principal do gestor, ou seja, o lugar onde ocorreu o facto gerador da obrigação que dá
origem à gestão do negócio; a consequência jurídica é a aplicação da lei do lugar onde decorre
a atividade principal do gestor.

Art. 44º - Enriquecimento sem causa


O conceito-quadro é o enriquecimento sem causa; o elemento de conexão é o lugar onde
decorre a transferência do valor patrimonial a favor do enriquecido, ou seja, o lugar onde ocorre o
facto gerador da obrigação que dá origem ao enriquecimento sem causa; a consequência
jurídica é a aplicação da lei do lugar onde decorre a transferência do valor patrimonial a favor do
enriquecido.

Art. 45º - Responsabilidade extracontratual


Este artigo é ligeiramente diferente das disposições a analisar infra em Roma II. Enquanto que
neste regulamento a regra é a aplicação do meio social comum (art. 4º nº2 - RH comum das
partes), o art. 45º CC apresenta outro elemento de conexão. No entanto, este art. só se aplica se
não estiverem preenchidos os âmbitos material, temporal e espacial do Regulamento Roma II.

Nº1 - O conceito-quadro é a responsabilidade extracontratual por facto ilícito, por risco ou


fundada em qualquer conduta lícita e a responsabilidade por omissão; o elemento de conexão é
o Estado onde ocorreu a principal atividade causadora do prejuízo ou o lugar onde o responsável
devia ter agido, no caso de responsabilidade por omissão - consagração da lei do lugar do delito;
a consequência jurídica é a aplicação da lei do Estado onde ocorreu a principal atividade
causadora do prejuízo ou a aplicação da lei do lugar onde o responsável devia ter agido.

A ratio desta norma passa pela função reparadora e preventiva das normas de
responsabilidade extracontratual; interesses característicos do DIP, nomeadamente facilitar a
uniformidade das decisões e o reconhecimento de sentenças estrangeiras, bem como a
harmonia jurídica internacional; o legislador entendeu que não há outra lei que possa assegurar
de melhor forma a regulação desta matéria.

Se verificadas as situações dos nºs 2 e 3, já não se aplica a lei do lugar da conduta (nº1).

O nº2 permite-nos afastar a lei do lugar da conduta em favor da lei do lugar da lesão (lugar em
que é atingido o bem juridicamente tutelado), desde que estejam preenchidos os seguintes
requisitos, cumulativamente:

• a lei do Estado onde se produziu o efeito lesivo considera responsável o agente, mas não o
considera responsável a lei do país onde decorreu a sua atividade (Exemplo: um erro de um
controlador aéreo em ESP provoca um acidente em PT; se fossemos pela lei do lugar da conduta,
aplicava-se a lei ESP; imagine-se que a lei ESP não prevê responsabilidade extracontratual nestas
situações, mas a lei PT prevê; assim, é aplicada a lei onde se verificou o efeito lesivo, ou seja, PT);

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• o agente deve prever a produção do dano no país onde se produziu o efeito lesivo, como
consequência do seu ato ou omissão.

A ratio desta norma passa, por um lado, pela tentativa de proteger o agente de situações
imprevisíveis e, por outro, pela garantia do ressarcimento ao lesado, mesmo quando a lei do
Estado onde decorreu a atividade principal ou onde se verificou o dano não prevê a
responsabilização do agente.

Exemplo para explicar a diferença entre lugar da conduta, lugar da lesão e lugar do dano: um FRA
adquire em PT, um estabelecimento comercial, conservas envenenadas; acaba por só as consumir em ESP
e sofre uma intoxicação alimentar depois de chegar a FRA. Aqui temos PT como o lugar onde decorreu a
atividade principal causadora do prejuízo, ESP como o lugar onde foi violado o bem jurídico da integridade
física e FRA como o lugar onde se produziram os danos patrimoniais ou não patrimoniais.

O nº3 permite-nos afastar a lei do lugar da conduta em favor da lei da nacionalidade ou da RH


comum (regra geral em Roma II), desde que estejam preenchidos os seguintes requisitos,
cumulativamente:

• o agente e o lesado tenham a mesma nacionalidade ou, na falta desta, a mesma RH;

• o agente e o lesado se encontrem ocasionalmente em país estrangeiro.

Exemplo: dois PT, separados, fazem uma viagem a FRA, mas lá encontram-se e acabam por se
envolver em agressões (há aqui ofensa à integridade física, violação dos direitos de personalidade, pelo
que seria motivo para uma ação de responsabilidade civil extracontratual). Em vez de aplicarmos a lei FRA,
aplicamos a lei PT, porque têm nacionalidade comum e encontraram-se ocasionalmente naquele país (se
um dos sujeitos fosse emigrante PT em FRA, já não podia ser aplicado este desvio).

Esta exceção, do meio social comum, está associada ao princípio da proximidade, porque se
entende que a lei da nacionalidade comum ou da RH comum é aquela que tem uma maior e mais
próxima conexão com a questão desigual, sendo também a lei que as partes melhor conhecem.

Art. 46º - Direitos reais


Nº1 - O conceito-quadro é o regime da posse, propriedade e demais direitos reais; o
elemento de conexão é o lugar da situação das coisas; a consequência jurídica é a aplicação
da lei do Estado onde se situam as coisas.

Nº2 - O conceito-quadro é constituição e transferência de direitos reais sobre coisas em


trânsito; o elemento de conexão é o lugar do destino das coisas; a consequência jurídica é a
aplicação da lei do país de destino das coisas.

Nº3 - O conceito-quadro é constituição e transferência de direitos reais sobre os meios de


transportes submetidos a um regime de matrícula; o elemento de conexão é o lugar onde a
matrícula tiver sido efetuada; a consequência jurídica é a aplicação da lei do Estado onde a
matricula tiver sido efetuada.

Art. 48º - Propriedade intelectual


Temos que remeter para uma norma especial: art. 63º CDADC (Código dos Direitos de Autor e
Direitos Conexos). Esta norma prevalece sobre o art. 48º nº1 CC e indica que a ordem jurídica PT
é exclusivamente competente para determinar a proteção a atribuir a uma obra, sem prejuízo das
convenções internacionais. O conceito-quadro são os direitos de autor, ou seja, a propriedade
artística e literária; o elemento de conexão é o lugar onde se pede a proteção para os direitos de
autor; a consequência jurídica é a aplicação da lei do lugar onde se pede a proteção para os
direitos de autor.

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Já o nº2 do art. 48º CC aplica-se quando está em causa propriedade industrial. O conceito-
quadro é a propriedade industrial; o elemento de conexão é o lugar da criação (da marca, da
patente, etc.); a consequência jurídica é a aplicação da lei do país da criação.

Art. 49º - Capacidade para contrair casamento ou celebrar convenções antenupciais


O conceito-quadro é a capacidade para contrair casamento, a capacidade para celebrar
convenção antenupcial e o regime de falta e vícios da vontade; o elemento de conexão é
encontrado no art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo;
a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal de cada nubente.

Assim, temos aqui o chamado princípio da aplicação distributiva: aplica-se em relação a


cada nubente a respetiva lei pessoal. Quando estão em causa efeitos obstativos da celebração
do casamento, basta que para uma lei pessoal haja um impedimento para invalidar o casamento;
é necessária uma aplicação cumulativa.

Art. 50º - Forma do casamento


O conceito-quadro é a forma do casamento; o elemento de conexão é o lugar da
celebração do casamento; a consequência jurídica é a aplicação da lei do Estado do lugar da
celebração do casamento.

Art. 51º - Desvios


Através deste art. podemos afastar a lei do lugar da celebração quando se verifica uma das
situações descritas:

• nº1 - casamento entre 2 estrangeiros em PT: permite-se a forma prescrita na lei nacional de
um dos contraentes, sob a condição de reciprocidade;

• nº2 - casamento de 2 PT ou estrangeiro + PT no estrangeiro.

Esta norma é uma norma bilateral imperfeita, porque não prevê a situação de 2 estrangeiros
que celebram o casamento no estrangeiro, pelo que temos de aplicar o raciocínio analógico,
exigindo uma ligação ao Estado do foro. Nessas situações aplica-se a lei pessoal (nacionalidade).

Art. 52º - Relações entre os cônjuges


Este art. é a regra geral; tem primazia em matéria de relações patrimoniais. Apenas exclui as
relações patrimoniais dependentes de um particular regime de bens, que acabam por ser
inseridas no art. 53º.

O conceito-quadro são as relações entre os cônjuges (incluem os deveres conjugais, o uso


do nome, as relações patrimoniais gerais, isto é, não dependentes de determinado regime de
bens); o elemento de conexão é a nacionalidade comum dos cônjuges, ou na sua falta, a RH
comum, ou ainda na falta desta, a conexão mais estreita; a consequência jurídica é a aplicação
da lei nacional comum, ou a lei da RH comum, ou a lei do país com que a vida familiar tenha uma
conexão mais estreita.

A ratio desta norma prende-se com a intenção de assegurar uma certa unidade na duração
dos interesses do casal e com a ideia de paz, solidariedade e equilíbrio das relações.

Art. 53º - Convenções antenupciais e regimes de bens


O conceito-quadro é a substância e efeitos das relações antenupciais e do regime de bens,
legal ou convencional; o elemento de conexão é a nacionalidade comum dos nubentes, ou na
falta desta a RH comum, ou ainda na falta desta a primeira residência conjugal; a consequência
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jurídica é a aplicação da lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento, ou a


aplicação da lei da RH comum à data do casamento, ou a lei da primeira residência conjugal.

O legislador define a data da celebração do casamento como o momento para determinação


do conteúdo concreto do elemento de conexão para proteção das expectativas do casal (foi
nesse momento que os nubentes, por exemplo, escolheram determinado regime de bens com
expectativas para as suas relações patrimoniais).

A ratio desta norma prende-se com a proteção de um dos membros da relação contra o
possível ascendente do outro e ainda a proteção contra a possibilidade de bens comuns se
tornarem bens próprios e vice-versa.

Art. 54º - Modificações do regime de bens


Este art. vem reforçar a importância do art. 52º enquanto regra em termos de relações
patrimoniais, já que remete para este a escolha de lei competente para autorizar a modificação.

O facto de se estabelecer a modificação do regime de bens não significa automaticamente


que esta é possível; é necessário que a lei pessoal dos nubentes (art. 52º) autorize esta
modificação (se estiverem em causa nubentes PT, aqui vigora o princípio da imutabilidade do
regime de bens, pelo que esta modificação não pode operar).

O nº2 vem dizer que a convenção modificaria não pode ter efeitos retroativos.

Art. 55º - Separação judicial de pessoas e bens e divórcio


Temos no nº1 uma conexão acessória dependente, que nos manda encontrar a lei que irá
resolver estas questões no art. 52º.

O nº2 tem uma conexão decisiva, que será aquela que se verifica à data em que é intentada a
ação de divórcio ou separação, se houver mudança da concretização do elemento de conexão
(lei competente) entre a data da propositura da ação e do julgamento da causa (ex: à data em que
é intentada a ação de divórcio o adultério não é considerado fundamento para a ação; no entanto, à data
do julgamento, quando está a ser apreciada a questão, houve uma alteração da lei e passou a ser
considerado fundamento. Aqui atendemos à data em que foi intentada a ação).

Nem todas as normas de divórcio ou separação estão incluídas neste art.; a questão dos
efeitos patrimoniais e partilha subsumem-se no art. 53º, as consequências do divórcio em relação
aos filhos e as responsabilidades parentais vão para o art. 57º, etc.

Art. 56º - Constituição da filiação


No nº1, o conceito-quadro é a constituição da filiação; o elemento de conexão é encontrado
no art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo, neste caso,
do progenitor; a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal do progenitor à data do
estabelecimento da relação (é uma conexão fixa).

Já o nº2 vem tratar da constituição da constituição da filiação de filho de mulher casada em


relação ao pai, relacionando-se assim com questões da presunção de paternidade. Desta forma,
quando está em causa um filho de mulher casada, a maternidade é estabelecida nos termos do
nº1 e a paternidade nos termos do nº2, que tem como conexões a lei nacional comum da mãe e
do marido, subsidiariamente a lei da RH comum dos cônjuges, e subsidiariamente a lei pessoal
do filho.

Art. 57º - Relações entre pais e filhos


Esta é a única norma de conflitos que regula as relações entre pais e filhos, ou seja, questões
de direitos e deveres, responsabilidades parentais, administração de bens, etc.

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O conceito-quadro são as relações entre pais e filhos; o elemento de conexão é encontrado


no art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo, neste caso,
comum dos pais ou, na falta desta, a RH comum, ou ainda, se não houver residência comum, a
nacionalidade do filho; a consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal comum dos pais, ou
a lei da RH comum, ou a lei pessoal do filho.

Art. 60º - Filiação adotiva


Esta norma tem uma particularidade: os nºs 1, 2 e 3 têm de ser articulados com o nº4, numa
aplicação cumulativa. Isto porque é necessário que o instituto da adoção seja reconhecido,
admitido, para constituir a filiação adotiva.

Neste art. enquadram-se as normas materiais sobre os requisitos substanciais da adoção,


diferenças de idade, ausência de filhos, situação familiar, etc.

Art. 61º - Requisitos especiais da perfilhação ou adoção


Esta norma trata em particular a questão do consentimento, e aplica-lhe a lei pessoal do
perfilhando ou adotando.

Art. 62º - Lei competente


Esta norma é a regra geral, ou seja, quase todas as matérias de sucessões se vão subsumir a
este art. 62º que é a norma de conflitos geral em matéria de sucessões.

O conceito-quadro é a sucessão por morte, os poderes do administrador da herança e do


executor testamentário; o elemento de conexão é encontrado no art. 31º nº1, que determina
que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; a consequência jurídica é a aplicação da
lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento.

Incluem-se aqui todas as questões relacionadas com a abertura, resolução, transmissão e


partilha da herança, o âmbito da sucessão, tudo exceto a capacidade, a forma e os vícios da
vontade.

Art. 63º - Capacidade de disposição


O conceito-quadro é a capacidade para fazer, modificar ou revogar uma disposição por
morte, bem como as exigências da forma especial das disposições por virtude da idade do
disponente; o elemento de conexão é encontrado no art. 31º nº1, que determina que a lei
pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; a consequência jurídica é a aplicação da lei
pessoal do autor ao tempo da declaração.

Art. 64º - Interpretação das disposições; falta e vícios da vontade


O conceito-quadro é a interpretação das cláusulas e disposições, a falta e vícios da vontade
e a admissibilidade de testamentos de mão comum; o elemento de conexão é encontrado no
art. 31º nº1, que determina que a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; a
consequência jurídica é a aplicação da lei pessoal do autor da herança ao tempo da
declaração.

O testamento de mão comum é um instituto que não é permitido na nossa ordem jurídica. No
entanto, a sua inclusão nesta norma prende-se com o facto de o conceito-quadro ter a amplitude
de reconhecer institutos jurídicos estrangeiros com soluções análogas a institutos que existam no
nosso ordenamento jurídico, permitindo assim aceitar o testamento de mão comum.

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Art. 65º - Forma


No nº1 desta norma temos um conjunto de conexões alternativas com o objetivo de validar o
negócio jurídico: a lei do lugar onde o ato foi celebrado; a lei pessoal do autor da herança (no
momento da declaração ou no momento da morte); a lei para que remeta a norma de conflitos da
lei local.

O nº2 apresenta uma norma de reconhecimento das NAI. Assim, independentemente das
soluções do art. 65º, se a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob
pena de nulidade ou ineficácia a observância de determinada forma, ainda que o ato seja
praticado no estrangeiro, terá de ser observada aquela forma. No caso PT, por exemplo, o art.
2223º CC.

Nas questões relativas à capacidade de exercício e capacidade de gozo, o legislador


entendeu que a lei da nacionalidade (lei pessoal) é a que traduz a melhor ligação que assegura as
expectativas jurídicas.

No entanto, e apesar do princípio da unidade e da estabilidade do estatuto pessoal, a lei


estabelece desvios à aplicação da lei da nacionalidade - art 25º -, que resultam na aplicação de
outra lei para tentar validar determinado negócio jurídico. Estes desvios só serão equacionados
se estiver em causa uma questão de capacidade.

Desvios à aplicação da lei pessoal

1. Capacidade de exercício (art. 28º CC + 11º CRoma + 13º Roma I)

Em vez da lei pessoal, aplica-se a lei do lugar da celebração do ato, quando estão em
causa atos celebrados em Portugal.

O art. 28º CC aplica-se quando há uma incapacidade negocial de exercício segundo a lei
pessoal. O ato era inválido segundo a lei pessoal mas, através da aplicação da lei do lugar
da celebração do ato jurídico, vai conseguir validar esse negócio. Isto para assegurar a
garantia do princípio da confiança

Para aplicar o desvio do art. 28º nº1 e 2 CC, é necessário o preenchimento cumulativo de
seis requisitos:

1) o negócio jurídico seja inválido segundo a lei pessoal e válido segundo a lei PT;

2) desconhecimento da incapacidade do declarante (boa fé, 28º nº2 1ª p.);

3) o negócio jurídico seja celebrado entre pessoas que se encontrem no mesmo país, no
caso, em PT;

4) negócio do tráfego decorrente de bens e serviços, excluindo os negócios de família e


sucessões;

5) negócio jurídico bilateral;

6) não pode estar em causa um negócio respeitante à disposição de imóveis situados no


estrangeiro.

Já o 28º nº3 CC cabe quando o negócio é celebrado no estrangeiro.

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Se a norma de conflitos estrangeira tiver regras idênticas às nossas, ou seja, também


considerar válido o negócio segundo a lei do lugar da celebração, apesar de a lei pessoal o
considerar inválido, vamos aplicar o mesmo raciocínio e validar o negócio jurídico.

Aqui não há um elemento de conexão, mas sim uma bilateralização da norma de conflitos.

2. Capacidade de gozo (art. 31º nº2 CC)

Em vez da lei pessoal, aplica-se a lei da residência habitual quanto aos negócios
jurídicos pessoais (perfilhar, casar e testar) e a outros atos de cariz estritamente pessoal
(adoção, convenções antenupciais, etc.).

Este acaba por não ser considerado verdadeiramente um desvio à aplicação da lei
pessoal; no fundo, é um desvio à aplicação da lei da nacionalidade enquanto lei pessoal.
Na verdade, não deixamos de aplicar aqui uma lei pessoal, só que em vez da nacionalidade
aplicamos a RH.

A ratio deste artigo prende-se especialmente com a tutela da confiança do declarante na


validade do negócio jurídico de estatuto pessoal, celebrado no país da RH, de acordo com
o seu direito interno. Isto surge sobretudo porque PT é um país de emigração.

Requisitos (essenciais e cumulativos)

1. negócio jurídico inválido segundo a lei da nacionalidade (a lei pessoal, art. 31º nº1);

2. negócio jurídico celebrado no país da RH (que seja um país estrangeiro);

3. negócio jurídico celebrado de acordo com a lei da RH (direito material);

4. a lei da RH considera-se competente (ex: no reenvio, basta ter o mesmo elemento de


conexão que a lei que remeteu).

Interpretações extensivas:

1. Quando o negócio não tenha sido celebrado no país da RH, mas tenha respeitado essa
lei. Ex: o país da RH era FRA, o negócio jurídico foi celebrado na ALEM mas segundo a lei FRA.
Permite-se a aplicação do art. 31º nº2, já que o objectivo final será sempre validar o negócio jurídico.

2. Quando o negócio tenha sido celebrado fora do país da RH, segundo a lei desse país,
que é tida como competente para o país da RH (reenvio).

3. Capacidade de constituir direitos reais sobre imóveis (art. 47º CC)

Em vez da lei pessoal, aplica-se a lei do lugar da situação do bem imóvel.

O art. 47º difere do art. 28º nº2, porque no primeiro está em causa um imóvel localizado no
estrangeiro, e no segundo só são admitidos imóveis em território PT.

Esta norma tem uma particularidade: só é aplicável se a lei do lugar da situação da coisa
se considerar competente (a qualquer título); caso contrário, aplicamos a regra geral - lei
pessoal (art. 25º).

A ratio deste artigo prende-se especialmente com o princípio da proximidade. Considera-


se que a lei do lugar da situação do imóvel está numa posição privilegiada para impor o seu

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ponto de vista relativamente à solução do caso concreto. Aliada ao princípio da


proximidade está também a preocupação de efetividade das decisões judiciais.

Ao contrário do art. 31º nº2, o 47º pede uma interpretação restritiva: só deve ser
aplicado quando a aplicação seja necessária para assegurar a efetividade das decisões
judiciais proferidas pelos tribunais PT sobre a matéria - fora da UE (este âmbito foi reduzido
pelo reconhecimento automático das decisões por força do art. 36º Reg. Bruxelas I).

Interpretação e aplicação das normas de conflitos

A interpretação das normas de conflito deve ser feita com uma certa autonomia em relação
ao direito material interno, porque vamos reconhecer uma capacidade expansiva aos conceitos-
-quadro.

- normas de conflito de fonte nacional: aplicam-se os princípios gerais do art. 9º CC, sem
prejuízo da capacidade de expansão do conceito-quadro;

- normas de conflito de fonte internacional: aplicam-se os cânones hermenêuticos e a


Convenção de Roma, com especial atenção à importância da uniformidade das interpretações
nos vários Estados através da autonomia em relação ao direito interno;

- normas de conflito de fonte no direito da UE: segundo o TJUE, deve ser feita de forma
autónoma face ao direito interno, tendo em conta a especificidade da norma, o conteúdo, a
ratio legis, a sua natureza e as interpretações jurisprudenciais, em nome da coerência e
unidade do direito da UE.

A integração de lacunas a nível das normas de conflitos não é frequente porque dificilmente
encontramos lacunas nas normas conflituais do CC português. Além de este ser muito completo,
a capacidade expansiva do conceito-quadro permite que quase sempre se encontre uma norma
de conflitos aplicável.

No entanto, se eventualmente aparecer uma situação destas:

1º analogia (art. 10 nº1 CC)

2º princípios gerais de DIP (art. 10 nº3 CC)

Aplicação no tempo das normas de conflitos

Este problema coloca-se quando ocorre uma sucessão temporal de normas de conflitos. Por
exemplo, houve uma altura em que só tínhamos a Convenção de Roma para as obrigações
contratuais (1980), e depois apareceu o regulamento Roma I (2008).

Regra geral, as regras legais/convencionais específicas determinam o âmbito temporal,


regulando diretamente o problema. Assim, o art. 17º CRoma diz-nos que se aplica após a entrada
em vigor nesse Estado (no caso de PT, a 1/09/1974), e o art. 28º Roma I diz-nos que se aplica a
contratos celebrados após 17/12/2009.

Não havendo nenhuma destas indicações, aplica-se o direito transitório da ordem jurídica a
que pertencem as normas de conflito alteradas. No caso de PT, temos o art. 12º CC: não
aplicação retroativa da lei nova (nº1); no caso de relações ou situações duradouras constituídas à
luz da lei antiga, a lei nova aplica-se quando entre em vigor (nº2).

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O problema do conflito móvel: “é suscitado por uma mudança na concretização do fator de


conexão e consiste em determinar qual a influência que poderão exercer em situações jurídicas já
existentes as mutações verificadas nas circunstâncias de facto ou de direito em que se funda a
determinação da lei aplicável” (A. FERRER CORREIA); no fundo, considera-se existente um conflito
móvel sempre que há uma alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão.

O conflito móvel é conceitualmente um conflito de leis no espaço, e não um conflito de leis no


tempo. Não se trata de um fenómeno de sucessão de leis (dinâmica legislativa), mas da
“movimentação” de uma relação jurídica através de espaços em que imperam diferentes
soberanias e diferentes sistemas de DIP.

Este conflito supõe uma conexão variável (nacionalidade, domicílio, RH, lugar de um bem
móvel); o mesmo não poderia sucede com uma conexão constante, como o lugar da situação da
coisa ou o lugar da celebração do negócio.

É resolvido através da não aplicação da lei correspondente à nova concretização do elemento


de conexão aos factos constitutivos, modificativos e extintos das relações jurídicas já verificadas
ao tempo da mudança do conteúdo concreto do elemento de conexão, para proteger as
expectativas legítimas.

Ex: A é PT e tem 18 anos; adquiriu capacidade negocial de exercício em PT e adquiriu a nacionalidade


SUI; para efeitos do direito suíço, a maioridade é aos 21 anos. Após adquirir a maioridade segundo a lei PT,
resolve vender a B um automóvel, ainda antes de adquirir a nacionalidade SUI. Teria capacidade para
realizar o CCV?

No momento em que se constituiu o direito, A era nacional PT, pelo que se aplica a lei da nacionalidade
ao tempo em que se constituiu o direito. Esta solução tem em vista a proteção das legítimas expectativas
das partes envolvidas.

Aplicação no espaço das normas de conflitos

Está aqui em questão saber se as normas de conflitos do Estado do foro se aplicam a todas
as questões privadas internacionais submetidas aos tribunais dessa estado, ou se só se aplicam
às situações que tenham determinada ligação ao Estado do foro.

As normas de conflito em vigor na ordem jurídica PT aplicam-se sempre que os tribunais PT


estão a resolver uma questão privada internacional, porque entre nós vale o princípio da
territorialidade do direito de conflitos.

No entanto, em alguns casos, o nosso sistema conflitual permite que se apliquem normas de
conflito estrangeiras (devolução e reenvio - arts. 17º, 18º, 35º nº2 CC) ou que simplesmente lhes
seja dada relevância pelas normas de conflito PT (arts. 28º nº3, 31º nº2 e 47º CC).


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A QUALIFICAÇÃO
As regras de conflitos definem e delimitam o seu âmbito de aplicação por meio de conceitos
técnico-jurídicos. Estes conceitos têm a característica peculiar de serem aptos a incorporar uma
multiplicidade de conteúdos jurídicos (conceitos-quadro).

A sua extensão é muito variável: podem designar grandes divisões do direito privado
(obrigações, direitos reais, sucessões por morte), negócios jurídicos em geral, certa categoria de
negócios jurídicos, um aspeto isolado da sua regulamentação (por exemplo, a forma) ou ainda
determinado instituto (divórcio, filiação, responsabilidade extracontratual).

Daqui levantam-se problemas de interpretação de conceitos e de aplicação da norma. Como


estão em causa conceitos construídos pela técnica jurídica, ao invés de meros conceitos
descritivos ou factos, põe-se a questão de saber como interpretar tais conceitos. Por exemplo, o
que é casamento ou divórcio para a norma de DIP que utiliza esse conceito? Vale como divórcio o divórcio
“privado” do direito rabínico ou o talak do direito muçulmano?

A qualificação é uma operação prévia à aplicação de qualquer norma jurídica, com o objetivo
de preencher a previsão da norma, ou seja, subsumir os factos em normas, determinando uma
consequência jurídica. Depois de preenchida a previsão, pode-se aplicar a 2ª parte da norma, ou
seja, recorrer ao elemento de conexão e saber qual a ordem jurídica aplicável ao caso.

As especificidades da qualificação em DIP foram abordadas pela primeira vez por KHAN, no
estudo do caso Bartholo. Estava em discussão o instituto da quarta do cônjuge pobre, em que o tribunal
devia decidir se se aplicava o direito francês ou maltês.

Quando dada norma de conflitos remete para determinada ordem jurídica, pode fazê-lo em
relação a toda ela (1) ou apenas para a categoria que se enquadra no conceito-quadro (2).

1. Referência aberta: a referência diz respeito a todas as normas materiais da lei aplicável;

2. Referência seletiva ou orientada: a referência diz respeito apenas às normas de lei


estrangeira que correspondem ao conceito-quadro definido na norma de conflitos.

O legislador PT faz uma leitura da referência seletiva ou orientada, de modo a salvaguardar os


interesses que estão na base da escolha do elemento de conexão.

Ex: A, solteiro, ING, morre sem testamento com o último domicílio em PT e bens imóveis (1 casa) no
Algarve. Quem são os seus herdeiros?

A norma de conflitos que regula as sucessões é o art. 62º CC que diz que se aplica a lei da
nacionalidade do autor da sucessão ao tempo de falecimento. Em PT, se alguém falecer sem herdeiros, o
Estado aparece como tal; em ING, na mesma situação, a coroa britânica tem o poder de se apropriar dos
bens sem dono, equivalente aos nossos direitos reais.

Como a lei PT faz uma referência seletiva, não podemos aplicar o regime mencionado da lei ING, e
vamos aplicar o lugar da situação da coisa, visto estarem em causa direitos reais (art. 46º).

O objeto da qualificação é o objeto da norma de conflitos: as relações privadas


internacionais e a conjunção ou simbiose entre a situação fática e o conteúdo jurídico (dado
normativo).

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Operação de qualificação

1º passo: interpretação do conceito-quadro designativo do objeto de conexão

A interpretação do conceito quadro é feita através de uma de 3 hipóteses:

i) interpretação lege forum (de acordo com a lei do foro)

Os conteúdos subsumíveis ao conceito-quadro de dada norma de conflitos seriam


precisamente os que correspondem a esse mesmo conceito no sistema de regras
materiais da lei do foro.

Esta não é a solução adotada pelo legislador PT porque: (1) restringe excessivamente o
âmbito do conceito-quadro (nega a aplicação em PT de institutos jurídicos estrangeiros
desconhecidos do nosso direito material, ou institutos jurídicos com conteúdo diferente no
nosso direito material, ainda que visem finalidades sociais idênticas); e (2) põe em causa as
finalidades do próprio DIP, nomeadamente, a confiança nas situações plurilocalizadas.

ii) interpretação recorrendo ao direito comparado (pegar nos institutos conceituados nas
normas de conflito PT e tentar, por recurso ao direito comparado, encontrar conceitos
idênticos para todos os casos)

Também não é esta a solução adotada, (1) dada a dificuldade em encontrar conceitos
únicos e (2) o facto de que recorrer ao direito comparado não permitir captar o juízo de
valor que esteve na base da elaboração da norma de conflitos, ou seja, a ratio da norma.

iii) interpretação teleológica (conceitos no nosso CC, bem como os que, na ordem jurídica
que origem, exerçam uma função análoga/idêntica)

Todo o sistema de regras de conflitos deve ser preordenado à satisfação de


determinados interesses. Assim, a cada matéria ou zona de regulamentação deve ficar a
corresponder a conexão mais adequada, em função dos interesses que, em cada um dos
vários setores, se devam considerar prevalecentes.

Na categoria normativa própria de cada regra de conflitos hão de poder ser incluídos os
múltiplos preceitos e institutos estrangeiros que, no ordenamento a que pertencem, se
proponham realizar a mesma função social que o legislador do foro teve em vista ao aludir
a tal categoria, ou uma função substancialmente análoga, dada a elasticidade das
categorias de conexão.

É esta a interpretação adotada pelo legislador PT.

“Um conceito-quadro abrange todos os institutos ou conteúdos jurídicos, quer de direito


nacional ou estrangeiro, aos quais convenha, segundo a ratio legis, o tipo de conexão adotado
pela regra de conflitos que utiliza o mesmo conceito.” (A. FERRER CORREIA)
Se a norma de conflitos for de fonte nacional ou da UE, a interpretação deve ser autónoma
face ao direito interno dos estados. Não podemos recorrer à comparação de direitos porque não
há forma de encontrarmos conceitos comuns e, para garantir a uniformidade da aplicação
fazemos uma interpretação autónoma.

2º passo: caracterização do objeto da qualificação

O objeto da qualificação é o objeto da norma de conflitos, o tal dado normativo, o quid a


subsumir ao conceito-quadro.

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Da lei designada pela norma de conflitos só podem considerar-se aplicáveis os preceitos


correspondentes à categoria definida e delimitada pelo respetivo conceito-quadro. Ou seja: uma
lei nunca é convocada na totalidade das suas regras materiais.

Assim, temos que tentar encontrar qual é o objeto, função, conteúdo daquele dado normativo
dentro da ordem jurídica a que pertence.

Vamos buscar a ratio da norma na sua ordem jurídica, sendo por isso uma caracterização legis
causae, tendo em conta os objetivos e finalidade que presidirem àquela norma e à sua aplicação
(segue a ideia que “ninguém conhece melhor o filho do que a mãe”: mãe = lex causae).

3º passo: qualificação em sentido estrito

Consiste na subsunção do objeto da qualificação no conceito-quadro da norma de conflitos.

Tem de haver um critério de correspondência funcional entre o dado normativo que


queremos aplicar e o conceito-quadro de uma das normas de conflito de onde partimos. Aqui, o
legislador tem autonomia para averiguar se existe analogia para subsumir essa norma material a
um destes conceitos-quadro: o julgador faz um juízo de valoração autónomo (não interessa onde
a norma está inserida, mas sim as suas características).

Por isso, fazemos uma qualificação lege fori (porque partimos do direito do foro) operada
com base numa caracterização lege causae (só nesse sistema se poderão colher as
características reais, tendo em conta o seu conteúdo, as suas conexões sistemáticas e a função
sócio-jurídica que nele lhe foi assinalada).

O problema aqui é averiguar quais sejam, de entre os preceitos materiais do ordenamento


designado por certa norma de conflitos, os correspondentes à categoria definida pelo conceito-
quadro dessa norma, ou seja, determinar se dado instituto ou preceito do referido ordenamento
pode ser subsumido a tal categoria.

Em síntese, se à lex fori compete decidir se os preceitos considerados correspondem


efetivamente (atentas as suas características principais) ao tipo visado na regra de conflitos, é no
quadro da lex causae que vão colher-se estas características.

A qualificação é uma operação por tentativas.

O regime da qualificação no DIP português encontra-se no art. 15º CC.

Perante um sistema de direito S e uma norma m desse sistema (em que uma das partes se baseia para
enunciar a pretensão), começa-se por considerar aquele sistema como hipoteticamente aplicável ao caso.

O passo seguinte é averiguar se a norma m, considerados o seu conteúdo e escopo, corresponde


realmente à categoria de conexão de uma determinada regra de conflitos da lex fori.

Finalmente, se se chegar à conclusão de que as características do tipo ou da categoria de conexão da


referida norma de conflitos se encontram reproduzidas na disposição material m, nada mais restará fazer
senão declarar tal disposição aplicável à situação jurídica concreta. Se, ao invés, a hipótese não se
confirmar, terá de concluir-se pela inaplicabilidade do sistema de direito S.

Este método parece ser o único conforme ao princípio da igualdade, no sentido em que as
condições que decidem da aplicabilidade in casu da lei estrangeira devem ser as mesmas que
determinariam (se fosse caso disso) a aplicação da lex fori. Por outras palavras: uma legislação
estrangeira A deve ser declarada aplicável à situação concreta b desde que possa dizer-se que,
em circunstâncias análogas de facto e de direito, a lex fori se julgaria competente.

Se a legislação A regula a promessa de casamento como uma instituição quase-familiar, é forçoso


incluí-la, para efeitos de aplicação dessa lei, na categoria de conexão do sistema de DIP do foro de
“direito da família” ou “relações jurídico-familiares”. Pouco importa que o direito interno do país do
tribunal (ex: FRA) não conceda relevo jurídico aos esponsais e que a rutura da promessa de casamento

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sem justa causa apenas possa ser considerada como fundamento de responsabilidade civil pelo dano
causado à outra parte.

Se o contrato esponsalício foi celebrado entre duas pessoas de nacionalidade PT, o facto de a rutura
se ter verificado num país onde prevalece a qualificação delitual não deveria impedir um tribunal FRA de
julgar a causa conforme os princípios do direito PT.

Só assim se coloca em pé de igualdade a lei estrangeira e a lex fori, e é também o único


caminho que permitirá alcançar a harmonia jurídica entre as duas legislações consideradas.

A doutrina que seguimos apresenta uma série de aspetos positivos.

Esta doutrina, que só o CC português consagra, assegura de imediato a aplicação ao caso


concreto de todos os preceitos da lei declarada competente que se relacionem de modo
essencial, pelo conteúdo, fins e conexões sistemáticas, com a matéria ou questão de direito em
causa; ao mesmo tempo, rejeita qualquer norma situada além da fronteira traçada pela regra de
conflitos.

Por fim, só esta posição tem em conta o princípio da igualdade e princípio da paridade de
tratamento, porque só ela se mantém fiel à ideia de que os fatores determinantes da
aplicabilidade das leis estrangeiras deverão ser os mesmos que decidem da aplicação das leis do
foro.

Conflitos de qualificações

O processo de qualificação pode levar à concorrência de preceitos materiais de leis diferentes,


convocadas a títulos também diferentes, para regular o mesmo caso, ou o mesmo aspeto de
certo caso. O Código Civil não propõe aqui qualquer solução.

A. FERRER CORREIA indica que se deverá tentar definir uma relação de hierarquia entre as
qualificações conflituantes. O critério será fundamentalmente o dos fins a que as várias normas
de conflitos vão apontadas, isto é, dos interesses que intentam servir.

Apesar deste critério geral, há que ter em conta as solução oferecidas pelas próprias leis em
presença, para entre elas optar, para as harmonizar entre si (adaptação) de modo a tornar
possível a sua aplicação combinada. Por exemplo, se uma lei reveste caráter de generalidade e a
outra contempla em especial o tipo de situações em foco, é a última que deve prevalecer: lex
specialis derogat legi generale.

Assim, em casos de conflitos positivos de qualificações:

• forma vs. substância: primazia à substância e requisitos de fundo do ato jurídico;

• real vs. pessoal: primazia à qualificação real (a ligação da coisa ao território é muito mais
forte do que a do indivíduo ao Estado nacional);

• regime matrimonial vs. regime sucessório: não há exclusão, mas sim uma aplicação
sucessiva - aplica-se primeiro o estatuto matrimonial e depois o sucessório.

Exemplo de um conflito negativo de qualificações: um cidadão ING morre em PT com domicílio


em ING. A herança compõe-se de bens existentes em PT. O de cujus faleceu intestado e não deixou
sucessíveis: ambos os sistemas interessados estão de acordo quanto a este ponto. O direito da Coroa ING
às heranças vagas é um direito (público) de caráter quase-real, de ocupação dos bona vacantia.
Diversamente, o Estado PT, quando é chamado, é-o na veste de herdeiro.

A solução não pode passar nem pela lei ING (porque está em causa uma norma real e não sucessória)
nem pela PT (porque a nossa lei é sucessória mas não é a lei PT que se aplica à sucessão). Como a
herança não pode ficar vaga, deve-se preencher a lacuna com a lei da situação dos bens, mediante a
criação de uma norma que permita ao Estado PT apoderar-se das heranças no seu território, sempre que
segundo a lei da sucessão o de cujus não tenha deixado sucessores.

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INTERPRETAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DO ELEMENTO DE


CONEXÃO
Princípios gerais de interpretação e aplicação

O elemento de conexão é a ponte entre a situação de vida a regular que está no conceito-
quadro e a ordem jurídica cujas normas são aplicáveis àquela situação.

Para designar esta ordem jurídica, a norma de conflitos socorre-se de conceitos técnico-
jurídicos, cujo sentido e alcance se obtém por aplicação de outras regras jurídicas. São exemplos
de elementos de conexão: a nacionalidade, a residência, o lugar da prática do ato jurídico, etc.

Sempre que a norma de conflitos recorre a estes conceitos, a aplicação e interpretação das
normas de conflitos suscita 3 problemas:

1. interpretação do conceito-quadro do elemento de conexão: deve ser feita de acordo


com a lei do foro, dentro dos quadros da ordem jurídica a que pertence a norma de conflitos (ex.:
se estiver a aplicar uma norma de conflitos PT, tenho de recorrer à lei PT para interpretar o elemento de
conexão). Assim, é em função da ordem jurídica onde está a norma de conflitos que vamos
interpretar o elemento de conexão, já que o significado destes conceitos pode variar de país para
país.

2. concretização do elemento de conexão: não está em causa a definição em abstrato do


elemento de conexão, mas sim saber em concreto, no caso a julgar, como vamos determinar o
problema. Em regra, a concretização deve ser feita lege causae, isto é, segundo o ordenamento
jurídico designado pela norma de conflitos. Esta forma favorece a harmonia dos julgados, pois
evita que tribunais de diferentes países concretizem de formas diferentes os mesmos elementos
de conexão, bem como situações claudicantes.

3. pluralidade ou ausência de conteúdo concreto do elemento de conexão: situações em


que uma pessoa é tida como nacional de mais que um país, ou residente em mais que um país, e
é necessário verificar qual deles prevalece (pluralidade de conteúdo concreto); ou quando o
indivíduo não tem qualquer nacionalidade ou não se considera residente em nenhum país
(ausência de conteúdo concreto).

A nacionalidade

A nacionalidade é o elemento de conexão paradigmático, porque as soluções que dermos


para a nacionalidade podem ser transpostas para todos os outro elementos de conexão.

Concretização do elemento de conexão da nacionalidade

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 62º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável), que vai indicar se o sujeito é
nacional ou não, com base no princípio da liberdade dos estados em atribuir a sua nacionalidade,
decorrente da soberania. Assim, as normas de direito da nacionalidade de cada Estado não são
bilateralizáveis. No entanto, a liberdade dos Estados tem um limite: a atribuição da nacionalidade
deve ter por base um vínculo efetivo entre aquele estado e o indivíduo - princípio da efetividade.

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A atribuição da nacionalidade baseia-se normalmente em:

1. ius soli - critério mais frequente em países de imigração;

2. ius sanguini (filhos dos nacionais) - critério mais frequente em países de emigração (PT).

Em PT, a lei da nacionalidade apresenta 2 formas de aquisição:

1. Originária: os efeitos da nacionalidade retroagem à data de nascimento. Pode ser:

- por mero efeito da lei: quando na mesma pessoa se conjuga o ius soli e o ius
sanguini (art. 1º nº1 als. a) b) e) g) LN);

- por efeito da vontade: art. 1º nº1 als. c) d) f) LN.

2. Derivada: os efeitos da nacionalidade reportam-se a um momento posterior ao


nascimento. Pode ser:

- por efeito da vontade: no caso de filhos menores ou incapazes e do casamento ou


união de facto (art. 2º e 3º LN);

- por adoção: art. 5º LN;

- por naturalização: cumprindo os requisitos do art. 6º LN.

Pluralidade ou ausência de conteúdo concreto do elemento de conexão

Em caso de plurinacionalidade, há que escolher um critério para definir a qual nacionalidade


vamos dar primazia:

- entre nacionalidade PT e outra - nacionalidade PT (art. 27º LN);

- entre nacionalidades estrangeiras - nacionalidade da RH ou, em falta, com a qual tenha uma
vinculação mais estreita (princípio da nacionalidade efetiva - art. 28º LN).

Por vezes, a nacionalidade pode ser irrelevante para as matérias de estatuto pessoal, como no
caso dos refugiados - alguém perseguido que seja obrigada a fugir do seu estado de
nacionalidade e vai pedir proteção jurídica a outro país. Aqui não devemos aplicar a lei da
nacionalidade, mas sim do estado onde pedem asilo.

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A DEVOLUÇÃO OU REENVIO
Génese e alcance do problema

Já vimos que um dos problemas a que nos conduz o elemento de conexão da regra de DIP é
o conflito de conexões (diversidade de fatores de conexão adotados nos vários sistemas de
direito), que pode ser positivo (quando 2 ou mais legislações se declaram simultaneamente
aplicáveis à mesma questão jurídica concreta) ou negativo (quando nenhuma das leis com as
quais a situação se acha em contacto pretender discipliná-la).

É precisamente o conflito negativo de conexões que deu origem ao aparecimento, por criação
da jurisprudência, da teoria da devolução ou reenvio. Este conflito suscita um problema
comum, que é o de saber se o tribunal deve aplicar invariavelmente o seu próprio sistema de
conflitos, ou se dele pode apartar-se por vezes, e em que circunstâncias.

Ex.1: Um cidadão BRA domiciliado em PT morre neste país. Segundo o DIP PT, a lei reguladora da
sucessão deste indivíduo é a BRA; segundo o DIP BRA, a lei aplicável é a PT (lex domicilii).

Ex.2: O de cujus era um cidadão DIN domiciliado em ITA. A lex fori (PT) manda aplicar à sucessão a lei
DIN (lex patriae), que no entanto defere a questão à do último domicílio do hereditando (ITA).

Em nenhum destes casos a ordem jurídica indicada pelo DIP do foro se julga aplicável: no ex.1
devolve ou retorna a competência à própria lex fori; no ex.2, como que a transmite ou endossa a
uma terceira legislação.

Os tipos mais frequentes de reenvio são, então:

1º grau ou Retorno (art. 18º CC) 2º grau ou Transmissão de Competência


Remetemos para a lex causae e essa lei (art. 17º CC)
remete/retorna/reenvia para a lei do foro.
Remetemos para a lex causae e essa lei
Quem deve decidir é a lei do Estado do foro.
remete para uma terceira legislação.

Quem deve decidir é a terceira lei.

L1 L2 L1 → L2 → L3

O problema do reenvio só se colocou com a codificação do direito de conflitos e a


consequente adoção de diferentes elementos de conexão pelos diferentes Estados, o que
resultou num problema de conflitos negativos de sistemas, ou seja, nenhuma das ordens jurídicas
envolvidas se acha competente para resolver a questão.

A questão que se coloca no reenvio é a seguinte: como é que os nossos tribunais devem
encarar a posição da lei estrangeira de não querer resolver a questão? Quando uma norma
de conflitos PT remete para uma lei estrangeira, essa remissão abrange apenas as normas
materiais ou também as normas de conflitos e normas auxiliares, ou seja, normas de reenvio?

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A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em causa, consoante


este seja mais ou menos afeto ao reenvio, e pode ser 1 de 3:

1) Teoria da Referência Material (absolutamente contra o reenvio)

Considera que quando a norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas
para as normas materiais dessa lei estrangeira, ignorando as normas de conflitos e normas
auxiliares.

De acordo com esta teoria, no Ex.1, a lei competente, segundo a ordem jurídica do foro, é a lei BRA.
Como esta referência à lei BRA é material, ignorando as normas de conflitos desse ordenamento, serão os
princípios de direito sucessório BRA que os tribunais PT deverão aplicar.

A favor da referência material temos que:

• esta teoria é a única compatível com a vontade das partes (nas situações em que se permite
que as partes escolham a lei aplicável a uma relação plurilocalizada, o reenvio pode significar a
aplicação de uma lei diferente da convencionada);

• é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei que tenha uma
conexão mais estreita (permitir o reenvio significaria que o julgador escolhia uma lei e depois,
através do reenvio, aplicávamos outra completamente diferente - contrário à opção legislativa);

• facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não implica o contacto com normas de
conflitos estrangeiras nem normas estrangeiras auxiliares de reenvio.

2) Teoria da Referência Global (a favor do reenvio)

Considera que quando a norma de conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está a
remeter para toda a lei estrangeira, ou seja, normas materiais, normas de conflito, normas de
reenvio. Está a fazer uma remissão em bloco.

As vantagens desta posição:

• harmonia de julgados (contraria o facto de os Estados adotarem elementos de conexão


diferentes);

• conseguir o favor negotii (aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae, mas
que será válido pela outra);

• nas situações de retorno, se aceitarmos o reenvio, vamos conseguir a aplicação do direito


do foro, que é o que os tribunais melhor conhecem (boa administração da justiça).

Os problemas práticos trazidos por esta teoria são:

• nos casos de retorno, a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, jogo de ping
pong ou jogo de espelhos, em que cada ordem jurídica remete a competência para outra
(L1 → L2; L2 → L1; L1 → L2;…);

• nos casos de transmissão de competências, pode gerar-se o reenvio ad eterum


(L1 → L2; L2 → L3; L3 → L4; e assim sucessivamente).

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla
devolução.

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a) Teoria da devolução simples

Para evitar o jogo de espelhos ou o reenvio ad eternum, considera-se que a referência feita
pela lex causae a outra lei é uma referência material, de modo a parar o reenvio.

referência


global
referência
referência

global material
L1 L2 L1 L2 L3

referência

material

Retorno: Considera-se que a lei do foro está a fazer 2 referências: uma primeira referência
global (L2), para o conjunto do ordenamento jurídico; ao fazê-lo, apercebe-se que L2 não quer
resolver a questão, quer que se aplique L1; assim, o julgador ficciona que esta referência, feita
por L2, é uma referência material, para parar o reenvio. L1 aplica L1.

Transmissão de competências: Considera-se que a lei do foro está a fazer 2 referências:


uma primeira referência global (L2), para o conjunto do ordenamento jurídico; L2 não se
considera competente e remete a questão para L3; assim, o julgador ficciona que esta
referência é uma referência material, para parar o reenvio. L1 aplica L3.

Ex: em matéria de estatuto pessoal, queremos saber que lei se aplica a um BR que reside em IT.
Começamos sempre pela nossa norma de conflitos, pelo que vamos ao artigo do estatuto pessoal (art.
25º). O art. 25º + 31º nº1 manda aplicar a lei da nacionalidade. Como o senhor é BR, é aplicável a lei BR
(L2). Vamos olhar para as normas de conflitos BR que dizem que sobre esta matéria aplicam a RH.
Como o senhor reside em IT, aplicamos a lei IT (L3). A lei IT diz que se aplica a lei do lugar da
celebração.

Poderíamos continuar ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de


tornar o reenvio praticável. Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o,
considerando que a 2ª referência é material.

Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia jurídica
internacional. Se depois de L1 → L2, remetendo L2 para L1 (ou para L3), os tribunais locais resolverem
o caso segundo os princípios de direito interno de L1 (ou L3), é seguro que a sua solução será idêntica à
que seria preferida por um juiz do Estado a que L2 pertence.

No entanto, há um caso em que a devolução simples não funciona no sentido de gerar


harmonia de julgados: L1 →L2, mas L2 também pratica devolução simples. L1, ao resolver a questão,
fazia uma referência global a L2, vê que L2 não quer resolver, e ficciona esta 2ª referência de L2 a L1,
material; L1 aplica L1. Já L2, a resolver esta questão, fazia 1º a referência global a L1, vê que L1 não
quer resolver a questão, e ficciona que a 2ª referência é material; L2 aplica L2.

b) Teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory)

Foi desenvolvida pelos tribunais ingleses, apercebendo-se que a devolução simples não
gerava a harmonia dos julgados quando tanto L1 como L2 praticam essa modalidade de
referência global.

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A referência da norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais
locais o dever de julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado onde
essa lei vigora. Como o próprio nome indica, o tribunal do Estado do foro deve julgar como
julgam os tribunais da lex causae, a lei que se considera competente, exatamente da mesma
forma.

Ex: L1 pratica referência material; L2 pratica dupla devolução. L1 remete para as normas materiais de
L2; L2 aplica L2 como julgaria o tribunal de L1.

Ex.1: o direito FRA manda regular a sucessão imobiliária mortis causa pela lex rei sitiae; o direito PT, pela
lei nacional do hereditando. Que lei aplica em PT à sucessão de um FRA que deixou alguns prédios na
cidade de Lisboa? Aplica-se a lei FRA, porque os tribunais FRA, se fossem eles a decidir, aceitariam o
reenvio da lex situs para a lex patriae. (utilização pelo juiz PT de um duplo reenvio).

Ex.2: um cidadão FRA falecido em PT possuía bens imóveis em ITA. O direito FRA endossa a
competência ao ITA, mas aceita o reendosso que este lhe oferece. Logo PT resolve o litígio segundo o
direito FRA. (a decisão PT coincidirá com a que seria proferida no mesmo caso em FRA e ITA).

Bem como na teoria da devolução simples, a teoria da dupla devolução não funciona no caso
de ambos os Estados em questão praticarem a dupla devolução: L1 diz que julga como L2; L2
diz que julga como L1; voltamos ao ciclo vicioso.

Por essa razão, esta teoria não pode ser concebida enquanto generalizada a todos os
Estados, criando assim conflitos negativos de competência muitas vezes insolúveis.

3) Teoria Intermédia (ordenamento jurídico PT, entre outros)

Como vimos pela explicação das teorias anteriores, o reenvio como princípio geral é
inaceitável, seja qual for a modalidade em que se apresente.

O reenvio atua apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia dos
julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela da
confiança). Deste modo aceita-se o reenvio, mas só quando conduz a um destes resultados.

Assim, o reenvio não pode ser erigido em princípio geral de DIP nem relegado para o museu
das antiguidades jurídicas; deve ser uma ponderação mais ou menos necessária na moldura dos
interesses visados pelas normas de conflitos, como caminho para se atingirem os fins que o DIP
se propõe realizar.

Efetivamente, pode acontecer que a aplicação em certo e determinado caso do direito material
da lei designada pela regra de conflitos do foro se apresente como solução pior do que adotar-se
o critério do legislador estrangeiro.

Se os Estados primordialmente interessados na situação que se considera são unânimes em


sujeitá-la ao direito material X, não aparenta haver qualquer conflito de leis; não se justifica,
então, que o DIP do foro intervenha, impondo o seu ponto de vista divergente e suscitando um
conflito.

Deste modo, o reenvio permite, em muitos casos, a eliminação de situações de incerteza


jurídica, na medida em que por seu intermédio se torna possível pôr de acordo todos sistemas
jurídicos interessados.

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Regime vigente

Antes do Código Civil atual, a corrente predominante na doutrina portuguesa era contrária ao
reenvio. Já no código de 1966, o reenvio encontra-se regulado nos arts. 16º, 17º, 18º, 36º nº2 e
65 nº1 CC.

O legislador português decidiu assumir uma via media quando à regulamentação do reenvio:
rejeita toda a ideia de aplicação sistemática, mas define com certo rigor o âmbito em que este
deve atuar (não descurando este mecanismo que permite a uniformidade de valoração da mesma
situação de vida por parte dos sistemas de direito com ela conectados, atingindo um dos
maiores objetivos do direito de conflitos).

Podemos inferir que a ideia da harmonia jurídica internacional foi a fonte de inspiração do
legislador português.

O art. 16º funciona como uma regra geral, que em princípio não permite o reenvio, já que
indica que quando remetemos para a lei estrangeiros estamos a remeter para o direito material.
Esta regra é de aplicação subsidiária, visto que só se recorre a ela se não funcionarem as
restantes regras do reenvio:

1º desvios que permitem o reenvio: arts. 17º nº1, 18º nº1, 36 nº2 e 65 nº1;

2º restrições aos desvios ao reenvio: arts. 17º nº2, 18 nº2 e 19º;

3º exceção às restrições, que permite voltar ao reenvio: art. 17º nº3.

Como já vimos, o nosso ordenamento jurídico aceita o reenvio por dois motivos: harmonia de
julgados (arts. 17º nº1 e 18º nº1) e favor negotii (arts. 36º nº2 e 65º nº1).

Possibilidades de reenvio

1. com objetivo de harmonia de julgados (art. 17º nº1 + 18º nº1)

Art. 17º - transmissão de competência - indica que se a norma de conflitos da lei designada
pelo DIP do foro remeter para uma 3ª legislação, esta só é aplicável se se considerar:

• diretamente competente: adotou o mesmo elemento de conexão que a lei que a designou.

L1 → L2 → L3

• Ex: um tribunal PT (L1) quer julgar o estatuto pessoal de um BRA (L2) domiciliado na ARG (L3). L1
manda aplicar a nacionalidade, que é L2; L2 manda aplicar a residência habitual, que é L3; L3 também
aplica a RH, por isso considera-se competente.

• indiretamente competente: considera-se competente através das regras do reenvio.

L1 → L2 → L3

• Ex: um tribunal PT (L1) quer julgar o estatuto pessoal de um BR (L2) domiciliado na ALEM (L3). (L2
pratica referência material e manda aplicar RH; L3 pratica devolução simples e manda aplicar nacionalidade)

• L1 manda aplicar a nacionalidade, que é L2; L2 manda aplicar a RH, que é L3; L3 manda aplicar a
nacionalidade, ou seja, L2. No entanto, como a L2 pratica referência material, remete para o direito
material de L3; L3, como pratica devolução simples, faz uma 1ª referência global para L2, vê que esta
não quer julgar a questão, e então ficciona uma 2ª referência material a L3, ela própria. Assim, L3
considera-se indiretamente competente.

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Art. 18º - retorno - indica que o direito material da lei do foro só é aplicável se:

• retorno direto: se a norma de conflitos da lei estrangeira para ele devolver diretamente.

L1 → L2 → L1

• Não há dúvidas quando o sistema jurídico que remete para PT é o Brasil ou Dinamarca,
por exemplo, porque não admitem o reenvio; a aplicação da lei PT permite alcançar o mesmo
resultado a que se chegaria no BRA ou DIN.

• Se o DIP da lei estrangeira que remete para PT praticar uma referência global, já não pode
haver reenvio (impede a uniformidade de valoração da situação sub judice). Cabe a aplicação
das disposições materiais do sistema indicado pelo DIP do foro.

• retorno indireto: se a norma de conflitos da lei designada pelo DIP do foro remeter para
uma 3ª legislação, devolvendo esta a competência à lex fori.

L1 → L2 → L3 → L1

• Esta modalidade de retorno é de aceitar, tendo em vista a ratio legis de harmonia jurídica,
quando se cumpram cumulativamente os requisitos:

1. aceitação da transmissão de competência pelo sistema designado pelo DIP local;

2. designação da lex fori pela 3ª legislação através de uma referência material.

2. com objetivo de favor negotii (art. 36º nº2 + 65º nº1)

Os arts. 36º nº2 e 65º nº1 regulam as situações de conservação da validade do negócio
jurídico e indica que se a forma da declaração negocial obedecer, não à lei do lugar da
celebração, mas à do Estado para que remete a norma de conflitos daquele sistema, a
declaração é válida.

Assim, se não aceitássemos o reenvio, L1 → L2, aplicava-se L2 e o negócio era inválido; no


entanto, não tem lógica, porque se a questão fosse julgada em L2, L2 → L3 e o negócio era
válido. Por isso, aceitamos o reenvio e aplicamos L3, sob o princípio da conservação do negócio
jurídico.

Situações em que o julgador paralisa o reenvio

A primeira destas exceções ao reenvio encontra-se o art. 17º nº2, que apresenta os seguintes
requisitos:

1. a L2 (referida pela norma de conflitos PT) tem de ser a lei pessoal (nacionalidade), ou seja,
temos que estar perante uma matéria de estatuto pessoal;

2. o interessado (aquele que desencadeia o elemento de conexão):

a) tem RH em território PT; ou

b) resida em país cujas normas de conflito considerem competentes o direito material do


estado da nacionalidade.

A ratio legis destas duas situações é conseguir a paragem do reenvio e a aplicação da lei da
nacionalidade.

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O art. 18º nº2 faz o mesmo para as matérias de estatuto pessoal, mas estabelece que as
únicas hipóteses de retorno para estas são as que resultem do preenchimento dos seus
requisitos (dificulta mais o retorno que a transmissão de competências):

1. temos que estar perante uma matéria de estatuto pessoal;

2. o interessado (aquele que desencadeia o elemento de conexão):

a) tem RH em território PT; ou

b) a lei do país da RH considere competente o direito material PT.

Já o art. 19º nº1 paralisa o reenvio, com fundamento no favor negotii: cessa o reenvio
quando o mesmo gere ineficácia ou invalidade do negócio (se o negócio for válido e eficaz em
face da lei indicada pelas normas de conflitos PT).

A ratio legis desta norma é a seguinte: se os interessados realizaram o negócio jurídico em


conformidade com as disposições de um sistema de direito material que é declarado competente
pela regra de conflitos do foro, e for de crer que eles se orientaram precisamente por esta norma
de conflitos, não seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do ato.

Outra restrição ao reenvio encontra-se no art. 19º nº2, com base na autonomia da vontade:
não haverá reenvio quando a lei estrangeira aplicável o for por força da vontade das partes
contratantes, nos termos do art. 3º CRoma. Se a lei por elas designada remeter para outra, essa
transmissão de competência ou esse retorno não têm relevo.

Assim, se o legislador permitiu que as partes preferissem a lei de um certo país para regular
determinada matéria, presume-se que estas o fizeram em função dos seus próprios interesses;
por isso, não poderia vir a posteriori permitir o reenvio, sob pena de se frustrarem as razões que
levaram à possibilidade da escolha da lei.

Além destas, existem ainda outras conexões contrárias ao reenvio:

1. Quando a norma de conflitos manda aplicar a lei do lugar da celebração de certos


negócios jurídicos (art. 36º nº1, 50º e 65º nº1), fá-lo em nome da conservação do negócio
jurídico, já que se considera que para as partes é mais fácil apurar os requisitos do lugar onde
estão a celebrar certo negócio jurídico (exceto as situações em que temos um reenvio
especialmente voltado para o favor negotii);

2. Quando estamos perante uma norma de conflitos material, ou seja, quando a norma de
conflitos foi desenhada para conseguir certo resultado material (sem caráter localizador).

Situação em que o julgador reabilita o reenvio - art. 17º nº3

A restrição enunciada no nº2 do art. 17º deixa de valer sempre que a lei indicada pela norma
de conflitos da lex patriae for a da situação do imóvel e esta lei se reputar competente (desde que
trate de alguma das matérias enumeradas no art. 17º nº3.

L1 → L2 → L3

Ex: Os tribunais PT (L1) vão apreciar o caso de um ING (L2) que falece com RH em PT e tem bens
imóveis em FRA (L3). L2 e L3 mandam aplicar à sucessão imobiliária a lei do lugar da situação da coisa.

L1 manda aplicar a lei pessoal, que é a lei da nacionalidade, que é L2; L2 manda aplicar a lei do lugar da
situação da coisa, que é L3. L3 considera-se a si própria competente.

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Esta norma é uma manifestação indireta da doutrina da competência mais próxima ou da


maior proximidade: o legislador entendeu não dever renunciar às soluções que lhe pareceram
mais oportunas, simplesmente porque a lei da situação de um imóvel se considera, no caso,
como única aplicável.

Concluindo, o reenvio só é permitido quando não se frustrem as razões que ditaram a


atribuição de competência a certa lei por força da norma de conflitos. Daí que sempre que
temos uma norma de conflitos material ou autonomia da vontade, o reenvio não possa funcionar.

Para saber se há reenvio ou não:

1º. requisitos art. 17º nº1: L1 → L2; L2 → L3, competente; aplica-se L3 - há reenvio;

2º. como é matéria de estatuto pessoal, requisitos do art. 17º nº2 para cessar o reenvio: o
indivíduo reside em PT - não há reenvio; a não ser que

3º. art. 17º nº3: a aplicação da lei do lugar da situação da coisa nestas matérias favorece o
reconhecimento estrangeiro da decisão PT, porque a decisão emitida pelo tribunal PT vai ter de
ser executada no país onde a coisa está situada. O legislador considerou que, por uma questão
de salvaguarda da tutela da confiança e das expectativas legítimas das partes, esta questão seria
mais facilmente reconhecida e executada no país da situação da coisa se aplicássemos a lei da
situação da coisa - princípio da efetividade das decisões judiciais.

Concluindo…
O nosso sistema de reenvio é um sistema misto, visto que não se reconduz a nenhuma das
teorias de reenvio que vimos. Não temos o acolhimento puro da referência material nem o
acolhimento puro da referência global, mas um sistema misto que aceita o reenvio quando ele
permite atingir certos resultados.

É um sistema complexo porque, para determinar a lei aplicável, o legislador tem de ponderar
três elementos:

• a norma de conflitos PT;

• as normas de conflitos estrangeiras;

• as regras estrangeiras de reenvio e devolução.

Assim para resolver o reenvio:

1º. desenhar o esquema;

2º. aplicar as teorias do reenvio;

3º. ir ao CC e determinar os requisitos.

No entanto, o reenvio não é o único problema que suscita quando estamos a aplicar o
elemento de conexão. Outro problema é o da fraude à lei.

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FRAUDE À LEI
“A fraude à lei em DIP consiste em alguém iludir a competência da lei da aplicação normal, a
fim de afastar a aplicação de um preceito de direito material dessa lei (…), substituindo-lhe outra
lei onde tal preceito, que não convém às partes ou a uma delas, não existe.”

— A. FERRER CORREIA

Assim, suscita-se o problema de fraude à lei quando alguém manipula o elemento de conexão
de forma a conseguir a aplicação de uma lei que não seria a lei da orem competente, para
conseguir um resultado que a lei normalmente competente não permitiria.

Ex: A princesa de Beauffremont vivia em França, na 2ª metade do séc. XIX, judicialmente separada do
marido (naquele tempo não existia o divórcio em França), mas queria divorciar-se para desposar o príncipe
Bibesco. Para isso, naturalizou-se num ducado alemão, onde a separação de pessoas e bens equivalia a
um divórcio. Como a lei desse ducado passou a ser a nova lei nacional da princesa segundo a regra de
conflitos francesa, isto permitiu-lhe contrair o segundo casamento, que acabou por não ser reconhecido
em França, em virtude da fraude que esteve na base da naturalização.

Requisitos de aplicação (cumulativos)

1. Intenção fraudatória - requisito subjetivo: vontade de se conseguir a aplicação de uma lei


diferente daquela que seria a normalmente competente, para escapar às disposições imperativas
da lei normalmente competente;

2. Atividade fraudatória - requisito objetivo: manipulação com êxito de um elemento de


conexão relevante

A sanção da fraude à lei é a concretização do elemento de conexão, ou seja, a aplicação


da lei que as partes quiseram evitar com a manipulação do elemento de conexão (art. 21º CC).
Esta sanção justifica-se pelo princípio da boa fé: é contrário a este princípio que as pessoas
manobrem as disposições da lei para conseguirem um resultado contrário a esta.

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ORDENAMENTOS JURÍDICOS COMPLEXOS


Isto acontece quando a nossa norma de conflitos remete para um ordenamento jurídico onde
coexistem vários sistemas normativos:

• de base territorial: quando temos um ordenamento jurídico dentro do qual existem várias
ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território (ex: EUA, Reino Unido);

• de base pessoal: quando temos diferentes ordens jurídicas aplicáveis a diferentes grupos
de pessoas (ex: Israel, Egito, bem como outros países árabes, tem diferentes ordens jurídicas
locais aplicáveis em função da religião das pessoas).

Princípios gerais de solução: o regime vigente

O art. 20º CC foi pensado pelo legislador para as situações de remissão das normas de
conflitos para os ordenamentos plurilegislativos, mas a verdade é que não regula todas as
situações: só é aplicável quando a referência para o ordenamento plurilegislativo é feita para a lei
da nacionalidade a título de lei pessoal.

1º. É o direito interlocal (normas internas que resolvem os conflitos entre as diferentes ordens
jurídicas locais) do Estado que fixa a competência dos sistemas jurídicos internos (como o
problema pertence ao sistema jurídico que pretendemos aplicar, deve resolver-se de acordo com
os critérios que ele mesmo forneça) - art. 20º nº1.

2º. Se não houver normas de conflitos interlocais, recorremos ao DIP do ordenamento


plurilegislativo (dá-se ao ordenamento a possibilidade de ele próprio resolver o problema que
criou, em nome da harmonia de julgados) - art. 20º nº2, 1ª parte.

3º. Se não existir DIP unificado, aplicamos como lei pessoal a lei da residência habitual do
interessado - art. 20º nº2 in fine.

A. FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO entendem que, neste caso, se deve aplicar a lei da RH
onde quer que ela se situe, mesmo que fora do ordenamento plurilegislativo. Por um lado, porque
parece corresponder à intenção do legislador; por outro, porque a norma de conflitos já deu a
oportunidade ao ordenamento complexo de resolver a questão de acordo com os seus próprios
critérios e este não resolveu, pelo que se deve por de lado a conexão da nacionalidade (que se
mostrou incompetente para resolver a questão que ela própria criou) e aplicar a lei da RH; assim,
tudo se passa como se o interessado não tivesse nacionalidade ou como se esta fosse de
averiguação impossível.

A posição por nós adotada é a de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, que diz que só se deve
aplicar a lei da RH quando esta se situar dentro do ordenamento plurilegislativo. Esta
interpretação restritiva do artigo é motivada pela importância da lei da nacionalidade nas matérias
de estatuto pessoal, que se mantém aqui.

Esta restrição teleológica da norma dá origem a uma lacuna oculta, em relação às situações
em que o indivíduo não tem residência no ordenamento plurilegislativo. Para a resolver, e em falta
de caso análogo, cabe recorrer a uma norma ad hoc (que o intérprete criaria se estivesse a
legislar dentro do espírito do sistema). Assim, deve procurar-se aplicar a norma mais próxima do
indivíduo, de modo a salvaguardar as legítimas expectativas dos interessados (princípio da

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proteção da confiança), ou seja da ordem jurídica local que tenha a ligação mais estreita com o
indivíduo.

4º. Se ainda assim não conseguirmos encontrar uma lei para aplicar, recorremos a uma norma
auxiliar das normas de conflitos e aplicamos a lei subsidiariamente competente, que é a lei da
RH - art. 23º nº2, 2ª parte.

O art. 20º nº3 trata da situação de remissão para ordenamentos plurilegislativos de base
pessoal. Nestes casos, sabe-se qual é, por exemplo, o lugar de celebração do negócio; mas
como não pode dizer-se que nesse lugar vigora um desses sistemas particulares exclusivamente,
visto a pluralidade legislativa não ser aqui determinada pelo facto do território, questiona-se qual
o direito material aplicável à relação controvertida.

A solução passa, novamente, pela entrega ao ordenamento jurídico da resolução da questão


e, subsidiariamente, a formação de normas ad hoc e o art. 23º nº2, 2ª parte.

Nos casos em que a remissão não é feita para matérias de estatuto pessoal, ou seja, quando
está em causa uma conexão de carácter territorial (ex: lex res sitiae), A. FERRER CORREIA e BAPTISTA
MACHADO defendem que a norma de conflitos designa direta e imediatamente a ordem jurídica
local aplicável: assim, será competente o sistema em vigor no lugar onde se verificou ou onde se
situa o elemento de conexão decisivo.

Além disso, se nos termos do direito interlocal do Estado plurilegislativo não for o sistema
jurídico rei sitiae o competente no caso, mas outro qualquer, a esse terá de atender-se
(transmissão de competência).


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A RESERVA DE ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL


Caracterização do problema

“A reserva de ordem pública internacional é (…) um limite à aplicação do direito estrangeiro


competente ou ao reconhecimento de sentenças estrangeiras quando o resultado da intervenção
da lei estrangeira seja manifestamente incompatível com os princípios fundamentais do Estado do
foro ou com as suas conceções ético-jurídicas fundamentais. (…) é um mecanismo próprio da
ordem jurídica do foro, através do qual são defendidos os princípios e valores nucleares e
inspiradores daquela ordem jurídica (…). Neste sentido, tem como função defender a coerência
da ordem jurídica do Estado do foro nas situações em que é aplicável uma lei estrangeira.
Esta figura surge como uma correção material natural ao método conflitual por razões de
ordem material, sendo encarado, mais concretamente como uma correção ao funcionamento das
normas de conflito bilaterais, ainda que este mecanismo deva intervir em qualquer situação em
que seja aplicável uma norma material estrangeira.”
— ANABELA GONÇALVES

Características funcionais da ROPI


1. Excecionalidade: como um limite à aplicação da lei estrangeira, deve ter caráter restritivo;

2. Imprecisão: é um conceito indeterminado a concretizar pelo julgador na aplicação ao caso


concreto; não é passível de ser definido a priori;

3. Atualidade: o conceito de ROPI tem de ser preenchido à luz daquilo que cada Estado,
naquele momento, considera como fundamental;

4. Caráter nacional: exigência de uma ligação dos factos com a ordem jurídica do foro, já que
é esta que vai determinar quais os princípios fundamentais.

O regime vigente

A ROPI está consagrada no art. 22º CC, art. 16º CRoma, art. 21º Roma I e art. 26º Roma II.

Requisitos da ROPI
1. Juízo de incompatibilidade entre o resultado da aplicação da lei estrangeira e os
princípios fundamentais da ordem jurídica do foro (art. 22º nº1 CC): não está em causa uma
incompatibilidade das soluções da lei estrangeira em abstrato, mas sim em concreto, depois de
aplicado o direito estrangeiro;

2. Conexão suficiente entre os factos e a ordem jurídica do foro: não se afasta a lei
estrangeira apenas porque põe em causa os princípios fundamentais; é necessário que os factos
que estão a ser apreciados tenham uma ligação à ordem jurídica do foro. Esta conexão tem de
ser aferida no caso concreto, e não em abstrato, e a intensidade exigida para esta confecção é
inversamente proporcional à importância dos princípios violados.

Consequências da aplicação da ROPI


1. Efeito primário: afastamento da lei normalmente competente;

2. Efeito secundário: em primeiro lugar, procura-se a solução material na legislação


competente (princípio do mínimo dano à lei estrangeira); se não for possível, aplicam-se as
normas materiais da ordem jurídica do foro.

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REGULAMENTO ROMA II, ROMA I E CONVENÇÃO DE


ROMA
Regulamento Roma II

O Regulamento Roma II (Reg. nº 864/2007) é o regulamento sobre a lei aplicável às obrigações


extracontratuais. Este regulamento vem modificar o conflito de leis dentro da Europa em matéria
de obrigações extracontratuais e aplica-se em toda a UE, menos na Dinamarca (considerando
40).

As situações de responsabilidade civil extracontratual são conformadas por “factos que


constituem violações de direitos absolutos de outrem ou de interesses legalmente protegidos,
dando origem a uma obrigação de indemnizar por força de uma imposição legal” (ANABELA
GONÇALVES).

Na aplicação de qualquer regulamento, temos sempre que delimitar o seu âmbito de


aplicação:

1. Material - art. 1º nº1: aplica-se aos conflitos de leis em matéria de obrigações


extracontratuais relativamente a questões civis e comerciais. Não se aplica a questões fiscais,
aduaneiras, administrativas, questões relacionadas com o exercício do poder público, bem como
às matérias presentes no art. 1º nº2.

De notar, em particular, a al. g) do art. 1º nº2. Esta norma surgiu da pressão exercida
pelos tablóides britânicos, cujo exercício profissional é por norma mais lesivo do direito à
reserva da vida privada do que o que é permitido em PT, no sentido de excluir do
regulamento a violação dos direitos de personalidade pelos meios de comunicação social
(delitos de imprensa). Assim, temos que fazer uma interpretação restritiva e sistemática:
não está excluída qualquer violação dos direitos de personalidade, mas apenas a violação
desses direitos da qual decorrem os delitos de imprensa.

2. Espacial - art. 3º: o Reg. é de aplicação universal. Isto quer dizer que a norma de conflitos
do Reg. se irá aplicar, mesmo que remeta para a lei de um Estado fora da UE (a Dinamarca,
mesmo sendo EM da UE, e ainda que não participando no Reg., vê a sua lei aplicada por um
tribunal de um país que aceite o Reg., por força da aplicação universal).

3. Temporal - arts. 31º e 32º: é aplicável a factos danosos ocorridos após a sua entrada em
vigor, ou seja, 11 de janeiro de 2009.

Princípios estruturais

1. Princípio da autonomia da vontade (art. 14º): é permitido às partes escolher a lei aplicável,
com 2 exceções (situações de concorrência desleal - art. 6º nº4 - e de violação de direitos de
propriedade intelectual - art. 8º). Este art. estabelece ainda as seguintes condições:

• o momento de referência para a escolha da lei aplicável é o momento da prática do facto


pelas partes (presumível vítima e presumível responsável, que pode não ser o agente
material do dano). Pode ser feita através de:

- convenção posterior ao facto que deu origem ao dano (já se deu o evento causal e as
partes já sabem quais são os direitos que lhes assistem);

- convenção anterior ao facto danoso, desde que (1) as partes desenvolvam atividades
económicas e (2) através de convenção livremente negociada (não são admissíveis
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contratos de adesão, cláusulas contratuais gerais). Esta alínea foi pensada especialmente
para as situações em que as partes já têm uma relação contratual anterior, e protege a
parte mais fraca, tanto consumidores como trabalhadores (já que quando estão em causa
não comerciantes, só é possível a escolha da lei após o elemento causal).

• a escolha da lei pode ser expressa ou tácita. A escolha tácita decorre da análise das
cláusulas do contrato: se, por exemplo, este fizer sistematicamente referência à lei PT,
recorrer a institutos da lei PT, ou escolher os tribunais PT para a resolução de eventuais
litígios;

• a escolha de lei só pode incidir sobre a lei de 1 Estado;

• a escolha não prejudica direitos de terceiros (ex: seguradoras): aqui, o legislador tenta
evitar conluios entre o lesado e o lesante para prejudicar os terceiros. Assim, nas questões
de responsabilidade extracontratual, se houver uma seguradora envolvida, por uma questão
de segurança, esta deve-se pronunciar sobre o acordo, sob pena de este poder não ser
oponível à seguradora (ver art. 18º que permite a ação direta - a seguradora pode ser
demandada diretamente pelo lesado, desde que a lei aplicável à obrigação extracontratual
ou ao contrato de seguro o permita);

• dos acordos de escolha de lei salvaguardam-se as disposições imperativas da lei que


está em contacto com os elementos resultantes da situação no momento da prática do ato
lesivo (art. 14º nº2): se a situação tiver maioritariamente contacto com a lei de um Estado e
as partes fizerem escolha de lei, o legislador permite; no entanto, se a situação só tem
contacto com uma ordem jurídica, as disposições imperativas dessa são as que se aplicam
(a escolha de lei só se faz quanto às normas supletivas, as normas imperativas aplicam-se
independentemente);

• o mesmo é dito em relação ao direito da UE (art. 14º nº3), de modo a salvaguardar as


suas disposições imperativas.

• não é permitido o dépeçage: as partes não podem, voluntariamente, dividir a situação em


partes e a cada uma delas aplicar leis diferentes (o TIJ já se pronunciou sobre a
excecionalidade do dépeçage, pelo que não pode ser provocado pela vontade das partes);

• as partes podem alterar o acordo de escolha de lei, desde que não prejudiquem terceiros;

• no que toca à existência e validade do consentimento das partes no acordo de eleição de


lei, o legislador nada diz; uma vez que esse acordo é um contrato, o consentimento e a
validade do mesmo são regulados pelos instrumentos contratuais, ou seja, Convenção de
Roma e Roma I.

2. Princípio da especialização das normas de conflitos: apesar da existência da regra geral


do art. 4º para situações de responsabilidade extracontratual geral, o Reg. apresenta várias
normas especiais. O legislador resolveu fazer estas normas específicas porque considerou que a
norma geral está vocacionada para resolver as situações em que temos em causa um lesante e
um lesado, e os interesses envolvidos são apenas os desses, enquanto que nas situações
específicas previstas há interesses próprios, sendo essas normas pensadas especificamente para
esses interesses:

• responsabilidade por produtos defeituosos (art. 5º) - proteção do interesse do


consumidor. Estabelece uma série de leis que podem ser aplicáveis, desde que a pessoa cuja
responsabilidade é invocada (normalmente, o comerciante) possa prever que o produto ia ser
comercializado naquele país;

• responsabilidade resultante de concorrência desleal (art. 6º) - proteção dos interesses do


mercado em geral, de defesa de um concorrente face aos restantes e dos consumidores.
Aplica-se a lei do mercado que é afetado por aquele relacionamento de concorrência desleal;

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• responsabilidade por danos ambientais (art. 7º) - proteção de interesses difusos e danos
em massa. Há uma conexão alternativa, pelo que o lesado pode optar;

• responsabilidade por violação de direitos de propriedade intelectual (art. 8º) - está em


causa a violação de um direito exclusivo. Aplica-se a lei do país onde o direito de propriedade
intelectual é protegido ou, no caso da marca comunitária, a lei do país onde a violação do
direito foi cometida;

• responsabilidade por enriquecimento sem causa (art. 10º) - se o enriquecimento estiver


associado a uma relação entre as partes, é essa a lei aplicável; caso contrário, temos a seguir a
estrutura do art. 4º (RH comum, lugar do dano e cláusula de exceção);

• responsabilidade resultante de gestão de negócios (art. 11º) - segue a mesma estrutura


do enriquecimento sem causa: conexão acessória, RH comum, lugar do dano e cláusula de
exceção;

• responsabilidade pré-contratual (art. 12º) - está limitado a negociações realizadas antes da


celebração de um contrato e segue a configuração das normas anteriores.

Esta tendência para a especialização decorre do princípio da harmonia jurídica material.

3. Princípio do meio social comum (art. 4º nº2): aplicação da lei da RH comum da pessoa
cuja responsabilidade se quer apurar e do lesado no momento em que ocorre o dano. A “pessoa
cuja responsabilidade é invocada” é aquela cuja responsabilidade se quer apurar no processo, a
quem se pede o ressarcimento do dano, que pode ou não coincidir com o agente/autor material
do dano (ex: relação de comitente-comissário, situações em que alguém tem o dever de
vigilância sobre outrem, etc.). O “lesado” é a vítima direta do dano, que pode ou não ser a pessoa
que pede o ressarcimento.

Quando o lesante e lesado dividem o mesmo ambiente social, o lugar do delito perde
importância, surgindo uma outra localização no centro de gravidade da relação jurídica de
responsabilidade civil. Esta é uma conexão subjectiva em função de ambas as partes,
considerando-se que a lei do meio social comum salvaguarda as legítimas expectativas dos
sujeitos em ver aplicada a lei que lhes é comum.

A RH de ambos é, assim, a lei que está mais próxima das partes, onde estas se movem
quotidianamente: uma concretização do princípio da proximidade. Tratando-se de uma lei que
ambas as partes conhecem, e com a qual conformam habitualmente o seu comportamento,
aumenta o grau de previsibilidade e consegue-se uma coincidência forum-ius.

A lei da RH comum das partes limita a aplicação do elemento de conexão tradicional da lex
loci delicti commissi, localizando o delito não pelo objeto, mas pelos intervenientes. Assim, o art.
4º de Roma II é um compromisso entre o princípio de proximidade, os valores de previsibilidade e
a flexibilidade, que, em última análise, intervirá, no caso concreto, por força da cláusula de
exceção.

De ressalvar que o critério da RH comum só deve ter aplicação quando o meio social em
causa é comum a todos os levantes e lesados envolvidos na situação. Não sendo, é preferível a
aplicação do elemento de conexão subsidiário.

O art. 23º de Roma II vem explicitar o conceito de residência habitual:

• nº1 2ª parte - RH presumida: o legislador presume que a RH daquela pessoa coletiva é o


sítio onde está situada a sucursal, agência ou estabelecimento. Aqui vê-se um alargamento do
conceito de RH para alargar também a proteção da contraparte e de terceiros envolvidos numa
situação de responsabilidade extracontratual. Estabelecimento, para efeitos do direito PT, deve
ser entendido como o local onde se encontra estabelecida a pessoa coletiva, com natureza
estável;

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• nº2 - RH das pessoas singulares no exercício da sua atividade profissional: no lugar onde se
localiza o seu estabelecimento principal (não está em causa o local do exercício ocasional de
uma atividade).

Quanto à determinação do conceito de RH das pessoas singulares, Roma II não contém


nenhuma norma, logo ficará reservada ao direito interno dos Estados a sua definição.

4. Princípio da lei do lugar do delito ou lex loci delicti commissi (art. 4º nº1): aplica-se a lei
do lugar do dano, em detrimento do lugar da prática do facto (é uma das conexões mais
adotadas nos vários estados, conseguindo assim a harmonia de julgados).

Aplicar a lei do lugar do delito dá certeza e segurança às partes. Dizemos que é uma conexão
em proximidade porque há uma proximidade com o objeto do litígio, o delito em si.

No entanto, Roma II tem uma especificidade: consagra a lei do lugar do delito na


modalidade de lei do lugar do dano. Os delitos facilmente de tornam deslocalizados, ou seja, o
facto pode dar-se num país e o dano noutro (ex: descargas de uma central nuclear em Espanha,
que contaminam o rio Tejo e provocam danos em PT). Assim, o legislador escolheu o dano
porque preferiu dar prioridade à função compensatória da responsabilidade civil (colocar os
sujeitos na situação em que estavam antes da ocorrência dos danos) e à ideia de distribuição dos
riscos sociais, sobre as funções preventiva, punitiva e dissuasória.

A PROF. ANABELA GONÇALVES diz que a aplicação da lei do lugar do dano só é razoável se o
próprio agente (quem pratica o facto danoso) puder prever o dano naquele país. Se o dano for de
previsão impossível/imprevisível, cria um problema (ex: danos na internet - verificam-se em
qualquer país do mundo onde o conteúdo esteja acessível), mas temos de aplicar Roma II de
qualquer forma.

O conceito de dano que está em causa neste Reg. é:

• interpretado de forma autónoma em relação ao direito do Estado do foro;

• um dano direto: é aplicável a lei do local onde se produzem os resultados diretos do facto
que está na base da situação de responsabilidade civil;

• um dano real ou dano inicial: a perda in natura, a lesão de um bem jurídico tutelado pelo
direito violado ou o dano resultante do evento causal; não interessam aqui as repercussões
indiretas que resultam da violação de um direito que é protegido pela ordem jurídica (não é que
o dano não seja indemnizado na sua totalidade, mas estas repercussões não são tidas em
conta na determinação do lugar do delito). A exposição de motivos da proposta de “Roma II”
esclarece que a norma “(…) não abrange o lugar em que a vítima sofreu o prejuízo patrimonial
consecutivo a um dano inicial ocorrido e sofrido por ela num outro Estado contratante”.

Quando o dano se espalha por vários países, recorre-se ao chamado Scater Tort: a cada um
dos danos aplica-se a lei do local onde ocorreu, aplicando-se de forma distributiva a lei dos
países envolvidos (ex: caso Shevill - difamação transfronteiriça através de um artigo de imprensa escrita,
distribuído em França e Inglaterra: o TJUE decidiu que o lesado poderia intentar a ação nos tribunais de
cada Estado em que a publicação foi difundida, sendo de cada um julgaria os danos causados no
respetivo território).

A aplicação deste conceito de dano real, enquanto dano inicial, nem sempre é fácil. No
entanto, o TJUE deixa algumas orientações: quando está em causa responsabilidade civil
resultante de um acidente de viação, o lugar do dano direto é o lugar da colisão, apesar da
produção de danos patrimoniais ou não patrimoniais noutros países (mesmo o falecimento do
lesado noutro país); no caso de perecimento de mercadorias em resultado de um transporte, o
lugar do dano real é o lugar da entrega das mercadorias pelo transportador.

O dano indireto é o prejuízo patrimonial consecutivo a uma dano inicial sofrido pela vítima.
Esta noção não é abrangida pelo conceito de dano para efeitos do Roma II. (ex: uma família
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espanhola acorda com um consultor financeiro um investimento no Brasil em moradias, descobrindo mais
tarde que este investiu noutro negócio, no Brasil, e que parte do dinheiro desapareceu; o lugar do dano
direto é no Brasil, ainda que existam consequências indiretas em Espanha, local onde se localiza o
património da família).

Outra questão prende-se com os danos reflexos, ou sejam a possibilidade do ressarcimento


das chamadas vítimas por ricochete; não está em causa o lesado, vítima do dano, mas sim
terceiros que também sofreram prejuízos morais ou patrimoniais em consequência do mesmo
(direitos próprios). Nos termos do art. 15º al. f) de Roma II, será a lex causae a determinar quais
as pessoas que têm o direito à reparação e, consequentemente, quais os direitos das vítimas por
ricochete. Esta decisão parece a mais acertada, tendo em conta a previsibilidade do direito
aplicável e a uniformidade e coerência do tratamento de questões que estão relacionadas com o
mesmo delito.

5. Equilíbrio entre segurança e certeza jurídica e flexibilidade (art. 4º nº3): se existir uma lei
que tenha uma conexão mais estreita com aquela situação do que a lei aplicável, é essa lei (que
regula a relação pré-existente) que irá regular a situação.

Esta regra deve ser conjugada com o art. 17º - regras de segurança e de conduta, que
estabelece uma abertura para a lei do lugar do facto, de forma a coordenar a adoção da lei do
lugar do dano com as exigências de comportamento estabelecidas pela lei do lugar da conduta.

Estão aqui em causa normas imperativas, de direito público ou de direito privado, que
estabelecem padrões mínimos de segurança e de comportamento em vários setores da vida em
sociedade, tendo essencialmente um escopo de regulamentação social, e que podem ser
relevantes para determinar a ilicitude ou a culpa de agente. Estamos a falar de regras de
condução, regras de segurança em certas atividades, como na construção civil, regras de
tratamento de substâncias perigosas.

Mesmo quando aplicamos outro elemento de conexão, como o lugar da RH comum das
partes, estas regras mantêm a mesma justificação para intervir. A ratio final passa por “atingir um
equilíbrio razoável entre as partes” (considerando 34), bem como proteger os interesses do
Estado onde o agente atua em fazer cumprir territorialmente estas normas.

Por exemplo, caso Gouldbourn contra Balkan Holidays Ltd and another: estava em causa um pedido de
indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais de uma senhora, em resultado de uma queda
durante a prática de ski na Bulgária. A questão era regulada pela lei inglesa, todavia, era necessário
determinar se o instrutor teria agido com o grau de diligência necessário na supervisão da sua aluna,
aquando da descida da montanha. O tribunal decidiu que o grau de diligência só poderia ser apreciado à
luz dos padrões de cuidado do local onde ocorreu o acidente, ou seja, da Bulgária.

Foi deixado ao poder discricionário do juiz a apreciação das circunstâncias, e a ponderação


daquelas situações em que a necessidade de equilíbrio entre as partes deve ditar a consideração
das normas de conduta e comportamento da lei do lugar do facto, mas apenas na medida do
apropriado.

6. Reconhecimento de efeitos às NAI (art. 16º): as competências legislativas decorrentes de


Roma II não prejudicam a aplicação de normas materiais de aplicação imediata do Estado do
foro.

Roma II não define o conceito de NAI, ao contrário de Roma I (art. 9º nº1 + considerando 37
Roma I). No entanto, como referido supra, as NAI são “normas materiais, espacialmente
autolimitadas que, pelo fim social que visam atingir e pela especial intensidade valorativa que
revestem, reclamam a sua aplicação independentemente do âmbito de competência da ordem
jurídica a que pertencem, derrogando o sistema conflitual geral do Estado do foro”. Traduzem a

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intervenção do Estado na tutela de fins públicos, de interesses sociais que a ordem jurídica
entende como revestindo uma importância capital, merecendo uma proteção mais forte.

Resulta da jurisprudência da UE que as NAI dos Estados, nas zonas de sobreposição com as
liberdades da UE, estão sujeitas a um juízo de necessidade e proporcionalidade da sua aplicação
face aos objetivos visados.

Em matéria de responsabilidade extracontratual não será fácil identificar muitas normas


materiais que tenham a natureza de NAI, mas é possível apontar alguns exemplos no direito
comparado: normas francesas que instituem o direito da vítima de ser indemnizadas por um
fundo de garantia, pois baseiam-se numa ideia de solidariedade social e na existência de um
sistema de garantia e distribuição do risco social.

Cabe ainda dizer que quando se verifique um imperativo resultante dos princípios de DIP e a
necessidade de cooperação entre os Estados assim o determine, não deverá deixar de se
reconhecer efeitos às NAI estrangeiras. Apesar de uma lei ser competente para regular uma
questão de responsabilidade extracontratual enquanto lei do lugar do dano, nos termos do art. 4º
nº1, pode existir um interesse de política legislativa forte que justifique a intervenção das NAI da
lei do lugar do comportamento, por exemplo.

7. Reconhecimento do interesse nacional através da ROPI (art. 26º): o juiz do foro não está
vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja “manifestamente
incompatível” com a ordem pública do Estado do foro.

No direito da responsabilidade extracontratual sempre abundou a noção de ordem pública,


muitas vezes relacionada com a classificação das normas de responsabilidade civil como normas
de ordem pública. No entanto, nação é esta conceção de OPI que hodiernamente está prevista
nas codificações de DIP europeias e, especificamente no art. 22º CC. Nestas, a ROPI apresenta-
se como “um limite à aplicação do direito estrangeiro competente, quando o resultado da
aplicação da mesma se revela incompatível com princípios e valores axiais da ordem jurídica do
foro, (…) como uma forma de salvaguarda da identidade jurídica do ordenamento jurídico do
foro”.

O art. 26º de Roma II prevê uma cláusula específica de ROPI na aplicação do regulamento. A
presença do advérbio “manifestamente” alude à intervenção necessariamente excepcional do
mecanismo em causa. A ROPI representa uma perturbação no funcionamento do sistema
conflitual de Roma II, pelo que deve ter uma intervenção mínima, balizada pela indispensabilidade
de atingir uma resolução jurídica coerente da questão privada internacional.

De referir, também, o reconhecimento da figura da ordem pública da UE. O TJUE vem afirmar,
no acórdão Eco Swiss, que quando certo resultado é intolerável para a ordem jurídica da UE, por
ofender princípios que lhe são fundamentais, também deve ser considerado intolerável para a
ordem jurídica do foro; assim, nestas situações, deveria funcionar a ROP de cada Estado-
membro, uma vez que a ordem pública da UE seria parte integrante da ROPI dos Estados-
membros, por força do princípio do primado do direito da UE. A referência à ordem pública da UE
foi retirada de Roma II, mantendo-se a referência à ordem pública do foro, mas na prática tem o
mesmo significado, pelos motivos explicitados no acórdão Eco Swiss.

É ainda importante ponderar a questão das indemnizações não compensatórias, ou


punitive damages. Esta referência foi eliminada do texto do art. 26º, mas encontra-se no
considerando 32: o caráter potencialmente excessivo/exorbitante da indemnização punitiva é
visto como elemento capaz de desencadear a intervenção da ROPI. Esta norma limita-se a
respeitar o funcionamento do mecanismo da ROPI, sem impor uma atuação aos Estados, apesar
de a sugerir (tem em conta o facto de o direito inglês permitir a atribuição destas indemnizações).

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Em suma…

A regulamentação atual da responsabilidade extracontratual em DIP caracteriza-se por:

1. regulamentação uniforme na UE e tendencialmente completa: fixa um regime geral,


normas especiais, o âmbito de aplicação da lei desigual, o reconhecimento de efeitos às NAI,
e disciplina a relação com outros atos comunitários e com convenções internacionais, mas é
tendencialmente complexa porque tem lacunas importantes, como a regulamentação da
responsabilidade civil por violação dos direitos de personalidade através dos meios de
comunicação social.

2. especialização: Roma II segue a atual tendência do DIP, prevendo normas de conflitos


especiais mais adequadas para regular as especificidades de certo tipo de delitos.

3. autonomia da vontade: valorização dos interesses individuais dos sujeitos que intervêm
na relação jurídica.

4. meio social comum: previsão da RH comum como elemento de conexão principal,


implicando a perda da importância da lex loci delicti, enquanto conexão subsidiária.

5. previsão da lei do lugar do dano: valorização da posição do lesado, do ressarcimento


dos danos e da distribuição dos riscos, em detrimento da posição do lesante, da prevenção e
da manutenção da paz social.

6. equilíbrio entre a certeza e segurança jurídica e a flexibilidade: previsão de conexões


fixas, rígidas e de fácil aplicação, bem como os instrumentos para responder às
circunstâncias específicas de um caso concreto, de forma a obter uma solução mais justa.

7. reconhecimento de efeitos às NAI: funcionam como um limite à aplicação da lei


competente e podem prejudicar a uniformidade de decisões, almejada por Roma II, em nome
da proteção de interesses sociais, económicos e políticos.

8. intervenção da ROPI: prevalência dos princípios e valores ético-jurídicos do Estado do


foro (compete a cada Estado-membro definir o conteúdo da sua OPI, mas esta abarca
também os princípios e valores fundamentais da UE).

Aplicação

“A lei do lugar do dano aparece em Roma II numa posição subsidiária: o primeiro aspeto a
avaliar em Roma II é a autonomia da vontade (art. 14º), o segundo elemento de conexão é o lugar
da residência habitual comum (art. 4º nº2) e só depois surge o lugar do dano (art. 4º nº1). Ainda
assim, este elemento de conexão poderá não ser aplicado, se funcionar a cláusula de exceção
prevista no nº3, do art. 4º de Roma II.”
A residência habitual comum aparece como elemento principal na configuração do art. 4º de
Roma II, supletivamente aplicável na falta de escolha. Será o primeiro elemento a ser apurado na
aplicação da disposição e, se existir no caso concreto, apenas pode ser afastado pelo
funcionamento da cláusula de exceção (nº3). Se não existir residência habitual comum das
partes, recorre-se à lei do lugar do dano, prevista no nº1, e eventualmente à cláusula de exceção.

“Esta é a sequência de funcionamento do art. 4º de Roma II, que traduz a importância dada à
residência habitual comum e a posição secundária do lugar do dano, enquanto expressão da
regra tradicional do lugar do delito. Este aspeto pode ser apontado como uma das orientações do
atual paradigma de regulamentação da responsabilidade extracontratual em DIP.”
— ANABELA GONÇALVES

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Regulamento Roma I e Convenção de Roma

As obrigações contratuais estão sujeitas a 3 regimes legais: o do CC, o da Convenção de


Roma e do Regulamento Roma I. O apuramento do regime aplicável é feito através dos âmbitos
de aplicação de cada um destes instrumentos.

Roma I é uma atualização do regime da CRoma, feito pelos Estados-membros da UE quando


esta adquiriu competência em matéria de DIP. Por esta razão, os dois regimes vão ser analisados
simultaneamente.

Âmbito de aplicação

1. Âmbito de aplicação material (art. 1º CRoma e Roma I): aplica-se às obrigações


contratuais que impliquem o conflito de direitos. O nº2 deste art. exclui uma série de matérias,
como o estado e capacidade de pessoas singulares, as obrigações contratuais relativas a
testamentos e matérias de família, as obrigações de cheques e livranças, etc.

2. Âmbito de aplicação espacial (art. 2º CRoma e Roma I): aplicação universal - a lei que as
normas de conflitos designarem será aplicada, ainda que não pertença a um Estado-membro (ex.
lei do estado da Califórnia).

3. Âmbito de aplicação temporal (art. 17º CRoma e 28º Roma I):

Código Civil Convenção de Roma (art. 17º) Regulamento Roma I (art. 28º)

até 1 de setembro de 1994 até 17 de dezembro de 2009 após 17 de dezembro de 2009

Quanto à articulação com outros instrumentos jurídicos, nomeadamente normas de


conflitos sobre obrigações contratuais presentes noutros instrumentos normativos da UE, se
existirem normas de conflitos especiais noutros atos jurídicos, a norma especial prevalece sobre
a norma geral, pelo que essas terão prioridade sobre a CRoma e Roma I.

Princípios estruturais

1. Princípio da autonomia da vontade (art. 3º CRoma e Roma I): permite às partes


escolherem a lei aplicável ao contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e
segurança jurídica quanto ao direito aplicável (as partes sabem, desde início, qual a lei que se vai
aplicar e que vai tutelar o seu comportamento), a celeridade na resolução de eventuais litígios por
parte do julgador (que mais facilmente irá apurar a lei aplicável), a proteção das partes enquanto
verdadeiros interessados na regulamentação do contrato (estão em melhor posição para dizer
qual é a lei que tutela os seus próprios interesses) e o facto de ser uma conexão neutra (não
beneficia, à partida, nenhuma das partes).

Requisitos:

• a escolha de lei pode ser expressa ou tácita (inferida das circunstâncias do contrato - ex:
referência a institutos de certa ordem jurídica, etc.);

• a eleição de lei é feita mediante um contrato;

• é permitido o dépeçage voluntário do contrato (art. 3º nº1 in fine);

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• quanto ao momento em que pode ser feita a escolha, temos que ela pode ser anterior ou
posterior à celebração do contrato. É ainda possível que as partes alterem a escolha
anteriormente realizada, mas este ato salvaguarda a validade formal do contrato e os interesses
de terceiros (art. 3º nº2 in fine);

• só pode ser objeto de escolha de lei a lei de 1 Estado (interpretação literal do art. 3º nº1 e
nº2, e do art. 2º). Se as partes no contrato fizerem referência à lex mercatoria, não há aqui
escolha de lei, já que estes normativos não têm força de lei;

• é permitida a escolha material de lei: as partes em posição de igualdade podem escolher


uma lei que não é próxima de nenhuma delas, mas salvaguarda os seus interesses, ou seja,
podemos internacionalizar um contrato unicamente ligado com uma ordem jurídica. No entanto,
ainda se aplicam as disposições imperativas da ordem jurídica com a qual a relação apresenta
maior conexão, isto é, a internacionalização do contrato só abrange as disposições supletivas. (
Ex: A e B são PT e celebram um CCV em PT; podem fazer escolha de lei, aplicando a lei FRA, mas
continuam a aplicar-se as disposições imperativas da lei PT). Distingue-se da escolha conflitual de lei
por esta última fazer referência a um contrato já de si plurilocalizado;

• a existência e validade do consentimento no contrato de escolha de lei são reguladas pelos


arts. 10º, 11º e 12º (art. 3º nº5 Roma I).

Se as partes não tiverem feito um contrato de escolha de lei, aplica-se o art. 4º da CRoma
e de Roma I, que apresenta algumas diferenças.

O art. 4º CRoma apresenta uma estrutura tripartida:

• nº1 - cláusula geral de conexão mais estreita: se as partes não escolherem a lei aplicável,
aplica-se a lei que tiver uma conexão mais estreita com os elementos do contrato;

• nºs 2, 3 e 4 - presunções interpretativas:

• nº2 - presume-se a conexão mais estreita com o país da RH do devedor da prestação


característica do contrato (entende-se por aquela prestação contratual que permite realizar o
fim económico e jurídico do contrato. Ex: a prestação característica de um CCV é a entrega
da coisa; a de um CPrestServiços é a prestação do serviço);

• nº3 - presume-se a conexão mais estreita com a lex rei sitiae. Assim consegue-se a
aplicação da mesma lei aos direitos reais e às obrigações contratuais, sem dépeçage.

• nº4 - nos contratos de transporte de mercadorias, presume-se a conexão mais estreita


com o lugar do estabelecimento principal do transportador.

• nº5 - cláusula de exceção: se não houver prestação característica, voltamos à cláusula geral
de conexão mais estreita (1ª parte); cláusula de exceção, relativamente aos nºs 2 a 4 (2ª parte).

Já o art. 4º Roma I apresenta algumas diferenças:

• o nº1 concretiza a conexão mais estreita em vários tipos de contratos;

• se não se enquadrar em nenhuma das alíneas no nº1 ou se enquadrar em várias, recorre-se


ao nº2 que manda aplicar a lei da RH do devedor da prestação característica;

• o nº3 apresenta uma cláusula de exceção;

• o nº4 apresenta uma cláusula geral de conexão mais estreita;

• não encontramos neste art. referência ao contrato de transporte de mercadorias e transporte


de pessoas, porque em Roma I passa a ser feito no art. 5º.

2. Princípio da proximidade: é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma conexão mais
estreita com os elementos do contrato.

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3. Princípio da proteção da parte mais fraca: intervém em vários tipos de contratos:

• Contratos de consumo (art. 5º CRoma e art. 6º Roma I): o consumidor é aqui


considerado a parte mais fraca porque, geralmente, em relação ao comerciante, se encontra
numa posição mais débil, com menor poder de negociação; ao nível do comércio
internacional, esta fragilidade aumenta, já que temos, por um lado, um comerciante que atua
no comércio internacional por profissão, tendo um conjunto de informações e uma estrutura
organizava muito superior, e por outro, um consumidor que geralmente é levado a realizar
contratos de adesão, cujo conteúdo não consegue conformar.

As regras da CRoma e de Roma I diferem principalmente pela evolução do comércio


eletrónico, através da internet, o que se verifica em diversos artigos atualizados em Roma I.

- art. 5º nº1: apesar de ainda em Roma I se manter o consumidor como aquele que
adquire algo para uma finalidade estranha à sua atividade profissional, na CRoma esta
transação remetia-se apenas a serviços ou bens corpóreos, excluindo grande parte do
tráfego eletrónico hodierno (ex: compra de um anti-vírus online);

- art. 5º nº2: se houver escolha de lei, esta não pode ter como consequência privar o
consumidor da proteção que é dada pelas disposições imperativas da lei da sua RH.
Assim, havendo escolha, há que fazer uma comparação entre a lei escolhida e a lei da RH
do consumidor, aplicando-se a que proteger mais este último. Esta norma tem um objetivo
de política legislativa, tendo em vista a proteção do consumidor na zona da UE. Para a
aplicação desta norma é necessário que esteja preenchida pelo menos uma das alíneas
deste nº2 (estas alíneas também se encontram relativamente desatualizadas, daí as
alterações em Roma I).

- art. 5º nº3: não havendo escolha de lei, aplica-se a lei da RH do consumidor; é uma
alteração à regra geral do 4º que manda aplicar a RH do vendedor. Tem como objetivo
proteger o consumidor, já que aplica ao caso a lei que lhe é mais próxima, que melhor
conhece.

- art. 5º nº4: exclui alguns tipos de contratos em relação aos quais poderiam existir
dúvidas se seriam contratos de consumo (ex: contratos de transporte).

Em Roma I, o art. 6º apresenta a mesma solução: não havendo escolha, aplica-se a lei da
RH do consumidor; havendo escolha, compara-se esta e a lei da RH do vendedor. No entanto
traz algumas inovações: exclui a ideia de que a proteção do consumidor só abrange bens
corpóreos (o art. 6º nº1 al. b) abarca o comércio eletrónico) e alarga o conceito de direção da
atividade para o país da RH do consumidor para todas as situações em que dado vendedor
permite que, estando em certo país, qualquer consumidor tenha acesso a determinado bem
ou serviço.

• Contrato de transporte (art. 5º Roma I): permite que as partes escolham a lei aplicável,
mas limita esta escolha às opções enunciadas nas alíneas do nº2. Se as partes não
escolherem, aplica-se a lei da RH do passageiro, se o local de partida ou destino lá se
situar, ou, subsidiariamente, a lei da RH ou estabelecimento do transportador. No nº3
aparece ainda uma cláusula de exceção. No entanto, as cláusulas de exceção nas se
podem aplicar quando há escolha de lei, porque tem de se respeitar a vontade das
partes.

• Contrato de seguro internacional (art. 7º Roma I): abrange:

- contrato de grandes riscos (nº2): contratos de seguro sobre veículos ferroviários,


aeronaves e embarcações. Aqui não há parte mais fraca a proteger, pelo que a lei
aplicável é a da RH do segurados, a não ser que haja uma conexão mais estreita;

- contratos de seguros que cubram riscos estipulados no território dos Estados-


membros (nº3): aqui já há uma parte mais fraca a proteger, o tomador de seguro. Assim,

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o legislador permite a escolha de lei, mas limita-a às alíneas do nº3. Na falta de escolha
de lei, aplica-se a lei do Estado-membro onde se situa o risco à data da celebração de
contrato (ex: no caso de um seguro de vida, é na RH do tomador de seguro; no caso de
um seguro sobre uma coisa, aplica-se a lei do lugar da coisa).

- contratos de seguros obrigatórios em dado Estado-membro (nº4): o contrato deve


obedecer à lei do Estado que impõe a obrigação de seguro.

• Contrato individual de trabalho (art. 6º CRoma e art. 8º Roma I): o trabalhador é a


parte mais fraca que se deve proteger, já que não tem grande poder negocial; em
particular, aquele sujeito a um contrato de trabalho internacional encontra-se numa
situação de vulnerabilidade superior.

Na CRoma, as partes podem escolher a lei aplicável, mas no final vamos comparar a duas
leis (a lei escolhida no contrato e a lei que regula supletivamente o contrato de trabalho) e
aplicar aquela que proteger mais o trabalhador (art. 6º nº1). O nº2 indica que a lei
supletivamente aplicável é a lei do lugar da prestação habitual do trabalho (a ideia é sujeitar
todos os trabalhadores que prestam o seu trabalho naquele país aos mesmos direitos e
deveres). Este art. não protegia devidamente situações como o teletrabalho.

Já em Roma I, o art. 8º nº1 mantém a ideia de escolha de lei e de comparação entre a lei
escolhida e a lei supletivamente aplicável. Já o nº2 apresenta uma alteração face à CRoma:
acrescenta a possibilidade de se aplicar a lei do Estado a partir do qual é realizada a
prestação de trabalho, alargando a regulamentação deste art. ao teletrabalho. (Ex: A reside em
PT e trabalha para o BRA - teletrabalho. Nos termos da CRoma, não era claro se se aplicava a lei BRA
ou PT, porque estava em causa o lugar da prestação característica do contrato de trabalho, difícil de
definir nestes casos). Com a entrada em vigor de Roma I, aplica-se a lei do Estado a partir do qual A
realiza o seu trabalho, isto é, PT). Sendo impossível determinar a lei aplicável nos termos do
nº2, aplica-se a lei da situação do estabelecimento contratante (nº3).

Ainda de acrescentar que tanto a CRoma como Roma I prevêem que não se considera
que o país onde o trabalhador presta habitualmente o seu trabalho mude quando este estiver
temporariamente a trabalhar noutro país (ex: empreitadas). No entanto a Diretiva 96/71 indica
que se determinado trabalhador for destacado para trabalhar temporariamente num Estado-
membro, deve ser aplicada a lei do país do destacamento temporário a determinadas
matérias (ex: salário mínimo, férias, período de descanso,…).

Ex: caso Ryanair

As tripulações de voo estão distribuídas por bases, a que a empresa chama bases de voo. Há uma
principal, na Bélgica (Zaventem), a partir da qual parte a tripulação que está espalhada pela Europa.

A tripulação PT resolve fazer greve e a empresa foi buscar tripulação a outras bases, argumentando que
não estavam sujeitos à lei PT. O contrato de trabalho não estaria sujeito à lei PT porque foi celebrado na
BEL, a empresa é IRL e a lei escolhida é a lei IRL e não a PT.

Têm razão?

4. Admissibilidade de atribuição de efeitos a NAI (art. 7º CRoma e art. 9º Roma I): tanto num
diploma como no outro, o legislador regula aplicação das NAI, quer sejam estrangeiras (nº1) ou
do foro (nº2).

5. Reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 16º CRoma e art. 21º
Roma I): o juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação
seja “manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro.

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Cabe ainda a análise de algumas normas de interesse:

• art. 10º Roma I e 8º CRoma - Aceitação e validade substancial: aplica-se a lei que seria
aplicável se o contrato fosse válido;

• art. 11º Roma I e 9º CRoma - Validade formal: aplica-se a lei reguladora da substância ou
da celebração, de modo a validar o negócio (se as partes se encontrarem no mesmo país);

• art. 12º Roma I e 10º CRoma - Âmbito da lei aplicável: enuncia as matérias a que se aplica
um instrumento e outro;

• art. 20º Roma I e 15º CRoma - Exclusão do reenvio: as normas de conflitos do


regulamento e da convenção remetem para as normas materiais dos Estados-membros, não
para as normas de DIP;

• art. 22º Roma I e 19º CRoma - Ordenamentos plurilegislativos.

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DIREITO DOS ESTRANGEIROS


O Direito dos Estrangeiros é o conjunto de princípios e normas que definem a situação
jurídica dos estrangeiros e que disciplinam os direitos que lhes são reconhecidos em território
nacional, em comparação aos direitos que são reconhecidos aos nacionais.

Este é um ramo do direito com influências variadas:

• Direito Internacional Público geral, que obriga a que à condição de estrangeiros seja
reconhecido um certo conjunto de direitos relacionados com a dignidade da pessoa humana,
como o reconhecimento da personalidade jurídica aos indivíduos (art. 6º DUDH) e a tutela de
um conjunto de direitos pessoais e patrimoniais, como a proibição de discriminação
injustificada aos estrangeiros pelo mero facto de o serem (art. 2º DUDH);

• Direito Internacional Público convencional, já que os Estados, através de tratados


multilaterais ou bilaterais, estabelecem entre si, e sob certas condições geralmente de
reciprocidade, a proteção de direitos ou de património de nacionais de certos estados;

• Direito da UE, que é munido de uma série de regras, em Tratados, que regulam o
tratamento dos nacionais e residentes de vários Estados-membros, como o direito à não
discriminação ou igualdade de tratamento, o princípio da liberdade de circulação de pessoas,
de trabalhadores, a liberdade de estabelecimento e de prestação de serviços, etc..

“Se todo o Estado deve considerar o estrangeiro sujeito de direitos, ele é em princípio livre de
fixar como bem entenda a medida concreta da sua capacidade jurídica.” (A. FERRER CORREIA)

É precisamente por meio deste processo de fixação que encontramos uma série de restrições,
que constituem o conteúdo das normas do direito dos estrangeiros no ordenamento jurídico PT.
Como supõem uma ideia de equiparação, as normas de direito dos estrangeiros não têm a tarefa
de enumerar os direitos e faculdades que lhes cabem, somente especificar aqueles que lhes são
denegados.

São preceitos jurídico-materiais, por oposição às normas de conflitos. As ultimas têm uma
tendência universalista, colocando as diferentes leis em pé de igualdade e procurando aquela
que pareça ter com o caso a conexão mais estreita; as primeiras têm um sentido eminentemente
nacionalista ou territorialista, com intenção de proteger determinados interesses da comunidade
local.

O princípio geral que enforma o direito dos estrangeiros é o princípio da equiparação ou


paridade de tratamento entre nacionais e estrangeiros. Este encontra-se estabelecido no art.
14º nº1 CC, que nos diz que da qualidade de estrangeiro por si só não resulta qualquer restrição
para o gozo de direitos privados, e está de acordo com o art. 15º nº1 da CRP.

No entanto, a equiparação entre estrangeiros e nacionais, mesmo no direito PT, está longe de
ser completa. Há, desde logo, uma categoria de direitos que se vê excluída: os direitos
políticos (art. 15º nº2 CRP), tendo em vista, entre outros, o risco que admitir um estrangeiro a
exercer funções políticas envolveria, de esse trair os interesses do Estado em benefício do seu
Estado nacional.

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Já quando aos direitos públicos não políticos, vale o princípio da equiparação, mas com
numerosas restrições, como o afastamento do “exercício de funções que não tenham caráter
predominantemente técnico” (art. 15º nº2 CRP), entre outras.

Os direitos civis são os únicos amplamente gozados pelos estrangeiros, sob os sistemas da
equiparação dos estrangeiros aos nacionais e da reciprocidade. Assim enuncia o art. 14º CC,
estabelecendo o princípio de que aos estrangeiros é reconhecida a capacidade de gozo de
direitos privados, tal como aos nacionais e independentemente de reciprocidade.

Ainda assim, estão sujeitos a restrições, como a Reserva de Ordem Pública Internacional,
quando estiver em causa um direito decorrente de lei estrangeira. É em nome da ROPI que a um
casamento poligâmico muçulmano será negado o reconhecimento no Estado do foro.

No âmbito do DIP, a equiparação dos estrangeiros aos nacionais PT deve ser entendida
em sentido abstrato: paridade/equiparação de tratamento entre a lei do foro e a lei estrangeira,
isto é, tanto ao nacional PT como ao nacional estrangeiro vai ser aplicada a lei que é designada
pela norma de conflitos.

Na prática, para apurarmos os direitos de personalidade de um ESP, vamos aplicar o art. 27º CC que
manda aplicar a lei da nacionalidade - a lei ESP. Não significa que os ESP gozem em PT dos mesmos
direitos de personalidade de um PT.

O art. 14º nº2 CC tem ainda uma especificidade: o princípio da retaliação ou reciprocidade.
Esta norma permite a denegação de direitos a determinados estrangeiros, recusando-lhes em PT
os direitos que são recusados a nacionais PT no país estrangeiro.

Esta norma tem um objetivo político-legislativo, porque visa dissuadir os países estrangeiros
de fazerem normas discriminatórias de nacionais PT.

Há ainda uma série de instrumentos jurídicos internacionais que estabelecem igualdade


de direitos entre certos estrangeiros e cidadãos PT:

• o art. 15º nº3 CRP prevê que aos cidadãos dos países de língua portuguesa possam ser
atribuídos, mediante convenção internacional e em condições de reciprocidade, direitos não
reconhecidos a estrangeiros, com algumas exceções;

• o privilégio concedido aos brasileiros em PT e portugueses no BRA, que consististe em


igualdade de direitos com os nacionais do outro país, se e enquanto nele residirem;

• algumas convenções celebradas com países africanos de língua oficial PT, como Cabo
Verde, Guiné-Bissau e S.Tomé e Príncipe;

• a integração de PT na UE implica a concessão aos nacionais de países comunitários de um


estatuto de igualdade, nos domínios de aplicação do Tratado de Roma, bem como outros
direitos (ex: o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu, em condições de
reciprocidade, nos termos do art. 15º nº5 CRP).

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INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO


ESTRANGEIRO COMPETENTE
Este problema coloca-se quando a norma de conflitos do foro remete para uma lei
estrangeira.

Assim, a questão é: devemos tratar o direito estrangeiro como matéria de facto ou matéria
de direito? (A matéria de facto tem de ser alegada e provada, ao passo que a matéria de direito é
determinada pelo juiz)

Olhando esta questão, há vários interesses a ponderar:

• direito estrangeiro como matéria de facto - economia de meios na administração da justiça;


celeridade processual; prevenção do erro judiciário; minimizarão da aplicação do direito
estrangeiro, sujeitando-o à invocação pelas partes;

• direito estrangeiro como matéria de direito - interesse geral de justiça (respeito pelos valores/
princípios que levaram o nosso legislador a escolher certos elementos de conexão para certas
matérias, tendo em conta o interesse das parte, as legítimas expectativas, o princípio da
proximidade, etc.) que só será respeitado se efetivamente o legislador aplicar a lei que a norma
de conflitos indica.

Assim, quando as nossas normas de conflitos remetem para uma lei estrangeira, o julgador
deve aplicar esse direito oficiosamente (art. 348º nº1 e 2 CC); se assim não fosse, as normas
de conflitos não teriam natureza imperativa. Em PT não existe um ónus de prova e alegação do
direito estrangeiro aplicável pela parte a quem aproveita a sua aplicação. Isto significa que o
tribunal conhece oficiosamente o direito estrangeiro, existindo apenas o dever de colaboração
entre as partes e o tribunal para apurar a existência de direito estrangeiro.

Podemos assim concluir que o direito estrangeiro em PT tem estatuto de verdadeiro direito;
se fosse considerado matéria de facto, teria que ser alegado e provado pela parte a quem
aproveita, o que não é o caso.

Há diversos meios a que o julgador pode recorrer para obter informações para aplicar
direito estrangeiro; a doutrina considera que o julgador pode recorrer a todos os meios de que
disponha, desde que fiáveis e suficientes para formar a sua convicção.

Os meios podem ser:

• oficiais: base de dados de cada país (ex: Diário da República, em PT)

• não oficiais: doutrina, pareceres, bases de dados de jurisprudência, etc.

Alguns instrumentos oficiais relevantes são:

• Convenção Europeia no campo da Informação sobre Direito Estrangeiro: ao abrigo desta


convenção internacional, os Estados contratantes ordem pedir informação sobre o direito de
outros Estados a um órgão que é designado pelo próprio país para o efeito;

• Convenção sobre a informação em matreira jurídica com respeito ao direito vigente e a sua
aplicação;

• Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial: atua dentro da UE e permite obter
informações céleres e fidedignas sobre direito estrangeiro, funcionando através de pontos de
contacto em cada Estado-membro.

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No entanto, se não fosse possível determinar em concreto o conteúdo do direito


estrangeiro, o julgador deveria:

1º tentar determinar, até à última, o conteúdo do direito estrangeiro (art. 23º nº2 + 348º
CC), por qualquer meio fidedigno, direto (por dados legislativos, jurisprudência, etc.) ou indireto,
através de presunções (ex: não se conhece o teor exato da norma, mas conhece-se os princípios
gerais que enformam a lei competente em certa matéria, ou então conhece-se o sistema jurídico
que inspirou a lei aplicável);

2º aplicar lei aplicável segundo a conexão subsidiária (art. 23º nº2, 2ª parte CC), o que
significa que em matéria de estatuto pessoal, se não conseguirmos aplicar a nacionalidade,
aplicamos a lei da RH;

3º aplicar a lei do foro (art. 348º nº3 CC); isto muito raramente acontece hoje em dia, graças à
abundância de meios que dispomos para determinar o conteúdo do direito estrangeiro a aplicar.

Princípios e regras que presidem à interpretação do direito estrangeiro

Nos termos do Princípio da Harmonia de Julgados: o julgador deve aplicar o direito


estrangeiro tal como ele é aplicado, como ele vigora no Estado de origem, para garantir a tutela
da confiança nas relações plurilocalizadas, bem como o princípio da igualdade das partes.

DÖLLE diz mesmo que o juiz nacional “tem de aplicar o direito estrangeiro como o juiz
estrangeiro o faria”, imputando ao preceito estrangeiro em causa o conteúdo e alcance que lhe
forem atribuídos no âmbito do respetivo sistema legislativo.

Assim, se no estado de origem vigorar o direito costumeiro, temos de o aplicar cá (temos de


aplicar o direito estrangeiro em toda a sua amplitude). O mesmo se passa se vigorar um sistema
de precedentes, ou um direito baseado em case laws.

Basicamente, ao aplicar direito estrangeiro vamos ter de considerar o sistema de fontes que
existe nesse país.

Consequentemente, se tivermos de interpretar direito estrangeiro, não o fazemos de acordo


com as nossas normas de interpretação, mas sim de acordo com as normas do país estrangeiro.

O STJ pode controlar a aplicação de direito estrangeiro pelas nossas instâncias, já que o
que vai ao supremo é matéria de direito, e já vimos que é nessa categoria que se encaixa o direito
estrangeiro. Se existir uma erro na interpretação e integração da lei estrangeira, ou na
determinação da norma da lei estrangeira aplicável, pode haver recurso para o STJ, nos termos
do art. 674º nº1 e 2 CPC.

Concluindo, o direito estrangeiro é considerado direito na nossa ordem jurídica, mas não
tem o mesmo estatuto que o direito nacional. Os tribunais PT estação limitados na
interpretação que fazem do direito estrangeiro pela interpretação feita dessas normas no país de
origem. Assim, o STJ pode apreciar o erro na interpretação do direito estrangeiro, mas não pode
produzir jurisprudência uniforme em relação à interpretação e aplicação do direito estrangeiro.

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CONFLITOS DE JURISDIÇÕES E RECONHECIMENTO DE


SENTENÇAS E ACTOS PÚBLICOS ESTRANGEIROS
Este tema refere-se, no fundo, ao reconhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro, quer
sejam titulados por sentenças, por atos públicos, ou por acordos entre as partes homologados
pelo tribunal.

Nos conflitos de jurisdições, além de estarem em causa das regras de competência


internacional e o reconhecimento de atos e sentenças estrangeiras, também é abarcada a lei
aplicável ao processo, ou seja, a lei do foro.

Esta matéria é abordada no âmbito do DIP porque há uma relação de acessoriedade ou


complementaridade entre as matérias de conflitos de leis e de conflitos de jurisdição, já que o
objeto de ambas é idêntico (a regulamentação das relações privadas internacionais). Assim, a
continuidade e estabilidade das relações privadas internacionais conseguem-se, também,
através dos conflitos de jurisdições.

Quando falamos em competência internacional, distinguimos:

• regras de competência direta: atribuem ao poder jurisdicional (que pertence aos tribunais PT)
competência para julgar questões jurídicas conexas com 2 ou mais ordens jurídicas; e

• regras de competência indireta: conhecimento de direitos adquiridos no estrangeiro pelos


tribunais PT, através de um processo de revisão das sentenças/decisões estrangeiras.

As regras de competência internacional divergem das regras de competência interna.


Enquanto que nestas está em causa a organização judiciária de um país, nas primeiras está em
causa uma outra variedade de interesses, desde a efetividade das decisões judiciais, ao
reconhecimento no estrangeiro de sentenças proferidas por órgãos judiciais PT e vice-versa.

As normas de competência internacional devem basear-se, tal como as normas de conflitos,


numa ligação entre a situação plurilocalizada que está a ser julgada e o Estado do foro.

Os fatores atributivos de jurisdição (semelhantes aos elementos de conexão das normas de


conflitos) variam de matéria para matéria, mas todos eles devem indiciar uma ligação entre o
litígio que vai ser julgado e o tribunal competente, sob pena de de estarmos perante uma
competência exorbitante. Ex: em matéria de direitos reais, a lei competente para resolver é a lei do lugar
da situação da coisa; a nível internacional, o tribunal que tem competência para julgar uma questão
plurilocalizada de direitos reais é também o tribunal do lugar da situação da coisa.

Quando estamos perante regras de competência exorbitante (normalmente, acontece com


os EUA), o que irá acontecer, com grande probabilidade, é que os tribunais de outros Estados
não vão reconhecer a sentença desse país que julgou através de uma regra de competÊncia
exorbitante.

No nosso ordenamento jurídico não temos nenhuma regra de competência exorbitante, até
porque o que temos no CPC a nível de jurisdição internacional são normas residuais: só se
aplicam depois de não poderem ser aplicados os vários regulamentos da UE.

As normas de competência internacional apresentam algumas diferenças face às


normas de conflitos:

• as normas de conflitos, regra geral, são bilaterais - tanto remetem para uma lei estrangeira
como para a lei PT; só excecionalmente são unilaterais e aí temos de as bilateralizar;

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• as regras de competência internacional:

• de fonte interna, são sempre unilaterais;

• de fonte internacional, são multilaterais (regulamentos UE ou convenções internacionais).

Interesses subjacentes às normas de competência internacional

No fundo, na sua génese, as normas de competência internacional são construídas tendo em


conta os mesmos interesses subjacentes às normas de conflitos:

1. coincidência forum - ius: coincidência entre o foro e a lei aplicável, isto é, construir as
regras de competência internacional de modo a que o tribunal competente aplique o seu
próprio direito, já que assim vai aplicar a lei que melhor conhece e vai julgar mais rapidamente
o caso, salvaguardando mais facilmente os valores do DIP.

2. proximidade entre o litígio e a causa: deve atribuir-se competência ao tribunal que se


encontrar mais próximo do litígio, porque é mais fácil a obtenção e produção de prova,
fazendo com que o litígio seja mais facilmente resolvido; além disso, tutela as expectativas
das partes porque o tribunal que vai julgar é o que está mais perto da causa.

3. efetividade ou eficácia prática da decisão: o legislador deve atribuir a competência ao


país onde essa decisão/sentença vai ser executada (competência exclusiva), evitando-se que
aquela decisão tenha que ser reconhecida noutro país e respeitando o princípio da soberania.

4. princípio da autonomia da vontade: as partes são as que estão em melhor posição para
dizer qual é a lei que melhor tutela os seus interesses; do mesmo modo, também é possível
às partes escolherem a jurisdição competente mediante pactos de jurisdição, desde que os
direitos sejam disponíveis.

5. previsibilidade e certeza jurídica: sendo um valor geral do direito, impõe que as regras
de competência internacional sejam claras e precisas, pelo que, regra geral, não encontramos
conceitos indeterminados ou cláusulas gerais neste âmbito.

Fontes das regras de competência internacional

- Fontes internas:

• CPC - arts. 59º, 62º e 63º (regras de competência internacional), 94º e 95º (pactos de
jurisdição), 978º a 985º (regras de reconhecimento).

- Fontes no direito da UE:

• Regulamento Bruxelas I (Reg.UE nº 1215/2012), Bruxelas II, etc.

- Fontes internacionais:

• Convenção de Bruxelas (substituída pelos regulamentos)

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DIREITO
INTERNACIONAL
PRIVADO

Casos Práticos

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ESQUEMAS DE RESOLUÇÃO
Casos de Estatuto Pessoal

1º Identificar a pretensão;

2º Identificar se estamos perante uma matéria de estatuto pessoal e definir (definição de


ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO);

3º Art. 25º - norma geral - lei pessoal

- princípio da unidade e estabilidade do estatuto pessoal;

- princípio da dignidade da pessoa humana.

4º Verificar se existe alguma norma de conflitos especial:

- qual a matéria em causa;

- selecionar norma de conflitos especial;

- ver se a lex causae se considera competente ou não;

- existência ou não de reenvio.

5º Verificar se se aplica algum dos desvios à aplicação da lei pessoal:

- art. 31º nº2:

- negócio jurídico inválido segundo a lei pessoal;

- negócio jurídico celebrado no lugar da RH;

- negócio jurídico celebrado segundo a lei da RH (+ interpretação extensiva);

- lei da RH considera-se competente.

- art. 28º:

- tráfego de bens e serviços (exclui família e sucessões);

- negócio jurídico;

- celebrado em PT;

- inválido perante a lei pessoal;

- no caso de disposição de imóveis, estes estejam situados em PT.

- art. 47º:

- imóveis situados no estrangeiro;

- questões relativas à capacidade negocial de exercício para celebrar negócios


respeitantes à constituição de direitos reais;

- lei da situação da coisa considera-se competente.

→ Procedência ou improcedência da ação.

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Casos Convenção de Roma ou Regulamento Roma I

1º Identificar pretensão - obrigações contratuais - aplicação de CRoma ou Roma I

2º Âmbito temporal para determinar aplicação de CRoma ou Roma I

- âmbito material

- âmbito espacial (relativos ao diploma escolhido)

3º Princípios de Roma I ou CRoma (5):

- autonomia da vontade;

- proximidade;

- proteção da parte mais fraca;

- reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI;

- reconhecimento de efeitos às NAI.

4º Âmbito da lei aplicável (art. 10º - ver alínea);

5º Confirmar se existe norma especial:

- se sim - aplica-se a norma especial (consumidores, etc.);

- se não - aplica-se:

- art. 3º - escolha de lei; ou

- art. 4º - regime supletivo na falta de escolha.

6º NAI (art. 7º nº2) ou ROPI (noção, características, efeitos, requisitos)

→ Procedência ou improcedência da ação


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Casos de Regulamento Roma II

1º Identificar pretensão e tipo de responsabilidade (extracontratual):

- não há relação contratual;

- violação de um direito absoluto.

2º Responsabilidade Extracontratual:

Roma II ou art. 45º CC

- âmbito material (art. 1º e 2º) (se não preencher os âmbitos de Roma II)

- âmbito espacial (art. 3º)

- âmbito temporal (art. 32º)

3º Princípios de Roma II (7):

- autonomia da vontade;

- tendência para a especialização das normas de conflitos;

- primazia pelo meio social comum;

- lex loci delicti commissi;

- equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização;

- reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI;

- reconhecimento de efeitos às NAI.

4º Âmbito da lei aplicável (art. 15º - ver alínea);

5º Confirmar se existe norma especial:

- se sim - aplica-se a norma especial;

- se não - aplica-se:

- art. 14º - escolha de lei; ou

- art. 4º - nº2 (regra)

- nº1

- nº3 (cláusula de exceção)

6º ROPI:

- noção

- características

- efeitos

- requisitos

→ Procedência ou improcedência da ação.


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Casos de Qualificação

1º Identificar o problema (pretensões): “X invoca a aplicação do art. y, uma norma material que diz respeito
a z, e para saber se esta é aplicável há que a subsumir no conceito-quadro de uma norma de conflitos para accionar a
sua consequência jurídica e ver se efetivamente a ordem jurídica competente é a que ela engloba”;

2º Identificar o sentido e alcance da referência feita:

- aberta ou

- seletiva (seguimos esta);

3º momentos da operação de qualificação:

a. interpretação do conceito-quadro da norma de conflitos:

- teorias sobre as interpretações:

- de acordo com o direito do foro - 2 desvantagens:

- restringe o âmbito de aplicação do conceito-quadro;

- põe em causa as finalidades do DIP.

- de acordo com o direito comparado - 2 desvantagens:

- não permite captar o juízo de valor por trás da norma de conflitos;

- é impossível encontra conceitos únicos.

- de acordo com o princípio da unidade da ordem jurídica;

- normas de conflitos potencialmente aplicáveis ao caso.

b. caracterização do objeto da qualificação à luz da ordem jurídica a que pertence

- dado normativo

- ratio da norma

- integração numa categoria de relações jurídicas

c. subsunção das normas materiais no conceito-quadro da norma de conflitos.

- qualificação lege fori com base numa caracterização lege causae

- accionar a consequência jurídica.

4º ROPI (se for invocada)

→ Procedência ou improcedência da ação.

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Casos de Reenvio

1º Identificar a pretensão (e a categoria de relações jurídicas em causa);

2º Identificar a norma de conflitos que regula essas relações jurídicas;

- consequência jurídica

- possível fraude à lei (noção; requisitos subjetivo e objetivo; consequência da verificação)

3º Interpretação e concretização do elemento de conexão:

- nacionalidade: interpretação - lex fori - noção

concretização - lege causae:

- princípios: liberdade dos Estados em definir os seus nacionais

unilateralidade (ou não bilateralidade das regras da nacionalidade)

harmonia de julgados

- limitação: princípio da nacionalidade efetiva

- possível conflito de nacionalidades (art. 27º e 28º LN)

- possível ordenamento jurídico plurilegislativo (art. 20º CC)

4º Consequência jurídica da norma de conflitos da lei chamada a resolver

- possível ordenamento plurilegislativo

5º Reenvio - conflito negativo de sistemas

6º Teorias do reenvio:

- referência material;

- referência global:

- devolução simples

- dupla devolução

7º Aplicação das teorias do reenvio ao caso - qual a lei aplicável

8º Reenvio no ordenamento jurídico PT - aceite ou não

- regra geral - art. 16º - não aceita

- aceita para atingir: harmonia de julgados

conservação do negócio jurídico

- art. 17º - transmissão de competências:

A. nº1 aceita (2)

B. nº2 paralisa (2)

C. nº3 recupera

- art. 18º - retorno à lei do foro (direto ou indireto)

- art. 19º - cessa o reenvio - favor negotii

9º ROPI (se for invocada ou for flagrante)

→ Lei aplicável e procedência ou improcedência da ação.


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CASOS DAS AULAS TP


Caso nº1

Alexandre, de 20 anos de idade, belga, residente habitualmente na Suíça, celebrou em Faro,


em 1991, testamento pelo qual legou a Berta, portuguesa, residente habitualmente em Faro, os
seus bens imóveis situados nessa cidade.
Por morte de Alexandre, Carlos, seu pai, intenta perante tribunal português acção de anulação
do testamento, com fundamento na incapacidade de Alexandre para testar segundo a lei belga,
que considera aplicável ao caso.
Berta contesta a acção, alegando que o negócio é válido à face da lei suíça, que entende ser
competente para regular a questão. Afirma ainda que, em qualquer caso, o testamento deverá ser
tido como insusceptível de anulação, visto ter sido celebrado em Portugal.

Admitindo que:
1. À face do DIP suíço, os indivíduos são considerados capazes para testar se como tal forem
tidos pela lei do domicílio, pela lei da residência habitual ou pela sua lei nacional no momento da
disposição; o DIP belga submete a capacidade para testar à lei nacional do autor da herança no
momento da declaração.
2. A capacidade para testar adquire-se na Suíça aos 20 anos e na Bélgica aos 21 anos.

Diga, discutindo os argumentos aduzidos pelas partes, se deve ser considerada procedente a
pretensão de Carlos.

1ºEP No problema que está aqui em causa temos a pretensão de C de anulação do


testamento com fundamento na incapacidade de A, seu filho, com base na aplicação da lei BEL,
que considera aplicável ao caso. Compete-nos então analisar se A tinha ou não capacidade para
celebrar este testamento.

2ºEP Porque está em causa uma matéria de capacidade negocial de gozo para testar, estamos
no âmbito das matérias de estatuto pessoal, elencadas no art. 25º CC. As matérias de estatuto
pessoal são estados, qualidades ou situações que, por afetarem a pessoa na totalidade da sua
esfera jurídica ou num setor importante, o legislador entendeu submeter a uma legislação
definida em função desses mesmos estados, qualidades ou situações (definição de ISABEL DE
MAGALHÃES COLLAÇO).

3ºEP O art. 25º CC, enquanto norma geral, conjugado com o art. 31º nº1 diz-nos que a lei
pessoal é a lei da nacionalidade. O art. 25º não tem elemento de conexão; o elemento de
conexão está no art. 31º nº1. Assim, é a lei da nacionalidade que se aplica, por regra, às matérias
de estatuto pessoal.

Isto resulta do princípio da unidade e estabilidade do estatuto pessoal: por estarem em causa
um conjunto de matérias que se referem à identidade dos sujeitos, o legislador decidiu submetê-
las a uma única lei, independentemente do lugar onde as pessoas se encontrem - a lei pessoal.
Resulta também de um afloramento do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP): a
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ideia de que há um conjunto de direitos adquiridos no país de origem, no país da nacionalidade,


que devem ser assegurados ao sujeito em qualquer lugar - este reconhecimento é feito,
nomeadamente, através da aplicação da lei pessoal, da lei da nacionalidade.

4ºEP Sendo que o art. 25º CC é a regra, importa averiguar se há alguma norma de conflitos
específica sobre matérias de capacidade.

Ao presente caso parece aplicar-se, uma vez que estamos em matéria de sucessões, o art. 63º
que regula a capacidade de testar. Sendo uma norma especial, vai revogar a regra geral do art.
25º. Assim, a lei do foro (PT), ou seja, a lei do tribunal onde está a ser apreciada a questão, irá
aplicar o art. 63º CC para a capacidade para testar.

O art. 63º considera competente para regular a capacidade para testar a lei pessoal do autor
ao tempo da declaração. Conjugado este artigo com o art. 31º nº1 temos que a lei pessoal de A
(autor) no momento em que celebrou o testamento (ao tempo da declaração) era a lei BEL.

Isto significa que a lei PT (L1) irá remeter a questão, de acordo com a aplicação dos arts. 63º e
31º nº1 CC para a lei BEL (L2).

O DIP BEL “submete a capacidade para testar à lei nacional do autor da herança no momento
da declaração”, o que significa que se considera competente. Se o direito BEL se considera
competente, não temos aqui qualquer problema de reenvio.

L1 L2

art. 63º lei BEL - inválido

art. 31º nº1

L1 remete para L2 que, porque utiliza o mesmo elemento de conexão da lei que o designou (a
lei do foro), considera-se competente para resolver a matéria. Considerando-se competente,
temos de olhar para o direito material BEL.

De acordo com o direito material BEL, o testamento é inválido porque a capacidade de testar
só se adquire aos 21 anos, e quando A celebrou o testamento tinha apenas 20 anos.

Então temos: a norma de conflitos do art. 63º + 31º nº1 CC remete-nos para a lei BEL. A lei
BEL, porque utiliza o mesmo elemento de conexão do que a lei que a designou, considera-se
competente. O direito material BEL considera A incapaz para celebrar este testamento, pelo que
o negócio jurídico é inválido.

5ºEP No entanto cabe-nos ainda verificar se há algum desvio à aplicação da lei pessoal, uma
vez que queremos validar o negócio jurídico, por se tratarem de matérias de estatuto pessoal,
nomeadamente uma questão de capacidade. O que invalida aqui o testamento é a falta de
capacidade de A para celebrar este negócio; assim, podemos verificar se se preenche algum dos
desvios à aplicação da lei pessoal em favor de uma outra lei.

[Dependendo de como a questão é formulada no caso prático, podemos resolver apenas com o desvio indicado
para aquela matéria. A título de exemplo, é aqui resolvido o caso com os 3 desvios, dizendo qual poderá estar
preenchido, ou não, e porque não estará preenchido. Além disso, é necessário explicar a que se refere o desvio (se a
negócios celebrados em PT ou no estrangeiro), justificar o facto de ser um desvio à aplicação da lei pessoal e justificar
ainda a ratio desse desvio.]

O art. 31º nº2 CC, relativo a negócios jurídicos celebrados no estrangeiro, apresenta-se não
como um verdadeiro desvio à aplicação da lei pessoal, mas como um desvio à aplicação da lei
da nacionalidade enquanto lei pessoal; isto porque, em vez de aplicarmos a lei da nacionalidade,

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aplicamos a lei da RH. Na RH o elemento de conexão tem uma legitimidade semelhante em


matérias de estatuto pessoal para resolver estas situações.

Este desvio justifica-se para proteger a confiança do declarante, no caso, o testador, na


validade de um negócio jurídico de estatuto pessoal celebrado de acordo com a lei da RH no país
da RH - princípio da tutela da confiança.

O desvio aplica-se quer esteja em causa um nacional PT ou nacional estrangeiro (no nosso
caso, A não é de nacionalidade PT) e aplica-se quando está em causa um negócio estritamente
pessoal, que é o caso do testamento, daí que se fale da capacidade de gozo.

Para admitirmos o desvio, temos de verificar 4 requisitos: temos que ter (1) um negócio
jurídico que é inválido segundo a lei pessoal; (2) celebrado no lugar da RH; (3) de acordo com a
lei da RH; e (4) a lei da RH tem que se considerar competente para resolver esta matéria.

[Indicar os requisitos em abstrato e com precisão; de seguida, dizer e estão preenchidos ou não, em concreto.]

Então, primeiramente, o negócio tem de ser inválido segundo a lei pessoal. Já vimos que este
requisito está preenchido, já que de acordo com a lei BEL, o negócio jurídico é inválido.

O segundo requisito exige que o negócio jurídico tenha sido celebrado no país da RH. Neste
caso, A reside na SUÍ e o negócio foi celebrado em Faro (PT), pelo que este requisito não está,
desde logo, preenchido. Exige-se ainda que o negócio tenha sido celebrado segundo a lei da RH.

A aplicação destes requisitos é cumulativa, pelo que, não estando um deles preenchido,
vamos ter que afastar, eventualmente, o desvio. No entanto, pode haver a possibilidade de
realizar uma interpretação extensiva, que pode acontecer em duas vertentes: (1) é possível
admitirmos negócios jurídicos que, apesar de não terem sido celebrados no país da RH, são
celebrados de acordo com a lei da RH; ou (2), podemos admitir negócios jurídicos que, não
sendo celebrados no país da RH, foram celebrados num 3º país, de acordo com uma 3ª lei que é
competente de acordo com a lei da RH.

No presente caso, o negócio jurídico não foi celebrado na RH, foi celebrado em PT, mas tem
de ser de acordo com a lei SUÍ. No enunciado é-nos dito que a capacidade para testar adquire-
se na SUÍ aos 20 anos e na BEL aos 21. Podíamos considerar que o negócio podia ser celebrado
de acordo com a lei da RH, apesar de não temos uma indicação expressa no enunciado de que
foi celebrado de acordo com a lei SUÍ; no entanto, para a vertente (1) da interpretação extensiva é
conveniente que o enunciado diga expressamente que A celebrou o negócio jurídico de acordo
com o direito SUÍ. [mas poderia ser aceite esta resposta, se devidamente fundamentada]

Falta ainda ver outro requisito: a lei da RH tem que se considerar competente. Ela pode
considerar-se competente independentemente do requisito do elemento de conexão que utiliza,
apenas tem de se considerar competente para resolver o litígio.

Na vertente (2) da interpretação extensiva, admitem-se negócios jurídicos que não foram
celebrados no país da RH mas que possam ter sido celebrados de acordo com a lei da RH (ou de
acordo com outra lei). Tem que estar ainda preenchida a questão da competência: é necessário
que a lei da RH considere competente esta 3ª lei, o que no caso concreto implica que a lei SUÍ
considere competente a lei PT (lugar da celebração do negócio).

Já que o DIP SUÍ não tem como elemento de conexão o lugar da celebração do negócio, a lei
PT não é considerada competente e esta interpretação extensiva não pode realizar-se.

Recapitulando: o objetivo do desvio do art. 31º nº2 é validar o negócio jurídico realizado na RH
e exige 4 requisitos (negócio inválido segundo a lei pessoal, ou seja, da nacionalidade; celebrado
no país da RH; de acordo com a lei da RH; a lei da RH tem de se considerar competente). No
entanto, é possível fazer uma interpretação extensiva, se não conseguirmos validar da maneira
anterior, no caso de o negócio ter sido celebrado fora da RH, de acordo com uma lei que não a
da RH, mas de acordo com um direito que a lei da RH considera competente (celebrado em PT,
de acordo com a lei PT, desde que a lei SUÍ considere a lei PT competente). No fundo, é
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necessário que a lei da RH tenha como elemento de conexão a lei do lugar da celebração do
negócio jurídico; como a norma de conflitos do DIP SUÍ não utiliza como elemento de conexão o
lugar da celebração, não podemos fazer a interpretação extensiva, o que significa que não
podemos aplicar aqui este desvio - A não teria capacidade para testar, pelo que o testamento
mantém-se inválido.

Não se aplicando este desvio, podemos ver porque não se podem aplicar igualmente os
restantes desvios à aplicação da lei pessoal.

O desvio do art. 47º CC é aplicado à capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis, e
aqui estava em causa a capacidade de gozo, apesar de o objeto do negócio jurídico ser um
imóvel. Além disso, não poderia ser tido em consideração pela falta de um requisito: aplica-se
quando os imóveis estão situados no estrangeiro, e este está situado em Faro, PT. De qualquer
forma, a razão principal é que este desvio se aplica quando está em causa uma capacidade
negocial de exercício para celebrar negócios respeitantes à constituição de direitos reais e não a
questões de capacidade de gozo.

Finalmente também não poderíamos aplicar o desvio do art. 28º nº1, nº2 e nº3 CC porque
este exige o preenchimento de uma série de requisitos que não se verificam neste caso em
concreto: questões de capacidade de exercício, ou seja, quando está em causa o tráfego de
bens e serviços (o nº2 exclui expressamente os negócios provenientes de relações familiares e
sucessórias); negócio jurídico celebrado em PT; negócio inválido segundo a lei pessoal por falta
de capacidade; o objeto do negócio seja um imóvel situado em PT.

Não se aplicando nenhum dos desvios à lei pessoal, mantemos a solução a que chegamos
pela aplicação da regra do art. 63º e 31º nº1 CC e vamos aplicar ao caso concreto a lei BEL, e
aplicando a lei BEL o testamento é inválido, A não tem capacidade.

[Tentámos, através dos desvios, encontrar uma forma de validar este negócio, mas se não encontrarmos não há
problema; não é necessário validar o negócio jurídico, apenas procurar uma forma de o fazer.]

→ A ação aqui seria considerada procedente.

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Caso nº2

Em 11 de Dezembro de 1998, Jacques, de nacionalidade francesa e residente no Porto,


celebrou em Lisboa um contrato individual de trabalho com a CONSTRÓI BEM, S.A., com sede
estatutária nas Ilhas Caimão (apesar do conselho de administração e a assembleia geral se
reunirem em Lisboa). Em virtude do referido contrato, obrigou-se o primeiro, mediante retribuição,
a prestar a sua actividade profissional à segunda, como engenheiro-civil na obra que a CONSTRÓI
BEM, S.A. está a executar na Arábia Saudita.
O contrato, assinado e escrito por ambas as partes, foi sujeito ao direito da Arábia Saudita. Em
22 de Junho de 1999, a administração da CONSTRÓI BEM, S.A. comunicou a Jacques, que
dispensava os seus serviços a partir do dia 30 do mesmo mês, não tendo sido, para o efeito,
elaborado processo disciplinar ou invocado justa causa, nos termos da legislação laboral
portuguesa.
Inconformado, Jacques propõe uma acção em Portugal, em que pede a condenação daquela
sociedade no pagamento da importância correspondente ao valor das retribuições que o
trabalhador deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do pagamento e a sua
reintegração com base na ilicitude do despedimento. Invocou para o efeito o Código do Trabalho
português que considera aplicável em virtude do art. 6º, nº 2 da Convenção de Roma sobre a lei
aplicável às obrigações contratuais.
Na contestação, a CONSTRÓI BEM, S.A. alegou ser o direito da Arábia Saudita aplicável ao
caso por força do art. 3º da Convenção de Roma, ou, caso assim não se entenda, por força do
art. 6º, nº 2, último parágrafo, visto ser com aquele país que o contrato tem a conexão mais
estreita.
Contrapõe o autor, que as normas do direito da Arábia Saudita, que permitem o despedimento
sem justa causa, lesam o princípio fundamental da segurança no emprego e o princípio da
proibição dos despedimentos sem justa causa, princípios estruturantes do direito laboral
português, consagrados no art. 53º da CRP, sendo de afastar a sua aplicação no caso em
questão.

Admitindo que:
1. À face do direito em vigor na Arábia Saudita é lícito o despedimento sem justa causa.
2. Segundo o Código do Trabalho português, o despedimento sem justa causa é ilícito.
3. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a causa.

Diga, discutindo os argumentos aduzidos pelas partes, se a pretensão de Jacques deve ser
julgada procedente. E se o contrato tivesse sido celebrado em 2 de Fevereiro de 2010?

Analisemos a primeira questão: a hipótese de o contrato ter sido celebrado a 11/12/1998.

1ºCRI É necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre J e esta empresa/
sociedade para saber se o despedimento foi lícito ou não. Como estão em causa obrigações
contratuais, vamos ponderar a aplicação de Roma I ou CRoma.

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2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 1998, o diploma a aplicar é a CRoma.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º CRoma. Aplicamos a convenção quando


estejam em causa obrigações contratuais que envolvam conflitos de leis, excluindo as matérias
elencadas no nº2, nº3 e nº4 deste artigo. No presente caso: temos um contrato celebrado entre J
e Constrói Bem, S.A., que tem ligações com PT, FRA, ArSAU e IC.

Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º CRoma. Este artigo indica que a lei indicada
pelas normas de conflitos desta convenção é aplicada, quer pertença ou não a um Estado-
membro.

Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A esta convenção estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da vontade;
proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de efeitos às NAI;
reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

[No teste basta indicar, nesta fase, e desenvolver ao longo do caso; aqui explico sucintamente.]

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 5º) e contrato individuais de trabalho (art. 6º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador; em
contrato individuais de trabalho (art. 6º): o trabalhador é a parte mais fraca que se deve proteger,
já que não tem grande poder negocial; em particular, aquele sujeito a um contrato de trabalho
internacional encontra-se numa situação de vulnerabilidade superior.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 7º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº1) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 16º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 10º CRoma fala-nos do âmbito de aplicação da lei do contrato. Atendendo à
pretensão e aos factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá
regular: a interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de condenação ao


pagamento de retribuições e de reintegração por ilicitude do despedimento, a lei a que vamos
chegar pela aplicação do regulamento irá regular, nos termos da al. d), as diversas causas de
extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade.

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5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. Neste caso há uma parte, o trabalhador, que se encontra
numa posição de vulnerabilidade em relação à contraparte, o que motivou esta pretensão.

Assim, podemos recorrer ao art. 6º que regula os contratos individuais de trabalho. Esta
norma visa a proteção do trabalhador enquanto parte mais fraca de relação contratual, que se
encontra numa posição de subordinação jurídica.

O art. 6º nº1 1ª parte permite a escolha de lei, ou seja, dá liberdade às partes para
escolherem, de acordo com os seus interesses, qual a lei que melhor os pode tutelar, garantindo
uma maior certeza e previsibilidade de aplicação (princípio da autonomia da vontade). Assim, se
houver escolha de lei, têm de verificar-se os requisitos do art. 3º: (1) as partes só podem escolher
a lei de 1 Estado (argumento literal que se retira do art. 1º nº1 e 2º - não podem ser costumes); (2)
pode abranger a totalidade ou parte de contrato; (3) pode ser expressa ou tácita; (4) pode ser
anterior ou posterior à celebração do contrato; (5) não pode prejudicar a aplicação das
disposições imperativas da lei do Estado com o qual o contrato tem a maior parte das suas
ligações no momento da celebração.

No entanto, independentemente da escolha de lei, o art. 6º nº1 2ª parte estabelece


limitações à aplicação da lei escolhida para evitar que, através dela, o trabalhador fique privado
da proteção das disposições imperativas da lei que regularia o contrato, se não existisse escolha
de lei. Isto significa que há que fazer uma comparação entre a lei escolhida e a lei que seria
competente na falta de escolha (art. 6º nº2), e poderá prevalecer o princípio da proteção da parte
mais fraca sobre o princípio da autonomia da vontade.

A lei escolhida pelas partes foi a lei da ArSAU, que permite o despedimento sem justa causa.
A lei aplicável, na falta de escolha das partes, é uma das presentes nas als. a) e b) do nº2, no
caso, a al. a): lei do país em que o trabalhador presta habitualmente o trabalho. O lugar da
prestação habitual de trabalho é, em regra, o lugar onde o contrato é executado, ou seja aquele
onde/a partir do qual o trabalhador cumpre o essencial das suas obrigações para com o
empregador (onde realiza as suas atividades, onde recebe as ordens, onde recebe o vencimento,
onde tem as ferramentas de trabalho, etc.). Neste caso, não há dúvidas que o lugar onde J presta
habitualmente o trabalho é na ArSAU.

Isto significa que, na comparação entre a lei escolhida pelas partes e a lei aplicável na falta de
escolha, chegamos à mesma solução - a aplicação da lei da ArSAU - que, na verdade, não
protege em quase nada o trabalhador.

6ºCRI Para protegermos os interesses do trabalhador, a parte mais vulnerável nesta relação,
podemos recorrer a NAI ou à ROPI.

Podemos eventualmente aplicar aqui o art. 53º CRP (invocado por J), enquanto uma NAI: J
tinha RH em PT (antes de ir para a ArSAU) e foi contratado por uma empresa com sede principal
efetiva em PT. As NAI são “normas materiais, espacialmente autolimitadas que, pelo fim social
que visam atingir e pela especial intensidade valorativa que revestem, reclamam a sua aplicação
independentemente do âmbito de competência da ordem jurídica a que pertencem, derrogando o
sistema conflitual geral do Estado do foro”.

Têm como características principais: são (1) normas materiais (dão a solução material para o
caso concreto); (2) podem revestir natureza pública ou privada; (3) são normas imperativas; (4)
reclamam a sua aplicação ao caso concreto, quer expressa, quer implicitamente; (5) a sua
aplicação resulta de uma norma de conflitos unilateral ou do objeto/fim da NAI (fins sociais, como
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a proteção da parte mais fraca); (6) tem caráter territorial (salvaguarda de interesses nacionais de
cada Estado); (7) são autónomas (não estão dependentes do sistema conflitual); (8) são
excecionais; e (9) apesar de conterem a solução material, também contêm uma conexão própria.

Neste caso, para saber se o art. 53º CRP é aplicável, temos que olhar para os seus objetivos,
as suas funções: entende-se que o art. 53º CRP é aplicável nos casos em que o trabalhador
resida ou tenha nacionalidade PT, seja contratado por empresas estabelecidas em PT (e através
desses estabelecimentos em PT), para prestar trabalho no estrangeiro (tudo isto se verifica).

Assim, quando a NAI pertence à lei do foro (como é o caso) aplica-se com prioridade face às
normas competentes. Isto significa que, estando o art. 53º CRP preenchido, vamos afastar a
aplicação das normas da ArSAU e vamos aplicar o direito PT; de acordo com o direito PT, o
despedimento seria ilícito.

Por outro lado, como há posições doutrinais que não consideram o art. 53º como uma NAI,
ainda havia forma de protegermos o trabalhador através da invocação da ROPI (art. 16º CRoma):
limite à aplicação do direito estrangeiro em princípio competente, ao reconhecimento de
sentenças estrangeiras e à transcrição de atos de registo civil lavrados no estrangeiro, sempre
que da sua aplicação resulte uma situação incompatível com as conceções ético-jurídicas ou
princípios jurídicos fundamentais do Estado do foro.

A ROPI tem 4 características: atualidade, excecionalidade, imprecisão e caráter nacional.

É necessário o preenchimento de dois requisitos cumulativos: por um lado, haver um juízo


de incompatibilidade entre o resultado da aplicação da lei estrangeira e os princípios
fundamentais do Estado do foro; por outro, que haja uma conexão suficiente entre os factos e a
ordem jurídica do foro (cujo grau de maior ou menor exigência vai variar consoante a importância
do princípio para o direito do foro).

No nosso caso em concreto, o facto de se permitir o despedimento ilícito sem justa causa
atenta contra o art. 53º CRP (que não permite despedimentos sem justa causa) e contra as
normas do Código do Trabalho. Há uma ligação clara entre os factos e a ordem jurídica do foro,
já que o contrato foi celebrado em PT, o trabalhador tem RH em PT e a sede principal e efetiva da
entidade empregadora também é em PT.

Verificada a ROPI, tem dois efeitos: um efeito primário, que consiste no afastamento da lei
normalmente competente; e um efeito secundário que, num 1º momento passa por procurar-se a
solução material na legislação competente (princípio do mínimo dano à lei estrangeira) e, se não
for possível, num 2º momento aplicarem-se as normas materiais da ordem jurídica do foro.

Não existindo na ArSAU uma norma que impeça o despedimento sem justa causa, aplicamos
o direito PT.

→ Assim, a pretensão de J seria procedente, pela aplicação da lei PT por meio da ROPI.

Agora, em relação à segunda questão, analisemos as diferenças de resolução na hipótese de


o contrato ter sido celebrado a 2/02/2010.

Em 1º lugar aplicava-se o regulamento Roma I, por causa do âmbito temporal (os âmbitos
material e espacial são os mesmos); mudava a norma quanto ao âmbito da lei aplicável - seria o
art. 12º al. d) Roma I; em vez de aplicar o art. 6º (CRoma), aplicava-se o art. 8º Roma I, que tem
uma solução idêntica à chegada anteriormente através da CRoma.

Da mesma forma se aplicaria a lei da ArSAU, a não ser pela aplicação da NAI (art. 9º nº2 Roma
I) ou da ROPI (art. 21º Roma I), através das quais se conseguiria a aplicação da lei PT e a
proteção do trabalhador.


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Caso nº3

Em 20 de Dezembro de 2009, António, nacional português, com residência habitual em Braga,


resolve fazer umas férias na neve, nos Alpes franceses, na companhia de uns amigos, entre os
quais estava Carlos, de nacionalidade portuguesa e espanhola, actualmente residente em Vigo.
Devido ao seu espírito altamente competitivo e prevendo manobras arriscadas na neve,
antecipadamente, o grupo de amigos acorda que em caso de acidente envolvendo membros do
grupo será aplicável a lei portuguesa.
Em 21 de Dezembro, durante uma descida íngreme, Carlos que seguia uma trajectória paralela
a António, entra em colisão com este no final da pista, tendo António sofrido uma ruptura de
ligamentos no joelho, como consequência. Não foi possível apurar a culpa de Carlos.
Após o regresso a Portugal, António pede a Carlos o ressarcimento dos danos patrimoniais
sofridos, inclusive as despesas com todos os tratamentos que fez em Portugal, invocando a lei
francesa, que considera aplicável, nomeadamente uma norma material prevista no Código Civil
francês que responsabiliza a aquele que tem ao seu cuidado certa coisa, pelos danos causados
pela mesma, a título de responsabilidade objectiva.
Carlos contesta afirmando que as partes tinham acordado a aplicação do direito português em
caso da ocorrência de algum acidente durante as férias na neve, que não tem uma norma similar.
Considera, ainda, que se as despesas com os tratamentos ocorreram em Portugal, assim como os
danos resultantes de ausências no emprego, justifica-se a aplicação da lei portuguesa. Por fim,
considera que a aplicação do direito francês, nomeadamente a ausência da exigência da culpa,
constitui uma violação da reserva de ordem pública do Estado português.

Admitindo que:
1. A jurisprudência francesa aplica a norma invocada por António aos acidentes de Ski, pelos
skis serem considerados um meio de locomoção.
2. A ordem jurídica portuguesa não tem uma norma idêntica à francesa, a partir do qual os
tribunais nacionais façam a mesma interpretação adoptada pelos tribunais franceses.
3. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

Diga, discutindo os argumentos aduzidos pelas partes, se a pretensão de António deve ser
considerada procedente.

1ºRII No presente caso, estamos perante uma situação de responsabilidade civil


extracontratual, uma vez que entre A e C não há qualquer relação contratual.

A vem pedir o ressarcimento dos danos sofridos na colisão com C, colisão essa que provocou
uma rotura de ligamentos no joelho. Este ato constitui uma violação de um direito absoluto (o
direito à integridade física), o que dá origem à responsabilidade civil extracontratual.

2ºRII Para resolução de uma questão de responsabilidade civil extracontratual podemos


recorrer ao Regulamento Roma II, se estiverem preenchidos os seus âmbitos de aplicação
material, temporal e espacial. Caso não estejam preenchidos esses âmbitos, temos de recorrer
ao art. 45º CC, que é a norma de conflitos que regula a responsabilidade civil extracontratual.

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[Quando se identificarem os âmbitos de aplicação há que identificar os respetivos arts., definir em abstrato e
porque é que estão concretizados no caso prático.]

O âmbito material está consagrado nos arts. 1º e 2º Roma II. Aplicamos o Regulamento
Roma II quando esteja em causa um conflito de leis em situações que envolvam obrigações
extracontratuais. No presente caso: houve a violação de um direito absoluto, o direito à
integridade física (houve um acidente na neve que provocou danos a A); entre A e C não existe
qualquer relação contratual; há efetivamente obrigações extracontratuais (há danos patrimoniais
pedidos por A); e há um conflito de leis (A tem nacionalidade PT e reside em PT, B tem
nacionalidade PT e ESP e reside em ESP, e o acidente aconteceu em FRA - várias leis podem ser
chamadas a resolver a questão).

Há um conjunto de situações elencadas no nº2 do art. 1º que são excluídas da aplicação


deste âmbito material. Os factos que digam respeito a uma dessas questões são afastados da
aplicação do Regulamento Roma II. Apenas ressalvar a alínea g) do nº2 do art. 1º, respeitante às
“obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida privada e dos direitos de
personalidade”, em relação à qual temos de fazer uma interpretação restritiva e sistemática: a
ofensa à integridade física é uma violação de um direito de personalidade, pelo que se fossemos
por uma interpretação literal desta alínea, esta situação prática estaria excluída de Roma II.
Assim, com fundamento nos considerandos 17, 20 e 33 de Roma II, incluímos no âmbito material
de Roma II os direitos de personalidade (regra), excluindo apenas as situações em que a violação
decorrer de um delito de imprensa.

O primeiro âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 3º Roma II. Este artigo indica que o regulamento é
de aplicação universal, o que quer dizer que qualquer lei indicada pelas normas de conflitos de
Roma II é aplicável, ainda que pertença a um Estado não participante da assinatura do
regulamento (ex: se o art. 4º nº2 indicar como lei competente a dos EUA, será esta lei aplicada, mesmo
não se tratando de um Estado-Membro).

O segundo âmbito está automaticamente preenchido.

O âmbito temporal está consagrado no art. 32º Roma II. Nos seus termos, o regulamento é
aplicável a factos ocorridos após 11 de janeiro de 2009. No caso prático, o acidente ocorreu em
21 de dezembro de 2009, logo já vigorava o regulamento.

Este âmbito está, também, preenchido (se não estivesse aplicávamos o art. 45º CC).

3ºRII A este regulamento está subjacentes uma série de princípios (7): autonomia da vontade;
tendência para a especialização das normas de conflitos; primazia pelo meio social comum; lex
loci delicti commissi; equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas
de conflitos; reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI; reconhecimento de efeitos
às NAI.

[No teste basta indicar, mas para estar mais completo, explico sucintamente.]

O princípio da autonomia da vontade permite às partes escolher a lei aplicável (art. 14º).

O princípio da tendência para a especialização das normas de conflitos expressa a intenção


do legislador de regular as situações específicas em que há interesses próprios, através de
normas pensadas especificamente para esses interesses (ex: arts. 5º a 12º).

O princípio da primazia pelo meio social comum faz prevalecer, através da escolha da lei que
está mais próxima das partes (princípio da proximidade) a aplicação da lei da RH comum da
pessoa cuja responsabilidade se quer apurar e do lesado no momento em que ocorre o dano (art.
4º nº2).

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O princípio lex loci delicti commissi consagra a lei do lugar do delito na modalidade de lugar
do dano dano direto, em detrimento do lugar da prática do facto (art. 4º nº1).

O princípio do equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas de


conflitos indica que as normas de conflitos de Roma II que indicam a lei aplicável a determinado
caso devem ser equilibradas com aquelas que fazem prevalecer a lei da conexão mais estreita ou
mesmo que conferem poder às regras de segurança e de conduta, de modo a atingir um
resultado mais justo (art. 17º).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI permite que o juiz do


foro não esteja vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro (art. 26º).

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI dita que as competências legislativas


decorrentes de Roma II não prejudicam a aplicação de normas materiais de aplicação imediata
do Estado do foro.

4ºRII O art. 15º Roma II fala-nos do alcance da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar que é que a lei aplicável irá regular: os
fundamentos da responsabilidade civil, as pessoas que têm direito a uma indemnização, a
responsabilidade por parte de outrem, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de ressarcimento, danos


sofridos e violação de direitos absolutos, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento
irá regular, nos termos da al. a), os fundamentos da responsabilidade civil e a quem pode ser
imputada essa responsabilidade e, nos termos da al. c), a natureza dos danos e a eventual
reparação dos mesmos.

5ºRII Analisado o âmbito da lei aplicável, e porque Roma II consagra o princípio da tendência
para a especialização das normas de conflitos, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. As normas especiais encontram-se nos arts. 5º a 12º.

Neste caso há a violação de um direito absoluto, pelo que não há nenhuma norma especial
que regule esta situação. Por isso, aplicamos as regras gerais, que são duas: o art. 14º que
consagra o princípio da autonomia da vontade, se houver escolha de lei; e o art. 4º. [Se houver
escolha de lei temos que analisar obrigatoriamente o art. 14º, para ver se a escolha é válida ou não.]

No caso houve escolha de lei, já que no 1º parágrafo do enunciado diz que os amigos
antecipadamente acordaram que em caso de acidente envolvendo algum dos membros, seria
aplicável a lei PT - houve a escolha da lei PT.

Temos, assim, de analisar os requisitos cumulativos do art. 14º: escolha expressa ou tácita;
que não prejudique terceiros; pode ser anterior ou posterior ao facto que dá origem ao dano; só
pode recair sobre o direito de um Estado (as partes não podem escolher aplicar à resolução
daquela questão, por exemplo, os costumes ou princípios do direito nacional - interpretação
conjugada com o art. 3º); salvaguarda a aplicação de disposições imperativas da lei que está em
contacto com os elementos relevantes da situação no momento da ocorrência do facto delitual,
bem como das disposições imperativas da lei da UE.

A escolha “deve ser expressa ou decorrer, de modo razoavelmente certo, das circunstâncias”,
portanto expressa ou tácita. No caso concreto houve uma escolha expressa.

Por outro lado, a escolha de lei pelas partes pode ser anterior ou posterior ao facto que dá
origem ao dano. Se for anterior, impõem-se mais dois requisitos: que as partes desenvolvam
atividades económicas e tenham negociado livremente a escolha de lei. No caso concreto, a
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escolha foi anterior ao facto que originou o dano, pelo que importa o preenchimento dos outros
dois requisitos. Enquanto que o acordo parece ter sido livremente negociado pelas partes, não
parece decorrer do enunciado que as partes desenvolvem atividades económicas; a escolha de
lei foi feita na decorrência de uma atividade de lazer, um passeio entre amigos. Assim, não temos
a verificação deste último requisito.

Tratando-se de requisitos cumulativos, e não estando preenchidos os do nº1 do art. 14º, a


escolha de lei não é válida.

Resta-nos agora a regra geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual - o art. 4º.

O princípio fundamental nesta matéria, por onde devemos começar, é a primazia do meio
social comum, presente no nº2. [só se o nº2 não estiver preenchido é que vamos ao nº1] Este princípio é
concretizado através do elemento de conexão RH comum do lesado e da pessoa cuja
responsabilidade é invocada e é uma conexão definida em função do princípio da proximidade e
do princípio da confiança porque, em regra, esta lei (RH) é aquela que as partes melhor
conhecem e com a qual habitualmente conformam o seu comportamento, aumentando assim a
previsibilidade de aplicação. No caso em apreço, A reside em PT e B reside em ESP, pelo que
não se verifica uma RH comum, o que implica a não aplicação no nº2.

No nº1, subsidiariamente, encontramos concretizado o princípio da lex loci delicti commissi


enquanto lei do lugar do dano. Está em causa um dano direto, um dano real, e não os danos
indiretos (as consequências, aqueles que resultaram de um dano direto). Esta é uma conexão
objetiva com o delito, que promove a certeza e a segurança jurídica, a harmonia de julgados, e
está associada à função compensatória da responsabilidade civil. Neste caso, o lugar da violação
do bem jurídico (que coincide com o dano direto), ou seja, o lugar onde foi violada a integridade
física e que provocou danos diretos foi em FRA, apesar de existirem danos verificados em PT
(danos indiretos). Pela aplicação do art. 4º nº1 chegamos à aplicação da lei FRA.

No entanto, cabe ainda verificar se é possível aplicar a cláusula de exceção que resulta do
art. 4º nº3 e que flexibiliza a norma: de acordo com este nº3, se existir uma lei que tenha uma
conexão mais estreita com a situação do que aquela que resulta do nº1 ou nº2, vamos poder
aplicar essa lei. No entanto, esta norma exige uma prévia relação entre as partes que tenha
ligação com a responsabilidade civil extracontratual; só esta relação prévia, normalmente
contratual, é que vai justificar o afastamento do nº1 e nº2 e a aplicação de outra lei. Ora, neste
caso prático, e pelos dados que nos são dados, não podemos concluir que exista uma outra lei
que tenha uma maior conexão que a lei FRA (a relação prévia que existia entre os sujeitos era
uma relação de amizade, não abrangida pelo nº3). Não havendo uma lei que tenha uma conexão
mais próxima com a situação do caso concreto, vamos aplicar a lei FRA.

Ao aplicarmos esta lei, o direito material FRA considera que há lugar a responsabilidade
extracontratual, e que C irá responder a título de responsabilidade objetiva, isto é, mesmo que
não tenha culpa.

6ºRII No entanto, falta ainda analisar um argumento: C invocou a ROPI, com base no facto de a
ordem jurídica PT delimitar as situações de responsabilidade sem culpa (responsabilidade
objetiva) e de não existir nenhuma norma material PT que, numa circunstância semelhante,
permita responsabilizar sem culpa.

A ROPI é um limite à aplicação do direito estrangeiro em princípio competente, ao


reconhecimento de sentenças estrangeiras e à transcrição de atos de registo civil lavrados no
estrangeiro, sempre que da sua aplicação resulte uma situação incompatível com as conceções

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ético-jurídicas ou princípios jurídicos fundamentais do Estado do foro. No caso de Roma II, a


matéria de ROPI está prevista no art. 26º.

A ROPI tem quatro características: (1) atualidade, já que o seu preenchimento é analisado à
luz do sentimento ético-jurídico dominante no momento da causa; (2) excecionalidade, visto que
só pode atuar em última circunstância, caso contrário colocaria em causa a finalidade do DIP; (3)
imprecisão, porque é um conceito indeterminado que tem de ser concretizado pelo legislador no
momento em que este aprecia a questão; e (4) caráter nacional, dada a exigência de uma ligação
dos factos à ordem jurídica do foro, já que é esta que vai determinar os princípios fundamentais.

Se a ROPI, por ventura, se verificar, tem dois efeitos: um efeito primário, que consiste no
afastamento da lei normalmente competente; e um efeito secundário que, num 1º momento
passa por procurar-se a solução material na legislação competente (princípio do mínimo dano à
lei estrangeira) e, se não for possível, num 2º momento aplicarem-se as normas materiais da
ordem jurídica do foro.

Antes de tudo isto, para que se verifique a ROPI, é necessário o preenchimento de dois
requisitos cumulativos: por um lado, haver um juízo de incompatibilidade entre o resultado da
aplicação da lei estrangeira e os princípios fundamentais do Estado do foro; por outro, que haja
uma conexão suficiente entre os factos e a ordem jurídica do foro (cujo grau de maior ou menor
exigência vai variar consoante a importância do princípio para o direito do foro).

Começando por este último requisito, no nosso caso em concreto, é necessária uma ligação
com a ordem jurídica do foro (PT). C residia em ESP mas tinha dupla nacionalidade, pelo que
cumpre agora ver qual é a nacionalidade que prevalece. A nacionalidade é o vínculo jurídico-
político que liga um indivíduo a um Estado soberano. As normas que resolvem o conflito positivo
de nacionalidade encontram-se nos arts. 27º e 28º da Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3 de
outubro); a primeira resolve aquelas situações em que uma das nacionalidades em confronto é a
PT, e a segunda resolve as demais, quando não está em causa a nacionalidade PT. Porque C tem
nacionalidade PT, e nos termos do art. 27º é esta que prevalece, confirmamos a existência de
uma ligação com a ordem jurídica do foro, já que não havia dúvidas sobre a nacionalidade de A.
Assim, o requisito encontra-se preenchido.

Por fim, cabe aferir se há de facto um juízo de incompatibilidade entre o resultado da


aplicação da lei estrangeira e os princípios fundamentais da ordem jurídica do foro. O que C
invoca é que no ordenamento jurídico PT não existe nenhuma norma material que sancione aqui
este tipo de facto, a responsabilidade objetiva. O que existe, no caso, é efetivamente uma mera
divergência de regulamentação da mesma situação, já que o Estado do foro exigiria a culpa
(responsabilidade subjetiva) e a lei estrangeira não. Contudo, a mera divergência de soluções
para a mesma situação nação ofende qualquer princípio ético-fundamental do Estado do foro, é
apenas uma diferente forma de regulamentação que também se justifica pelo país em que estes
acidentes de ski ocorrem; em PT não há a mesma necessidade de tutelar este tipo de acidentes
como seria no caso de FRA.

→ Posto isto, a pretensão de C é procedente, já que se aplica a lei FRA.


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Caso nº4

António, de 19 anos de idade, português, residente habitualmente em Genebra, e Berta, cidadã


da Irlanda, residente em Dublin, celebraram nesta cidade, em 1990, convenção antenupcial pela
qual o primeiro doou à segunda um imóvel sito na Suíça. Após o casamento, os cônjuges fixaram
residência em Dublin.
Por morte de António, que não possuía quaisquer outros bens para além daquele que doou a
Berta, Carlos, seu pai, português, vem perante tribunais portugueses reclamar a anulação da
doação com fundamento na falta de capacidade de António à face do direito suíço que considera
competente para regular essa questão; subsidiariamente, pede a redução por inoficiosidade da
doação, com fundamento no disposto no art. 1759º do CC português, que entende ser aplicável
ao caso, sob pena de ser sancionada uma situação intolerável para a ordem jurídica portuguesa.
Berta contesta a pretensão de Carlos, sustentando a validade do negócio à face da lei
irlandesa, que considera competente para regular a questão.

Admitindo que:
1. Na Irlanda a capacidade para o exercício de direitos privados adquire-se aos 18 anos de
idade; na Suíça aos 20 anos.
2. O direito de conflitos irlandês submete a capacidade de exercício à lei do domicílio, a
validade das convenções antenupciais à lei do primeiro domicílio conjugal e a sucessão imobiliária
à lex rei sitae.
3. As questões de capacidade são sujeitas pelo DIP suíço à lei do domicílio.

Diga, apreciando os argumentos das partes, se deve ser considerada procedente a pretensão
de Carlos.

[A parte teórica da qualificação é comum a qualquer caso de qualificação. O que vai modificar é a norma de
conflitos que é preciso qualificar e a sua ratio, mas o raciocínio é sempre o mesmo. Assim, se a parte teórica estiver
bem estudada, a resposta está 70% correta, mesmo que não se consiga identificar corretamente a ratio da norma.

A estrutura básica passa por: começar por dizer que estão a optar pela qualificação; o que é a qualificação; art. 15º,
referência aberta ou referência seletiva; e por fim a operação de qualificação propriamente dita. Na operação de
qualificação: (1) referir as 3 formas de interpretar o conceito-quadro, sendo que nas duas primeiras importa dizer as
duas desvantagens que levam a afastar cada uma dessas teorias; (2) dizer qual a ratio da norma, o que o legislador
pensou ao criar aquela norma; (3) qualificação em sentido restrito.

Por fim, conceito-quadro + elemento de conexão + consequência jurídica. Muitas vezes, quando é acionada a
consequência jurídica, pode surgir um problema de reenvio: identificar a existência de reenvio; esquema; aplicar as
teorias que nos levam a saber a lei aplicável ao caso e depois ver se aceitamos o reenvio ou não, pelos 17º e 18º CC.

Lembrar ainda que se aparecer no teste uma norma material que tem que ser aplicada, temos de qualificar para
saber se esta pode ser aplicada ao caso, quer a norma seja nacional ou estrangeira. Tal como não pode haver uma
alínea no teste que conjugue regulamentos e reenvio (pode acontecer em alíneas separadas, mas não na mesma),
também não irá aparecer regulamentos e qualificação na mesma alínea para resolver.]

1º No caso em apreço, A celebrou uma convenção antenupcial através da qual fez uma
doação, e entretanto faleceu. C, o seu pai vem intentar uma ação constituída por duas
pretensões subsidiárias: (1) reivindica a anulação da doação por falta de capacidade de A à luz
do direito SUÍ de realizar a convenção; (2) pede a redução por inoficiosidade da doação, com
fundamento no art. 1759º CC, que entende ser aplicável ao caso.

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Vamos analisar, em primeiro lugar, a 1ª pretensão.

2ºEP O argumento da 1ª pretensão leva-nos a uma matéria de estatuto pessoal, já que


estamos a tratar de uma questão de capacidade para celebrar a convenção antenupcial. Estas
matérias estão elencadas no art. 25º do CC e referem-se a estados, qualidades ou situações que,
por afetarem a pessoa na totalidade da sua esfera jurídica ou num setor importante, o nosso
legislador decidiu submeter a uma legislação definida em função de tais estados, qualidades ou
situações (definição de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO).

3ºEP O art. 25º é uma norma geral que, articulada com o art. 31º nº1 CC, indica que às
matérias de estatuto pessoal é aplicada a lei da nacionalidade. Isto resulta do princípio da
unidade e estabilidade do estatuto pessoal: por estarem em causa um conjunto de matérias que
se referem à identidade dos sujeitos, o legislador decidiu submetê-las a uma única lei,
independentemente do lugar onde as pessoas se encontrem - a lei pessoal. Resulta também de
um afloramento do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP): a ideia de que há um
conjunto de direitos adquiridos no país de origem, no país da nacionalidade, que devem ser
assegurados ao sujeito em qualquer lugar - este reconhecimento é feito, nomeadamente, através
da aplicação da lei pessoal, da lei da nacionalidade.

4ºEP Sendo que o art. 25º CC é a regra, importa averiguar se há alguma norma de conflitos
específica sobre matérias de capacidade.

Ao presente caso parece aplicar-se, uma vez que estamos em matéria de família, o art. 49º
que regula a capacidade para celebrar convenções antenupciais. Sendo uma norma especial, vai
revogar a regra geral do art. 25º. Assim, a lei do foro (PT), ou seja, a lei do tribunal onde está a ser
apreciada a questão, irá aplicar o art. 49º CC para a capacidade para celebrar convenções
antenupciais.

O art. 49º considera competente para regular a capacidade para realizar convenções
antenupciais a lei pessoal de cada nubente. Conjugado este artigo com o art. 31º nº1 temos que
a lei pessoal de A é a lei PT.

Assim, a lei do foro remete para ela própria para resolver esta questão, pelo que A, de
acordo com o direito PT, tinha capacidade para celebrar a convenção (art. 1708º, 1600º e 1601º
al. a) CC).

→ Isto significa que a 1ª pretensão não será procedente: a convenção é perfeitamente válida
porque A tinha capacidade para a celebrar.

Analisemos, agora, a 2ª pretensão: C vem pedir subsidiariamente, enquanto herdeiro


legitimário, a redução por inoficiosidade da doação com fundamento no disposto no art. 1759º
CC, que entende ser aplicado ao caso, porque com esta doação foi afetada a legítima.

1ºQ O início desta resolução passa pela identificação do problema: C invoca a aplicação do
art. 1759º CC, uma norma material que diz respeito à redução por inoficiosidade da doação para
casamento, e para saber se esta é aplicável há que a subsumir no conceito-quadro de uma
norma de conflitos para accionar a sua consequência jurídica e ver se efetivamente a ordem
jurídica competente é a que ela engloba. Assim, para saber se será procedente o pedido, há que
encontrar uma norma de conflitos que, accionando a sua consequência jurídica, remeta para a

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ordem jurídica PT, ou seja, é necessário subsumir o art. 1759º no conceito-quadro de uma norma
de conflitos.

A qualificação é feita em qualquer área do direito. A particularidade do DIP é que o que


estamos a qualificar já são dados normativos (já foi concretizado numa norma) e, além disso, são
utilizadas categorias de relações jurídicas no conceito-quadro (a previsão da norma).

2ºQ Quando dada norma de conflitos remete para determinada ordem jurídica, pode fazer dois
tipos de referência: uma referência aberta, quando se dirige a todo o conjunto das normas
materiais da lei designada (ex: neste caso, se fizéssemos uma referência aberta, a norma de
conflitos estaria a referir-se a todas as normas materiais que dizem respeito ao casamento, e não
apenas àquelas que dizem respeito à capacidade para contrair casamento); ou uma referência
seletiva, quando a referência feita pelas normas de conflitos à lei designada apenas compreende
as normas materiais que pelo seu conteúdo e função vão integrar o conceito-quadro da norma de
conflitos.

É esta última que o legislador PT escolheu seguir, no art. 15º CC, já que só uma referência
seletiva permite salvaguardar os interesses que estão na base do elemento de conexão.

3ºQ A operação de qualificação tem três momentos: interpretação do conceito-quadro;


caracterização do objeto da qualificação; e qualificação em sentido restrito.

Num 1º momento decorre a interpretação do conceito-quadro designativo do objeto da


qualificação. Há 3 formas de interpretar o conceito-quadro, definidas em 3 teorias: de acordo
com o direito do foro; de acordo com o direito comparado; de acordo com o princípio da unidade
da ordem jurídica.

A 1ª interpretação é feita de acordo com a lei do foro, o que significa que os conteúdos
subsumíveis ao conceito-quadro seriam os que correspondem a esse mesmo conceito no
sistema de regras materiais da lei do foro. Afastamos esta interpretação porque: (1) restringe
excessivamente o âmbito do conceito-quadro, porque nega a aplicação em PT de institutos
jurídicos estrangeiros desconhecidos do nosso direito material, ou institutos jurídicos com
conteúdo diferente no nosso direito material, ainda que visem finalidades sociais idênticas; e (2)
põe em causa as finalidades do próprio DIP, nomeadamente, o princípio da confiança nas
situações plurilocalizadas.

A 2ª interpretação é feita de acordo com o direito comparado, pegando nos institutos


presentes nas normas de conflito PT e tentando encontrar conceitos idênticos nas leis
estrangeiras. Também não seguimos esta interpretação porque: (1) não permite captar o juízo de
valor (a ratio) que está por trás de toda a norma de conflitos, juízo esse que permite recortar
devidamente o âmbito do conceito-quadro da norma de conflitos; (2) é impossível encontrar
conceitos únicos através do direito comparado.

A 3ª interpretação, adotada no ordenamento jurídico PT, decorre do princípio da unidade da


ordem jurídica. Aqui partimos da ideia de que o legislador que elaborou as normas de conflitos foi
o mesmo que elaborou as normas materiais internas. Assim, presumimos que os conceitos
utilizados pelas normas de conflitos, em princípio, exprimem os mesmos conteúdos jurídicos que
esses conceitos exprimem no direito material do Estado do foro. Mas além disso, aditamos a esta
interpretação um núcleo de preceitos ou institutos estrangeiros que exerçam uma função análoga
à função que compete às normas de direito interno e que se integram no conceito-quadro das
normas de conflitos. Há na interpretação do conceito-quadro um grau de autonomia em relação
às normas materiais do Estado do foro. Esta é também uma interpretação teleológica da norma

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de conflitos, em que se atende ao teor e finalidade da norma de conflitos para delimitar o


conceito-quadro. Esta interpretação retira-se dos arts. 9º, 15º e 64º al. c) CC.

[O objetivo do 1º momento de qualificação é podermos chegar às normas de conflitos potencialmente aplicáveis.]

As normas de conflitos potencialmente aplicáveis, neste caso, são o art. 62º e o art. 53º
CC. O art. 62º, dado o falecimento de A e do facto de a própria norma a qualificar remeter para o
direito das sucessões. O art. 53º, porque se parte da ideia de que os conteúdos que estão numa
norma de conflitos exprimem os mesmos valores que aqueles que estão na norma material, e
atendendo a que a questão a tratar é a validade substancial da doação feita numa convenção
antenupcial, esta é a norma que remete para o direito da família. [Aqui não é preciso encontrar as
soluções, apenas indicar quais as normas de conflitos potencialmente aplicáveis.]

O 2º momento diz respeito à caracterização do objeto da qualificação, isto é, um dado


normativo que, em termos gerais, não é mais do que uma situação da vida corrente caracterizada
à luz de uma ordem jurídica. No nosso caso, o objeto da qualificação é o art. 1759º CC.

De acordo com o art. 15º, caracterizamos as normas materiais à luz da ordem jurídica a que
pertencem, por isso se a norma pertencer à ordem jurídica PT, vamos apurar a sua ratio de
acordo com a ordem jurídica PT. [Aqui é necessário dizer em poucas linhas o que é que a norma significa, qual
o fundamento ou ratio ou intenção do legislador ao criar essa norma. Facilmente se explica, mas não perdem muitos
O art. 1759º considera que as doações para casamento estão sujeitas à
pontos se não conseguirem.]
redução por inoficiosidade. Assim, subordina-se o interesse do donatário e dos seus familiares na
manutenção da liberalidade aos interesses dos familiares do doador, interesses esses que servem
de fundamento ao instituto da legítima. Pretende-se proteger os interesses dos herdeiros
legitimários, remetendo para a redução por inoficiosidade prevista no art. 2169º CC, que é uma
norma do direito das sucessões, apesar de o art. 1759º estar inserido no direito da família.

Deste modo, podemos caracterizar o art. 1759º pela função e conteúdo que tem na ordem
jurídica PT como respeitante às sucessões por morte.

O 3º momento é a qualificação em sentido restrito ou subsunção das normas materiais no


conceito-quadro de uma norma de conflitos. Neste último momento tem de existir uma
correspondência funcional entre as normas materiais cuja aplicação está em causa e o conceito-
quadro de uma norma de conflitos.

Aqui fazemos uma qualificação lege fori (a partir da lei do foro) com base numa caracterização
lege causae (lei aplicável, a que a norma material pertence). Há também um grau de autonomia
do legislador: ele não está limitado de forma restrita ao conceito-quadro, mas tem de atender à
finalidade, ao teor da norma material e, de acordo com este conteúdo/função, averiguar em que
conceito-quadro das normas de conflitos potencialmente aplicáveis se enquadra, atendendo às
noções jurídicas que integram esse conceito-quadro. [Não é mais do que olhar para a ratio da norma a que
chegámos no 2º momento e perguntar: qual é a finalidade da norma? qual é o objetivo? o objetivo é uma questão de
capacidade para contrair casamento? o objetivo é uma matéria de sucessões? é uma matéria de relações

matrimoniais?]
Atendendo ao objetivo, vamos encaixar, enquadrar, subsumir a norma no conceito-quadro que
tutela esta matéria. Atendendo então à finalidade que o art. 1759º tem na ordem jurídica PT e
olhando para os dois conceitos-quadro, esta é uma norma que visa proteger as doações por
morte, pelo que se vai subsumir no conceito-quadro do art. 62º, que é a norma que diz respeito à
substância das sucessões. [Muitas vezes ver o local onde a norma está inserida ajuda a resolver a questão, e
neste caso ajuda indiretamente, porque a norma está inserida no direito da família mas remete para o direito das
sucessões. Pode ajudar a perceber o que está a tutelar.]

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Agora importa saber se o art. 1759º é aplicável, e para isso é necessário ir à norma de
conflitos encontrada por meio da qualificação e accionar a consequência jurídica. Assim, o art.
62º indica que a lei competente para regular a sucessão por morte é a lei pessoal do autor da
sucessão ao tempo do falecimento; conjugando este artigo com o art. 31º nº1, chegamos à
conclusão que a lei pessoal é a lei da nacionalidade, ou seja a lei PT (porque o autor da
sucessão, A, tinha nacionalidade PT ao tempo do falecimento).

Assim, a lei PT, ou seja, a lei do foro vai considerar-se competente.

L1

art. 62º

art. 31º nº1

Falta apenas analisar um pormenor deste caso prático. C argumenta que “de qualquer forma
tem que ser aplicada a lei PT sob pena de uma situação intolerável para a ordem jurídica”, ou seja,
faz referência à ROPI.

A ROPI é um limite à aplicação do direito estrangeiro em princípio competente, ao


reconhecimento de sentenças estrangeiras e à transcrição de atos de registo civil lavrados no
estrangeiro, sempre que da sua aplicação resulte uma situação incompatível com as conceções
ético-jurídicas ou princípios jurídicos fundamentais do Estado do foro. Está prevista no art. 22º.

A ROPI tem 4 características: atualidade, excecionalidade, imprecisão e caráter nacional.

Para que se verifique a ROPI, é necessário o preenchimento de dois requisitos cumulativos:


por um lado, haver um juízo de incompatibilidade entre o resultado da aplicação da lei estrangeira
e os princípios fundamentais do Estado do foro; por outro, que haja uma conexão suficiente entre
os factos e a ordem jurídica do foro (cujo grau de maior ou menor exigência vai variar consoante
a importância do princípio para o direito do foro).

No presente caso, apesar de haver uma conexão entre os factos e a ordem jurídica do foro (o
autor da sucessão é PT, o herdeiro também é PT, bem imóvel objeto da doação situa-se em PT),
a ROPI não pode atuar porque não verificamos o primeiro requisito: a ROPI só atua quando a
aplicação de uma lei estrangeira ofenda princípios ético-jurídicos fundamentais do foro. Neste
caso, está em causa a lei PT e não uma lei estrangeira, pelo que o requisito não se preenche.

→ Posto isto, a pretensão subsidiária de C é procedente, já que se aplica a lei PT.


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Caso nº5

António, português, casou em 1985, sem convenção antenupcial, com Bernardette, francesa.
O casal fixou inicialmente domicílio em Paris, mas em 1989 mudou-se para Lisboa, onde passou a
residir habitualmente.
Em 1991, António trespassou a Carlos, domiciliado em Lisboa, por escritura pública celebrada
em Badajoz, Espanha, aonde ambos se haviam deslocado expressamente para o efeito, um
estabelecimento comercial sito em Lisboa, que herdara de seu pai.
Bernardette reclama, perante tribunais portugueses, a anulação do trespasse com fundamento
no disposto no art. 1682-A, nº 1, al. b) do CC português, que considera aplicável em virtude do
art. 52º do mesmo Código. António contesta alegando designadamente que é aplicável ao caso o
direito espanhol, por o negócio ter sido celebrado em Espanha.

Admitindo que:
1. Os efeitos pessoais do casamento são regidos, segundo o DIP francês, pela lei nacional
comum dos cônjuges e, na falta desta, pela lei do seu domicílio; e segundo o DIP espanhol, na
falta de nacionalidade comum dos cônjuges, pela lei pessoal do marido ao tempo da celebração
do casamento.
2. O regime supletivo de bens é regulado, segundo o DIP francês, pela lei do primeiro domicílio
conjugal e segundo o DIP espanhol, na falta de nacionalidade comum, pela lei pessoal do marido
ao tempo do casamento.
3. Nos direitos francês e espanhol vigoram supletivamente regimes de comunhão de adquiridos
e são considerados próprios os bens adquiridos a título gratuito após o casamento.
4. Nos referidos direitos não é exigido o consentimento do outro cônjuge para a alienação de
estabelecimento comercial próprio.
5. Todos os ordenamentos interessados consideram que o primeiro domicílio conjugal foi em
França.

Diga, justificando a resposta, qual das pretensões deve proceder.

1ºQ Está aqui em causa saber se era ou não necessário o consentimento para este negócio,
vigorando o regime da comunhão de bens. Para avaliar esta pretensão sobre o trespasse, temos
de qualificar a norma material, uma vez que se alguém invocar uma norma material tem de a
qualificar. Aqui temos a invocação do art. 1682º-A nº1 al. b) CC para fundamentar o pedido de
anulação do trespasse. Para saber se esta norma é aplicável ao caso, temos de a subsumir no
conceito-quadro de uma norma de conflitos, para em seguida fazer funcionar a consequência
jurídica da norma, de maneira a saber, neste caso, se a ordem jurídica PT é a competente.

2ºQ Quando dada norma de conflitos remete para determinada ordem jurídica, pode fazer dois
tipos de referência: uma referência aberta, quando remete para o conjunto das normas materiais
da lei designada; ou uma referência seletiva, quando a referência feita pelas normas de conflitos
à lei designada apenas compreende as normas materiais que pelo seu conteúdo e função vão
integrar o conceito-quadro da norma de conflitos.

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É esta última que o legislador PT escolheu seguir, no art. 15º CC, já que só uma referência
seletiva permite salvaguardar os interesses que estão na base do elemento de conexão.

3ºQ A operação de qualificação tem três momentos: interpretação do conceito-quadro;


caracterização do objeto da qualificação; e qualificação em sentido restrito.

Num 1º momento decorre a interpretação do conceito-quadro designativo do objeto da


qualificação. Há 3 formas de interpretar o conceito-quadro, definidas em 3 teorias: de acordo
com o direito do foro; de acordo com o direito comparado; de acordo com o princípio da unidade
da ordem jurídica.

A 1ª interpretação é feita de acordo com a lei do foro, o que significa que os conteúdos
subsumíveis seriam os que correspondem a esse conceito no sistema material da lei do foro.
Afastamos esta interpretação porque: (1) restringe excessivamente o âmbito do conceito-quadro
(nega a aplicação em PT de institutos jurídicos estrangeiros desconhecidos do nosso direito
material, ou institutos jurídicos com conteúdo diferente no nosso direito material, ainda que visem
finalidades sociais idênticas); e (2) põe em causa as finalidades do próprio DIP, nomeadamente, o
princípio da confiança nas situações plurilocalizadas.

A 2ª interpretação é feita de acordo com o direito comparado, através da tentativa de


encontrar conceitos idênticos nas leis estrangeiras. Também não seguimos esta interpretação
porque: (1) não permite captar o juízo de valor (a ratio) que está por trás de toda a norma de
conflitos, juízo esse que permite recortar devidamente o âmbito do conceito-quadro da norma de
conflitos; (2) é impossível encontrar conceitos únicos através do direito comparado.

A 3ª interpretação, adotada no ordenamento jurídico PT, decorre do princípio da unidade da


ordem jurídica. Aqui partimos da ideia de que o legislador que elaborou as normas de conflitos foi
o mesmo que elaborou as normas materiais internas. Assim, presumimos que os conceitos
utilizados pelas normas de conflitos, em princípio, exprimem os mesmos conteúdos jurídicos que
esses conceitos exprimem no direito material do Estado do foro. Mas além disso, aditamos a esta
interpretação um núcleo de preceitos ou institutos estrangeiros que exerçam uma função análoga
à função que compete às normas de direito interno e que se integram no conceito-quadro. Há
nesta fase um grau de autonomia do julgador em relação às normas materiais do foro, atendendo
também ao teor e finalidade da norma de conflitos para delimitar o conceito-quadro
(interpretação teleológica). Esta interpretação retira-se dos arts. 9º, 15º e 64º al. c) CC.

No caso em apreço está em causa uma eventual anulação do trespasse por falta de
consentimento. Uma das partes já invocou uma norma de conflitos potencialmente aplicável -
o art. 52º - cujo conceito-quadro aborda as relações pessoais e patrimoniais gerais dos cônjuges
(relações que não estão dependentes de um particular regime de bens, isto é, comuns a qualquer
tipo de casamento). Normalmente, surge-lhe associado o art. 53º, que abrange as questões
patrimoniais, dependentes de um particular regime de bens, bem como a questão das
convenções antenupciais (que não releva aqui).

Há que atender ainda a outra norma de conflitos potencialmente aplicável, resultante do


argumento de A, quando diz que considera aplicável a lei do lugar da celebração. Assim, a lei do
lugar da celebração não é mais do que uma questão de obrigações contratuais. Surge então o
art. 41º, uma vez que está em causa uma escolha de lei e, já que o contrato foi celebrado em
1991, não preenche o âmbitos de aplicação de Roma I.

O 2º momento diz respeito à caracterização do objeto da qualificação, isto é, um dado


normativo que, em termos gerais, não é mais do que uma situação da vida corrente caracterizada
à luz de uma ordem jurídica. No nosso caso, o objeto da qualificação é o art. 1682º-A nº1 b) CC.

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De acordo com o art. 15º, caracterizamos as normas materiais à luz da ordem jurídica a que
pertencem, por isso se a norma pertencer à ordem jurídica PT, vamos apurar a sua ratio de
acordo com a ordem jurídica PT.

O art. 1682º-A nº1 b) CC parece só vigorar para alguns regimes, como a comunhão, em
detrimento da separação, sendo que apenas para o regime da comunhão é que se exige o
consentimento. Em relação a esta questão há uma divisão doutrinária: BAPTISTA MACHADO e
FERRER CORREIA consideram que nesta norma não estão em causa os efeitos gerais do
casamento, pois o artigo só é aplicável aos regimes de comunhão e não ao regime da separação,
ou seja, é uma questão patrimonial dependente de um particular regime de bens (se a norma
exige consentimento é apenas no caso de comunhão de bens); por outro lado, ISABEL MAGALHÃES
COLLAÇO considera que esta norma pretende tutelar os efeitos gerais do casamento, estando em
causa a manutenção de um certo tipo de bens no meio familiar como suporte da economia
doméstica (tratando-se de negócios importantes para a economia do casal, a lei entendeu
submeter ao consentimento de ambos). [Somos livres de adotar uma das duas posições; o importante é
subsumir o artigo correto.]

O 3º momento é a qualificação em sentido restrito ou subsunção das normas materiais no


conceito-quadro de uma norma de conflitos. Neste último momento tem de existir uma
correspondência funcional entre as normas materiais cuja aplicação está em causa e o conceito-
quadro de uma norma de conflitos.

Aqui fazemos uma qualificação lege fori (a partir da lei do foro) com base numa caracterização
lege causae (lei aplicável, a que a norma material pertence). Há também um grau de autonomia
do legislador: ele não está limitado de forma restrita ao conceito-quadro, mas tem de atender à
finalidade, ao teor da norma material e, de acordo com este conteúdo/função, averiguar em que
conceito-quadro das normas de conflitos potencialmente aplicáveis se enquadra, atendendo às
noções jurídicas que integram esse conceito-quadro.

Agora é importante escolher uma das duas doutrinas para concluir a resolução:

A. Seguindo a posição de BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA, ou seja, entendendo que, de


acordo com a ordem jurídica PT, o art. 1682º-A nº1 b) tem o objetivo de proteger ou tutelar as
normas materiais de um particular regime de bens e os efeitos são específicos de determinado
regime de bens, atendendo ao teor e finalidade desta norma material, vai ser subsumida no
conceito-quadro do art. 53º.

Encontrada a norma de conflitos, há que accionar a consequência jurídica em matéria de


relações patrimoniais dependentes de um particular regime de bens: a lei nacional dos nubentes
ao tempo da celebração (nacionalidade comum). Neste caso, A era PT e B era FRA pelo que,
subsidiariamente, devemos procurar a conexão no nº2 do art. 53º: lei da RH comum ao tempo da
celebração do casamento e, se não existir, a lei do 1º domicílio conjugal. Como não havia RH
comum ao tempo da celebração, aplicamos aqui a lei do 1º domicílio conjugal, ou seja, a lei FRA.

Deste modo, L1 (PT) remete para L2 (FRA) - a lei PT não se considera competente para
resolver esta matéria e remete para a lei FRA, a lei do 1º domicílio conjugal. A lei FRA considera-
se competente porque adota o mesmo elemento de conexão da lei que a designou.

L1 L2

art. 53º lei FRA

lei do 1º domicílio conjugal (art. 53º nº2)

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Agora, nos termos do direito material FRA, o trespasse seria válido, porque à luz desta lei não
se exige o consentimento para a alienação do estabelecimento comercial, segundo os dados
fornecidos no enunciado.

→ Assim, na posição de FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO, o negócio seria válido e a


pretensão de B seria improcedente.

B. Seguindo a posição de ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, ou seja, entendendo que o que está
aqui subjacente à norma é a tutela dos bens comuns do casal, nomeadamente, negócios
jurídicos que possam afetar esses bens, estes devem ser tutelados exigindo o consentimento de
ambos os cônjuges para celebrar o negócio. Esta visão leva à subsunção da norma material no
art. 52º, que trata as questões das relações patrimoniais gerais.

Aqui, a lei do foro iria remeter para a lei da nacionalidade comum dos cônjuges (nº1), que não
existe e, subsidiariamente, para a lei da RH comum ao tempo em que a questão está a ser
apreciada (nº2). Este elemento do conexão já é passível de ser concretizado, uma vez que ao
tempo da apreciação da questão os cônjuges têm RH comum em Lisboa.

Isto significa que a lei do foro se considera competente para resolver a questão, remetendo
para ela própria. Logo, por esta via, seria aplicado o art. 1682º-A nº1 b), e o trespasse seria
anulável por falta de consentimento.

L1

art. 52º nº2

lei da RH comum

→ Assim, na posição de ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, o negócio seria inválido e a pretensão de


B seria procedente.

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Caso nº6

Alan, nacional da África do Sul e da Alemanha, nasceu em 1938 na Cidade do Cabo, onde
residiu até 1991, altura em que transferiu o seu domicílio para Madrid tendo aí residido até à data
da sua morte em 1997.
Em Fevereiro de 1993, numa visita à Cidade do Cabo, Alan fez aí um testamento, deixando
todos os seus bens a uma instituição de caridade inglesa.
À data da sua morte, o património de Alan era apenas constituído por bens móveis.
Bernardo, filho de Alan, nacional português, vem requerer perante os tribunais portugueses a
redução por inoficiosidade da disposição testamentária por ofender a sua legítima.

Indique qual a lei aplicável ao pedido de Bernardo, admitindo que:


1. As normas de conflitos da África do Sul sujeitam a sucessão mobiliária à lei do domicílio no
momento da morte; as normas de conflitos espanholas e alemãs sujeitam a sucessão à lei da
nacionalidade no momento da morte.
2. Os tribunais da África do Sul praticam, nesta matéria, a dupla devolução; o Direito
Internacional Privado espanhol consagra a teoria da devolução simples apenas em caso de
retorno; o Direito Internacional Privado alemão adopta a teoria da devolução simples.
3. À luz do direito material da África do Sul a deixa testamentária é eficaz; à luz do direito
material espanhol e alemão a deixa testamentária é ineficaz.

[Quando o enunciado pergunta diretamente qual é a lei aplicável, remete logo para uma norma de conflitos e, por
isso, para o reenvio.]

1ºR A pretensão de B é a redução por inoficiosidade da disposição testamentária feita por A.


Esta é uma questão relacionada com a substância das disposições testamentárias, porque está
em causa determinar se devia ou não ser garantida a legítima do filho.

2ºR Se é uma questão de validade substancial das sucessões, há uma norma de conflitos
que trata em específico a matéria da substância das sucessões: o art. 62º. Assim, a lei do foro
(L1) irá aplicar o art. 62º para saber qual a lei aplicável ao pedido de B. A consequência jurídica
desta norma de conflitos é a lei pessoal ao tempo do falecimento que, conjugada com o art. 31º
nº1, significa que L2 será a lei da nacionalidade do autor da sucessão ao tempo do falecimento.

No entanto, A tem dupla nacionalidade: há que saber qual a nacionalidade que vai prevalecer
para determinar L2 (conflito positivo de nacionalidades).

3ºR Antes de resolver a questão em si da dupla nacionalidade, cabe fazer algumas


considerações quanto à interpretação e concretização deste elemento de conexão - a
nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 62º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

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É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

Neste caso em concreto, como não temos elementos no enunciado que nos permitam
pronunciar sobre o facto de a AS e a ALEM terem atribuído a nacionalidade a A, presumimos que
os pressupostos de atribuição da nacionalidade estão preenchidos. O problema que cabe
resolver é mesmo o concurso de nacionalidades.

Para decidir qual a nacionalidade relevante recorremos ao art. 28º da Lei da Nacionalidade, já
que estão em causa duas nacionalidades estrangeiras, que nos dá a seguinte solução: (1) se o
plurinacional tiver RH em algum dos estados que o têm por nacional, terá primazia a
nacionalidade desse Estado, porque se considera que, em princípio, esse corresponde ao vínculo
real efetivo; (2) se não tiver RH em nenhum dos estados em conflito, atendemos à nacionalidade
do Estado como qual mantém um vínculo mais estreito.

Neste caso, uma vez que A nasceu na AS e viveu lá mais de 50 anos, e lá celebrou o
testamento, podemos considerar que é com a AS que A tem uma ligação mais próxima. Isto
significa que a lei que vai ser chamada a resolver esta questão enquanto lei nacional é a da AS.

4ºR A lei da AS (L2) indica que a lei competente para resolver a questão da substância das
sucessões não é ela própria, mas sim a lei do domicílio do autor da sucessão no momento da
morte (lei do último domicílio), neste caso, a lei ESP (L3). [não esquecer de fechar o reenvio]

O direito ESP também não se considera competente e remete as matérias sucessórias para a
lei da nacionalidade do autor no momento da morte, ou seja, a lei da AS.

L1 L2 L3

art. 62º lei AS lei ESP

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei do último domicílio

art. 28º LN

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (substância das sucessões), pelo que nenhuma delas se considera competente
para resolver a questão: PT → AS → ESP → AS

[Podem por o esquema no próprio teste; mesmo que tenham dificuldade em explicar as teorias, sigam sempre as
setas do próprio esquema; elas dão a resolução: a direção da seta manda aplicar uma lei, não fica no mesmo ponto]

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6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla
devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional. No entanto, a devolução simples não funciona no sentido de gerar
harmonia de julgados quando todos os países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora. Como o próprio nome
indica, o tribunal do Estado do foro deve julgar como julgam os tribunais da lex causae, a lei que
se considera competente, exatamente da mesma forma. Bem como na teoria da devolução
simples, a teoria da dupla devolução não funciona no caso de ambos os Estados em questão
praticarem a dupla devolução.


DS

L1 L2 L3

DD
art. 62º lei AS lei ESP

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei do último domicílio

art. 28º LN L2 = L3 L3 = L3

Este é um esquema de transmissão de competências com inclusão de retorno, porque houve


uma devolução ou retorno para uma lei que já tinha sido chamada como competente.

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7ºR O enunciado diz-nos que a AS pratica dupla devolução, o que significa que se
compromete a julgar a causa como julgariam os tribunais da lei para a qual as suas normas de
conflitos remeteram. Assim, vai-se comprometer a julgar a causa de acordo com L3, tal como
julgam os tribunais ESP (L2 aplica L3).

Cabe-nos agora saber como julgam os tribunais ESP.

Os tribunais ESP praticam a devolução simples, o que significa que fazem 2 referências: num
1º momento fazem uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L2;
num 2º momento, vão ficcionar uma referência material de L2 para L3 (dá-se uma oportunidade a
L2 para resolver, mas como já se sabe que vai enviar novamente para L3, a própria L3 ficciona
essa referência).

Isto significa que L3 aplica L3; e como L2 se compromete a julgar a causa como julgam os
tribunais de L3, se os tribunais ESP vão aplicar a lei ESP, a AS também vai aplica a lei ESP.
Assim, temos harmonia de julgados.

→ A lei aplicável é a lei ESP.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

[Quando analisamos os arts. 17º e 18º, temos que olhar para a questão das leis que cada um vai aplicar, a que
chegamos pela aplicação das teorias.]

Vamos tentar aplicar o art. 17º neste caso, uma vez que se trata de transmissão de
competências (a lex causae remete para uma 3ª lei), mesmo havendo inclusão de retorno, já que
o retorno não é para a lei do foro (só nesse caso se aplicaria o art. 18º).

A. O art. 17º nº1 apresenta dois requisitos: (1) a lei do foro remete para uma legislação que
não se considera competente e esta, por sua vez, remete para uma 3ª lei; e (2) esta 3ª lei tem que
se considerar, direta ou indiretamente, competente.

Neste caso, L1 remeteu para L2, que não se considerou competente. L2, através das suas
normas de conflitos, remete para L3, que não se considera diretamente competente. Em vez
disso, e porque pratica a devolução simples, faz uma primeira referência global para as normas
materiais e de conflitos de L2 e ficciona uma segunda referência material para as próprias normas
de L3. Assim, L3 considera-se indiretamente competente, o que preenche os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos: (1) em matérias de estatuto pessoal, quando L2 é
chamada a título de lei da nacionalidade; e (2) o indivíduo tem RH em PT ou tem RH em país
cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da nacionalidade.

No caso, a lei da AS (L2) foi chamada enquanto lei da nacionalidade, e estamos perante uma
matéria de estatuto pessoal (este requisito está preenchido); além disso, o interessado tinha RH
em ESP, mas a lei ESP não considera competente as normas materiais de L2 (como vimos, a lei
ESP considerou-se indiretamente competente para resolver a questão, por meio da devolução
simples).

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !33 de !100


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Assim, não estando cumulativamente preenchidos os requisitos, não podemos accionar este
artigo para paralisar o reenvio.

[Só vamos para o 17º nº2 se o nº1 estiver preenchido; só vamos para o nº3 se o nº2 estiver preenchido.]

Ao aceitarmos o reenvio, significa que os tribunais PT vão aplicar o direito material ESP, e de
acordo com o direito material ESP, o testamento é ineficaz.

Nesse sentido, cumpre aplicar o art. 19º para paralisar o reenvio, de modo a conservar o
negócio jurídico, permitindo a sua validade e garantindo a vontade do testador. Assim, este art.
aplica-se quando, pelas regras do reenvio, o negócio jurídico é inválido ou ineficaz e, pela
aplicação do art. 16º, o negócio seria válido ou eficaz.

Neste caso, sendo PT um Estado antidevolucionista nos termos do art. 16º, quando manda
aplicar L2, faz referência às suas normas materiais. Deste modo, se PT aplicasse a lei da AS (L2),
o testamento seria eficaz.

Assim, paralisamos o reenvio e aplicamos a lei da AS de modo a garantir a validade e


conservação do negócio jurídico e a vontade do testador, fazendo com que a legítima
testamentária seja válida.

[O art. 19º pode ser cumulado com os art. 17º ou 18º quando se chegar à conclusão que pela aplicação das regras
do reenvio o negócio era ineficaz ou inválido, sendo que pelo art. 16º era válido.]

→ O direito PT não aceita o reenvio e aplica a lei da AS.

9ºR Falta-nos analisar outra questão: da aplicação da lei da AS resulta o afastamento do filho
do direito à legítima. Sendo este um resultado material que coloca em causa princípios
fundamentais da ordem jurídica do foro (PT), temos de ter em conta a ROPI. [A questão da legítima
pede sempre a análise da ROPI; no entanto, se não for esse o caso e se o enunciado não mencionar a afetação da
ordem pública do foro, não é preciso mencionar a ROPI no teste porque não vai ser cotado.]

A ROPI é um limite à aplicação do direito estrangeiro em princípio competente, ao


reconhecimento de sentenças estrangeiras e à transcrição de atos de registo civil lavrados no
estrangeiro, sempre que da sua aplicação resulte uma situação incompatível com as conceções
ético-jurídicas ou princípios jurídicos fundamentais do Estado do foro. Está prevista no art. 22º.

A ROPI tem 4 características: atualidade, excecionalidade, imprecisão e caráter nacional.

Para que se verifique a ROPI, é necessário o preenchimento de dois requisitos cumulativos:


por um lado, haver um juízo de incompatibilidade entre o resultado da aplicação da lei estrangeira
e os princípios fundamentais do Estado do foro; por outro, que haja uma conexão suficiente entre
os factos e a ordem jurídica do foro (cujo grau de maior ou menor exigência vai variar consoante
a importância do princípio para o direito do foro).

No presente caso, a aplicação da lei da AS faz com que a legítima do herdeiro fique afetada;
esta questão é de tal importância para a ordem jurídica PT que estabeleceu a redução por
inoficiosidade. Além disso, verifica-se uma conexão suficiente entre os factos e a ordem jurídica
PT, já que o herdeiro tem nacionalidade PT.

Preenchidos os requisitos, observamos a verificação dos seguintes efeitos: um efeito primário,


de afastamento da lei normalmente competente; e um efeito secundário, que passa pela procura
da solução material na legislação competente (princípio do mínimo dano à lei estrangeira) ou, se
isso não for possível, pela aplicação das normas materiais da ordem jurídica do foro.

Assim, como a lei da AS parece não ter nenhuma solução material compatível com os
princípios ético-jurídicos da ordem jurídica PT, aplicamos a lei PT e o seu regime da redução por
inoficiosidade (art. 2168º ss. CC).

→ Posto isto, B teria direito à legítima, já que se aplica a lei PT por meio da ROPI.

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Caso nº7

Martin, nacional dos Estados Unidos e da Argentina, nasceu em Nova Orleães, em 1940, onde
viveu até 1980. Nessa data decidiu transferir a sua residência para Nice, devido não só ao clima
mais ameno, mas também porque a carga fiscal era mais baixa. Durante a sua vida efectuou várias
viagens de férias à América do Sul.
Faleceu em Março de 2001, tendo-lhe sobrevivido uma filha, Joana, nacional dos Estados
Unidos, fruto de um casamento com uma portuguesa.
Em 1999, Martin resolveu excluir a sua filha da sua herança. Como o Direito do Luisiana não o
permitia, adquire a nacionalidade do Reino Unido. Por testamento celebrado em Londres, no
mesmo ano, Martin deixou todos os seus bens a um hospital londrino.
À data da sua morte, Martin era proprietário de dois imóveis, um situado no Paraguai e outro
no Reino Unido (Londres).
Poucos meses antes do falecimento de seu pai e tendo conhecimento do conteúdo do
testamento, Joana adquire a nacionalidade portuguesa, através da declaração prevista no art. 1º,
al. c), da L nº 37/81 de 3 de Outubro. Mantém, no entanto, a nacionalidade norte-americana.
Joana reclama, agora, perante os tribunais portugueses, o reconhecimento da sua qualidade de
herdeira legitimária e a consequente redução por inoficiosidade da referida deixa testamentária.

Admitindo que:
1. O Direito de conflitos do Luisiana, do Reino Unido e da França sujeitam a sucessão
imobiliária à lei do lugar da respectiva situação. O Direito Internacional Privado argentino e
paraguaio submetem a sucessão à lei do último domicílio do autor da sucessão.
2. Os tribunais da Luisiana, argentinos, paraguaios e franceses praticam a devolução simples.
Os tribunais do Reino Unido praticam a dupla devolução.
3. À luz do direito material inglês a deixa testamentária é válida, mas não à face dos outros
ordenamentos jurídicos envolvidos.
4. No Reino Unido e nos Estados Unidos vigora um ordenamento jurídico complexo e não
existe direito interlocal ou Direito Internacional Privado unificado.
5. Todos os ordenamentos jurídicos interessados consideram que Martin teve o seu último
domicílio em Nice.

Indique, fundamentando devidamente a resposta, se o tribunal português deve considerar


procedente a pretensão de Joana.

1ºR A primeira coisa a fazer, face ao presente caso, é identificar o problema: queremos saber
qual é a lei que vai sustentar a pretensão de J, que é o “reconhecimento da sua qualidade de
herdeira legitimária e a consequente redução por inoficiosidade da referida deixa testamentária”.

2ºR Esta é uma questão relacionada com sucessões, legítima e redução por inoficiosidade,
bem como com a substância das disposições testamentárias, já que está em causa determinar
se deveria ou não ter sido garantida a legítima de J. Por isso, é aplicável a norma de conflitos
do art. 62º. [Não temos nenhuma norma material para qualificar, só queremos saber qual é a lei que regula o pedido]

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !35 de !100


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A consequência jurídica desta norma é a aplicação da lei pessoal do autor ao tempo do


falecimento que, em articulação com o art. 31º nº1, nos diz que a lei pessoal é a lei da
nacionalidade. O enunciado diz que a nacionalidade do autor da sucessão ao tempo do
falecimento era do RU. No entanto, é explicitado que M só adquiriu esta nacionalidade para
excluir a filha da sua herança, o que não era permitido pelo direito do LUI; ou seja, esta mudança
de nacionalidade não foi seriamente querida por M, pelo que é de ponderar a situação de fraude
à lei.

A fraude à lei está prevista no art. 21º CC e consiste na constituição formalmente regular de
uma situação de facto ou de direito que serve de elemento de conexão a uma norma de conflitos,
para evitar a aplicação da lei normalmente competente e, assim, alcançar o resultado que esta lei
não permite. Por isso é que a fraude à lei é uma concretização irregular do elemento de conexão.

Apresenta dois requisitos: (1) requisito subjetivo, que exige uma intenção fraudatória, ou seja,
a vontade de conseguir a aplicação de uma lei diferente daquela que seria normalmente
competente para fugir às disposições imperativas dessa lei e object o resultado por elas proibido;
e (2) requisito objetivo, isto é, a existência de atividade fraudatória, que é a manipulação com
êxito do elemento de conexão relevante por força do qual passa a ser aplicável certa lei.

Neste caso, há a vontade de afastar o direito LUI porque não permitia o afastamento da filha
da herança; o único objectivo de adquirir a nacionalidade do RU foi afastar J da sucessão, pelo
que o 1º requisito está preenchido. Além disso, verificou-se, de facto, a manipulação do elemento
de conexão nacionalidade que, neste caso, é relevante em matéria de sucessões (art. 62º). [Se
tivesse mudado a RH, já não era um elemento de conexão relevante para sucessões; preenchia o 1º req., mas não o 2º]

Verificando-se a situação de fraude à lei, e atendendo ao princípio da boa fé, temos como
consequência a total irrelevância da situação criada artificialmente e a não aplicação da lei por
ela designada. Assim, não vai ser considerada a nacionalidade do RU.

[Aqui está em causa a fraude a uma lei estrangeira (EUA). O direito do foro (PT) sanciona quer a fraude à lei do foro
como a fraude a uma lei estrangeira, salvo se a própria lei estrangeira não sancionar. Por exemplo, se o enunciado
disser “o direito americano não sanciona a fraude à lei”; Nesse caso, aceitávamos o RU como lei da nacionalidade.]

A nacionalidade do RU foi afastada pelo problema de fraude à lei mas, no entanto, M tem
dupla nacionalidade: há que saber qual a nacionalidade que vai prevalecer para determinar L2
(conflito positivo de nacionalidades).

3ºR Antes de resolver a questão em si da dupla nacionalidade, cabe fazer algumas


considerações quanto à interpretação e concretização deste elemento de conexão - a
nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 62º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !36 de !100


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No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

Neste caso em concreto, como não temos elementos no enunciado que nos permitam
pronunciar sobre o facto de os EUA e a ARG terem atribuído a nacionalidade a M, presumimos
que os pressupostos de atribuição da nacionalidade estão preenchidos. O problema que cabe
resolver é mesmo o concurso de nacionalidades.

Para decidir qual a nacionalidade relevante recorremos ao art. 28º da Lei da Nacionalidade, já
que estão em causa duas nacionalidades estrangeiras, que nos dá a seguinte solução: (1) se o
plurinacional tiver RH em algum dos estados que o têm por nacional, terá primazia a
nacionalidade desse Estado, porque se considera que, em princípio, esse corresponde ao vínculo
real efetivo; (2) se não tiver RH em nenhum dos estados em conflito, atendemos à nacionalidade
do Estado como qual mantém um vínculo mais estreito.

Neste caso, M não tem RH em nenhum dos países em conflito, mas uma vez que nasceu nos
EUA e viveu lá 40 anos, e não temos qualquer referência à ARG, podemos considerar que é com
os EUA que M tem uma ligação mais próxima. Chegados aqui, L2 seria a lei dos EUA.

No entanto, os EUA são um ordenamento plurilegislativo de base territorial, pois são


constituídos por várias ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território; esta questão
é resolvida nos termos do art. 20º CC. Este artigo apresenta um requisito prévio: só se aplica se
a remissão para o ordenamento plurilegislativo (OP) for feita para a lei da nacionalidade, em
matéria de estatuto pessoal, o que aconteceu neste caso.

Assim, de acordo com o art. 20º nº1, em primeiro lugar recorremos ao chamado direito
interlocal unificado do OP, que são normas que regulam o conflito de leis no direito interno,
dando a oportunidade ao próprio ordenamento jurídico para resolver o problema, em nome da
harmonia de julgados; no enunciado é dito que não existe, pelo que não se aplica este nº1. O art.
20º nº2 1ª parte manda aplicar o DIP unificado do OP, o que também não existe. Por fim, o nº2 in
fine manda aplicar a lei da RH do interessado.

Em relação à aplicação da lei da RH do interessado no âmbito dos OP, há uma divergência


doutrinal em torno da questão de a lei da RH ser aplicável ou não onde quer que era se situe
(dentro ou fora do OP): FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO defendem uma interpretação literal
do artigo, aplicando a lei da RH, independentemente de esta se situar dentro ou fora do OP em
questão; já ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO considera que só se aplica a lei da RH se esta se situar
dentro do OP, fazendo uma interpretação restrita da norma baseada no facto de em DIP,
nomeadamente em matérias de estatuto pessoal, existir uma preponderância da conexão
nacionalidade, em comparação com a conexão RH. É esta última posição que seguimos, fazendo
uma restrição teleológica do art. 20º nº2, para compatibilizar com o espírito do sistema das
normas de conflitos. Seguindo esta doutrina, temos uma lacuna oculta e não há nenhum preceito
legal que nos permita resolver esta questão; como falta um caso análogo, vamos recorrer à
norma que o intérprete criaria se tivesse que legislar dentro do sistema de DIP. Neste sentido,
para salvaguardar as legítimas expectativas dos interessados, vamos aplicar a lei da ordem
jurídica local com a qual o interessado tem a conexão mais estreita que, neste caso, é o LUI.

Com efeito, L2, a lei da nacionalidade, é a lei do LUI.

Uma vez que há 2 imóveis objeto da sucessão e estes se encontram em 2 países distintos (um
no PAR e outro no RU), é necessário fazer uma análise completa separadamente.

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Analisemos, em 1º lugar, o imóvel situado no PAR.

4ºR Em relação a este imóvel, até agora, temos que a lei foro foro, através dos arts. 62º e 31º
nº1 CC, 28º LN e 20º CC (mais a interpretação teleológica que fazemos da questão da RH)
manda aplicar, enquanto lei da nacionalidade, a lei do LUI (L2), a ordem jurídica local do OP. Esta
lei tem como consequência jurídica a aplicação da lei do lugar da situação da coisa, ou seja, a
lei do PAR (L3). O DIP do PAR não se considera competente e remete para a lei do último
domicílio - a lei FRA (L4). A lei FRA também não se considera competente e remete para a lei da
situação da coisa, devolvendo para o PAR (L3).

L1 L2 L3 L4

art. 62º lei LUI lei PAR lei FRA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da situação da coisa lei do último domicílio

art. 28º LN

art. 20º CC

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (substância das sucessões), pelo que nenhuma delas se considera competente
para resolver a questão: PT → LUI → PAR → FRA → PAR

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia segundo uma de três teorias: a referência
material; a referência global, que abrange a devolução simples e dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: a devolução simples e a dupla devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio,
mas para-o, considerando que a 2ª referência é material. Esta teoria tem como principal
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argumento a uniformidade de julgados ou harmonia jurídica internacional. No entanto, a


devolução simples não funciona no sentido de gerar harmonia de julgados quando todos os
países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.


DS

L1 L2 L3 L4

DS DS
art. 62º lei LUI lei PAR lei FRA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da situação da coisa lei do último domicílio

art. 28º LN L2=L4 L3=L3 L4=L4

art. 20º CC

Este é um esquema de transmissão de competências com inclusão de retorno, porque houve


uma devolução ou retorno para uma lei que já tinha sido chamada como competente.

7ºR O enunciado diz-nos que o LUI pratica devolução simples, o que significa que vai fazer ,
em primeiro lugar, uma referência global, ou seja, vai remeter para as normas materiais e as
normas de conflitos de L3, e em segundo lugar, ficciona uma referência material a L4 (dá-se uma
oportunidade a L3 para resolver a questão, e como esta considera competente L4, L2 ficciona
esta referência). Assim, o Estado do LUI vai aplicar o direito material FRA (L2 aplica L4).

Os tribunais PAR também praticam a devolução simples, o que significa que, num 1º
momento fazem uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L4; num
2º momento, vão ficcionar uma referência material de L4 para L3 (ela própria). Assim, a lei PAR
considera-se indiretamente competente (L3 aplica L3).

Por fim, o direito FRA também pratica devolução simples, o que implica que vai fazer uma
referência global a L3 e ficcionar uma referência material a ela própria, L4 (L4 aplica L4).

Não há aqui harmonia de julgados, mas também não é necessário que haja.

→ A lei aplicável é a lei FRA.

[…]

Analisemos agora o imóvel situado no RU.

4ºR Em relação a este imóvel, até agora, temos que a lei foro foro, através dos arts. 62º e 31º
nº1 CC, 28º LN e 20º CC (mais a interpretação teleológica que fazemos da questão da RH)
manda aplicar, enquanto lei da nacionalidade, a lei do LUI (L2), a ordem jurídica local do OP. Esta
lei tem como consequência jurídica a aplicação da lei do lugar da situação da coisa, ou seja, a
lei do RU (L3). O DIP do RU considera-se competente, porque utiliza o mesmo elemento de
conexão que a lei que o designou (L2), que é o lugar da situação da coisa.

No entanto, o RU também é um ordenamento plurilegislativo de base territorial. Desta feita,


não podemos resolver a questão do OP pelo art. 20º porque este só se aplica quando a remissão
para o OP seja a título de lei da nacionalidade, em matérias de estatuto pessoal. Assim, como a

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remissão para o RU foi a título de lugar da situação da coisa, a remissão da norma de conflitos
aponta diretamente para uma ordem jurídica local, no caso ING (imóvel situado em Londres).


DD

L1 L2 L3

DS
art. 62º lei LUI lei RU (ING)

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da situação da coisa

art. 28º LN L2=L3

art. 20º CC

7ºR O enunciado diz-nos que o LUI pratica devolução simples, o que significa que, num 1º
momento faz uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L3; num 2º
momento, ficciona uma referência material de L3 para L3 (já que L3 se considera ela própria
competente). Assim, a lei LUI considera competente o direito material ING (L2 aplica L3).

Por outro lado, a lei ING pratica dupla devolução, o que significa que se compromete a julgar
a causa como julgariam os tribunais da lei para a qual as suas normas de conflitos remeteram.
Assim, vai-se comprometer a julgar a causa de acordo com L3, tal como julgam os tribunais ING,
eles próprios (L3 aplica L3).

Neste caso temos harmonia de julgados.

→ A lei aplicável é a lei ING.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 17º neste caso, uma vez que se trata de transmissão de
competências (a lex causae remete para uma 3ª lei)).

A. O art. 17º nº1 apresenta dois requisitos: (1) a lei do foro remete para uma legislação que
não se considera competente e esta, por sua vez, remete para uma 3ª lei; e (2) esta 3ª lei tem que
se considerar, direta ou indiretamente, competente.

Neste caso, L1 remeteu para L2, que não se considerou competente. L2, através das suas
normas de conflitos, remete para L3, que se considera diretamente competente. Assim,
considerando-se L3 diretamente competente, estão preenchidos os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos: (1) em matérias de estatuto pessoal, quando L2 é
chamada a título de lei da nacionalidade; e (2) o indivíduo tem RH em PT ou tem RH em país
cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da nacionalidade.

No caso, a lei do LUI (L2) foi chamada enquanto lei da nacionalidade, e estamos perante uma
matéria de estatuto pessoal (este requisito está preenchido); além disso, o interessado tinha RH
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em FRA, mas a lei FRA não considera competente as normas materiais de L2 (como vimos, a lei
FRA considera competente a lei do lugar da situação da coisa).

Assim, não estando cumulativamente preenchidos os requisitos, não podemos accionar este
artigo para paralisar o reenvio.

→ O direito PT aceita o reenvio e aplica a lei ING, de acordo com a qual o testamento é
válido e a filha J não terá direito à redução por inoficiosidade em relação a este imóvel.

9ºR No entanto, se J não tem direito à redução por inoficiosidade, pode colocar-se um
problema de ROPI. A ROPI é um limite à aplicação do direito estrangeiro em princípio
competente, ao reconhecimento de sentenças estrangeiras e à transcrição de atos de registo civil
lavrados no estrangeiro, sempre que da sua aplicação resulte uma situação incompatível com as
conceções ético-jurídicas ou princípios jurídicos fundamentais do Estado do foro - art. 22º CC.

A ROPI tem 4 características: atualidade, excecionalidade, imprecisão e caráter nacional.

Para que se verifique a ROPI, é necessário o preenchimento de dois requisitos cumulativos:


por um lado, haver um juízo de incompatibilidade entre o resultado da aplicação da lei estrangeira
e os princípios fundamentais do Estado do foro; por outro, que haja uma conexão suficiente entre
os factos e a ordem jurídica do foro (cujo grau de maior ou menor exigência vai variar consoante
a importância do princípio para o direito do foro).

No presente caso, a aplicação da lei ING faz com que a legítima da herdeira fique afetada; esta
questão é de tal importância para a ordem jurídica PT que estabeleceu a redução por
inoficiosidade. Além disso, verifica-se uma conexão suficiente entre os factos e a ordem jurídica
PT, já que a herdeira, J, tem nacionalidade PT (apesar de J ter dupla nacionalidade, a
nacionalidade PT prevalece, nos termos do art. 27º da LN).

Preenchidos os requisitos, observamos a verificação dos seguintes efeitos: um efeito primário,


de afastamento da lei normalmente competente; e um efeito secundário, que passa pela procura
da solução material na legislação competente (princípio do mínimo dano à lei estrangeira) ou, se
isso não for possível, pela aplicação das normas materiais da ordem jurídica do foro.

Assim, como a lei ING parece não ter nenhuma solução material compatível com os princípios
ético-jurídicos da ordem jurídica PT, aplicamos a lei PT e o seu regime da redução por
inoficiosidade (art. 2168º ss. CC) para proteger as expectativas de J.

→ Posto isto, J teria direito à legítima, já que se aplica a lei PT por meio da ROPI.


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Caso nº8

Em Setembro de 1998, Alexandre, estudante suíço de 19 anos, com residência habitual em


Lisboa, depara numa revista norte-americana, com um anúncio de comercialização de velas de
windsurf pela sociedade Surf. Inc., com sede estatutária nas Ilhas Virgens, cujo conselho de
administração se reúne em San Diego, no Estado norte-americano da Califórnia. A revista foi
adquirida por Alexandre em Portugal, onde é distribuída uma edição especial da mesma.
Alexandre preenche imediatamente as condições gerais de contratação, que constavam do
anúncio, pagando imediatamente com cartão de crédito. Respeitando as condições gerais de
contratação, a Surf. Inc. enviou a vela no prazo de 15 dias.
Seis dias após a entrega da mercadoria, Alexandre arrepende-se da compra, comunicando à
outra parte a vontade de devolver a vela e recuperar o preço pago. Perante a recusa da Surf. Inc.,
propõe em Portugal uma acção em que requereu a anulação do contrato com fundamento na sua
incapacidade por menoridade e a resolução do contrato com base na lei portuguesa que regula as
vendas à distância, segundo a qual o consumidor tem um prazo de catorze dias para resolver o
contrato após a entrega da mercadoria.
Na contestação, a Surf. Inc. alega que Alexandre é maior à face da lei portuguesa que entende
ser aplicável ao caso e que as disposições da lei portuguesa, relativas às vendas à distância, não
são aplicáveis aos caso, uma vez que, nos termos das condições gerais de contratação subscritas
por Alexandre, o contrato encontra-se sujeito ao direito em vigor nas Ilhas Virgens, ou caso assim
não se entenda, ao direito da Califórnia, mas nunca ao direito português.

Analise, discutindo os argumentos aduzidos pelas partes, a procedência da pretensão de


Alexandre, tendo em conta que:
1. Na Suíça a maioridade atinge-se aos 20 anos.
2. Nos termos da norma de conflitos suíça, à capacidade de exercício é aplicável a lei do
domicílio. O DIP suíço consagra o sistema de referência material, mas aceita o retorno da lei
estrangeira ao direito suíço em matéria de estatuto pessoal.
3. Nos EUA vigora um ordenamento plurilegislativo, não existindo direito interlocal nem DIP
unificado.
4. O direito do Estado da Califórnia reconhece o direito de arrependimento do consumidor nos
contratos celebrados à distância, nos mesmos termos que o direito português, mas não o direito
das Ilhas Virgens.

1º Há 2 pretensões neste caso prático: a primeira é a anulação do contrato com base na


incapacidade e a segunda é a resolução do contrato com base na lei PT relativa aos contratos à
distância.

Comecemos pela 1ª pretensão: A pediu a anulação do contrato com base na sua


incapacidade, por ser menor.

2ºEP Este argumento leva-nos a uma matéria de estatuto pessoal, já que estamos a tratar de
uma questão de capacidade para celebrar um negócio jurídico. Estas matérias estão elencadas
no art. 25º do CC e referem-se a estados, qualidades ou situações que, por afetarem a pessoa na

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totalidade da sua esfera jurídica ou num setor importante, o nosso legislador decidiu submeter a
uma legislação definida em função de tais estados, qualidades ou situações (definição de ISABEL
DE MAGALHÃES COLLAÇO).

3ºEP O art. 25º é uma norma geral que, articulada com o art. 31º nº1 CC, indica que às
matérias de estatuto pessoal é aplicada a lei da nacionalidade. Isto resulta do princípio da
unidade e estabilidade do estatuto pessoal: por estarem em causa um conjunto de matérias que
se referem à identidade dos sujeitos, o legislador decidiu submetê-las a uma única lei,
independentemente do lugar onde as pessoas se encontrem - a lei pessoal. Resulta também de
um afloramento do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP): a ideia de que há um
conjunto de direitos adquiridos no país de origem, no país da nacionalidade, que devem ser
assegurados ao sujeito em qualquer lugar - este reconhecimento é feito, nomeadamente, através
da aplicação da lei pessoal, da lei da nacionalidade.

4ºEP Sendo que o art. 25º CC é a regra, importa averiguar se há alguma norma de conflitos
específica sobre matérias de capacidade.

O presente caso aborda a capacidade para celebrar um contrato de consumo, ou seja, a


capacidade de exercício. Como não existe nenhuma norma especial que regule a capacidade em
questão, vamos resolver através da regra geral do art. 25º, que submete à lei pessoal dos sujeitos
a regulação das matérias de estatuto pessoal, da capacidade, as relações de família e as
sucessões por morte.

Este artigo, conjugado com o art. 31º nº1, considera competente para regular a capacidade a
lei da nacionalidade. No caso, a lei da nacionalidade de A é a lei SUÍ, pelo que o direito PT (L1)
remete para o direito SUÍ (L2).

A lei SUÍ não se considera competente e remete a resolução da questão para a lei do
domicílio. Assim, a lei SUÍ devolve a questão para a lei PT.

L1 L2

art. 25º lei SUÍ

art. 31º nº1 lei da nacionalidade

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (capacidade), pelo que nenhuma delas se considera competente para resolver a
questão: PT adotou como elemento de conexão a nacionalidade e a SUÍ o lugar do domicílio.

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia segundo uma de três teorias: a referência
material; a referência global, que abrange a devolução simples e dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
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que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: a devolução simples e a dupla devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio,
mas para-o, considerando que a 2ª referência é material. Esta teoria tem como principal
argumento a uniformidade de julgados ou harmonia jurídica internacional. No entanto, a
devolução simples não funciona no sentido de gerar harmonia de julgados quando todos os
países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.


DS

L1 L2

art. 25º lei SUÍ

art. 31º nº1 lei da nacionalidade

L2=L2

7ºR O enunciado diz-nos que o direito SUÍ “consagra o sistema de referência material, mas
aceita o retorno da lei estrangeira ao direito suíço em matéria de estatuto pessoal”, o que quer
dizer que pratica devolução simples, o que significa que vai fazer uma primeira referência global,
ou seja, vai remeter para as normas materiais e as normas de conflitos de L1, e num 2º momento,
ficciona uma referência material a ela própria, L2 (dá uma oportunidade a L1 para resolver a
questão, e esta considera competente L2). Assim, o direito competente é o SUÍ.

→ A lei aplicável é a lei SUÍ.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 18º neste caso, uma vez que se trata de retorno (a lex causae
devolve diretamente para a lei do foro).

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A. O art. 18º nº1 tem como requisito que a norma de conflitos da lei aplicável (L2) remeta para
o direito interno PT. Não foi o que aconteceu neste caso, já que L2 considerou-se indiretamente
competente (teria de ter feito uma referência material para poder aplicar este art.).

Não estando preenchido o art. 18º, resolvemos com base na regra geral - art. 16º. Isto
significa que a norma de conflitos PT (L1), quando diz que considera competente a lei da
nacionalidade, está a considerar competentes as normas materiais.

Assim, é competente o direito SUÍ e o contrato é inválido porque A não tem capacidade, aos
19 anos, para o realizar (a maioridade atinge-se aos 20 anos).

5ºEP No entanto cabe-nos ainda verificar se há algum desvio à aplicação da lei pessoal, uma
vez que queremos validar o negócio jurídico, por se tratarem de matérias de estatuto pessoal,
nomeadamente uma questão de capacidade. O que invalida aqui o negócio jurídico é a falta de
capacidade de A para celebrar este negócio; assim, podemos verificar se se preenche algum dos
desvios à aplicação da lei pessoal em favor de uma outra lei.

O art. 31º nº2 CC, relativo a negócios jurídicos celebrados no estrangeiro, apresenta-se não
como um verdadeiro desvio à aplicação da lei pessoal, mas como um desvio à aplicação da lei
da nacionalidade enquanto lei pessoal; isto porque, em vez de aplicarmos a lei da nacionalidade,
aplicamos a lei da RH. Na RH o elemento de conexão tem uma legitimidade semelhante em
matérias de estatuto pessoal para resolver estas situações. Este desvio não pode ser aplicado
ao caso em apreço, uma vez que apenas abrange as situações em que está em causa a
capacidade de gozo, ou seja a celebração de negócios de natureza estritamente pessoal (casar,
perfilhar e testar).

O desvio do art. 47º CC é aplicado à capacidade para constituir direitos reais sobre imóveis.
Só por aí podemos excluir a aplicação deste desvio, uma vez que não há qualquer imóvel
envolvido neste caso concreto.

Finalmente cabe-nos testar a aplicação dos desvios aplicáveis à capacidade de exercício do


art. 28º CC, art. 11º CRoma e art. 13º Roma I. [Pode acontecer termos de resolver 1º o reenvio e depois
surgir a aplicação de uma norma de um regulamento em relação a uma matéria específica; o que não pode acontecer é
fazer a resolução através dos regulamentos (âmbitos de aplicação, etc.) e depois aplicar o reenvio]

Para decidir qual o artigo que regula esta questão, é necessário ter em conta a data de
celebração do contrato: se se incluir no âmbito temporal da convenção ou do regulamento, são
estes que se aplicam, em detrimento da norma do CC. Este contrato foi celebrado em setembro
de 1998. O âmbito temporal de aplicação da CRoma é de 1994 a 2009, pelo que é este
instrumento internacional que se aplica.

O art. 17º CRoma exige que: o negócio jurídico seja celebrado por pessoas que se encontrem
fisicamente no mesmo país; haja desconhecimento pelo declaratário da incapacidade do
declarante (boa fé); esteja em causa um negócio do tráfico corrente de bens e serviços (os
negócios familiares e sucessórios estão excluídos) e, além disso, bilateral (excluem-se os
negócios jurídicos unilaterais). No presente caso falha o primeiro requisito, já que o contrato foi
celebrado entre ausentes (os contratos online não são salvaguardados pela proteção da
confiança do tráfego jurídico local).

Não se aplicando nenhum dos desvios à lei pessoal, mantemos a solução de aplicação da lei
SUÍ. Segundo esta lei, o negócio é inválido porque A não tem capacidade.

→ Esta pretensão será considerada procedente.

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Passemos agora à 2ª pretensão: A pediu a resolução do contrato com base no direito de


arrependimento, colocado na lei PT.

1ºCRI É necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre A e esta empresa/
sociedade para saber se é possível adotar esta solução com base no direito de arrependimento
previsto no direito PT. Como estão em causa obrigações contratuais, vamos ponderar a
aplicação de Roma I ou CRoma.

2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 1998, o diploma a aplicar é a CRoma.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º CRoma. Aplicamos a convenção quando


estejam em causa obrigações contratuais que envolvam conflitos de leis, excluindo as matérias
elencadas no nº2, nº3 e nº4 deste artigo. No presente caso: temos um contrato celebrado entre A
e Surf,Inc., que tem ligações com PT, SUÍ, EUA (Califórnia) e IV.

Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º CRoma. Este artigo indica que a lei indicada
pelas normas de conflitos desta convenção é aplicada, quer pertença ou não a um Estado-
membro.

Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A esta convenção estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da vontade;
proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de efeitos às NAI;
reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 5º) e contrato individuais de trabalho (art. 6º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador; em
contrato individuais de trabalho (art. 6º): o trabalhador é a parte mais fraca que se deve proteger,
já que não tem grande poder negocial; em particular, aquele sujeito a um contrato de trabalho
internacional encontra-se numa situação de vulnerabilidade superior.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 7º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº1) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 16º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

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4ºCRI O art. 10º CRoma fala-nos do âmbito de aplicação da lei do contrato. Atendendo à
pretensão e aos factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá
regular: a interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de resolução do contrato,


a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento irá regular, nos termos da al. d), as
diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade.

5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. Neste caso há uma parte, o consumidor, que se encontra
numa posição de vulnerabilidade em relação à contraparte, o que motivou esta pretensão.

Assim, podemos recorrer ao art. 5º que regula os contratos celebrados por consumidores.
Esta norma visa a proteção do consumidor enquanto parte mais fraca, pois é a parte que tem
menos experiência no comércio internacional, e tem uma menor organização (comparada com o
comerciante).

No entanto, a aplicação do nº1 deste art. tem alguns requisitos: esteja em causa o
fornecimento de um bem móvel corpóreo; tenha sido adquirido para uma finalidade estranha à
atividade profissional de adquirente. No nosso caso, o objeto adquirido por A é um bem móvel
corpóreo e foi adquirido por uma questão de lazer (finalidade estranha à sua atividade
profissional), pelo que estes requisitos estão preenchidos.

Apesar disso, o contrato realizado entre A e Surf,Inc. parece indicar estar submetido à lei das
IV; esta afirmação pode constituir uma escolha de lei cuja validade deve ser aferida. O art. 5º nº2
permite a escolha de lei e os seus requisitos encontram-se no art. 3º: a escolha de lei só pode
incidir sobre a lei de 1 Estado; a escolha pode ser aplicada a toda ou a parte do contrato; pode
ser expressa ou tácita; não pode prejudicar a aplicação das disposições imperativas da lei do
Estado com o qual o contrato tem um grande numero de ligações no momento da celebração.

A escolha de lei, no presente caso, foi expressa e parece válida, mas choca com uma
limitação presente na 2ª parte do nº2: devem ser respeitadas as disposições da lei da RH do
consumidor que lhe sejam mais favoráveis, comparativamente às normas da lei escolhida
(verificar se o consumidor ficaria menos protegido pela escolha de lei do que pela aplicação da lei
da sua RH), desde que esteja preenchida uma das alíneas do nº2. Atua aqui o princípio da
proteção da parte mais fraca que vai prevalecer sobre a autonomia da vontade.

No caso, para aplicarmos a RH do consumidor, é necessário que previamente à celebração do


contrato tenha havido um convite a contratar dirigido ao país da RH (o que se verifica, já que o
anúncio publicitário que consta da revista tem distribuição em PT) e, além disso, o consumidor
tem de executar no país da RH os atos necessários à celebração desse contrato (também se
verificou, já que A preencheu em PT as condições gerais de contratação e efetuou o pagamento).

Preenchidos todos os requisitos, vamos aplicar a lei da RH do consumidor se ela o


proteger mais do que a lei escolhida pelas partes. O direito das IV, ou seja, a lei escolhida
pelas partes, permite a resolução do contrato mas não aceita o direito ao arrependimento,
enquanto que o direito PT (RH) permite este direito.

Concluindo, nesta comparação entre a lei escolhida e a lei da RH do consumidor, apesar de a


lei escolhida ser válida, como protege menos o consumidor que a lei da RH, vai ser a lei PT a lei
aplicável.

→ Esta pretensão será considerada procedente.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !47 de !100


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Caso nº9

Alfredo e Beatriz, casados, de nacionalidade italiana, residentes habitualmente em Lisboa,


desejam vender a Cristina, sua filha, de nacionalidade portuguesa, residente em Faro, um imóvel
situado nesta cidade, de que são proprietários.
Para esse efeito, em 1993, deslocam-se os três a Roma, onde celebraram um contrato de
compra e venda.
Daniel, também filho do casal, português e residente em Lisboa, que não deu o seu
consentimento para a venda, vem perante tribunais portugueses pedir a anulação do negócio nos
termos do disposto no art. 877º do Código Civil, que considera aplicável ao caso por força do
estabelecido nos artigos 21º e 22º do Código Civil.

Admitindo que:
1. No contrato de compra e venda não houve designação expressa da lei aplicável.
2. O Direito Internacional Privado italiano submete as relações entre pais e filhos à lei da
nacionalidade comum dos pais e as sucessões por morte à lei nacional do de cujos.
3. O direito de conflitos italiano permite que as partes escolham a lei aplicável aos contratos e,
no caso da falta escolha, aplica, sucessivamente, a lei da residência habitual comum das partes e
a lei do lugar da celebração.
4. A lei italiana não contém qualquer disposição semelhante à do art. 877º do Código Civil
português.

Diga, justificando a resposta, se deve ser considerada procedente a pretensão de Daniel.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !48 de !100


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Caso nº10

Yvon, francês, pintor reconhecido, viveu em Nice até 2004, data em que decidiu mudar a sua
residência para Portugal, seduzido pelo clima ameno do país, mas também por uma carga fiscal
mais baixa, que tornava o custo de vida em Portugal mais fácil de suportar. Yvon instalou-se em
Vilamoura em 2004, onde passou a residir até falecer em Dezembro de 2009.
Em 2006, durante um cruzeiro a bordo de um navio de pavilhão português, matriculado em
Lisboa, fez um testamento hológrafo, pelo qual deixou todos os seus bens ao Museu Nacional de
Arte Antiga em Lisboa. A herança de Yvon era constituída por um imóvel, sito em Londres, e por
várias pinturas expostas em galerias de arte em Paris, Londres e Lisboa.
Martin, de nacionalidade do Reino Unido e espanhola, há longo tempo incompatibilizado com
o pai, nascido e residente em Londres, vem, perante os tribunais portugueses, reclamar a
atribuição de toda a herança, por invalidade formal do testamento, que não respeitou o disposto
no art. 2204º do CC português. Sem prescindir, invocando os artigos 2156º, 2157º e 2162º do CC
português, pede que lhe seja garantida a legítima, a que tem direito, também, segundo as leis
espanhola e francesa, invocando ainda, em abono das suas pretensões os artigos 21º e 22º do CC
português.

Admitindo que:
1) Tanto o DIP francês como o DIP inglês regulam a sucessão mobiliária pela lei do último
domicílio do de cujos e a sucessão imobiliária pela lex rei sitae;
2) Tanto o DIP francês como o DIP inglês regulam a validade formal do testamento pela lei do
lugar da celebração;
3) Yves tinha domicílio em Portugal na altura do seu falecimento, segundo todos os direitos em
causa;
4) Os direitos francês e espanhol reconhecem a figura da legítima, ao passo que o direito inglês
admite a plena liberdade de testar;
5) O art. 970º do CC francês admite o testamento hológrafo, assim como o direito inglês;
6) Os tribunais franceses praticam a devolução simples e os tribunais ingleses adoptam a dupla
devolução;
7) O direito francês dá relevância autónoma à figura da fraude à lei, ao passo que o DIP inglês
só a admite se houver ofensa à ordem pública internacional.

Diga, fundamentando devidamente a resposta, se as pretensões de Martin devem proceder.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !49 de !100


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Caso nº11

Em Fevereiro de 2006, Ana, residente habitualmente em Lisboa, folheando uma revista norte-
americana, depara com um anúncio de um revolucionário programa informático, a preço
convidativo, comercializado pela sociedade Microcom Inc, com sede estatutária nas Ilhas Virgens,
cujo conselho de administração se reúne em Silicon Valley, Califórnia, local onde se situa todo o
processo produtivo da empresa. A revista foi adquirida em Portugal, onde é distribuída uma
edição da mesma.
Ana preencheu e enviou as condições gerais de contratação, procedendo imediatamente ao
pagamento. A Microcom Inc enviou a Ana um código, com o qual esta transferiu directamente o
programa para o seu computador, através da Internet.
Após experimentar o programa, Ana arrepende-se e comunica à Microcom Inc a vontade de
devolver o programa e recuperar o preço. Face à recusa desta, Ana demanda a Microcom Inc
perante tribunal português, invocando o direito de livre resolução do contrato previsto na lei
portuguesa, mais concretamente no decreto-lei relativo à protecção dos consumidores nos
contratos celebrados à distância, que entende ser aplicável ao caso, enquanto lei da sua
residência habitual.
A Microcom Inc contesta a acção, alegando que as disposições do decreto-lei português não
são aplicáveis ao caso, pois, nos termos das condições gerais de contratação subscritas por Ana,
o contrato encontra-se sujeito aos usos do comércio internacional.
Ana contrapõe que a recusa ao consumidor do direito de arrependimento invocado ofenderia
os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português.

Admitindo que:
1. No direito vigente nas Ilhas Virgens não existe uma regra equivalente à norma portuguesa
que prevê o direito de resolução do consumidor nos contratos à distância, sem necessidade de
invocar o motivo ou pagar indemnização, no prazo de 14 dias. O direito do Estado da Califórnia
reconhece o direito de arrependimento do consumidor nos contratos celebrados por
correspondência.
2. Nos Estados Unidos vigora um ordenamento jurídico complexo e não existe direito interlocal,
nem Direito Internacional Privado unificado.
3. Todos os ordenamentos em presença consideram que Ana tem o seu domicílio em Lisboa.
4. O tribunal português é internacionalmente competente.

a) Diga, fundamentando devidamente a resposta, se as pretensões de Ana devem proceder.


b) Diga, fundamentando, se a resposta seria diferente, e em que termos, se o contrato tivesse
sido celebrado em Fevereiro de 2010.

a)

1ºCRI Estamos perante a seguinte pretensão: A pediram resolução do contrato realizado com a
empresa Microcom Inc, direito esse conferido, na lei PT, por um DL que protege o consumidor
em contratos à distância. É necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre A e esta
empresa, para saber se é possível adotar esta solução com base no direito ao arrependimento
Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !50 de !100
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previsto no direito PT. Como estão em causa obrigações contratuais, vamos ponderar a
aplicação do regulamento Roma I ou da CRoma.

2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 2006, o diploma a aplicar é a CRoma.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º CRoma. Aplicamos a convenção quando


estejam em causa obrigações contratuais que envolvam conflitos de leis, excluindo as matérias
elencadas no nº2, nº3 e nº4 deste artigo. No presente caso: temos um contrato celebrado entre A
e Microcom Inc., que tem ligações com PT, EUA (Califórnia) e IV.

Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º CRoma. Este artigo indica que a lei indicada
pelas normas de conflitos desta convenção é aplicada, quer pertença ou não a um Estado-
membro.

Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A esta convenção estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da vontade;
proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de efeitos às NAI;
reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 5º) e contrato individuais de trabalho (art. 6º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador; em
contrato individuais de trabalho (art. 6º): o trabalhador é a parte mais fraca que se deve proteger,
já que não tem grande poder negocial; em particular, aquele sujeito a um contrato de trabalho
internacional encontra-se numa situação de vulnerabilidade superior.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 7º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº1) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 16º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 10º CRoma fala-nos do âmbito de aplicação da lei do contrato. Atendendo à
pretensão e aos factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá
regular: a interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de resolução do contrato,


a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento irá regular, nos termos da al. d), as
diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e a caducidade.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !51 de !100


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5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. Neste caso há uma parte, o consumidor, que se encontra
numa posição de vulnerabilidade em relação à contraparte, o que motivou esta pretensão.

Assim, podemos recorrer ao art. 5º que regula os contratos celebrados por consumidores.
Esta norma visa a proteção do consumidor enquanto parte mais fraca, pois é a parte que tem
menos experiência no comércio internacional, e tem uma menor organização (comparada com o
comerciante).

No entanto, a aplicação do nº1 deste art. tem alguns requisitos: esteja em causa o
fornecimento de um bem móvel corpóreo; tenha sido adquirido para uma finalidade estranha à
atividade profissional de adquirente. No nosso caso, o objeto adquirido por A é incorpóreo, pelo
que não preenche os requisitos.

Apesar disso, o contrato realizado entre A e Microcom Inc. parece indicar estar submetido aos
usos do comércio internacional; esta afirmação pode constituir uma escolha de lei cuja validade
deve ser aferida. O art. 5º nº2 permite a escolha de lei e os seus requisitos encontram-se no
art. 3º: a escolha de lei só pode incidir sobre a lei de 1 Estado; a escolha pode ser aplicada a
toda ou a parte do contrato; pode ser expressa ou tácita; não pode prejudicar a aplicação das
disposições imperativas da lei do Estado com o qual o contrato tem um grande numero de
ligações no momento da celebração. No presente caso, a escolha de lei é inválida por
incumprimento do primeiro requisito: a escolha de usos do comércio internacional como lei
reguladora de um contrato não é válida aos olhos da CRoma.

Não havendo norma específica aplicável nem escolha de lei, recorre-se à norma subsidiária: a
regra geral do art. 4º - lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita (princípio da
proximidade). Os nºs 2, 3 e 4 fornecem presunções interpretativas para determinar qual a lei com
a conexão mais estreita: através do nº2, que se aplica ao caso em apreço, presume-se a conexão
mais estreita com o país da RH do devedor da prestação característica do contrato (aquela
prestação contratual que permite realizar o fim económico e jurídico do contrato). A prestação
característica aqui é o programa informático a fornecer pela empresa, pelo que a RH do devedor
desta prestação é na Califórnia (atendemos ao lugar da sede principal e efetiva da empresa).

Os EUA são um ordenamento plurilegislativo de base territorial, pois são constituídos por
várias ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território; esta questão é resolvida nos
termos do art. 29º CRoma: a remissão da norma de conflitos aponta diretamente para uma
ordem jurídica local, no caso, a da CAL, já que cada unidade territorial é considerada como um
país para fins de determinação da lei aplicável.

Assim, como a solução material fornecida pela lei da CAL é igual à solução fornecida pela lei
PT, é a primeira aplicável, não sendo necessária a intervenção do art. 5º nº2 2ª parte CRoma.

6ºCRI Pelo mesmo motivo, não se justifica a intervenção da ROPI

→ A pretensão de A será considerada procedente, de acordo com a lei da CAL.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !52 de !100


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b)

Em relação à segunda questão, analisemos as diferenças de resolução na hipótese de o


contrato ter sido celebrado em fevereiro de 2010.

Em 1º lugar aplicava-se o regulamento Roma I, por causa do âmbito temporal (os âmbitos
material e espacial são os mesmos); mudava a norma quanto ao âmbito da lei aplicável - seria o
art. 12º al. d) Roma I; em vez de aplicar o art. 4º CRoma (regra geral), aplicava-se o art. 6º Roma I,
que alarga a sua aplicação aos bens incorpóreos, como é o caso do programa informático em
questão.

Preenchidos os seus requisitos (contrato celebrado por uma pessoa singular; para uma
finalidade estranha à sua atividade profissional; com outra pessoa que atua no quadro da sua
atividade comercial; celebrado no âmbito dessa atividade; não sendo excluído pelo nº4; o
profissional exerça as suas atividades comerciais no país da RH do consumidor ou para lá as
dirija, por qualquer motivo), este negócio é regulado pela lei da RH do consumidor, ou seja, a lei
PT.

No entanto, o contrato realizado entre A e Microcom Inc. parece indicar estar submetido aos
usos do comércio internacional, o que poderá constituir escolha de lei, preenchidos os requisitos
do art. 3º Roma I. Esta disposição contratual não constitui escolha de lei porque não se refere à
lei de um Estado, mas a uma normatividade que não tem o mesmo valor jurídico. Assim, a
escolha de lei é inválida, nos termos do art. 5º nº2 1ª partes, pelo que não é necessária a
comparação com a lei aplicável na falta de escolha.

Concluindo, a lei aplicável, sendo o contrato realizado em 2010, seria a lei PT, que conferia
toda a proteção ao consumidor nesta matéria, incluindo o direito de arrependimento, no prazo de
14 dias após receber a mercadoria.

→ A pretensão de A será considerada procedente, de acordo com a lei PT.

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Caso nº12

Em Fevereiro de 2010, quatro amigos, Alexandre, Beatriz, Diogo, de nacionalidade portuguesa,


e Charlotte, de nacionalidade francesa, residentes em Braga, contratam com a agência de
viagens, Mundivoyage, com sede em Paris, e estabelecimento em Braga, uma visita turística ao
Camboja durante 10 dias, que incluía o alojamento numa estância de férias de 5 estrelas e uma
excursão, que consistia na descida do rio Mekong. O contrato foi celebrado em Braga e sujeito à
lei do Camboja.
Ao chegar ao Camboja, o grupo de amigos depara-se com uma estância de férias, com a
classificação de apenas três estrelas, que não correspondia àquela contratada e de qualidade
muito inferior. Pedindo explicações imediatas à agência de viagens, foi-lhes dito que a estância de
férias, onde iriam inicialmente ficar, estava com a lotação completa e, por esse motivo, a agência
de viagens decidiu transferi-los para aquela.
Apenas Charlotte e Diogo fizeram a excursão prevista, uma vez que Alexandre e Beatriz ficaram
doentes com uma intoxicação alimentar. Quando estavam sobre o rio Mekong, a piroga que os
transportava virou, por excesso de lotação, tendo-se Charlotte afogado. Em consequência, deste
trágico acidente, os pais de Charlotte, nacionais franceses e residentes em Paris, accionam a
agência de viagens pedindo uma indemnização pelos danos morais que sofreram com o
falecimento da única filha, uma vez que caíram ambos em profunda depressão, invocando para tal
a lei francesa, que lhes concede esse direito. A Mundivoyage recusa-se a pagar qualquer
indemnização, uma vez que a lei do Camboja, que considera competente, não reconhece esse
direito aos parentes da vítima.
Chegados a Portugal, Alexandre e Beatriz pedem uma indemnização por o hotel que
escolheram e pagaram não corresponder àquele onde efectivamente ficaram, sendo este de
qualidade muito inferior. Para tanto, invocam a lei portuguesa, nomeadamente, os arts. 798º e
seguintes do Código Civil, pois consideram que a Mundivoyage deveria ter assegurado os quartos
no hotel escolhido ou noutro de qualidade equivalente. A Mundivoyage recusa pagar qualquer
indemnização, invocando que, segundo a lei do Camboja, a permanência do casal na nova
estância de férias equivale a uma aceitação tácita da modificação do contrato operada pela
Mundivoyage.

Admitindo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes; a lei francesa,


ao contrário da lei do Camboja, concede aos pais o direito à indemnização por danos não
patrimoniais, por morte da vítima, numa situação de responsabilidade extracontratual; a lei do
Camboja considera que a permanência do casal na nova estância de férias equivale a uma
aceitação tácita da modificação do contrato operada unilateralmente pelo outro contraente:

a) Diga, fundamentando devidamente a resposta, se a pretensão de Alexandre e Beatriz será


procedente;
b) Diga, fundamentando devidamente a resposta, se a pretensão dos pais de Charlotte será
procedente.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !54 de !100


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a)

1ºCRI Estamos perante a seguinte pretensão: A e B pediram a indemnização por terem sido
colocados num hotel de qualidade inferior à contratada, direito esse colocado na lei PT. É
necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre A e B e esta agência de viagens,
para saber se é possível adotar esta solução com base no direito à indemnização previsto no
direito PT. Como estão em causa obrigações contratuais, vamos ponderar a aplicação do
regulamento Roma I ou da CRoma.

2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 2010, o diploma a aplicar é Roma I.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º Roma I. Aplicamos o regulamento quando


estejam em causa obrigações contratuais em matéria civil e comercial que envolvam conflitos de
leis, excluindo as matérias elencadas no nº2 e nº3 deste artigo. No presente caso: temos um
contrato celebrado entre A e B e a agência de viagens Mundivoyage, que tem ligações com PT,
FRA e CAMB. Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º Roma I. Este artigo indica que a lei indicada
pelas normas de conflitos deste regulamento é aplicada, quer pertença ou não a um Estado-
membro. Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A este regulamento estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da
vontade; proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de
efeitos às NAI; reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 6º) e contrato individuais de trabalho (art. 8º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 9º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº3) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 21º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 12º Roma I fala-nos do âmbito da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá regular: a
interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !55 de !100


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No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de indemnização por


cumprimento defeituoso do contrato, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento irá
regular, nos termos da al. c), as consequências do incumprimento total ou parcial das obrigações
contratuais.

5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. Neste caso há uma parte, o consumidor, que se encontra
numa posição de vulnerabilidade em relação à contraparte, o que motivou esta pretensão.

Assim, podemos recorrer ao art. 6º que regula os contratos celebrados por consumidores.
Esta norma visa a proteção do consumidor enquanto parte mais fraca, pois é a parte que tem
menos experiência no comércio internacional, e tem uma menor organização (comparada com o
comerciante).

O art. 6º nº1 indica que a lei aplicável aos contratos de consumo é a lei da RH do consumidor.
No entanto, a aplicação deste art. tem alguns requisitos: o contrato tenha sido (1) celebrado por
pessoas singulares; (2) para uma finalidade estranha à sua atividade comercial ou profissional; (3)
tenha como contraparte uma pessoa singular ou coletiva que atua no exercício da sua atividade
comercial ou profissional; (4) não pode estar excluído pelo nº4; (5) o comerciante tem de exercer
as suas atividades comerciais no país da RH do consumidor (al. a)) ou para aí as dirigir, de
alguma forma (al. b)); (6) o contrato ser abrangido pelo âmbito dessas atividades. No nosso caso,
todos os requisitos se encontram preenchidos.

Apesar disso, o contrato realizado parece indicar estar submetido à lei do CAMB; esta
afirmação pode constituir uma escolha de lei cuja validade deve ser aferida. O art. 6º nº2 1ª parte
permite a escolha de lei, ou seja, dá liberdade às partes para escolherem, de acordo com os
seus interesses, qual a lei que melhor os pode tutelar, garantindo uma maior certeza e
previsibilidade de aplicação (princípio da autonomia da vontade). Assim, se houver escolha de lei,
têm de verificar-se os requisitos do art. 3º: (1) as partes só podem escolher a lei de 1 Estado
(argumento literal que se retira do art. 1º e 2º); (2) pode abranger a totalidade ou parte de
contrato; (3) pode ser expressa ou tácita; (4) pode ser anterior ou posterior à celebração do
contrato; (5) não pode prejudicar a aplicação das disposições imperativas da lei do Estado no
qual se situem todos os elementos relevantes da situação no momento da celebração.

No entanto, independentemente da escolha de lei, o art. 6º nº2 2ª parte estabelece


limitações à aplicação da lei escolhida para evitar que, através dela, o consumidor fique privado
da proteção das disposições imperativas da lei que regularia o contrato, se não existisse escolha
de lei. Isto significa que há que fazer uma comparação entre a lei escolhida e a lei que seria
competente na falta de escolha (art. 6º nº1), e poderá prevalecer o princípio da proteção da parte
mais fraca sobre o princípio da autonomia da vontade.

A lei escolhida pelas partes foi a lei do CAMB, que equivale a aceitação tácita da modificação
do contrato o comportamento de A e B de permanência na nova estância de férias. A lei
aplicável, na falta de escolha das partes, é a lei da RH do consumidor (desde que preenchidos os
requisitos das alíneas no nº1, o que já analisamos). A RH, tanto de A como de B, é PT, pelo que
vamos aplicar esta lei se proteger mais o consumidor do que a lei escolhida pelas partes, a do
CAMB.

O direito do CAMB, ou seja, a lei escolhida pelas partes, não permite a indemnização por
incumprimento do contrato (já que A e B não ficaram instalados na estância de férias contratada,
mas sim numa de muito inferior qualidade), enquanto que o direito PT (RH) prevê este direito à
indemnização nos arts. 798º ss. CC.

Bárbara Vasconcelos Mendes A74289 Página !56 de !100


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Concluindo, nesta comparação entre a lei escolhida e a lei da RH do consumidor, apesar de a


lei escolhida ser válida, como protege menos o consumidor do que a lei da RH, vai ser a lei PT a
lei aplicável.

→ Esta pretensão será considerada procedente.

b)

1ºRII No presente caso, estamos perante uma situação de responsabilidade civil


extracontratual, uma vez que entre os pais de C e a agência de viagens Mundivoyage não há
qualquer relação contratual.

Os pais de C vêm pedir a indemnização dos danos morais causados pela morte de C,
ocorrida durante uma excursão planeada pela agência, por sobrelotação do barco que a
transportava. Este ato constitui uma violação de um direito absoluto (o direito à vida), o que dá
origem à responsabilidade civil extracontratual.

2ºRII Para resolução de uma questão de responsabilidade civil extracontratual podemos


recorrer ao Regulamento Roma II, se estiverem preenchidos os seus âmbitos de aplicação
material, temporal e espacial. Caso não estejam preenchidos esses âmbitos, temos de recorrer
ao art. 45º CC, que é a norma de conflitos que regula a responsabilidade civil extracontratual.

O âmbito material está consagrado nos arts. 1º e 2º Roma II. Aplicamos o regulamento Roma
II quando esteja em causa um conflito de leis em situações que envolvam obrigações
extracontratuais. No presente caso: houve a violação de um direito absoluto, o direito à vida (o
barco que transportava C virou, o que resultou na sua morte); entre os pais de C e a agência de
viagens não existe qualquer relação contratual; há efetivamente danos morais a ressarcir (ambos
os pais entraram em depressão profunda pela perda da única filha); e há um conflito de leis (C
tinha nacionalidade FRA e residia em PT, os pais têm nacionalidade FRA e residem em FRA, a
agência M tem sede em FRA e o acidente aconteceu no CAMB - várias leis podem ser chamadas
a resolver a questão).

Há um conjunto de situações elencadas no nº2 do art. 1º que são excluídas da aplicação


deste âmbito material. Os factos que digam respeito a uma dessas questões são afastados da
aplicação do Regulamento Roma II. Apenas ressalvar a alínea g) do nº2 do art. 1º, respeitante às
“obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida privada e dos direitos de
personalidade”, em relação à qual temos de fazer uma interpretação restritiva e sistemática:
excluindo apenas as situações em que a violação decorre de um delito de imprensa.

O primeiro âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 3º Roma II. Este artigo indica que o regulamento é
de aplicação universal, o que quer dizer que qualquer lei indicada pelas normas de conflitos de
Roma II é aplicável, ainda que pertença a um Estado não participante da assinatura do
regulamento.

O segundo âmbito está automaticamente preenchido.

O âmbito temporal está consagrado no art. 32º Roma II. Nos seus termos, o regulamento é
aplicável a factos ocorridos após 11 de janeiro de 2009. No caso prático, o acidente ocorreu em
fevereiro de 2010, logo já vigorava o regulamento.

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Este âmbito está, também, preenchido (se não estivesse aplicávamos o art. 45º CC).

3ºRII A este regulamento está subjacentes uma série de princípios (7): autonomia da vontade;
tendência para a especialização das normas de conflitos; primazia pelo meio social comum; lex
loci delicti commissi; equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas
de conflitos; reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI; reconhecimento de efeitos
às NAI.

[No teste basta indicar, mas para estar mais completo, explico sucintamente.]

O princípio da autonomia da vontade permite às partes escolher a lei aplicável (art. 14º).

O princípio da tendência para a especialização das normas de conflitos expressa a intenção


do legislador de regular as situações específicas em que há interesses próprios, através de
normas pensadas especificamente para esses interesses (ex: arts. 5º a 12º).

O princípio da primazia pelo meio social comum faz prevalecer, através da escolha da lei que
está mais próxima das partes (princípio da proximidade) a aplicação da lei da RH comum da
pessoa cuja responsabilidade se quer apurar e do lesado no momento em que ocorre o dano (art.
4º nº2).

O princípio lex loci delicti commissi consagra a lei do lugar do delito na modalidade de lugar
do dano dano direto, em detrimento do lugar da prática do facto (art. 4º nº1).

O princípio do equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas de


conflitos indica que as normas de conflitos de Roma II que indicam a lei aplicável a determinado
caso devem ser equilibradas com aquelas que fazem prevalecer a lei da conexão mais estreita ou
mesmo que conferem poder às regras de segurança e de conduta, de modo a atingir um
resultado mais justo (art. 17º).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI permite que o juiz do


foro não esteja vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro (art. 26º).

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI dita que as competências legislativas


decorrentes de Roma II não prejudicam a aplicação de normas materiais de aplicação imediata
do Estado do foro.

4ºRII O art. 15º Roma II fala-nos do alcance da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar que é que a lei aplicável irá regular: os
fundamentos da responsabilidade civil, as pessoas que têm direito a uma indemnização, a
responsabilidade por parte de outrem, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de ressarcimento, danos


sofridos e violação de direitos absolutos, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento
irá reger, nos termos da al. f), as pessoas com direito à reparação do dano pessoalmente sofrido.

5ºRII Analisado o âmbito da lei aplicável, e porque Roma II consagra o princípio da tendência
para a especialização das normas de conflitos, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. As normas especiais encontram-se nos arts. 5º a 12º.

Neste caso há a violação de um direito absoluto, pelo que não há nenhuma norma especial
que regule esta situação. Por isso, aplicamos as regras gerais, que são duas: o art. 14º que
consagra o princípio da autonomia da vontade, se houver escolha de lei; e o art. 4º.

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No caso não houve escolha de lei: a escolha de lei das obrigações contratuais não pode ser
aproveitada para a responsabilidade extracontratual, porque a escolha de lei do art. 14º de Roma
II é mais exigente (a escolha para as obrigações contratuais foi feita para regular essa relação de
consumo, e não para outras responsabilidades).

Resta-nos agora a regra geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual - o art. 4º.

O princípio fundamental nesta matéria, por onde devemos começar, é a primazia do meio
social comum, presente no nº2. Este princípio é concretizado através do elemento de conexão
RH comum do lesado e da pessoa cuja responsabilidade é invocada e é uma conexão definida
em função do princípio da proximidade e do princípio da confiança porque, em regra, esta lei
(RH) é aquela que as partes melhor conhecem e com a qual habitualmente conformam o seu
comportamento, aumentando assim a previsibilidade de aplicação.

A pessoa cuja responsabilidade é invocada nem sempre é a autora material do dano; deve ser
interpretada como a pessoa cuja responsabilidade pretendemos apurar no processo. A RH das
sociedades, nos termos do art. 23º nº1, é o local onde se situa a sua administração, mas quando
o facto que dá origem ao dano seja praticado por uma sucursal, agência ou estabelecimento,
considera-se a RH no local onde se situa a sucursal, agência ou estabelecimento. Nestes termos,
a pessoa cuja responsabilidade é invocada é a agência de viagens M, com RH em PT
(estabelecimento de Braga).

O lesado, para efeitos de Roma II, é a vítima direta do dano, e pode não ser a pessoa que
pede. Neste caso, a vítima direta do dano é C, pelo que a RH a ter em conta é a dela, ou seja, PT.

Concluindo, sendo PT a RH comum da pessoa cuja responsabilidade é invocada (a agência


M), nos termos do art. 23º nº1 2ª parte, e do lesado, é a lei PT que irá regular a responsabilidade
extracontratual em causa. Sendo a lei PT a regular esta situação, o art. 496º CC permite a
indemnização por danos não patrimoniais de vítimas por ricochete, pelo que os pais receberiam a
indemnização.

No entanto, para o cálculo da indemnização, têm relevância enquanto matéria de facto as


regras de segurança e de conduta - art. 17º Roma II. Esta norma permite tomar em
consideração as normas de segurança e de comportamento da lei do lugar do facto, lei do
CAMB, estabelecendo um conjunto de regras que são importantes para determinar o valor da
indemnização (determinar se foram cumpridas as regras do CAMB, para saber se a indemnização
será maior ou menor).

→ Esta pretensão será considerada procedente.

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CASOS DA SEBENTA
Caso nº1

Camila, de nacionalidade uruguaia e brasileira, viveu no Rio de Janeiro até aos 15 anos de
idade, data em que transferiu a sua residência para Verona, pois decidiu passar a viver com o seu
pai que residia nessa cidade há alguns anos. Quando completou 16 anos, numa breve visita a
Roma, conheceu Paulo, de nacionalidade portuguesa e residente em Lisboa, por quem se
enamorou. Nesse mesmo ano, usufruindo da pausa escola de Páscoa, Camila decidiu passar
quinze dias de férias na casa de Paulo em Lisboa, onde ambos acabaram por casar. Terminadas
as férias, Camila regressou a Itália.
O casal ainda viveu o casamento em segredo e durante alguns meses à distância, mas no
décimo sétimo aniversário de Camila, Paulo dirige-se aos tribunais portugueses pedindo a
invalidade do casamento com Camila com base no art. 84º do Código Civil italiano, que
estabelece que os menores de 18 anos não podem contrair casamento, e do art. 117º do mesmo
Código, que estabelece a legitimidade dos cônjuges para invocar a anulação do casamento
celebrado em violação do respetivo art. 84º. Camila, inconformada, contesta defendendo a
validade do casamento celebrado, de acordo com o Código Civil português que considera
aplicável ao caso ou, subsidiariamente, de acordo com o Código Civil brasileiro.

Admitindo que:
1. O art. 84º do Código Civil italiano estabelece que os menores de 18 anos não podem
contrair casamento, sob pena de anulação do mesmo.
2. O litígio em causa é regulado pela lei brasileira pela lei da residência habitual de cada
nubente e pela lei italiana e do Uruguai pela lei da nacionalidade de cada nubente.
3. A lei brasileira e a lei uruguaia são Estados contrários ao reenvio, já a Itália aceita o reenvio
na modalidade de devolução simples.

a) Diga, apreciando os argumentos invocados pelas partes, se a pretensão de Paulo terá êxito.
b) Suponha, agora, que Camila e Paulo têm ambos nacionalidade portuguesa e casam-se em
Itália onde ambos residem. Suponha também que Paulo apresenta uma demência notória, se bem
que no momento em que o casamento foi celebrado, estava num intervalo lúcido. Sendo certo
que o art. 85º do Código Civil italiano só estabelece como impedimento ao casamento a
interdição por anomalia psíquica, e não a demência notória, poderia o pai de Paulo invocar a
anulabilidade do casamento com base no art 1601º al. c) do Código Civil português? Diga
simplesmente o que altera em relação à alínea anterior.

a)

1ºQ A pretensão de P consiste na anulação do casamento com base no art. 84º do CC


italiano. Para a aplicação da norma é necessário proceder à qualificação da mesma, uma vez que
se alguém invocar uma norma material tem de a qualificar. Para saber se esta norma é aplicável
ao caso, temos de a subsumir no conceito-quadro de uma norma de conflitos, para em seguida

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fazer funcionar a consequência jurídica da norma, de maneira a saber, neste caso, se a ordem
jurídica ITA é a competente.

2ºQ Quando dada norma de conflitos remete para determinada ordem jurídica, pode fazer dois
tipos de referência: uma referência aberta, quando remete para o conjunto das normas materiais
da lei designada; ou uma referência seletiva, quando a referência feita pelas normas de conflitos
à lei designada apenas compreende as normas materiais que pelo seu conteúdo e função vão
integrar o conceito-quadro da norma de conflitos.

É esta última que o legislador PT escolheu seguir, no art. 15º CC, já que só uma referência
seletiva permite salvaguardar os interesses que estão na base do elemento de conexão.

3ºQ A operação de qualificação tem três momentos: interpretação do conceito-quadro;


caracterização do objeto da qualificação; e qualificação em sentido restrito.

Num 1º momento decorre a interpretação do conceito-quadro designativo do objeto da


qualificação. Há 3 formas de interpretar o conceito-quadro, definidas em 3 teorias: de acordo
com o direito do foro; de acordo com o direito comparado; de acordo com o princípio da unidade
da ordem jurídica.

A 1ª interpretação é feita de acordo com a lei do foro, o que significa que os conteúdos
subsumíveis seriam os que correspondem a esse conceito no sistema material da lei do foro.
Afastamos esta interpretação porque: (1) restringe excessivamente o âmbito do conceito-quadro
(nega a aplicação em PT de institutos jurídicos estrangeiros desconhecidos do nosso direito
material, ou institutos jurídicos com conteúdo diferente no nosso direito material, ainda que visem
finalidades sociais idênticas); e (2) põe em causa as finalidades do próprio DIP, nomeadamente, o
princípio da confiança nas situações plurilocalizadas.

A 2ª interpretação é feita de acordo com o direito comparado, através da tentativa de


encontrar conceitos idênticos nas leis estrangeiras. Também não seguimos esta interpretação
porque: (1) não permite captar o juízo de valor (a ratio) que está por trás de toda a norma de
conflitos, juízo esse que permite recortar devidamente o âmbito do conceito-quadro da norma de
conflitos; (2) é impossível encontrar conceitos únicos através do direito comparado.

A 3ª interpretação, adotada no ordenamento jurídico PT, decorre do princípio da unidade da


ordem jurídica. Aqui partimos da ideia de que o legislador que elaborou as normas de conflitos foi
o mesmo que elaborou as normas materiais internas. Assim, presumimos que os conceitos
utilizados pelas normas de conflitos, em princípio, exprimem os mesmos conteúdos jurídicos que
esses conceitos exprimem no direito material do Estado do foro. Mas além disso, aditamos a esta
interpretação um núcleo de preceitos ou institutos estrangeiros que exerçam uma função análoga
à função que compete às normas de direito interno e que se integram no conceito-quadro. Há
nesta fase um grau de autonomia do julgador em relação às normas materiais do foro, atendendo
também ao teor e finalidade da norma de conflitos para delimitar o conceito-quadro
(interpretação teleológica). Esta interpretação retira-se dos arts. 9º, 15º e 64º al. c) CC.

No caso em apreço está em causa uma eventual anulação do casamento. As normas de


conflitos potencialmente aplicáveis são: o art. 49º - cujo conceito-quadro aborda a capacidade
para contrair casamento ou celebrar a convenção antenupcial e ainda o regime da falta e dos
vícios da vontade dos contraentes; e o art. 25º, a norma geral sobre a lei pessoal, que regula o
estado dos indivíduos, a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por
morte.

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O 2º momento diz respeito à caracterização do objeto da qualificação, isto é, um dado


normativo que, em termos gerais, não é mais do que uma situação da vida corrente caracterizada
à luz de uma ordem jurídica. No nosso caso, o objeto da qualificação é o art. 84º CC italiano.

De acordo com o art. 15º, caracterizamos as normas materiais à luz da ordem jurídica a que
pertencem, por isso se a norma pertencer à ordem jurídica ITA, vamos apurar a sua ratio de
acordo com a ordem jurídica ITA.

O art. 84º CC italiano é um impedimento núbil estabelecido pelo legislador italiano em função
da idade e que define a capacidade negociar de gozo para contrair casamento. Estando em
causa um negócio de natureza estritamente pessoal, o legislador quer que o nubente tenha
discernimento suficiente para compreender os efeitos jurídicos que resultam da celebração de
um casamento.

O 3º momento é a qualificação em sentido restrito ou subsunção das normas materiais no


conceito-quadro de uma norma de conflitos. Neste último momento tem de existir uma
correspondência funcional entre as normas materiais cuja aplicação está em causa e o conceito-
quadro de uma norma de conflitos.

Aqui fazemos uma qualificação lege fori (a partir da lei do foro) com base numa caracterização
lege causae (lei aplicável, a que a norma material pertence). Há também um grau de autonomia
do legislador: ele não está limitado de forma restrita ao conceito-quadro, mas tem de atender à
finalidade, ao teor da norma material e, de acordo com este conteúdo/função, averiguar em que
conceito-quadro das normas de conflitos potencialmente aplicáveis se enquadra, atendendo às
noções jurídicas que integram esse conceito-quadro.

No caso concreto, o art. 84º CC italiano, pelo conteúdo e função que tem na ordem jurídica PT
(art. 15º) é subsumível no conceito-quadro do art. 49º CC português.

2ºR Descoberta a norma de conflitos que regula a questão (no caso, o art. 49º), temos de
apurar a sua consequência jurídica, de modo a saber se remete para a ordem jurídica ITA. O art.
49º atribui competência à lei da pessoal do nubente que, conjugado com o art. 31º nº1, nos
indica que é a lei da nacionalidade. Ora, C tem dupla nacionalidade (URU e BRA).

3ºR Antes de resolver a questão em si da dupla nacionalidade, cabe fazer algumas


considerações quanto à interpretação e concretização deste elemento de conexão - a
nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 49º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

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No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

Neste caso em concreto, como não temos elementos no enunciado que nos permitam
pronunciar sobre o facto de o URU e o BRA terem atribuído a nacionalidade a C, presumimos que
os pressupostos de atribuição da nacionalidade estão preenchidos. O problema que cabe
resolver é mesmo o concurso de nacionalidades.

Para decidir qual a nacionalidade relevante recorremos ao art. 28º da Lei da Nacionalidade, já
que estão em causa duas nacionalidades estrangeiras, que nos dá a seguinte solução: (1) se o
plurinacional tiver RH em algum dos estados que o têm por nacional, terá primazia a
nacionalidade desse Estado, porque se considera que, em princípio, esse corresponde ao vínculo
real efetivo; (2) se não tiver RH em nenhum dos estados em conflito, atendemos à nacionalidade
do Estado como qual mantém um vínculo mais estreito.

Neste caso, C, antes de se mudar para ITA sempre viveu no BRA e não temos qualquer
referência ao URU, o que indicia que não há qualquer vínculo real com o URU. Logo, só podemos
concluir pela atribuição de primazia à lei BRA, de acordo com o art. 28º da Lei da Nacionalidade.

4ºR A lei da BRA (L2) não se considera competente para resolver a questão da capacidade
para contrair casamento, e remete para a lei da RH de C, a lei ITA (L3) que, por sua vez, também
não se considera competente e remete para a lei da nacionalidade, BRA (L2).

L1 L2 L3

art. 49º lei BRA lei ITA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

art. 28º LN

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (capacidade para casar), pelo que nenhuma delas se considera competente para
resolver a questão: PT → BRA → ITA → BRA

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

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A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, surgindo 2 modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.


DS

L1 L2 contrária ao
reenvio L3

art. 49º lei BRA lei ITA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

art. 28º LN L2 = L3 L3 = L3

7ºR O enunciado diz-nos que o BRA é contrário ao reenvio, o que significa que faz uma
referência material ao direito de L3 (L2 aplica L3).

O direito ITA pratica devolução simples, o que significa que faz 2 referências: num 1º
momento faz uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L2; num 2º
momento, vão ficcionar uma referência material de L2 para L3 (dá-se uma oportunidade a L2 para
resolver, mas como já se sabe que vai enviar novamente para L3, a própria L3 ficciona essa
referência). Isto significa que a lei ITA considera-se competente (L3 aplica L3).

Assim, temos harmonia de julgados, já que a lei BRA aplica a lei ITA e a lei ITA considera-se
competente.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 17º neste caso, uma vez que se trata de transmissão de
competências com inclusão de retorno, porque a lex causae remeteu a competência para uma
3ª lei (L3), mas houve uma devolução ou retorno para uma lei que já tinha sido chamada como
competente (L2).

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A. O art. 17º nº1 apresenta dois requisitos: (1) a lei do foro remete para uma legislação que
não se considera competente e esta, por sua vez, remete para uma 3ª lei; e (2) esta 3ª lei tem que
se considerar, direta ou indiretamente, competente.

Neste caso, L1 remeteu para L2, que não se considerou competente. L2, através das suas
normas de conflitos, remete para L3, que não se considera diretamente competente. Em vez
disso, e porque pratica a devolução simples, faz uma primeira referência global para as normas
materiais e de conflitos de L2 e ficciona uma segunda referência material para as próprias normas
de L3. Assim, L3 considera-se indiretamente competente, o que preenche os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio e aplicamos a lei italiana.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos: (1) em matérias de estatuto pessoal, quando L2 é
chamada a título de lei da nacionalidade; e (2) o indivíduo tem RH em PT ou tem RH em país
cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da nacionalidade.

No caso, a lei BRA (L2) foi chamada enquanto lei da nacionalidade, e estamos perante uma
matéria de estatuto pessoal (este requisito está preenchido); além disso, a interessada tinha RH
em ITA, mas a lei ITA não considera competente as normas materiais de L2 (como vimos, a lei ITA
considerou-se indiretamente competente para resolver a questão, por meio da devolução
simples).

Assim, não estando cumulativamente preenchidos os requisitos, não podemos accionar este
artigo para paralisar o reenvio.

Ao aceitarmos o reenvio, significa que os tribunais PT vão aplicar o direito material ITA, e de
acordo com o direito material ITA, o casamento é anulável por falta de capacidade núbil de C.

Nesse sentido, temos que ponderar a aplicação do art. 19º para paralisar o reenvio, de modo
a conservar o negócio jurídico, permitindo a sua validade e garantindo a vontade dos nubentes.
Assim, este art. aplica-se quando, pelas regras do reenvio, o negócio jurídico é inválido ou
ineficaz e, pela aplicação do art. 16º, o negócio seria válido ou eficaz.

Neste caso, sendo PT um Estado antidevolucionista nos termos do art. 16º, quando manda
aplicar L2, faz referência às suas normas materiais. Deste modo, se PT aplicasse a lei BRA (L2), o
casamento seria eficaz.

Assim, paralisamos o reenvio pela aplicação do art. 16º e consideram-se competentes as


normas materiais BRA, de modo a garantir a validade e conservação do negócio jurídico,
permitindo que o casamento seja válido.

b)

Continua a ser aplicável o art. 49º CC, que manda aplicar a lei pessoal, que em conjunto com
o art. 31º nº1, é a lei da nacionalidade, a lei PT.
2ºEP Porque está em causa uma matéria de capacidade negocial de gozo para casar, estamos
no âmbito das matérias de estatuto pessoal, elencadas no art. 25º CC. As matérias de estatuto
pessoal são estados, qualidades ou situações que, por afetarem a pessoa na totalidade da sua
esfera jurídica ou num setor importante, o legislador entendeu submeter a uma legislação
definida em função desses mesmos estados, qualidades ou situações (definição de ISABEL DE
MAGALHÃES COLLAÇO).

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Isto resulta do princípio da unidade e estabilidade do estatuto pessoal: por estarem em causa
um conjunto de matérias que se referem à identidade dos sujeitos, o legislador decidiu submetê-
las a uma única lei, independentemente do lugar onde as pessoas se encontrem - a lei pessoal.
Resulta também de um afloramento do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP): a
ideia de que há um conjunto de direitos adquiridos no país de origem, no país da nacionalidade,
que devem ser assegurados ao sujeito em qualquer lugar - este reconhecimento é feito,
nomeadamente, através da aplicação da lei pessoal, da lei da nacionalidade.

5ºEP No entanto cabe-nos ainda verificar se há algum desvio à aplicação da lei pessoal, uma
vez que queremos validar o negócio jurídico, por se tratarem de matérias de estatuto pessoal,
nomeadamente uma questão de capacidade. O que invalida aqui o casamento é a falta de
capacidade de P para celebrar este negócio; assim, podemos verificar se se preenche algum dos
desvios à aplicação da lei pessoal em favor de uma outra lei.

O art. 31º nº2 CC, relativo a negócios jurídicos celebrados no estrangeiro, apresenta-se não
como um verdadeiro desvio à aplicação da lei pessoal, mas como um desvio à aplicação da lei
da nacionalidade enquanto lei pessoal; isto porque, em vez de aplicarmos a lei da nacionalidade,
aplicamos a lei da RH. Na RH o elemento de conexão tem uma legitimidade semelhante em
matérias de estatuto pessoal para resolver estas situações.

Este desvio justifica-se para proteger a confiança do declarante, no caso, o nubente, na


validade de um negócio jurídico de estatuto pessoal celebrado de acordo com a lei da RH no país
da RH - princípio da tutela da confiança.

O desvio aplica-se quer esteja em causa um nacional PT ou nacional estrangeiro (no nosso
caso, P tem nacionalidade PT) e aplica-se quando está em causa um negócio estritamente
pessoal, que é o caso do casamento, daí que se fale da capacidade de gozo.

Para admitirmos o desvio, temos de verificar 4 requisitos: temos que ter (1) um negócio
jurídico que é inválido segundo a lei pessoal; (2) celebrado no lugar da RH; (3) de acordo com a
lei da RH; e (4) a lei da RH tem que se considerar competente para resolver esta matéria.

Então, primeiramente, o negócio tem de ser inválido segundo a lei pessoal. Já vimos que este
requisito está preenchido, já que de acordo com a lei PT, o casamento é anulável por
impedimento dirimente absoluto (demência notória, mesmo durante os intervalos lúcidos).

O segundo requisito exige que o negócio jurídico tenha sido celebrado no país da RH. Neste
caso, P e C residem em ITA e o negócio foi celebrado em ITA, pelo que este requisito está, desde
logo, preenchido. Exige-se ainda que o negócio tenha sido celebrado segundo a lei da RH.

A aplicação destes requisitos é cumulativa, pelo que, não estando um deles preenchido,
vamos ter que afastar, eventualmente, o desvio. No entanto, pode haver a possibilidade de
realizar uma interpretação extensiva, que pode acontecer em duas vertentes: (1) é possível
admitirmos negócios jurídicos que, apesar de não terem sido celebrados no país da RH, são
celebrados de acordo com a lei da RH; ou (2), podemos admitir negócios jurídicos que, não
sendo celebrados no país da RH, foram celebrados num 3º país, de acordo com uma 3ª lei que é
competente de acordo com a lei da RH.

No presente caso, o negócio jurídico foi celebrado na RH, em ITA, mas falta ainda ver outro
requisito: a lei da RH tem que se considerar competente.

L1

art. 49º

art. 31º nº1

lei da nacionalidade

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Não estando os requisitos cumulativamente preenchidos, não se pode aplicar o desvio.

Não se aplicando este desvio, podemos ver porque não se podem aplicar igualmente os
restantes desvios à aplicação da lei pessoal: o art. 47º CC é aplicado à capacidade para
constituir direitos reais sobre imóveis; o art. 28º CC (art. 11º CRoma e 13º Roma I) porque este
regula questões de capacidade de exercício.

Não se aplicando nenhum dos desvios à lei pessoal, mantemos a solução a que chegamos
pela aplicação da regra do art. 49º e 31º nº1 CC e vamos aplicar ao caso concreto a lei PT, e
aplicando a lei PT o casamento é anulável, pelo que o pai de P teria legitimidade, nos termos do
art. 1639º nº1 para invocar a anulabilidade.

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Caso nº2

Anna, de nacionalidade norte-americana, nasceu e residiu em Nova Iorque até aos 25 anos,
altura em que mudou a sua residência habitual para a Roménia. Em Janeiro de 2014, Anna,
enquanto passeava em Bucareste, é atropelada por um camião da Intertrans Inc., sociedade
comercial, com sede estatutária em Amsterdão, mas cujo conselho de administração e
assembleia geral se reúnem habitualmente em Lisboa. Em resultado deste atropelamento, Anna
acaba por falecer, deixando bens imóveis em Portugal, onde reside a sua família paterna.
Em Janeiro de 2015, o pai de Anna propõe uma ação em tribunais portugueses contra a
Intertrans Inc., pedindo uma indemnização, de acordo com a lei portuguesa, pelos danos morais
próprios que este sofreu com a morte da sua filha no referido acidente de viação. A Intertrans Inc.
contesta alegando que nenhuma indemnização é devida, pois aplica-se ao caso o direito romeno,
que não reconhece nenhum direito de indemnização ao pai por danos próprios resultantes da
morte do seu familiar.

Admitindo que:
1. O estatuto sucessório é regulado pela lei nova-iorquina pela lei de residência habitual do
autor da sucessão e pela lei romena, em relação aos bens imóveis pela lei do lugar da situação do
imóvel.
2. Os tribunais nova-iorquinos praticam a dupla devolução e a Roménia é um Estado contrário
ao reenvio.
3. Nos Estados Unidos vigora um ordenamento jurídico complexo e não existe direito interlocal
ou Direito Internacional Privado unificado.
4. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

a) Indique, fundamentando devidamente a resposta e analisando os argumentos invocados


pelas partes, qual a lei aplicável à pretensão do pai de Anna.
b) Suponha que o pai quer pedir a abertura da sucessão de Anna. Indique fundamentando
devidamente a resposta qual a lei aplicável à sucessão de Anna?

a)

1ºRII A pretensão do pai de A é a obtenção de uma indemnização por danos morais sofridos
por ocasião do falecimento da filha, provocado pelo atropelamento por um veículo da sociedade
Intertrans Inc. Está em causa responsabilidade extracontratual, visto que não há relação entre
as partes envolvidas e está em causa a violação de um direito absoluto (o direito à vida).

2ºRII Para resolução de uma questão de responsabilidade civil extracontratual podemos


recorrer ao Regulamento Roma II, se estiverem preenchidos os seus âmbitos de aplicação
material, temporal e espacial. Caso não estejam preenchidos esses âmbitos, temos de recorrer
ao art. 45º CC, que é a norma de conflitos que regula a responsabilidade civil extracontratual.

O âmbito material está consagrado nos arts. 1º e 2º Roma II. Aplicamos o Regulamento
Roma II quando esteja em causa um conflito de leis em situações que envolvam obrigações
extracontratuais. No presente caso: houve a violação de um direito absoluto, o direito à vida
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(houve um atropelamento que provocou a morte a A); entre A e a sociedade I não existe qualquer
relação contratual; há efetivamente obrigações extracontratuais (há danos não patrimoniais
pedidos pelos pais de A); e há um conflito de leis (A tem nacionalidade EUA e reside na ROM, a
sociedade I tem sede principal e efetiva em PT, e o acidente aconteceu na ROM - várias leis
podem ser chamadas a resolver a questão).

Há um conjunto de situações elencadas no nº2 do art. 1º que são excluídas da aplicação


deste âmbito material. Os factos que digam respeito a uma dessas questões são afastados da
aplicação do Regulamento Roma II. Apenas ressalvar a alínea g) do nº2 do art. 1º, respeitante às
“obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida privada e dos direitos de
personalidade”, em relação à qual temos de fazer uma interpretação restritiva e sistemática: a
ofensa à integridade física é uma violação de um direito de personalidade, pelo que se fossemos
por uma interpretação literal desta alínea, esta situação prática estaria excluída de Roma II.
Assim, com fundamento nos considerandos 17, 20 e 33 de Roma II, incluímos no âmbito material
de Roma II os direitos de personalidade (regra), excluindo apenas as situações em que a violação
decorrer de um delito de imprensa. O primeiro âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 3º Roma II. Este artigo indica que o regulamento é
de aplicação universal, o que quer dizer que qualquer lei indicada pelas normas de conflitos de
Roma II é aplicável, ainda que pertença a um Estado não participante da assinatura do
regulamento. O segundo âmbito está automaticamente preenchido.

O âmbito temporal está consagrado no art. 32º Roma II. Nos seus termos, o regulamento é
aplicável a factos ocorridos após 11 de janeiro de 2009. No caso prático, o acidente ocorreu em
janeiro de 2014, logo já vigorava o regulamento.

Este âmbito está, também, preenchido (se não estivesse aplicávamos o art. 45º CC).

3ºRII A este regulamento está subjacentes uma série de princípios (7): autonomia da vontade;
tendência para a especialização das normas de conflitos; primazia pelo meio social comum; lex
loci delicti commissi; equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas
de conflitos; reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI; reconhecimento de efeitos
às NAI.

O princípio da autonomia da vontade permite às partes escolher a lei aplicável (art. 14º).

O princípio da tendência para a especialização das normas de conflitos expressa a intenção


do legislador de regular as situações específicas em que há interesses próprios, através de
normas pensadas especificamente para esses interesses (ex: arts. 5º a 12º).

O princípio da primazia pelo meio social comum faz prevalecer, através da escolha da lei que
está mais próxima das partes (princípio da proximidade) a aplicação da lei da RH comum da
pessoa cuja responsabilidade se quer apurar e do lesado no momento em que ocorre o dano (art.
4º nº2).

O princípio lex loci delicti commissi consagra a lei do lugar do delito na modalidade de lugar
do dano dano direto, em detrimento do lugar da prática do facto (art. 4º nº1).

O princípio do equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas de


conflitos indica que as normas de conflitos que indicam a lei aplicável devem ser equilibradas
com aquelas que fazem prevalecer a lei da conexão mais estreita ou mesmo que conferem poder
às regras de segurança e de conduta, de modo a atingir um resultado mais justo (art. 17º).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI permite que o juiz do


foro não esteja vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro (art. 26º).

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O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI dita que as competências legislativas


decorrentes de Roma II não prejudicam a aplicação de normas materiais de aplicação imediata
do Estado do foro.

4ºRII O art. 15º Roma II fala-nos do alcance da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar que é que a lei aplicável irá regular: os
fundamentos da responsabilidade civil, as pessoas que têm direito a uma indemnização, a
responsabilidade por parte de outrem, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de ressarcimento, danos


sofridos e violação de direitos absolutos, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento
irá regular, nos termos da al. c), a natureza dos danos e a eventual reparação dos mesmos e, nos
termos da al. f), as pessoas com direito à reparação do dano pessoalmente sofrido.

5ºRII Analisado o âmbito da lei aplicável, e porque Roma II consagra o princípio da tendência
para a especialização das normas de conflitos, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. As normas especiais encontram-se nos arts. 5º a 12º.

Neste caso há a violação de um direito absoluto, pelo que não há nenhuma norma especial
que regule esta situação. Por isso, aplicamos as regras gerais, que são duas: o art. 14º que
consagra o princípio da autonomia da vontade, se houver escolha de lei; e o art. 4º.

No caso não houve escolha de lei, por isso aplica-se a norma de conflitos subsidiária: a
regra geral em matéria de responsabilidade civil extracontratual - o art. 4º.

O princípio fundamental nesta matéria, por onde devemos começar, é a primazia do meio
social comum, presente no nº2. Este princípio é concretizado através do elemento de conexão
RH comum do lesado (quem sofreu o dano) e da pessoa cuja responsabilidade é invocada (cuja
responsabilidade se quer apurar no processo) e é uma conexão definida em função do princípio
da proximidade e do princípio da confiança porque, em regra, esta lei (RH) é aquela que as partes
melhor conhecem e com a qual habitualmente conformam o seu comportamento, aumentando
assim a previsibilidade de aplicação. No caso em apreço, A reside na ROM e a sociedade I tem
RH presumida (nos termos do art. 23º nº1) em PT, pelo que não temos uma RH comum, o que
implica a não aplicação no nº2.

No nº1, subsidiariamente, encontramos concretizado o princípio da lex loci delicti commissi


enquanto lei do lugar do dano. Está em causa um dano direto, um dano real, e não os danos
indiretos (as consequências, aqueles que resultaram de um dano direto). Esta é uma conexão
objetiva com o delito, que promove a certeza e a segurança jurídica, a harmonia de julgados, e
está associada à função compensatória da responsabilidade civil. Neste caso, o lugar da violação
do bem jurídico, ou seja, o lugar onde foi atropelada A foi na ROM. Apesar de o pedido abranger
os danos morais sentidos em PT, estes encontram-se aqui a título de danos reflexos do dano
principal, que foi o atropelamento. Pela aplicação deste art. chegamos à aplicação da lei ROM.

No entanto, cabe ainda verificar se é possível aplicar a cláusula de exceção que resulta do
art. 4º nº3 e que flexibiliza a norma: de acordo com este nº3, se existir uma lei que tenha uma
conexão mais estreita com a situação do que aquela que resulta do nº1 ou nº2, vamos poder
aplicar essa lei. No entanto, esta norma exige uma prévia relação entre as partes que tenha
ligação com a responsabilidade civil extracontratual; só esta relação prévia, normalmente
contratual, é que vai justificar o afastamento do nº1 e nº2 e a aplicação de outra lei. Ora, neste
caso prático, e pelos dados que nos são dados, não podemos concluir que exista uma outra lei
que tenha uma maior conexão que a lei ROM (não havia qualquer relação prévia entre A e a
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sociedade I). Não havendo uma lei que tenha uma conexão mais próxima com a situação do caso
concreto, vamos aplicar a lei ROM.

Em conclusão, é a lei ROM que, nos termos do art. 15º al. f), irá determinar quais a as pessoas
que têm direito à reparação em resultado do dano ocorrido na ROM, nomeadamente se os
terceiros familiares que sofreram prejuízos em resultado dos danos podem ser indemnizados.

b)

1ºR No caso em apreço importa saber qual a lei que irá regular a abertura da sucessão pela
morte de A.

2ºR Se é uma questão sobre a lei reguladora do estatuto sucessório, há uma norma de
conflitos que trata em específico a matéria das sucessões: o art. 62º. Assim, a lei do foro (L1) irá
aplicar o art. 62º para saber qual a lei aplicável à abertura da sucessão. A consequência jurídica
desta norma de conflitos é a lei pessoal ao tempo do falecimento que, conjugada com o art. 31º
nº1, significa que L2 será a lei da nacionalidade do autor da sucessão ao tempo do falecimento.

A tem nacionalidade norte-americana.

3ºR Antes de mais, cabe fazer algumas considerações quanto à interpretação e


concretização deste elemento de conexão - a nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 62º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

No entanto, os EUA são um ordenamento plurilegislativo de base territorial, pois são


constituídos por várias ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território; esta questão
é resolvida nos termos do art. 20º CC. Este artigo apresenta um requisito prévio: só se aplica se
a remissão para o ordenamento plurilegislativo (OP) for feita para a lei da nacionalidade, em
matéria de estatuto pessoal, o que aconteceu neste caso.

Assim, de acordo com o art. 20º nº1, em primeiro lugar recorremos ao chamado direito
interlocal unificado do OP, que são normas que regulam o conflito de leis no direito interno,
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dando a oportunidade ao próprio ordenamento jurídico para resolver o problema, em nome da


harmonia de julgados; no enunciado é dito que não existe, pelo que não se aplica este nº1. O art.
20º nº2 1ª parte manda aplicar o DIP unificado do OP, o que também não existe. Por fim, o nº2 in
fine manda aplicar a lei da RH do interessado.

Em relação à aplicação da lei da RH do interessado no âmbito dos OP, há uma divergência


doutrinal em torno da questão de a lei da RH ser aplicável ou não onde quer que era se situe
(dentro ou fora do OP): FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO defendem uma interpretação literal
do artigo, aplicando a lei da RH, independentemente de esta se situar dentro ou fora do OP em
questão; já ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO considera que só se aplica a lei da RH se esta se situar
dentro do OP, fazendo uma interpretação restrita da norma baseada no facto de em DIP,
nomeadamente em matérias de estatuto pessoal, existir uma preponderância da conexão
nacionalidade, em comparação com a conexão RH. É esta última posição que seguimos, fazendo
uma restrição teleológica do art. 20º nº2, para compatibilizar com o espírito do sistema das
normas de conflitos. Seguindo esta doutrina, temos uma lacuna oculta e não há nenhum preceito
legal que nos permita resolver esta questão; como falta um caso análogo, vamos recorrer à
norma que o intérprete criaria se tivesse que legislar dentro do sistema de DIP. Neste sentido,
vamos aplicar a lei da ordem jurídica local com a qual o interessado tem a conexão mais estreita
que, neste caso, é a do estado de NI (A nasceu e residiu em NI, e não existe referência a outra
ordem jurídica local).

Com efeito, L2, a lei da nacionalidade, é a lei do estado de NI.

4ºR A lei de NI (L2) não se considera competente para resolver a questão e manda aplicar a lei
da RH do autor da sucessão, neste caso, a lei ROM (L3). A lei ROM também não se considera
competente e remete as matérias sucessórias para a lex rei sitiae, ou seja, a lei PT.

L1 L2 L3

art. 62º lei NI lei ROM

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (substância das sucessões), pelo que nenhuma delas se considera competente
para resolver a questão: PT → NI → ROM → PT

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei

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que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla
devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional. No entanto, a devolução simples não funciona no sentido de gerar
harmonia de julgados quando todos os países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora. Como o próprio nome
indica, o tribunal do Estado do foro deve julgar como julgam os tribunais da lex causae, a lei que
se considera competente, exatamente da mesma forma. Bem como na teoria da devolução
simples, a teoria da dupla devolução não funciona no caso de ambos os Estados em questão
praticarem a dupla devolução.

contrária ao reenvio

L1 L2 L3

DD
art. 62º lei NI lei ROM

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

L2 = L3 = L1 L3 = L1

Este é um esquema de retorno indireto, porque houve uma devolução ou retorno para a lei do
foro por uma lei considerada competente pela lex causae.

7ºR O enunciado diz-nos que a lei de NI pratica dupla devolução, o que significa que se
compromete a julgar a causa como julgariam os tribunais da lei para a qual as suas normas de
conflitos remeteram. Assim, vai-se comprometer a julgar a causa de acordo com L3, tal como
julgam os tribunais ROM. Cabe-nos agora saber como julgam os tribunais ROM.

A lei ROM é contrária ao reenvio, o que significa que faz uma referência material para L1, ou
seja, aplica o direito material PT.

Isto significa que L3 aplica L1; e como L2 se compromete a julgar a causa como julgam os
tribunais de L3, se os tribunais ROM vão aplicar a lei PT, NI também vai aplica a lei PT. Assim,
temos harmonia de julgados.

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8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 18º neste caso, uma vez que se trata de retorno indireto (houve
devolução da competência para a lei do foro).

A. O art. 18º nº1 tem como requisito que a norma de conflitos da lei aplicável (L2) remeta para
o direito interno PT. Foi o que aconteceu ja que L2, através da dupla devolução, julgando como
julgariam os tribunais de L3, considera competente L1, a lei PT. Assim, L1 considera-se
indiretamente competente, o que preenche os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos, cujo preenchimento cumulativo é necessário para a
aceitação do retorno: (1) estarem em causa matérias de estatuto pessoal; e (2) o indivíduo ter RH
em PT ou ter RH num país cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno PT.

No caso, estamos perante uma matéria de estatuto pessoal, as sucessões por morte (este
requisito está preenchido); além disso, o interessado tinha RH na ROM, e a lei ROM considera
diretamente competentes as normas materiais de L1 (como vimos, a lei ROM faz uma referência
material para a lei PT).

Assim, estando cumulativamente preenchidos os requisitos, há retorno para a lei PT.

Ao aceitarmos o reenvio, significa que é a lei PT que irá decidir a sucessão de A.

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Caso nº3

Em Janeiro de 2016, Leonor, de nacionalidade brasileira e residente em Genebra, resolve visitar


os seus pais que residem em Braga. Para fazer a viagem, Leonor contratou o transporte entre
Genebra e Braga com a EuroExpress, uma sociedade comercial com sede em Lisboa cuja
atividade consiste no transporte rodoviário de passageiros, tendo sido escolhida para regular o
contrato a lei luxemburguesa. No dia da partida, já na estação de autocarros, Leonor é informada
que, por terem sido vendidos mais bilhetes do que os lugares existentes no autocarro, a sua
viagem só poderá ser efetuada no dia seguinte. Face aos poucos dias de férias que tirou para
visitar os pais, Leonor considera que esta alternativa inviabilizaria a viagem e resolve dirigir-se a
outra empresa de transporte rodoviário, onde acaba por comprar novo título de transporte. Este,
todavia, por ser comprado no dia da viagem, custou o dobro do preço do anterior título de
transporte que tinha adquirido.
Já em Portugal e após contactos com a EuroExpress, Leonor dirige-se a tribunal e, de acordo
com a lei portuguesa, exige a restituição do valor pago pelo título de transporte adquirido e de
uma indemnização pelos prejuízos que sofreu pelo excesso de reservas feito pela EuroExpress,
nomeadamente, o pagamento do dobro do valor pelo título de transporte. A EuroExpress aceita
devolver a quantia paga pelo título de transporte, mas recusa o pagamento de qualquer valor
adicional, invocando, para o efeito, a lei luxemburguesa que considera aplicável ao caso.

Admitindo que:
1. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.
2. De acordo com a lei luxemburguesa, além da devolução do valor pago pelo título de
transporte, não são devidas quaisquer outras quantias adicionais quando for disponibilizada uma
alternativa de viagem nas 24 horas seguintes à hora de partida. O conteúdo da lei suíça, neste
caso, coincide com a lei portuguesa.
3. O estatuto pessoal é regulado no direito brasileiro pela lei de residência habitual do indivíduo
e no direito suíço pela lei de nacionalidade.
4. O direito brasileiro pratica a referência material e o direito suíço a devolução simples.

Fundamentando devidamente as respostas, diga:


a) Se a pretensão de Leonor em relação à EuroExpress será procedente.
b) Qual a lei pessoal da Leonor.

a)

1ºCRI É necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre L e a sociedade
EuroExpress para saber se A podia ou não exigir, além da restituição do valor pago pelo bilhete
comprado à empresa, a indemnização no valor do dobro do preço do bilhete. Como estão em
causa obrigações contratuais, vamos ponderar a aplicação de Roma I ou CRoma.

2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
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setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 2016, o diploma a aplicar é Roma I.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º Roma I. Aplicamos o regulamento quando


estejam em causa obrigações contratuais em matéria civil e comercial que envolvam conflitos de
leis, excluindo as matérias elencadas no nº2 e nº3 deste artigo. No presente caso: temos um
contrato celebrado entre L e a sociedade EuroExpress, que tem ligações com BRA, SUÍ, PT e
LUX. Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º Roma I. Este artigo indica que a lei indicada
pelas normas de conflitos deste regulamento é aplicada, quer pertença ou não a um Estado-
membro. Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A este regulamento estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da
vontade; proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de
efeitos às NAI; reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 6º) e contrato individuais de trabalho (art. 8º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 9º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº3) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 21º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 12º Roma I fala-nos do âmbito da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá regular: a
interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de indemnização por


incumprimento do contrato, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento irá regular,
nos termos da al. c), as consequências do incumprimento total ou parcial das obrigações
contratuais.

5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral.

No caso, há uma norma especial que regula os contratos de transporte de passageiros - art
5º nº2. Esta norma visa a proteção do passageiro enquanto parte mais fraca, pois é a parte que
tem menos experiência no tráfego internacional de passageiros, e tem uma menor organização
(comparada com a transportadora).

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O art. 5º nº2 2ª parte permite a escolha de lei, ou seja, dá liberdade às partes para
escolherem, de acordo com os seus interesses, qual a lei que melhor os pode tutelar, garantindo
uma maior certeza e previsibilidade de aplicação (princípio da autonomia da vontade).

Se houver escolha de lei, têm de verificar-se os requisitos do art. 3º: (1) as partes só podem
escolher a lei de 1 Estado (argumento literal que se retira do art. 1º e 2º); (2) pode abranger a
totalidade ou parte de contrato; (3) pode ser expressa ou tácita; (4) pode ser anterior ou posterior
à celebração do contrato; (5) não pode prejudicar a aplicação das disposições imperativas da lei
do Estado no qual se situem todos os elementos relevantes da situação no momento da
celebração. Neste caso houve escolha expressa, à totalidade do contrato (nada é dito em
contrário), da lei de um Estado (LUX), pelo que a escolha é válida nos termos do art. 3º.

De qualquer modo, de maneira a proteger a parte mais vulnerável nesta relação (o passageiro),
o legislador de Roma I restringe as leis passíveis de escolha pelas partes às elencadas no nº2:
RH do passageiro; RH do transportador; administração central do transportador; local de partida;
ou local de destino. No caso, a lei LUX não corresponde a nenhuma das hipóteses elencadas,
pelo que a escolha é inválida.

Sendo a escolha inválida, aplica-se a conexão subsidiária: a RH do passageiro. No caso, L


reside na SUÍ, que corresponde também ao local de partida. Logo, será competente a lei SUÍ,
que tem um conteúdo similar à lei PT.

A pretensão de L será procedente.

[L não invocou em tribunal a lei SUÍ, mas isso não terá nenhuma repercussão porque, de
acordo com o art. 348º nº1 e nº2 CC, as partes não têm o ónus de invocação do direito
estrangeiro, este cabe ao tribunal]

b)

1ºEP Na presente questão queremos averiguar qual a lei pessoal de L, pelo que estamos
perante uma matéria de estatuto pessoal.

2ºEP As matérias de estatuto pessoal (elencadas no art. 25º CC) são estados, qualidades ou
situações que, por afetarem a pessoa na totalidade da sua esfera jurídica ou num setor
importante, o legislador entendeu submeter a uma legislação definida em função desses mesmos
estados, qualidades ou situações (definição de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO).

3ºEP O art. 25º CC, enquanto norma geral, conjugado com o art. 31º nº1 diz-nos que a lei
pessoal é a lei da nacionalidade. O art. 25º não tem elemento de conexão; o elemento de
conexão está no art. 31º nº1. Assim, é a lei da nacionalidade que se aplica, por regra, às matérias
de estatuto pessoal.

Isto resulta do princípio da unidade e estabilidade do estatuto pessoal: por estarem em causa
um conjunto de matérias que se referem à identidade dos sujeitos, o legislador decidiu submetê-
las a uma única lei, independentemente do lugar onde as pessoas se encontrem - a lei pessoal.
Resulta também de um afloramento do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º CRP): a
ideia de que há um conjunto de direitos adquiridos no país de origem, no país da nacionalidade,

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que devem ser assegurados ao sujeito em qualquer lugar - este reconhecimento é feito,
nomeadamente, através da aplicação da lei pessoal, da lei da nacionalidade.

Com efeito, nos termos do art. 25º e art. 31º nº1 CC, a lei da nacionalidade de L é BRA.

4ºR A lei BRA (L2) não se considera competente e manda aplicar a lei da RH do indivíduo,
neste caso, a lei SUÍ (L3) que, por sua vez, também não se considera competente e manda
aplicar a lei da nacionalidade, BRA (L2).

L1 L2 L3

art. 25º lei BRA lei SUÍ

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (estatuto pessoal), pelo que nenhuma delas se considera competente para
resolver a questão: PT → BRA → SUÍ → BRA

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla
devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
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Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional. No entanto, a devolução simples não funciona no sentido de gerar
harmonia de julgados quando todos os países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora. Como o próprio nome
indica, o tribunal do Estado do foro deve julgar como julgam os tribunais da lex causae, a lei que
se considera competente, exatamente da mesma forma. Bem como na teoria da devolução
simples, a teoria da dupla devolução não funciona no caso de ambos os Estados em questão
praticarem a dupla devolução.


DS

L1 L2 L3

RM
art. 25º lei BRA lei SUÍ

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

L2 = L3 L3 = L3

Este é um esquema de transmissão de competência com inclusão de retorno, porque a lex


causae remeteu para uma 3ª lei (L3), mas houve uma devolução ou retorno para uma lei que já
tinha sido chamada como competente (L2).

7ºR O enunciado diz-nos que a lei BRA pratica referência material, o que significa que remete
para o direito material SUÍ, não admitindo o reenvio (L2 aplica L3).

A lei SUÍ pratica devolução simples, o que significa que faze 2 referências: num 1º momento
faz uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L2; num 2º momento,
ficciona uma referência material de L2 para L3 (dá uma oportunidade a L2 para resolver, mas
como já se sabe que vai enviar novamente para L3, a própria L3 ficciona essa referência), e
considera-se indiretamente competente (L3 aplica L3).

Assim, temos harmonia de julgados.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 17º neste caso, uma vez que se trata de transmissão de
competências (a lex causae remete para uma 3ª lei), mesmo havendo inclusão de retorno, já que
o retorno não é para a lei do foro (só nesse caso se aplicaria o art. 18º).

A. O art. 17º nº1 apresenta dois requisitos: (1) a lei do foro remete para uma legislação que
não se considera competente e esta, por sua vez, remete para uma 3ª lei; e (2) esta 3ª lei tem que
se considerar, direta ou indiretamente, competente.

Neste caso, L1 remeteu para L2, que não se considerou competente. L2, através das suas
normas de conflitos, remete para L3, que não se considera diretamente competente. Em vez
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disso, e porque pratica a devolução simples, faz uma primeira referência global para as normas
materiais e de conflitos de L2 e ficciona uma segunda referência material para as próprias normas
de L3. Assim, L3 considera-se indiretamente competente, o que preenche os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos: (1) em matérias de estatuto pessoal, quando L2 é
chamada a título de lei da nacionalidade; e (2) o indivíduo tem RH em PT ou tem RH em país
cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da nacionalidade.

No caso, a lei BRA (L2) foi chamada enquanto lei da nacionalidade, e estamos perante uma
matéria de estatuto pessoal (este requisito está preenchido); além disso, o interessado tinha RH
na SUÍ, mas a lei SUÍ não considera competente as normas materiais de L2 (como vimos, a lei
SUÍ considerou-se indiretamente competente para resolver a questão, por meio da devolução
simples).

Assim, não estando cumulativamente preenchidos os requisitos, não podemos accionar este
artigo para paralisar o reenvio.

Assim sendo, o estatuto pessoal de L é regulado pela lei SUÍ.


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Caso nº 4

Albert, de nacionalidade portuguesa e francesa, e Manon, de nacionalidade francesa, residiam


em Londres. Em 2007, para comemorar os 60 anos que ambos tinham acabado de celebrar,
resolvem casar, aproveitando para o efeito umas breves férias em Portugal. Em Janeiro de 2008,
resolvem fixar a sua residência em Lisboa. Em Agosto do mesmo ano, compram uma casa em
Formentera (Espanha) a António (residente em Londres). O contrato foi celebrado em Lisboa,
tendo o casal pago imediatamente metade do valor de compra e assumindo o compromisso de
pagar a restante metade até ao final do ano, não tendo sido escolhida a lei aplicável ao contrato.
Em Setembro de 2008, Alberto e Manon passam a viver em casas separadas, ainda em Lisboa.
Em Março de 2009, não tendo recebido o remanescente do preço e após várias interpelações
para pagamento a Alberto e Manon, António propõe perante tribunais portugueses uma ação de
condenação para pagamento da totalidade dívida em falta contra Manon. Manon contesta
invocando que, apesar do art. 1691º, nº1, al. a) do Código Civil português, a sua responsabilidade
por aquela dívida não é solidária, nos termos dos arts. 1695º, nº2 e 1720º, nº1, al. b) do CC
português e que, por isso, só seria responsável por metade da dívida. António replica, invocando
que a lei aplicável ao contrato é a lei espanhola, que não tem normas similares aos arts. 1695º, nº2
e 1720º, nº1, al. b) do CC português.

Admitindo que:
1. O regime bens é regulado pelo direito londrino pela lei do lugar da celebração do
casamento.
2. As relações gerais entre os conjugues são reguladas no direito londrino pela lei da
residência habitual comum dos cônjuges.
3. Os tribunais londrinos praticam a dupla devolução.
4. No Reino Unido vigora um ordenamento jurídico complexo e não existe direito interlocal ou
Direito Internacional Privado unificado.
5. O direito espanhol e o direito londrino não têm uma norma idêntica aos arts. 1695º, nº2 e
1720º, nº1, al. b) do Código Civil português.
6. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

a) Qual a lei que regula a substância do contrato celebrado?


b) Deve ser considerada procedente a pretensão de Manon?

a)

1ºCRI Estamos perante a seguinte pretensão: An pediu a condenação de M ao pagamento do


valor em falta correspondente a metade do preço acordado no contrato de compra e venda de
um imóvel, realizado em agosto de 2008 entre M e Alb e M (casados). É necessário apurar a lei
que regula este contrato, para saber se An pode exigir esta prestação de M por incumprimento
contratual. Como estão em causa obrigações contratuais, vamos ponderar a aplicação do
regulamento Roma I ou da CRoma.

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2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de
setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 2008, o diploma a aplicar é a CRoma.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º CRoma. Aplicamos a convenção quando


estejam em causa obrigações contratuais que envolvam conflitos de leis, excluindo as matérias
elencadas no nº2, nº3 e nº4 deste artigo. No presente caso: temos um contrato celebrado entre
An e Alb e M, que tem ligações com PT, LON, ESP e FRA.

Este âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º CRoma. Este artigo indica que a sua aplicação
é universal: a lei indicada pelas normas de conflitos desta convenção é aplicada, quer pertença
ou não a um Estado-membro.

Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A esta convenção estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da vontade;
proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de efeitos às NAI;
reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 5º) e contrato individuais de trabalho (art. 6º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador; em
contrato individuais de trabalho (art. 6º).

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 7º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº1) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 16º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 10º CRoma fala-nos do âmbito de aplicação da lei do contrato. Atendendo à
pretensão e aos factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá
regular: a interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de condenação ao


pagamento de uma dívida decorrente do contrato, a lei a que vamos chegar pela aplicação do
regulamento irá regular, nos termos da al. c), as consequências do incumprimento total ou parcial
das obrigações contratuais.

5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;

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se não, resolvemos pela norma geral. Neste caso não há, pelo que vamos analisar a existência da
escolha de lei, que também não existe.

Assim, não havendo norma específica aplicável nem escolha de lei, recorre-se à norma
subsidiária: a regra geral do art. 4º - lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita
(princípio da proximidade). Os nºs 2, 3 e 4 fornecem presunções interpretativas para determinar
qual a lei com a conexão mais estreita: através do nº3, que se aplica ao caso em apreço,
presume-se a conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa, já que estamos perante
um contrato que tem por objeto um direito real sobre um bem imóvel.

Aplicando a conexão lex rei sitiae, presumimos que o contrato tem uma conexão mais estreita
com a lei ESP (art. 4º nº3).

Por isso, a lei que regula a substância do contrato é a lei ESP.

b)

1ºQ Através da sua contestação, M pretende que, pela aplicação dos arts. 1695º nº2 e 1720º
nº1 b) CC português, a sua responsabilidade não seja considerada subsidiária, de modo a pagar
apenas metade da prestação exigida por An. Para a aplicação da norma é necessário proceder à
qualificação da mesma, uma vez que se alguém invocar uma norma material tem de a qualificar.
Para saber se esta norma é aplicável ao caso, temos de a subsumir no conceito-quadro de uma
norma de conflitos, para em seguida fazer funcionar a consequência jurídica da norma, de
maneira a saber, neste caso, se a ordem jurídica PT é a competente.

2ºQ Quando dada norma de conflitos remete para determinada ordem jurídica, pode fazer dois
tipos de referência: uma referência aberta, quando remete para o conjunto das normas materiais
da lei designada; ou uma referência seletiva, quando a referência feita pelas normas de conflitos
à lei designada apenas compreende as normas materiais que pelo seu conteúdo e função vão
integrar o conceito-quadro da norma de conflitos.

É esta última que o legislador PT escolheu seguir, no art. 15º CC, já que só uma referência
seletiva permite salvaguardar os interesses que estão na base do elemento de conexão.

3ºQ A operação de qualificação tem três momentos: interpretação do conceito-quadro;


caracterização do objeto da qualificação; e qualificação em sentido restrito.

Num 1º momento decorre a interpretação do conceito-quadro designativo do objeto da


qualificação. Há 3 formas de interpretar o conceito-quadro, definidas em 3 teorias: de acordo
com o direito do foro; de acordo com o direito comparado; de acordo com o princípio da unidade
da ordem jurídica.

A 1ª interpretação é feita de acordo com a lei do foro, o que significa que os conteúdos
subsumíveis seriam os que correspondem a esse conceito no sistema material da lei do foro.
Afastamos esta interpretação porque: (1) restringe excessivamente o âmbito do conceito-quadro
(nega a aplicação em PT de institutos jurídicos estrangeiros desconhecidos do nosso direito
material, ou institutos jurídicos com conteúdo diferente no nosso direito material, ainda que visem
finalidades sociais idênticas); e (2) põe em causa as finalidades do próprio DIP, nomeadamente, o
princípio da confiança nas situações plurilocalizadas.

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A 2ª interpretação é feita de acordo com o direito comparado, através da tentativa de


encontrar conceitos idênticos nas leis estrangeiras. Também não seguimos esta interpretação
porque: (1) não permite captar o juízo de valor (a ratio) que está por trás de toda a norma de
conflitos, juízo esse que permite recortar devidamente o âmbito do conceito-quadro da norma de
conflitos; (2) é impossível encontrar conceitos únicos através do direito comparado.

A 3ª interpretação, adotada no ordenamento jurídico PT, decorre do princípio da unidade da


ordem jurídica. Aqui partimos da ideia de que o legislador que elaborou as normas de conflitos foi
o mesmo que elaborou as normas materiais internas. Assim, presumimos que os conceitos
utilizados pelas normas de conflitos, em princípio, exprimem os mesmos conteúdos jurídicos que
esses conceitos exprimem no direito material do Estado do foro. Mas além disso, aditamos a esta
interpretação um núcleo de preceitos ou institutos estrangeiros que exerçam uma função análoga
à função que compete às normas de direito interno e que se integram no conceito-quadro. Há
nesta fase um grau de autonomia do julgador em relação às normas materiais do foro, atendendo
também ao teor e finalidade da norma de conflitos para delimitar o conceito-quadro
(interpretação teleológica). Esta interpretação retira-se dos arts. 9º, 15º e 64º al. c) CC.

No caso em apreço está em causa o regime de bens no casamento. A normas de conflitos


potencialmente aplicáveis são: o art. 52º - cujo conceito-quadro aborda as relações gerais
entre os cônjuges; e o art. 53º - cujo conceito-quadro aborda a substância e efeitos das
convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional.

O 2º momento diz respeito à caracterização do objeto da qualificação, isto é, um dado


normativo que, em termos gerais, não é mais do que uma situação da vida corrente caracterizada
à luz de uma ordem jurídica. No nosso caso, o objeto da qualificação são os arts. 1695º nº2 e
1720º nº1 b) CC.

De acordo com o art. 15º, caracterizamos as normas materiais à luz da ordem jurídica a que
pertencem, por isso se a norma pertence à ordem jurídica PT, vamos apurar a sua ratio de acordo
com a ordem jurídica PT.

O art. 1720º nº1 al. b) CC impõe o regime imperativo de separação de bens porque pretende
combater o casamento-negócio, a realização do casamento por ostensivo interesse económico,
tendo em conta a idade do nubente. O art. 1695 nº2 CC estabelece que, salvo se os cônjuges se
obrigaram como devedores solidários, cada um responde pela parte que lhe compete, uma vez
que no domínio da separação de bens existe uma autonomia de cada um dos cônjuges
relativamente ao domínio, fruição e administração dos seus bens.

O 3º momento é a qualificação em sentido restrito ou subsunção das normas materiais no


conceito-quadro de uma norma de conflitos. Neste último momento tem de existir uma
correspondência funcional entre as normas materiais cuja aplicação está em causa e o conceito-
quadro de uma norma de conflitos.

Aqui fazemos uma qualificação lege fori (a partir da lei do foro) com base numa caracterização
lege causae (lei aplicável, a que a norma material pertence). Há também um grau de autonomia
do legislador: ele não está limitado de forma restrita ao conceito-quadro, mas tem de atender à
finalidade, ao teor da norma material e, de acordo com este conteúdo/função, averiguar em que
conceito-quadro das normas de conflitos potencialmente aplicáveis se enquadra, atendendo às
noções jurídicas que integram esse conceito-quadro.

No caso concreto, os arts. 1695º nº2 e 1720º nº1 b) CC, pelo conteúdo e função que têm na
ordem jurídica PT (art. 15º) são subsumíveis no conceito-quadro do art. 53º CC, já que estão em
causa relações patrimoniais entre os cônjuges.

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2ºR Descoberta a norma de conflitos que regula a questão (no caso, o art. 53º), temos de
apurar a sua consequência jurídica, de modo a saber se remete para a ordem jurídica PT, de
forma a podermos aplicar os arts. 1695º nº2 e 1720º nº1 b) CC. O art. 53º atribui competência à
lei da nacionalidade comum ao tempo da celebração do casamento. Ora, M tem nacionalidade
FRA, mas Alb tem dupla nacionalidade (PT e FRA).

3ºR Antes de resolver a questão em si da dupla nacionalidade, cabe fazer algumas


considerações quanto à interpretação e concretização deste elemento de conexão - a
nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 53º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

Neste caso em concreto, como não temos elementos no enunciado que nos permitam
pronunciar sobre o facto de PT e FRA terem atribuído a nacionalidade a Alb, presumimos que os
pressupostos de atribuição da nacionalidade estão preenchidos. O problema que cabe resolver é
mesmo o concurso de nacionalidades.

Para decidir qual a nacionalidade relevante recorremos ao art. 27º da Lei da Nacionalidade, já
que está em causa o concurso entre a nacionalidade PT e uma nacionalidade estrangeira, que
nos dá a seguinte solução: só a nacionalidade PT releva face à lei PT. Logo, prevalece a lei PT, de
acordo com o art. 27º da Lei da Nacionalidade.

Na falta de nacionalidade comum, é preciso recorrer ao art. 53º nº2, que manda aplicar a lei da
RH comum ao tempo da celebração do casamento, ou seja, o RU.

Porém, o RU é um ordenamento jurídico plurilegislativo de base territorial. Desta feita, não


podemos resolver a questão do OP pelo art. 20º porque este só se aplica quando a remissão
para o OP seja a título de lei da nacionalidade, em matérias de estatuto pessoal. Assim, como a
remissão para o RU foi a título de lugar da RH comum ao tempo da celebração do casamento, a
remissão da norma de conflitos aponta diretamente para uma ordem jurídica local, no caso LON.

4ºR A lei LON (L2) não se considera competente para resolver a questão dos regimes de bens,
e remete para a lei do lugar da celebração do casamento, a lei PT (L1).

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L1 L2

art. 53º nº2 lei LON

lei da celebração do casamento lei da RH comum

L2=L2

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (regime de bens), pelo que nenhuma delas se considera competente para
resolver a questão: PT → LON → PT

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, surgindo 2 modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.

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DD

L1 L2

art. 53º nº2 lei LON

lei da celebração do casamento lei da RH comum

L2=L2

7ºR O direito LON pratica dupla devolução, o que significa que se compromete a julgar a
causa como julgariam os tribunais da lei para a qual as suas normas de conflitos remeteram.
Assim, vai-se comprometer a julgar a causa de acordo com L1, tal como julgam os tribunais PT.
Cabe-nos agora saber como julgam os tribunais PT.

8ºR É necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o ordenamento jurídico PT aceita ou
não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 18º neste caso, uma vez que se trata de retorno direto (houve
devolução da competência para a lei do foro).

A. O art. 18º nº1 tem como requisito que a norma de conflitos da lei aplicável (L2) remeta para
o direito interno PT. Não é o que acontece, porque L2 pratica dupla devolução e, segundo a
posição de BAPTISTA MACHADO, sempre que a referência da norma de conflitos estrangeira à lei PT
seja uma referência global, o reenvio não promove, o mesmo quando está em causa o duplo
reenvio (foreign court theory).

Assim, a lei PT não aceita o reenvio.

Neste caso, aplicamos a regra geral do art. 16º e assim, quando manda aplicar L2, PT faz
referência às suas normas materiais. Deste modo, PT aplica a lei LON (L2), o que significa que
os arts. 1695º nº2 e 1720º nº1 al. b) não têm aplicação ao caso, e o direito LON não tem normas
similares.

A pretensão de M não deve ser considerada procedente.

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Caso nº5

Anthony, nascido em Nova Iorque, cidade onde viveu cinquenta anos, nacional dos Estados
Unidos da América e residente em Paris, contrata a João Nuno, célebre conservador-restaurador
de arte, residente em Lisboa (local onde também se situa o seu estabelecimento comercial) e
nacional português, para restaurar as pinturas murais e os estuques decorativos da sua casa em
Nova Iorque. O acordo foi celebrado em Nova Iorque, em Agosto de 2014, tendo ficado acordado
que os trabalhos de restauro teriam a duração de 6 meses e o pagamento seria feito em Nova
Iorque em duas parcelas. Após a remoção de camadas de tinta que cobriam o estuque, João
Nuno apercebeu-se que os danos no estuque eram mais profundo do que a análise prévia, feita
por João Nuno e Anthony, indicava e exigiam um método de reparação mais oneroso e mais
moroso.
Após ter tentado sem sucesso alterar os termos do contrato, João Nuno dirige-se aos tribunais
portugueses pedindo a resolução do contrato com base na lei portuguesa por erro sobre as
circunstâncias que constituem a base do negócio. Anthony opõe-se alegando que o erro sobre os
motivos não é relevante para efeitos do direito nova-iorquino que considera aplicável ao caso.
João Nuno replica invocando que, ainda que assim fosse, a pretensão de Anthony não poderia
proceder porque este não provou o conteúdo do direito nova-iorquino.

Admitindo que:
1. Face ao direito nova-iorquino, o erro sobre os motivos não é relevante.
2. Nos Estados Unidos da América vigora um ordenamento jurídico complexo e não existe
direito interlocal ou Direito Internacional Privado unificado.
3. O direito nova-iorquino regula a sucessão imobiliária pela lei da residência habitual do autor
da sucessão e o direito francês pela lei do lugar da situação da coisa.
4. No âmbito do estatuto sucessório, o direito nova-iorquino e o direito francês praticam a
devolução simples.
5. O tribunal português é internacionalmente competente.

a) Ponderando os argumentos aduzidos pelas partes, diga se a pretensão de João Nuno será
procedente.
b) Suponha agora que Anthony faleceu em Maio de 2015, tendo como únicos bens dois
imóveis situados em Portugal. Qual a lei aplicável à composição e hierarquia dos sucessíveis?

a)

1ºCRI É necessário apurar a lei que regula o contrato celebrado entre A e J para restauras as
pinturas murais e os estuques decorativos da sua casa em NI. Como estão em causa obrigações
contratuais, vamos ponderar a aplicação de Roma I ou CRoma.

2ºCRI Para saber a que diploma relativo às obrigações contratuais devemos recorrer, há que
preencher, em primeiro lugar, o âmbito temporal de aplicação, consagrado no art. 17º CRoma
e no art. 28º Roma I. Neste sentido, a CRoma aplica-se a contratos celebrados após 1 de

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setembro de 1994 e, por sua vez, o regulamento Roma I aplica-se aos contratos celebrados após
17 de dezembro de 2009.

Sendo que o presente contrato foi celebrado em 2014, o diploma a aplicar é Roma I.

Resta agora preencher os restantes âmbitos de aplicação: material e espacial.

O âmbito material está consagrado no art. 1º Roma I. Aplicamos o regulamento quando


estejam em causa obrigações contratuais em matéria civil e comercial que envolvam conflitos de
leis, excluindo as matérias elencadas no nº2 e nº3 deste artigo. No presente caso: temos um
contrato celebrado entre A e J, que tem ligações com NI, FRA e PT. Este âmbito está
preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 2º Roma I - aplicação universal. Este artigo indica
que a lei indicada pelas normas de conflitos deste regulamento é aplicada, quer pertença ou não
a um Estado-membro. Este último âmbito está automaticamente preenchido.

3ºCRI A este regulamento estão subjacentes uma série de princípios (5): autonomia da
vontade; proximidade; proteção da parte mais fraca; admissibilidade de reconhecimento de
efeitos às NAI; reconhecimento de interesses nacionais por meio da ROPI.

O princípio da autonomia das partes (art. 3º) permite às partes escolherem a lei aplicável ao
contrato que estão ou vão celebrar. Tem como objetivos: a certeza e segurança jurídica, a
celeridade na resolução de eventuais litígios, a proteção das partes enquanto verdadeiros
interessados na regulamentação do contrato e o facto de ser uma conexão neutra.

O princípio da proximidade diz-nos que é privilegiada a aplicação da lei que tenha uma
conexão mais estreita com os elementos do contrato.

O princípio da proteção da parte mais fraca intervém em vários tipos de contratos, como
contratos de consumo (art. 6º) e contrato individuais de trabalho (art. 8º), em que a escolha de lei
não pode ter como consequência a privação da proteção do consumidor ou do trabalhador.

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI (art. 9º) exige ao legislador a aplicação das
NAI, quer sejam estrangeiras (nº3) ou do foro (nº2).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI (art. 21º) indica que o
juiz do foro não está vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro

4ºCRI O art. 12º Roma I fala-nos do âmbito da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar o que é que a lei aplicável irá regular: a
interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações, a extinção, a invalidade, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de indemnização por


incumprimento do contrato, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento irá regular,
nos termos da al. e), as consequências da invalidade do contrato.

De seguida, temos de apurar qual a lei aplicável ao contrato, nos termos do art. 10º, que
indica que a validade substancial do contrato é regulada pela lei que seria aplicável se o contrato
ou a disposição fossem válidos.

5ºCRI Analisado o âmbito da lei aplicável, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral.

No caso, estamos perante um contrato de prestação de serviços. Como não há normas de


conflitos especiais, vamos recorrer às normas de conflitos gerais - arts. 3º e 4º.

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Não havendo escolha de lei, recorre-se à norma subsidiária: a da lei aplicável na falta de
escolha - art. 4º. Como o contrato em causa é uma prestação de serviços, aplicamos a al. b) do
nº1, que considera competente para regular esta situação a lei da RH do prestador de serviços.
Neste caso, o prestador de serviços é J, que se obrigou a proceder à restauração das obras de
A, pelo que a lei aplicável é a lei PT (RH de J).

No entanto, há que ter em atenção, ainda, a cláusula de exclusão prevista no art. 4º nº3, que
obriga a que, se o conjunto das circunstâncias do caso apresentarem uma conexão
manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nos nºs anteriores, é essa a lei
aplicável. Ora neste caso, as várias circunstâncias apontam para uma maior ligação a NI: o
contrato foi lá celebrado, a prestação de serviços ocorre lá e A é nacional dos EUA, nascido
nesse estado.

Porém, os EUA são um ordenamento jurídico plurilegislativo de base territorial. Desta feita,
não podemos resolver a questão do OP pelo art. 20º porque este só se aplica quando a remissão
para o OP seja a título de lei da nacionalidade, em matérias de estatuto pessoal. Assim, como a
remissão para os EUA foi a título de conexão mais estreita, a remissão da norma de conflitos
aponta diretamente para uma ordem jurídica local, no caso NI.

Posto isto, e como a o direito NI não confere relevância ao erro sobre os motivos, a pretensão
de J não será procedente.

b)

1ºR A primeira coisa a fazer, face ao presente caso, é identificar o problema: queremos saber
qual é a lei aplicável à composição e hierarquia dos sucessíveis, supondo o falecimento de A em
maio de 2015, tendo como únicos bens 2 imóveis situados em PT.

2ºR Esta é uma questão que se enquadra no estatuto sucessório. Por isso, é aplicável a
norma de conflitos do art. 62º.

A consequência jurídica desta norma é a aplicação da lei pessoal do autor ao tempo do


falecimento que, em articulação com o art. 31º nº1, nos diz que a lei pessoal é a lei da
nacionalidade. O enunciado diz que a nacionalidade do autor da sucessão ao tempo do
falecimento era dos EUA.

No entanto, os EUA são um ordenamento plurilegislativo de base territorial, pois são


constituídos por várias ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território; esta questão
é resolvida nos termos do art. 20º CC. Este artigo apresenta um requisito prévio: só se aplica se
a remissão para o ordenamento plurilegislativo (OP) for feita para a lei da nacionalidade, em
matéria de estatuto pessoal, o que aconteceu neste caso.

Assim, de acordo com o art. 20º nº1, em primeiro lugar recorremos ao chamado direito
interlocal unificado do OP, que são normas que regulam o conflito de leis no direito interno,
dando a oportunidade ao próprio ordenamento jurídico para resolver o problema, em nome da
harmonia de julgados; no enunciado é dito que não existe, pelo que não se aplica este nº1. O art.
20º nº2 1ª parte manda aplicar o DIP unificado do OP, o que também não existe. Por fim, o nº2 in
fine manda aplicar a lei da RH do interessado.

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Em relação à aplicação da lei da RH do interessado no âmbito dos OP, há uma divergência


doutrinal em torno da questão de a lei da RH ser aplicável ou não onde quer que era se situe
(dentro ou fora do OP): FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO defendem uma interpretação literal
do artigo, aplicando a lei da RH, independentemente de esta se situar dentro ou fora do OP em
questão; já ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO considera que só se aplica a lei da RH se esta se situar
dentro do OP, fazendo uma interpretação restrita da norma baseada no facto de em DIP,
nomeadamente em matérias de estatuto pessoal, existir uma preponderância da conexão
nacionalidade, em comparação com a conexão RH. É esta última posição que seguimos, fazendo
uma restrição teleológica do art. 20º nº2, para compatibilizar com o espírito do sistema das
normas de conflitos. Seguindo esta doutrina, temos uma lacuna oculta e não há nenhum preceito
legal que nos permita resolver esta questão; como falta um caso análogo, vamos recorrer à
norma que o intérprete criaria se tivesse que legislar dentro do sistema de DIP. Neste sentido,
para salvaguardar as legítimas expectativas dos interessados, vamos aplicar a lei da ordem
jurídica local com a qual o interessado tem a conexão mais estreita que, neste caso, é a de NI (A
nasceu e viveu lá durante 50 anos, não havendo referência a qualquer outro estado

Com efeito, L2, a lei da nacionalidade, é a lei de NI.

3ºR Antes de prosseguir cabe fazer algumas considerações quanto à interpretação e


concretização deste elemento de conexão - a nacionalidade.

A interpretação de qualquer elemento de conexão é feita de acordo com a lei do foro, por isso,
para efeitos do art. 62º, a nacionalidade é o vínculo jurídico-político que liga um indivíduo a um
Estado soberano. Já a concretização desse elemento de conexão não é feita de acordo com a lei
do foro, mas sim de acordo com a lege causae (a lei aplicável).

É a esse Estado que compete decidir sobre essa matéria, o que decorre do princípio da
liberdade dos Estados na fixação dos seus nacionais. Deste princípio decorre também o princípio
da unilateralidade, também designado por princípio da insuscetibilidade de bilateralização das
regras de direito da nacionalidade de cada Estado.

Este princípio da unilateralidade assenta em duas ideias fundamentais: a ideia de harmonia de


julgados (só assim é possível que os tribunais dos vários países que adotam o elemento de
conexão da nacionalidade não cheguem a resultados diferentes) e, por outro lado, a liberdade
dos estados em definir quem são os seus nacionais (resulta da soberania de cada Estado e do
art. 3º nº1 da Convenção Europeia sobre o Direito da Nacionalidade, de 1957).

No entanto, esta ideia de liberdade do Estado fixar os seus nacionais é limitada pelo princípio
da efetividade ou princípio da nacionalidade efetiva, que indica que para que a nacionalidade de
um Estado possa ser oposta a outro Estado deve corresponder a um vínculo real e efetivo entre a
pessoa em questão e o Estado que a tem por nacional.

4ºR A lei chamada a resolver, lei de NI (L2), tem como consequência jurídica a aplicação da lei
da RH do autor, ou seja, a lei FRA (L3). O DIP FRA não se considera competente e remete para a
lei do lugar da situação da coisa - PT (L1).

L1 L2 L3

art. 62º lei NI lei FRA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

lei da situação da coisa

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5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (sucessões), pelo que nenhuma delas se considera competente para resolver a
questão: PT → NI → FRA → PT

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia segundo uma de três teorias: a referência
material; a referência global, que abrange a devolução simples e dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: a devolução simples e a dupla devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio,
mas para-o, considerando que a 2ª referência é material. Esta teoria tem como principal
argumento a uniformidade de julgados ou harmonia jurídica internacional. No entanto, a
devolução simples não funciona no sentido de gerar harmonia de julgados quando todos os
países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.

DS

L1 L2 L3

DS
art. 62º lei NI lei FRA

art. 31º nº1 lei da nacionalidade lei da RH

lei da situação da coisa L2=L1 L3=L2



Este é um esquema de retorno indireto, porque houve uma devolução para a lei do foro.

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7ºR O enunciado diz-nos que NI pratica devolução simples, o que significa que vai fazer, em
primeiro lugar, uma referência global, ou seja, vai remeter para as normas materiais e as normas
de conflitos de L3, e em segundo lugar, ficciona uma referência material a L1 (dá-se uma
oportunidade a L3 para resolver a questão, e como esta considera competente L1, L2 ficciona
esta referência). Assim, o Estado de NI vai aplicar o direito material PT (L2 aplica L1).

Os tribunais FRA também praticam a devolução simples, o que significa que, num 1º
momento fazem uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L1; num
2º momento, vão ficcionar uma referência material de L1 para L2. Assim, a lei FRA considera
competente a lei NI (L3 aplica L2).

Não há aqui harmonia de julgados, mas também não é necessário que haja.

8ºR É necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o ordenamento jurídico PT aceita ou
não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia
de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 18º neste caso, uma vez que se trata de retorno indireto (houve
devolução da competência para a lei do foro).

A. O art. 18º nº1 tem como requisito que a norma de conflitos da lei aplicável (L2) remeta para
o direito interno PT. Foi o que aconteceu ja que L3, através da devolução simples, ficciona uma
referência material a L1 e considera competente a lei PT. Assim, L1 considera-se indiretamente
competente, o que preenche os requisitos do nº1.

Para já aceitamos o reenvio.

B. No entanto, temos de verificar ainda se vamos, por algum motivo paralisar o reenvio (nº2).
Este nº2 apresenta também dois requisitos, cujo preenchimento cumulativo é necessário para a
aceitação do retorno: (1) estarem em causa matérias de estatuto pessoal; e (2) o indivíduo ter RH
em PT ou ter RH num país cujas normas de conflitos considerem competente o direito interno PT.

No caso, estamos perante uma matéria de estatuto pessoal, as sucessões por morte (este
requisito está preenchido); no entanto, o interessado tinha RH em FRA, e a lei FRA considera
indiretamente competentes as normas materiais de L2 (como vimos, a lei FRA ficciona uma
referência material para a lei NI).

Assim, não estando cumulativamente preenchidos os requisitos, não há retorno para a lei
PT.

Neste caso, aplicamos a regra geral do art. 16º e assim, quando manda aplicar L2, PT faz
referência às suas normas materiais. Deste modo, PT aplica a lei NI (L2).

A lei aplicável à composição e hierarquia dos sucessíveis é a lei de NI.

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Caso nº6

Em 1 de Junho de 2014, Ana de nacionalidade portuguesa e residente em Lisboa contratou


com a Royal Tropics uma viagem de cruzeiro às Bahamas com partida de Miami, no navio Ocean
Blues, que tem a matrícula das Bahamas. A Royal Tropics Inc é uma sociedade comercial com
sede estatuária nas Bahamas, mas cujo conselho de administração e a assembleia geral se
reúnem habitualmente em Miami, na Flórida.
Algumas horas após o navio sair do porto de Miami, John (de nacionalidade do Reino Unido e
residente em Londres), que estava num andar superior, decide subir o gradeamento do deque,
ignorando os sinais de proibição, para enquadrar melhor a fotografia que estava a tirar. Ao fazê-lo,
desequilibra-se e cai por cima de Ana que estava no andar inferior e que, em consequência, sofre
um traumatismo crânio-encefálico grave. Tendo Ana sido transferida imediatamente para um
hospital em Lisboa, o seu estado de saúde agrava-se e, duas semanas após o acidente, esta entra
em coma. Passado um mês, Ana recupera a consciência, mas fica com a mobilidade reduzida e
com problemas de visão.
Ana propõe uma ação contra John para pedir o ressarcimento dos danos que sofreu com base
na lei portuguesa, invocando como fundamento que o seu estado de saúde se agravou em
Portugal e que as maiores sequelas que sofreu decorrem desse agravamento. John, por seu
turno, considera aplicável a lei das Bahamas, que lhe seria mais favorável, invocando, entre outros
argumentos, que no contrato que todos os passageiros celebram com a Royal Tropics o
ressarcimento dos danos ocorridos a bordo do navio estariam sujeitos à lei das Bahamas.

Admitindo que:
1. O direito da Flórida regula o estatuto pessoal das sociedades comerciais pela lei da sede
estatuária; a lei das Bahamas manda aplicar a lei da sede real e efectiva.
2. O direito da Flórida pratica, nestas circunstâncias, a devolução simples e o direito das
Bahamas aplica a teoria da dupla devolução.
3. O Reino Unido e os Estados Unidos da América são ordenamentos plurilegislativos que não
têm direito interlocal unificado, nem Direito Internacional Privado unificado.
4. De acordo com o contrato que os passageiros celebram com a Royal Tropics, o
ressarcimento dos danos ocorridos a bordo do navio estaria sujeito à lei das Bahamas.
5. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

a) Indique, fundamentando devidamente a resposta, qual a lei pessoal da sociedade comercial


Royal Tropics Inc?
b) Diga, fundamentando devidamente a resposta e analisando os argumentos invocados pelas
partes, qual a lei aplicável à pretensão de Ana.

a)

Na presente questão queremos averiguar qual a lei pessoal da sociedade comercial


Royal Tropics Inc. Como estamos perante uma sociedade comercial, a norma de conflitos está
prevista no art. 3º CSC, e estabelece como elemento de conexão o lugar da sede real da pessoa
coletiva (o lugar onde reúnem os órgãos de administração efetiva da sociedade, em detrimento
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da mera sede estatutária). No caso, a sede real encontra-se nos EUA (onde reunem
habitualmente o conselho de administração e a assembleia geral).

No entanto, os EUA são um ordenamento plurilegislativo de base territorial, pois são


constituídos por várias ordens jurídicas aplicáveis a diferentes parcelas de território; esta questão
é resolvida nos termos do art. 20º CC. Este artigo apresenta um requisito prévio: só se aplica se
a remissão para o ordenamento plurilegislativo (OP) for feita para a lei da nacionalidade, em
matéria de estatuto pessoal, o que não aconteceu neste caso (a remissão foi feita a título de sede
principal e efetiva da sociedade).

Assim, há uma lacuna que é necessário preencher. Não existindo direito interlocal unificado,
nem DIP unificado, vamos considerar que a norma de conflitos, ao remeter para um lugar no
espaço, designa direta e imediatamente a ordem jurídica aplicável.

Com efeito, o art. 3º CSC remete para a lei da FLO.

4ºR A lei da FLO (L2) não se considera competente e manda aplicar a lei do lugar da sede
estatutária, neste caso, a lei das BAH (L3) que, por sua vez, também não se considera
competente e manda aplicar a lei da sede real, FLO (L2).

L1 L2 L3

art. 3º CSC lei FLO lei BAH

lei da sede real lei da sede estatutária

5ºR Estamos perante um conflito negativo de sistemas porque temos um conjunto de leis
que foram chamadas a resolver a questão que adotaram elementos de conexão diferentes para a
mesma matéria (lei pessoal de uma sociedade comercial), pelo que nenhuma delas se considera
competente para resolver a questão: PT → FLO → BAH → FLO

6ºR Para chegar à resolução deste problema é necessário analisar as teorias do reenvio. A
questão que se coloca é: como é que os nossos tribunais devem encarar a posição da lei
estrangeira de não querer resolver a questão e, mais concretamente, quando uma norma de
conflitos remete para uma lei estrangeira, se abrange apenas as normas materiais ou também as
normas de conflitos. A resposta a estas perguntas varia consoante o ordenamento jurídico em
causa, consoante este seja mais ou menos afeto ao reenvio, segundo uma de três teorias: a
teoria da referência material; a teoria da referência global, que abrange a devolução simples e
dupla devolução.

A teoria da referência material é absolutamente contra o reenvio e considera que quando a


norma de conflitos remete para uma lei estrangeira, remete apenas para as normas materiais
dessa lei, ignorando as normas de conflitos e normas auxiliares. Esta teoria é a única compatível
com a vontade das partes, é obvia nas situações em que a norma de conflitos manda aplicar a lei
que tenha uma conexão mais estreita e facilita a resolução dos litígios internacionais, já que não
implica o contacto com normas de conflitos estrangeiras.

A teoria da referência global é a favor do reenvio e considera que quando a norma de


conflitos do foro remete para uma lei estrangeira, está fazer uma remissão em bloco, ou seja,
abrangendo normas materiais, de conflito e de reenvio. As suas vantagens principais são: a
harmonia de julgados (apesar da diferença de elementos de conexão); o favor negotii
(aproveitamento do negócio que seria inválido pela lex causae); aplicação do direito do foro nas
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situações de retorno (boa administração da justiça). Esta teoria traz também problemas práticos,
como nos casos de retorno, em que a aceitação do reenvio pode conduzir a ciclos viciosos, ou
nos casos de transmissão de competências, em que se pode gerar o reenvio ad eterum.

Para suprir estes problemas, os estados foram adotando variáveis da teoria da referência
global, pelo que surgiram duas modalidades: teoria da devolução simples e teoria da dupla
devolução.

Na teoria da devolução simples considera-se que a referência feita pela lex causae a outra lei é
uma referência material, de modo a parar o reenvio. Poderíamos continuar a remeter para outras
leis ad eternum, mas a devolução simples arranjou um mecanismo de tornar o reenvio praticável.
Para isso, o julgador aceita este 2º reenvio, mas para-o, considerando que a 2ª referência é
material. Esta teoria tem como principal argumento a uniformidade de julgados ou harmonia
jurídica internacional. No entanto, a devolução simples não funciona no sentido de gerar
harmonia de julgados quando todos os países põem em prática esta teoria.

Na teoria da dupla devolução (Foreign Court Theory), a referência da norma de conflitos do


foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de julgarem a causa tal
como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora. Como o próprio nome
indica, o tribunal do Estado do foro deve julgar como julgam os tribunais da lex causae, a lei que
se considera competente, exatamente da mesma forma. Bem como na teoria da devolução
simples, a teoria da dupla devolução não funciona no caso de ambos os Estados em questão
praticarem a dupla devolução.


DD

L1 L2 L3

DS
art. 3º CSC lei FLO lei BAH

lei da sede real lei da sede estatutária

Este é um esquema de transmissão de competência com inclusão de retorno, porque a lex


causae remeteu para uma 3ª lei (L3), mas houve uma devolução ou retorno para uma lei que já
tinha sido chamada como competente (L2).

7ºR A lei da FLO pratica devolução simples, o que significa que faz 2 referências: num 1º
momento faz uma referência global às normas materiais e às normas de conflitos de L3; num 2º
momento, ficciona uma referência material de L3 para L2 (dá uma oportunidade a L2 para
resolver, mas como já se sabe que vai enviar novamente para L2, a própria L2 ficciona essa
referência), e considera-se indiretamente competente (L2 aplica L2).

A lei das BAH pratica dupla devolução, o que significa que se compromete a julgar a causa
como julgariam os tribunais da lei para a qual as suas normas de conflitos remeteram. Assim, vai-
se comprometer a julgar a causa de acordo com L2, tal como julgam os tribunais FRA. Uma vez
que os tribunais FRA vão aplicar L2, a lei FRA, os tribunais das BAH também aplicam a lei FRA
(L3 aplica L2).

Assim, temos harmonia de julgados.

8ºR Encontrada a lei aplicável, é necessário agora olhar para a lei do foro e ver se o
ordenamento jurídico PT aceita ou não o reenvio.

Regra geral, pelo art. 16º, PT não aceita o reenvio, fazendo apenas uma referência material. No
entanto, podemos permiti-lo apenas como meio para atingir determinados resultados: a harmonia

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de julgados (princípio da igualdade) e a conservação dos negócios jurídicos (favor negotii e tutela
da confiança), através dos arts. 17º - transmissão de competências - e 18º - retorno.

Vamos tentar aplicar o art. 17º neste caso, uma vez que se trata de transmissão de
competências (a lex causae remete para uma 3ª lei), mesmo havendo inclusão de retorno, já que
o retorno não é para a lei do foro (só nesse caso se aplicaria o art. 18º).

A. O art. 17º nº1 apresenta dois requisitos: (1) a lei do foro remete para uma legislação que
não se considera competente e esta, por sua vez, remete para uma 3ª lei; e (2) esta 3ª lei tem que
se considerar, direta ou indiretamente, competente.

Neste caso, L1 remeteu para L2, que não se considerou competente. L2, através das suas
normas de conflitos, remete para L3, que não se considera competente (porque pratica a
devolução simples, faz uma primeira referência global para as normas materiais e de conflitos de
L3 e ficciona uma segunda referência material para as normas de L2, considerando-se ela própria
competente). Assim, L3 não se considera competente, o que não preenche os requisitos do nº1.

Com efeito, não aceitamos o reenvio.

Neste caso, aplicamos a regra geral do art. 16º e assim, quando manda aplicar L2, PT faz
referência às suas normas materiais. Deste modo, PT aplica a lei da FLO (L2).

Assim sendo, a lei pessoal da Royal Tropics Inc é a lei da FLO.

b)

1ºRII A pretensão de A é a obtenção do ressarcimento dos danos causados pela queda de J, a


bordo do navio em que ambos viajavam. Está em causa responsabilidade extracontratual, visto
que não há relação entre as partes envolvidas e está em causa a violação de um direito absoluto
(o direito à integridade física).

2ºRII Para resolução de uma questão de responsabilidade civil extracontratual podemos


recorrer ao Regulamento Roma II, se estiverem preenchidos os seus âmbitos de aplicação
material, temporal e espacial. Caso não estejam preenchidos esses âmbitos, temos de recorrer
ao art. 45º CC, que é a norma de conflitos que regula a responsabilidade civil extracontratual.

O âmbito material está consagrado nos arts. 1º e 2º Roma II. Aplicamos o Regulamento
Roma II quando esteja em causa um conflito de leis em situações que envolvam obrigações
extracontratuais. No presente caso: houve a violação de um direito absoluto, o direito à
integridade física (J caiu sobre A, causando-lhe um traumatismo crânio-encefálico grave); entre A
e J não existe qualquer relação contratual; há efetivamente obrigações extracontratuais (há danos
patrimoniais decorrentes dos extensivos cuidados hospitalares necessários, bem como possíveis
danos morais); e há um conflito de leis (A tem nacionalidade PT e reside em PT, J tem
nacionalidade do RU e reside em LON, e o acidente aconteceu a bordo de um navio de matrícula
das BAH - várias leis podem ser chamadas a resolver a questão).

Há um conjunto de situações elencadas no nº2 do art. 1º que são excluídas da aplicação


deste âmbito material. Os factos que digam respeito a uma dessas questões são afastados da
aplicação do Regulamento Roma II. Apenas ressalvar a alínea g) do nº2 do art. 1º, respeitante às

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“obrigações extracontratuais que decorram da violação da vida privada e dos direitos de


personalidade”, em relação à qual temos de fazer uma interpretação restritiva e sistemática: a
ofensa à integridade física é uma violação de um direito de personalidade, pelo que se fossemos
por uma interpretação literal desta alínea, esta situação prática estaria excluída de Roma II.
Assim, com fundamento nos considerandos 17, 20 e 33 de Roma II, incluímos no âmbito material
de Roma II os direitos de personalidade (regra), excluindo apenas as situações em que a violação
decorrer de um delito de imprensa. O primeiro âmbito está preenchido.

O âmbito espacial está consagrado no art. 3º Roma II. Este artigo indica que o regulamento é
de aplicação universal, o que quer dizer que qualquer lei indicada pelas normas de conflitos de
Roma II é aplicável, ainda que pertença a um Estado não participante da assinatura do
regulamento. O segundo âmbito está automaticamente preenchido.

O âmbito temporal está consagrado no art. 32º Roma II. Nos seus termos, o regulamento é
aplicável a factos ocorridos após 11 de janeiro de 2009. No caso prático, o acidente ocorreu em
junho de 2014, logo já vigorava o regulamento.

Este âmbito está, também, preenchido (se não estivesse aplicávamos o art. 45º CC).

3ºRII A este regulamento está subjacentes uma série de princípios (7): autonomia da vontade;
tendência para a especialização das normas de conflitos; primazia pelo meio social comum; lex
loci delicti commissi; equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas
de conflitos; reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI; reconhecimento de efeitos
às NAI.

O princípio da autonomia da vontade permite às partes escolher a lei aplicável (art. 14º).

O princípio da tendência para a especialização das normas de conflitos expressa a intenção


do legislador de regular as situações específicas em que há interesses próprios, através de
normas pensadas especificamente para esses interesses (ex: arts. 5º a 12º).

O princípio da primazia pelo meio social comum faz prevalecer, através da escolha da lei que
está mais próxima das partes (princípio da proximidade) a aplicação da lei da RH comum da
pessoa cuja responsabilidade se quer apurar e do lesado no momento em que ocorre o dano (art.
4º nº2).

O princípio lex loci delicti commissi consagra a lei do lugar do delito na modalidade de lugar
do dano dano direto, em detrimento do lugar da prática do facto (art. 4º nº1).

O princípio do equilíbrio entre a segurança e certeza jurídica e a flexibilização das normas de


conflitos indica que as normas de conflitos que indicam a lei aplicável devem ser equilibradas
com aquelas que fazem prevalecer a lei da conexão mais estreita ou mesmo que conferem poder
às regras de segurança e de conduta, de modo a atingir um resultado mais justo (art. 17º).

O princípio do reconhecimento de interesses nacionais através da ROPI permite que o juiz do


foro não esteja vinculado à aplicação da lei competente, quando essa aplicação seja
“manifestamente incompatível” com a ordem pública do Estado do foro (art. 26º).

O princípio do reconhecimento de efeitos às NAI dita que as competências legislativas


decorrentes de Roma II não prejudicam a aplicação de normas materiais de aplicação imediata
do Estado do foro.

4ºRII O art. 15º Roma II fala-nos do alcance da lei aplicável. Atendendo à pretensão e aos
factos que estão em causa, é necessário indicar que é que a lei aplicável irá regular: os

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fundamentos da responsabilidade civil, as pessoas que têm direito a uma indemnização, a


responsabilidade por parte de outrem, etc.

No nosso caso, tratando-se de uma situação em que há um pedido de ressarcimento, danos


sofridos e violação de direitos absolutos, a lei a que vamos chegar pela aplicação do regulamento
irá regular, nos termos da al. c), a natureza dos danos e a eventual reparação dos mesmos e, nos
termos da al. a), o fundamento e o âmbito da responsabilidade, incluindo a determinação das
pessoas às quais pode ser imputada responsabilidade pelos atos que praticam.

5ºRII Analisado o âmbito da lei aplicável, e porque Roma II consagra o princípio da tendência
para a especialização das normas de conflitos, temos de verificar se existe alguma norma de
conflitos especial que possa resolver esta questão. Se existir, resolvemos pela norma especial;
se não, resolvemos pela norma geral. As normas especiais encontram-se nos arts. 5º a 12º.

Neste caso há a violação de um direito absoluto, pelo que não há nenhuma norma especial
que regule esta situação. Por isso, aplicamos as regras gerais, que são duas: o art. 14º que
consagra o princípio da autonomia da vontade, se houver escolha de lei; e o art. 4º.

Do enunciado parece resultar a existência de escolha de lei: “no contrato que todos os
passageiros celebram com a Royal Tropics o ressarcimento dos danos ocorridos a bordo do navio
estariam sujeitos à lei das Bahamas”. No entanto, para que esta escolha seja válida, têm de estar
preenchidos os requisitos do art. 14º. Desde logo esta escolha não se insere no âmbito do art.
14º porque, sendo anterior ao facto que deu origem ao dano, não se realizou mediante
convenção livremente negociada por partes que desenvolvam atividades económicas (art. 14º
nº1 al. b) Roma I). Deste modo, a escolha de lei é inválida.

Aplica-se então a norma de conflitos subsidiária: o art. 4º - regra geral em matéria de


responsabilidade civil extracontratual.

O princípio fundamental nesta matéria, por onde devemos começar, é a primazia do meio
social comum, presente no nº2. Este princípio é concretizado através do elemento de conexão
RH comum do lesado (quem sofreu o dano) e da pessoa cuja responsabilidade é invocada (cuja
responsabilidade se quer apurar no processo) e é uma conexão definida em função do princípio
da proximidade e do princípio da confiança porque, em regra, esta lei (RH) é aquela que as partes
melhor conhecem e com a qual habitualmente conformam o seu comportamento, aumentando
assim a previsibilidade de aplicação. No caso em apreço, A reside em PT e J reside em LON,
pelo que não temos uma RH comum, o que implica a não aplicação no nº2.

No nº1, subsidiariamente, encontramos concretizado o princípio da lex loci delicti commissi


enquanto lei do lugar do dano. Está em causa um dano direto, um dano real, e não os danos
indiretos (as consequências, aqueles que resultaram de um dano direto). Esta é uma conexão
objetiva com o delito, que promove a certeza e a segurança jurídica, a harmonia de julgados, e
está associada à função compensatória da responsabilidade civil. Apesar de existirem danos
indiretos em PT em resultado do agravamento do estado de A, estes são irrelevantes para
determinar a lei aplicável. Neste caso, o lugar da violação do bem jurídico, ou seja, o lugar onde A
sofreu os danos diretos, foi a bordo de um navio de matrícula das BAH.

Roma II não tem uma norma que resolva a localização dos factos ocorridos a bordo de um
navio e, face a esta lacuna, podemos recorrer a uma norma auxiliar de normas de conflitos que se
encontra no CC, para conseguirmos aplicar o art. 4º Roma II: o art. 24º CC. De acordo com esta
norma, aos atos realizados a bordo de navios fora dos portos é aplicável a lei do lugar da
matrícula, sempre que for competente a lei territorial. Assim, aplica-se a lei das BAH.

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No entanto, cabe ainda verificar se é possível aplicar a cláusula de exceção que resulta do
art. 4º nº3 e que flexibiliza a norma: de acordo com este nº3, se existir uma lei que tenha uma
conexão mais estreita com a situação do que aquela que resulta do nº1 ou nº2, vamos poder
aplicar essa lei. No entanto, esta norma exige uma prévia relação entre as partes que tenha
ligação com a responsabilidade civil extracontratual; só esta relação prévia, normalmente
contratual, é que vai justificar o afastamento do nº1 e nº2 e a aplicação de outra lei. Ora, neste
caso prático, e pelos dados que nos são dados, não podemos concluir que exista uma outra lei
que tenha uma maior conexão do que a lei das BAH (não havia qualquer relação prévia entre A e
J). Não havendo uma lei que tenha uma conexão mais próxima com a situação do caso concreto,
vamos aplicar a lei das BAH.

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