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MODELO E SISTEMA CRIMINAIS

NÃO VIOLENTOS:
uma teoria ao
processo criminal transformativo
Maurício Zanoide de Moraes

MODELO E SISTEMA CRIMINAIS


NÃO VIOLENTOS:
uma teoria ao
processo criminal transformativo

Tese apresentada à Egrégia Congregação da Faculdade


de Direito da Universidade de São Paulo como exigência
parcial ao concurso para provimento de cargo de Professor
Titular do Departamento de Direito Processual.

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

2022
Catalogação da Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Zanoide de Moraes, Maurício


Modelo e sistema criminais não violentos: uma teoria ao
processo criminal transformativo – São Paulo, janeiro – 2022.

836 páginas

Tese (concurso para provimento de cargo de Professor


Titular do Departamento de Direito Processual) – Faculdade
de Direito, Universidade de São Paulo, 2022.

1. Ciência criminal conjunta. 2. Modelo criminal. 3. Sistema


processual penal. 4. Modelo e sistema. 5. Conflito. 6. Conflito
criminal. 7. Violência criminal. 8. Violência institucional. 9. Violência
social. 10. Política criminal. 11. Política criminal não violenta.
12. Processo penal. 13. História do processo penal. 14. Inquisitio.
15. Sistema criminal premial-negociado. 16. Custos da violência.
17. Custo da criminalidade. 18. Custos do sistema processual
penal brasileiro. 19. Custo do preso. 20. Colapso do sistema
processual penal. 21. Sistema de justiça criminal e dados empíricos.
22. Cifra oculta. 23. Globalização e processo penal. 24. Simplificação
processual penal. 25. Violência e não violência. 26. Ideologia e
processo criminal. 27. Ideologia e política criminal. 28. Conflito
criminal. 29. Voluntariedade e empatia. 30. Modelo criminal não
violento. 31. Sistema processual criminal não violento. 32. Violência
envolvente. 33. Vítima e comunidade. 34. Comunidade afetada e
comunidade dos próximos. 35. Justiça restaurativa. 36. Facilitador.
37. Processo criminal transformativo.
I. Zanoide de Moraes, Maurício. II. Título.
Este estudo não seria realidade sem os Amores Incondicionais e Essenciais
de FERNANDA, LAURA e GABRIELA; minhas paixões e razões
de viver, sem elas não haveria sentido na vida.

Não seria possível sem a fonte constante de


Inspiração Estimulante e Rejuvenescedora
que é ALBERTO SILVA FRANCO; minha última referência
de vida com quem o destino me permite rir, refletir e sonhar.

Não teria sido realizado como o foi sem os Auxílios Inestimáveis


de DANIEL PAULO FONTANA BRAGAGNOLLO
e de GÉSSIKA CHRISTINY DRAKOULAKIS; esta última,
assistente ímpar e testemunha constante de seu início a seu término.

Agradeço a todos pela Porção Essencial com que cada


contribuiu para que a jornada existisse.
CAPÍTULO IX

Modernidade e ideologia
da não violência:
um novo paradigma
para outro modelo criminal

SUMÁRIO: 42. Sociedade global do século XXI: conflito entre demandas ilimi-
tadas e de tempo breve e um sistema processual penal do julgamento, de
espaço limitado e tempo longo (p. 507): 42.1 Globalização e avanços tec-
nológicos: novas dinâmicas econômicas, novas concepções de tempo e de
necessidades e novo locus produtor e promotor de violência social (p. 507);
42.2 Efeitos da globalização e do avanço tecnológico no sistema penal do
modelo criminal persecutório-punitivo (p. 518); 42.3 Efeitos da globalização
e do avanço tecnológico no sistema processual penal do modelo criminal
persecutório-punitivo (p. 522): 42.3.1 O sistema processual penal persecu-
tório não atende a demandas “consumeristas”, mas trata de conflitos sociais
complexos e de alta relevância penal: a tecnologia como uma das causas das
percepções distorcidas da sociedade atual (p. 522); 42.3.2 A ilegalidade da
redução de constitucionalidade pelo “antiformalismo”: violações de direitos
e promoção de maior violência institucional (p. 526); 42.3.3 “Simplificação
processual”: o risco e a certeza de respostas promotoras de mais violência
institucional e perda de efetividade constitucional para todos envolvidos no
conflito criminal (p. 530). 43. Ideologia da violência e Modernidade: das fon-
tes às justificativas mistificadoras de sua natureza, suas consequências e o
estado da arte no Brasil do século XXI (p. 536): 43.1 Fontes da força antro-
pológica da ideologia da violência: nossas raízes arcaicas e nossa forma-
ção cultural e educacional (p. 537); 43.1.1 Aproximações de uma noção de
“violência” aos fins deste estudo (p. 541); 43.2 As justificativas da violência
e suas consequências para a sociedade e a seus perpetradores: a lógica da
ideologia da violência (p. 546); 43.2.1 Uso das justificativas por todos agentes
das violências criminal e institucional e sua consequência no aumento da vio-
lência social: surgem o “medo derivado” e a “violência intrapsíquica” (p. 550);
43.3 Velhas respostas para novos desafios: a lógica da violência, inserida no
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modelo criminal persecutório-punitivo, o fará ampliar os novos espaços da


violência; a necessidade de um novo modelo não violento (p. 555). 44. Ideo­
logia da “não violência”: seu princípio, seus desafios, sua racionalidade,
seus elementos essenciais e seu papel no propósito deste estudo (p. 557):
44.1 Não violência na presente teoria para o modelo criminal: as novas meto-
dologia, formas de ação e finalidade (p. 561); 44.2 “Violência” como o “novo”
objeto-problema que o sistema processual criminal não violento visa a trans-
formar (p. 563); 44.3 “Conflito” e “trauma” como oportunidades de minimizar
negatividades e maximizar positividades (p. 566); 44.4 “Empatia” e “diálogo”:
racionalidade emocional na abordagem e método da não violência (p. 571).
45. A não violência como axioma de novo espaço político-criminal: razões e
vantagens de mudança do “objeto-problema” (p. 581).
42. Sociedade global do século XXI: conflito entre demandas ilimitadas e de tempo
breve e um sistema processual penal do julgamento, de espaço limitado e tempo longo1
O exame do sistema processual neste século XXI também precisa ser feito a partir
do meio sociopolítico e antropológico em que vivemos. É necessário verificar quais os de-
safios que os dias atuais lançam para o modelo persecutório-punitivo e sistemas criminais
penal e processual penal de cariz violento a fim de entendermos se, atualmente, podemos
continuar com aquele modelo como único ou se, ao contrário, há espaço e demanda para a
incursão de outra proposta; a que fazemos neste estudo.
No limiar do segundo quarto do século XXI ainda carregamos situações de profundas
desigualdades e de lutas contra as estruturas que as mantém, já ocorrente em outros tempos
e que ainda não se resolveram. No Brasil, essas desigualdades ainda são mais profundas e
estão longe de serem eliminadas, transvertendo-se em violência social em si e fatores crimi-
nógenos para incontáveis violências criminais e suas correlatas violências institucionais.2
A esse triste cenário acresce-se outro, mais peculiar e avassalador das últimas quatro déca-
das. Se tivéssemos que destacar o que este início de século XXI traz de peculiar em elação
aos anteriores, devemos destacar a globalização econômica em meio altamente tecnológico e
na qual há uma inaudita aproximação de distâncias associada ao distanciamento de pessoas.
Estamos entre o empuxo da tecnologia veloz e constante e os anseios não atendidos de
estabilidade, igualdade e de respeito à diversidade. Em todas as áreas da vida, é o tempo da
“perene mudança”! Isso faz necessária a (re)construção de paradigmas que convivam com essa
realidade em novos patamares de segurança e “estabilidade dinâmica” – tão dinâmica quanto
a velocidade das mudanças e estável o suficiente para transmitir segurança aos cidadãos. Ine-
gavelmente um novo desafio social e uma nova fonte de conflitos típicos deste século XXI.
Por estarmos envoltos nessa realidade indefectível, precisamos saber que urge redis-
cutirmos ideologias, políticas públicas e modelos sociais, políticos, econômicos e, por con-
sequência, também os jurídicos. Para orientar e direcionar essa amplíssima temática aos
propósitos deste trabalho, propõe-se a seguinte pergunta diretiva para todo este item: esta-
mos preparados para o que desejamos?

42.1 Globalização e avanços tecnológicos: novas dinâmicas econômicas, novas concepções


de tempo e de necessidades e novo locus produtor e promotor de violência social
A fim de compreender a pergunta feita ao final do item anterior – mas ainda sem
pretensão de respondê-la – é necessário primeiro identificar o que vimos “desejando”, como

1
O título é inspirado diretamente no escólio de FARIA COSTA, José de. Direito penal e globalização: reflexões
não locais e pouco globais. Coimbra: Coimbra Ed., 2010. Capítulo 1, itens 1 e 3, e cujo desenvolvimento dar-se-á
de modo específico no item 42.1, infra.
2
Já indicamos esse cenário nesse trabalho (cf. item 32, supra) e como ele se reflete fielmente em nossa estrutura
carcerário (cf. item 38, e seus subitens, supra).
508 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

maioria da sociedade global, ao menos nos últimos 40 anos. Alguns marcos mundiais desse
período podem ajudar nessa compreensão.
Por ordem cronológica, e não de relevância, a Queda do Muro de Berlim (1989), e os
vários outros eventos que dela decorreram projetaram e projetam até hoje seus efeitos; foi o
marco de cariz mais político-econômico no redesenho de forças mundiais.
Não menos relevantes, notadamente para a área criminal, foram os ataques do “11 de
Setembro” (2001) nos Estados Unidos da América e as decorrências de acirramento e dis-
tanciamento que eles provocaram. O tema do terrorismo mundial ganha, a partir desse mo-
mento, protagonismo e seu combate punitivo-antecipatório (“guerra preventiva” bushiana)3
passa a se replicar largamente como política criminal de um novo desenho normativo para
os sistemas (penal e processual) persecutório-punitivos dos países. Para a realização do
“combate” decorreu, no sistema penal material, a explícita renovação do ideário associado
ao “direito penal do inimigo” e, para se ficar em um de seus efeitos, o (re)posicionamento
preventivo do direito penal4, cuja base emocional repousa no “medo” do que nem se sabe
ao certo se ocorrerá.5 O “medo”, este velho “aliado útil” do modelo criminal persecutório-

3
A defesa e a justificativa do Patriot Act podem ser vistas em https://www.justice.gov/archive/ll/highlights.htm.
Acesso em: 12 dez. 2021. Mas seus textos dos Títulos V, Remoção de obstáculos para investigar o terrorismo
(“Removing obstacles to investigating terrorism”), e VIII, Direito criminal do terrorismo (“Terrorism criminal
law”), não deixam dúvida quanto ao que tal postura produziu no direito criminal mundial. Para uma referência
sobre a “preventive war” e o fato de ela já ter tido ocorrências mesmo na historiografia estadunidense e mundial
sempre que alguma nação se sentia ameaçada, v. https://www.encyclopedia.com/defense/energy-government-
and-defense-magazines/preventive-war. Acesso em: 12 dez. 2021.
4
Usou-se o prefixo “re” no termo “posicionamento” (REposicionamento) pois essa escolha de política criminal
indicada no texto principal não é novidade na história da humanidade. Poderíamos remeter o leitor desde nossas
observações quanto ao Império Romano (cf. item 8.1, supra, quanto ao “terror”, e item 8.2, supra, e seus subitens,
quanto ao necessário contexto juspolítico que animou o surgimento da inquisitio) vindo pela análise político-
-criminal até nossos dias. Mas, ao feitio do ocorrido com o “direito penal do inimigo”, talvez o mais similar e
próximo marco histórico seja o de formação do movimento político do Anti-Iluminismo que marcou o final do
século XIX e deu base para os Estados autoritários que produziram duas Guerras Mundiais até o final da primei-
ra metade do século XX (item 26.2, supra).
5
O direito penal do inimigo não surge, mas ganha renovado impulso com Günther Jakobs em pleno movimento
antiterrorista; como identificado por Eugenio Raúl ZAFFARONI (O inimigo no direito penal. Tradução por Sérgio
Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2001), uma nova roupagem do sempre existente perfil político de hostis contra
o qual se dirigem o direito e o processo penais. Sobre os efeitos dos ataques do “11 de Setembro” e a ampla recep-
tividade das assertivas de Jakobs, v. preciso texto de FRANCO, Alberto Silva. Na expectativa de um novo para-
digma. In: COSTA ANDRADE, Manuel da et al. (org.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo
Dias. Coimbra: Coimbra Ed., 2009. v. I. p. 323-345, notadamente item IV. Sobre o efeito dos ataques do “11 de
Setembro” e o recrudescimento legislativo penal como nova tendência mundial, é expresso Santiago MIR PUIG
[Constitución, derecho penal y globalización. In: GÓMEZ MARTÍN, Víctor (coord.). Nuevas tendencias en polí-
tica criminal: una auditoría al Código Penal español de 1995. Buenos Aires: B de F: Julio César Faira, 2006.
p. 115-126] ao lecionar que eles potencializaram tendências iniciadas pela globalização: “Os princípios do Direi-
to Penal continuam a dominar a doutrina (mais que a legislação) do Direito Penal atual, tanto na Espanha
quanto nos demais países da União Europeia. Mas, na evolução da legislação criminal em todos os países oci-
dentais, aparecem elementos que contradizem essa concepção e levam o Direito Penal ao caminho oposto: o
caminho de sua ‘expansão’ e seu ‘endurecimento’. Todos eles são anteriores aos ataques de 11 de setembro de
2001. Existem vários fatores que nos últimos cinco anos estão determinando uma expansão do Direito Penal –
como um livro interessante de Silva Sánchez é intitulado. Podemos agrupá-los em quatro seções: a) fatores da
evolução tecnológica; b) fatores de evolução econômica; c) fatores de evolução política; e d) fatores de evolução
cultural” (p. 121-122, traduzimos). O autor, diante desse cenário combinado, assim se manifestou em 2006: “É im-
possível predizer o futuro, mas podemos sim temê-lo”. No âmbito processual penal, alertando para as novas e in-
vasivas técnicas de investigação da criminalidade, tendo em mente uma abordagem ao terrorismo após o “11 de
Setembro”, v. LOUREIRO, Flávia Noversa. A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante aos di-
reitos fundamentais em pleno século XXI. In: MONTE, Mário Ferreira et al. (coord.). Que futuro para o direito
processual penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de
Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Ed., 2009, notadamente item III.
42.  Sociedade global do século XXI 509
-punitivo desde as épocas romanas, novamente é empregado no século XXI como orienta-
dor de política legislativa criminalizadora.6
Tais fatos constituíram marcos que, dentre outros, serviram ao direcionamento e à
consolidação tanto da globalização quanto da renovação do mesmo modo de os poderes
instituídos controlarem pela punição criminal. Tendo em vista esses marcos, voltamos à
pergunta acima (“estamos preparados para o que desejamos?”), para, posto esse cenário,
identificar primeiro “o que desejamos”.
A globalização, que se iniciara de forma mais pronunciada e irreversível na década
de 80 do século passado, potencializou-se em velocidade e extensão para o mundo ao leste
do Muro de Berlim. Houve o avanço capitalista de economias sem fronteiras e cuja condu-
ção saiu das mãos dos “Estados-Nação”, que perderam, gradativamente, em dinamismo e
em protagonismo, o controle econômico-político para as grandes corporações privadas (os con-
glomerados multinacionais e multirregionais).7 Tal rearranjo de forças político-econômicas

6
Sobre essa análise, cf. item 28, supra, no qual tecemos comentários finais acerca dele como um dos eixos de toda
da Parte I junto com a “violência”, sua contraparte no círculo vicioso. O exame do item 24.2, supra, indicara como
na Inquisição o “medo” transformou-se no “terror” e, já lá, entendeu-se que a melhor forma deste ser mantido e
difundido era controlar a comunicação entre as pessoas, seja estabelecendo o discurso dominante, seja proibindo
que se intercomunicassem. A partir da Inquisição, aprendido os métodos, o medo se repete ciclicamente, sendo na
atualidade reimplantado tanto como política de Estado como política econômica. Sobre esse desenho do medo e
da violência como política de ganho de riqueza a partir da dissonância social estimulada pelas mídias sociais e
meios tecnológicos de comunicação, tratamos nos parágrafos que seguem.
7
Esse foi o primeiro dado básico do “prognóstico” feito por Alberto Silva FRANCO (Na expectativa de um novo
paradigma, cit., p. 323-345, notadamente item II.b1) em 1998 e que, para sua surpresa (neste texto de 2009), não
se realizou exatamente pela maior velocidade com a qual tanto o processo de globalização quanto a economia de
mercado foram potencializados pelos meios tecnológicos. Reconheceu esse erro de prognóstico neste ponto em
seus comentários no item III.a (p. 328-329) de seu trabalho. Diz o penalista em seu segundo diagnóstico e ao
tempo do texto sobre a “velocidade do processo globalizador”: “No seu deslanche hegemônico, derrubou os obs-
táculos que se lhe antepunham fossem eles fronteiras geográficas ou mesmo soberanias nacionais. Os lucros
obtidos, em escala mundial, pelos grandes conglomerados econômicos transnacionais – lucros esses com fre­
quência puramente especulativos – cresceram de forma desmedida. Os céleres meios tecnológicos de comunica-
ção permitiram uma enorme mobilidade de capitais que se transferiam, ao toque de uma tecla de computador e
de modo agressivo, de uma economia estatal para outra, em busca de vantagens econômicas ou financeiras cada
vez de maior vulto. A força contra-hegemônica à globalização, representada pela proposta de regionalização de
blocos de Estados-Nações geograficamente próximos, não produziu nenhum resultado positivo. As novas polari-
dades fracassaram, não apenas porque não tiveram a capacidade de oferecer resistência à expansão globalizan-
te, como também porque não logram estabelecer uma interligação, sob os enfoques social, político, jurídico e
cultural entre os países componentes desses blocos. O Mercosul é o exemplo mais significativo do malogro na
criação de blocos regionais como polaridades em condições de oposição ao movimento econômico globalitário”.
Essa tecnologia potencializadora da globalização é produzida por agentes privados. Evgeny MOROZOV esclare-
ce como esses avanços se apresentaram inicialmente como uma contracultura marginal de enfrentamento ao sis-
tema, em um verdadeiro ato de rebelião – tendo posterior e sorrateiramente assumido diversas das feições desse
domínio estatal tradicional, potencializando-as em razão da quantidade de dados que são disponibilizados volun-
tariamente às grandes companhias – Big Techs – em troca de suas facilidades. “Nesse contexto intelectual mais
amplo é que se entende por que Steve Jobs (que, em 2005, reconheceu a influência de Brand e do Whole Earth
Catalog em seu modo de pensar) pôde, com tanta facilidade, se apresentar como um herói da contracultura que
enfrentava os poderes estabelecidos. E, de fato, os primeiros usuários da Apple podiam ‘hackear’ o computador
e modificá-lo à vontade, pois a empresa se colocava contra os outros fabricantes de computadores que não per-
mitiam alterações em seus hardwares. Nesse sentido, o ato de ‘hackear’ era uma crítica moral do capitalismo
tecnológico contemporâneo. Aos poucos, contudo, a alternativa oferecida pela Apple tornou-se o próprio sistema
vigente – para virar um ‘hacker’, bastava comprar os produtos da Apple, que logo se tornaram tão fechados
quanto os dos seus primeiros concorrentes. A crítica moral evaporara: tratava-se de puro marketing aspiracio-
nal, um conto de fadas que convenceu a classe média norte-americana de que ela também poderia ser ousada
e cool – mas no âmbito do mercado. Três décadas depois, o que se nota e que o Vale do Silício encampa a mesma
retórica da emancipação por meio do consumo, mas de maneira bem mais sinistra. Na década de 1970, Stewart
Brand simplesmente selecionava e indicava os produtos que apreciava; ele mesmo não os produzia. Hoje, porém,
o Vale do Silício fica feliz em nos fornecer uma multiplicidade de ferramentas para enfrentar o sistema, ferra-
mentas produzidas lá mesmo, no Vale do Silício: a Uber nos oferece serviços de transporte que se contrapõem ao
510 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

mudou o cenário global, regional e local dos grupos sociais. O Estado do Bem-Estar Social
(Welfare State), projetado no final do século XIX e típico do século XX, reduzido em seu
poderio político-econômico, não conseguiu manter sua proposta social e ideológica em um
mundo com crescentes demandas sociais. Os avanços tecnológicos, sempre por todos dese-
jados como ganhos da humanidade e do progresso, interferem paulatinamente na criação e
no aumento de custos daquelas demandas crescentes, e as intercomunicações em escala
mundial induzem à extensão dos ganhos e benefícios a todos. Todas as estruturas do Esta-
do-Nação desenhado a partir do Iluminismo, e que bem serviram e se desenvolveram de
meados do século XIX até meados do século XX, começaram a demonstrar sua limitação e
despreparo desde antes de o último século citado acabar.8 A economia e a política geram
excessivas e não atendidas demandas sociais.
Os desenvolvimentos tecnológicos aceleram tudo. Os anseios individuais e coletivos
tornam-se maiores e imediatistas. O cenário é de veloz e crescente insatisfação social, co-
munitária e individual; situações irreversíveis no mundo atual, porquanto estimuladas pelo
que desejamos ou nos predizem a imaginar que somos nós quem “desejamos”(?).9

setor existente dos táxis; o Airbnb nos ajuda a encontrar acomodações e evitar o setor hoteleiro; a Amazon se
encarrega de vender livros sem passar pelas livrarias; para não mencionar os incontáveis aplicativos que nos
vendem vagas de estacionamento, nos arranjam parceiros sexuais, fazem reservas para nós em restaurantes.
Não resta quase nenhuma restrição social, econômica ou política que o Vale do Silício não tenha se empenha-
do em romper” (Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Tradução por Claudio Marcondes. São
Paulo: Ubu, 2018. p. 18-19, destacamos).
8
Continua Alberto Silva FRANCO (Na expectativa de um novo paradigma, cit., p. 323-345, notadamente item III.c)
a lecionar que sua última base de prognóstico falhou, pois previra que o Estado Social teria ganhos, e fora ele a
estrutura mais atacada pela globalização, pois sua lógica – diz esse penalista de arguta visão e profundo sentido
social – “não se acomodava a esta forma de Estado, nem tampouco com a teoria keynesiana que lhe deu suporte”.
Concluindo, com apoio em José Ángel BRANDARIZ GARCÍA (Política criminal de la exclusión: el sistema
penal en tiempos de declive del estado social y de crisis del estado-nación. Granada: Comares, 2007. p. 5-6):
“O Estado não tinha mais, diante da globalização de ‘garantir a satisfação de certas necessidades sociais da
cidadania e que se sustentam não apenas numa determinada política orçamentária e de gasto público, mas tam-
bém na intervenção ativa do Estado na vida econômica tanto no plano da regulação jurídica, quanto no da im-
plicação empresarial em setores nucleares do sistema produtivo’. A isso se adicionou uma crescente privatização
das relações sociais o que acarretou o distanciamento do Estado do papel de ‘garante da satisfação das neces-
sidades sociais’” (FRANCO, Alberto Silva. Na expectativa de um novo paradigma, cit., p. 331, traduzimos).
9
O avanço tecnológico hoje permite que o comportamento humano seja minuciosamente avaliado e, com isso,
torna possível que produtos, conteúdos e até mesmo ideias sejam apresentados para cada um de nós – de forma
específica e individualizada –, conforme uma gradação previamente calculada (por algoritmos) da probabilidade
de aceitação do item apresentado. Com isso, a manipulação do comportamento humano, atualmente beirando à
vida de ciborgues, dada a imensa dependência dos gadgets, está mais potencializado que nunca: “À medida que o
imperativo de predição ganha força, vai ficando claro que a extração [dos dados] foi a primeira fase de um pro-
jeto muito mais ambicioso. Economias de ação significam que as arquiteturas de máquina no mundo real preci-
sam ser capaz de saber bem como fazer. Extração não basta; agora ela precisa ser articulada com a execução.
A arquitetura de extração é combinada com uma nova arquitetura de execução, por meio da qual os objetivos
econômicos dissimulados são impostos ao vasto e variado campo do comportamento. Aos poucos, à medida que
os imperativos do capitalismo de vigilância e as infraestruturas materiais que executam as operações de extra-
ção e execução começam a funcionar como um todo coerente, eles produzem os ‘meios de modificação compor-
tamental’ do século XXI. O objetivo desse empreendimento não é impor normas comportamentais, tais como
conformidade e obediência, e sim gerar um comportamento que conduza, de forma confiável, definitiva e
certa, aos resultados comerciais desejados” (ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por
um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução por George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
p. 235, destacamos). Jaron LANIER traz essa problemática de maneira mais simples e direta, afirmando, catego-
ricamente, que as redes sociais são uma verdadeira ameaça ao livre-arbítrio: “Os algoritmos se empanturram de
dados sobre você a cada segundo. Em que tipos de link você clica? Quais os vídeos que vê até o fim? Com que
rapidez pula de uma coisa a outra? Onde você está quando faz essas coisas? Com quem está se conectando pes-
soalmente e on-line? Quais são as suas expressões faciais? Como o tom da sua pele muda em diferentes situa-
ções? O que você estava fazendo pouco antes de decidir comprar ou não alguma coisa? Você vota ou se abstém?
[...] Os algoritmos correlacionam o que você faz com o que quase todas as outras pessoas têm feito. Os algoritmos
42.  Sociedade global do século XXI 511
Ao analisar os desafios trazidos pelos avanços tecnológicos, informa que os desdo-
bramentos da tecnologia da informação possibilitam o contato amplo com conhecimentos
que, no passado, não eram acessíveis a uma pessoa em algumas vidas, mas isso tem um
custo: o aprisionamento nesse mundo (isolado) de busca sem fim e sempre por mais, além
do fato de nossas informações pessoais serem dragadas pelos fornecedores dessas tecnolo-
gias, que delas vivem e com elas se retroalimentam. Algoritmos têm, paulatina e desaperce-
bidamente, ocupado o lugar do indivíduo nas tomadas de decisões.10 O ser humano tomou o
lugar da deidade a partir do século XVIII; cedendo-o às máquinas e a sua linguagem in-
compreensível ao cidadão comum de modo progressivo e consistente já no início do século
XXI. Mas, sem ilusões, devemos nos perguntar “quem” está por detrás dos algoritmos.
Quem detém a nova riqueza (os dados extraíveis de nós, seres humanos) domina o poder, e
quem está no poder usa o aparato criminal para sua proteção e de seus interesses; o exame
histórico empreendido na Parte I deste trabalho já deixou isso claro.
YUVAL NOAH HARARI atualiza para os dias de hoje um dado constante e que se
procurou identificar e destacar por toda a Parte I deste estudo: quem detém as riquezas con-
trola o poder ou controla quem o ocupe momentaneamente. Diz aquele historiador: “os do-
nos dos dados são os donos do mundo”11.
Ainda buscando analisar o que desejamos ou, em outros termos, se estamos concor-
des com o que ocorre, continuemos o exame deste mundo tecnológico no qual já estamos
inseridos.
A comunicação entre e pelas máquinas em linguagem de bits é cada vez mais efi-
ciente. Não menos expansiva é a sua capacidade de diminuir o tamanho dos equipamentos
e aumentar a capacidade e a qualidade de armazenar e transmitir informação; os “dados”,
elemento essencial e básico das comunicações, são, indubitavelmente, a riqueza de nossos
tempos. Desde pelo menos a década de 1980, reconfigurou-se a escala dos bens mais rele-
vantes para a economia. Alçou-se a informação extraída e construída a partir dos dados
brutos (raw data)12, bem como a velocidade de sua transmissão e acumulação, ao patamar

não entendem você de fato, mas existe poder nos números, sobretudo nos grandes. Se muitas pessoas que gos-
tam dos mesmos alimentos que você costumam rejeitar retratos de um candidato com moldura cor-de-rosa, não
azul, então provavelmente você também os rejeitará, e ninguém precisa saber por quê. As estatísticas são confiá­
veis, mas apenas como forças do mal idiotas” (Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais.
Tradução por Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018. p. 13-14, “Argumento Um: Você está perdendo seu
livre-arbítrio”, destacamos).
10
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução por Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras,
2018. p. 72-73.
11
HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21, cit., p. 102-103.
12
Não se pode confundir ‘dados’ com ‘informação’, que também se difere de ‘conhecimento’. Como explica, dida-
ticamente, Anthony LIEW, “Dados são símbolos e registros (capturados e armazenados). Os símbolos incluem
palavras (textuais e/ou verbais), números, diagramas e imagens (únicas e/ou vídeo), os quais são os blocos fun-
dantes da comunicação. Os registros incluem percepções sensoriais de luz, som, cheiro, sabor e toque. [...] Infor-
mação é a mensagem que contêm um relevante significado, implicação ou contribuição para uma decisão e/ou
ação. Informação vem tanto de fontes presentes (comunicações) como históricas (dados processados ou ‘imagem
reconstruída’). Em essência, o propósito da informação é auxiliar na tomada de decisões e/ou resolução de pro-
blemas ou concretização de oportunidades. [...] Conhecimento é (1) cognição ou reconhecimento (know-what),
(2) capacidade de agir (know-how), e (3) entendimento (know-why) que reside ou está contido dentro da mente
ou do cérebro. O propósito do conhecimento é melhorar nossas vidas. No contexto dos negócios, o propósito do
conhecimento é criar ou incrementar valor para a companhia e seus stakeholders” (DIKIW: Data, Information,
Knowledge, Intelligence, Wisdom and their Interrelationships. Business Management Dynamics, [s.l.], v. 2, n. 10,
p. 49-62, abr. 2013. p. 2, traduzimos e destacamos. Versão eletrônica disponível em: http://bmdynamics.com/is-
sue_pdf/bmd110349-%2049-62.pdf. Acesso em: 12 dez. 2021).
512 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

de novas riquezas a serem extraídas, produzidas e comercializadas.13 Consequentemente, já


no final da década de 70 do século passado, identificava-se que o “saber científico” (enten-
dido lato sensu) passou a sofrer profunda e definitiva interferência da tecnologia tanto em
sua pesquisa quanto em sua difusão.14 Os símbolos da riqueza dos Estados-Nação e das
multinacionais deixam de ser, sucessivamente, terra, ouro, máquinas ou fontes de energia,
abrindo espaço ao “dado” e às análises e às decodificações (informações) deles extraíveis
pela tecnologia.15
Aparelhos cada vez melhores, mais rápidos, mais portáteis e interativos redefinem o
mercado de consumo e moldam os consumidores e seus desejos. As máquinas deixam de
ser apenas mecânicas e de grande porte, típicas da sociedade industrial, e assumem espaços
dentro da realidade doméstica e pessoal – para não dizer “de bolso”. A nanotecnologia di-
minui os tamanhos e aumenta as potencialidades e conquistas nas áreas médica16, computa-
cional17 e de engenharia de materiais18. Máquinas agora são desenhadas para irem a lugares
onde o corpo humano não resiste (profundezas da Terra e dos oceanos, assim como outros
planetas e estrelas)19, a fim de suprir suas deficiências e seus limites (p. ex., com tecnologias
de acessibilidade)20 quando a ele não se fundem, integrando órgãos vivos para prolongar
a vida humana com qualidade21; além de proporcionar um considerável aumento de sua

13
Maria Alice Guimarães BORGES (A compreensão da sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília,
v. 29, n. 3, p. 25-32, set./dez. 2000. p. 28-29, item “Tendências atuais”), professora de ciência da informação na
Universidade de Brasília, é precisa em apontar: “O mundo virtual fez profundas alterações, principalmente nas
concepções de espaço e tempo. Não há mais distância, território, domínio e espera: vive-se o aqui e o agora.
O virtual usa novos espaços, novas velocidades, sempre problematizando e reinventando o mundo. A virtualida-
de leva também a passagem do interior ao exterior, e do exterior ao interior – os limites não mais existentes e há
um compartilhamento de tudo. Os dois bens primordiais do ponto de vista econômico com características pró-
prias e diferenciadas dos outros bens são a informação e o conhecimento, pois o seu uso não faz com que acabem
ou sejam consumidos. Quando são utilizados, há um processo de interpretação, de interligação, de complemen-
tariedade, promovendo um ato de criação e invenção. O uso da virtualização, cada vez mais presente no nosso
cotidiano, amplia as potencialidades humanas, criando novas relações, novos conhecimentos, novas maneiras de
aprender e de pensar. O grande desafio é conseguir que, nesta velocidade e desempenho, o virtual não interfira
na identidade cultural dos povos, fazendo com que um projeto de ‘civilização centrado sobre os coletivos pensan-
tes’ possa conter este risco, já que o mundo virtual é inevitável”.
14
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução por Ricardo Corrêa Barbosa. 17. ed. Rio de Janei-
ro: José Olympio, 2018. p. 4 e cujo texto foi publicado pela primeira vez em 1979.
15
Cf. HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21, cit., p. 107.
16
BOSE, Priyom. Application of nanotechnology in the treatment of viral infections. News Medical Life Science,
Sydney, 13 May 2020. Disponível em: https://www.news-medical.net/health/Application-of-Nanotechnology-in-
the-Treatment-of-Viral-Infections.aspx. Acesso em: 12 dez. 2021.
17
ENGLISH, Trevor. How nanotechnology is changing the way we design and build computers. Interesting Engineering,
San Francisco, 5 May 2020. Disponível em: https://interestingengineering.com/how-nanotechnology-is-chan-
ging-the-way-we-design-and-build-in-computers. Acesso em: 12 dez. 2021.
18
SEVDA, Jafari et al. Biomedical applications of TiO2 nanostructures: recent advances. International Journal of
Nanomedicine, v. 15, p. 3447-3470, 2020. Disponível em: https://www.dovepress.com/biomedical-applications-
of-tio2-nanostructures-recent-advances-peer-reviewed-article-IJN. Acesso em: 12 dez. 2021.
19
ROBOTS EXPLORE THE FARTHEST REACHES OF EARTH AND SPACE. NASA Spinoff, [s.d.]. Disponível
em: https://spinoff.nasa.gov/Spinoff2008/er_3.html. Acesso em: 12 dez. 2021.
20
POTIER, Laura. New tech to help disabled people. The Guardian, London, 8 Sept. 2020. Disponível em: https://
www.theguardian.com/technology/2019/sep/08/the-five-technology-to-help-disabled-people-blindness-
paralysis-research-ai. Acesso em: 12 dez. 2021.
21
NOGUEIRA, Luiz. Implante cerebral da empresa de Elon Musk promete restaurar lembranças. Olhar Digital,
8 maio 2020. Disponível em: https://olhardigital.com.br/noticia/implante-cerebral-da-empresa-de-elon-musk-
promete-restaurar-lembrancas/100475. Acesso em: 12 dez. 2021; FOX, Magie. Brain stimulation acts ‘like a
switch’ to turn off severe depression for one patient. CNN, 4 Oct. 2021. Disponível em português: https://www.
cnnbrasil.com.br/saude/implante-cerebral-consegue-reduzir-depressao-em-paciente-mostra-estudo/. Acesso em:
12 dez. 2021.
42.  Sociedade global do século XXI 513
produtividade22. Hardwares e softwares cada vez mais sofisticados respondem a comandos
de voz e passam a conversar com os humanos, para agora atender, entender e antecipar suas
necessidades, lembrando-lhes tarefas e hábitos, ou mesmo predizendo e prescrevendo dese-
jos por meio de algoritmos,23 sempre com um produto ou serviço oferecido a preço de oca-
sião se não de forma “gratuita”. Tudo para não percebermos que nesse atual “capitalismo de
vigilância” nos tornamos as reais “fontes de riqueza”. Isso porque somos as fontes perma-
nentes e contínuas dos dados mais valiosos para as empresas de tecnologia, os quais são de
bom grado entregues por meio da simples utilização dessas novas tecnologias; usamos o
que (também) nos torna fontes de extração.24 Por fim, máquinas e programas começam a
produzir “arte” (p. ex., redigir ou terminar sinfonias inacabadas, pintar, escrever prosa e
poesia)25, o estágio de criação da beleza e de concretização da abstração sentimental e inte-
lectual, até então tido como só habitável por pessoas agraciadas com dons especiais. Como
previra JEAN-FRANÇOIS LYOTARD, já em 1979, o saber científico mudou sua natureza
e, com isso, transformou tudo à sua volta.26
Estamos dispostos a renunciar a isso? Aos que acharem que sim, valem as perguntas:
sem a tecnologia da comunicação inter e multi-individual para a troca de conhecimento e
sentimentos, assim como sem os avanços científico-tecnológicos, como teríamos sobrevivi-
do à pandemia mundial de Covid-19 (2019-2022)27? Teria o mundo saído dela com mais ou

22
FERREIRA, Tamires. Novo implante cerebral permite “digitar” quase 100 palavras por minuto. Olhar Digital,
10 nov. 2021. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2021/11/10/medicina-e-saude/novo-implante-cerebral-
permite-digitar-quase-100-palavras-por-minuto/. Acesso em: 12 dez. 2021.
23
TUFEKCI, Zeynep. How recommendation algorithms rule the world. Wired, 22 abr. 2019. Disponível em: https://
www.wired.com/story/how-recommendation-algorithms-run-the-world/. Acesso em: 12 dez. 2021.
24
Shoshana ZUBOFF traz a ideia de que as grandes empresas de tecnologia (em especial a Google) passaram a ter
acesso e fazer uso direcionado e comercial das informações que poderiam ser obtidas a partir de dados brutos resul-
tantes de nossa inocente navegação em sítios eletrônicos: “[...] o Google não faria mais mineração de dados compor-
tamentais estritamente para melhorar o serviço para seus usuários, e sim para ler as mentes destes a fim de combi-
nar anúncios com seus interesses, que, por sua vez, eram deduzidos dos vestígios colaterais do comportamento
on-line. Com o acesso exclusivo do Google aos dados comportamentais, seria possível então saber o que um in-
divíduo específico, num tempo e espaço específicos, estava pensando, sentindo e fazendo. O fato de isso deixar de
nos parecer surpreendente, ou talvez nem mesmo digno de nota, é prova do imenso entorpecimento psicológico que
fez com que nos habituássemos a uma guinada audaz e sem precedentes nos métodos capitalistas. As técnicas des-
critas na patente significavam que cada vez que um usuário faz uma consulta no mecanismo de busca Google, o
sistema, de maneira simultânea, apresenta uma configuração específica de um anúncio específico, tudo na fração
de segundo que leva para atender à busca. [...] O superávit comportamental define o sucesso dos ganhos do Google.
Em 2016, 89% das receitas da sua empresa-mãe, a Alphabet, derivavam dos programas de publicidade direcio-
nada do Google. A escala de fluxo de matéria-prima reflete-se no domínio que o Google tem da internet, proces-
sando em média mais de quarente mil consultas de busca a cada segundo: mais de 3,5 bilhões de buscas por dia e
1,2 trilhão de buscas por ano no mundo inteiro em 2017. Por conta da força de suas invenções sem precedentes, o
valor de mercado de 400 bilhões de dólares da Google desbancou a ExxonMobil do segundo lugar em capitalização
de mercado em 2014, apenas dezesseis anos após sua fundação, e tornou-a a segunda empresa mais rica do mundo,
atrás somente da Apple. Em 2016, a Alphabet/Google ocasionalmente arrancou o primeiro lugar da Apple e foi
ranqueada como a número dois do mundo em 20 de setembro de 2017” (A era do capitalismo de vigilância, cit., p. 97
e 113-114, destacamos). Quanto à definição do que seja “capitalismo de vigilância”, em suas páginas iniciais a auto-
ra já explica: “1. Uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita
para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas” (p. 7, “A definição”, destacamos).
25
WEINER, Ken. Can AI create true art? Scientific American, 12 Nov. 2018. Disponível em: https://blogs.scientifi-
camerican.com/observations/can-ai-create-true-art/. Acesso em: 12 dez. 2021.
26
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna, cit., p. 3-5.
27
Necessário deixar claro que este trabalho foi escrito até dezembro de 2021. Logo, a previsão de que a pandemia termi-
nará em 2022 é uma expectativa e desejo deste observador, embora muitos não sejam tão otimistas diante (i) das novas
variantes virais que surgem de regiões marginalizadas no mundo como, por exemplo, regiões mal atendidas da Amé-
rica Latina, da África e da Ásia, (ii) tudo associado (ou potencializado) por egoísmos nacionalista e capitalista impe-
ditivos da ampla e gratuita distribuição de vacinas, (iii) além do alto número de rejeição à própria vacinação ou de
outros métodos de redução da transmissão viral (p. ex., o uso de máscaras), como lockdowns provisórios e regionais.
514 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

menos vítimas? Teria demorado mais ou menos tempo? Teriam sido mais ou menos violen-
tas as suas consequências?
A humanidade – ou pelo menos sua maioria absoluta – não está disposta a abrir mão
dessas conquistas tecnológicas, nem sequer está disposta a reduzir a velocidade de seus
avanços, mesmo ao custo cada vez mais claro da invasividade e destruição das essenciais
barreiras de sua intimidade e sua privacidade. Pelo contrário: anseia pelas próximas desco-
bertas e conquistas para ter novas experiências, facilidades e auxílios, cada vez em tempo
mais curto e aceitando todas as predições algorítmicas sem reflexão e de imediato. Todavia,
o atendimento constante e veloz desses desejos tem efeitos que precisam ser compreendidos
e dimensionados.
Retomando a pergunta do primeiro parágrafo deste item, já identificado que deseja-
mos e não estamos dispostos a sequer reduzir os avanços tecnológicos em ambiente global;
passemos à sua outra parte da indagação que se refere aos seus efeitos.
A globalização e essa nova riqueza (os “dados”; com seu peculiar “capitalismo de
vigilância”) impactam a economia, mudam as forças políticas, impõem desafios sociais
maiores e diversos e, como não poderia deixar de ser, afetam também o mundo jurídico.28
Se queremos os “bônus” desta Era Tecnológica, precisamos ter a exata dimensão de seu
“ônus”: a insegurança, o desafio de ajustamentos constantes e, infelizmente, novos focos
produtores de violência social. Exemplificativamente, as mídias sociais induzem à forma-
ção de grupos que se associam e se expandem por disseminarem misoginia, racismo, pre-
conceitos de toda natureza e fundamentalismos religiosos e políticos para os quais a diver-
gência legitima o uso da violência em quaisquer de suas formas (física ou psicológica;
virtual ou não). Tendo apenas esse novo locus da violência (as mídias sociais), perceptível
que ele se expande e nos envolve na mesma velocidade e extensão com que somos engolfa-
dos pela tecnologia.
A “Modernidade”, ou qualquer outra forma de denominar este momento em que se
encontra a humanidade29, traz diversidades e novidades constantes e crescentes em todos os

28
Alberto Silva FRANCO (Na expectativa de um novo paradigma, cit., p. 323-345, notadamente item II.b2, p. 327)
novamente anteviu e detectou o papel central do Direito na globalização, mas, (sempre) otimista, acreditou em
1998 que os esteios constitucionais recém-editados no mundo europeu e em alguns países periféricos, por exem-
plo, o Brasil (1988), forneceriam a “capacidade reguladora das relações e dos conflitos humanos” dando um
“crédito à democracia substantiva e ao paradigma garantista”. Dez anos após, ao escrever citado artigo, também
reconhece seu erro nesse ponto, chegando a afirmar que a velocidade e a extensão da globalização revelaram a
“impotência do direito” (p. 330). No mesmo sentido, v. MIR PUIG, Santiago. Constitución, derecho penal y glo-
balización, cit., p. 123; e FERRAJOLI, Luigi. Criminalità e globalizzazione. Revista Brasileira de Ciências Cri-
minais, São Paulo, v. 11, n. 42, p. 79-89, jan./mar. 2003. Edição especial.
29
São muitos os sociólogos, historiadores, filósofos e mesmo processualistas penais que divergem quanto à classifi-
cação do momento em que a humanidade se encontra desde as duas últimas décadas do século XX: “modernida-
de”, “pós-modernidade”, “neomodernidade”, “modernidade líquida”, etc. Entre os doutrinadores processuais pe-
nais, Silvia BARONA VILAR (Proceso penal desde la historia: desde su origen hasta la sociedad global del miedo.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. Capítulo VII, “Proceso penal en la neomodernidad”), sem mostrar qualquer pre-
ferência ou prevalência, mas se posicionando na linha daqueles que entendem a superação da “modernidade”,
trata este momento como uma etapa de “[N]ovos elementos, novas paisagens, novos pensamentos e grandes doses
de velocidade combinadas às tecnologias apresentam uma sociedade diversificada. Fala-se de pós-modernidade,
neomodernidade, modernidade inacabada, modernidade tardia, alta modernidade, segunda modernidade, e um
longo et cetera. Qualquer que seja o termo, não há dúvida de que os eixos dessa sociedade, os protagonistas, os
instrumentos, os valores e a Justiça também são diversos. E, sem esquecer, é claro, que é uma etapa que existe
porque houve anteriormente a Modernidade. Não se trata tanto de que os valores da modernidade desaparece-
ram, mas eles – especialmente os que se referem ao mundo econômico – foram radicalizados, desencadeando uma
transformação. [...] Nesse contexto, o mundo experimentava os sintomas do verdadeiro declínio social ocidental,
dando lugar a uma nova crise, agora sim, a crise da modernidade. Uma crise que afetava aqueles valores e aquela
42.  Sociedade global do século XXI 515
campos da vida. Seus sucessos e progressos são tão intensos quanto seus insucessos, desafios
e paradoxos. O presente exige compreender e organizar positivamente dinâmicas nas relações
sociais que se deparam com dilemas entre (mais) conhecimentos e desejos e os indispensáveis
ajustamentos de valores.30 Como exemplo desse embate, tomem-se as discussões que envol-
vem a engenharia genética sobre a clonagem de seres humanos ou a privacidade de dados das
pessoas em redes informáticas, que sorvem tão profundamente nossos dados quanto veloz-
mente os transmitem e armazenam: seu domínio e uso em metadados podem controlar-nos ou
incutir-nos “desejos” subconscientes. A insegurança desses desafios é tão certa quanto o de-
sejo de todos (ou da maioria de nós) de que tais progressos e sua velocidade não diminuam.
A “modernidade radical”31 traz as inovações e os conhecimentos que dela se espe-
ram, mas na quantidade e velocidade em que são (re)produzidos e apresentados ao mercado
estendem os limites do possível e do aceitável social e axiologicamente.

visão que propiciou a ‘idade da razão’ (a ‘era da modernidade’). E nessa crise um dado fundamental: a mudança
dos operadores políticos e sociais e neles a transformação do papel do Estado à medida que o século XX foi avan-
çando e entramos no século XXI. Em suma, uma mudança de protagonistas e, sobretudo, das funções que eles
assumem na nova sociedade” (p. 454-455, traduzimos). Os sociólogos têm maior preocupação em precisar e nomi-
nar tal momento, abrindo discussões tão ricas quanto variadas. Zygmunt BAUMAN, por exemplo, teve sua fase
teórico-sociológica na qual denominava este instante humano “pós-modernidade” (cf. Legisladores e intérpretes:
sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais. Tradução por Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010),
conceito já trabalhado em outra obra sua e de referência datada de 1993: Ética pós-moderna (tradução por João
Rezende Costa, publicada pela Editora Paulus em 1997). Esse mesmo autor, a partir de sua obra seminal Moderni-
dade líquida (em vernáculo, tradução por Plínio Dentzien, publicada pela Zahar em 2001), inaugurou nova concep-
ção própria do momento da humanidade e do mundo, com base na qual desenvolveu várias publicações e obteve
reconhecimento mundial pelo conceito criado. Mas Zygmunt BAUMAN não foi o único a ter essas percepções e
preocupações. Três sociólogos, também mundialmente conhecidos, desenvolveram a percepção do que denomina-
ram “modernidade reflexiva”. Anthony GIDDENS, Scott LASH e Ulrich BECK trazem suas perspectivas pró-
prias, com algumas diferenças, na obra Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social mo-
derna (Tradução por Magda Lopes. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2012, e cuja publicação original se dera em 1995).
BAUMAN, BECK e GIDDENS, agora acompanhados por Niklas LUHMANN, elaboraram obra em que cada qual
escreve capítulos específicos para trabalhar a ideia de “modernidade” e suas “consequências perversas”; obra co-
letiva também datada do início da última década do século XX (cf. Las consecuencias perversas de la modernidad:
modernidad, contingencia y riesgo. Compilação por Josetxo Beriain. Tradução por Celso Sánchez Capdequí. Barce-
lona: Anthropos, 1996). Anthony GIDDENS, autor de várias obras sobre o tema da “modernidade”, não abre mão da
ideia de que ela ainda existe e de que dela ainda não saímos (rompemos), não aceitando o conceito que Jean-François
LYOTARD inaugurou: “pós-modernidade” (A condição pós-moderna, cit.; de 1979); tornando a expressão um
lugar-comum, repetido por alguns sem mesmo se entender ou mesmo saber os critérios que a formaram. Mas não
foram poucos os conscientes seguidores dessa ideia de LYOTARD; dentre eles pode-se citar: o historiador Perry
ANDERSON (As origens da pós-modernidade. Tradução por Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999) e o
antropologista e geógrafo humano David HARVEY (Condição pós-moderna. Tradução por Adail Ubirajara Sobral
e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2017), em obras também da década de 1990.
30
Ulrich BECK, em publicação póstuma de seus últimos escritos (A metamorfose do mundo: novos conceitos para
uma nova realidade. Tradução por Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018) explica que diante
da globalização e seus efeitos não havia como nominar o estágio social como de mudança ou transformação, mas
de verdadeira “metamorfose”: “A metamorfose implica uma transformação muito mais radical, em que as velhas
certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo inteiramente novo emerge. Para compreender essa
metamorfose do mundo é necessário explorar os novos começos, focalizar o que está emergindo, partir do velho
e buscar apreender estruturas e normas futuras na confusão do presente” (p. 15-16). Concordamos plenamente
com citado sociólogo e pensador: “Ao afirmar que a metamorfose do mundo é o traço característico da era atual,
não desejo sugerir que ela assumirá a mesma forma em todas as regiões do mundo. [...] Por essa razão é essencial
concentrar-se na geografia social da metamorfose do mundo. Isso dá origem a um complexo modelo de vários
níveis da metamorfose que leva em conta a interação das condições locais, regionais, nacionais e globais, e de-
senvolve estruturas específicas, como consequência das desigualdades sociais e das relações de poder sociais.
Em suma, metamorfose não é mudança social, não é transformação, não é evolução, não é revolução e não é
crise. É uma maneira de mudar a natureza da existência humana. Significa a era dos efeitos colaterais. Desafia
nosso modo de estar no mundo, de pensar sobre o mundo, de imaginar e fazer política” (p. 35-36).
31
Neste trabalho estamos mais próximos de aceitar o conceito de “modernidade” em sua fase radical conforme
preconizado por Anthony GIDDENS (As consequências da modernidade. Tradução por Raul Fiker. São Paulo:
516 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Os valores econômicos caminham, empurram, puxam e moldam os valores éticos e


morais para outros limites e novos espaços, tudo a contribuir para a curiosidade e a estra-
nheza de desconhecidos espaços relacionais nem sempre aceitos por todos ou mesmo perce-
bidos por alguns. Exemplificativamente, os espaços de privacidade e intimidade, tanto
quanto de lícito e ilícito, desafiam para a elaboração de novos paradigmas de pessoa e suas
circunstâncias e de acessibilidade da informação; assim como de permitido e não permitido.
Às inseguranças decorrentes das ontológicas radicalizações de limites que a Modernidade
traz somam-se outras, velhas conhecidas e já típicas do campo jurídico-criminal (o medo).32
Aumentam ainda mais os desafios no diagnóstico, na (re)flexão e no “ajustamento” dos
paradigmas trazidos pela tradição cultural da sociedade; tudo em face das atuais relações
cujo redesenho é imposto pela etiologia da “perene mudança” que o futuro, cada vez mais
rapidamente, apresenta e renova.
Neste trabalho não se comete a impropriedade de se querer frear o futuro, com tudo
de positivo ou negativo que ele já porta e nos apresenta a cada novo instante. Mas, por outro
lado, também não se entende apropriado entregar, a quem o controle (o futuro), o poder de
rearranjar tudo pelas diretrizes econômicas ou pelos desígnios dos poderes estatais e das
empresas privadas multinacionais.33 O convite é para analisar e rediscutir paradigmas, sem-

Unesp, 1991. p. 61-63). Esse sociólogo inglês, tendo em consideração o trabalho de LYOTARD, insiste na manu-
tenção do conceito de “modernidade”, mas lhe acrescenta um dado novo em face do momento já vivido desde o
final do século XX e por ele captado. Após descrever as bases e fundamentos constitutivos da “modernidade”, não
os entende superados ou rompidos para uma nova fase da humanidade. Situa-nos em uma fase delicada de tensão
extrema e explica que ela não teria sido superada, passando à dita “pós-modernidade” (p. 55-63). Nessa obra, o
autor ensina que “modernidade” tem ínsita a noção de contraste com a tradição; logo, não é porque se rompe ou
se supera a tradição que se transcende a “modernidade” em suas estruturas fundantes. Não obstante se recomen-
de a leitura da obra por completo, fica evidente que, ao analisar “sociologia e modernidade”, referido autor retira
daquela a sua propriedade “reflexiva”, entendida como a peculiaridade de não se desenvolver por “acumulação”,
como, em regra, as ciências naturais. Com base em Thomas KUHN (A estrutura das revoluções científicas. Tra-
dução por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011), GIDDENS explicita que
essa fase radical incorpora – diria que pressupõe – a “reflexividade” da vida social moderna, a qual “consiste no
fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre
estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter” (cf. As consequências da modernidade,
cit., p. 49). O autor expõe que, nas ciências sociais em geral, maior conhecimento sobre as atividades humanas e
crescente controle tecnológico não garantem “maior controle sobre nosso destino. Ela é (discutivelmente) verda-
deira no que tange ao mundo físico, mas não ao universo dos eventos sociais” (p. 54). Isso pode acontecer em
alguns momentos para algumas instituições, mas não sempre. GIDDENS indica que isso acontece pela influência
de quatro fatores inerentes ao mundo social. O primeiro é o “poder diferencial”, explicando que o conhecimento
não é adquirido por todos de maneira homogênea, sendo sempre diferencialmente conseguido pelos integrantes
do poder, que os usam segundo seus interesses. O segundo diz respeito ao “papel dos valores” e seu eventual –
diria habitual – descompasso com a inovação por conhecimento, uma vez que este (o conhecimento) não se dá por
ordem daqueles valores, e estes não são orientados por “novos” conhecimentos; causando desencontros – parado-
xos – inevitáveis. O terceiro é o “impacto das consequências inesperadas”, pois os perigos (cientes e inscientes)
são inerentes, e os riscos, inevitáveis. A “pandemia” de Covid-19 não poderia ser exemplo mais eloquente desse
fator. O quarto e último fator a influenciar na incerteza inerente às relações sociais e sua impossibilidade de onis-
ciência e controle é que o próprio conhecimento novo gera instabilidade. “[N]ão é uma questão de não existir um
mundo social estável a ser conhecido, mas de que o conhecimento deste mundo contribui para seu caráter instá-
vel e mutável” (p. 55).
32
Para o uso do “medo”, entendido como insegurança e incerteza no porvir, e sua manipulação para controle social,
não raro pelo dirigismo penal de políticas públicas, desde as Idade Medieval e Moderna, não deixando de se re-
petir na Idade Contemporânea do pós-guerra, v. CORNELLI, Roberto. Miedo, criminalidad y orden. Tradução
por Flávia Valgiusti. Buenos Aires: B de F, 2012. p. 239-249. Impressionam as palavras desse criminólogo sobre
o apossamento do medo da Peste Negra medieval pelo discurso religioso e penal e a similitude do atual momento
de pandemia mundial de 2019-2021. Se não estivermos cientes dos erros passados, dificilmente nos livraremos de
cairmos novamente nos erros de sermos guiados por sentimentos primários (medo e agressividade) em face de
tempos que se anunciam social e economicamente difíceis.
33
O pleno usufruto das novas tecnologias (a “experiência completa”, por assim dizer) vem sendo obstaculizado à
nossa concessão, às companhias desenvolvedoras, de nossos dados, bem como à aceitação de que esses dados
42.  Sociedade global do século XXI 517
pre ciente de que a tecnologia que aproxima também aumenta velozmente o abismo entre as
pessoas e as classes sociais e já é o mais recente instrumento de controle social de muitos
por poucos.34 As distâncias diminuem tão rápido quanto nos afastamos (ou nos “cancela-
mos”) dos diversos a mim.
Neste instante, a tarefa dos juristas, ao servirem de bússola aos legisladores, é enten-
der o presente para orientar o futuro por novos espaços relacionais mais “seguros” não de-
vido ao incremento da ideia de “força de coerção” ou “força de submissão”, mas porque
mais adaptados a essas novas e diversas realidades de modo, dimensão e dinâmica. Para
isso, precisam estar atentos aos jornais do dia e ao ser humano que com ele habita as ruas e
os espaços virtuais, assim como às percepções, sempre mais sensíveis, de sociólogos, filó-
sofos e, também, cientistas políticos e econômicos.35 O trabalho do jurista não está em re-
gular o que vê, mas sim, diante do que se vê, procurar definir critérios e diretrizes aptos a
servirem de duradouro referencial para o convívio estável e seguro das pessoas nesta atual
Era da “perene mudança”.
Ocorre que juristas, assim como legisladores e intérpretes, apresentam diferentes
graus de “conservadorismo” e “ajustabilidade”.36 Se, ao olhar para o passado, o normal é
classificar as decisões então tidas como “certas ou erradas”, pois também seus efeitos já
ocorreram, ao se analisar o presente deve-se tê-las como mais ou menos ajustadas à realida-
de circundante (globalizada e hiperacelerada), pois ainda não se sabe se o futuro as revelará
“certas” ou “erradas” ou, ainda, “certas e erradas”.

serão por elas coletados e processados. Assim, por exemplo, caso deseje utilizar a útil (e “gratuita”) funcionalida-
de de ligações via internet pelo WhatsApp, é necessário viabilizar o acesso do aplicativo ao microfone de seu
dispositivo – sem garantias de que esse acesso só será realizado no momento da ligação, perdendo-se completa-
mente o controle sobre os dados que serão então captados e processados pela Meta (antiga Facebook). É sempre
possível não concordar com esses termos, mas, sem o consentimento fácil em um único clique a fim de não se ler
as extensas letras miúdas, o dispositivo não funcionará como intencionado, nem em todas as suas potencialidades.
Aceitar e permitir (rectius, dar o braço a torcer) as grandes companhias a coletarem e processarem nossos dados
a fim de tornar nossa interação com a tecnologia mais palatável é o que Shoshana ZUBOFF chama de “rendição”,
e só pode ser resistida por meio da conscientização da população quanto ao uso informado de seus dispositivos
(cf. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância, cit., Capítulos 8 e 9); uma educação para a tecnolo-
gia, completamos.
34
Alberto Silva FRANCO (Na expectativa de um novo paradigma, cit., p. 323-345, notadamente item V, p. 338-342)
traz importante demonstração dessa concentração de poder nas mãos de poucos como efeito globalizante, com a
“crise financeira” de 2008. Tal como esse penalista, não defendemos a reversibilidade do atual estágio do capita-
lismo, por isso concordamos com ele que novos paradigmas devam ser descobertos, e os atuais desafiados em sua
utilidade e efetividade constitucional.
35
No sentido da pouca, porém alta importância dos juristas e legisladores, assim como da ainda mais diminuta, mas
determinante, força do direito penal na condução social, v. PRITTWITZ, Cornelius. A função do direito penal na
sociedade globalizada do risco: defesa de um papel necessariamente modesto. In: AMBOS, Kai; BÖHM, María
Laura. Desenvolvimentos atuais das ciências criminais na Alemanha. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013. p. 53-66.
36
Expressões usadas por Zygmunt BAUMAN para essas categorias de pessoas e por ele tomadas de empréstimo de
um teste psicológico para medir a capacidade das pessoas de reconhecer, compreender, aceitar as mudanças e
como se comportam diante delas. Cf. “Prefácio à edição brasileira”, de autoria do próprio BAUMAN, na tradução
de sua obra Legisladores e intérpretes, cit., p. 8. O autor assim comenta o teste, por um viés sociológico: “Nossos
olhos, como transparece nesse exemplo, são treinados por nossas experiências anteriores a reconhecer e ‘assi-
milar’ novos e inovadores pontos de vista, e acomodá-los entre os familiares. Por isso mesmo, os olhos são indu-
zidos a minimizar ou mesmo a não notar os tipos de fenômenos inovadores que ‘não se encaixam’ na lição da
experiência anterior e que, com isso, se recusam a ser incluídos à força nas categorias habituais. [...] Leva tempo
até nossa visão alcançar o que vemos” (idem). Para concluir esse ponto, com o que concordamos plenamente:
“Esse teste permite-nos, portanto, encontrar algo mais do que apenas a intensidade de nossa inércia e de nossa
flexibilidade cognitivas. Ele põe a nu a ‘zona cinzenta’ que se estende entre a descoberta de que há ‘algo errado’
com as imagens correntes – e o momento do ‘Eureca!’, quando conseguimos, em um lampejo de compreensão,
reorganizar as sensações incompatíveis, recolocá-las numa ordem nova e razoável, abandonar suas interpreta-
ções anteriores e decidir quais fenômenos-objeto elas representam de fato” (p. 9).
518 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Expostos esses fatores sociais, econômicos e políticos, assim como os desafios no


plano jurídico que enfrentamos, os próximos itens tratam dos efeitos que projetam no apa-
rato criminal e nos sistemas penal e processual penal que possuímos. Tudo para verificar-
mos se o modelo criminal persecutório-punitivo, isoladamente, está apto a atender já aos
reclamos existentes e tantos que se anunciam para este século XXI.

42.2 Efeitos da globalização e do avanço tecnológico no sistema penal do modelo criminal


persecutório-punitivo
No campo jurídico, o fenômeno da “modernidade radical” tem produzido desafios
que a área criminal não tem respondido a contento. À insegurança inerente à fase atual da
“modernidade” agrega-se outra, advinda das dificuldades daquela área a ela se adaptar.37
Do lapso temporal das últimas quatro décadas, haurem-se da legislação brasileira
dados claros de que a criminalização primária caminhou firme e decisivamente em uma
única direção: punir mais (em extensão e profundidade); seguindo – reconheça-se – idêntica
tendência mundial.
No Brasil houve um aumento inaudito da criminalização de condutas até então atí-
picas ou mesmo sequer reguladas legalmente. O direito penal passa a ser recurso de impo-
sição de cumprimento de condutas que poderiam estar submetidas a um direito sancionador
de outra natureza menos incisiva e estigmatizante.38 Também, por outra via dessa mesma
direção, houve um aumento das penas criminais de condutas já existentes.39

37
Silvia BARONA VILAR [Proceso civil y penal ¿líquido? en el Siglo XXI. In: BARONA VILAR, Silvia (ed.).
Justicia civil y penal en la era global. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 19-65], apontando para uma realidade
espanhola, mas com considerações e análises envolvendo outros países europeus, assevera, no item 3 de seu arti-
go, sugestivamente intitulado “Justicia penal líquida: un proceso penal bajo mínimos ante un derecho penal
omnipresente”: “Sob a égide da ‘sociedade mundial do risco’, um conceito que permite acolher os desenvolvi-
mentos da ‘sociedade mundial’, da ‘sociedade da informação’ e da ‘sociedade de risco’, intrinsecamente ligada
à evolução da criminalidade, o mundo se articula sobre mais e mais direito penal, e mais e mais direito sancio-
nador. Diante da ameaça da insegurança global, os poderes públicos respondem com maior controle social, in-
sistindo na necessidade urgente de proteger a segurança cidadã. Se substituiu, claramente, a ideia de segurança
do indivíduo por segurança da sociedade e, curiosamente, diante dessa resposta, o cidadão se sente cada vez
mais desprotegido” (p. 42, traduzimos).
38
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ (En busca del Derecho penal: esbozos de una teoria realista del delito y de la
pena. Montevideo: B de F, 2017), na segunda parte de sua obra, analisa uma nova função que se está atribuindo ao
Direito penal, que ele indaga se estamos construindo um “direito penal regulatório”. Inicia o item com essa inda-
gação (“¿Derecho penal regulatório?”), afirmando: “Há duas décadas é lugar comum afirmar que estamos dian-
te de um novo modelo de Estado. Por um lado, este novo modelo não constitui um retorno ao antigo estado poli-
cial bismarckiano, limitado à proteção frente a perigos (‘Gefahrenabwehr’). Mas, não por outro, parece claro
que implica o desaparecimento do estado intervencionista ou de prestação (‘Wohlfahrtsstaat’, ‘Leistungsstaat’),
onde quer que ele existisse anteriormente. O novo modelo de Estado – o ‘Regulatory State’ – se caracteriza for-
malmente pela delegação de poderes de instituições centrais do Estado a agências reguladoras independentes
(‘independent regulatory agencies’) compostas por especialistas. Assim, portanto, são tais agências regulatórias
– o ‘poder técnico’ −, as que passam a decidir o que e como sancionar” (p. 145, traduzimos). Considerando essa
postura estatal e os riscos de sempre se lançar mão do direito penal como fórmula de perniciosa combinação,
conclui: “A resposta à pergunta sobre a mudança de papel do Direito penal é relativamente sensível. No marco
de um modelo assim concebido, o recurso ao Direito penal responde ao aumento dos desincentivos previamente
existentes contra a realização da conduta infratora. Expresso em outros termos, precisamente nos termos utili-
zados no início deste texto: o fundamento da intervenção criminal apoiando a autorregulação regulada é a ne-
cessidade de pena concebida como princípio utilitarista de fundamentação da incriminação de condutas prescin-
dindo de qualquer consideração de merecimento. A lógica da proporcionalidade em sentido estrito ou os critérios
próprios de um conceito material de crime estão completamente ausentes. O objetivo de que se trata é melhorar
o ‘law enforcement system’ ou, se assim se preferir, a ‘deterrence theory equation’” (p. 150, traduzimos).
39
A honrosa exceção foi a iniciativa representada pela lei do Juizado Especial Criminal (Lei n. 9.099/95). Por ela
tentou-se inserir um novo paradigma de tratamento do “fenômeno criminal”. Todavia, a exceção não teve força
42.  Sociedade global do século XXI 519
Incrementar a criminalização primária foi, e ainda é, por razões lógico-constitutivas
já indicadas40, uma das principais causas da crise atual do modelo criminal persecutório-
-punitivo em todo o mundo; e aqui não é diferente. É elementar que o aumento da base de
condutas criminalizadas insira cada vez mais demandas no sistema processual penal. Mas
tal incremento não é sua única característica essencial.
Igualmente lógico é seu direcionamento para a proteção das atividades econômicas
nascidas ou potencializadas a partir da globalização acoplada ao desenvolvimento tecnológico
(ou talvez tenha ocorrido não uma acoplagem, mas uma reciprocidade potencializadora). No
Brasil, o Direito Penal passa a ser importante instrumento de controle e direcionamento de
políticas econômicas, assim como fora utilizado para dirigismo bélico, político, religioso e
mesmo econômico desde Roma41 até a Idade Contemporânea42, com acentuado destaque à
tradição construída e nunca esquecida a partir do Ancien Régime43. O Poder Legislativo aten-
de, no que pode, aos ditames da economia globalizada44 bem como aos seus controladores –
peças da vez que, neste momento, ocupam as velhas conhecidas forças econômica e política.45
Além dessa criminalização primária, também houve a ampliação dos limites da
pena criminal para os novos tipos penais estratégicos para a economia e política, com menos

suficiente para abrir novas experiências. Em 2008, essa iniciativa solo de transcender o modelo persecutório-
-punitivo sofreu seu principal ataque ao ser pasteurizada e reduzida a mero rito procedimental (sumaríssimo,
cf. art. 394, § 1º, Cód. Proc. Pen.) Até mesmo institutos com potencial amplo e inovador como a transação penal
(art. 76, Lei n. 9.099/95) e a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei n. 9.099/95) passaram a ser aplicados
pontual­mente, mas dentro da lógica do tradicional sistema processual persecutório-punitivo e seus agentes inter-
nos a ele pré-formados. Daquela tentativa inicial de exceção, o essencial se perdeu: a forma não punitiva de olhar
para a ocorrência do crime por uma perspectiva mais sociocriminológica.
40
Cf. item 29, supra.
41
Cf. itens 8.2.2 e 9.2, supra.
42
Cf. item 26.1, supra.
43
Cf. item 19, supra, para a Baixa Idade Média, e itens 24.3.1 e 25.2.1, supra, para, respectivamente, o sistema penal
continental e insular da Alta Idade Média e o início da Idade Moderna.
44
Apenas exemplificativamente, cite-se: Lei n. 7.492/86 (Lei do Colarinho Branco); Lei n. 8.078/90 (Código de
Defesa do Consumidor); Lei n. 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária); Lei n. 8.176/91 (Crimes contra a Or-
dem Econômica); Lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações); Lei n. 9.029/95 (proibição de práticas discriminatórias para
efeitos admissionais); Lei n. 9.279/96 (Lei de Patentes e Propriedade Intelectual); Lei n. 9.472/97 (Lei de Teleco-
municações); Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro); Lei n. 9.605/98 (crimes ambientais); Lei n. 9.609/98
(Lei de Software); Lei n. 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro); Lei n. 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial
e Falência); Lei n. 11.105/2005 (Lei de Biossegurança); Lei n. 12.737/2012; Lei n. 12.850/2013 (Lei de Organiza-
ções Criminosas). O capitalismo de vigilância ainda não está, ao menos no Brasil, sentindo a necessidade de
atuar diretamente no plano penal, mas tem agido para garantir espaços juspolítico de que os dados obtidos e seus
fluxos não encontrem barreiras nacionais ou que imponham sua guarda e proteção sob nossa jurisdição ou con-
trole direto. Nesse sentido, Evgeny MOROZOV (Big tech, cit., p. 23) esclarece que: “Do mesmo modo, seria escla-
recedor perceber que o atual pacote de tratados de comércio – como o [TiSA Trade in Services Agreement,
Acordo sobre Comércio de Serviços], o TTIP [Transatlantic Trade and Investment Partnership, Acordo de Par-
ceria Transatlântica de Comércio e Investimento] e o TPP [Trans-Pacific Partnership, Parceria Transpacífico]
– também visa a incentivar a livre circulação de dados – um eufemismo insosso do século XXI para designar a
livre circulação do capital”.
45
Sobre essas direções, Luigi FERRAJOLI (Criminalità e globalizzazione, cit., p. 79-89) informa que a globaliza-
ção trouxe, ao lado da “velha criminalidade”, uma “nova criminalidade” que ele diz colocar em ameaça os direi-
tos, a democracia, a paz e o próprio futuro do planeta e que ele denomina “criminalidade do poder”. Nessa crimi-
nalidade ele insere, mas diz não ser exauriente, pelo menos três desdobramentos relacionados à dita
“criminalidade organizada”: a dos poderes abertamente criminais, a dos crimes dos grandes poderes econômicos
e, por fim, a dos crimes dos poderes públicos. Embora sempre com deficiências técnicas, o legislador brasileiro
preferencialmente tratou das duas primeiras criminalizações, mas não se pode negar que também tenha, mesmo
de forma menos intensa, criminalizado os crimes ditos dos poderes públicos. No sentido de a globalização ter
trazido a “criminalidade dos poderosos” à vista de todos, embora para isso o direito penal tenha perdido em mui-
to de suas referências tradicionais e ainda não tenha se ajustado em um sistema seguro, v. PRITTWITZ, Cornelius.
A função do direito penal na sociedade globalizada do risco, cit., p. 53-66, item 4.C.
520 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

atenção às condutas tidas como violentas. A criminalização se expande horizontal e verti-


calmente. Se tipificar é um aumento punitivo em sentido horizontal, elevar as penas já exis-
tentes46 aprofunda a punição verticalmente. No Brasil, e não é diferente no mundo47, ambas
essas formas impactam direta e decisivamente tanto a realidade dos cárceres (incluído aqui
os presos provisórios) quanto o estigma social de excluir as pessoas condenadas, ou mesmo
apenas retira oportunidades das processadas criminalmente.48
Essa expansão penal espacial (horizontal e vertical) vem justificada pelos fatores de
sempre, mas agora com roupas de modernidade, a “falta de segurança” e o “medo”49, usados
para esconder as razões de sempre: proteção de posições e privilégios de um pequeno nú-
mero de pessoas que está ou integra (de modo mais ou menos perene) o “poder (político-
-econômico) instituído. Dentre as modernizadas “justificativas” pode-se indicar: (i) os ris-
cos advindos de atividades econômicas que podem produzir perdas de bens relevantes
(p. ex., ecologia, privacidade e experimentos genético-alimentares); (ii) as inseguranças dos
agentes econômicos que se utilizam do modelo criminal para proteção de suas atividades e
de seu maior valor de mercado (dados e sua livre extração, armazenamento e uso, além das
invasividades tecnológicas); (iii) as diversidades e perigos imputados àqueles que se opo-
nham ao dirigismo político-econômico e que possam representar outras forças tecnológicas
emergentes; e, por fim, (iv) o sempre usado anátema de “perigosos” aos “insurgentes”
(ou qualquer forma que se dê aos “inimigos da vez”), que, na realidade brasileira, são, ao
menos em regra, os marginalizados pelas desigualdades do modelo político-econômico e
pela má distribuição de oportunidades sociais e educacionais (ladrões de rua, assaltantes de
comércios, pequenos traficantes, etc.).50
Como vimos na Parte II deste estudo, a criminalização primária, exacerbada tanto
horizontal quanto verticalmente, e sua decorrente persecução-punitiva pelos agentes e agên-
cias do aparato criminal não surtiu qualquer um daqueles efeitos para os quais elas se apre-
sentam como solução: não houve diminuição da criminalidade51; o aparato criminal está

46
No Cód. Pen., foi o que ocorreu, por exemplo, com os seguintes tipos: extorsão mediante sequestro (art. 159; mu-
dança pela Lei n. 8.072/90; elevação da pena mínima de 6 para 8 anos); frustração de direito assegurado por lei
trabalhista (art. 203; mudança pela Lei n. 9.777/98; elevação dos patamares de um mês a um ano para um a dois
anos); aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional (art. 207; mudança pela Lei
n. 9.777/98; elevação dos patamares de dois meses a um ano para um a três anos); epidemia (art. 267; mudança pela
Lei n. 8.072/90; elevação da pena mínima de cinco para dez anos); envenenamento de água potável ou de substân-
cia alimentícia ou medicinal (art. 270, caput; mudança pela Lei n. 8.072/90; elevação da pena mínima de cinco
para dez anos); concussão (art. 316; mudança pela Lei n. 13.964/2019; elevação da pena máxima de oito para 12
anos); corrupção passiva (art. 317; mudança pela Lei n. 10.763/2003; elevação dos patamares de um a oito anos
para dois a 12 anos); facilitação de contrabando ou descaminho (art. 318; mudança pela Lei n. 8.137/90; elevação
dos patamares de dois a cinco anos para três a oito anos); e corrupção ativa (art. 333; mudança pela Lei
n. 10.763/2003; elevação dos patamares de um a oito anos para dois a 12 anos).
47
Cf. BARONA VILAR, Silvia. Proceso civil y penal ¿líquido? en el Siglo XXI, cit., item 3.1.2: “Consecuencias:
más delitos, más condenas, menos satisfacción, más colapso del sistema”.
48
Cf. item 40, supra.
49
Sobre o emprego do medo e da insegurança como fatores justificadores da expansão da criminalização primária,
cf. itens 8.2, 14.1, 19, 23, 24.2, 25.2.1 e 26.2, supra.
50
Sobre o “novo modelo penal da segurança cidadã”, no qual demonstra que as mais intensas demandas da atuali-
dade não encontram proteção pelos sistemas penais e processuais clássicos (inclusive da dita “justiça negociada”)
e, com isso, angaria o descrédito da população insuflado por populismos políticos que, descrentes das institui-
ções, “pedem” mais criminalização e penas maiores, além de uma maior proteção da vítima, v. DIÉZ RIPOLLÉS,
José Luis. La política criminal en la encrucijada. Montevideo: B de F, 2007. Capítulo IV.
51
Cf. todo Capítulo VII, supra, com uma breve síntese no item 34, supra.
42.  Sociedade global do século XXI 521
colapsado e se torna disfuncional para “combater o crime”52 e, pior, seus agentes e agências,
ainda que não intencionalmente, estão contribuindo para a aceleração de uma espiral ascen-
dente de violência social53. O sistema penal, objeto deste item, com seu incremento punitivo
não confere mais segurança ou diminui a violência social; seja porque esta não cede às
ameaças ou punições nele previstas, seja porque, ao punir, injeta mais violência (institucio-
nal) em um contexto social em que ela já existe. Torna-se ainda pior se há encarceramento,
pois a violência institucional intramuros molda e organiza uma mais intensa criminalidade
que se lança – extramuros – contra a sociedade.
Além dessa baixa eficiência do sistema penal, ao menos em relação à finalidade que
afirmam possuir (em especial, desestimular a criminalidade e punir os infratores), o perfil da
população carcerária brasileira comprova que ele espelha – e talvez até potencialize em algu-
ma medida – as desigualdades sociais brasileiras. Abismos socioeconômicos que, reconheça-
-se, iniciam-se desde o déficit alimentar, habitacional e educacional, revelando-se às claras
no perfil populacional dos encarcerados, cujas taxas estão em crescimento, assim como as
de letalidade entre os mais desapercebidos.54
Não há nenhuma dúvida de que a globalização associada à tecnologia oferece alter-
nativas para o crescimento e novos expedientes postos à disposição de um maior número de
pessoas fora dos núcleos de poder. Contudo, não é menos evidente que ela também traz
consigo crescentes e mais eficientes mecanismos de controle para, na medida que lhe seja
interessante, marginalizar e excluir um número cada vez maior de miseráveis a quem não é
dado sonhar com ascensão, pois sua preocupação premente é lutar cotidiana e literalmente
pela sobrevivência. Quase todas as nossas metrópoles assistem ao desenfreado crescimento
de bolsões de pobreza e exibem essa realidade à distância de nossas janelas (das casas ou
dos veículos que trafegam).55 Embora todos atrás dos vidros tenhamos olhos para ver, nem
todos enxergamos o suficiente para sentir ou pelo menos (re)fletir que essa talvez seja uma

52
Cf. todo Capítulo VIII, supra, com breves sínteses de cada fase persecutória nos itens 36.5, 37.3 e 38.3, supra.
53
Cf. item 40, supra.
54
Sobre o perfil de marginalizados da grande maioria das pessoas envolvidas nos crimes com maior violência, as-
sim como da população encarcerada cf. item 32, supra, em que, no ano de 2020, aproximadamente 70% da popu-
lação tinha apenas até o primeiro grau completo, sendo que quase 40% dos encarcerados tinha entre 18 e 29 anos
(cf. Gráfico 15, supra); nesse mesmo item expusemos como são os jovens entre 15 e 29 anos que representaram,
em 2019, 51,2% do total de vítimas de homicídio (cf. Gráfico 16, supra). Sobre a ascensão dos índices de crimina-
lidade em geral e sobre as altíssimas taxas de letalidade entre os envolvidos na criminalidade, assim como de
policiais e as provocadas por estes, v. item 31, e seus subitens, supra, em que, apenas em 2020, foram registradas
6.416 mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora de serviço (cf. Gráfico 6, supra).
55
Como os dados e pesquisas demonstram, os níveis de pobreza vêm crescendo em toda a América Latina, notada-
mente neste período pandêmico, no qual as desigualdades cresceram ainda mais devido ao já enorme diferencial
de acesso desde a bens de consumo até a informações e dispositivos tecnológicos para minorar as agruras do
período (v. COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE. Panorama Social de Améri-
ca Latina. Santiago: CEPAL, 2021. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46687/8/
S2100150_es.pdf. Acesso em: 12 dez. 2021). Especificamente em relação ao Brasil, Luciana CAVALCANTE, ao
relatar o estudo realizado por Daniel Duque, economista e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Ibre),
destaca que “As maiores expansões da pobreza aconteceram no Rio de Janeiro, Distrito Federal e Roraima. No
Rio de Janeiro, o incremento foi de 6,9 pontos percentuais, passando de 16,9% em 2019 para 23,8% em 2021,
chegando a quase um quinto da população. O Rio de Janeiro foi o segundo estado com a maior alta na concen-
tração da população mais pobre; vem primeiro lugar está o Distrito Federal, no qual a população pobre foi de
12,9% para 20,8% no período. Em São Paulo, a população pobre chegou a 19,7%, alta de 5,9 pontos percentuais
em relação a 13,8% no final de 2019” (CAVALCANTE, Luciana. Pobreza piora com pandemia em todo o país,
menos em 3 estados, diz pesquisa. UOL, Belém, 30 ago. 2021. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noti-
cias/redacao/2021/08/30/pobreza-avanca-em-todos-os-estados-menos-3-com-a-pandemia-diz-pesquisa.htm.
Acesso em: 12 dez. 2021).
522 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

das mais evidentes formas de violência social: tornar o “outro” invisível e não perceber que
suas necessidades essenciais56 não são atendidas.
Este trabalho não ignora essa forma de violência social, muitas vezes pré ou motiva-
dora de conflitos criminais. Ao contrário, tem-na como indutora de sua proposta de mudan-
ça de paradigma e, correlatamente, de elaboração de uma teoria que comporte e justifique
um novo modelo criminal e seu necessário sistema processual. Este, a partir daquele para-
digma não violento e encaminhado para ser transformativo de conflitos em ações positivas
socialmente, atento a essas formas de violência (inviabilizar e não perceber e atender às
necessidades essenciais do ser humano), torna-se meio de percebê-las, compreendê-las e
levá-las de retorno a instituições de políticas públicas. Sendo assim, torna-se, em sentido
vetorial distinto do tradicional, via de retorno da população envolvida no conflito para in-
formar políticas públicas que possam atuar em causas criminógenas ou mesmo motivadoras
de conflitos sociais.
Antes, porém, de entendermos esse novo paradigma e suas decorrências e consequên­
cias propostas e explicitadas nesta Parte III, necessário analisar, mesmo que de passagem,
quais os efeitos que todo esse manancial punitivo advindo de um aumento horizontal e
vertical de criminalização primária produz no sistema processual penal. A partir da verifi-
cação de que ele não consegue, sozinho, atender a toda a demanda criminal no Brasil deste
século XXI, será possível compreender quais as estratégias de política criminal que estão
sendo dispostas e se, com elas, garante-se uma maior efetividade constitucional dos direitos
fundamentais de todos os envolvidos no conflito criminal: vítima, infrator e comunidade a
eles circundante.

42.3 Efeitos da globalização e do avanço tecnológico no sistema processual penal do


modelo criminal persecutório-punitivo
Todo esse movimento de política criminal expansivo-punitivo no âmbito do sistema
penal do modelo criminal persecutório-punitivo produz reflexos no sistema processual a ele
correlato. Porém, antes de verificarmos esses efeitos de aumento de demanda, necessário
tecer breves considerações sobre os efeitos que a aceleração produzida nos anseios da popu-
lação causa na avaliação que ela faz do sistema processual penal do julgamento.

42.3.1 O sistema processual penal persecutório não atende a demandas “consumeristas”,


mas trata de conflitos sociais complexos e de alta relevância penal: a tecnologia
como uma das causas das percepções distorcidas da sociedade atual
A velocidade da sociedade atual, em muito derivada da tecnologia que tem a aptidão
de a tudo acelerar57, é indutora do erro em não se compreender o “tempo breve” que rege
nossos anseios por “respostas” e “atendimentos” rápidos e o “tempo longo” da estrutura
(instrumentos e agentes) sobre a qual foi construído o sistema processual do julgamento.58 e 59

56
Sobre a importância do tema das “necessidades essenciais”, v. item 44.3, infra.
57
Cf. item 42.1, supra.
58
O termo “sistema processual do julgamento” é usado em oposição ao “sistema penal premial-negociado”, já ex-
plorado no item 27.1, supra.
59
Esses conceitos destacados entre aspas no parágrafo são trazidos por José de FARIA COSTA (Direito penal e
globalização, cit., Capítulo 1, itens 1 e 3).
42.  Sociedade global do século XXI 523
Necessário, portanto, compreender como o “tempo breve” vai se introjetando em nós e, a
partir de nós, passamos a querer alterar a natureza de “tempo longo” do instrumento pro-
cessual que a tradição jurídica nos legou.
A velocidade irreversível e irresistível da Modernidade, inserida em nossas mentes
pela via tecnológica (acesso e facilidades), já se tornou parte de nossas referências pessoal e
comunitária. O tempo é menor para quem vive na segunda década do século XXI em rela-
ção a quem viveu na segunda década do século passado, ou mesmo em suas duas últimas.
O acesso irrestrito a informações globais e atemporais, assim como o sentido de que tudo
não deve demorar para acontecer, conduzem-nos, doravante e cotidianamente, a fazer con-
fusões entre o que é, etiológica, ontológica e referencialmente, diverso: de um lado, o mer-
cado de bens e serviços de consumo e, ainda, o acesso às informações e, de outro lado, a
decisão judicial, notadamente no campo criminal.
No âmbito processual decisório está se introduzindo uma equivocada sinonímia en-
tre “eficiência” e “tempo breve”.60 Com o mesmo equívoco se associam garantias processuais
com formalismos e estes, por sua vez, com burocracia que, no caso brasileiro, pela experiên­
cia vivida com o sistema criminal (penal e processual penal) significa ineficiência. Dessar-
te, a lógica argumentativa é fácil, embora equivocada por falta de percepção e reflexão.
Pode-se resumi-la da seguinte forma: como os direitos fundamentais burocratizam o pro-
cesso (no sentido de torná-lo “lento”, lendo-se esse termo com o sentido de “ineficiente”),
precisamos encontrar formas de encurtá-lo por meio da redução parcial ou total daqueles
direitos.61 Com isso, abrem-se possibilidades para se caminhar em sentido contrário ao da
humanização constitucional da persecução penal.62
O “tempo breve” para obter “resposta” ao “fenômeno criminal” passa a ser mais
importante do que como ela é produzida. Afinal, transportamos para o campo processual
penal nossos comportamentos e desejos do mundo do consumo e da comunicação, e, nesse
âmbito, não importa “como” e “onde” se produzam bens de consumo, mas o tempo (acele-
rado) com que “precisam” chegar até nós. Em regra, preocupamo-nos mais com o tempo de
entrega, deixando a um plano subalterno o método e meios de produção das coisas e das
informações que “escolhemos” receber.

60
Utilizando a informática para demonstrar os efeitos que a modernidade causa, note-se que, no sítio eletrônico
Sinônimos.com.br, o termo “Eficiente” já traz como terceira opção do primeiro significado: “ágil”; termo prece-
dido apenas por “ativo e energético”. Disponível em: https://www.sinonimos.com.br/eficiente/. Acesso em: 12 dez.
2021. Em GEIGER, Paulo (org.). Novíssimo Aulete: dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janei-
ro: Lexikon, 2011. p. 526, o verbete “Eficiente” traz como seu primeiro significado: “1. Que consegue o efeito
esperado”. Os demais significados são: “2. Que realiza bem tarefa, trabalho etc., obtendo bons resultados com
um mínimo de dispêndio (tempo, recursos, energia etc.), ou dentro dos padrões aceitáveis 3. Que dispõe de qua-
lidades, recursos, equipamento etc. para realizar certa tarefa ou obter certo resultado em boas condições (com
um mínimo de erro, dispêndio, risco etc.) 4. Que, em geral, desempenha suas funções com produtividade e dentro
dos padrões e normas exigidos [F: Do lat. efficiens, entis. Sin. ger.: eficaz. Ant. ger.: ineficiente.]”.
61
Essa simplificação argumentativa que leva à baixa efetividade constitucional no âmbito processual, foi bem cons-
tatada por Miguel Tedesco WEDY em obra específica sobre o tema (A eficiência e sua repercussão no direito
penal e no processo penal. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2016. Notadamente, para o processo penal, no item 6 e
seus subitens). A partir de uma análise onto-antropológica, em que analisa a eficiência a partir de seus fundamen-
to, função e finalidade, defende uma “tríplice hélice” de proteção e equilíbrio entre “as ideias de garantia, de
justiça e de eficiência” (p. 291) que atuaria pela dinâmica de pesos e contrapesos de forma a, sem alijar as garan-
tias fundamentais que tornam um processo afeito ao Estado de Direito Constitucional, buscar uma realização no
pano fático de algumas melhoras em busca da celeridade (cf. item 6.1).
62
Sobre a humanização do processo penal pelo Iluminismo a partir do século XVIII e da garantia de direitos humanos
ao imputado a partir da inserção nas constituições daqueles direitos como “fundamentais”, cf., respectivamente,
itens 26.1 e 26.3 e seus subitens, supra.
524 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Tal “aceleração” que nos assola, por óbvio, não advém de uma mudança de padrões
cronológicos, mas opera e se desenvolve em nosso campo psicológico, não obstante tal di-
ferença constitutiva não interfira no resultado final que desejamos: (queremos) tudo mais
rápido, como se velocidade e eficiência fossem já um só conceito.63 Não raro, em nossas
vidas cotidianas e para coisas prosaicas (p. ex., refeição ou conserto de objetos), quando nos
perguntam se queremos maior qualidade ou mais agilidade, preferimos, em regra, a segun-
da. Diante dessas escolhas, optamos por pagar mais caro pela entrega mais rápida do bem
comprado pelo telefone móvel (p. ex., um livro) enquanto nos deslocamos pela cidade utili-
zando o wi-fi do transporte público ou do carro solicitado por aplicativos de celular, apesar
de sabermos que nos faltará tempo para iniciar seu consumo (leitura) e que poderíamos
esperar por mais algumas semanas sem qualquer perda em sua fruição. Aceita-se pagar
mais para ter mais rápido um bem cuja fruição será em um tempo futuro e distante; se é que
teremos tempo para fruí-lo. O fato de que a agilidade na entrega passou a ter, para muitos,
valor econômico no mercado comprova tal preferência pelo “menor tempo”, sendo, não raro,
item de conquista de parte dos consumidores pelas empresas de melhor logística de entrega.
A mais rápida na entrega será por nós classificada de mais “eficiente”.
Esse estado psicológico de constante confusão entre agilidade e eficiência é uma
realidade e não merece ressalva quando aplicado nas escolhas individuais ou sociais de cada
um de nós – somos livres para isso. Contudo, transportado sem restrições ao sistema pro-
cessual penal do julgamento, categorizando-o apenas como prestação de serviço público
(que é), a ele é conferida uma desleal deslegitimação pelo irrealizável anseio de que a reação
institucional ao crime seja tão imediata (rectius, rápida) quanto seu acontecimento ou a dor
sofrida. Esse erro emocional é orientado por uma expectativa psicológica criada no mercado
de consumo e na acessibilidade instantânea da informação; e não carece de muito esforço
para mostrar toda a sua impropriedade se aplicada ao processo penal.64
O crime tem seu tempo de cometimento, que depende de vários fatores. Sua apura-
ção, com todo o desvelar e reconstruir que implica o método inquisitivo65, compreende as
seguintes fases: comunicação/descoberta do crime; investigação, consistente em identifi-
car e demonstrar sua extensão lesiva (materialidade) e todos os envolvidos nessa conduta

63
Para uma busca de compatibilização constitucional entre “eficiência”, que todo sistema deve apresentar, e a pre-
servação das garantias fundamentais (“garantismo”), notadamente processuais penais, foi aberta linha de pesqui-
sa na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a batuta e inspiração do Professor Antonio Scarance
Fernandes, e com o auxílio dos Professores José Raul Gavião de Almeida e Marcos Alexandre Coelho Zilli, além
deste autor, que organizaram, durante muitos semestres, cursos e trabalhos em nível de pós-graduação para a
discussão de várias temáticas processuais sob aqueles critérios. Para a visão daquele professor regente sobre a
necessária convivência que precisa existir entre eficiência e garantismo, v. SCARANCE FERNANDES, Antonio.
Processo penal constitucional. 6. ed. São Paulo: RT, 2010. Item “1. O processo constitucional”.
64
Após analisar o conceito de tempo na física, citando os estudos de Ilya Prigogine, químico russo, além de François
Ost e Stephen Hawking, Felipe Lazzari da SILVEIRA e David Leal da SILVA (Tempo, discronia e processo penal:
uma revisão democrática. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 25, v. 132, p. 139-167, jun. 2017)
afirmam, no sentido do texto, para o âmbito processual, que “a compreensão da relação entre o tempo e o Pro-
cesso Penal tem como pré-requisito a consciência de que o tempo social possui diversas velocidades, ou seja, de
que é composto por ritmos específicos e durações particulares, bem como de que são essas diversas escalas
temporais, nem sempre vinculadas pelos mesmos princípios de encadeamento que viabilizam o avanço da socie-
dade em diferentes velocidades” (p. 143).
65
Sobre o método inquisitivo ter sido “cientificamente” desenhado e implementado nos modelos criminais aos
moldes escolásticos a partir do século XII e persistir até nossos dias em linhas gerais, v. item 20, supra. Para a não
confusão entre método inquisitivo e sistema processual inquisitivo aos moldes europeu continental, uma vez que
também o jury system inglês originário e os denominados sistemas acusatório e adversarial deles decorrentes
também utilizam aquela metodologia da inquisitio, v., respectivamente, item 25.2 e seu subitem 25.2.2.3, supra.
42.  Sociedade global do século XXI 525
(“autoria”), assim como os meios utilizados; após, e caso positiva a fase anterior, inicia-se a
fase judicial, compreendida, no Brasil, em procedimento submetido em regra a um juiz toga-
do, que deve instruí-lo com o máximo de elementos de prova e, ao final, decidir, abrindo-se
posterior e eventual fase recursal. Todos esses passos persecutório-punitivos são orientados e
submetidos a influxos constitucionais de pesos e contrapesos entre os órgãos persecutórios
(investigativos e acusatórios) e defensivos, de modo a se atingir um resultado produzido sob
os auspícios do devido processo legal. Esse é, resumidamente, o que justificou a criação (etio-
logia) e do que é constituído (ontologia) o sistema processual penal do julgamento.
Posto dessa forma, emerge claro que imprimir ou a ele exigir o tempo acelerado
(rectius, “tempo breve”) que desejamos em coisas da nossa vida não é compatível com a
estrutura e agentes que compõem atuam no tempo do processo. O processo penal cuida de
dilemas e conflitos sociais de alta complexidade e relevância. Assim deve ser visto; não
como uma prestação de serviço de algo simples ou apenas “burocrático”.
Para uma reflexão, pode-se refletir se exigimos esse mesmo tempo breve para outras
questões sociais complexas. Não usamos o mesmo critério do “tempo breve” para medir a
“eficiência” na “solução” de desafios individuais como, por exemplo, o alcoolismo, a de-
pressão, o ódio ou a vingança no ser humano, muitos deles já em si fatores criminógenos.
Em uma perspectiva social, por sua vez, qual o tempo para resolvermos os conflitos entre
vizinhos, familiares ou colegas de trabalho ou na escola? Pode-se exigir – ou mesmo esperar
– que o conflito entre irmãos ou entre ex-casados se resolvam em “tempo breve”? Todos
esses conflitos e dilemas citados são, de alguma forma, humanos e sociais, logo, de mesma
natureza do “conflito criminal”. Sendo assim, se a medicina, a psicologia não “resolver”
aqueles desafios individuais em “tempo breve” elas serão ciências “ineficientes”? Se os pais
não conseguirem conciliar rápido filhos que se odeiam ou se estes não fazem o mesmo com
pais separados seriam todos “ineficientes”? Como se deve fazer para “simplificar” esses
“processos” de tratamento pessoal e de conciliação interindividual para atenderem o “tem-
po breve” que a sociedade da informação e da tecnologia nos introjetou como “eficiente”?
As variadas e plurais hipóteses e possibilidades no iter persecutório-procedimental
completo impedem que entre a informação do crime e o “pedido acusatório” e, mais à frente,
a resposta final (prestação jurisdicional) se leve o tempo de um delivery ou drive-thru66 ou até
de uma encomenda tailor-made a ser entregue por mensageiro.67 São problemas de natureza
social, não de produtividade industrial ou logística. Além do que, nas linhas de produção con-

66
As expressões são usadas aqui por serem a parte mais visível ao consumidor do resultado de um procedimento
logístico, que não se quer ver/saber pois não importa, do qual se espera rapidez desde a formulação do pedido.
Elas são tiradas de um ambiente observado e analisado sociologicamente por George RITZER, em obra de 1993
(The McDonaldization of society: an investigation into the changing character of contemporary social life. Thousand
Oaks: Pine Forge Press, 1993). Na versão criminal dessa macdonaldização espera-se, levianamente, pelo mesmo:
pedido condenatório → resultado... condenatório.
67
Aury LOPES JR. (Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 42, item
“1.3. Direito e dromologia: quando o processo penal se opõe a correr, atropelando as garantias”, p. 42) muito bem
observa que é também do descompasso de tempo curto (da sociedade da informação) e tempo longo (imanente ao
processo violento) que nascem as atuais demandas por medidas cautelares que cumprem função apenas de “ante-
cipação de pena”. Diz, com o que concordamos: “Mas a velocidade da notícia e a própria dinâmica de uma socie-
dade espantosamente acelerada são completamente diferentes da velocidade do processo, ou seja, existe um
tempo do direito que está completamente desvinculado do tempo da sociedade. E o direito jamais será capaz de
dar soluções à velocidade da luz. Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velocidade
da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma
imediata punição. Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois tempo é dinheiro) e a sociedade (que não
quer esperar, pois está acostumada ao instantâneo)” (destaques do autor).
526 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

sumeristas, todos os integrantes trabalham em uma única direção pré-estabelecida pelo “pro-
dutor ou prestador de serviço” na busca de seu ótimo produtivo. Na persecução penal, ao
contrário, pela dinâmica do contraditório, as forças envolvidas na produção são postas, inten-
cional e metodologicamente, de modo a conterem e se oporem umas às outras para, do “em-
bate”, surgir um resultado depurado. Adicione-se a isso que, diferente da iniciativa privada
pujante das multinacionais da tecnologia e do consumo, os conjuntos de forças são reduzidos
na persecução penal (sucateamento das agências persecutórias, judiciais e defensivas): há so-
brecarga de trabalho, falta de treinamento e de estrutura para tamanha demanda sempre cres-
cente.68 Acrescente-se, ainda, o fato de na persecução, devido àquela sobrecarga e falta de
treinamento e estrutura, há o denominado “tempo-morto”69 e, ainda, perdas por vícios (nuli-
dades e/ou ilegalidades), que podem ser assemelhadas com uma “produção defeituosa” e que
refletir negativamente no produto ou serviço finais; provocam, às vezes, mais “retro”cesso
(retro-cedere; voltas) do que “pro”cesso (pro-cedere; avanços).
O “fenômeno criminal” é uma espécie de “fenômeno social” ou ao menos intersub-
jetivo, e a maquinaria e logística posta à sua “solução” é de “tempo longo”; como o é qual-
quer serviço a ser prestado para solucionar conflitos sociais ou intersubjetivos. Aqui está o
erro de percepção acima indicado. Não se pode tratar conflito criminal, espécie de conflito
social ou entre indivíduos, como se fosse uma prestação (pública) de serviço para uma de-
manda consumerista, por mais complexa que esta seja. A natureza social do conflito (crimi-
nal) exige do instrumento para sua fixação e esclarecimento (processo penal) uma natural
complexidade para se atingir o melhor resultado (a decisão mais “justa”).
Frente a esta constatação de um erro de abordagem quanto ao que é “breve” (rectius,
veloz) é sempre melhor (rectius, eficiente) quando se está diante de um conflito social com-
plexo e de alta relevância criminal, a questão passa a ser se podemos ter, mesmo respeitando
a natureza do conflito tratado e a ontologia do instrumento utilizado, o que se convencionou
denominar de “simplificação processual”. É do que trata o próximo item.

42.3.2 A ilegalidade da redução de constitucionalidade pelo “antiformalismo”: violações de


direitos e promoção de maior violência institucional
Se pela perspectiva penal a globalização e a alta tecnológica produzem uma crise no
modelo criminal pelo incremento (horizontal e vertical) da criminalização primária, pelo viés

68
Sobre todas as falhas, insuficiências e sobrecargas nas várias fases do processo penal brasileiro, cf. itens 36 a 38,
supra, nos quais trouxemos números e custos de cada uma de suas porções na realidade brasileira desta década
do século XXI.
69
Aury LOPES JR. e Gustavo BADARÓ (Direito ao processo penal no prazo razoável. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p. 49-73) sintetizam os critérios utilizados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) em três pon-
tos: “(1) a complexidade do caso; (2) o comportamento da parte; (3) o comportamento das autoridades judiciárias”
(p. 49). Após examinarem a extensão e a aplicabilidade desses critérios na realidade nacional, trazem, com escólio
em Mario CHIAVARIO (Processo e garanzie della persona. 2. ed. Milano: Giuffrè, 1982. v. II. p. 274), com o qual
também concordamos, que o prazo razoável pode se alongar em decorrência de situações complexas e peculiares ao
caso. Todavia, ocorre violação daquela razoabilidade, mesmo que cronologicamente em tempo reduzido, se ele é
desperdiçado sem a prática de atos ou quando estes se alongam além do necessário, por inércia, falta de denodo ou
anuência das autoridades judiciárias responsáveis por sua condução. E concluem, novamente recorrendo ao profes-
sor italiano: “O problema não é a dilação dos prazos fixados em lei, mas a ausência de mecanismos que impeçam
os ‘tempos mortos’” (LOPES JR., Aury; BADARÓ, Gustavo. Direito ao processo penal no prazo razoável, cit., p. 72).
Para uma análise bastante mais detalhada e exauriente da jurisprudência do TEDH a respeito da razoável duração do
processo e dos critérios lá utilizados para verificação da equidade do processo como um todo, v. PASTOR, Daniel R.
El plazo razonable en el proceso del estado de derecho: una investigación acerca del problema de la excesiva dura-
ción del proceso penal y sus posibles soluciones. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002. p. 109-168.
42.  Sociedade global do século XXI 527
processual penal elas o empurram a uma minimização paulatina (redução e/ou violação) das
garantias constitucionais; até o momento, única saída em que se investe para buscar a manu-
tenção daquele modelo.70 Mais daquela (criminalização) e menos dessas salvaguardas proces-
suais contribuem, em uma sinergia socialmente deletéria, para excesso punitivo e violações
constitucionais pelos agentes do aparato criminal, tudo a estimular a “violência institucional”.
A bem se examinar, há duas formas de essas reduções (rectius, eliminações) de di-
reitos fundamentais serem atingidas, com efetiva perda de constitucionalidade: uma ilegal e
outra legal. Esta última, pelos denominados “mecanismos de simplificação procedimental
penal”71. Examine-se cada qual em separado para se demonstrar que ambas são, ineludivel-
mente, integrantes do modelo criminal persecutório-punitivo, intensificando seus efeitos in-
quisitivos e sancionatórios; quando não constituírem, no caso das ilegais, prática de crimes
pelos agentes (públicos e privados) do aparato criminal. As ilegais, serão tratadas neste subi-
tem e, as legais, referentes às “simplificações” em busca da “celeridade” (rectius, “eficiência”)
processual, no próximo.
Começando pelos descumprimentos da legislação e dos direitos processuais de
matriz constitucional − instâncias normativas a serem cumpridas no sistema processual
brasileiro atual por assunção de compromissos com a comunidade internacional72 − pode-
-se identificar duas ordens de ilegalidades: de um lado, as conscientes e voluntárias e, de
outro lado, as involuntárias, quase sempre movidas pelo colapso em que estão as agências
persecutório-judiciais.
Sobre as ilegalidades voluntárias e conscientes deve-se ressalvar que são a exceção.
Mas deve se gizar, com traços fortes, que, mesmo de diminuta ocorrência, quando praticadas
elevam a violência institucional a outro patamar. Esta deixa de ser “apenas” violência em si
(ontologicamente) e passa a ser violação produzida, isto é, intencional atuação ilegal que, não
raro, é, de fato, perpetrar nova violência criminal (crime “no” processo ou “para o” processo).
Assim, pode-se ter desde nulidades processuais com ilegalidades, por exemplo, por
violação de regras de procedimento ou de produção de prova, as quais não configurariam

70
Silvia BARONA VILAR (Proceso civil y penal ¿líquido? en el Siglo XXI, cit., item 3) aponta que quanto mais há
expansão penal, mais há contração processual penal, levando à minimização de garantias e seguranças jurídicas.
Assevera, ao tratar essa fase processual penal como de um “processo mais líquido” neste século XXI, seguramen-
te baseada nas ideias sociológicas de Zygmunt Bauman, com a noção de que o “eficiente” é o sem garantias cons-
titucionais: “O resultado final que a realidade atual nos oferece é que o processo penal incomoda, mas não a
todos, e há que se dilui-lo, incorporar meios que o tornem menos presente, mesmo para ‘alguns’ e para ‘deter-
minados’ pressupostos. Esta procura do ‘processo penal mínimo’ é o que pretendemos vincular ao ‘processo
penal líquido’, que carece, ou pelo menos já não está firmemente vinculado, aos fundamentos que nos permitam
falar em processo penal garantista. A partir do momento em que incorporamos a diversidade como ponto que
diferencia o tratamento processual penal, começa a surgir aquele processo penal líquido, não sólido, que se dá
a uns e não a outros – vulneração do princípio da igualdade –, e que visa a eficiência por sobre a justiça. Uma
eficiência que vem, por outra parte, condicionada por essa outra cara da moeda, que é a expansão do Direito
Penal” (item “3.2.3. Hacia un proceso penal más líquido, lema del Siglo XXI”, p. 54, traduzimos). Da mesma
autora, cf. Proceso penal desde la historia, cit., p. 589-605, item 4.3.3, intitulado “Manifestaciones del proceso
líquido y ‘liquidables’: la evanescencia de las garantias procesales, el desequilíbrio según ‘nosotros y ellos’, y la
impredecible ebullición del 4.0. en Justicia penal”. Cf., ainda, SILVEIRA, Felipe Lazzari da; SILVA, David Leal
da. Tempo, discronia e processo penal, cit., item 4.
71
Esta expressão é utilizada por Julio B. J. MAIER em artigo em que, assim como se fará neste trabalho no próximo
item, ele analisa duas formas de “simplificação processual”: a ritualística, com reduções e otimizações procedi-
mentais, e a aplicação de institutos de barganha penal-processual, no sistema que denominamos, neste trabalho,
de “sistema penal premial-negociado”. Cf., daquele autor, Antología: el proceso penal contemporáneo. Perú: Pa-
lestra. 2008. p. 547-567, “Mecanismos de simplificación del procedimiento penal”.
72
Cf. item 26.3 e seu subitem, supra.
528 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

crimes, até atos criminosos de violação de direitos fundamentais materiais (p. ex., direito
à intimidade, privacidade ou mesmo integridades física e mental). Os agentes internos
(persecutório-judiciais), ou mesmo defensores privados que atuem dessa segunda forma
descrita, passam a cometer crimes. Nada justifica crimes perpetrados exatamente por quem
os deveria coibir, notadamente os agentes internos do modelo criminal. Assim, também são
crimes praticados por agentes públicos os abusos e violências tolerados ou perpetrados den-
tro dos presídios contra os condenados que cumprem pena. Ser um condenado criminal não
autoriza a ninguém a vitimá-lo em vários graus e de diferentes modos na fase de execução
de sua pena. A violência assim praticada é criminosa, sendo inaceitável a pretensa justifica-
tiva de que é feita devido a crime anterior irrogado ao imputado.73 Se assim for, a pergunta
deve ser: o que diferenciaria os agentes persecutório-judiciais-penitenciários, e até mesmo
defensores, de outros criminosos que eles perseguem, julgam, prendem e defendem?
Os descumprimentos involuntários e inconscientes da norma processual penal (cons-
titucional ou legal), por outro lado, têm um nível de violência institucional produzida menor.
Apesar de ainda serem violência e desvio legal no sistema processual, em regra não configu-
ram crimes e decorrem (direta ou indiretamente) do sucateamento de um aparato criminal
disfuncional e inadequado ao fim a que se dispõe: abarcar toda a criminalidade existente e
dar a ela a resposta por meio de acertamento fático-normativo e julgamento. No Brasil deste
século XXI, não é possível se fechar os olhos ou se tratar como de menor importâncias todo
o demonstrado colapso e disfuncionalidade daquele aparato criminal. De se supor que os
(d)efeitos que geram são incontroláveis, v.g., a seletividade e aumento do passivo criminal.74
Todavia, precisamos reconhecer que essa situação de colapso gera profunda sensa-
ção de impotência em seus agentes internos ao observarem a crescente e violenta crimina-
lidade que não conseguem “combater”. Essa frustração, que todos sentem em um momento
da vida forense criminal, mesmo os seus agentes privados, deve ser respeitada e entendida.
Todavia, seu atendimento deve obtemperar alguns pontos antes que o aspecto bom daquele
sentimento (desejar reduzir a violência social) torne-se o oposto (incrementando a violência
social pelo recrudescimento da violência institucional).
O primeiro é que há várias causas para o colapso do sistema processual, nenhuma
delas tributável ao imputado que está sob persecução. Dentre essas causas, e para ficarmos
nas mais evidentes e já analisadas nesse trabalho para o Brasil do século XXI, estão: a alta
demanda gerada pelo aumento horizontal e vertical da criminalização primária; o sucatea-
mento do aparato criminal em estrutura a agentes internos; a falta de modernização das leis
processuais; e, por fim, a aposta cega e quase inquestionável de que o modelo persecutório-
-punitivo deve ser o único para tratar de tudo que envolve a violência criminal. Todas essas
causas são reais e deveriam ser o foco de preocupação dos agentes internos na busca de uma
efetiva redução da violência social e não aceitar sem questionamentos a (i)lógica secular de
que violência (criminal) se “combate” com violência (institucional). Essas violências sempre
se combinaram (e continuam a se combinar) apenas para produzir mais violência social.
Postas essas causas, torna-se desleal o discurso (involuntário ou intencional) de que
o processo penal, para “fazer justiça”, deva ter “tempo breve”. Propalando-se que a retirada
de garantias constitucionais e o desrespeito às leis processuais, com respectiva aceitação de

73
Sobre as justificativas usadas pela ideologia da violência para mistificar sua natureza, tornando-a “justa” respos-
ta a violência anterior, cf. item 43.2, infra.
74
Tanto a seletividade (cf. itens 32 e 36.5, supra) quanto à não redução do passivo criminal (cf. itens 36.1 e 37.1,
supra) já foram analisadas por nós em números neste trabalho para a atual realidade nacional.
42.  Sociedade global do século XXI 529
vícios (rectius, nulidades), na “produção” da causa penal faria cessar a “impunidade”.75
Tudo como se com a eliminação desses (não essenciais) “obstáculos” (os direitos fundamen-
tais processuais), pudesse se chegar mais “rápido” à decisão tida como mais “justa”. Essa
linha de argumentação defende, às vezes confessadamente, que se proceda a uma escolha:
melhor um “produto defeituoso” que a demora em sua obtenção. Apela-se à já tratada ace-
leração consumerista que, no plano processual, é anticonstitucional; não obstante de alto
apelo popular devido à alta violência em meio a qual se vive no Brasil.
Essa opção não deveria ser proposta por agentes técnico-jurídicos e que sabem que o
processo penal tem “tempo longo” por tratar de conflitos sociais complexos e relevantes. Ela
é uma falácia, entendida essa como um erro lógico-argumentativo por oferecer um raciocínio
cujas premissas não foram correta e legitimamente expostas para serem consideradas.
O modelo criminal, desenhado e imposto em balizas e limites constitucionais, não
oferece aquela opção de escolha. Há apenas uma: a que é produzida pelas regras do devido
processo legal – nascido, aperfeiçoado e testado há tempos (pelo menos desde o Iluminismo
e cristalizado no constitucionalismo do século XX)76 para o modelo criminal persecutório-
-punitivo como meio mais racional e humano de evitar erros de julgamento – leia-se, impe-
dir violências institucionais excessivas ou mesmo ilegais.77

75
Exemplo bastante ilustrativo desse modo de pensar e divulgar a esperança de um processo penal “moderno e ágil” é
o projeto autodenominado “Dez medidas contra a corrupção”, criado por alguns integrantes do Ministério Público
Federal e que tinha por objetivo tornar-se um projeto de lei de iniciativa popular junto ao Congresso Nacional – o que
de fato ocorreu, recebendo, inicialmente, o nº 4.850/2016 na Câmara dos Deputados. No texto originário (Disponível
em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1448689&filename=Tramitacao-PL
+3855/2019+%28N%C2%BA+Anterior:+PL+4850/2016%29. Acesso em: 12 dez. 2021), pretendia-se, entre outros
pontos, a alteração do art. 157 do Cód. Proc. Pen., especialmente para incluir um rol de nada menos que dez hipóte-
ses de “excludentes de ilicitude da prova”. Isto é, autorizações para que ilicitudes na obtenção de elementos de prova
fossem sobrepujadas, e o material admitido assim produzido fosse considerado fiável para condenar pessoas. Dentre
as dez hipóteses de excludentes destacavam-se: “o agente público houver obtido a prova de boa-fé ou por erro escu-
sável”, “a relação de causalidade entre a ilicitude e a prova dela derivada for remota ou tiver sido atenuada ou
purgada por ato posterior à violação”, “obtida [...] no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalida-
de de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência”, “usada pela
acusação com o propósito exclusivo de refutar álibi, fazer contraprova de fato inverídico deduzido pela defesa ou
demonstrar a falsidade ou inidoneidade de prova por ela produzida”, “obtidas no exercício regular de direito pró-
prio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público”, “obtida de boa-fé por quem dê notícia-crime de fato que
teve conhecimento no exercício de profissão, atividade, mandato, função, cargo ou emprego públicos ou privados”
(p. 12). Evidentemente, a finalidade era funcional-punitiva e não de aperfeiçoamento sistêmico ou das instituições
ou, ainda, melhor estruturação de recursos e pessoas às agências persecutórias que o projeto, notadamente nesse
ponto, revela. A iniciativa tinha a clara intenção não de aperfeiçoar métodos e agências, mas de tornar lassas as re-
gras constitucionais e processuais penais para, ao final, punir (mais).
76
Acerca dessa evolução e influência sobre o sistema do Antigo Regime e sua derrocada entre o final do século XIX
e o início do XX pelos governos autoritários europeus, cf. item 26 e seus subitens, supra.
77
Contra essa posição equivocada e deformante da estrutura do modelo criminal violento para maior violência sem
devido processo legal, são sempre oportunas as palavras de Aury LOPES JR. (Fundamentos do processo penal,
cit., p. 56, Item “1.3. Direito e dromologia: quando o processo penal se põe a correr, atropelando as garantias”):
“Inequivocamente, a urgência é um grave atentado contra a liberdade individual, levando a uma erosão da or-
dem constitucional e ao rompimento de uma regra básica: o processo nasceu para retardar, para demorar (den-
tro do razoável, é claro), para que todos possam expressar seus pontos de vista e demonstrar suas versões e,
principalmente, para que o calor do acontecimento e das paixões arrefeça permitindo uma racional cognição.
Em última análise, para que possamos racionalizar o acontecimento e aproximar o julgamento a um critério
mínimo de justiça. O ataque da urgência é duplo, pois, ao mesmo tempo em que impede a plena juridicidade
(e jurisdicionalidade), ela impede a realização de qualquer reforma séria, de modo que, ‘não contente em des-
truir a ordem jurídica, a urgência impede a sua reconstrução’. Surge um novo risco: o risco endógeno ao sistema
jurídico em decorrência da aceleração e da (banalização) da urgência. Essa é uma nova insegurança jurídica
que deve ser combatida, pois perfeitamente contornável. Não há como abolir completamente a legislação de
urgência, mas tampouco se pode admitir a generalização desmedida da técnica” (destaque do autor). No mesmo
sentido, v. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamen-
tais do acusado. Salvador: Juspodivm, 2009. Item 3.1.
530 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

O fato é que nenhum sistema processual minimamente respeitador do imputado


como ser humano e titular de direitos foi concebido ou é capaz de dar conta da demanda
atual da criminalidade em tempos de “modernidade radical”.78 Máxime no Brasil deste sé-
culo, em que à essa demanda aumentada e mais veloz trazida pela globalização e pela tec-
nologia ainda temos uma carga de violência letal em níveis de guerra civil não declarada e
sem fim.79 Em poucas palavras: o sistema processual penal do julgamento não foi ontologi-
camente concebido em estrutura e agências para essa demanda e o Brasil atual é o estado da
arte dessa comprovação.
Assim, é um contrassenso constitucional buscar na prática forense criminal o cum-
primento da lei penal exatamente pelo descumprimento de normas legais e constitucionais
de direitos fundamentais processuais.

42.3.3 “Simplificação processual”: o risco e a certeza de respostas promotoras de mais


violência institucional e perda de efetividade constitucional para todos envolvidos
no conflito criminal
O modelo criminal – como visto nos subitens anteriores –, em seu sistema processual
penal tem conceitual, estrutural, funcional e teleologicamente, um imanente espaço limita-
do e um “tempo longo” para produção de suas respostas.80 Por todo o século XX, notada-
mente após as duas Grandes Guerras, ele passou por uma interpenetração dos direitos hu-
manos. Em especial, o sistema processual penal de matriz europeia continental passou por
uma filtragem de salvaguardas que diminuíram sua violência institucional ao proteger o
imputado como sujeito de direitos. Nesse contexto, como já demonstramos, passamos a ter
um processo penal garantista ou constitucionalizado.81
Tal opção pelos direitos humanos no modelo criminal, em todos os países em que foi
incorporada por força de tratados internacionais, alongou o sistema processual penal do
julgamento, pois, em breve síntese, passou a ser necessária uma decisão de mérito (em re-
gra) para colocar à causa penal, sendo que aquela deve atingir a melhor qualidade possível
tanto na lícita reconstrução fática quanto na análise das normas jurídicas aplicáveis.82

78
Lorena BACHMAIER WINTER [Justiça negociada e coerção: reflexões à luz da jurisprudência do Tribunal
Europeu de Direitos Humanos. In: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen (org.). Plea bargaining. São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2019. p. 9] afirma o mesmo tratando do que ela chama de “sistemas de justiça criminal”; que nós, neste
trabalho, denominamos “modelo criminal”.
79
Cf. item 31, e seus subitens, supra.
80
FARIA COSTA, José de. Direito penal e globalização, cit., Capítulo 1, item 4. Para nossas considerações sobre
esse ponto, v. item 42.3.1, supra.
81
Cf. itens 26.3 e 26.3.1, supra. Sobre o encaminhamento do sistema processual penal europeu continental como o
mais moderno do que o estadunidense após a interpenetração dos direitos humanos, v. SCHÜNEMANN, Bernd.
Cuestiones básicas de la estructura y reforma del procedimiento penal bajo una perspectiva global. In: DONNA,
Edgardo Alberto (dir.). Obras. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009. t. II. p. 393-425, em especial item I.3.
82
Dentro do modelo criminal persecutório-punitivo, entendemos que a melhor maneira de se melhorar a eficiência
do sistema processual penal reformado é a diminuição da demanda criminal, seja pela descriminalização de
algumas condutas, seja pela melhor filtragem das acusações em juízo. Tratando dessa redução pelo viés de di-
minuição da entrada de demanda criminal, vem a linha criminológica do “minimalismo penal” e no qual se in-
sere a sua subsidiariedade – a ultima ratio punitiva. Sobre o tema, v. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das
penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução por Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez
da Conceição. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 94-97; e ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismos,
abolicionismos e eficienticismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Seqüência, Floria-
nópolis, v. 27, n. 52, p. 163-182, jul. 2006, notadamente item 2.2 e seus subitens. Sobre como a ultima ratio deve
ser utilizada como matriz organizacional entre os modelos criminais violento e não violento, cf. item 46.2.1, infra.
42.  Sociedade global do século XXI 531
O Brasil, como signatário daqueles compromissos internacionais de respeito aos
direitos humanos, precisa dar-lhes cumprimento também em relação ao imputado.83 As sal-
vaguardas internacionais de direitos humanos já estão inseridas em nossa Constituição des-
de 1988, o que lhe retira a possibilidade de tratamento processual inumano típico de regimes
autoritários e reduz a violência institucional a patamares mais aceitáveis. Assim, há duas
opções dentro do modelo criminal persecutório-punitivo que angariam as maiores atenções
dos juristas e de propostas legislativas.84 A primeira, simplificar os procedimentos, reduzindo
e otimizando os seus atos e/ou aperfeiçoando suas formas de realização. Como segunda
opção, de acordo com suas regras e tradições jurídicas internas de cada país, introjetar o
“consenso” ou “negociação” sobre pena criminal e direitos fundamentais do imputado em
uma barganha entre este e seu defensor e os agentes persecutórios internos.85
Pela primeira opção, não se abandona o sistema processual penal do julgamento da
causa penal. Há, portanto, apenas uma aceleração do procedimento ou pelo corte de atos e/ou
fases ou, ainda, pela reformulação e/ou otimização das existentes.86 Para atingir tal escopo
não há uma fórmula clara e certa a ser seguida, sendo que muitas tentativas são feitas em
vários países e momentos históricos.87 As experiências bem-sucedidas tentam ser replicadas
com maior ou menor aderência em legislações estrangeiras, as malsucedidas são objetos de
novas reformas legislativas nos países que as projetaram.

83
ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura
normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 205-206.
84
Citamos essas duas formas por entendermos que congregam as maiores atenções. Contudo, em estudo de referên-
cia a respeito das alternativas ao sistema processual do julgamento para atender às atuais demandas crescentes da
modernidade e sua globalização, sempre mais rápida e deslegitimante das estruturas existentes, v. SCARANCE
FERNANDES, Antonio. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: RT, 2005.
p. 179-300, Terceira Parte, toda dedicada aos métodos (vários) de “simplificação procedimental”.
85
Silvia BARONA VILAR (Proceso civil y penal ¿líquido? en el Siglo XXI, cit., item 3.2.2.1, intitulado “Premisa
de partida: más Derecho penal debiera significar más proceso penal”), a despeito de defender que o incremento
penal deveria ser acompanhado de uma maior rede de garantias processuais penais, assim como o aumento do
espaço processual penal, reconhece que o viés desta segunda parte é o contrário: “Há um slogan: buscar ‘menos
processo’. E essa busca por menos processo tem sido conquistada gradativamente por meio de reformas proces-
suais que visam agilizar o procedimento ordinário, reduzir garantias, limitar possibilidades de recursos, restrin-
gir fases processuais ou aprovar propostas de resolução de o próprio acusador público, a fim de obter uma
abreviação que implique em todo caso o término antecipado do processo pela aceitação da proposta ministerial ou,
em outros casos, pelas conformidades induzidas que levam ao mesmo resultado. ‘Menos e menos processo’ – insis-
timos – é o lema do século XXI” (p. 53, traduzimos). Na mesma linha dessa autora, vem Winfried HASSEMER
(Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Organizado e revisto por Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008) que, após explicar as características e problemas trazidos pelo direito
penal moderno, afirma que a “alternativa” processual para dar vazão ao aumento punitivo pelo incremento da
criminalização primária e seu novo perfil é simplificar procedimentos e introduzir os “acordos no processo pe-
nal”, concluindo: “Comum a todos esses instrumentos é, certamente, seu repúdio às tradições de estado de Direito
no processo penal. Portanto eles não são, segundo me parece, soluções em sentido próprio, e sim um recuo re-
signado em face das demandas do Direito penal moderno” (p. 260-261).
86
Sobre as alternativas de simplificação voltadas ao procedimento penal, Antonio SCARANCE FERNANDES
(Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal, cit., Capítulo IV) leciona poder identificar
três diferentes grupos de mecanismos: “a) os que conduzem ao encerramento antecipado do processo; b) os que
levam à supressão de fases dos procedimentos ordinários; c) os que representam uma reorganização do proce-
dimento” (p. 179-180).
87
Sobre algumas sugestões para o direito processual alemão, v. SCHÜNEMANN, Bernd. Audiências de instrução
e julgamento: modelo inquisitorial ou adversarial? – Sobre a estrutura fundamental do processo penal no 3º milê-
nio. In: GRECO, Luis; MARTINS, Antonio (org.). Direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a
Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 631-648.
Sobre algumas reformas legislativas no processo penal espanhol, no viés de simplificação exposto no texto,
v. BARONA VILAR, Silvia. Proceso penal desde la historia, cit., p. 580-584. Para a América Latina, v. MAIER,
Julio B. J. Antología, cit., p. 547-567, “Mecanismos de simplificación del procedimiento penal”, item III.
532 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

De um modo geral, em intencional síntese das várias direções que se buscam no


âmbito dessa primeira opção, pode-se citar: a implementação de tecnologias para a produ-
ção de atos de forma mais célere e em melhores condições; e inovações procedimentais
(especialidade/diversidade procedimental ajustada ao direito material analisado). Almeja-se
investigação, acusação, defesa, instrução probatória e julgamento, assim como fases recur-
sais menos extensas. Portanto, dentro do paradigma de um sistema processual de “tempo
longo”, trabalha-se para não ser tão longo como no passado. Exemplificativamente, uma
forma de introdução de tecnologia da comunicação para aproximar distâncias ocorre com a
realização de atos processuais por videoconferência, o que garante maior efetividade da
oralidade e fidedignidade dos atos, notadamente para produção da prova oral, e, ainda, as-
segura a imediatidade entre o juiz da causa e o elemento de prova produzido, muitas vezes
eliminando-se a figura da oitiva por precatória. A tecnologia da digitalização dos autos
também permitiu acelerar providências burocráticas (p. ex., remessa de autos ou ordens por
meio digital), o que tanto agiliza a comunicação de atos liberatórios quanto os julgamentos
de liminares ou mesmo o mérito de recursos ou de habeas corpus pelos Tribunais Superio-
res. Atos processuais foram encurtados, como por exemplo, audiências com muitas teste-
munhas que, pelo sistema de gravação audiovisual, tiveram seus tempos reduzidos além de
melhor fiabilidade do ocorrido no ato, contribuindo com a redução de abusos e violações de
prerrogativas profissionais e direitos processuais.88
Mesmo nessa primeira opção, que parece angariar, pelo menos em seu plano teórico,
um maior espectro de defensores, não é raro surgirem questionamentos quanto à compres-
são de âmbitos normativos dos direitos fundamentais. Tais dúvidas são salutares e devem
estimular a reabertura de discussões sobre se os novos atos integram ou não os âmbitos de
proteção daqueles direitos na realidade do século XXI ou se há necessidade de adaptações
de parte a parte.
Ainda se pode pensar, no âmbito dessa primeira opção, na elaboração de procedi-
mentos cada vez mais voltados ao direito material em áreas específicas, fazendo com que
atos e até fases desnecessárias àquele bem jurídico sejam expurgadas e, também, outras que
sejam necessárias por melhorarem a qualidade da reconstrução fática com meios de prova
mais apropriados (p. ex., por meio de exames periciais específicos e preliminares até mes-
mo ao exercício do direito de acusar).89
Pela segunda opção acima apontada e referente às formas de barganha penal, ao
contrário, sai-se do sistema processual do julgamento.90 Mas, ao se promover o que denomi-

88
Em atenção à contribuição que gravações audiovisuais das audiências com partes e testemunhas pode trazer à trans-
parência e publicidade dos atos do Judiciário, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) “aprovou recomen-
dação dirigida a todos os tribunais para que passem a gravar integralmente as audiências e atos processuais,
tanto remotos como presenciais” (AGÊNCIA CNJ DE NOTÍCIAS. Audiências com testemunhas ou partes deverão
ser gravadas pela Justiça. Notícias CNJ, 31 mar. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/audiencias-com-teste-
munhas-ou-partes-deverao-ser-gravadas-pela-justica/. Acesso em: 12 dez. 2021). A recomendação referida é a de
n. 94 de 09.04.2021, que versa, em seu art. 1º, “Recomendar aos tribunais brasileiros a gravação de atos proces­
suais, sejam presenciais ou virtuais, com vistas a alavancar a efetividade dos procedimentos judiciais, por meio do
aperfeiçoamento das estruturas de governança, infraestrutura, gestão e uso de procedimentos cibernéticos” (Dis-
ponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3860. Acesso em: 12 dez. 2021, destacamos).
89
No direito brasileiro pode-se citar, nessa linha de desenvolvimento procedimental pela especialidade, o procedi-
mento para os crimes contra a propriedade imaterial (arts. 524 a 530-I, Cód. Proc. Pen.) que exige prévia e justi-
ficada ação de busca e apreensão, com posterior perícia (art. 527), para se identificar com precisão a materialida-
de da infração – que em alguns casos têm especificidades e detalhamento a exigir análise técnica apta e prévia – a
fim de aumentar a segurança no exercício do direito de acusar.
90
A dificuldade e a aceitação de vários institutos de barganha penal (“justiça penal negociada”) tem sido uma reali-
dade mundial. Para uma análise de institutos negociais na legislação estrangeira, de mais longa e ampliada tradição
42.  Sociedade global do século XXI 533
namos neste trabalho de “sistema penal premial-negociado”, não se abandona o modelo
persecutório-punitivo. Estamos diante de uma variedade sistêmico-processual dentro da-
quele modelo.91 Sem deixar de ser totalmente persecutório e punitivo, o que ocorre é um
arrefecimento desses dois pontos pela barganha estabelecida entre, de um lado, o imputado
e seu defensor e, de outro, os agentes da persecução; tudo depois homologado judicialmente.
No âmbito desse sistema premial-negociado podem ser inseridas mudanças procedi-
mentais em que, suspensa a persecução penal após o acordo sobre algumas condições a
serem cumpridas, muitas das quais de caráter ressarcitório ou indenizatório, há, ao final de
um lapso temporal também acordado, a declaração de extinção de punibilidade com clara
opção política do Estado em não mais perseguir e punir aquele imputado pelo ato.92
O paradigma dessa segunda opção altera o sistema processual penal tanto em sua
porção persecutória quanto punitiva. Ambas sofrem reduções e adaptações. Aquela, para
reduzir a necessidade de completa investigação e produção probatória pelo método da

nessa forma de “simplificação” processual pelo corte de garantias e celeridade na aplicação da pena, v., em exame
voltado à influência negativa projetada no direito brasileiro, GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo pe-
nal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014.
Capítulo 10, “Acordo no processo penal”, item 10.1, ao examinar os institutos similares na legislação comparada.
Para vários ângulos críticos da “americanização”, sem a mínima “releitura” e “tradução” dos institutos ao orde-
namento brasileiro e os inevitáveis prejuízos das garantias penais e processuais penais, v. REALE JÚNIOR,
Miguel. Simplificação processual e desprezo ao direito penal. Revista de Ciências Penais, São Paulo, v. 5, n. 9,
p. 289-310, jul./dez. 2018; ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Pelo movimento antropófago do processo penal:
“to bargain or not to bargain?” eis a questão. In: MALAN, Diogo et al. (org.). Processo penal humanista: escritos
em homenagem a Antonio Magalhães Gomes Filho. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019. p. 143-180; PRADO, Geral-
do. Poder negocial (sobre a pena), common law e processo penal brasileiro: meta XXI, em busca de um milhão de
presos? In: BONATO, Gilson (org.). Processo penal, Constituição e crítica: estudos em homenagem ao Prof. Dr.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 299-315; VASCONCELLOS, Vinicius
Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no
processo penal brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. Capítulo 3 e, do mesmo autor, Colaboração
premiada no processo penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. Item 1; AMARAL, Augusto Jobim
do; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. A delação nos sistemas punitivos contemporâneos. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 5, n. 128, p. 65-89, fev. 2017. Para uma crítica, já clássica, à “americanização”
do processo penal, v. os textos de Bernd SCHÜNEMANN: ¿Crisis del procedimiento penal?: ¿marcha triunfal del
procedimiento penal americano nel mundo? In: SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes del de-
recho penal después del milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 288-302.; Crítica al modelo norteamericano de proce-
so penal. In: DONNA, Edgardo Alberto (dir.). Obras. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009. t. II. p. 427-450; e Um
olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In: GRECO, Luís (coord.). Estudos de direito penal,
direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons. 2013. p. 240-261.
91
Sobre essa denominação e seu pertencimento ao referido modelo, constituindo-se apenas em uma variação sistê-
mica, v., respectivamente, itens 27 e 27.1, supra.
92
Olhada essa forma de acordo com condições, dentre as quais há punição, e observando-a de forma mais ampla,
para abarcar tanto as penas criminais não privativas de liberdade quanto as pecuniárias reparatórias, podem ser
incluídas, no Brasil, tanto a transação penal (art. 76, da Lei n. 9.099/95) quanto a suspensão condicional do pro-
cesso (art. 89, da mesma legislação). Se acrescermos a essas condições a “confissão” de culpa do imputado, tam-
bém se poderia citar o “acordo de não persecução penal”, previsto no art. 28-A, do Cód. Proc. Pen., após sua alte-
ração pela Lei n. 13.964/2019. Para excelente análise de vários mecanismos de consenso penal nos sistemas
jurídicos alemão, português, espanhol e italiano, v. GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade e
Consenso no Processo Penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália, Portugal,
Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2006. Para um exame dos institutos da transação penal e suspensão
condicional do processo em uma análise comparada entre países latino-americanos, v. GONZALEZ POSTIGO,
Leonel; RUA, Gonzalo. As medidas alternativas ao processo penal na América Latina. Uma visão de sua regula-
mentação e propostas de mudança. In: SANTORO, Antônio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge; MADURO,
Flávio Mirza (org.). Crise no processo penal contemporâneo: escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição
de 1988. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. p. 241-288. Para o sistema processual alemão, v. GÖSSEL, Karl Heinz.
Acerca del ‘acuerdo’ en el proceso penal. In: DONNA, Edgardo Alberto (dir.). Obras. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni,
2007. t. I. p. 277-293. Não incluímos nesse espaço de compreensão da legislação nacional a composição civil dos
danos (art. 74, Lei n. 9.099/95), por entendê-la um instrumento não penal ou processual penal, mas civil: um
acordo civil com efeitos penais de extinção de punibilidade por escolha de política legislativa.
534 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

inquisitio para se chegar à “verdade fática” possível. No âmbito punitivo, ocorre a contra-
partida de redução do seu espectro ao imputado que assume posição de concordância com
a tese acusatória e com algumas condições legais e, eventualmente, judiciais.
Todavia, dentro dessa segunda opção, o que vem ganhando mais espaço nos vários
sistemas processuais, inclusive os europeus continentais e os deles derivados, como é o caso
brasileiro, é a projeção, muitas vezes adaptada, do plea bargaining estadunidense.93
No Brasil, o instituto mais aproximado daquele estadunidense é a “colaboração pre-
miada”, notadamente após sua melhor configuração normativa a partir da Lei 12.850 de
2013.94 Como o exame deste instituto não é objeto deste trabalho, importar reforçar a noção,
já desenvolvida anteriormente95, que suas justificativas utilitarista servem para abreviar a
persecução penal e reduzir a pena em face do colaborador, mas não em relação às pessoas
por ele delatadas. Isso deixa claro que, em matéria de aumento de demanda, há uma piora
em relação à aplicação em larga escala desse instituto. Sua justificativa, portanto, não está
bem – ou não é apenas – a de que é funcionalmente prática e reduz custos. A ela deve ser
incluído um ineludível utilitarismo punitivo, ou seja, um ganho em maior punição de um
espectro maior de pessoas (as delatadas pelo colaborador) para as quais tanto o processo
quanto a pena se aplicam de forma plena e tradicionais: em tempo longo e penas altas.
Olhado o instituto do plea bargaining, seja em seu locus originário96, seja em sua
versão nacional, não se pode afirmar que por ele se chegue a “menos” demandas proces­
suais penais ou se atinja “menor” punição.97 Observada a persecução penal e pena criminal

93
Um crítico dessa influência e ingresso do plea bargaining nos sistemas processuais europeus continentais e,
agora, da América Latina, embora reconheça esse avanço, é Bernd SCHÜNEMANN que há décadas vem apon-
tando essas aproximações, sempre a partir de uma posição crítica da aceitação daquele instituto de barganha pe-
nal. Nesse sentido, v. os já citados textos do autor na nota 90 deste Capítulo, supra.
94
No Brasil, muitos têm sido os trabalhos produzidos no exame da “colaboração premiada”, notadamente após re-
ferida alteração legal. Todos não deixam de perceber a matriz do plea bargaining naquela inovação para nosso
sistema. Dentre os mais recentes, em um exame mais normativo e jurisprudencial, v. CORDEIRO, Nefi. Colabo-
ração premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020; e VASCONCELLOS, Vinicius
Gomes de. Colaboração premiada no processo penal brasileiro, cit. Para uma abordagem de cunho mais teórico-
-sistêmico, sem deixar de dar aplicação prática à legislação vigente no Brasil, v. VASCONCELLOS, Vinicius
Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial, cit., PEZZOTTI, Olavo Evangelista. Colaboração premiada:
uma perspectiva de direito comparado. São Paulo: Almedina, 2020; OLIVEIRA, Rafael Serra. Consenso no pro-
cesso penal: uma alternativa para a crise do sistema criminal. São Paulo: Almedina, 2015; GUINALZ, Ricardo
Donizete. Consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: LiberArs. 2019.
95
Cf. item 27.1, supra.
96
Apesar de não haver um número exato, pesquisas apontam que apenas 3% dos casos criminais nos Estados Unidos
da América resultam em julgamentos pelo júri, a ponto de se afirmar que “O julgamento pelo júri foi substituído
por um ‘sistema de acordos [de condenação]’” (NATIONAL ASSOCIATION OF CRIMINAL DEFENSE
LAWYERS. The trial penalty: the Sixth Amendment right to trial on the verge of extinction and how to save it.
Washington: Foundation for Criminal Justice, 2018. p. 5, traduzimos. Disponível em: https://www.nacdl.org/
getattachment/95b7f0f5-90df-4f9f-9115-520b3f58036a/the-trial-penalty-the-sixth-amendment-right-to-trial-on-
the-verge-of-extinction-and-how-to-save-it.pdf. Acesso em: 12 dez. 2021). Além disso, ressalte-se que, dentre os
pouquíssimos casos de competência federal que vão à julgamento (apenas 2%, de acordo com esse outro relatório),
83% resultam em condenação (PEW RESEARCH CENTER. Trials are rare in the federal criminal justice system,
and when they happen, most end in convictions. 10 jun. 2019. Disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-
tank/2019/06/11/only-2-of-federal-criminal-defendants-go-to-trial-and-most-who-do-are-found-guilty/ft_19-06-
11_trialsandguiltypleas-pie-2/. Acesso em: 12 dez. 2021). Infelizmente, não há registros para a realidade do
sistema penal premial-negociado no Brasil que permita mensurar o percentual nacional de condenações por conta
dos acordos.
97
Dentro de nossa preocupação constante em assegurar maior incidência de garantias constitucionais, o que implica
o atendimento de necessidades básicas dos seres humanos, deve-se ressaltar, já neste ponto de partida, que o plea
bargaining não tem mostrado ganho constitucional nem mesmo nos Estados Unidos da América, onde tem maior
incidência prático-teórica e de onde parte para uma “americanização” dos sistemas processuais pelo mundo.
42.  Sociedade global do século XXI 535
plenas e estendidas a muito mais pessoas, o que há é um aumento da violência institucional
tanto em matéria processual quanto punitiva. O que se pode dizer da lógica daquele institu-
to é de que ele atinge uma maior eficiência punitiva pelo utilitarismo e pragmatismo do
Estado sempre que quer atingir mais e especificamente alguns grupos de pessoas. Isso não
ocorre com a preocupação ou finalidade de aumento de efetividade constitucional proces-
sual penal. Como já demonstrado, aliás, isso não é novidade estadunidense, mas vem desde
a Roma Imperial, passa por toda a Idade Média e se cristaliza na Inquisição, para nunca
mais sair do modelo criminal que dele lança mão sempre em momentos de “crise”, leia-se,
quando está perdendo o controle e precisa utilizar o sistema punitivo-persecutório de forma
mais incisiva.98
No Brasil estão aumentando a criação normativa de institutos do sistema penal pre-
mial-negociado e suas incidências na prática diária. É uma realidade irreversível, como
também o é no resto do mundo. O que importa neste ponto do trabalho é fixar que seu prag-
matismo é unidirecional (punitivo) e, ineludivelmente, redutor de garantias constitucionais.
Deixando-se de lado se há ou não efetiva voluntariedade, liberdade e igualdade entre as
partes negociantes que autorize o afastamento das salvaguardas processuais do imputado
– o que deve ser objeto de estudo próprio99 –, o fato é que tal afastamento é uma perda de
efetividade constitucional se comparado com o sistema processual penal com salvaguardas
constitucionais.
Como se percebe, tais tendências não visam a redução da violência social, seja por
sua porção criminal seja por menos pena criminal. O que se propõe neste trabalho é algo
diverso, pois, por meio de uma mudança de paradigma processual, o sistema poderá auxiliar
na redução das violências institucional e criminal; logo, atingir diretamente a violência so-
cial e, por conseguinte, uma maior e mais ampla efetividade constitucional a todos cidadãos.
Para isso ser possível, todavia, não se pode permanecer no mesmo modelo criminal
persecutório-punitivo; há que se conceber “outro” (mais um) modelo de resposta ao “fenô-
meno criminal”100 e cujos fundamentos partam de muito diverso paradigma ideológico:

Nesse sentido, vem preciso Marcos Alexandre Coelho ZILLI (cf. Pelo movimento antropófago do processo penal,
cit., p. 148-149), que assevera, com base em estudos e relatórios empíricos estadunidenses, que o desejo e os an-
seios dos constituintes como Thomas Jefferson sobre o jury system e sua participação popular como garantias de
constitucionalidade não são uma realidade de há muito: “Mais de duzentos e vinte anos se passaram desde então.
Muito embora o direito ao júri se mantenha cristalizado no corpo constitucional norte-americano, a realidade
daquele sistema é bastante diversa. Estudos indicam que cerca de 97% dos processos criminais federais são so-
lucionados pela via dos acordos entre as partes. Assim, de regra geral, o julgamento pelo júri tornou-se uma
exceção e, por vezes, indesejável. A âncora democrática tornou-se pesada frente à consagração utilitarista da
justiça negociada. A era de Jefferson foi sucedida pela era de Burger, Juiz da Suprema Corte que, no paradig-
mático caso ‘Santobello v New York’, proclamou a imprescindibilidade do ‘plea bargaining’ no modelo norte-
-americano de administração de justiça. Aliás, em seu voto, o Juiz Burger chegou a profetizar a falência do sis-
tema judicial caso revigorada a dinâmica do modelo conflituoso do processo penal”. Sobre esse paradoxo do
avanço do plea bargaining mesmo sobre os sistemas mais garantidores citados no texto (adversarial system e jury
system), cf. item 27.1, supra. Sobre os percentuais de incidência dessa barganha penal no montante dos casos
criminais levados ao conhecimento das autoridades persecutórios e judiciárias estadunidenses, v. nota 96 deste
Capítulo, supra.
98
Quanto à existência da “justiça penal negociada”: na Roma Imperial, cf. item 8.2.2, supra; nas origens da common
law, cf. item 21.2, supra; sua incidência no sistema processual penal inglês, cf. item 25.2.2, supra; e sua cristali-
zação na Inquisição, em sua forma “radical”, cf. item 24.3.3, supra.
99
Sobre esse desnível entre as partes negociantes, além dos estratagemas e análises de custos e probabilidades feitas
pelos órgãos persecutórios negociantes, que inclusive têm levado inocentes a aceitarem penas acordadas, o que de
todo põe em xeque a prolatada igualdade, liberdade e voluntariedade negocial do imputado, já tivemos oportuni-
dade de indicar referências bibliográficas no item 27.1, supra.
100
Sobre os elementos integrantes desse “outro” modelo e seu direcionamento, cf. item 46, infra.
536 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

a não violência101. Para tanto, é necessário se delinear a violência e a não violência e o papel
central que cada qual desempenha nos modelos criminais, respectivamente, persecutório-
-punitivo e o não violento. É o que se faz nos próximos itens.

43. Ideologia da violência e Modernidade: das fontes às justificativas mistificadoras


de sua natureza, suas consequências e o estado da arte no Brasil do século XXI
O tratado até este instante do trabalho sobre a ideologia informadora da política cri-
minal que orienta e dirige o modelo criminal persecutório-punitivo, seus sistemas (instru-
mentos), suas agências e seus agentes internos e, por fim, sua dinâmica metodológica, pode
ser resumido em uma única palavra: “violência”. Ela sintetiza tudo! Sobre ela criaram-se
ideologia, propósitos e justificativas. Sobre essa base implementa-se uma política criminal
e seu consectário modelo criminal igualmente violento.
A violência é a fonte ( fons), a razão (ratio), o sentido (sensus) e o fim ( finis) desse
modelo e, sendo seu alfa e seu ômega em um vicioso ciclo de eterno retorno, retroalimenta-
-se. Todo o exposto na Parte I sobre o modelo criminal e os sistemas penais e processuais
penais nos últimos dois milênios serve de base histórica para entender os reflexos dessa
ideologia no aparato criminal desde então e até nossos dias. Existir um único modelo crimi-
nal brasileiro neste século XXI é o estado da arte do resultado da lógica da violência em sua
alta capacidade expansiva e retroalimentadora.102
Diante dessa tradição, é preciso deixar claras as diferenças entre a lógica da violên-
cia e seu paradigma antípoda ora proposto, a ideologia da não violência. As divergências
não são apenas teleológicas, mas constitutivas (ontológicas e etiológicas). As ideologias da
violência e da não violência têm apenas um ponto em comum: ambas reconhecem a existên-
cia da violência como um dado social imanente da tradição e cultura de milênios. A partir
desse ponto, tudo são dissimilitudes e distanciamentos.
Pela precedência e quase absoluta proeminência, é necessário evidenciar os pontos
cardeais da ideologia da violência, mesmo que de forma breve: seu significado e extensão,
sua lógica, suas justificativas e consequências. É a única forma de, a partir desses
mesmos pontos, traçar as premissas do modelo criminal não violento desde um novo espaço
na político-criminal.
Uma pergunta um tanto natural e que pode facilitar a apresentação de nossa teoria
deve abarcar exatamente esse ponto essencial (a violência): se ela é algo ruim, para o indi-
víduo e para todos do corpo social, por que é eixo central do modelo criminal que se per-
petua como único e sem alternativas até nossos dias?
A resposta é simples: porque somos educados e criados em meio à violência e a na-
turalizamos em nossas relações desde tempos imemoriais. Entender como isso se deu e se
dá, e os reflexos que traz ao modelo criminal e dele ao sistema processual é o que se dispõe
a demonstrar nos próximos subitens.

101
Para a exposição sobre a ideologia da não violência, cf. item 44, infra.
102
O que foi demonstrado em números e custos (humanos e socioeconômicos) na Parte II, supra, em que analisamos
os dados empíricos do modelo criminal brasileiro deste século. Para uma síntese do que nela se tratou, cf. item 40,
supra.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 537
43.1 Fontes da força antropológica da ideologia da violência: nossas raízes arcaicas e nossa
formação cultural e educacional
Os estudos sobre a lógica e o prestígio da violência lato sensu mostram sua origem há
mais de oito mil anos com os mitos e, a partir deles, sua perpetuação pelas sociedades arcai-
cas, nutridas por crenças religiosas então nascentes.103 Dessa tradição imemorial, passou a ser,
irrefletidamente, o paradigma orientador da formação familiar, social e educacional.104
A sociedade arcaica, segundo os registros de suas fontes mitológicas e religiosas,
analisadas por filósofos, antropólogos, teólogos e sociólogos, informam com mais consis-
tência duas possíveis explicações para essa adesão à violência como dinâmica de expressão
(cultural, religiosa, comportamental etc.), de pensamentos e de comportamentos individual
e coletivo.105 Uma, a da “rivalidade mimética”106, assevera que, no comportamento humano,
quase tudo é aprendido e todo aprendizado não deixa de ser uma “mimetização”, o que
confere ao indivíduo um “comportamento mimético” por excelência. A partir dessa consta-
tação, o indivíduo inveja e, portanto, deseja o que o outro tem e ele não. Essa seria a base
dos conflitos pelas necessidades vitais e demais objetos em face de interesses e metas frus-
trados. A segunda explicação apoia a essência da violência não no desejo do que o outro
valoriza, mas no reconhecimento de valor intrínseco das coisas para atender às necessidades
do ser humano, o que as torna disputadas por pessoas e grupos, daí surgindo os conflitos.107
A se observar o indivíduo dos nossos dias, não é de se desconsiderar que ambas as teorias,
mais que opostas, completam-se.

103
Neste trabalho, voltado ao modelo e sistemas criminais, parte-se do homem já como um ser inserido em um gru-
po social mais elaborado de regras e em relações. Sendo assim, não faremos qualquer referência às origens ou
bases biológicas, neurológicas, patológicas ou mesmo primatológicas. Pesquisas a partir dessas bases, assim
como fonte de materiais que explicam essas relações e a violência humana, podem ser vistas de um modo jorna-
lístico em LOPES, Reinaldo José. Homo ferox: as origens da violência humana e o que fazer para derrotá-la. Rio
de Janeiro: HarperCollins, 2021. Na mesma linha, v. o trabalho de Robert M. SAPOLSKY, neuroendocrinologis-
ta e professor na Universidade de Stanford, que tem como objeto principal as origens da violência, da agressão e
da competitividade na espécie humana a partir de uma análise conjunta dos estudos da Biologia e da Psicologia
(Behave: the biology of humans at our best and worst. New York: Penguin Press, 2017).
104
Para autores que explicam e se referem a fontes e estudos variados sobre as origens da violência, v. ROSENBERG,
Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos: sua próxima fala mudará seu mundo. Tradução por
Grace Patricia Close Deckers. São Paulo: Palas Athena, 2019. p. 28-29; HAN, Byung-Chul. Topologia da violên-
cia. Tradução por Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017. Capítulo 2, “Arqueologia da violência”, p. 27-40;
e MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica. Tradução por Inês Polegato. São
Paulo: Palas Athena, 2007. p. 11-28. No mesmo sentido, por uma abordagem religiosa e mítica, para fins de de-
monstrar a base psicológica e já intrínseca a nós, v. PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida: um antídoto
para o caos. Tradução por Wendy Campos e Alberto G. Streicher. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018. p. 348-356.
105
Nesse sentido, inclusive desenvolvendo a ideia de “imaginário punitivo”, v. CARVALHO, Thiago Fabres de;
BOLDT, Raphael. A criminologia da não-violência: fundamentos teóricos de filosofia restaurativa e o “imaginá-
rio punitivo” de um “Abril Despedaçado”. In: CARVALHO, Thiago Fabres de; ANGELO, Natieli Giorisatto de;
BOLDT, Raphael. Criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo periférico. São Paulo: Tirant lo
Blanch, 2019. p. 25. Para esses autores, “o imaginário punitivo se articula, pois, como um jogo ininterrupto entre
as formas oficiais do direito estabelecido ou positivo (amparadas pelos discursos jurídicos e criminológicos
dominantes de justificação do exercício do poder punitivo) e um amplo espectro de representações simbólicas em
permanente tensão com tais formas instituídas. Nesse sentido, o imaginário punitivo repousa tanto nas formas
instituídas do direito posto, com suas nada práticas e seus discursos de justificação, quanto em um imaginário
jurídico, isto é, uma espécie de ‘infradireito’, ‘gerador das mais diversas formas de costumes, hábitos, práticas
e discursos que não cessam de agir, de dentro, sobre os modelos oficiais do direito instituído’ (CASTORIADIS,
1998; OST, HESS, 1983; BARATTA, 2001; YOUNG, 2014; ANDRADE, 1999; 2013; 1999; 2004; ARNAUD, 1981;
ZAFFARONI, 2010; PAVARINI, 1999; CARVALHO, S., 2012; MARTEAU, 1997)” (idem).
106
Essa teoria é defendida e sempre atribuída a René Girard, dela se utilizando MULLER, Jean-Marie. O princípio
da não-violência, cit., p. 18-28. Explicando-a, mas para criar-lhe restrições, v. HAN, Byung-Chul. Topologia da
violência, cit., p. 27-40.
107
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 27-40.
538 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Dessas raízes originou-se toda a formação milenar da cultura da violência pela se-
guinte ratio: os fortes (rectius, mais violentos) sobrevivem. Isso se confirmou e se justifica
desde então, pois os conflitos passaram a se tornar disputas sangrentas das quais o vencedor
retirava não apenas o bem necessário para ele, mas passava a representar, perante sua comu-
nidade, uma força: “matar passou a ser um valor intrínseco. [...] Quanto mais violência se
exerce tanto mais poder se adquire”.108 Esse dado sociológico de poder incrementou o dado
psicológico de que ao matar se suplanta a própria morte, e daí a origem da noção de “sobre-
-viver”; é dizer, viver para além da morte que poderia ter ocorrido, mas que o forte (rectius,
violento) dela escapou usando de... “violência”.109 Praticar violência e vencer o outro passou
a ser expressão de poder perante os demais integrantes do grupo e forma de, psicologica-
mente, afastar-se da morte, incógnita e mistério da vida de todos e desde sempre.110
Dessas raízes arcaicas, a violência deriva para o sobrenatural e, a partir desse ponto,
interessa à religiosidade arcaica. O sagrado passa a ser (também) violento (p. ex., religiões
faziam e exigiam sacrifícios humanos em seus mais variados rituais) e também suavizar a
violência. Ao assumir o poder de determinar a intensidade da violência, a religiosidade pas-
sa a controlá-la e, com isso, a ter o domínio sobre os indivíduos.111
Trazendo esse contexto a nossos dias de “modernidade radical”, aquelas raízes po-
dem ser vistas no seguinte paralelo: no passado, não foram poucas as culturas arcaicas que
defendiam que, se o vencedor se alimentasse do corpo do adversário ou dele portasse algu-
ma parte (após decepá-la), o guerreiro mantinha consigo o vigor do outro (vencido) e, por-
tanto, tornava-se mais forte e distante da morte, atingindo sua “sobre-vivência”. Atualmen-
te, nossa “sobre-vivência” está garantida a partir do quanto de riquezas e bens conseguimos
acumular para assegurar possibilidades de suplantar a fome, doenças, imprevistos e manter
um nível de vida satisfatório para nós e para os nossos próximos por mais tempo. É dizer,
manter as necessidades que, segundo o juízo de cada um, percebem-se como “vitais” ou
“básicas”. Para conseguir tais bens e recursos, em quantidade e provisão que entendamos

108
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 30-31. Nos dias atuais, de violência (criminal e institucional)
extrema, essa (con)fusão mítico-arcaica ainda está presente e ocupa, com lamentável galhardia, as manchetes dos
noticiosos. Em maio de 2020, em pleno colapso pandêmico da saúde pública, meios de comunicação relatam con-
fronto armado de policiais no Morro do Alemão, em pleno coração da cidade do Rio de Janeiro. Cinco foram os
mortos cujos corpos foram “carregados” à luz do dia para o pé do morro por moradores; com o trajeto devidamente
filmado e fotografado para registro. A peculiaridade antropológica arcaica da violência que ressalta na matéria não
são os corpos ou mortos a comprovar a guerra civil já relatada no item 31.1, supra, em especial Gráfico 5 (“Compa-
ração entre os números de mortos no Brasil, em 2017, e nos países declaradamente em conflito armado, em 2017”).
O que chama a atenção pelo registro mítico da violência em seu sentido mais arcaico também não são as fotos dos
fuzis e armamentos dispostos organizadamente no passeio público, mas os estandartes do BOPE (Batalhão de
Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro) a eles sobrepostos. Uma das bandeiras negras,
no centro das quais aparece o icônico símbolo de caveira com uma faca transfixando o crânio no sentido vertical
descendente, com dois revólveres cruzados por detrás da imagem, apresenta a seguinte frase: “Vitória sobre a Morte”
(cf. PEIXOTO, Guilherme. Polícia apura a morte de 12 pessoas no Alemão após dia de tiroteios. Portal G1, Rio de
Janeiro, 15 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/15/operacao-policial-
-no-complexo-do-alemao-causa-tiroteio-na-manha-desta-sexta-feira.ghtml. Acesso em: 12 dez. 2021). A reprodu-
ção da ontologia cultural da violência, com uma autoafirmação ainda socialmente valorizada, é evidente.
109
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 35-40).
110
Para maiores referências quanto ao que aqui se sintetizou, v. MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência,
cit., p. 18-28; e HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 27-40.
111
Byung-Chul HAN (Topologia da violência, cit., p. 31-35) informa que, “[N]a cultura arcaica, a violência repre-
sentava um recurso central da comunicação religiosa; na guerra, entrava-se em comunicação com o deus da
violência ‘no meio’ da violência” (p. 33). Sobre a aproximação entre religião e violência, v. MULLER, Jean-Marie.
O princípio da não-violência, cit., p. 15-16 e 136-138. Para a verificação da religião, violência e modelo criminal,
v. nossa Parte I, itens 9 a 25, supra.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 539
suficientes, lançamo-nos à obtenção e acumulação, o que, em muitos casos, gera conflito
com outrem. Essa ideia de acumulação e de conquistas materiais perpetua, em nossos dias,
a justificativa arcaica e psicológica da violência. A convicção (rectius, crença) de que os
violentos detêm mais poder é a espinha dorsal que alimenta o capitalismo e todas as suas
justificativas – mesmo que imprecisas – de competitividade, meritocracia, sucesso, reco-
nhecimento e valor pessoal, familiar e social. Vale-se pelo que se tem; como outrora se valia
pelos restos dos mortos que se consumiam ou viravam (nossos) adereços a se portar.112
Essa “economia mágica da violência” que, lastreada nas religiosidades arcaicas, sur-
giu com a crença de que ao matar se obtinha mais “vida”, pois na luta a morte havia sido
suplantada, atualmente passou a ser a “economia do capital”, que ensina que, quanto mais
recursos tiver, mais garantida estará a “sobre-vivência” própria e a de nossos dependen-
tes.113 Ter mais vida ou mais recursos significa que outros não os tenham, ou percam (para
nós ou a nosso favor), ou, ainda, nunca os recebam (por que os obtivemos primeiro e de
modo exauriente das fontes). A cultura da violência implementou, de modo atávico, “o”
ensinamento de como viver e que é passado há gerações por todos os meios disponíveis no
momento histórico: por tradições e ensinamentos familiares, religiosos e sociais, por méto-
dos educacionais, por formas de expressão cultural (p. ex., livros e filmes114), e um longo
herdado et cetera.115 Tradição, cultura, educação e regras legais estabelecidas com mais ou

112
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 31-35.
113
Para as expressões citadas no texto principal, v. HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 45-47. Esse
autor é preciso na analogia: “Em relação à psicologia do profundo o capitalismo tem muito a ver com a morte e
com o medo dela. Também nisso reside sua dimensão arcaica. A histeria da acumulação e do crescimento e o
medo diante da morte condicionam-se mutuamente. [...] ‘Capital infinito’ gera a ilusão de ‘tempo infinito’. Nesse
sentido, a acumulação de capital trabalha contra a morte, contra a falta absoluta de tempo. Em vista do ‘tempo
de vida’ delimitado compra-se ‘tempo de capital’” (p. 46).
114
Exemplo disso reside no recente fenômeno, Squid Game – Round 6, série lançada em 17.09.2021, que acumulou
mais de 2.1 bilhões de horas de visualização (o equivalente a 239.700 anos) em apenas dois meses, sendo a série mais
popular na plataforma Netflix por uma grande margem (SOLSMAN, Joan E. Netflix’s Squid Game was even bigger
than you thought – 2.1B hours big. CNET, 17 nov. 2021. Disponível em: https://www.cnet.com/news/netflix-squid-
game-is-even-bigger-than-you-thought-2-billion-hours-big/. Acesso em: 12 dez. 2021). Para Sulgi LIE, pesquisador
de cinema e mídia na Universidade Livre de Berlim e na Academia de Artes Plásticas de Viena, além de a narrativa
ter encontrado eco nas desigualdades sociais aprofundadas pela pandemia de Covid-19, o sucesso se deu justamente
à imprevisível mistura da violência com jogos infantis: “O interessante na série não é a brutalidade em si, mas
essa tensão entre brincadeira e violência” (WÜNSCH, Silke. Por que “Round 6” é tão brutal – e tanta gente gosta?
Deutsche Welle, 13 out. 2021. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/por-que-round-6-%C3%A9-t%C3%A3o-
brutal-e-tanta-gente-gosta/a-59494142. Acesso em: 12 dez. 2021). A temática da violência também se encontra
constante nas demais mídias visuais de maior popularidade, com Game of Thrones ocupando o primeiro lugar de
série com maior transmissão global de todos os tempos e Vingadores: ultimato como o filme de maior bilheteria
da história (cf. https://www.maioresemelhores.com/series-mais-assistidas/ e https://mundotop10.com/maiores-
bilheterias/. Acesso em: 12 dez. 2021). Mesmo olhando-se os demais integrantes da lista das dez ou 20 séries ou
filmes, menos da metade de ambas não possui temática ligada diretamente à violência de guerra ou crime. Todavia,
mesmo aquele menor percentual trata igualmente de outras formas de violências, tais como as mortes e vicissitudes
em hospitais e relações sociais conflituosas de diversas naturezas, como o bullying pela diversidade de cultura,
aparência ou comportamentos. A violência, em suas várias formas e nuances, é sempre presente.
115
No sentido de uma formação educacional lato sensu da e pela violência, v. ROSENBERG, Marshall B. A linguagem
da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 37-45. Eduardo Ramalho RABENHORST [Violência. In: BARRETTO,
Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 847-849] afirma que: “Os cientistas sociais costumam compreender a violência como um elemento in-
trínseco ao vínculo social, ainda que atribuam dois significados distintos a ideia. Para alguns teóricos, como
René Girard, por exemplo, a própria sociedade pode ser compreendida como uma construção destinada a en-
frentar e conter a violência. Em ‘A violência e o sagrado’, Girard sustenta que os homens são governados por um
desejo gerador de conflitos e rivalidades, cuja estrutura é visivelmente mimética: algo é desejável para alguém
exatamente na proporção em que também é desejado pelos outros. Essa atitude instintiva humana apenas pode
ser contida quando a organização social substitui a violência de todos contra todos pela violência de todos con-
tra um. Tal substituição é proporcionada pelo sacrifício, mecanismo que, segundo Girard, tem um papel social
540 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

menos intensidade (aplicando ou não pena criminal) promovem e perpetuam, assim, a ideo­
logia da violência.116
A exposição dessas raízes da violência tem o objetivo de mostrar que não será viável
sequer examinar a possibilidade de se propor, ou mesmo apresentar em um trabalho de di-
reito processual criminal, a ideologia da não violência se não tomarmos consciência do quão
inseridos e educados na violência estamos todos. A autoconsciência do quanto a violência
está introjetada em nós – tão fundo a ponto de, em alguns aspectos, constituir-nos e desper-
tar reações até instintivo-comportamentais – e nos cerca em tudo (família, escola, trabalho,
diversão, etc.) é o primeiro e indispensável passo para entendermos o quão normalizada ela
se tornou.117 Devemos dar vários passos para trás a fim de nos percebermos violentos de
criação e formação. Mesmo sem aceitarmos, ao final, a não violência – e isso será uma es-
colha do leitor −, essa autorreflexão já terá sido útil para nos revelar tão violentos (homo
ferox) quanto racionais (homo sapiens). A escolha pela não violência passa pela percepção
da violência, assim como a oportunidade à não violência somente pode nascer pelo exauri-
mento da violência como única forma de o homem ser e se relacionar.
O afastamento para uma oportunidade de análise e aceitação não é relevante apenas
para sermos menos violentos – e isso não seria pouco. A não violência também é e oferece
algo diferente, cujas percepção e compreensão somente serão possíveis ao se vislumbrar que
um novo agir poderá mover o mundo por outra premissa em direção a outro propósito, di-
versos (premissa e propósito) da violência para si e contra os outros. Há uma necessidade de
reeducar-se para a não violência, pois ela não constou de nossa formação. Mas, para isso, é
preciso antes lhe dar uma chance de observação isenta através do vidro da janela de vidro
em meio ao cenário de violência que nos cerca.118

fundamental na medida em que funciona como instrumento de absorção da violência particular e de prevenção
da violência futura. Outros cientistas sociais, mesmo não discordando por completo dessa localização originária
da violência num suposto estado de natureza, tendem a priorizar o fato de que as relações humanas estão per-
manentemente fundadas num processo dinâmico e heterogêneo que produz, ao mesmo tempo, reciprocidade e
conflito. Assim, mais do que um fato inaugural, a violência é uma ‘possibilidade’ sempre presente, pois sua
emergência depende, na verdade, dos próprios mecanismos de interação social. Qualquer que seja o ângulo de
análise adotado, o fato é que a organização social humana encontra se inexoravelmente marcada pelo fenômeno
da violência” (p. 847).
116
Explicando a associação imemorial entre pena (pública e privada) e vingança, com toda a violência e raiva que ela
traz consigo, desde seus antecedentes gregos com o julgamento de Orestes, no qual Apolo funciona como advo-
gado assessorado por Athena, contra as Fúrias (Erínias, deusas gregas da vingança e que puniam os mortais), até
toda uma historiografia legislativa de Platão, em sua República, passando pela Idade Média e já nos tempos de
Foucault, v. BATISTA, Nilo. Pena pública em tempo de privatização. In: PASSETTI, Edson (org.). Curso livre de
abolicionismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 109-116. No mesmo sentido dos fundamentos desde a
mitologia grega com o nascimento do Cosmo, do Universo e da vida e do “caótico originário” entre Gaia (terra) e
Urano (Céu), castrado pelo filho Cronos de ambos, dando origem às Erínias, que “representam a memória do
erro, a recordação, e a exigência de que o crime seja castigado”, v. CARVALHO, Thiago Fabres de; BOLDT,
Raphael. A criminologia da não-violência, cit., p. 28-30.
117
Sobre essa onipresença social da violência como ponto de partida no exame do sistema penal e processual penal,
Winfried HASSEMER (Crítica al Derecho penal de hoy. Tradução por Patrícia S. Ziffer. 2. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc,
1998. p. 49) afirma: “I. Violência Onipresente: A violência é um forte componente de nossa experiência cotidiana.
Quem vive com outras pessoas sofre violência e nunca está a salvo dela. Não é, portanto, a onipresença da vio-
lência na vida social que está em questão e o que se modifica. O que se modifica são as formas de violência e a
densidade da atividade violenta. O que se modifica são as disposições para aceitar a violência, as probabilida-
des de se tornar vítima ou também autor de atos de violência. O que está mudando hoje com particular velocida-
de e evidência é a maneira e a maneira como percebemos a violência e a atitude que assumimos em relação a ela;
isso será discutido aqui, bem como as consequências para o direito penal”.
118
Sobre a necessária e inicial autorreeducação para compreender as origens da violência e do conflito, em nós e nos
outros, como primeiro passo para estabelecer uma comunicação não violenta como meio de construir processos
não violentos, v. ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 73-86.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 541
Se essas breves notas sobre as raízes arcaicas servem para nos revelar de formação e
constituição baseada na violência, é necessário um exame mais detido em que ela consiste
nos dias atuais a fim de verificarmos não o que nos legaram, mas aquilo que praticamos e
estamos legando às próximas gerações.

43.1.1 Aproximações de uma noção de “violência” aos fins deste estudo


Durante as Partes I e II deste trabalho a ideia de “violência institucional”, como a
derivada do modelo criminal em sua porção material-punitiva e processual-persecutória, foi
suficiente para explicar ao leitor do que tratávamos nos vários sistemas processuais penais
na história e o grau de violência produzida no Brasil atual. Já na Parte Introdutória deste
estudo, inclusive, estabelecemos uma explicação inicial da relação que aquela violência tem
como espécie do gênero maior “violência social”; também integrada pela “violência confli-
tual”, na qual pode ser inserida, por sua vez, a “violência criminal”.119 Todavia, nesta Parte III
se faz necessário se aprofundar um pouco mais do que se considera propriamente “violên-
cia” neste estudo, a fim de não apenas dar a exata dimensão do que se propõe a evitar pela
ideologia da não violência, mas, para além disso, o que se pretende atingir e modificar pela
ação bidirecional do processo criminal transformativo.
“Violência” é daqueles termos polissêmicos, de conteúdo controverso e de difícil
precisão teórico-consensual. Para além de sua semântica e sentidos vulgares, as maiores
divergências de posições e perspectivas sobre o termo “violência” são encontráveis em di-
cionários filosóficos e políticos.120 Sociologicamente, desse termo pode advir um sem-
-número de abordagens, definições e efeitos. Assim, pelo âmbito processual de destino do
presente estudo, limitamo-nos a indicar o horizonte ligado ao âmbito jurídico de direitos e
à situação da vida (fenomenológica) classificada como crime.121 Por essa razão, tratamos

119
Cf. item 5, supra.
120
Em trabalho específico de “não violência”, a filósofa Judith BUTLER (A força da não violência: um vínculo
ético-político. Tradução por Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2021. Edição do Kindle), já na Intro-
dução de sua obra, aponta que muitos dos desencontros entre os debates que se estabelecem sobre violência e
não violência repousam exatamente na falta de consenso do que seja violência: “Um dos maiores desafios en-
frentados por quem é favorável à não violência é que ‘violência’ e ‘não violência’ são termos controversos.
Algumas pessoas, por exemplo, chamam de ‘violência’ atos discursivos ofensivos, enquanto outras afirmam
que a linguagem, exceto em caso de ameaças explícitas, não pode ser chamada, propriamente, de ‘violenta’.
Outras, ainda, aferram-se a visões estritas da violência, compreendendo o ‘soco’ como o momento físico que
a define; e outras insistem que as estruturas econômicas e jurídicas são ‘violentas’ e agem sobre os corpos,
ainda que nem sempre assumam a forma de violência física. De fato, a figura do ‘soco’ tem definido tacita-
mente alguns dos principais debates sobre o tema, sugerindo que a violência é algo que acontece entre duas
partes ou em um confronto acalorado. No entanto, podemos reiterar, sem contestar a violência da agressão
física, que as estruturas ou os sistemas sociais, inclusive o racismo sistêmico, são violentos. Na verdade, às
vezes, o golpe físico contra a cabeça ou o corpo do outro é uma expressão da violência sistêmica, momento
exato em que devemos ser capazes de compreender a relação entre o ato e a estrutura, ou o sistema. Para
compreendermos a violência estrutural ou sistêmica, é necessário irmos além das explicações racionais, que
limitam nosso entendimento acerca de como funciona a violência. E é necessário encontrarmos quadros de
referência mais abrangentes que aqueles que se apoiam nas figuras de quem ataca e de quem é atacado” (po-
sições 274-281 de 3679).
121
Sobre a essencialidade da violência, em sua abordagem fenomenológica, para o estudo das “ciências criminais con-
juntas” (sobre este termo e nossa compreensão de seu conteúdo, no qual se insere o processo criminal, cf. item 2,
supra) Gabriel J. Chittó GAUER e Ruth M. Chittó GAUER, organizadores da obra A fenomenologia da violência.
Curitiba: Juruá, 1999, assim se manifestam na Apresentação: “O debate sobre a Violência é, sem dúvida, um tema
central da reflexão das Ciências Criminais. Está presente em nosso cotidiano como um dos fenômenos sociais
mais inquietantes do mundo atual. A violência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto
anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção. Aparece em todas as sociedades e civilizações, integra
542 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

sempre nessa Parte III de processo “criminal”, pois vinculado aos fatos da vida que deram
causa ao crime, os que o formam como realidade fático-jurídica artificialmente construída
como ilícita por escolha estatal, e, por fim, os efeitos que dele decorrem na vida dos direta-
mente envolvidos (vítima e agente) e de entes próximos também atingidos (direta ou indire-
tamente) pela conduta praticada (pessoas físicas ou jurídicas, individuais ou coletivas).122
Logo, o trabalho parte de um recorte fenomênico para analisar a violência que o envolve;
não de uma análise por divisão operacional123 ou científica das “partes” do “fato punível”124.
Mesmo feito este corte, a conceituação de violência não é tarefa fácil e extrapolaria
este estudo.125 Logo, parte-se de uma “aproximação” à sua noção intencionalmente voltada
para o objeto deste trabalho: o processo criminal. O destaque aos métodos classificatórios e
as peculiaridades a seguir ressaltados não têm a intenção de conceituá-la ou defini-la, nem
mesmo de modo provisório. A ausência de qualquer pretensão de restringir o termo traz, ain-
da, a vantagem de possibilitar sua expansão e melhor detalhamento em estudos futuros a se-
rem desenvolvidos se a tese deste trabalho se mostrar oportuna e for aceita pela comunidade.
A “violência” que importa neste estudo é aquela derivada de uma conduta humana,
comissiva ou omissiva.126 Violência, nesse sentido, é lesar, impedir, negar, danificar, reduzir

o mundo atual, seja nas grandes cidades, seja ou nos recantos mais isolados. Contemporaneamente, a percepção
e o desenvolvimento de uma maior sensibilidade mostram a violência em sua nudez execrável possibilitando
pensar uma antropologia – termo tomado aqui em seu sentido mais amplo na qual a dignidade dos desprotegidos
não esteja presente por uma concessão especial de ‘ justiça’, mas como sua base absoluta” (p. 11).
122
Francisco de Assis TOLEDO (Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Item 94) infor-
ma que o “crime, além de fenômeno social, é um episódio da vida de uma pessoa humana. Não pode ser dela
destacado e isolado. Não pode ser reproduzido em laboratório, para estudo. Não pode ser decomposto em partes
distintas. Nem se apresenta, no mundo da realidade, como puro conceito, de modo sempre idêntico, estereotipa-
do. Cada crime tem a sua história, a sua individualidade; não há dois que possam ser reputados perfeitamente
iguais” (p. 79). É nesse espaço fático anterior, interior e posterior ao crime que analisamos a violência.
123
Sobre essa porção operacional, com precisão delimita Juarez Cirino dos SANTOS (Direito penal: Parte Geral.
Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 71-72) que uma “teoria do fato punível deve começar pela definição de seu
objeto de estudo, o conceito de fato punível. As definições de um conceito podem ter natureza ‘real’, ‘material’,
‘ formal’ ou ‘operacional’, conforme mostrem a origem, os efeitos, a natureza ou os caracteres constitutivos da
realidade conceituada. Assim, definições ‘reais’ explicariam a gênese do fato punível, importantes para delimi-
tar o objeto de estudo da criminologia; definições ‘materiais’ indicariam a gravidade do dano social produzido
pelo fato punível, como lesões de bens jurídicos capazes de orientar a formulação de políticas criminais; defini-
ções ‘ formais’ revelariam a essência do fato punível, como violação da norma legal ameaçada com pena; enfim,
definições ‘operacionais’ identificariam os elementos constitutivos do fato punível, necessários como método
analítico para determinar a existência concreta de ações criminosas”.
124
Sobre esse ponto de dividir o fato punível em partes para, saindo do particular da vida, ir para uma análise cien-
tífica, Francisco de Assis TOLEDO (Princípios básicos de direito penal, cit., item 94) informa que tal divisão e
organização (científica) “mutila, sem dúvida, a realidade, pondo em destaque aspectos e elementos de um todo
que permanece inapreensível. Não sem razão afirma Roxin que ‘quase todas as teorias do delito, apresentadas
até agora, ‘são sistemas de elementos’ que desintegram a conduta delitiva em uma pluralidade de características
concretas (objetivas, subjetivas, normativas, descritivas etc.), as quais são incluídas nos diferentes graus da es-
trutura do crime e depois reunidas, como um mosaico, para a formação do fato punível’” (p. 79-80).
125
Eduardo Ramalho RABENHORST (Violência, cit.) identifica, inclusive, que na atualidade está ocorrendo uma
ampliação da percepção de violência: “Pode-se verificar, também, que a percepção contemporânea da violência foi
ampliada não apenas do ponto de vista de sua intensidade, mas igualmente na perspectiva de sua própria extensão
conceitual. A propósito, nossa gramática da violência está cada vez maior: além da tradicional violência física que
atinge a integridade pessoal dos indivíduos (talvez a única forma reconhecida por todas as culturas), identificada
por todos, falamos ainda da violência no trânsito, da violência nas prisões, da violência contra as mulheres e crian-
ças, da violência social que atinge certos segmentos da população, da violência política (principalmente a do ter-
rorismo) e da violência simbólica. Assim, conforme observa Theophilos Rifiotis, é a própria extensão do campo
semântico que nos leva a pensar que estamos frente a um constante e ineludível aumento de violência” (p. 848).
126
No sentido de violência como um agir humano contra as ordens da natureza, moral, jurídica ou política,
v. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução por Alfredo Bosi et al. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998. p. 1002-1003, Verbete “Violência”. Para os interesses de seu estudo dos direitos humanos, Guilherme
43.  Ideologia da violência e Modernidade 543
ou extinguir algo essencial à vida digna e independente do ser humano ou de um grupo de
pessoas, em regra − mas não obrigatoriamente −, garantido em uma norma.127 A violência
atinge, portanto, a pessoa em seu direito de ser (integridade e completude como ser humano)
e de ter coisas que lhe sejam vitais a uma vida integral e livre da submissão a outrem (pes-
soa física ou jurídica; pública ou privada).128
Além disso, para que ela possa estar ligada ao plano dos direitos e do crime, como
antes referido, a violência deve ser pensada a partir de um referencial, qual seja, uma “or-
dem” normativa estabelecida. Neste trabalho, portanto, a violência deve ser identificada não
apenas em relação ao que a lei defina como “crime”, mas, também, ao que a lei defina como
direito de alguém ou de um grupo e lhe seja essencial à dignidade e liberdade em relação
aos demais. Há violência em torno ao crime, como há violência que, a despeito de não ser
classificada como “criminal”, não deixa de ser violência ao negar, expropriar, lesionar ou
extinguir direitos garantidos em lei de pessoas ou grupos de pessoas.
Aceitar que o processo criminal necessita da noção de “crime” que lhe seja anterior
e lhe oriente sobre o que versará serve tanto ao sistema processual do modelo criminal
persecutório-punitivo quanto ao sistema processual criminal não violento proposto neste
estudo. A diferença é que naquele (o tradicional) o processo fraciona a realidade e trata
apenas do crime, ou seja, do fato punível e seus elementos científico-operacionais de veri-
ficação de punição ou não punição no caso concreto. Já ao sistema processual criminal não
violento importa mais; importa toda a violência que envolva o crime, aquela que lhe antece-
deu e aquela que dele decorre. A violência que dele (o crime) derivou e que ainda pode
existir seja na vítima, seja na comunidade circundante, seja, por fim, em novas situações da
vida que se tornaram criminógenas e, portanto, criadoras (ou potencialmente criadoras) de
novas violências futuras (criminais ou não).
Todas as violências que engolfam e envolvem o “fenômeno criminal” e suas
“respostas”129 devem ser consideradas, abordadas e, se possível, transformadas para ações
positivas aos envolvidos, primeiramente, e, também se possível, para a comunidade, tornan-
do a negatividade da violência passada em atuação positiva para o futuro.

Assis de ALMEIDA (Direitos humanos e não violência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015), após reconhecer infindáveis formas
de definir violência, define-a de modo básico e abrangente como: “De forma básica, no âmbito deste livro, violência será
definida como: ‘ação intencional (de um indivíduo ou grupo) que provoca uma modificação prejudicial no estado psico-
físico da vítima (pessoa ou grupo de pessoas)’” (p. 4). Este espaço bem pode ser aqui incorporado e usado.
127
Nesse sentido, vem com propriedade as palavras de Mario STOPPINO (Violência. In: BOBBIO, Norberto;
MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Coordenação da tradução por João Ferreira.
5. ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. v. 2), buscando uma definição, e
ainda em sentido natural: “A Violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de maneira imediata o
corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se
encontra (por exemplo, o fechamento de todas as saídas de um determinado espaço) ou através da destruição, da
danificação ou da subtração dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modifica-
ção prejudicial do estado físico do indivíduo ou do grupo que é o alvo da ação violenta” (p. 1291-1292).
128
Sobre a importância das ideias de “interesse” e “necessidades essenciais” para os estudiosos do conflito e o papel
que isso desempenha neste trabalho, cf. item 44.3, infra. Esses termos, assim como suas aproximações com
“direitos” protegidos não serão especificados segunda a teoria dos conflitos para não criar deflexões desnecessá-
rias e que pouco acrescentariam neste tópico que ora tratamos.
129
Para este trabalho, com base em BINDER, Alberto M. Política criminal: de la formulación a la práxis. Buenos
Aires: Ad-Hoc, 1997. p. 30-32; e DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de política criminal Tra-
dução e notas por Edmundo Oliveira. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p. 24-28, tomamos o “fenômeno criminal” não
apenas como os atos definidos como “crimes”, mas os “estados perigosos” ou “condutas indesejadas”, que com-
põem espaços menos precisos do que os tipos penais, mas também motivadores de violência por serem também
próximos ao indesejado. Também definimos suas “respostas”, que também sendo de natureza formal ou informal,
no modelo criminal persecutório-punitivo tendem a ser, por excelência, violentas. Sobre o tema, cf. item 6, supra.
544 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Violência é, em uma perspectiva inter-relacional, qualquer modo se servir do outro


ser humano e de seus direitos como meio para um fim, não o respeitando como uma pessoa
igual que também tem interesses e necessidades essenciais próprias.130 É a perda da oportu-
nidade de se construir com ele algo comum e positivo, pois feito a partir das características
e escolhas de cada um.
Essa visão ampla proposta de violência ajuda a compreender um importante ponto
para o restante deste trabalho: a distinção entre “desigualdade” e “diversidade”. “Diversida-
de” é a diferença eleita e desejada entre as pessoas para manutenção de suas raízes culturais,
suas opções diante da vida e suas escolhas. A “desigualdade”, ao contrário, é uma diferen-
ciação imposta às pessoas para submetê-las e desqualificá-las em relação às demais e a si
mesmas diante dos outros. A última é algo negativo, limitante, excludente e imposto; e não
escolhido pela pessoa como na “diversidade”. Ninguém escolhe ser desigual e inferior, mas
escolhe ser distinto naquilo que valoriza de peculiar a si e de diverso em relação a outrem.
A diversidade é algo enriquecedor ao convívio humano e deve ser prestigiado, mesmo que
não se a aceite e com ela se deva aprender a conviver.
Quando as desigualdades atingem determinada aceitação ou tolerância, constroem
estruturas de consolidação e justificativa, penetrando fundo e por um longo tempo no tecido
sociopolítico, o que bloqueia e impede que se veja, com nitidez, a violência que dessa in-
crustação deriva e se perpetua de modo invisível, ou não sentido.
As regras (sociais, econômicas e jurídicas) passam a ser feitas e difundidas de modo
(às vezes imperceptível) para não favorecer a todos de igual modo. Exemplificativamente,
tome-se o discurso da meritocracia. Partindo de um racional que busca a escolha ou sucesso
dos melhores por aplicação de critérios seletivos iguais, em muitos casos, esconde a inten-
ção de manter os privilégios a alguns e, portanto, excluir o direito de acesso de forma igua-
litária (à educação, ao trabalho, etc.) a todos ou a um grupo específico. Tudo a depender das
“regras” que são feitas, por quem são feitas e com qual intenção são feitas. Em muitas situa­
ções esconde-se por detrás das regras aparentemente equilibradas aspectos que revelam a
meritocracia, de fato, tendenciosa ou desigual. Isso ocorre se nem todos a serem submetidos
às regras têm oportunidades iguais de se qualificarem para o teste e, não raro, se já partem
de condições profundamente desiguais.131 Além disso, a abertura e o desenho da porta por

130
Sobre a importância do “interesse”, assim como de “metas” e “objetivo” e “necessidades essenciais” para os estu-
diosos do conflito e o papel que isso desempenha neste trabalho, cf. item 44.3, infra.
131
Exemplo disso são as dificuldades vividas em 2020 com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O ex-
-Ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirmou que as datas das provas não seriam alteradas, apesar de
todas as dificuldades relacionadas à pandemia de Covid-19, baseado na ideia de que o “O Enem é uma competi-
ção. Ficou difícil para todo mundo” (ALFANO, Bruno. “O Enem é uma competição. Ficou difícil para todo mun-
do”, afirma Weintraub, mantendo as datas do Enem. O Globo, Rio de Janeiro, 17 abr. 2020. Disponível em: https://
oglobo.globo.com/sociedade/educacao/o-enem-uma-competicao-ficou-mais-dificil-para-todo-mundo-
afirma-weintraub-mantendo-datas-do-enem-24379581. Acesso em: 12 dez. 2021). Só não houve consideração por
parte do ex-Ministro de que, em circunstâncias “normais”, os alunos de baixa renda já têm desempenho conside-
ravelmente inferior (TOLEDO, Luiz Fernando; ARRUDA, Mílibi; PRATA, Pedro. No Enem, 1 a cada 4 alunos de
classe média triunfa. Pobres são 1 a cada 600. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 jan. 2019. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/infograficos/educacao,no-enem-1-a-cada-4-alunos-de-classe-media-triunfa-pobres-
-sao-1-a-cada-600,953041. Acesso em: 12 dez. 2021), situação que só tende a piorar frente as diferentes condições
sociais dos alunos (BARBOSA, Catarina. EaD: Desigualdade social escancara abismo entre escolas públicas e
particulares. Brasil de Fato, Belém, 19 jul. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/19/
ead-desigualdade-social-escancara-abismo-entre-escolas-publicas-e-particulares. Acesso em: 12 dez. 2021).
Note-se que, tendo em vista essas dificuldades, as provas físicas foram aplicadas em 17 e 24 de janeiro de 2021
(NOTAS DO ENEM 2020 SERÃO DIVULGADAS SEGUNDA-FEIRA (29). EuEstudante, 24 mar. 2021, atuali-
zado em 26 mar. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/enem/2021/03/4913865-
-notas-do-enem-2020-serao-divulgadas-segunda-feira--29.html. Acesso em: 12 dez. 2021).
43.  Ideologia da violência e Modernidade 545
onde devem passar (as regras de escolha ou mesmo inscrição para se triar pelo mérito) são
feitos sob medida para alguns ou para evitar outros. Tome-se como exemplo, no Brasil atual,
o fato de, primeiro, as oportunidades dependerem da educação a ser recebida desde a pri-
meira infância e, segundo, o de ela ser desigual a todas as crianças, tendo a minoria um
universo de oportunidades, e a maioria letramento básico deficiente. A partir de tal ponto,
qualquer filtro seletivo de meritocracia que dependa da educação deixa de ser equilibrado
ou equânime se a baliza de corte for igual a todos.132
O exemplo demonstra que regras e/ou ordens aparentemente equânimes podem mate-
rializar e disfarçar “violências estruturais”133 e perpetuadas por situações de desigualdade.

132
Essa diferença de oportunidades também, pelo conceito acima disposto de violência, é uma de suas formas e decorre
de situações de falha estrutural. Para o efeito dessa violência como uma das inegáveis causas da criminalidade, por
falta de oportunidades de consecução das necessidades básicas, cf. item 32, notadamente Gráficos 15, 17 e 18, supra.
Sobre a combinação entre desigualdade e meritocracia como produção de violência, já assentou Sidney CHALHOUB,
professor titular de história da Unicamp, numa entrevista: “A meritocracia como valor universal, fora das condições
sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades
sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido
tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobre-
vivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode
continuar” (ALVES FILHO, Manuel. A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chaloub.
Jornal da Unicamp, Campinas, 7 jun. 2017. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/06/07/
meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades-diz-sidney-chalhoub. Acesso em: 12 dez. 2021). Para que não se
entenda ser essa uma falha no processo seletivo apenas no Brasil, podemos citar recente escândalo estadunidense
quanto à burla das regras de acesso às universidades. O fato, de conhecimento mundial, foi considerado na análise do
filósofo Michael J. SANDEL, em sua obra A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Tradução por
Bhuvi Libanio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. A ilegalidade foi capitaneada por William Singer, que
corrompia funcionários das universidades e fraudava provas e notas para garantir o ingresso de filhos de famílias que
podiam pagar pela corrupção e pela fraude. Ele denominava seu meio de acesso de “porta lateral”, para diferenciá-la
da conhecida “porta dos fundos”, que está prevista nas regras acadêmicas e consiste em que uma boa doação em di-
nheiro em nome do candidato à universidade contribui, às vezes decisivamente, para seu ingresso. A questão levanta-
da por SANDEL é: “Do ponto de vista de justiça, no entanto, é difícil distinguir entre a ‘porta dos fundos’ e a ‘porta
lateral’. Ambas oferecem vantagem a filhos e filhas de pai e mãe ricos que ingressam no lugar de candidatos mais
qualificados. Ambas permitem que o dinheiro supere o mérito. O ingresso com base no mérito define a entrada pela
‘porta da frente. Conforme afirmou Singer, a porta da frente ‘significa que você entra por conta própria’. Essa forma
de ingressar é a que a maioria das pessoas considera justa; candidatos deveriam ser admitidos com base no próprio
mérito, não no dinheiro do pai e/ou da mãe. Na prática, obviamente, não é tão simples assim. Dinheiro paira sobre a
porta da frente, assim como sobre a dos fundos. É difícil dissociar a medida do mérito de vantagens econômicas.
Os exames padronizados, como o SAT, supostamente medem somente o mérito, de maneira que estudantes vindos de
contextos modestos possam demonstrar promessa intelectual. Na prática, entretanto, a nota do SAT vem no rastro da
renda familiar. Quanto mais rica for a família de um ou uma estudante, mais alta provavelmente será a nota dele ou
dela”. Michael J. SANDEL propõe um repensar sobre critérios e fundamentos da meritocracia. Não deseja eliminá-la,
mas a refundar e, após demonstrar os vícios intrínsecos nela inseridos para torná-la instrumento de desigualdade, su-
gere novos paradigmas em seus capítulos 6 e 7. Logo, tal qual neste trabalho, pretende que novos paradigmas levem a
outros resultados: “Se a meritocracia é o problema, qual é a solução? Deveríamos contratar pessoas com base em
nepotismo ou em preconceitos de vários tipos, em vez de nos basear na habilidade delas para exercer o trabalho?
Deveríamos voltar aos dias em que as universidades da Ivy League aceitavam filhos privilegiados de famílias bran-
cas, protestantes de classe alta com pouco interesse pela proposta acadêmica? Não. Superar a tirania do mérito não
significa que mérito deveria ficar sem função na distribuição de empregos e papéis sociais. Em vez disso, significa
repensar a maneira como concebemos o sucesso, questionando o conceito meritocrático de que as pessoas no topo
chegaram lá por conta própria. E significa desafiar as desigualdades de riqueza e estima que são defendidas em nome
do mérito, mas que nutrem ressentimento, envenena nossa política e nos separa. Tal reconsideração deveria focar nos
dois domínios da vida mais importantes para a ideia de sucesso meritocrático: educação e trabalho” (p. 221).
133
Baseado nos trabalhos de Johan Galtung, Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 32-33) de-
nomina “violência estrutural” aquela produzida pelas “estruturas políticas, econômicas e sociais que criam situa­
ções de opressão, exploração ou alienação” (p. 32) e nas quais tanto são incluídas as “ações violentas” daquelas
estruturas quanto as “situações de injustiça” por elas produzidas. Esse conceito de “violência estrutural” também
é aplicado por Carolyn YODER (A cura do trauma quando a violência ataca e a segurança comunitária é ameaça-
da. Tradução por Luís Bravo. São Paulo: Palas Athena, 2018. p. 16-17) ao também tratar de “violências continua-
das”, que são estruturalmente induzidas como causas de traumas, os quais, por sua vez, advêm de frustrações ou
impedimentos de acesso a necessidades básicas (conflitos).
546 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Situações que podem, a depender da intensidade e duração, tornar-se fatores produtores de


mais violências.
A violência como prática significa “abusar” do outro “violando” seu corpo, identida-
de, personalidade, humanidade e bens, todos tutelados por direitos. Pela perspectiva da ví-
tima, é uma forma de sua “des-figuração”: “a violência fere e deixa marcas profundas na
humanidade de quem a sofre”.134
O que importa deixar ressaltado nesse último aspecto da aproximação feita à noção
de violência, pois fundamental para compreender conflito e ideologia da não violência135, é
que todo conflito, em especial o violento, deixa marcas (“traumas”) visíveis (físicos) e invi-
síveis (psicológicos; emocionais, sentimentais). São marcas físicas e sentimentais que não
atingem apenas a vítima da violência (impassível e sem resistência) ou o contendor vencido,
mas de igual modo deixam cicatrizes no vencedor (ofensor). O violento, ao praticar violên-
cia, violenta-se em sua própria humanidade – perde-se de sua referência pessoal, pois, ao
desfigurar o outro, coloca-se na possibilidade de ser desfigurado.136 Ao praticá-la, vê a des-
figuração e seus efeitos e a introjeta, o que faz com que seu medo (violência interna) de
também ser desfigurado torne-se (mentalmente) real e mais próximo. A violência praticada
também afeta profundamente o seu agente. Violentar também deixa traumas físicos e emo-
cionais no violento.137
Por essa razão, a ideologia da violência criou, paralelamente à capacidade de confe-
rir poder ao vencedor (propaganda da violência), as justificativas necessárias para que neu-
tralizasse sua própria consciência. Dessas justificativas e suas consequências trata o próxi-
mo subitem.

43.2 As justificativas da violência e suas consequências para a sociedade e a seus


perpetradores: a lógica da ideologia da violência
A lógica que se instala por detrás da ideologia da violência não se manifesta apenas
no modelo criminal e seus sistemas penal e processual penal. Embora esse seja o meio no
qual a aplicaremos, ela tem validade em todos os espaços em que a violência precisa justi-
ficar sua presença e seu uso por umas pessoas (perpetradores, violentos) contra outras (ví-
timas, violados). Como dito ao final do subitem anterior, o violador precisa se autojustificar.

134
Com base em Simone Weil e Immanuel Kant, v., nesse ponto, MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violên-
cia, cit., p. 30-32.
135
Cf. item 44.2, infra.
136
Como bem alertava Friedrich Wilhelm NIETZSCHE (Além do bem e do mal: ou prelúdio de uma filosofia do
futuro. Tradução por Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001. 4ª Parte, denominada “Aforismos e interlúdios”,
citação 146, p. 89): “Quem deve enfrentar monstros deve permanecer atento para não se tornar também um mons-
tro. Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti”.
137
Carolyn YODER (A cura do trauma, cit., p. 19), com apoio em estudo de Rachel MacNAIR (Perpetration-induced
traumatic stress: the psychological consequences of killing. Westport, CT: Praeger Publisher, 2002), indica que o
“trauma induzido por participação” ou “trauma induzido por perpetração” (cf. nota 10, p. 96, expressão que
preferimos pela clareza de sentido) é pouco estudado, mas nem por isso inexistente ou desconsiderável. De fato,
tal trauma não tem nada de desconsiderável. Ao contrário, é exatamente porque ele é forte e presente, mas os
agentes da violência não podem ou não querem parar em suas condutas, que temos “iludido” (rectius, “engana-
do”), esse trauma é jogado, por meio de justificativas, para cada vez mais fundo no violador. Seu trauma não é
curado; é “justificado”. Exatamente porque o agente da violência precisa ser iludido (e não curado) se criam efi-
cazes justificativas à violência. Nesse sentido, v., também, CARVALHO, Thiago Fabres de; BOLDT, Raphael.
A criminologia da não-violência, cit., p. 35-37. Tudo como se verá a seguir no próximo item.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 547
A cultura da violência precisa, ao que importa no modelo criminal, da culpa e da
punição dentre seus fundamentos; essas, em si mesmas, formas de violência. Porém, a vio-
lência necessita esconder ou mesmo negar sua natureza lesiva e prejudicial. Esconde-se e
furta-se à luz da consciência do agente violador para esse não cessar seu comportamento e,
com isso, ela ser mais e mais difundida. Dessa forma, a cultura e a educação da violência
ensinam ao indivíduo que a responsabilidade pela escolha é sua e ela tem consequências:
obedecer às regras e/ou ordens (hierárquicas, divinas, sociais, familiares, profissionais ou
educacionais) e ser premiado (ou não punido), ou “violar” aquelas regras/ordens e ser (tam-
bém) “violentado”138. A lógica da violência precisa do binômio punição-prêmio139, sem o
qual não funcionaria. Premiar, portanto, não é uma benesse, magnanimidade ou bondade,
mas método de controle por trás do qual se esconde “culpa-punição”. A “justificativa” da
punição violenta é o fato de o “violador” ter escolhido, antes, violar a ordem ou regra esta-
belecida. Se violou, será violado.
Essa lógica, a todos muito natural e atávica – até mesmo familiar e infantil −, é for-
ma de justificar a violência para anestesiar a consciência do “violento”: violência em respos-
ta à violência anterior não seria violência, mas sim “justiça”. A justificativa mistifica o que
a violência realmente é. Como houve ou fui atingido por uma violência anterior, minha
“violência-resposta”140 tem uma “causa justa”, e, portanto, mesmo que ontologicamente seja
uma “violência”, meu comportamento perde sua negatividade intrínseca e passa, no plano
psicológico do perpetrador, a ser “positividade”, uma lição ministrada ou o “fazer justiça”.
A justificativa da “violência-resposta” diz a quem cria, ensina, educa, disciplina ou... pune
criminalmente que a ação violenta é o melhor para todos, inclusive para quem está sendo
punido. Quem já não se deparou com as frases “Dói mais em mim do que em você; mas é
para seu bem”? ou “Assim você não me deixa(ou) escolha!”. Dessa forma, no âmbito crimi-
nal, explica-se a inflição de “pena criminal” como forma de “violência-resposta” baseada
na “causa justa” da “violação” anterior do comportamento desejado (regra/ordem), tanto
que consequência prevista em lei (a pena criminal). A resposta da ideologia da violência
para tais “insubordinações” ou “divergências” é a punição141, ato já em si violento e com
intensidades variáveis.
A justificativa da “violência-resposta” serve tanto a Fulano que, submetido a violên-
cias estruturais (educacionais, racistas, sexistas, econômicas, etc.) anteriores, comete crime,
quanto àquele que, em resposta à violência criminal (anterior) de Fulano, cometerá violência

138
Não por acaso “violar” tem etimologia latina de “violare”, a mesma do termo “violência”, cujos significados identificam-
-se com “ofender com violência”, “transgredir”, “profanar”. Cf. CUNHA, Antônio Geraldo da. Modo. In: Dicioná-
rio etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 823.
139
ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 38-39.
140
Explicando o que denominamos no trabalho “violência-resposta” como a “violência da vingança” que se repete
para a frente, sem possibilidade de retroceder ao passado e descobrir sua origem, apenas se perpetuando por atos
das contrapartes que já nascem em um ambiente violento, v. CARVALHO, Thiago Fabres de; BOLDT, Raphael.
A criminologia da não-violência, cit., p. 33-35.
141
Ruth M. Chittó GAUER [Alguns aspectos da fenomenologia da violência. In: GAUER, Gabriel J. Chittó; GAUER,
Ruth M. Chittó (org.). A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá, 1999. p. 13-35] trabalha a ideia de violência
como algo cuja constatação e manifestação sempre cruel e destrutiva “deixa transparecer uma reivindicação de
ordenamentos sociais mais justos – como se sabe, o conceito de ‘ justo’ (conceito relativo, mas sempre dotado de
valor) é eminentemente arbitrário – e, por outro lado, denuncia uma impotência do Estado, que não consegue
cumprir o seu projeto (muitas vezes mais anunciado do que desejado) de unificar e equilibrar a sociedade”
(p. 16). Para essa autora a violência pode ter diferentes formas: a “violência institucional”, a “violência anômica”,
a “violência banal”, a “violência interna” e, para ela, “talvez a maior demonstração de violência da sociedade
atual seja a sua incapacidade de resolver os problemas da ‘ fome’” (p. 23).
548 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

institucional ao persegui-lo e puni-lo. Cada qual, Fulano e agentes internos, terão suas cer-
tezas de violências anteriores cometidas e, portanto, suas “justificativas” para as “violências-
-respostas”. Abstraída a autorização legal que os agentes têm e Fulano não possui para exer-
cerem suas violências, substancialmente todos agiram de forma ofensiva e supressora de
direitos sob os pálios da vingança ou retaliação ou, ainda, em linguagem jurídico-penal, da
retribuição, ideias cruciais para “justificar” a violência como resposta.
Contudo, a lógica da “violência-resposta” não é capaz de justificar algumas situa-
ções de violências desferidas a grande número de pessoas, sem conduta específica ou mes-
mo sem a prática de violência anterior. Para estes contextos entra em jogo outra forma de
justificativa, sempre ligada a estruturas criadas e mantidas por integrantes do poder político
para o controle, por submissão, por exclusão ou por eliminação de determinado grupo de
pessoas ou de pessoas que se encaixem (ou sejam encaixadas conforme a vontade político-
-persecutória reinante em dado momento. É a justificativa que se cria contra os “inimigos”,
mesmo que não saibamos quem sejam ou o que tenham feito de errado. A violência torna-se
política de estado ou de governo e, para durar e ter extenso alcance em todos os grupos e
pessoas que se quer atingir, manifesta-se por meio de estruturas pensadas e formadas para
a difusão da violência como forma de controle.142
Como essa violência estrutural já foi ressaltada por toda a Parte I, pois é a ideia es-
sencial da criminalização primária de certos tipos penais político-sociais143, assim como do
aparato criminal brasileiro, visto o claro perfil socioeconômico uniforme dos vitimados

142
Sob o título “Liquidando os danos. Os horrores da autonomia”, Jürgen HABERMAS escreve apresentação à obra
O conceito do político: teoria do partisan (1932), como extensão de um artigo homônimo de 1927, ambos de auto-
ria de Carl Schmitt (1888-1985), filósofo político alemão, integrante do partido nazista durante a 2ª Guerra Mun-
dial e professor de direito constitucional e internacional do século XX. As qualidades teóricas e profundas dife-
renças políticas de ambos os juristas alemães impõem a leitura de ambas as obras. Carl SCHMITT (O conceito do
político: teoria do partisan. Tradução por Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009), sob o franco,
direto e sugestivo título de “A diferenciação entre amigo e inimigo como critério do político”, logo na abertura de
seu trabalho (item 1.2) assim lecionava para uma época pré-ascensão do regime nazista: “Uma definição do con-
ceito do político só pode ser obtida pela identificação e verificação das categorias especificamente políticas. Isto
porque o político tem suas próprias categorias, as quais se tornam peculiarmente ativas perante os diversos
domínios relativamente autônomos do pensamento e da ação humanos, especialmente o moral, o estético e o
econômico. Por isso, o político tem que residir em suas próprias diferenciações extremas, às quais se pode atri-
buir toda a ação política em seu sentido específico. Suponhamos que no âmbito do moral as extremas diferenciações
sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não-rentável.
A questão é, então, se também existe – e em que consiste –, uma diferenciação especial como critério simples de
político, a qual, embora não idêntica e análoga àquelas outras diferenciações, seja independente destas, autôno-
ma e, como tal, explícita sem mais dificuldades. A diferenciação especificamente política, à qual podem ser re-
lacionadas as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo, fornecendo uma definição
conceitual no sentido de um critério, não como definição exaustiva ou expressão de conteúdo. Na medida em que
não é derivável de outros critérios, ela corresponde para o político aos critérios relativamente autônomos de
outras antíteses: bom e mau no moral; belo e feio no estético etc.” (p. 27-28). Estas palavras de Carl SCHMITT
explicam muito bem porque as políticas criminais desde a Roma Imperial, passando pelas Inquisições e pelos
Estados totalitários do século passado nunca definiam ou precisavam em termos claro o “inimigo”; era necessária
uma máscara moldável aos interesses políticos a fim de aderirem em quem esses determinassem. E não se diga
que tais ideias acabaram com as Guerras Mundiais e os movimentos internacionais de direitos humanos a partir
do início do século XX, pois o próprio Carl Schmitt republica, com novo prefácio, a citada obra em 1963 e, pos-
teriormente, volta ao tema em outra obra de 1970 (Teologia Política II, já em português, pela editora Del Rey,
2006). Byung-Chul HAN (Topologia da violência, cit., capítulo 4) explica com precisão essa “política da violên-
cia” utilizando-se, dentre outros pensadores, entre os quais está Carl Schmitt.
143
Para objetivar tudo o que foi explicitado na Parte I, supra, cite-se, na ordem histórica, v.g., os bárbaros para os
romanos; os cristãos para os não cristãos e vice-versa; os guerreiros ou integrantes de outras tribos ou reinos; os
hereges; os revoltosos e os opositores políticos de várias épocas e até hoje; assim como os socioeconomicamente
excluídos ou marginalizados que infrinjam a lei no período de uma modernidade radical globalizada.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 549
pela violência letal e, em boa medida, dos encarcerados144, espelhando no modelo criminal
as opções políticas do poder público que o controla e determina, exemplifiquemos fora da
área jurídico penal.
A violência recebe, pois o adjetivo de “estrutural” quando se serve de processos e
organizações já existentes para se realizar. Essas “estruturas” normal, mas não obrigatoria-
mente, podem ter sido concebidas para perpetuar situações ou posições de desigualdade ou
de controle, como por exemplo, o sistema penal e processual penal no curso da história. Em
situações como essas a estrutura torna a violência uma dominação (“violência de domina-
ção”) ou uma opressão (violência de opressão”). Em uma “política de guerra” ela pode ter
início sem ataque anterior do “inimigo” ao violentador mesmo quando são usados arma-
mentos bélicos como a bomba atômica ou armas químicas de exterminação em massa, pois
a todos atingem, inclusive aos inocentes.145 Em uma “política criminal punitiva” (rectius,
“violenta”) ela pode ter início na definição de comportamentos indesejados ou dirigistas
(criminalização primária), a partir da qual “justifica-se” a punição apenas para “preserva-
ção da “ordem” e da “paz” de quem assim as definiu.
A estrutura para a violência, por sua vez, e como não poderia deixar de ser nos efei-
tos encadeados e de mesma natureza que a lesividade produz, acaba por se tornar causa de
novas “violências-respostas” a tanta desigualdade e opressão.146
Para essas violências dirigidas a pessoas incertas e sem a prática anterior de ato vio-
lento, a justificativa utilizada a neutralizar a consciência dos agentes da violência é a própria
estrutura de dominação e submissão em que eles estão inseridos ou à qual se submetem
para poder “sobre-viver” no grupo.147
As justificações necessárias para mistificar a violência dirigem-se tanto à vítima
quanto ao agente violento. Àquela, para aceitar o poder em ato de violência de quem fixou
a ordem/regra que ela descumpriu; assim funcionam a estrutura escolar, familiar, religiosa
e ... criminal. Ao agente perpetrador da violência, como meio de ajudá-lo a suportar sua
consciência após ou para praticar o ato violento, fazendo-o crer que atua em uma “causa
justa”148 e apta a transubstanciar a natureza cruel e dolorosa da violência por ele praticada e
que também o atingiu em algo “positivo” para a “ordem” (rectius, imposição) ou a “paz”

144
Sobre o perfil dos encarcerados e, portanto, uma forma de ver a estrutura violenta do aparato criminal brasileiro
em atuação cada vez mais excludente de certas camadas sociais ou perfis de pessoas revelam uma inegável vio-
lência estrutural racista e aparofóbica de nossa sociedade que apenas se espelha no modelo criminal. Nesse senti-
do, v. item 32, supra.
145
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 44-47.
146
Sobre as violências praticadas por sentimentos e emoções extremadas em decorrência de violências estruturais ou
violência opressiva, v. YODER, Carolyn. A cura do trauma, cit., p. 16-17; e MULLER, Jean-Marie. O princípio
da não-violência, cit., p. 32-35.
147
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 45-48) bem demonstra como o agente da violência
utiliza-se da estrutura e das relações de dominação e submissão nas quais se encerra para transferir-lhes a “culpa”
pelas violências que comete: “O homem que exerce a violência se encontra, geralmente, não apenas inserido, mas
encerrado em relações de dominação e de submissão, de mando e de obediência” (p. 45), e, mais adiante, com-
pleta: “[O] homem que exerce violência por obediência à autoridade contenta-se realmente em ‘ fazer seu dever’.
Leva em conta apenas o indiscutível valor moral dessa regra de conduta, esforçando-se em ocultar a imoralida-
de daquilo que faz. ‘O valor moral da obediência predomina sobre a imoralidade da ordem’. [...] A ocupação
técnica tende a dissipar no sujeito obediente qualquer preocupação ética. A obediência faz daquele que se sub-
mete às ordens da autoridade um simples instrumento” (p. 47).
148
“Justa” do latim “justus”, mesma fonte etimológica para “justiça” e “justificar”, cf. CUNHA, Antônio Geraldo da.
Modo, cit., p. 459.
550 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

(rectius, submissão) de todos.149 Tudo para que o poder político não perca esse agente ins-
trumentalizado a cada vez que tiver autoconsciência de seus atos. Ele precisa de uma justi-
ficativa precisa conseguir conviver “neutralizando” sua própria consciência.150 Todavia, o
que não se expõe é que o trauma da violência que se abate sobre seu praticante (“trauma por
perpetração”) não é curado, mas calado “dentro” dele, em um mundo psíquico que fica
cada vez mais violentado/violento e cheio de vozes.151
Essas justificativas (“violência-resposta” e “violência-obediência” / “violência-
-dominação” / “violência-opressão”) mistificam a crueldade da violência para todos e man-
têm sua ideologia sob a aura de “ordem”, “paz” ou “equilíbrio”, servindo de mecanismos de
“transferência de culpa” a outrem pela violência praticada.152 Pela primeira justificativa
(“violência-resposta”), transfere-se a culpa à vítima ou ao inimigo, e, na segunda (“violência-
-obediência” ou “violência-dominação”), transfere-a ao superior hierárquico ou à estrutura
de poder (despersonalizada) que exige a violência para se autoafirmar e autolegitimar.

43.2.1 Uso das justificativas por todos agentes das violências criminal e institucional e
sua consequência no aumento da violência social: surgem o “medo derivado” e a
“violência intrapsíquica”
Explicadas as justificativas da violência como resposta e como dominação, não se
pode deixar de aplicá-las de modo muito aderente tanto ao agente que pratica o crime quan-
to ao modelo criminal persecutório-punitivo e seus sistemas penal e processual penal. Am-
bos precisam justificar-se: “criminoso” e “persecutor-acusador-julgador-executor”. Eles,
assim como qualquer um que pratica formas de desrespeito, lesões e danos às necessidades
básicas do ser humano, precisam se justificar para (i) viver com suas consciências aneste-
siadas e, colateralmente, (ii) ganhar prestígio em seu núcleo social.
Os “criminosos” justificam sua violência como resposta a outras violências ante-
riores e contra eles praticadas; em regra, mas não apenas, decorrentes de violências estru-
turais. Assim, revolta-se contra a “violência da opressão” e o medo a que está permanen-
temente submetido pelas regras que o escravizaram ou, atualmente (na “modernidade

149
Durante toda a Parte I deste trabalho destacamos, em cada fase histórica e mudança de eixo do modelo criminal
e seus sistemas, os vários sentidos emprestados aos termos “ordem” e “paz”: “paz augusta”, “paz de Deus”, “paz
real”, “paz soberana”, “paz social”, entre outras. Vários sentidos para um termo, mas com o mesmo propósito:
submeter pela violência a ponto de retirar a possibilidade de “voz” do submetido e impedir o diálogo horizontal
com o poder instituído.
150
Talvez o mais perfeito exemplo histórico da percepção de que a violência praticada afeta a consciência de quem a
comete e de que a “estrutura de poder” atua para aliviar a consciência do agente da violência tenhamos trazido na
Parte I deste trabalho quando citamos o decreto do Papa Alexandre IV. Nele esse Papa aumentou o número de
bispos-inquisidores (antes era apenas um) a fim de que, ao final das sessões de tortura, “absolvessem-se” recipro-
camente! Cf. item 24.3.2, em especial nota 134 do Capítulo VI, supra.
151
Sobre a necessidade da cura desse “trauma por perpetração”, v. MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-
-violência, cit., p. 42-45; e YODER, Carolyn. A cura do trauma, cit., Capítulos 4 e 5, nos quais a autora demonstra
os efeitos de traumas não curados e como se deve romper tais ciclos de violência interna como forma de diminuir
a violência externa.
152
Nesse sentido, v. María José FALCÓN Y TELLA e Fernando FALCÓN Y TELLA (Fundamentos e finalidade da
sanção: existe um direito de castigar? Tradução por Cláudia de Miranda Avena. São Paulo: RT, 2008. p. 68-70),
ao utilizarem o “experimento de Stanley Milgram” para demonstrar como o ser humano, por justificativas psico-
lógicas depositadas na “obediência” em hierarquias ou ordens superiores tem sua atuação como uma virtude,
mesmo que estas ordens determinem a inflição de violências e crueldades para além do aceito pela pessoa como
razoável.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 551
radical” e globalizada), o mantém no campo dos excluídos.153 Também justificam suas
ações violentas (crime) com base em formas diversas de violência sofridas anteriormente
em decorrência de situações de injustiças estruturais que lhes desrespeitam ou mesmo
lhes negam “necessidades básicas” (alimentação, educação, moradia, oportunidades so-
ciais, etc.)154 e outras que regulam a convivência sadia entre eles (os direitos fundamentais
garantidos constitucionalmente, p. ex., de liberdade, segurança, integridade física, mental
e patrimonial etc.).155
Também há estruturas de dominação e submissão criminosas e que impõem a seus
integrantes ou a quem quiser sua proteção e ajuda o “dever” de praticar violência criminal
para ser respeitado e pertencer àquele grupo. O violador da lei (criminoso) justifica seu ato
“contrário” a ela e ao sistema que o envolve com base em toda violência por ele sentida e
nele acumulada, assim como sobre seus entes e próximos comunitários. O criminoso tam-
bém sofre crimes anteriores e a eles responde com outra violência de igual natureza; um
novo crime. Enfim, como pessoa que é, precisa viver em paz com sua consciência e ver em
seu ato uma ação baseada em “causa justa” contra todas as formas citadas de violência que
sofreu. Utilizando a “violência-resposta” seja a outros crimes seja a tantas formas de violên-
cia estrutural, ele transfere sua culpa a outrem e “neutraliza-se” não se achando agente da
violência, mas um “forte” em seu meio social.
De outro lado, o agente interno do modelo criminal persecutório-punitivo estatal pra-
tica violência (institucional) e, para não se saber e ver-se violento, também precisa justificar-
-se. Sua violência é mistificada pela “violência-resposta” e pela “violência-obediência”. Pela
primeira justificativa, o agente da persecução-punição-execução usa a violência do crimi-
noso para absolver-se. Como quem persigo/julgo quebrou as regras e a “retribuição” (rectius,
vingança social) para ele é a pena criminal, mesmo sendo esta uma violência institucional
ela se justifica pela violência criminal anterior.
Todavia, não raro, o agente interno do aparato criminal também utiliza a estrutura
de dominação na qual se encerra (o instrumental da violência-obediência) para a transferên-
cia da culpa que sente por seu ato. Nesse caso, transfere sua culpa à lei que manda perseguir-
-acusar-punir-executar e à hierarquia da agência persecutório-judicial-penitenciária à qual
pertença e cujos pares esperam dele o ato violento do qual o “absolverão”.156 Ambas as

153
GALTUNG, Johan. Transcender e transformar: uma introdução ao trabalho de conflitos. Tradução por Antônio
Carlos da Silva Rosa. São Paulo: Palas Athena, 2006. p. 33-35.
154
Johan GALTUNG (Transcender e transformar, cit., p. 11-12) explica que as “necessidades básicas” são as metas
ou interesses e objetivos mais importantes ao ser humano e sobre os quais não se transige em um conflito. Ponto
a ser adiante explicitado para a compreensão da estrutura e natureza do conflito.
155
Sobre a importância das “necessidades básicas” para a compreensão dos conflitos, violências e traumas, assim
como do sistema processual não violento, v. item 44.3, infra.
156
John R. FULLER (Criminal justice: a peacemaking perspective. Boston: Allyn and Bacon, 1998) traz ao contex-
to ponto que em muito explica essas justificativas das agências persecutório-judicial-penitenciárias. Acrescenta-
mos que, entre nós, recebem o nome de “emergenciais”, no sentido de que estamos em estágio agudo de violência
criminal, e, portanto, medidas extremas de violência se justificam. Ocorre que, passado o momento (que nunca
passa), as medidas de violência ditas “emergenciais” permanecem e, em porvir sempre ocorrente, só pioram em
sua intensidade e crueldade (violência em ato). O criminólogo estadunidense traz à colação a ideia de “guerra ao
crime” (“war on crime”). A utilização da metáfora de guerra se dá “precisamente porque ela enxerga o problema
criminal como tão sério a ponto de requerer políticas drásticas e medidas extremas” e “implica que os sacrifícios
serão temporários” e “quando a guerra for vencida, as coisas presumidamente podem voltar ao normal” (p. 23,
traduzimos). Essa “guerra ao crime” se espalha por todo o sistema de justiça criminal, afetando, nomeadamente,
as polícias, os tribunais e o sistema punitivo (p. 23-25), sem produzir a efetividade desejada (p. 26-27). In verbis:
“A tese central desse livro é que a guerra ao crime está fadada ao fracasso não apenas porque é inefetiva, mas
porque é moralmente falida. Para usar uma analogia da Medicina, o crime doméstico não pode ser removido por
552 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

justificativas transubstanciam a violência (institucional) em dever cumprido, “justiça” feita


no caso concreto, pacificação social ou “solução” do caso penal.
A ideologia da violência é ampla e democrática o suficiente para fornecer discurso
para ambos: o criminoso e o agente interno do modelo criminal. Pela perspectiva da violên-
cia, ambos são iguais em seus atos e seus desejos (interesses, metas): praticam violência
neutralizando-se da crueldade de seus atos pelas justificativas postas à disposição pela ideo­
logia da violência, que torna ato lesivo em “causa” ou “ação” justas.
Todavia, a ideologia da violência não apenas mistifica e transubstancia violência em
“justiça”. O “poder exculpante” das suas justificativas também produz como duas consequên­
cias que se combinam: a perda de limites da prática violenta e, ainda, a valorização do vio-
lento meio social em que vive.157 Por isso tanto a violência conflitual quanto a institucional,
se não forem paradas, tendem sempre à guerra urbana e fratricida e, depois, à guerra entre
povos. Entre nós, aquela realidade já existe conforme o saber empírico do modelo criminal
brasileiro nesta década que revelou vivermos em claro (mas não declarado) estado de guer-
ra civil crescente e sem fim.158 A autopotência lógico-sistêmica da violência, que denomina-
mos ao examinar o aparato criminal brasileiro de “espiral ascendente da violência social”159,
tem origem e perpetua com reforços maiores e mais incisivos as bases arcaicas da relação
“violência ↔ poder”.160
A ideologia da violência confere prestígio comunitário a ambos os lados para alçarem-
-se em “sua” própria escala social. Seu poder mistificante faz com que maior ou menor grau
de violência empreste, proporcionalmente, maior ou menor grau de prestígio e poder aos
seus perpetradores perante suas comunidades. Quanto mais violência criminal um indiví-
duo consegue controlar e produzir e, portanto, praticar (p. ex., líderes de facções crimino-
sas), mais respeito ele obterá de sua comunidade. Quanto mais violência institucional um
agente interno tiver à sua disposição e maiores forem sua incisividade (vertical e horizontal)
e sua definitividade (ser a última palavra), em maior nível hierárquico ele estará na estrutu-
ra de dominação e dentre os integrantes do poder instituído. A ideologia da violência honra
a violência e, portanto, será honrado quem detiver maior poder/capacidade de praticá-la,
independentemente da “causa justa” escolhida a justificar-se. Essa é a dinâmica e o valor
social na ideologia da violência.

uma cirurgia radical, pois muitas das boas células então interligadas com as más. O que é necessário para lidar
com o câncer do crime é, ao mesmo tempo, uma cura que reforma as células más e, mais importante, uma vacina
que previne as células de adoecerem em primeiro lugar. Para a nossa sociedade e o sistema de justiça criminal
isso pode ser traduzido como a visualização tanto de um ambiente de justiça social onde a todos são dados a
oportunidade de ter sucesso por meios legítimos, como de uma ênfase na reforma e reabilitação, onde aqueles
que cometeram crimes são permitidos a se reconciliar com aqueles que eles foram feridos e com a sociedade
como um todo” (p. 37, traduzimos). Sobre a justificativa de uma estrutura extremamente punitiva com base na
noção de “emergência” que, de pontual fica de modo permanente, v., para o processo penal, CHOUKR, Fauzi
Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002; e para o sistema penal em sentido
amplo, de MOCCIA, Sergio, La perene emergenza: tendenze autoritarie nel sistema penale. 2. ed. Napoli: Edizioni
Schientifiche Italiane, 2000.
157
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., p. 43-44. Na linha desse autor, v., também, CARVALHO,
Thiago Fabres de; BOLDT, Raphael. A criminologia da não-violência, cit., p. 38-40.
158
Sobre esse ponto dos níveis de verdadeira guerra civil e fratricida nas ruas brasileiras, v. item 31.1, supra, em que
os mortos de ambos os lados (criminosos e policiais) são contados aos milhares anualmente.
159
Cf. item 40, supra.
160
Sobre essas bases arcaicas, cf. item 43.1, supra.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 553
A ideologia da violência e suas justificativas alimentam, desculpam e mantêm pu-
jante, no Brasil, o modelo criminal persecutório-punitivo como único, ainda que ineficiente,
disfuncional e extremamente violento.161 E isso é proveitoso tanto para as facções crimino-
sas quanto para os integrantes do poder instituído, pois, pela lógica exposta, todos eles ga-
nham poder quanto mais violência social existir. A importância política do discurso em
torno da violência, sempre para a ampliação de sua espiral ascendente, pode ser percebida
pelo espaço que ocupam nos noticiários diários, em todas as formas de mídia social e tradi-
cional e, principalmente, nos períodos eleitorais. Os que prometem ser os mais violentos no
combate à violência estão aumentando seus assentos no Congresso Nacional e nos postos do
Executivo brasileiro desde o final do século XX.162
O modelo criminal disfuncional, por sua vez, amplia e torna perceptíveis outros es-
paços alcançados pela violência da modernidade radical em que nos encontramos. O “fear
of crime” (“medo do crime”) do século passado é ampliado na proporção do aumento das
taxas de criminalidade e da “ineficiência” em dar vazão a essa demanda.163 Em época de
alta tecnologia, esse medo e a insegurança tornam-se “violência viral” ou “violência intrap-
síquica”; as mais recentes topologias da violência.164
O “medo do crime”, expressão que simboliza o medo de ser vítima de crime, foi
criada nos EUA da década de 60 do século passado e, nos idos da década de 90, ingressou
na Europa.165 Ele expande-se e torna-se perceptível a todos já na virada do século XX para
o XXI e inaugura o espaço que ZYGMUNT BAUMAN denominou “medo de ‘segundo
grau’” ou “medo derivado”, na concepção de “modernidade líquida” desse sociólogo. É uma
sensação de insegurança e vulnerabilidade, que ele definia como “uma estrutura mental
estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser ‘suscetível’ ao perigo”,
perigo que, no plano mental em que o medo habita, ele identificou de três tipos possíveis:

161
Toda a Parte II, supra, deste trabalho traz as informações para comprovar a alta e crescente violência criminal
(cf. Capítulo VII) e a correlata violência institucional crescente, disfuncional e retroalimentadora daquela violên-
cia (cf. Capítulo VIII).
162
Nos últimos anos, a chamada “Bancada da Bala” vem aumentando consideravelmente a sua representação no Con-
gresso Nacional, atualmente presidindo a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, com a Deputada Bia
Kicis (PSL-DF) (CARVALHO, Ana Luiz de. Bancada da bala deverá ser três vezes maior no Congresso a partir de
2019. Congresso em Foco, 16 nov. 2018. Disponívelm em: https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reporta-
gem/bancada-da-bala-quase-triplica-em-2019-aponta-levantamento/. Acesso em: 12 dez. 2021). O grupo parla-
mentar, alinhado com política de segurança pública a despeito dos apelos de direitos humanos, “faz-se represen-
tante daquela parcela da sociedade que manifesta franca inflexibilidade diante dos criminosos e outorga grande
prestígio às Forças Armadas e instituições análogas. Em face disso, os parlamentares da bancada da bala pro-
tocolam projetos que visam, por exemplo, a proteção dos agentes policiais, a facilitação do porte de armas para
os civis e a redução da maioridade penal” (QUADROS, Marcos Paulo dos Reis; MADEIRA, Rafael Machado.
Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representa-
ção do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, Campinas, v. 24, n. 3, p. 486-522, set./dez. 2018. p. 505).
163
Cf. nossos comentários no item 42.1, supra, sobre tempo curto e tempo longo, espaço limitado e espaço ilimitado
na ansiedade moderna de busca de respostas rápidas e o modelo criminal tradicional.
164
Byung-Chul HAN (Topologia da violência, cit., p. 21-23) é quem dá o nome de “violência viral” ou que ele deno-
mina “violência da negatividade”. Suas ideias principais, com as quais concordamos, são desenvolvidas a seguir
no texto, com as devidas referências.
165
Sobre o nascimento e o uso político (rectius, criminógeno) do denominado “fear of crime”, nos EUA das décadas
de 60 e 70 do século passado, assim como sua disseminação dali para a Itália dos anos 1990, e a construção de que
a “criminalidade” é algo a ser temido e, portanto, combatido com toda a força do Estado a fim de que o cidadão
“volte” a ter segurança e tranquilidade, v. CORNELLI, Roberto. Miedo, criminalidad y orden, cit., p. 21-30, para
os EUA, e p. 30-54, para a Europa. Esse autor demonstra, de forma clara e com precisão de fatos históricos, a
importância do uso de dados e informes para “saber contra o que se combate” e a manipulação de alguns desses
estudos pelas agências políticas em época eleitoral estadunidense.
554 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

(i) os que ameaçam o corpo e as propriedades; (ii) os que ameaçam a durabilidade da ordem
social e a confiança nela; e, por último, (iii) os que ameaçam o lugar da pessoa no mundo.166
No mundo de tecnologia e globalização, com veloz e ampla capilaridade do medo, a
comunicação de massa e instantânea faz com que a violência não ocorra mais no plano da
confrontação (física, pessoal, direta e real), mas no da contaminação e da infeção oculta;
não mais em campo aberto, mas no mundo intrapsíquico.167 A “violência viral” é, como toda
violência, portadora de negatividades individuais e comunitárias, e sua peculiaridade é ha-
bitar o mundo psíquico. As técnicas de dominação tornam-se menos físico-estruturais e
passam a ser mais virtual-comunicacionais. “A violência massiva da ‘decapitação’, que
predominava na sociedade da soberania, cedeu lugar à violência de uma ‘deformação’
gradativa e subcutânea”168, típica da modernidade radicalizada pela tecnologia.169
Essa nova forma de violência tem a característica de fundir, em uma só pessoa,
agressor e agredido. Na violência intrapsíquica, as estruturas de dominação são mais líqui-
das, pois o agente da violência está mais próximo: ele é a sua própria vítima. A violência
assume uma força inaudita, pois advém de dados “autoevidentes e naturais” – pouco impor-
tando suas baixas fiabilidade e verificabilidade de “verdade” −, em uma percepção e com-
portamento que se tornaram individuais; com isso, a violência nasce e se desenvolve inter-
nalizada.170 A violência tem a força da crença de seu “infrator-vítima” e, para não se
reconhecer usando-a, não aceita qualquer outra informação ou dado novo que lhe mostre o
erro – ou sequer o ponha em dúvida − da autoviolência anterior. A “vítima-infrator” passa
a construir uma violência da qual não aceita sair, pois isso a deslegitimaria e, saída de sua
autorreferência, teria autoconsciência de ser, também, ela o “infrator-vítima”. A violência
não ocorre mais no externo, mas no intrapsíquico, e, com isso, faz a vítima “desejar o agres-
sor”, o qual, por sua vez, dela precisa para manter-se no (auto)controle. Estabelece-se a du-
alidade em uma única pessoa; ora na perspectiva “vítima-infrator” ora no sentido “infrator-
-vítima”. Instala-se um quadro de insegurança constante, pois a autoinflição de violência
também torna-se permanente.

166
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução por Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 8-10,
com citação da p. 9. Carolyn YODER (A cura do trauma, cit., p. 16-17), ao tratar de “trauma social ou coletivo”,
mas neste ponto em tudo aplicável aos pessoais, expõe: “Direta ou indiretamente, a experiência do trauma de um
dado grupo pode deflagrar a disseminação de medo, horror, impotência ou raiva. Tais eventos não são experiên­
cias particulares apenas, pois provocam impactos nacionais e regionais, resultando traumas da sociedade”.
167
Sobre o medo como forma de “violência interna”, Ruth M. Chittó GAUER (Alguns aspectos da fenomenologia da
violência, cit., p. 13-14 e 22-23), historiadora, professora e pesquisadora das ciências criminais, bem explicita o
“medo” como uma das formas da “violência interna”, para ela um sentimento que tanto une quanto separa as
pessoas. Tratamos do medo, em sua versão mais extremada do terror, ao identificarmos seu uso (de extremada
violência) durante a Inquisição (cf. item 24.2, supra) e, também, nos modelos autoritários de poder no início do
século passado e que resultaram em duas guerras de nível mundial. Exemplos da violência de controle pelo medo
no nazismo e do fascismo, assim como em todos os movimentos políticos também de esquerda, cf. itens 26.2
e seu subitem, supra. Trabalhando o medo e o nazismo, há referência já clássica na obra de Erich FROMM (El
miedo a la libertad. Tradução por Gino Germani. Barcelona: Paidós Esenciales, 2018), cujo original é de 1947, e
pelo qual o psicanalista, examinando o regime nazista, explica que o medo da liberdade, entendido como fraque-
za, permite a essa mesma fraqueza, que anseia pelo poder, sobressair e conquistar o espaço da opressão (idem,
Capítulo 6 e seu apêndice, sugestivamente denominado “O caráter e o processo social”).
168
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 20-25, com citação da p. 24.
169
Sobre esse fator determinante no estudo do modelo criminal persecutório-punitivo e, ainda, como meio no qual
se pretende inserir o modelo criminal não violento, v. item 42, e seus subitens, supra.
170
HAN, Byung-Chul. Topologia da violência, cit., p. 20-25.
43.  Ideologia da violência e Modernidade 555
43.3  Velhas respostas para novos desafios: a lógica da violência, inserida no modelo criminal
persecutório-punitivo, o fará ampliar os novos espaços da violência; a necessidade de um
novo modelo não violento
Nos novos espaços da violência da “modernidade radical” antes indicados (“medo
derivado” e “violência intrapsíquica”) são propostos novos desafios: os riscos são tão inau-
ditos quanto são os avanços tecnológicos e científicos que os portam e criam. Novos direi-
tos, tais como a “autodeterminação informativa” e a “confidencialidade e integridade dos
sistemas informáticos pessoais”171, passam a correr perigo em uma sociedade de avanços e
velocidade tecnológicos tão altos quanto os riscos que ela (tecnologia) traz; tudo a indicar
novos campos de criminalizações primária e secundária.
Mas esses novos desafios estão sendo enfrentados – e potencialmente serão ainda
mais no futuro breve −, novamente, pela forma tradicional. Sem outro modelo criminal
diverso do persecutório-punitivo inspirado pela ideologia da violência, é dele que se ser-
vem para se produzir (as mesmas) “respostas”. Criminalizar-se-ão cada vez mais condu-
tas, e a esse novo plantel de tipos penais aplicar-se-á a “violência-resposta” habitual:
violência institucional.172
A criminalização primária e a secundária serão criadas, estruturadas e perpetuadas
pelas justificações da ideologia da violência (“violência-resposta” e “violência-dominação”).
Na situação inaudita dos novos espaços do “medo derivado” e da “violência intrapsíquica”
promovida não só, mas principalmente, pelas redes sociais – um bem e um mal vividos na
globalização tecnológica −, já vemos estruturas se criando para dirigismos político, religio-
so, econômico e social; pela história da humanidade, o dirigismo criminal não tardará a ser
implementado em reforço aos dirigismos anteriores.173

171
A autodeterminação informativa é prevista na Lei n. 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), em seu
art. 2º: “Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: [...] II – a autodeterminação in-
formativa”. Na mesma linha segue o “Anteprojeto de Lei de Proteção de Dados para segurança pública e persecução
penal” (Disponível em: https://static.poder360.com.br/2020/11/DADOS-Anteprojeto-comissao-protecao-dados-se-
guranca-persecucao-FINAL.pdf. Acesso em: 12 dez. 2021), em que tanto a autodeterminação informativa, como a
confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos pessoais são previstas: “Art. 2º A disciplina da proteção
de dados pessoais em atividades de segurança pública e de persecução penal tem como fundamentos: [...] II – a
autodeterminação informativa; [...] VI – confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos pessoais”.
172
Sobre os novos desafios e descompassos entre os riscos da sociedade moderna e a política criminal da segurança
cidadã, v. DIÉZ RIPOLLÉS, José Luis. Da sociedade do risco à segurança cidadã: um debate desfocado. Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 17, n. 4, p. 547-599, out./dez. 2007, especificamente item 2. Do
mesmo penalista, v., ainda, La política criminal en la encrucijada, cit., notadamente os Capítulos IV, VI e VII.
173
A criminologia atuarial capta essa tendência de uso político da violência dirigida contra um número indetermina-
do de pessoas, apenas porque se quer criminalizar toda uma atividade ou grupo de pessoas (p. ex., imigrantes ou
quem pratique determinada atividade comercial ou empresarial). Sobre a tendência atuarial na política criminal,
v. DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro:
Revan, 2013. Embora esse criminólogo aponte, muito corretamente, que as estatísticas já frequentavam os saberes
criminais desde os séculos XVII e XVIII (item 1.1), a vinculação de “prognósticos atuariais” a um sujeito inte-
grante de um grupo identificado como “de risco” tem sido um ambiente apenas alcançado e operado a partir do
final do século XX, com propalada eficiência (sic!) punitiva (item 2.4.3). Sobre a política criminal e a criminologia
atuariais, concordamos com o autor ao afirmar que essa metodologia nada mais é que a tecnologização perniciosa
da modernidade, com margens e bases matemáticas para conferir “cientificidade” – aos moldes escolásticos
(cf. item 20, supra) – ao tradicional afã de controle por seletividade preordenada de classes, pessoas ou divergentes
sociopolíticos ou resistentes econômicos. Tal dirigismo político contra classes e não em resposta a violências an-
teriores não representa nenhuma novidade histórica. Por razões político-econômicas já o identificamos na Roma
Imperial (cf. itens 8.2.2, supra), na conquista normanda da Inglaterra (cf. item 21 e seus subitens, supra), no perí-
odo das Monarquias dos séculos XIV a XVIII (cf. item 25.2.1, supra) e na Europa anti-iluminista do início do sé-
culo XIX até meados do século XX (cf. item 26 e seus subitens, supra). Por motivos político-religiosos o identifi-
camos na Roma católica do Dominato (cf. item 9.2, supra) e, notadamente, na Idades Média e Moderna, quando
tratamos das Inquisições europeias e seus desdobramentos nas colônias (cf. item 24 e seus subitens, supra).
556 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Nesse espaço dinâmico e tecnológico, os tradicionais processos de análise de opor-


tunidade de criminalização primária e substanciação relevante para iniciar criminaliza-
ções secundárias (persecução criminal) começam a ser orientados por “escolhas” (rectius,
determinações) estatísticas de fatores de risco,174 uma nova tendência a incrementar a vio-
lência institucional por um viés atuarial.175 Os algoritmos e os “raw data” serão usados
para estabelecer critérios de tipificação, pois já predizem o que oferecer e preceituam o que
cada grupo de pessoas ou indivíduos pensam, gostam e estão dispostos a aceitar. Logo,
podem predizer quais deles pertencem ou não a grupos de “não desejados” ou insurgentes,
ou “inimigos”.
A previsão do resultado dessa nova apropriação de lugar pelo modelo criminal, on-
tologicamente de espaço limitado e tempo longo, tem pouca margem para erro: mais crimi-
nalização primária e mais demanda ao sistema processual penal já colapsado.176 Apostar em
sentido contrário, é negar todo o exposto na Parte I em que examinamos mais de dois mil
anos de história processual penal e do modelo criminal.
Não se pode olvidar que essa nova criminalidade, por meio e decorrente dos riscos
tecnológicos, exige sofisticado instrumental persecutório, para o qual, ao menos no Brasil
atual, não há estrutura e pessoal suficientes para apurar com a qualidade necessária. Dessa
foram, altamente provável haver ampliação da cifra oculta dessa nova criminalidade no
decurso do trâmite persecutório-punitivo, o que gera maior insegurança e, portanto, uma
nova escalada das violências intrapsíquicas do “medo de segundo grau” e do “medo viral”.
Apostar contra essa lógica é negar todos os números exposto na Parte II deste trabalho e,
principalmente, o que vivemos nas ruas e residências brasileiras nos dias atuais.
O quadro estrutural-funcional das agências e do modelo brasileiro e a sua atual dis-
funcionalidade e ineficiência que estimulam tanto a violência criminal quanto a violência
institucional177, de um lado, e a ideologia da violência com sua lógica e justificativas, do
outro, não parecem ter aptidão para reverter esse cenário de criminalidade e medo em ex-
pansão. As violências criminal e intrassubjetiva tendem a crescer inevitável e infelizmente.
Subir-se-á mais um giro na espiral ascendente da violência.178
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que, vista pela perspectiva humana e não pela
da busca e consolidação do poder (social, político, econômico e cultural), a “lógica” que
move e dá sentido à ideologia da violência é, certamente, uma “não lógica” ou uma “lógica
ilógica” para quem quiser arrefecer a espiral da violência no âmbito criminal.179

174
Nesse sentido, v. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. O problema do direito penal no dealbar do Terceiro Milênio. In:
COSTA ANDRADE, Manuel da et al. (org.). Direito penal: fundamentos dogmáticos e político-criminais. Home-
nagem ao Prof. Peter Hünerfeld. Coimbra: Coimbra Ed., 2003. p. 253-271, notadamente item II.
175
Sobre esse ponto, v. DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial, cit., p. 20-23.
176
CALLEGARI, André Luís; ANDRADE, Roberta Lofrano. Sociedade do risco e direito penal. In: CALLEGARI,
André Luís (org.). Direito penal e globalização: sociedade do risco, imigração irregular e justiça restaurativa.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 21.
177
Cf. Capítulo VIII, supra.
178
Sobre o estado da arte da violência social (criminal e institucional somadas), cf. item 40, supra.
179
Sobre a “ideologia da violência”, nessa retorção mistificadora de uma “lógica sem lógica”, ao menos quanto ao
respeito ao ser humano, cf. MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., p. 44, quando o autor asse-
vera: “As justificativas da violência não são nada mais do que ‘derivações’ (no sentido que Vilfredo Pareto
atribuiu a este termo), isto é, construções lógicas superficiais que dissimulam os sentimentos, os desejos e as
paixões que constituem verdadeiros impulsos para a ação dos indivíduos e dos grupos sociais; o objetivo é dar
uma aparência lógica a ações não lógicas. Para justificar sua violência, o homem fabrica e produz artifícios.
O homem violento é um falsificador”.
44.  Ideologia da “não violência” 557
A contradictio in re ipsa da expressão “lógica ilógica” evidencia o paradoxo que a
ideologia da violência esconde sob suas justificativas: a lógica da ideologia da violência não
quer acabar com a violência ou combatê-la em qualquer de suas formas. Ela quer apenas
esconder sua natureza e efeitos deletérios ao indivíduo e à sociedade que alce novos está-
gios e espaços sociais e, com isso, aumente a violência em todas as suas formas. Nesse
contexto, as justificativas apenas a escondem nas consciências dos violentos, transubstan-
ciando crueldade e abusos em “causa justa”. A espiral não será revertida, pois nada é feito
para deter a violência. Ela apenas segue, impoluta, mudando de forma e justificativa para
(sempre) ser utilizada.
Propor algo diferente do modelo violento (persecutório-punitivo) − e não algo dife-
rente dentro dele, por exemplo, uma diversidade processual − exige uma mudança de para-
digma que está antes, acima e fora de seu âmbito. Algo que nasce a partir de fonte diversa,
a começar por uma ideologia diferente da “violência” que o criou e o alimenta. Passa, em
um segundo plano, por uma política criminal que trabalhe, conforme esse diverso ideal da
não violência, no plano das políticas públicas e do modelo criminal como a única forma de
se conceber um novo sistema processual.
Todavia, exatamente pelo pouco trato das ciências criminais conjuntas com essa
ideologia não violenta ora proposta, surge o ônus argumentativo de explicitá-la, mesmo que
de forma breve e voltada para o escopo deste trabalho processual. É o que se faz no próximo
item, para terminar o capítulo com a sua inserção como novo axioma em um também novo
espaço de política criminal.

44. Ideologia da “não violência”: seu princípio, seus desafios, sua racionalidade, seus
elementos essenciais e seu papel no propósito deste estudo
A ideologia da “não violência” é um conjunto de posturas e ações opostas à
“violência”.180 A ideologia da não violência não é passividade, pois empreende em várias
direções para diminuir a violência por meio de métodos e formas que sejam alternativas aos
usados “pela” e/ou “de modo” violento.181 Portanto, age ativamente tanto no sentido de reco-
nhecer a existência da violência no mundo, inclusive em grandes quantidades e variedade
de espaços e formas, como para reduzi-la a partir de atos não violentos. É um complexo de

180
Para uma reconstrução histórica da ideologia da não violência, quando ainda era um movimento político pacifis-
ta e de feições abolicionistas cristãs no início do século XIX (1828) nos Estados Unidos da América, com a Ame-
rican Peace Society, v. LOSURDO, Domenico. A não violência: uma história fora do mito. Rio de Janeiro: Revan,
2012. Capítulo 1.
181
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., p. 79. Esse mesmo autor informa que “[O] termo não
violência tem sua origem na palavra sânscrita ‘ahimsa’, utilizada nos textos da literatura budista e hinduísta e
de que é sua tradução literal. É formada pelo prefixo negativo ‘a’ e por ‘himsa’, significa a intenção de causar
dano, de usar de violência com um ser vivo. ‘Ahimsa’ é, portanto, a ausência de toda e qualquer intenção de
violência, ou seja, é o respeito em pensamento, palavra e ação pela vida de todo ser vivo. Se nos restringirmos à
etimologia, uma tradução possível de ‘a-himsa’ seria ‘i-nocência’. As etimologias das duas palavras são, de fato,
análogas; ‘i-nocente’ vem do latim ‘in-nocens’, e o verbo ‘nocere’ (fazer o mal, prejudicar), por sua vez, provém
de ‘nex, necis’ que significa morte violenta, homicídio. Assim, inocência é, no sentido real do termo, a virtude
daquele que não é culpado de nenhuma violência homicida para com outrem. No entanto, atualmente, a palavra
inocência evoca sobretudo a pureza suspeita daquele que não faz o mal, mais por ignorância e incapacidade do
que por virtude. Não caberia confundir não violência com essa forma de inocência, porém, essa distorção do
sentido da palavra não deixa de ser significativa: como se o fato de não fazer o mal revelasse uma espécie de
impotência... A não violência reabilita a inocência como virtude do homem forte e como sabedoria do homem
justo” (p. 52). Do mesmo autor, v., também, Não violência na educação. Tradução por Tônia Van Acker. São
Paulo: Palas Athena, 2006. p. 40-41.
558 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

atitudes positivas social e individualmente que, por escolha, realiza-se apenas de modo não
violento.182 Logo, há de haver de partida uma autoconsciência que permita esta escolha e
atuar diante de um cenário que se sabe violento e se deseja transformar.183 Seu propósito é a
redução da violência por meio de ações positivas (atuar, agir; para minorar os efeitos nega-
tivos do ato) e não violentas em si. É um desafio contracultural, diante do que já se demons-
trou quanto à cultura atual e de raízes arcaicas da violência.184
A ideologia da não violência observa e entende violência e conflito como oportuni-
dades para melhorar o futuro, o qual, pelo trauma causado em seus conflitantes, já se pre-
nunciava doloroso e localizado onde novas violências de igual ou diversa natureza perpetua­
riam a espiral ascendente a partir das justificativas de sua ideologia. Transformar os efeitos
do trauma por escolhas positivas e construtivas a partir do consenso diretamente entre os
conflitantes e, a partir daí, parar o processo retroalimentante da violência são os principais
propósitos da ideologia da não violência.185 Transformar, no sentido empreendido neste tra-
balho, associa-se à essa ideologia na medida em que se vai além (“trans”186) da violência
existente ou de seus efeitos para, acrescendo-lhes ação não beligerante ou de qualquer modo
lesiva, faz com que passe à positividade em ação para o bem da vítima, dos demais atingi-
dos e, também, do próprio perpetrador. Isto porque, se a violência projeta e marca o seu
perpetrador, também a não violência introjeta-se no subjetivo do agente que se autocons-
cientiza, responsabiliza-se pela violência praticada e passa a atuar para minorar ou eliminar
os efeitos negativos antes por ele produzidos.
A maior dificuldade dessa ideologia não é convencer alguém de que haver menos
violência social é melhor do que haver violência (ou mais violência). Esse ponto parece in-
questionável e perfeitamente desejável e aceitável por todos, exceção feita às pessoas que
dela precisam para manter seus prestígio, poder social e fonte de receita.187 A dificuldade
está em compreender, aceitar e agir fora dos padrões culturais e ideológicos da violência,

182
Guilherme Assis de ALMEIDA (Direitos humanos e não violência, cit., p. 5) afirma, nesse sentido, que a “não
violência não é uma resistência passiva, mas uma outra forma de agir. A ação não violenta parte de um conheci-
mento da ação violenta e cria uma alternativa a ela superando-a. Sabedora de sua existência e ciente de seus
malefícios, exercita uma forma de ação negadora da violência. A não violência é, também, uma resposta eficaz
contra a violência, tendo em vista a preservação da integridade psicofísica do ser humano”.
183
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 116-117), reconhecendo que a ordem social é uma das
formas de viver sem violência, não nega que fatos violentos possam ocorrer no meio social, sejam violências
criminais, sejam atuações institucionais imediatas e violentas como uma ação policial que leve à morte de al-
guém. Esses fatos irão ocorrer. O que muda é a forma como são vistos e tratados (aproximação e abordagem),
desde sua perspectiva cultural (estimulando-os ou não) até a juspolítica. Conclui o autor: “A existência de casos-
-limite em que se impõe a necessidade de recorrer à violência não poderia servir de pretexto para reabilitá-la
como forma habitual de assegurar a ordem pública e de restabelecer a paz social. Para que a exceção não se
torne a regra, mas, ao contrário, venha confirmá-la, é preciso ser ainda mais exigente no respeito às regras. E a
regra deve ser a resolução não violenta de conflitos”.
184
Sobre a cultura da violência como regra imemorial em nossa sociedade, v. item 43.1, supra.
185
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., p. 34-35 e 53 (“O objetivo da não-violência é a busca
de um equilíbrio através do próprio conflito”); e LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos. Tradução
por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. Capítulo 1, ao explicitar o que entende por “transformar
conflitos”.
186
Antônio Geraldo CUNHA [Trans- (tra-, tras-, tres-). Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 781] informa o seguinte sentido etimológico do prefixo: “pref., do
lat. ‘trans’-, deriv. da prep. ‘trans’ ‘através de, para além de’, que se documenta em vocs. Eruditos e/ou semi-
-eruditos formados no próprio latim, como ‘transcenděre → transcender’, ‘transcriběre > transcrever’ etc., e em
vários outros formados nas línguas modernas, como transatlântico, transepto etc.”
187
Cf., sobre justificativas da violência, item 43.2, supra, e, sobre a violência como meio de posição e ascensão so-
ciais em seus grupos, cf. item 43.2.1, supra.
44.  Ideologia da “não violência” 559
pois isso exige uma reeducação que começa pela “autorreeducação” desde o contexto fami-
liar e escolar, passando pela própria formação da religiosidade.188
O principal passo para esse reaprender é questionar se há liberdade (e coragem) su-
ficiente dentro de nós para sermos capazes de fazer (outras) escolhas. Se a resposta a essa
pergunta for negativa, nunca haverá real mudança, mas apenas formas diversas de revolver
o status quo ante, que, em princípio, ficará com sua “lógica ilógica”189 e manterá a máxima
da violência (só os fortes vencem), a qual, nos dias atuais de “modernidade radical”, pode e
deve ser dita de outra forma: só os poderosos (econômica, política e socialmente) têm seus
direitos fundamentais respeitados e carências supridas. A esmagadora maioria da popula-
ção brasileira não tem direitos fundamentais ou necessidades básicas atendidas, então, a
manter o dito status quo ante que, em verdade, é um “permanens status”: muda-se para fi-
car no mesmo lugar. Pensar e agir desse modo não é lutar para garantir efetividade consti-
tucional aos desapercebidos, mas, egoisticamente, é lutar para si mesmo na esperança de
subir na escala de posição e prestígio sociais, mesmo que, para isso, se tenha que praticar
violências. Desde esse “estado permanente” sempre haverá espaço para discursos, mas não
para ações efetivas que contribuam para transcendê-lo.
Os traumas pessoais que carregamos de experiências anteriores (bem e malsucedi-
das) na sociedade violenta em que vivemos geram a dúvida (rectius, o medo) quanto a re-
nunciarmos a nossas “táticas sociais” de defesa e comportamento lesivo com as quais esta-
mos armados desde a infância (ensinaram-nos isso desde a infância). Isso explica, em muito,
a dificuldade de mover-se para um lugar de não violência, ou seja, para fora do modelo
criminal. A pergunta que assombra é: como viver sem “armas” (sociais e jurídicas da vio-
lência) em um mundo violento?
A pergunta é essencial e este observador indagou-se um sem-número de vezes. Ela
revela o “medo”, a violência introjetada como único instrumental que nos foi delegado por
formação, educação e tradição cultural (social, religiosa, filosófica etc.)190. Precisamos com-
preender que aquela pergunta nos lembra do medo que carregamos em nós; um forte aliado
e espaço de atuação da ideologia da violência. Essa resistência é mais instintiva e cultural
do que lógica e racional. Fosse ela orientada pela racionalidade e observação da realidade
do mundo atual, notadamente do Brasil do século XXI, e a aceitação da não violência – ou
de qualquer coisa que fosse diversa −, no sentido de agir para menos violência, pareceria a
única salvação para nós. Isto porque, não custa lembrar que o Brasil do século XX apostou
no modelo criminal violento persecutório-punitivo como única opção de “resposta” contra
a criminalidade e sabemos bem como estamos hoje. A despeito das tentativas diárias, inces-
santes e bem intencionadas de todos os milhões de agentes internos que passaram por seu
aparato criminal nas últimas cinco décadas, o resultado hoje é um modelo criminal colap-
sado e disfuncional para “combater” o crime; por mais pena criminal e encarceramento que
se aplique, o resultado é retroalimentante da criminalidade e, em muito, insuficiente para

188
No sentido de a reeducação dever começar pelo praticante da não violência, v. ROSENBERG, Marshall B. A lin-
guagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 73-78. No sentido de que a cultura da não violência começa pela
educação não violenta que precisa existir, v. MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., p. 157-159.
189
Cf. item 43.3, supra, ao ensejo de nossos comentários a respeito do paradoxo carregado pela ideologia da violên-
cia. Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 53) é categórico: “A violência é um erro de
pensamento”.
190
Sobre o “medo virtual naturalizado”, o “medo de segundo grau” ou o “medo viral” introjetado por nós pela capi-
laridade informativo-tecnológica na atual fase da “modernidade radical” e os efeitos que produzem em nós e no
mundo juspolítico criminal, v. item 43.2.1, supra.
560 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

atender a toda a vitimização que ocorrer. O que nos garante que continuar apostando “ape-
nas” nesse modelo trará resultados melhores?
Se à resistência à mudança (rectius, medo) aliarmos uma análise de custos e perdas
pelos quais que precisaremos passar para completar a “curva de (novo) aprendizado”, talvez
possamos acrescer outras perguntas àquela formulada ao final do penúltimo parágrafo:
quanto esforço e perdas (tempo, posição social, fonte de recursos, estabilidades em teias de
relacionamentos e prestígios já conquistados etc.) teremos que suportar para “tentar” mu-
dar? Quantos riscos correremos? Qual a nossa possibilidade de sucesso? Nosso esforço
real e sucesso provável ajudarão a quem no final? A nós, aos desapercebidos ou aos nossos
próximos? Por que não aceitar uma via alternativa que atue ao lado e sem substituir o mo-
delo que temos? O que perdemos em tentar o novo, se não renunciamos ao tradicional? Por
que o modelo criminal tradicional deve continuar o único?
Consciente da dificuldade de aceitarmos a mudança, sempre vítimas de resistências
imanentes e compreensíveis, procura-se criar um caminho racional como forma de ajudar
no convencimento pela escolha de se aceitar a alternativa.191 Essa racionalidade de modo
algum desconsidera os aspectos emotivo e instintivo das resistências para sua escolha, as
dificuldades no processo de mudança e, outrossim, da própria incerteza de um novo mode-
lo criminal construído sobre bases não violentas e cujas soluções não são impostas, mas
advindas do método dialogal orientador da dinâmica processual não violenta. Se é lógico e
racional que tenhamos medo e insegurança para mudar, temos que reconhecer que toda
decisão implica não apenas um dado objetivo, mas traz, também, uma carga emotiva que
integra todo racional da escolha.
A ideologia da não violência reconhece que em toda escolha decisória há dados ob-
jetivos e subjetivos que se combinam. Exatamente por reconhecer que sempre há um plano
subjetivo (sentimentos) e um objetivo (necessidades) em nossas − e principalmente em no-
vas − escolhas, procurou-se ressaltar com as cores do saber empírico a realidade nacional
pela qual se passa.192 O status quo é prejudicial a quase todos e tende a piorar. Ou mudamos,
ou não há dúvida de que contribuiremos para piorar o cenário, apenas atuando para dimi-
nuir ou aumentar em velocidade, já que seu destino final está traçado.
As dificuldades e resistências presentes na mudança para a ideologia da não violên-
cia aqui expostas nos revelam o ponto inicial da racionalidade para nossa reeducação e que
permitirá uma nova escolha: uma sempre presente “racionalidade emocional”. Sempre há
um dado emocional e outro objetivo a serem observados nas condutas e motivações huma-
nas. A não violência estuda exatamente esses elementos (objetivo e subjetivo) na racionali-
zação e “o que” é e “como” ocorrem os conflitos em geral. A partir deles é que se constroem
método e abordagem para a mudança.
É perceptível a todos, pelas próprias experiências já vividas, que o universo dos
conflitos, traumas e violências, de quaisquer naturezas e intensidades, é um universo de
necessidades (objetivas) e sentimentos (subjetivos). Esses componentes misturam-se em

191
Os que trabalham com conflitos, violência e traumas de todas as intensidades e extensões, por exemplo, desde o
conflito entre pessoas (micro) até o entre regiões e civilizações (mega), são unânimes em afirmar que por detrás
da não violência há uma racionalidade a ser compreendida, aceita e implementada. Ela não é um salto no escuro.
Sobre a racionalidade em métodos de resolução de vários níveis de conflitos, assim como sua experiência em
atuar em todos os níveis, v. GALTUNG, Johan. Transcender e transformar, cit., especificamente sobre sua classi-
ficação dos conflitos, p. 6-7. Pelo restante da obra o autor demonstra o método em todos aqueles níveis de solução.
192
É o que revelamos ao longo de toda a Parte II, supra.
44.  Ideologia da “não violência” 561
uma dinâmica a indicar que primeiro ela precisa ser compreendida, para depois ser aceita.
Porém, antes do exame do conflito e do trauma, assim como das suas formas de abordagem,193
é necessário observar como a violência ocorre no aparato criminal. A ideologia da não vio-
lência precisa da (auto)clarividência da violência em todas as suas formas. Nisso ela tam-
bém é totalmente diversa da ideologia da violência, pois essa, como visto194, esconde-se entre
regras e justificativas para que não a vejamos em nós mesmos e em nossos atos.

44.1 Não violência na presente teoria para o modelo criminal: as novas metodologia, formas
de ação e finalidade
O ponto de partida da incidência da não violência em um modelo criminal, já desde
a política criminal (não violenta) que o informa, é reconhecer que ele está imerso em um
mundo de violências e que todos os nele envolvidos (agentes públicos e conflitantes) as pra-
ticam (violência conflitual e violência institucional), embora todos usem justificativas para
transferir as responsabilidades de seus atos (violentos).195
Ressalve-se, mais uma vez para não perder de vista a linha deste estudo, que essa
percepção da ideologia da violência e dos papéis sociais que desempenhamos (todos) por
sua orientação não autoriza negar o modelo criminal (violento) persecutório-punitivo exis-
tente, abominá-lo ou querer sua exclusão do mundo.196 Isso somente aumentaria a inseguran-
ça social que todos sentimos. Poder-se-ia tê-la até mesmo como uma conduta juvenil e irre-
alista frente à cultura e tradição de milênios em todos os lugares (inclusive dentro de nós) e
que ainda temos com exclusividade em nossos dias. Não se sugere a troca do existente por
uma proposta em construção. Todavia, a percepção a partir da ideologia da não violência é
a de que podemos ter “outro”, no sentido sempre dito de “mais um”, “uma alternativa” de
modelo criminal em essência e de partida diverso daquele modelo criminal tradicional,
único e violento. Modelo “outro” que, ressalve-se, embora com incipientes incursões e rea-
lizações no Brasil197, ainda precisa ser construído sobre uma base teórica clara para solidificá-
-lo em forma, função e finalidade o mais precisas possível.
A racionalidade da não violência proposta neste trabalho não defende a não respon-
sabilização do infrator por seus atos (crimes). Ao contrário, ela abre um largo espaço de so-
luções, todas a exigir uma conduta (ação, atuar, fazer) positiva (benéfica, ou redutora da ne-
gatividade) do agente da infração.198 Do mesmo modo, não transige em que a pena criminal
e a persecução penal são formas de violência que não devem ser usadas no novo modelo.199
A partir da assunção de responsabilidade por parte do infrator, ele é posto em situa-
ção que possa reparar a violência praticada. O sistema processual criminal não violento,

193
Cf. nossa análise sobre conflito e trauma no item 44.3 e forma de abordagem e seu método no item 44.4, infra.
194
Cf. item 43.2.1, supra.
195
Sobre o tema das justificativas e expansões da violência, v. item 43.2, supra, e, para sua incidência no modelo
criminal, primeira parte do item 43.2.1, supra.
196
Nesse sentido, acompanhamos as posições de SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa: um modelo de
reacção ao crime diferente da justiça penal. Porquê, para quê e como? Coimbra: Coimbra Ed., 2014. p. 33; e SICA,
Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 34, item “1.2.2. Objeto, perspectiva de escopo e princípios”.
197
Cf. essa incipiente realidade nacional no item 47.1, infra.
198
Sobre o tema, cf. item 48.1, infra.
199
Cf. item 46.2, infra.
562 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

portanto, não tem a finalidade de “acertamento” dos fatos, mas de “acertamento” entre os
envolvidos no conflito para que, em consenso e convencidos das suas responsabilidades e
ações para mudar o passado com comportamentos imediatos e futuros, construam a resposta
como a mais positiva para todos, incluindo nesse “todos” a comunidade na qual ocorreu o
crime (“comunidade afetada”).200 No modelo criminal não violento há claro e largo espaço
de diferenciação entre o “responsabilizar” e o “apenar criminalmente”, sendo este um resul-
tado fora da possibilidade de ocorrência.
A proposta deste trabalho pela não violência, portanto, não é a de uma ideologia
radical e purista em que se imagina um mundo irrealizável na atualidade, com todos os in-
fratores assumindo seus crimes a aceitando reparar e transformar suas ações negativas.
Muito ao contrário disso! Exatamente por tudo de disfuncional e viciado que se demonstrou
no Brasil deste século XXI, fruto direto da ideologia da violência no aparato criminal exis-
tente como único, é que temos a não violência como um pórtico possível e realizável de
mudanças. Exatamente por ser possível, não é absoluto. Ademais, a absolutização em ideais
e consensos só é atingível pela ideologia da violência que oprime e submete; nunca pela teo­
ria da não violência defendida neste trabalho.201 Insistimos, o modelo criminal violento deve
ser uma escolha dos envolvidos no conflito (vítima, comunidade e infrator). Ser uma impo-
sição desfigura a própria voluntariedade de atuação em um plano horizontal entre iguais e
orientado e assistido para realização do diálogo.
A ideologia da não violência não é melhor ou pior. É outra! Uma alternativa que se
move e se realiza em dinâmicas e ações antípodas às da violência; por isso abre um novo
horizonte de opções e soluções de tratamento e de respostas. É algo novo que amplia o que
hoje existe, mas, em contrapartida, exige-nos uma também diversa mudança de paradigmas
em nosso hábito de pensar as ciências criminais conjuntas.
As raízes dos nossos saberes criminais nasceram evoluíram acompanhando o mode-
lo criminal violento. Logo, em regra, são elaborados no ambiente e para o espaço prático-
-normativo de promoção ou redução da violência, mas, ineludivelmente, têm a violência
como seu paradigma. Assim, as experiências e aprendizados hauridos por séculos de dou-
trina e prática podem ajudar, mas não podem moldar, sem as necessárias adaptações e alte-
rações axiais e matriciais alguns de seus fundamentos. Há que se fazer uma releitura do
quanto podem ou não ser utilizados no modelo criminal não violento a partir de um filtro
constitucional de direitos humanos e de uma política criminal não violenta. Não obstante
essa seja a matéria dos próximos dois capítulos202, não se pode deixar de consignar, desde já,
esse marco de alerta.
Não se trata de pensar melhorias nas diretrizes e fundamentos desses saberes, mas,
após a verificação de constitucionalidade do modelo não violento, indagar o que deles po-
derá ou não ingressar nesse novo modelo, tarefa que esta teoria ora proposta pretende come-
çar, mas esse observador sabe que não verá seu término; se vier a merecer uma aceitação que

200
Sobre o tema da “resposta não violenta de conciliação criminal”, cf. item 48.1, infra. Sobre a necessidade de no-
vas concepções de comunidade e sua relação com a lesividade da conduta criminal, cf. item 48.3.3, infra.
201
Nesse passo, estamos de acordo com a proposta de Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit.,
p. 121-123), embora o filósofo não dirija essa sua posição, também realista e não radical, ao sistema penal, mas ao
Estado-política.
202
Cf., para a política criminal não violenta e seu teste de constitucionalidade, o Capítulo X, infra. Para o desenho
coordenado, não obstante não exauriente, de cada elemento fundamentais no novo modelo criminal não violento
e o processo criminal transformativo, cf. Capítulo XI, infra.
44.  Ideologia da “não violência” 563
lhe dê início. É do cabedal daqueles saberes criminais para o modelo criminal tradicional
que se deve começar, mas sem perder o compromisso de não deixar interpenetrar ou orien-
tar na construção do sistema processual criminal não violento qualquer de seus fundamen-
tos ligados à ideologia da violência institucional. Ajudarão, mas não esgotarão a traçar o
“novo espaço” e “dinâmica” ideologicamente diversos, pois estes exigirão de seus pensado-
res os mais apropriados instrumentais para diversas propostas de método, práticas e solu-
ções, assim como o desenho de função e atuação para, também novos, agentes internos e
partes em novos papéis. Haverá erro se o caminho escolhido for de “adaptações” de agên-
cias e agentes; de instrumentos e funcionalidades. É necessário manter a coerência: ideolo-
gias antípodas precisam de instrumentais e agentes igualmente distintos desde sua forma-
ção teórica até sua preparação prática.
Não se ignora que o desafio aqui lançado não é pequeno e para o qual este trabalho
pretende endereçar linhas iniciais e mestras a serem submetidas a críticas, refutações, am-
pliações e contribuições; tudo apto a depurar as melhores e necessária base e correto dire-
cionamento neste novo e diverso campo político-ideológico.
A ideologia da não violência rompe, em várias áreas da vida, com os binômios amigo-
-inimigo; obediência-culpa; recompensa-punição. Isso de modo algum implica ignorar o crime
como espécie de conflito, amiúde, violento. É no universo criminal que este trabalho se situa e
que pretende analisar novas abordagens e estratégias para a redução da violência, da qual o cri-
me é apenas uma parte. A alternativa oferecida é reduzir a espiral ascendente de violência que o
Brasil hoje se encontra. Para isso ocorrer e se bem situar o espaço em que trabalhará os novos
modelo e sistema processual criminais não violentos, necessário esclarecer que eles partem, mas
não se limitam ao binômio crime-pena. É o que se faz no próximo subitem.

44.2 “Violência” como o “novo” objeto-problema que o sistema processual criminal não


violento visa a transformar
Para a ideologia e o propósito da não violência acima descritos serem aplicados no
modelo criminal, continente de nosso objeto de estudo (o processo criminal), é fundamental
empreender uma ampliação no seu “objeto-problema” tradicional: o binômio “crime-pena”.203
Essa alteração do objeto-problema é necessária por duas razões.
A primeira é devido ao fato de o crime ser dinâmico em suas causas, consequências
e efeitos e, portanto, de haver a consciência de que reduzir sua violência (criminal) implica
entender e atuar ciente de suas prováveis “violências-causas”, ou ao menos de uma grande
desarmonia anterior, e dos traumas por ele causados. As soluções a serem construídas pelas
partes precisam ter a capacidade de responder a todo o espectro violento que envolve o cri-
me: antes, durante e depois da conduta; seu aspecto premente e o subjacente e cujo conjun-
to denominamos “violência envolvente”.204 A resposta será tanto mais positiva quanto me-
lhor for adaptada à situação global do conflito e das pessoas por ele atingidas.

203
Sobre esse binômio “crime-pena” ter posição axial no modelo criminal tradicional, v. nossas considerações no
item 6, supra.
204
Por outro viés, limitado à “justiça restaurativa” e ao crime e seus efeitos e reações sociais, Leonardo SICA (Justiça
restaurativa e mediação penal, cit., item “1.2.2. Objeto, perspectiva de escopo e princípios”, p. 27-29) já antevira
essa necessidade de ampliação de objeto em relação ao aceito pelo modelo criminal persecutório-punitivo. SICA,
com base em Émile Durkheim (As regras do método sociológico), parte do exame de que o crime não é algo ruim
socialmente, pois indicaria, por sua patologia, a normalidade social, e, portanto, é um acontecimento mais comple-
xo que apenas uma relação silogística: “‘o crime exige a pena’, pois, ‘pena = justiça’. E, por excessivamente
564 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A segunda razão parte da premissa (lógica) de que não se diminui violência pratican-
do mais violência. Logo, os meios institucionais e tradicionais de violência (pena criminal
e persecução penal) devem ser evitados de partida para impedir o seu moto-contínuo (retroa­
limentação). No tocante à violência institucional, a sua espiral ascendente pode ser racional-
mente e de partida afastada do novo modelo criminal não violento, por ser essa uma decisão
de política criminal, o que de modo algum significa não responsabilizar os infratores, como
já dito no item anterior.205 Eles serão os primeiros a terem que demonstrar e assumir as res-
ponsabilidades por seus erros – passo inicial e decisivo ao ingresso no modelo não violento.
Porém, essa assunção e tomada de posição de nada adiantariam como primeiro passo se a
ele não se seguisse a eliminação da violência institucional como resposta estatal.206 A se-
gunda razão, portanto, reside na autoconsciência de que o atual e único aparato criminal
existente é violento e não pode ingressar no modelo não violento, pois isso seria o mesmo
que continuar com o modelo atual e não aceitar o novo. Qualquer aproximação de algum
fundamento do modelo não violento com as noções de “pena criminal” e “persecução pe-
nal” pela metodologia inquisitiva será ponto de contradição lógica e, portanto, de dissolução
da proposta não violenta.
Essa proposta, em síntese, deixa de agregar à violência criminal a violência institu-
cional. Essa não será mais necessária para garantir a validade do sistema legal, que se vali-
dará de outra forma e por outra via, tendo seu reconhecimento pelo infrator e a resposta que
será produzida dentro dos limites legais aceita pela vítima e pela “comunidade afetada”207
quando não houver vítima direta. As ditas “ordem” e “paz”, sempre usadas como justifica-
tivas pelo poder instituído para seu monopólio da violência persecutório-punitiva (rectius,
institucional), serão buscadas por todos os envolvidos no fenômeno do conflito para o futu-
ro, já que a violência ocorrida no passado pode ser transformada, mas não apagada. Se a
iniciativa para isso caberá ao infrator e vítima, eles não devem receber, como contrapartida
do sistema jurídico, respectivamente, violência institucional (pena e persecução penal) e
alheamento da vítima com desconsideração por seus traumas e necessidades.

superficial, tal raciocínio não se presta a revelar as causas que geram o fenômeno e, tampouco, a abrir caminhos
para respostas eficientes” (SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal, cit., p. 29). Partimos de outra
base filosófica, que é o “conflito”, mais ampla em extensão e profundidade e para a qual o crime é uma espécie.
“Conflito”, por isso, diferentemente de crime, é algo até mesmo intrapessoal e, portanto, algo mais extensamente
inerente nos grupos sociais (cf. itens 4.2, supra, e 44.3, infra), o que nos permite compreendê-lo como normal, mas,
se produtor ou revelador de violência, é esta, e não aquele, que precisamos reduzir para a melhor convivência so-
cial. Para nós, portanto, indo um pouco além (e aquém), mas na linha do sentido ampliativo proposto, tomamos a
concepção por nós denominada “violência envolvente” (cf. item 44.3, infra) do conflito (criminal), com seus pro-
blemas imanentes e subjacentes, como nosso “objeto-problema”, conforme exposto no decorrer do texto principal.
205
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 108) é claro ao afirmar esse princípio da responsabi-
lização do qual a não violência não abre mão: “Aquele que opta pela ação não violenta [...] não tem como objetivo
manter acesa a chama da pureza doutrinária da não violência, mas sim buscar a justiça por meios que não este-
jam em contradição com ela; quer assumir plenamente a responsabilidade pelas consequências de seus atos.
Aquele que optou pela ação não violenta tem consciência da insensatez de pretender viver uma não violência
‘ab-soluta’ (isto é, segundo a etimologia latina da palavra, des-ligada da realidade), e que deve aprender inces-
santemente a viver uma não violência ‘re-lativa’ (isto é, sempre segundo a etimologia da palavra, re-ligada à
realidade). Falar de não violência absoluta significa necessariamente recusar a não violência como uma atitude
irrealista. [...] Se a não violência não tem a aspiração de ser absoluta, ela tem a intenção de ser radical (do latim
‘radix’, que significa ‘raiz’); em outras palavras, quer arrancar a violência pela raiz, quer ex-tirpá-la (do latim
‘stirps’, que também significa ‘raiz’), ou seja, quer esforçar-se por fazê-la raízes culturais, ideológicas, sociais e
políticas, perecer, destruindo suas raízes culturais, ideológicas, sociais e políticas”.
206
Sobre a necessidade de não ingresso da pena criminal no modelo criminal não violento, cf. itens 44, supra, e 46.2,
infra. Sobre a mudança do método da inquisitio pelo dialogal, cf. item 48.2.2, infra.
207
Sobre esse conceito cuja construção se inicia neste trabalho, v. item 48.3.3, infra.
44.  Ideologia da “não violência” 565
Pela ideologia da não violência, não deve ser posta mais violência (institucional)
sobre o crime, mas uma abordagem racional e específica para que seus traumas, constituti-
vamente negativos desde a ocorrência (ou mesmo antes), cessem esses efeitos destrutivos.
Assim, torna-se também viável, junto às partes do conflito, empreender ações para um fu-
turo imediato de reparação e construção de relações e relacionamentos positivos ou, pelo
menos, de diminuição da “violência envolvente”.
A ideologia da não violência, na medida em que se dirige ao corpo social, meio no
qual a violência é praticada, e ao indivíduo (vítima e infrator), destinatário de suas preocu-
pações para não ser violentado em suas necessidades, não compreende o crime como sim-
ples conduta ou algo isolado. O crime, como qualquer conflito, tem dimensões pessoal, re-
lacional, estrutural e cultural, sendo que elas formam um todo para a compreensão e a
transformação da violência em algo positivo.208 Essa visão dinâmica e ampliada do crime
em meio a cenários violentos já integra o saber criminológico209 e deve ser um espaço tra-
balhado desde a política criminal para seu endereçamento ao seu modelo criminal e deste,
por sua vez, ao sistema processual criminal não violento.210

208
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 37-40. Esse autor (p. 34-36) aponta que a “aborda-
gem transformativa se concentra nos aspectos dinâmicos do conflito social” (p. 34), pois a mudança precisa ser
e empreender sobre estruturas vivas, aptas a serem alteradas pela vontade e consciência de seus atores principais.
209
Para uma abordagem criminológica sobre o “crime” e sua importância de análise na criminologia, v. ainda, por
todos, SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004. 1ª Parte; “Objeto da criminologia: deli-
to, delinquente, vítima e controle social”, itens 1.3; da mesma forma, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio;
GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 2. ed. São Paulo: RT, 1997. 1ª Parte, Capítulo 1, item III; GARCÍA-PABLOS
DE MOLINA, Antonio. Criminología: una introducción a sus fundamentos teóricos. 4. ed. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2001. 1ª Parte, item III; HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la crimi-
nología y al derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. Item II; e GARRIDO, Vicente; REDONDO, Santiago;
STANGELAND, Per. Principios de criminología. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. Item 1.1.
210
Para compreender essa visão ampliada, remete-se o leitor ao item 6, supra, quando tratamos, no âmbito da políti-
ca criminal, do “fenômeno criminal” e da “resposta” a ele. Neste passo do trabalho, contudo, deve-se acrescentar
um conteúdo também criminológico àquele já exposto “fenômeno criminal”, o qual é muito bem expresso em sua
extensão e aproximação ampla por Vera Malaguti BATISTA (Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de
Janeiro: Revan, 2011. Capítulo I, “Pensando a questão criminal”) e pela qual a “questão criminal” é uma área
“transdisciplinar por excelência, movendo-se do direito penal para a história, a sociologia, a psicanálise, a
economia política, a literatura, a comunicação, a geografia” (p. 15). A autora acrescenta ainda àquela amplitude
uma abordagem do crime pela perspectiva de “política social” de Heleno Cláudio Fragoso e, por fim, entre outros
acréscimos não menos relevantes de perspectiva, faz a interação, tão cara a este trabalho, entre criminologia e
política criminal, em seu Capítulo II (“Criminologia e política criminal”). Trabalhando mais especificamente,
nesse contexto de política criminal, a autora leciona, com apoio em Nilo Batista, Michel Foucault e Eugenio Raúl
Zaffaroni, mas com uma costura e acréscimos que lhe são próprios: “Nilo Batista trabalha a política criminal
como o conjunto de princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos
órgãos encarregados de sua aplicação. O conceito de política criminal abrangeria a política de segurança pú-
blica, a política judiciária e a política penitenciária, mas estaria intrinsecamente conectado à ciência política.
A partir da crítica das exposições globais articuladas entre criminologia, direito penal e política criminal em von
Liszt, a criminologia já não estaria em busca das causas da delinquência e dos meios para preveni-la, e a política
criminal não se reduziria à função de ‘conselheira da sanção legal’ lastreada na aceitação legitimante da ordem
legal. A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como uma questão política que provém do século
XIII, da conjuntura do início do processo de centralização do poder da Igreja Católica e do Estado, do processo
de acumulação de capital e de poder punitivo que começa operar a tradução da conflitividade e da violência no
sentido ‘do criminal’” (BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira, cit., p. 23). Sobre
a política criminal e a criminologia nas Inquisições, na linha do destacado por ZAFFARONI, cf. item 24.2, supra.
Caminhando um pouco antes na história do modelo criminal persecutório-punitivo, identificamos claros traços
de política criminal já na Roma Imperial (cf. item 8.2.2, supra), depois na Alta Idade Média (cf. itens 14, e seus
subitens, e 15, supra) e, de modo mais claro e pronunciado, tanto na porção continental quanto insular da Europa
dos séculos XI e XII (cf., respectivamente, itens 19 e 21.2, supra). Esse modo de combinar e interagir política cri-
minal, criminologia e processo penal está em tudo afinado com nosso pressuposto de “ciência criminal conjunta”,
já tratado no item 2, supra. Sobre esse espaço ampliado em uma política criminal não violenta e afim à Constituição
e a normativas internacionais de direitos humanos, cf., respectivamente, itens 47 e 47.1, infra.
566 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Ponto crucial ao novo sistema processual criminal não violento é que, partindo do
crime como violência, recusa-se a atuar de modo violento e, ainda, visa a colaborar em
também empreender soluções positivas para as outras formas de violências que o envolvem
(anteriores, interiores e posteriores). Todas as formas de “violências” devem ser combatidas
para melhora social, inclusive e desde as violências institucionais, dentre as quais a “pena
criminal” e o sistema processual penal persecutório de metodologia inquisitiva são as suas
expressões centrais. Pelo paradigma da “não violência” precisa-se de um novo instrumental
sistêmico para um também novo modelo criminal.
Para compreender e desenvolver esse novo instrumental e demandá-lo dos saberes
criminais, em muito podem ajudar as percepções e estudos que os pesquisadores e práticos
da não violência já empreenderam sobre a relação entre violência, conflito e trauma e sua
melhor abordagem. É o que se passa a expor, conquanto de modo reduzido e dirigido ao
âmbito deste estudo, nos próximos subitens.

44.3  “Conflito” e “trauma” como oportunidades de minimizar negatividades e maximizar


positividades
O crime é uma espécie de conflito. Sua peculiaridade está em ter sido elevado à ca-
tegoria de comportamento legalmente indesejado e cuja realização da conduta implica como
consequência a aplicação de pena criminal, também prevista em lei. Ainda assim, em essên-
cia e em estrutura, o crime tem as mesmas características de um conflito.
Como já descrito neste trabalho, os conflitos são ocorrências imanentes na vida hu-
mana.211 Eles variam de abrangência e de intensidade, assim como advêm de causas diver-
sas, produzem efeitos (traumas) físicos e psicológicos não apenas nas partes conflitantes,
mas também em quem integra as relações e relacionamentos em que ele ocorre. Os conflitos
são perturbações no fluxo dos relacionamentos individuais ou coletivos.212
A raiz de todo conflito ou é uma contradição entre pelo menos dois objetivos (inte-
resses, metas), sempre um obstruindo ou obstaculizando o outro, ou, ainda, uma frustração
provocada pela não consecução dos interesses ou metas pretendidos por alguém.213 O con-
flito, porém, não importa apenas quanto à percepção de sua origem, pois possui efeitos que
são igualmente relevantes. Uma vez surgido, ele desenvolve-se em violência entre as partes
conflitantes e com frequência atinge paralelamente outras pessoas (os próximos, ou afeta-
dos reflexamente), grupos, comunidades e até nações, tudo a depender do seu tamanho.214
Isso causa, como efeito colateral imediato e impeditivo da superação da violência, o afasta-
mento (momentâneo ou duradouro) entre as partes conflitantes, o que se torna uma barreira

211
Em complemento ao desenvolvido no item 4.2, supra, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assun-
tos difíceis: um guia prático de aplicação imediata. Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena,
2018. p. 22.
212
Nesse sentido, v. LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 19.
213
Nesse sentido, v. GALTUNG, Johan. Transcender e transformar, cit., p. 10-13.
214
Johan GALTUNG (Transcender e transformar, cit., p. 6-7), sociólogo, experiente mediador, consultor e partici-
pante de conflitos pelo mundo e, ainda, pesquisador e professor sobre a temática de paz e conflitos em Universi-
dades e Institutos, indica que os conflitos podem ser intrapessoais (dilemas) ou interpessoais (disputas), e em
ambos os casos têm dimensão do que ele denomina “micro” conflitos. Ampliando o espectro de seus efeitos e
pessoas envolvidas, eles podem se dar dentro de sociedades (mesoconflitos), entre Estados e entre nações (macro-
conflitos) e entre regiões ou civilizações (megaconflitos).
44.  Ideologia da “não violência” 567
imediata à compreensão e atendimento pelo infrator dos traumas da vítima (pessoa física ou
grupo de pessoas).215
Porém, independentemente da magnitude que os conflitos atinjam, é relevante notar
que são perturbações humanas internas ou em suas relações e relacionamentos, pois somen-
te o indivíduo é capaz de ter “metas”, “interesses” ou “objetivos”. As metas ou interesses,
mesmo quando ditos aparentemente de uma organização ou de um ente pluripessoal (p. ex.,
comunidade, nação), sempre são sentidos e almejados pelo ser humano, que, não raro, diz
ser da coletividade aquilo que nasceu como “seu” desejo. Metas, interesses e objetivos são
exclusivos de seres humanos.
Na compreensão dos conflitos, essas “metas”, “interesses” ou “objetivos” desempe-
nham papel relevante, pois representam o objeto ou sentimento violados ou sobre os quais o
desejo/intenção gerou a frustração ou contradição. Eles têm importância no estudo do con-
flito (assim como em sua abordagem e resposta) por serem centrais para a pessoa no confli-
to e nas emoções vividas. Há tanta diversidade de metas quanto há de possíveis desejos in-
dividuais, e, também, para estes há diferenças.
Também há conflitos porque há divergências de compreensões e percepções sobre
as metas/objetivos entre as pessoas – é a diversidade não mais de objetivos, mas mesmo
dessas percepções ou, ainda, da importância delas.216 Os objetivos mais importantes e que,
portanto, tendem a gerar conflitos com violência recebem uma nomenclatura quase unifor-
me dos pesquisadores e estudiosos do tema “conflito – trauma”: são as “necessidades”
(“needs”), que costumam aparecer com os adjetivos “básicas”, “essenciais” ou “vitais” para
destacar o peso que algumas têm na geração e, também, na resolução do conflito.217 Elas se
diferenciam das demais por não admitirem negociação, pois sem elas o ser humano deixa
de ter vida ou dignidade. Como ensina JOHAN GALTUNG:

“Sobrevivência” – “bem-estar” – “liberdade” – “identidade” – são necessidades


básicas. São mais profundas do que valores. Estão acima dos valores. Os valores
podem ser escolhidos por nós e a escolha de valores faz parte de nossa liberdade.
[...] Porém, as necessidades básicas são diferentes. Você não escolhe suas neces-
sidades básicas; as necessidades básicas escolhem você. É a satisfação delas que
torna você possível. Se você descarta suas próprias necessidades básicas, ou de
outros, está se condenando, ou a outros, a uma vida não digna dos seres humanos.
Está praticando violência. [...] “Insultar necessidades básicas, isto é violência”.218

As “necessidades básicas” podem ser físicas (p. ex., alimentos, remédios, vacinas,
água potável, habitação com saneamento básico, vestimentas) ou psicológicas (p. ex., digni-
dade, reconhecimento e respeito), além dos direitos humanos inseridos nos documentos
constitucionais; por isso ingressarem com a hierarquia de “direitos fundamentais”.219

215
Tratando esse afastamento como um dos primeiros desafios que o processo do diálogo precisa superar e de como
superá-lo com técnicas, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 22.
216
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 19.
217
ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 50-53; GALTUNG, Johan. Trans-
cender e transformar, cit., p. 12-13; YODER, Carolyn. A cura do trauma, cit., p. 33-34; e MULLER, Jean-Marie.
O princípio da não-violência, cit., p. 19.
218
Johan GALTUNG. Transcender e transformar, cit., p. 11-12.
219
Johan GALTUNG (Direitos humanos: uma nova perspectiva. Tradução por Margarida Fernandes. Lisboa: Insti-
tuto Piaget, 1998. p. 91) explica que, em uma visão de violência e conflito, os direitos humanos também são
568 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Como as metas/interesses, elementos por excelência do plano subjetivo, são necessi-


dades humanas cuja não consecução produz conflitos e violências, não é possível tentar se
aproximar destes sem considerar os sentimentos humanos. As porções psicológica e fisioló-
gica do indivíduo acompanham, com todas as suas variedades, intensidades e complexida-
des, os conflitos e também podem ser atingidas pelos seus efeitos violentos.220 Emoções e
sentimentos não são apenas passageiros dessas situações (conflituais e/ou violentas), mas
atuam como protagonistas.221 Por isso os conflitos tendem a despertar e/ou são produzidos,
em um fluxo ambivalente e bidirecional, por nossas mais fortes emoções, normalmente li-
gadas a sentimentos relacionados à agressividade e ao medo, com todas as variações e ex-
tremos que eles podem alcançar.222 O conflito, efetivamente, impacta situações e as modifi-
ca de várias formas.223
Quando o conflito se processa em meio à violência, o que amiúde ocorre com o con-
flito criminal, os efeitos negativos que ele produz também se manifestam naqueles planos
(físico, fisiológico e psicológico). Tanto o plano físico e externo ao indivíduo, mas com o
qual se liga emocionalmente (p. ex., pela expropriação ou danos a um bem), quanto o fisio-
lógico (v.g., por lesões físicas de vários graus) e o psicológico (p. ex., depressão, medo, sín-
dromes de várias naturezas) podem ser atingidos.224 Também pode ocorrer que a violência
se espraie por mais de um deles (quando uma lesão física mutilante ou deformante leva
também a danos psicológicos profundos) ou mesmo venha a atingir pessoas não diretamen-
te envolvidas no conflito (parentes de pessoa assassinada ou mutilada; comunidade em que
as violências ocorrem cotidianamente); traumas em terceiros diversos dos conflitantes.
As violências decorrentes de crimes, em regra, produzem traumas nas pessoas por
eles atingidas direta ou indiretamente. Diz-se “em regra” porque o trauma deve ser verifi-
cado também em face da pessoa que foi atingida em meio aos contextos social e pessoal em
que se encontrava quando foi atingida pela violência criminal e conforme a intensidade e
incisividade da violência ou, ainda, se teve repercussão para outrem. A violência ou o evento,

necessidades básicas do homem. Contudo, possuem diferente posição para ele. Enquanto as necessidades básicas
tradicionais (p. ex., alimento, remédio, educação, respeito e dignidade) estão “dentro de seres humanos (e as ne-
cessidades em geral de seres vivos de qualquer espécie), os direitos humanos são vistos como localizados ‘entre’
eles”. Para o autor são ambas necessidades humanas, que, embora sejam de tipos diferentes, “estão entre si rela-
cionadas de forma complexa e importante” – diríamos incindível. Os direitos humanos são “necessidades básicas
“entre” as pessoas, ou seja, para as relações inter e pluripessoais.
220
Sobre as violências decorrentes de sentimentos e emoções extremadas, como medo e agressividade, v. MULLER,
Jean-Marie. O princípio da não-violência, cit., Capítulo 1. Nesse sentido, v. Gabriel J. Chittó GAUER, Mariana
SOIREFMANN e Laura F. GRECA [Aspectos biológicos na etiologia do comportamento agressivo. In: GAUER,
Gabriel J. Chittó; GAUER, Ruth M. Chittó (org.). A fenomenologia da violência. Curitiba: Juruá, 1999. p. 47-64]
informam que tais como lesões cerebrais, esteroides sexuais, serotonina, dopamina e norepinefrina, alterações
enzimáticas que degradam monoaminas no sistema nervoso central, hormônios da tireoide, entre fatores neuro-
biológicos, vários são os fatores biológicos apontados como disparadores da agressividade humana.
221
ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 46-50, e, do mesmo autor,
Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução por Mário
Vilela. São Paulo: Ágora, 2006. Capítulos 4 e 5.
222
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., Capítulo 1) e John Paul LEDERACH (Transforma-
ção de conflitos, cit., p. 37) explicam o papel próximo e, por isso mesmo, delicado, que as emoções e sentimen-
tos desempenham na relação entre o indivíduo ou grupo de indivíduos e os conflitos. No mesmo sentido,
v. GALTUNG, Johan. Transcender e transformar, cit., p. 13-14. Nesta obra, o sociólogo aborda todos os níveis
de conflitos, com casos práticos em que atuou, e em todos eles, sem exceção, pode-se ver o fator emocional
como determinante.
223
John Paul LEDERACH, por exemplo, em sua obra Transformação de conflitos, cit., p. 37.
224
Sobre esses planos, os graus de extensão e como ocorrem neles os traumas, v. YODER, Carolyn. A cura do trauma,
cit., p. 25-31.
44.  Ideologia da “não violência” 569
por si só, não define ou determina o trauma. Ele pode ser profundo em violências aparente-
mente leves, ou, ao contrário, não ser tão intenso a despeito de altas perdas.225
A violência, que envolve o conflito e o trauma, ocorre na dinâmica das vidas das
pessoas, em situações complexas e no fluxo das relações e relacionamentos humanos de
todas as naturezas, intensidades e cotidianamente. Por isso, a mudança de paradigma da
política criminal e de seu modelo para tê-la (a violência) como objeto-problema é necessá-
ria226: permite ampliar seu espectro de abordagem e não focar apenas no crime (aconteci-
mento conflitual premente), mas, a partir dele e sempre além dele, identificar padrões (pes-
soais, culturais, relacionais e estruturais)227 que precisam ser detectados para compreensão
do conflito e de sua dinâmica de produção. O crime, ponto premente e mais agudo do con-
flito, deve ser ponto de partida, e não limite na abordagem não violenta. As “necessidades
básicas” violadas não estão presentes apenas como causas dos crimes, mas, como na dinâ-
mica da vida, podem novamente ser violadas para as vítimas se não se perceber que os
traumas por elas sofridos geram também suas próprias e novas necessidades deles derivadas
– por exemplo, de proteção, de informação e respostas, de relatar sua história e sentir-se
empoderada, assim como de vindicação e reparação/restituição.228
Há, pois, não apenas a violência (premente) decorrente do crime, mas, em regra, há
mais violência no seu entorno. Ela também pode existir para antes e depois da ocorrência do
crime, sendo o que aqui tratamos no item anterior como “violência envolvente”. Analisar o
conflito criminal pode ter como pauta primeira a “violência premente”, que inclusive pode
ser a única, mas a visão ampliada irá refletir nas dimensões transformativas do sistema
processual criminal não violento − proposta final deste trabalho −, permitindo que se vá
além dessa violência menos ampla. Observa-se todo o conflito e as necessidades e traumas
que o cercam para ir além da resposta ao caso concreto e, pelo atuar positivamente das par-
tes e pela oportunidade do conflito tratado, projetar benefícios no plano comunitário onde
ocorreu o crime, tornando-o, também, mais harmonioso ou, pelo menos, minimizando os
desequilíbrios trazidos pelo conflito criminal que deu origem ao desenrolar do “processo
criminal transformativo”.229

225
Carolyn YODER (A cura do trauma, cit., p. 14-16) traz a diferença entre trauma por conflito e trauma por estres-
se cotidiano. Neste trabalho lidaremos apenas com os “traumas por conflito”. David Anderson HOOKER (Trans-
formar comunidades: uma abordagem prática e positiva ao diálogo. Tradução por Luís Fernando Bravo de Barros.
São Paulo: Palas Athena, 2019. p. 22) expõe o que seja “traumatogênico”. Na linha de Carolyn YODER, HOOKER
também afirma que nem todo conflito gera trauma, pois este só ocorre “quando situações são percebidas como
ameaças à vida, ou como muito mais fortes que a capacidade de reação de um indivíduo ou de uma comunidade.
A situação ou o evento, em si, não é um trauma. Trauma é um complexo conjunto de respostas físicas, emocio-
nais, cognitivas, espirituais e relacionais a uma experiência de total impotência”. Traumatogênico é algo que,
efetivamente, gera um trauma.
226
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., Capítulo 9, “Resolução não-violenta de conflitos”) le-
ciona que a violência, em sua realidade punitiva e unidirecional, não consegue lidar com várias causas do confli-
to, e por não conseguir resolver ou responder às várias causas, simplifica-o a um ponto (conduta) a fim de facilitar
a sua ação punitiva. Sobre esse ponto e temática específicas, v. item 44.3, supra.
227
John Paul LEDERACH (Transformação de conflitos, cit., p. 37-41) identifica o ser humano envolvido no conflito
com esses quatro planos a serem observados e considerados na resolução do caso presente, mas também na pro-
jeção da ação positiva no futuro de suas relações para neutralizar padrões destrutivos e que igualmente precisam
ser atingidos pela atuação da não violência.
228
YODER, Carolyn. A cura do trauma, cit., p. 33-34.
229
Embora não para uma aplicação no direito criminal, mas para sua visão transformativa de conflito, John Paul
LEDERACH (Transformação de conflitos, cit., p. 29) afirma que “[A] abordagem transformativa busca compreen­
der o episódio conflituoso isolado dentro de seu contexto como algo pertencente a um padrão muito maior.
A mudança é entendida como algo presente tanto no nível imediato das questões prementes, quanto no âmbito
dos padrões e questões mais amplos”.
570 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Para essa abordagem não violenta ampla e de cunho transformativo para além do
“resolutivo”, JOHN PAUL LEDERACH defende que o exame de qualquer conflito – gênero
do qual o crime é uma espécie, acrescentamos mais uma vez – exige uma observação por
três perspectivas, em cuja explicação utiliza a imagem de diferentes “lentes” de óculos, ou,
como ele mesmo menciona: uma lente trifocal em uma mesma armação.
A primeira lente (ou parte daquela lente trifocal) torna mais nítida a “situação ime-
diata”, na qual os problemas são mais prementes e, normalmente, são os que despertam a
atenção no momento em que eclode o conflito. Uma segunda lente, outra porção diversa da
mesma lente trifocal, deve estar atenta aos “‘padrões’ mais profundos do relacionamento,
inclusive o contexto no qual o conflito se expressa”: é o ambiente que gerou as causas (pró-
ximas e remotas) do conflito e que pode conter indicadores frequentes de comportamentos
semelhantes tanto de causas como de conflitos repetitivos. Pela terceira lente ou porção da
lente trifocal, por fim, deve-se atentar à “estrutura conceitual” que reúna as perspectivas
anteriores, “uma estrutura que nos permite ligar os problemas imediatos com os padrões de
relacionamento subjacentes”. LEDERACH denomina essa abordagem de “transformação
do conflito”, cujo principal atributo é perceber que todo conflito tem um conteúdo, um con-
texto e uma estrutura de dinâmica relacional.230 WOLFGANG DIETRICH, analisando os
estudos e a proposta de LEDERACH, afirma que “seu mérito mais importante, consequen-
temente, foi deslocar a atenção do individual ou do grupo para a relação, como sendo o
fator chave do trabalho de conflito”.231
Todavia, essa maneira racional e mais ampla de examinar o crime, como espécie de
conflito que ele é, não seria, por si só, capaz de produzir uma abordagem e soluções distin-
tas do modelo criminal tradicional. De certo modo, essa abordagem tem sido proposta pela
criminologia, em suas várias correntes teóricas.
A condição necessária (conditio sine qua non) para o modelo não violento obter re-
sultados diversos do modelo criminal violento é partir de premissa diversa, qual seja, a
“empatia”. A abordagem deve ser racional em sua compreensão das causas, partes e efeitos
do conflito, assim como das pessoas direta e indiretamente atingidas por ele, porém, deve
partir de uma aproximação empática (emocional, portanto) tanto por parte do agente exter-
no ao conflito (facilitador) e que atuará para ajudar as partes na construção da resposta
quanto dessas próprias partes.232 A empatia é outra mudança paradigmática em face do
modelo criminal tradicional, cuja aproximação do conflito é sempre perseguir para punir,
um sentimento negativo de fracasso diante da “ordem” descumprida.
A ideologia da não violência age para reduzir e eliminar a violência, não as pessoas
(infrator e vítima) que a sofreram. Ambas, assim como suas valorizações e respeito, são as
beneficiárias daquela nova postura ideológica. O agente da violência, para não ser tratado
como o inimigo a ser derrotado, subjugado ou submetido a violências institucionais para a
manutenção de algo (paz ou ordem), precisa ser visto apesar da violência praticada por ele.
Aliás, ele deve ser compreendido por meio da observação do que fez, mas também como

230
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 22-24.
231
DIETRICH, Wolfgang. Uma breve introdução à pesquisa sobre paz transracional e transformação elicitiva de
conflito. Tradução por Neuza L. R. Vollet. Organicom, São Paulo, v. 15, n. 28, p. 90-104, set. 2018. Item 1.
232
Nossas considerações sobre o “facilitador” estão no item 48.3.2, infra. Sobre o papel central da “empatia” na
ideologia não violenta e, portanto, no sistema processual não violento, cf. o item seguinte, quando será analisada
com a “dinâmica do diálogo”.
44.  Ideologia da “não violência” 571
alguém que se responsabiliza e se apresenta para assumir seus atos e reparar os efeitos deles
decorrentes. A empatia para com o infrator surge e é justificada exatamente por sua inicia-
tiva em responsabilizar-se pelos fatos cometidos e colocar-se em condição de repará-los
perante a vítima e a comunidade por meio de uma atuação positiva.
A empatia é a postura exigida de quem atua(rá) em um sistema processual criminal
não violento; é uma das principais atitudes da ideologia da não violência. A violência, mani-
festada pelo conflito criminal e por seus traumas, por causa dos envolvidos e cuja iniciativa
é assumir suas responsabilidades, deve ser vista como um mundo de oportunidades por essa
nova ideologia; não como uma justificativa para mais violência (institucional). A empatia é
o que torna possível essa oportunidade de perspectiva transformativa de aproximação. O ca-
minho de abordagem, tratamento e transformação desse conflito (criminal) parte da “espe-
rança” que envolve a empatia e não do “medo” (forma interna de violência). Ela anima a
procura por mudanças positivas, não a aplicação da violência institucional baseada na raiva,
vingança e dor (sentida e a infligir), formas de a violência ser, manifestar-se e aumentar.
Para isso ser possível a abordagem deve mudar desde o animus da aproximação e do
método (dialogal) para a transformação da violência destrutiva em algo construtivo e reali-
zável, pois consensual. A empatia e o diálogo devem ser matérias desenvolvidas, ensinadas,
apreendidas e praticadas pelos novos agentes internos do modelo criminal não violento.
Empatia e diálogo passam a ocupar o centro da dinâmica de aproximação e busca da respos-
ta. É do que trata o próximo item.

44.4 “Empatia” e “diálogo”: racionalidade emocional na abordagem e método da não violência


Como este estudo se destina ao sistema processual voltado ao crime, as considera-
ções deste item serão feitas tendo em vista o que de relevante para aquela área a filosofia da
não violência traz. Não se busca, pois, exaurir os extensos – e não devidamente explorados
na área jurídico-criminal − temas da “empatia” e do “diálogo”, pois, conquanto cativantes,
novos e oportunos nessa área do Direito, devem ser dirigidos e limitados ao escopo deste
trabalho. A exposição se dará na medida do necessário, a fim de compreender seus funda-
mentos e relação com a ideologia e a prática da não violência. Por isso serão explorados,
respectivamente, apenas como abordagem e método na resposta a conflitos por meio do
sistema processual criminal não violento.
Nessa perspectiva, para melhor efeito didático, deve haver uma ordem entre os te-
mas. Primeiro será tratada a empatia, pois ela orienta a forma como a pessoa responsável
pela intervenção (facilitador233) no conflito das partes deve entender a “violência envolven-
te” e o próprio conflito e, também, como deve despertar o mesmo sentimento naquelas par-
tes para interagirem com ele e entre si. Pela empatia, violência e conflito não geram a nega-
tividade da busca pela “culpa” para justificar a “violência-resposta” institucional (persecução

Usa-se aqui o termo “facilitador” apenas para identificar o terceiro da relação conflitual e cuja função é atuar de
233

modo imparcial para aproximar as partes do conflito e promover o diálogo entre elas. Não se está, ainda, esco-
lhendo qualquer prática ou qualificação para sua explicação funcional. Para referência de sua conceituação no
âmbito restaurativo, informa-se que a Organização das Nações Unidas (ONU), na sua Resolução n. 2002/2012,
que trata dos “Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal”,
fixou o que entende ser “facilitador” no número 5 do item destinado à “Terminologia”: “5. Facilitador significa
uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas
num processo restaurativo”. Sobre o tema, trata-se de modo mais detalhado no item 48.3.2, infra.
572 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

e pena criminais), mas o sentimento positivo de oportunidade para reduzir os efeitos ne-
gativos a partir do respeito às partes, as principais afetadas e protagonistas da resposta a
ser obtida e executada.234 Em um segundo momento, após essa explicação de postura
pessoal e abordagem, serão expostas as características e elementos (objetivos e subjeti-
vos) do diálogo como metodologia capaz de obter o consenso a partir daquela condição
necessária (empatia).
Começando pela empatia, deve-se consignar, de pronto, que tê-la não é obsequiar
ou negar a crueldade da violência. É compreender que as partes conflitantes, observadas
em suas necessidades e em seus sentimentos, podem transformar os efeitos negativos da
violência já existente em algo positivo. Porém, para que isso ocorra, a abordagem empática
deve ir para além do crime, pois o conflito premente que está posto só existe devido às
partes conflitantes e sua história (anterior e posterior) em um meio social que também pre-
cisa ser mais sadio. São as partes e suas circunstâncias, e não o crime, que merecem a
abordagem empática.235
Como postura de aproximação e aceitação respeitosa do outro, antes mesmo de es-
tabelecer com este um ou vários níveis de conexão, a empatia implica criar um ambiente
favorável ao diálogo. É a capacidade ensinada e treinada de ouvir e sentir o outro236, que
passa necessariamente pela autoconsciência; ela envolve, ainda, a atuação no auxílio da
construção de entendimentos. A empatia demanda compreensão respeitosa e direta para
com as partes, em suas características e dores. Ela exige uma presença integral e disposta a
ouvir, no espaço e tempo necessários, para que seus sentimentos e necessidades possam ser

234
John Paul LEDERACH (Transformação de conflitos, cit., p. 31) informa que o “conflito também gera vida: atra-
vés do conflito nós reagimos, inovamos e mudamos. O conflito pode ser entendido como o motor da mudança,
como aquilo que mantém os relacionamentos e as estruturas sociais honestas, vivas e dinamicamente sensíveis
às necessidades, aspirações e ao crescimento humano”.
235
Pete WALLIS (Understanding restorative justice: how empathy can close the gap created by crime. Bristol:
Policy Presse: Bristol University, 2014) trata em toda a sua obra de empatia. Para tanto, divide sua compreensão
e incidência em seis níveis (0 a 5), sendo o nível zero o momento em que não há empatia (momento do crime), e
o quinto o que há empatia em seu maior grau (cura, reparação, restauração). Cada um desses níveis é tratado
separadamente em parte específica de sua obra, sendo nominados pelo autor como: ferindo, vendo, ouvindo,
ajudando e curando. Já na abertura de sua obra, o psicólogo e prático de larga experiência em “justiça restaura-
tiva” demonstra a dificuldade em significar em palavras o que se deve entender por “empatia”: “A empatia é um
tópico notoriamente complexo e que interessa a várias disciplinas, incluindo filosofia, estética, psicologia,
neurociência e justiça restaurativa. Por não ser uma qualidade intelectual, é difícil definir precisamente em
palavras. Em 1907, Lipps chamou a empatia de ‘um fenômeno de ressonância psicológica’. Sua noção de ‘imi-
tação interior’ reflete a pesquisa neurocientífica contemporânea dos chamados ‘neurônios-espelho’ e a desco-
berta de que ‘a percepção de outra pessoa ativa neurônios semelhantes no sujeito e no alvo’. O gatilho inicial
da empatia parece ser um espelhamento inconsciente e automático do estado emocional de outra pessoa, no
qual uma pessoa lê e responde a sinais verbais ou não verbais da outra. A empatia tem três elementos: identifi-
car o que outra pessoa está sentindo (empatia afetiva); avaliar as razões de seu estado emocional (empatia
cognitiva); e agir em resposta. À medida que empatizamos, nosso foco muda do pensamento de nós mesmos
para o pensamento do outro; do egocentrismo [‘self-centred’] para a perspectiva do outro como centro [‘other-
-centred’]” (p. 6-7, traduzimos e acrescemos, entre colchetes e sem itálico, expressões no original para melhor
aproximação da ideia do autor).
236
Jack ZENGER e Joseph FOLKMAN (O que os bons ouvintes realmente fazem. In: HARVARD BUSINESS
REVIEW. Empatia: Coleção Inteligência Emocional. Tradução por Rachel Agavino. Rio de Janeiro: Sextante, 2019.
p. 37-45), em artigo de revista especializada no tema, descreverem a empatia como escuta. Inicialmente, com base
em uma pesquisa de campo, descrevem em 4 categorias as características de ser um bom ouvinte: “ouvir é muito
mais do que ficar em silêncio”; “ouvir bem envolve interações que aumentam a autoestima de uma pessoa”; “ouvir
bem é visto como parte fundamental de uma conversa colaborativa”; e “bons ouvintes tendem a dar sugestões” de
caminhos alternativos a serem considerados pelas pessoas do diálogo. Para isso, identificaram que o ouvinte precisa
escolher qual nível de escuta quer ter com seu interlocutor, indo desde a criação de um ambiente seguro até uma
relação contributiva para que o interlocutor veja outras perspectivas como escolhas possíveis e positivas.
44.  Ideologia da “não violência” 573
reciprocamente ditos e compreendidos em um ambiente franco e no qual os envolvidos se
sintam seguros.237
A empatia do facilitador não pode trazer ou significar qualquer forma de julgamento
do fato ou das pessoas, pois sua presença não é de intervenção nas compreensões recíprocas
das partes conflitantes, mas apenas de promover e gerenciar o diálogo respeitoso entre elas,
notadamente quando forem fortes as reações advindas dos sentimentos e das necessidades
expostos e ouvidos.238 As violências e traumas devem ser compreendidos e respeitados, mas
não podem ser introjetados pelo facilitador, que para isso deve ser treinado.
Se no modelo criminal tradicional o terceiro do conflito é o sujeito do poder-saber
(persecutor, acusador, julgador e executor), no modelo criminal não violento é o facilitador,
e seu papel não é dizer o certo ou o direito (“ius dicere”), mas estar atento aos sentimentos
e necessidades dos conflitantes para promover os meios que caminhem à compreensão em-
pática (e não intelectual) e, dela, ao consenso e à resposta.239 Não é a força que caracteriza
o facilitador, mas o respeito, a atenção integral e a habilidade em promover o diálogo since-
ro e profundo entre as partes.
A empatia é o ponto de partida diferencial da ideologia da não violência, pois traz a
esperança de que as pessoas irão compreender o passado (violento) e convencer-se, no pre-
sente, de que o melhor para todos é construírem um futuro positivo. A empatia confere
sentido de oportunidade às pessoas conflitantes e suas vidas.
A empatia não deve se dar apenas na aproximação do conflito e na compreensão
das partes. Deve se manter por todo o processo de cariz não violento. A observação, no
sentido de presença integral, direta e atenta, é de difícil manutenção, e o terceiro, quando
perceber que ele ou algumas das partes não a está mantendo, deve suspender o processo
para continuação em momento futuro. Dores e sentimentos muito fortes ou em erupções
emocionais podem – e comumente ocorre de – atrapalhar o processo, e é preciso estar trei-
nado e preparado para perceber e suspender a comunicação de forma natural e sincera.240
A empatia exige treinamento específico para ser sentida e mantida pelo facilitador e para
ser orientada e garantida às partes conflitantes no processo de comunicação não violenta
entre elas.
Seu exercício, diferentemente do método inquisitivo, não tem a força vertical e hie-
rárquica do sujeito do poder-saber, mas aproximações e ligações a serem mantidas e desper-
tadas pelo facilitador e com as quais se conecte com as perspectivas das partes e as faça se
interconectarem.241 Não há poder que coloque as partes conflitantes uma diante da outra

237
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta, cit., p. 133-135, e, do mesmo autor, A linguagem da paz
em um mundo de conflitos, cit., p. 46-50.
238
Sobre essa função primaz do facilitador, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit.,
p. 12-13 e 43. Esses mesmos autores (p. 18) alertam para a necessária e indispensável neutralidade do facilitador,
que deve cultivar um nível básico e igual para com as partes do diálogo.
239
Lisa SCHIRCH e David CAMPT (Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 51-52), esclarecendo o papel do facilita-
dor, informam: “Um facilitador orienta as pessoas ao longo do processo de diálogo. Facilitadores são especia-
listas no processo, mais do que especialistas no assunto a ser conversado. Eles mantêm o foco do diálogo, ajudam
os participantes a considerar um amplo leque de pontos de vista, e resumem as discussões do grupo. Eles são
modelos de escuta ativa e fala respeitosa”.
240
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta, cit., p. 147-150.
241
Lisa SCHIRCH e David CAMPT (Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 24) ensinam que os facilitadores são a
referência no método dialogal: “servem de modelo e incentivam os participantes a desenvolverem uma ampla gama
574 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

para terem falas sinceras e escuta profunda – elas precisam ser convencidas a tomarem esse
passo. Não há saber que possa conhecer a realidade externa e interna de cada uma delas.
Isso deve ser acessado pelas suas disposições em evidenciá-las. A abordagem empática é
uma postura de atenção242 e observação compassiva do conflito e das partes envolvidas,
com compreensão e aceitação respeitosa do que delas resultar.
Desse aspecto empático extrai-se outro diferencial em face da ideologia da violência.
Nessa, o cometimento do crime (violência criminal) representa um fracasso do sistema legal
que vedava seu cometimento. Para remediar esse sentimento de fracasso, a resposta é a
“pena criminal” como violência institucionalizada e apta a “revalidar” a “ordem” e recom-
por uma pretendida (rectius, dita) “paz”. Na ideologia da não violência, ocorre exatamente
o oposto. Para evitar os efeitos da violência (criminal) já cometida, busca-se um caminho
diverso, de forma a não acrescer mais violência (institucional) ao conflito. Busca-se o con-
senso intrapartes, a fim de que o ciclo da violência cesse e, por essa razão, haja paz futura.
Todavia, essa paz pela não violência tem sentido, conteúdo e dinâmica totalmente diversos
da “paz” opressão e submissão do modelo criminal violento (persecutório-punitivo), que
sempre foi a paz estática e cujo escopo é impor o silêncio da obediência. A paz construída
pelo processo de cariz não violento é um “fenômeno dinâmico, adaptativo e transformativo,
mas que ao mesmo tempo possui contornos, propósito e direção que lhe dão forma”, consi-
derando uma relação contínua que não dessocializa o infrator e dá protagonismo à vítima e
à comunidade.243
O diálogo, por sua vez, também precisa ser compreendido, na medida em que é o
método do sistema processual criminal não violento (no qual se insere o processo criminal
transformativo), fazendo nele as vezes que a inquisitio cumpria no modelo persecutório-
-punitivo.244 Ele representa, portanto, outra profunda diferenciação em relação a esse mode-
lo. Nesse, como demonstrado por toda a Parte I deste trabalho e, ainda, identificado no
Brasil do século XXI em sua fase mais disfuncional e violenta, o método é inquisitivo e cuja
incidência, como forma de pesquisa e reconstrução dos fatos passados para identificação do
crime, adveio da inquisitio canônico-romana, repristinada pelos católicos dos séculos IX e
X, aperfeiçoada pela escolástica dos séculos XI e XII e implementada desde então e por
todas as Idades Média e Moderna, até ser, por final e ao cabo, “revolucionada” pelo sistema
misto napoleônico e dele a nós, brasileiros do século XXI, mesmo por meio do processo
penal humanizado pela introjeção dos direitos fundamentais.245

de habilidades, entre elas: escuta ativa; fala honesta e assertiva sobre experiências e opiniões e ao mesmo tempo
sensibilidade para com os outros; obediência às regras básicas do grupo para comunicação eficaz e identificação
de bases comuns. As atitudes e habilidades necessárias ao diálogo são úteis para aprimorar a comunicação em
muitas situações e são o fundamento de qualquer processo de transformação de conflitos e construção da paz”.
242
“A palavra ‘atenção’ vem do latim ‘attendere’, que significa ‘voltar-se para algo’. Tem tudo a ver com focar os
outros, que é o fundamento da empatia e da habilidade de construir relações sociais – o segundo e o terceiro
pilares da inteligência emocional (o primeiro é a autoconsciência)”. Com essas palavras, Daniel GOLEMAN
abre seu artigo “O que é empatia? E por que ela é importante” na publicação HARVARD BUSINESS REVIEW.
Empatia: Coleção Inteligência Emocional. Tradução por Rachel Agavino. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. p. 11-19.
243
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 33-35, com a citação destacada na p. 34.
244
Sobre este ponto, cf. tratamento específico no item 48.2.2, infra.
245
Sobre a inquisitio como método comum aos sistemas processuais inquisitivo e acusatório, assim como sua perma-
nência, apenas mitigada e sem modificação estrutural, no sistema garantista, v. itens 26.3 e seus subitens, supra.
Sobre sua incompatibilidade com a metodologia dialogal e a necessidade de ser o implementado no sistema pro-
cessual não violento ora proposto, v. item 48.2.2, infra.
44.  Ideologia da “não violência” 575
O diálogo, na ideologia da não violência, “é um processo de comunicação que pro-
cura construir o relacionamento entre pessoas ao partilharem experiências, ideias e infor-
mações sobre um assunto comum”.246 Visto de modo amplo, como método de comunicação
não violenta, ele se aplica a toda forma de conflito (violento ou não). Quando dirigido ao
conflito criminal, o diálogo evidencia peculiaridades que precisam ser melhor analisadas.
O diálogo deve ser um espaço seguro e garantido para as pessoas exporem sentimen-
tos e necessidades causadoras ou afetadas pela violência. Para ingressar nesse espaço, por-
tanto, são necessárias duas premissas: as partes estarem convencidas de que sua perspecti-
va, visão e valores sobre a situação premente (o crime) não são únicos e estão embebidos de
subjetividades que vão além dos dados objetivos, a princípio os únicos perceptíveis ao faci-
litador; e a segunda, desejar ouvir o outro e sua visão sobre os mesmos fatos. Só participam
do diálogo sobre conflitos as partes que queiram expor, sincera e profundamente, seus sen-
timentos e necessidades básicas e dar ao outro uma escuta respeitosa e, também, profunda.
Em síntese, as pessoas não podem se julgar corretas e detentoras da única forma de ver o
mundo. Tal posição radical não aproxima para o diálogo, afasta da não violência e aproxima-as
do modelo criminal persecutório-punitivo no qual a decisão é de um terceiro que a impõe
(agente interno na posição de sujeito do poder-saber). Rejeitar o diálogo não violento é pos-
sível e depende da decisão dos envolvidos no conflito. Essa é a principal razão de o modelo
criminal tradicional dever existir. Isso porque não aceitar o modelo não violento é submeter-se
à decisão judicial nos moldes tradicionais, porquanto para o crime sempre haverá uma res-
posta (violenta ou não).
Esse ponto faz a junção entre empatia e diálogo. A empatia não existirá e o diálogo
não se estabelecerá se não houver a consciência de falibilidade humana e de que o consenso
não está na vitória de uma ou outra parte. Nunca haverá empatia com o outro e sua posição
se a pessoa se entende certa na própria posição/convicção sobre o ocorrido no conflito. Nes-
se caso, o modelo ideal para a pessoa atuar é o modelo violento por meio da disputa entre
partes contrapostas. O imputado pode não querer ir ao diálogo com a vítima por se entender
inocente e, portanto, rejeita a escolha do modelo não violento e ingressa no sistema criminal
tradicional no qual terá que se defender. O modelo não violento também pode não se realizar
por não ter sido aceito pela vítima, que prefere esperar pela vingança da pena criminal pelo
mal que entenda ter sofrido.
O diálogo exige a empatia, e ambos partem do pressuposto de que não há “certo” ou
“errado”, mas sim algo em desequilíbrio (mesmo em situações de crimes graves) e que pode
ser transformado em conjunto, a partir de uma fala sincera e uma oitiva atenta e respeitosa.
Isso só é possível quando as partes se compreendem imperfeitas (incompletas e limitadas
por seus pontos de vista) e prontas para aprender na interação com o outro e com a visão
deste sobre o mesmo conflito. O mesmo encontro se dá quando, mesmo se entendendo cor-
retas, entendem que o diálogo pode aproximá-las para a construção de uma ação positiva e
que será, ao final, melhor que a pena criminal. A autoimagem de que somos limitados sem-
pre, pois sempre vemos o problema apenas por um (o “nosso”) ponto de vista, é fundamen-
tal ao diálogo empático.247 A (auto)consciência de nossos limites (de ação, de visão e de

246
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 8.
247
PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida, cit., p. 353-367. Esse ponto tem uma explicação voltada ao modelo
criminal não violento no item 48.2.2, infra.
576 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

compreensão) é o primeiro passo para criarmos um ponto comum para iniciar o diálogo
com outra pessoa que, como nós, também é um ser limitado mas pode nos auxiliar em nos-
sas insuficiências.248 Esse passo, no afastamento do “perfeito” e do “certo versus errado”,
facilita a mudança que ambas as partes precisam aceitar para firmarem um “consenso”.
Logo, não teremos a máxima jurídica do “dá-me os fatos que lhe dou o direito” (“da mihi
factum, dabo tibi ius”), típico das estruturas presididas pelo sujeito do saber-poder que, de
sua posição superior e não horizontal às partes, decide segundo seu “conhecimento” e im-
põe sua decisão pela força estatal de que é investido. Todo processo dialogal nasce por em-
patia e termina por consenso.
O diálogo, portanto, somente começa a partir da aceitação honesta e integral de as
partes conflitantes estarem dispostas a falar e ouvirem-se com o mesmo respeito e inten-
sidade. Embora a iniciativa para a construção do diálogo seja sempre de uma das partes
(infrator ou vítima), poderá ser provocada pelo facilitador. De qualquer forma, é certo que
o método só se estabelece e se desenvolve se ambas aceitarem estar com presença e aten-
ção totais.
Nesse contexto, é fácil diferenciar o diálogo da “aula” ou do “treinamento”. Nesses
o aprendizado vem da transferência de conhecimento de uma pessoa (professor ou técnico)
a outra (aluno, aprendiz). Não há uma “formação” conjunta do saber, mas apenas transmis-
são unilateral de informação. Também não se pode confundir diálogo com “conversação”,
pois nesta, embora haja fluência de informação de ambos os interlocutores, o propósito é a
“autoexpressão”, não a compreensão recíproca de posições divergentes em busca de um
ponto futuro, novo e construído em comunhão. A “conversação” amplia o conhecimento,
mas não a compreensão recíproca. A “discussão”, que pode ser forma de “conversação”
mais exaltada, caracteriza-se por ter como propósito exigir ou determinar a execução de uma
tarefa ou de uma aceitação. Ela em nada objetiva a compreensão, apenas uma troca de ideias
e informações para cumprir uma tarefa ou pôr fim a um problema, sem com isso resolvê-lo,
no sentido de fazer a divergência sobre ele cessar para as partes.249
O “debate”, diverso dos anteriores, assemelha-se a uma competição entre adversá-
rios cujo fim resultará em ganhadores e perdedores. A exposição de ideias e informações
tem como propósito ser a melhor, e o outro tem sua atenção à informação recebida não
para compreendê-la, mas para identificar falhas ou defeitos, de modo que, mesmo concor-
dante com ela, esgrime para derrotá-la na lógica discursiva ou por falha fática ou técni-
ca.250 O “debate” é a dinâmica utilizada nas fases desenvolvidas em contraditório do mé-
todo inquisitivo (v.g., fase instrutória judicial) – é o que caracteriza a comunicação em
contraditório das partes.251 “Debate” é o “embate” de ideias, em “paridade de armas”, que

248
Essa foi uma das razões que aproximou os seres humanos, todos imperfeitos, para, em colaboração, comple-
mentarem-se em comunidade. Sobre esse ponto, firmamos um dos pressupostos desse trabalho já no item 4.1,
supra.
249
As ideias aqui descritas estão todas em SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis,
cit., p. 9.
250
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 9-10.
251
A cultura universitária escolástica nascida a partir do século XI e que moldou a “inquisitio escolástica” (cf.
item 20, e seus subitens, supra), variação técnica da “inquisitio católica” (cf. item 14.3, supra), moldou desde então
o ensino universitário com base na metodologia da “disputatio”, que nada mais era do que uma mistura de lectio
e debate em que o mais competente na elaboração e desenvolvimento de argumentos, por meio de uma disputa
(debate) oral e público, vencia e era considerado o estudante ou professor mais capaz. Isso foi tratado no item 17.1,
44.  Ideologia da “não violência” 577
caracteriza o adversarial system, nascido da dinâmica física dos duelos e desafios cam-
pais transportados para o âmbito judicial.252 Tudo nesse contexto lembra disputa e confli-
to. Tudo, portanto, que não são a metodologia dialogal no e o sistema processual criminal
não violentos.
O cerne da diferença entre diálogo (não violento) e debate (luta intelectual até haver
vencedor) está em que aquele tem como propósito a compreensão para construção do con-
senso entre posições, de partida, divergentes. No debate, ao contrário, compreende-se o ar-
gumento alheio, mas para que seja superado e, com isso, impor o próprio do outro debatedor
(rectius, opositor), terminando com a submissão (p. ex., intelectual ou jurídica) do vencido.
No diálogo não se busca vencer, mas construir juntos. Compartilhar e não disputar é o sen-
tido básico da formação dialogal. A tabela comparativa a seguir é bastante esclarecedora253,
não obstante não tenha sido elaborada para explicar metodologias processuais distintas, mas
a diferença entre “debate” e “diálogo”:

supra, e bem demonstra como ensino universitário foi feito aos moldes da “inquisitio” não apenas como forma
de pesquisa, mas com a centralização do sujeito do saber-poder e a valorização do vencedor e não da construção
de consensos. Muito do ensino jurídico permanece assim, em muitos meios universitários, até este instante do
século XXI. José Reinaldo de Lima LOPES (O direito na história: lições introdutórias. 2. ed. São Paulo: Max
Limonad. 2002), no item 3, não por acaso intitulado “A escolástica como método – autoridade e disputa”, assim
explica como eram o sistema de ensino e o uso dos textos fornecidos pelos professores universitários de então:
“O sistema não se construiu fora de um ambiente de debates. As disputas intelectuais da Idade Média, particu-
larmente nas universidades, deram um estilo literário próprio, o estilo argumentativo dos juristas. As técnicas
de discussão escolástica demonstram o próprio método e não são um simples apêndice ou acessório. A discussão
(‘disputatio’) torna-se logo o estilo dos medievais. Assim, não só o texto de Justiniano, mas também os textos das
disputas vão começar a formar a tradição jurídica. Não só a autoridade do passado, mas as autoridades do
presente. Sumariamente, o método aparece na estrutura formal das questões escolásticas: 1) ‘quaestio’ (‘dubitatio’)
sobre uma verdade aceita; 2) ‘Propositio’ (citação de autoridades a favor da tese); 3) ‘Oppositio’ (citação de
autoridades contra a tese); 4) ‘Solutio’ (conclusão apresentada pelo debatedor, fosse ele bacharel ou doutor). As
questões disputadas em público eram, segundo Le Goff (1989:77), um torneio dos eruditos. O Mestre dirigia, mas
não disputava. Esta forma era usada nos exames para obtenção de graus, mas também para explicar e propor
teses. Um bacharel respondia a objeções feitas pelos mestres presentes, pelos outros bacharéis e pelo público
em geral. Quando havia a disputa, suspendiam-se outras aulas e atividades” (p. 129). Para nos autoindagarmos
até que ponto o ensino jurídico universitário evoluiu até nossos dias, e dele a metodologia implementada no mo-
delo criminal, vale citar um outro trecho da mesma obra, em que se traz a colação, no subitem “Como se fazia o
curso”, o relato de Onofredo, professor de direito de Bolonha em 1250, de como ministrava seu curso: “‘Quanto
ao método de ensino a ordem seguinte tem sido mantida pelos doutores antigos e modernos e especialmente por
meu próprio mestre, método que eu observarei. Primeiramente, darei resumos de cada título antes de entrar no
texto; em segundo lugar, dar-lhes-ei uma exposição tão clara e expressa quanto puder do propósito de cada lei
[que está no título]; em terceiro lugar, lerei o texto para corrigi-lo; em quarto lugar, repetirei brevemente o
conteúdo da lei; em quinto lugar, resolverei as contradições aparentes, acrescentando alguns princípios gerais
de direito, normalmente chamados ‘brocardia’, e algumas distinções ou problemas sutis e úteis (‘questiones’)
que surjam da lei com as respectivas soluções, à medida que me permitir a divina providência. Se alguma lei
merecer uma repetição, em razão de sua celebridade ou dificuldade, vou reservá-la para a repetição vespertina,
pois vou debater (disputar) pelo menos duas vezes por ano: uma vez antes do Natal e uma antes da Páscoa, se
assim desejarem. Começarei sempre pelo ‘Digestum Vetus’ perto da oitava de São Miguel [entre 29 de setembro
e 6 de outubro] e terminá-lo-ei inteiramente, com a graça de Deus, com tudo que é ordinário ou extraordinário,
até cerca de meados de agosto. Começarei o ‘Codex’ sempre por volta de duas semanas depois de São Miguel e,
com a graça de Deus, terminá-lo-ei, com tudo que é ordinário e extraordinário, por volta de 1° de agosto. Anti-
gamente os doutores não ensinavam (liam) as partes extraordinárias. Comigo, porém, os alunos, até os ignoran-
tes e novatos, saem lucrando pois ouviram todo o livro e não será omitida coisa alguma como se costumava fa-
zer. Pois o ignorante pode tirar proveito da exposição do caso e do texto, e o mais avançado pode adestrar-se
melhor nas sutilezas das questões e oposições. E lerei todas as glosas, o que não se costumava fazer no meu
tempo’” (p. 127).
252
Sobre as raízes, dinâmica e estabelecimento do adversarial system no processo penal inglês e sua natureza de
embate entre partes de mesma capacidade de “luta judicial”, v. item 25.2.2.1, supra.
253
Extraída de SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 11.
578 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Tabela 2.  “SCHIRCH-CAMPT”. Diferenças entre debate-diálogo


Debate Diálogo
O objetivo é “ganhar” a discussão mantendo sua O objetivo é compreender as diferentes
própria visão e desacreditando a dos outros. perspectivas e aprender sobre a visão dos outros.
As pessoas escutam as outras para encontrar As pessoas escutam as outras para compreender
defeitos nos argumentos. como as experiências formaram suas crenças.
As pessoas criticam as experiências dos outros As pessoas aceitam as experiências dos outros
como sendo distorcidas ou inválidas. como verdadeiras e válidas.
As pessoas parecem determinadas a não mudar As pessoas parecem em certa medida abertas a
seu ponto de vista sobre o assunto. compreender melhor o assunto.
As pessoas falam com base em pressupostos
As pessoas falam fundamentalmente a partir de
que formam sobre a posição e a motivação do
sua própria compreensão e experiência.
outro.
As pessoas estão em oposição e tentam provar As pessoas cooperam para construir uma
que o outro está errado. compreensão comum.
Emoções fortes como raiva e tristeza são
Emoções fortes como a raiva são muitas vezes
apropriadas quando expressam a intensidade de
utilizadas para intimidar o outro lado.
uma experiência ou crença.
Fonte: SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis: um guia prático de aplicação imediata.
Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2018. p. 11.

Dito do que o diálogo se diferencia, e, de modo especial, por que ele não está no
sistema processual penal tradicional − tenha ele, nas suas adaptações, vieses mais ou menos
adversariais −, resta esclarecer, mesmo que de forma breve, qual seu papel na ideologia não
violenta, como se caracteriza nesse ambiente, suas fases, quem sãos seus agentes internos e
suas respectivas funções.
O diálogo visa ajudar as partes do conflito a terem maior e melhor compreensão de
seus próprios pontos de vista, pela ampliação trazida e recebida da percepção do outro. Essa
complementação de perspectivas da vida se dá pela interação de ideias, sentimentos e valo-
res em uma relação horizontal, mesmo entre pessoas com peculiaridades diversas entre si.254
O diálogo visa, pois, à troca por aproximação empática; um crescimento pela interação,
portanto.
O diálogo não pressupõe uma homogeneidade de pensamentos ou de posicionamen-
tos diante das experiências ou acontecimentos da vida. Ao contrário, sabe de partida que as
partes em conflito estão em posições opostas (vítima, ofensor) na violência ocorrida (cri-
me), mas busca evidenciar pontos e propósitos comuns. A identificação e criação destes é o
principal objetivo do diálogo.
Crescer em conjunto parte do pressuposto de que há margem ao aprendizado e que
este advém da outra parte, que não é inimigo (ou não deve ou precisa ser um “eterno inimi-
go”), apesar de ter provocado o trauma.255 Para os integrantes do conflito, a aproximação
inicial é o resultado de um convencimento que somente terá sucesso se conseguir expor que
podem caminhar e construir para além daquele trauma; de que vale a pena superar essa

254
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 19-21.
255
Nesse sentido, v. ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 65-68.
44.  Ideologia da “não violência” 579
marca negativa para que a vida continue de forma positiva. O trauma, portanto, não é bar-
reira intransponível, mas ponto de partida para a visão de algo comum e mais positivo da
situação em que se encontra no ou pós-crime.
Os pontos de vista das pessoas em diálogo têm valores e explicações que sempre
partem e vão além do dado objetivo, pois trazem, são informadas e se manifestam por sen-
timentos que precisam ser expostos em suas realidades parciais – as “verdades” de cada
qual. Identificar e acessar, por exposição ou provocação, esse plano onde os sentimentos se
dão e justificam os dados objetivos da conduta é outro diferencial do diálogo em face do
debate entre contendores. Esse procura alienar a conduta sob julgamento das emoções por
meio de narrativas objetivas ou objetivadas; quem nunca ouviu em salas de audiências “va-
mos ser objetivos e nos ater aos autos!”. As necessidades e os sentimentos, presentes e de
importância fundamental no contexto do conflito (surgimento, ocorrência e, portanto, aten-
dimento), somente no diálogo podem revelar-se “essenciais” e, portanto, causadoras de frus-
trações e traumas às pessoas envolvidas no conflito. As mesmas necessidades para pessoas
diversas podem ter importâncias diferentes (p. ex., uma bicicleta ou um carro, que para uns
podem ser meio de diversão e prazer, para outros podem ser o único instrumento de traba-
lho), não obstante haja algumas necessidades que são básicas a todos (p. ex., integridade
física e mental, salubridade, alimentação e educação). Por isso, como já analisado neste
mesmo item, a empatia do facilitador e a que ele deve despertar e manter entre as partes
deve durar por todo o diálogo. Ela é a única forma de as partes se tornarem acessíveis e
acessarem essa dimensão no outro por meio de escuta profunda e fala sincera.256
O diálogo, portanto, mostra-se como situação dinâmica e complexa a precisar de
técnica e cuidado na sua preparação, realização, desenvolvimento e encaminhamento para
a resposta em uma ação positiva. Todas essas fases carecem de pessoas diversas das partes
e externas ao conflito; mas é importante frisar que não é indicado que pessoas sem o devido
preparo formativo e informativo, assim como técnico e prático, tentem exercer tal papel.
Também por isso os que tiveram uma formação jurídico-universitária tradicional não po-
dem desempenhar tais funções.
Quanto às funções a serem desempenhadas para o método dialogal, o ideal é haver
um organizador, um planejador e um facilitador do diálogo, pois há muitos cuidados e pre-
paros para ele resulte em um consenso final.257 Isso não significa dizer que as funções de-
vam ser sempre exercidas por pessoas diferentes. É o recomendável, mas não é impositivo.
O ideal é que pessoas preparadas para as diversas funções atuem no papel para o qual se
entendam mais aptas na agência (pública e/ou privada ou público-privada) de realização do
diálogo ou mesmo em face do caso concreto.258
Aponta-se que os diálogos para resolução do conflito podem ter, basicamente, qua-
tro fases. A primeira dirige-se a estabelecer intenções e normas a serem definidas em co-
mum entre facilitador e participantes. Desse modo estarão vinculados e terão melhor ade-
rência às regras e saberão, com antecedência e prévia concordância, a que ponto querem
chegar. A segunda consiste, já iniciado o diálogo, no momento de partilhar experiências e

256
SCHIRCH, Lisa e CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 43-48.
257
SCHIRCH, Lisa e CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 11 e 37. Sobre o tema, cf. item 48.3.2,
infra.
258
Sobre a indicação de necessidade de novas agências e agentes e de uma nova construção de não predominância ou
preponderância entre o público e o privado, mas de interação entre ambos para um fim comum, cf. itens 46.3,
48.3, e seus subitens, e 49.1.1, infra.
580 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

percepções a fim de identificar as diferenças e criar pontos comuns a partir dos quais se
começa a construção do consenso. Nessa fase há apresentação das pessoas, estabelecimen-
to da dinâmica da narrativa de experiências que, mesmo não tendo relação com o ponto
premente do conflito (crime), podem aproximar pessoas e indicar ao facilitador o grau de
dificuldade para a fase seguinte. A terceira fase costuma ser a emocionalmente mais difícil
a todos, inclusive ao facilitador, mas é de seu bom trabalho que depende o sucesso do diá-
logo; nela as partes do conflito se encontram com pontos de partida diversos e buscam um
ponto de convergência para começarem a construir um possível entendimento comum.
Nessa terceira fase, as técnicas e a sensibilidade emocional do facilitador permitem-lhe
improvisar instrumental diverso do orientado pelo planejador, desde que vinculado ao pro-
pósito estabelecido por todos. Costuma ser a fase mais demorada e a que pode apresentar
maiores interrupções a depender dos níveis de traumas e dores trazidas ao contexto do
conflito criminal discutido. A quarta e última fase compreende o encaminhamento de
possíveis soluções, que devem ser ações positivas na visão e para a vida das pessoas con-
flitantes, mas sempre com a percepção de que seus atos deverão ter reflexos na comunida-
de e, portanto, eles devem ser discutidos e analisados com esta outra possível projeção de
efeitos intrapartes e social.259
Como se percebe por todo o exposto sobre diálogo, ele não existe em um ambiente
hierarquizado; logo, nele não pode haver qualquer sujeito do poder-saber que determine o que
se decidirá e qual é a solução “correta” (para ele). Não foi feito para isso, pois pressupõe um
aprendizado recíproco, após a consciência de que uma única visão de um conflito não é capaz
de possibilitar toda a sua compreensão, assim como também não é capaz de expor todos os
sentimentos e traumas que o envolvem e foram por ele produzidos. O diálogo não aceita a
imposição de visões ou posturas unilaterais. É, essencialmente, um processo de construção
colaborativa e empática de ação para seus próprios integrantes e que, como membros sociais
ativos, refletirá na comunidade à sua volta.260 Por essa razão é o único método aceito e defen-
dido por quem trabalha com a não violência, mesmo que utilizando diferentes práticas e dinâ-
micas para sua realização (p. ex., práticas restaurativas ou de mediação).
O diálogo não se coaduna com uma estrutura de dominação261, não obstante parta,
sempre, de uma violência conflitual que precisa ter sua responsabilidade assumida pelo
infrator e uma sua ação positiva para reduzir seus efeitos na vítima e na comunidade. A ví-
tima passa a ser protagonista da preocupação, e o perpetrador da violência, ainda uma pes-
soa integrante da comunidade que pode e, na maior medida possível deve, ser mantido
pessoal e socialmente útil e integrado no corpo comunitário em decorrência exatamente
daquela postura que assumiu (responsabilizar-se) e de conduta (ação positiva) que se dispõe
a ter em oposição à anterior e violenta.

259
O descrito neste parágrafo é uma síntese, limitada aos interesses deste estudo, do mais amplamente desenvolvido
por todo o Capítulo 5 (“Como delinear o processo do diálogo”) de SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para
assuntos difíceis, cit.
260
Lisa SCHIRCH e David CAMPT (Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 75), após trazerem inúmeros exemplos
de suas intervenções em conflitos de todas as proporções e as ações positivas que deles resultaram, inclusive em
conflitos violentos e armados internacionais, têm-no como “uma metodologia para promover transformações
sociais”.
261
Sobre essa estrutura como forma de a violência se espalhar em vários âmbitos por razões diversas (p. ex., contro-
le político, racismo, dirigismo econômico ou religioso, marginalização ou exploração pela opressão a determina-
dos grupos de pessoas por critérios sociais ou sexistas), cf. item 43.2, supra. No mesmo sentido, v. ROSENBERG,
Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 61-68.
45. A não violência como axioma de novo espaço político-criminal 581
45. A não violência como axioma de novo espaço político-criminal: razões e
vantagens de mudança do “objeto-problema”
A ideologia da não violência dá visibilidade, define e, com isso, projeta o ponto onde
deve estar o foco de toda a atividade da política e do modelo criminais não violentos: iden-
tificar, compreender, abordar e tratar para eliminar ou pelo menos reduzir a “violência”.262
Esse é o desafio comum e a ser suplantado por todos os integrantes da sociedade.
Pode-se divergir sobre se um determinado comportamento deve ou não ser considerado
indesejado ou criminoso;263 pode-se divergir sobre a intensidade e o modo de qual melhor
ou pior reação a ele; pode-se divergir sobre a melhor prática para compreender, abordar e
tratar a violência envolvendo do conflito (criminal). Todavia, ninguém diverge quanto a ser
a “violência”, em qualquer de suas formas, o fator deletério à convivência social. É neste
ponto que o trabalho foca e para o qual dirige suas estratégias: aproximar-se e cuidar do que
há de pior (a violência), sem aumentá-lo.
A não violência, portanto, coloca-se, para esse novo espaço de política criminal e
para o novo modelo criminal que deste advirá, como um “axioma”264. Uma “premissa evi-
dente” que, tomada em seu conteúdo sociopolítico, revela um ganho por todos desejável:

262
Sobre a mudança de “objeto-problema” da política e do modelo criminais não violentos, cf. item 44.2, supra.
263
Os abolicionistas penais, integrantes de uma linha teórica nascida da criminologia crítica, apontam para uma des-
legitimação do sistema penal já a partir da construção, para eles sempre dirigida e artificial, do “crime” e a pena a
ele atribuída. A partir e já desde este ponto, defendem, com maior ou menor radicalismo, a eliminação do sistema
penal tradicional por não cumprir os fins a que se propõe e, ainda, produzir mais desestabilidade social. Como re-
ferências dessa corrente abolicionista penal, v. CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução por
André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2011, notadamente Capítulo 1,
“O crime não existe”; e HULSMAN, Louk, em coautoria com CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o
sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Niterói: LUAM, 1993, notadamente itens 7, 11 e 32-34.
Gabriel Ignacio ANITUA (Historias de los pensamientos criminológicos. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2005.
p. 432-434), sobre esse ponto, faz precisas considerações a partir do pensamento de Louk Hulsman: “Hulsman, –
diz o pensador e criminólogo argentino – que era professor de direito penal, esclareceu que essas possíveis ‘alter-
nativas ao sistema penal são, em primeiro lugar, alternativas à maneira pela qual o sistema criminal define os
fatos’. Este autor colocou ênfase especial na questão das definições. Não usaria a expressão ‘crime’, mas a de
‘situação problemática’. Também não deveria ser necessário falar em ‘criminologia’. Sobre esse assunto, se dete-
ve em uma conferência de 1986 publicada como ‘Criminologia crítica e o conceito de crime de crime’. Ali volta a
observar que um dos problemas do sistema penal é o descontextualização de situações problemáticas e sua re-
construção em um contexto alheio às vítimas, aos ofensores e aos outros indivíduos O sistema penal cria individua­
lidades irreais e uma interação ficta entre elas e define as situações de problema ou conflito de acordo com as
regulamentações e necessidades organizacionais do sistema penal e suas agências burocráticas. As partes envol-
vidas no problema não podem influenciar na sua resolução ou continuação, uma vez que é definido como ‘crime’,
e isso é atribuição dos ‘especialistas’ do sistema penal. O resultado disso, além de não satisfazer a nenhuma das
partes envolvidas no problema, gera novos problemas, como a estigmatização, a marginalização social, etc.”
(p. 433, traduzimos). Sobre a interação do abolicionismo penal e do minimalismo penal dentro da criminologia
crítica, em uma estratégia comum de apontar, por diferentes premissas e chegadas, à deslegitimação do sistema
penal tradicional – neste trabalho denominado “modelo criminal tradicional” ou “persecutório-punitivo” –,
v. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas, cit., notadamente Capítulos 2 e 3.
264
No sentido etimológico, “axioma” decorre “do latim ‘axioma -atis, derivado do grego, axioma – atos” (cf. CUNHA,
Antônio Geraldo da. Axioma. In: Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 87). Filosoficamente, o termo representa uma “premissa imediatamente evidente,
que se admite como universalmente verdadeira, sem exigência de demonstração” (idem). Ainda, José FERRATER
MORA (Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 60) empresta-lhe o sentido aristotélico, que
ainda perdura entre nós, segundo o qual axiomas são “proposições irredutíveis, princípios gerais aos quais todas
as demais proposições se reduzem e nos quais estas últimas necessariamente se apoiam. Desde esse ponto de
vista, ao destacar a evidência própria do axioma, tende-se para uma espécie de intuicionismo psicológico”. Em
nosso vernáculo o termo possui o mesmo sentido, pois é visto como “1. Afirmação que não exige prova para que se
considere verdadeira. 2. Expressão com um sentido geral ou um princípio moral” [GEIGER, Paulo (org.). Novíssimo
Aulete, cit., p. 186].
582 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

diminuir a violência (social) por uma abordagem à violência (criminal) sem acrescer-lhe
mais violência (institucional) e transformar a violência (criminal) em ação individual e so-
cialmente positiva para inclusive atingir outros focos de violência (social) diverso do crime.
Logo, deve ser intransigível e irredutível premissa no novo âmbito juspolítico que se dese-
nha a partir deste estudo.265
Neste trabalho, voltado em seu sentido final à área processual, a não violência é
axioma orientador de processos de respostas e transformação apenas do conflito crimi-
nal.266 Em sua concepção e potenciais, a não violência tem outras extensões e incidências
indo desde crimes entre nações ou etnias267 até outras espécies de conflito não classificados
como crime. Mas, neste trabalho, ela está dirigida ao âmbito da violência criminal.
Feitos esses cortes metodológicos e reafirmada a centralização da “violência envolven-
te”, e não do binômio “crime-pena”268, como foco do sistema processual criminal não violento
e, por conseguinte, do processo criminal transformativo, resta esclarecer dois aspectos que se
deve ter de partida no estudo do modelo criminal não violento: o primeiro, de que a mudança
pelo agir não violento deve ser uma opção política feita a partir de dentro da formação daque-
le novo modelo criminal, sendo, pois, uma escolha constitutiva; segundo, que, para esta esco-
lha, a centralização da compreensão e foco na violência que se deseja reduzir traz vantagens
à formação e expansão desse modelo de forma organizada e coerente.
Este trabalho trouxe ao contexto toda a realidade da crescente criminalidade exis-
tente no Brasil atual, de forma que ela a considera e envida esforços para uma construção
teórica que a reduza.269 A diminuição dessa criminalidade é buscada por duas vias: a pri-
meira, não haver uma retroalimentação da violência criminal pelo incremento da violência
institucional (pena criminal e persecução penal); a segunda, pela atuação processual trans-
formadora em produzir ações positivas por parte dos infratores para a vítima e o meio co-
munitário que sofreu os efeitos da violência praticada e, em um segundo momento, alimen-
tar as políticas públicas com informações precisas do que e em que medida podem atuar
para neutralizar ou mesmo evitar violências sociais que, mesmo não sendo crimes, podem
ser fatores criminógenos.
De qualquer modo que se examine essas duas vias, percebe-se que o trabalho preten-
de reduzir a violência social a partir de dentro do novo modelo criminal, especificamente

265
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência, cit., p. 31-32) traz Kant e suas máximas, em vários sentidos,
em seu estudo da não violência, não sendo equivocado entender sua posição ideológica partindo da mesma posi-
ção de “imperativo categórico” criada por este filósofo prussiano. No mesmo sentido, v. John R. FULLER (Cri-
minal justice, cit., p. 57).
266
John R. FULLER (Criminal justice, cit., traduzimos todos os trechos que seguem em destaque), utilizando a não
violência no sentido kantiano, também a toma como base para a construção de seus estudos, porém com algumas
diferenças em relação ao ora proposto. O referido criminologista propõe uma “pirâmide da pacificação” que fun-
ciona como “um modelo para a consideração de solução para problemas de justiça criminal, é formulada como
um tipo ideal da tradição Weberiana” (p. 55). Isso significa que esse “é um modelo para comparação independen-
temente de qualquer política de justiça criminal ser capaz de alcançar toda as suas condições” (p. 55), pois o autor
estabelece seis níveis diversos para sua compreensão/implementação e, portanto, a depender do atingimento do
nível nessa sua construção, haverá mais ou menos consecução de seu ideal pacificador. “A base da pirâmide repre-
senta o mais fundamental princípio da pacificação: a não violência. O sistema de justiça criminal não deve usar
coerção, força excessiva ou a pena capital em nome da justiça [...]. Não importa quais outras características lou-
váveis a política pública envolva, se a violência é aceita, essa não é uma política de pacificação” (p. 55).
267
Estes seriam o que Johan GALTUNG (Transcender e transformar, cit., p. 6-7) denomina de “macroconflitos” e
que já expusemos no item 44.3, supra.
268
Sobre esse ponto, v. item 44.2, supra, quando tratamos da substituição do “objeto-problema” do modelo tradicio-
nal para o ora proposto.
269
Cf. todo Capítulo VII e item 39, e seus subitens, supra, sobre o tema.
45. A não violência como axioma de novo espaço político-criminal 583
pela atuação processual não violenta. Logo, as considerações seguintes partem da perspec-
tiva do sistema processual não violento como gênero a uma gama de práticas não violentas
que existem e ainda devem surgir. Desenhar essa teoria é traçar os limites claros e seguros
para a liberdade de atuação sem interpenetrações de institutos, agentes ou mentalidade for-
mada para atuar no modelo da ideologia da violência. Para essa delimitação, centrar atenção
na violência traz vantagens para se definir as premissas de um atuar não violento: clareza na
visão do “objeto-problema”; autoconscientização de que todos somos iguais quanto à cultu-
ra e educação recebidas e, portanto, somos potencial e constitutivamente violentos; a violên-
cia é algo real, não artificial e deve ser assim tratada; segurança de que desde a estrutura
(instrumentos normativos e agências) e das instituições das práticas não haja indevida inter-
penetração da ideologia da violência.
Para se explicar tais pontos deve-se ter uma compreensão um tanto contraintuitiva:
atuar de modo não violento para reduzir e eliminar os efeitos negativos da violência prati-
cada ou das causas de violências futuras exige ter presente que ela tem profundas e longín-
quas raízes culturais até nossos dias, desde nossa criação até nossa educação profissional e
social.270 O véu com que a violência nos cobre e nos envolve, por meio de suas justificativas
e lógicas da vingança e do poder271, precisa ser percebido e levantado a partir de (dentro de)
nós. Dessa constatação percebe-se que o ser humano não é apenas seu perpetrador (meio de
realização), mas, também, é seu agente transformador (meio de transformação). Focá-la,
para precisar suas causas e efeitos, permite entender a origem de muitos medos e inseguran-
ças dentro dos quais fomos todos educados e quanto deles se escondem em nós por serem
mal percebidos.
Este ponto de igualdade humana coloca-nos, todos nós, como violadores e violados,
sendo a todos comum utilizarmos a cultura que mistifica as violências (nossas e de outrem)
em uma rede (auto)justificante que, por transmutação, torna-a de negativa e cruel em “justa”
ou “legal”.272 Quebra-se, assim, um paradigma do modelo criminal persecutório-punitivo:
a eterna luta do “nós contra eles”, dos “bons contra os maus”, dos “legais contra os crimino-
sos”; sempre à mercê de quem controla e dita em qual lado cada um está.273 Essa é o primei-
ro ganho para a construção da teoria da não violência processual.
Outra vantagem associada à precedente é que a autoconscientização de sermos for-
mados e informados a partir da mesma educação para a violência nos permite escolher
apreender uma nova forma de ser. Abre-se a possibilidade de escolhermos desenvolver a
empatia pelos (também) seres humanos (imperfeitos) envolvidos no conflito. Afinal, somos
fruto de uma mesma cultura e sociedade e reagimos da mesma forma diante dos conflitos
interpessoais e mesmo intrapessoais. (Auto)consciência e (re)educação permitem-nos ver e
escolher sermos menos indulgentes (sob as mais variadas justificativas) com a (nossa pró-
pria) violência (de diferentes níveis, legal ou não) e mais compreensíveis com as violências
dos outros. Diminuir a violência social de imediato está ao alcance de escolhermos diminuir

270
Cf. item 43.1, e seu subitem, supra. Neles demonstrou-se, por exemplo, que já havia violência e uma cultura e
tradição que a promoviam e a honravam muito antes de se imaginar o “crime” e a “pena”. Esses, objeto de preo-
cupação menor, são na verdade expressões daquela, portanto, tê-la em atenção expõe as causas e natureza daque-
le binômio como o foco de nossa preocupação.
271
Sobre as justificativas e os efeitos que elas causam, cf. item 43.2, supra.
272
Sobre as justificativas usadas pelos agentes internos do aparato criminal, assim como dos criminosos, cf. item
43.2.1, supra.
273
O prius de que que está no poder é sempre o “bom” ou o “dentro da lei” e os “outros” são os criminosos/inimigos
alimentou toda do modelo criminal tradicional, cf. Parte I, supra.
584 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

a “nossa” própria violência, seja ela protegida pela lei ou não; ela é, em si (ontologicamente),
ato lesivo a outrem, não obstante a etiqueta (estigmatizante ou não) que tenha. Minha esco-
lha por mudança me legitima a estimular a outrem que o faça ou que reverta os efeitos ne-
gativos da violência que tenha cometido. A atuação não violenta diante de um conflito cri-
minal já ocorrido deve começar pelas ações dos novos agentes internos desse modelo
criminal alternativo. É a única forma de eles estabelecerem horizontalidade relacional sem
estigmas prévios aos infratores e novas vitimizações (vitimização secundária) em relação à
pessoa violada. Essa é a vantagem do objetivo do modelo criminal não violento: fazer cessar
as violências, começando pelo próprio conflito criminal, e estabelecer empatias. A escolha
pela (auto)transformação é o primeiro passo na direção de se conseguir ver as necessidades
básicas de todos envolvidos no conflito criminal para além da violência praticada e, portan-
to, saber o que precisa ser atendido, restaurado, compreendido, honrado na dor da vítima e
estimulado na ação positiva do infrator. Vítima e infrator, assim como seu entorno de pes-
soas também (direta ou indiretamente) atingidas deixam de serem excluídos comunitaria-
mente ou não atendidos em suas necessidades. A empatia nascente e praticada pelos agentes
para com os envolvidos no conflito é o segundo passo para despertar-lhes empatia recípro-
ca, que é a única forma para um diálogo respeitador e transformativo.
Essas vantagens anteriores relacionam-se com uma outra. A percepção de que a
violência não é algo artificial, mas real e fenomênico. Ser violento não repousa em se discu-
tir se tal ou qual comportamento atende ou não requisitos legais ou preenchem as exigências
mínimas para ser “crime” e seu autor ser uma pessoa “punível”. O foco não é dogmático
artificial, mas natural e ínsito a todos nós, assim como também são reais as causas e efeitos
que a envolvem. Com o fim dos maniqueísmos acima apontados (p. ex., “bom e mau”, “cri-
minosos ou não”), cessa a manipulação discursivo-dogmática dos ambientes jurídico-criminais
ao sabor dos interesses dos ocupantes do poder. A violência passa a ser algo muito menos
complexo cientificamente, o que permite a pessoas que não tenham formação jurídica atu-
arem com as habilidades socioemocionais e inter-relacionais que despertem autocompreen-
são, empatia com o outro e disposição ao diálogo franco para cessar e transformar seus
efeitos.274 As atuações e os efeitos passam a se dar em ambiente comunitário e mais próximo
aos envolvidos no conflito, que voltam a ter um protagonismo orientado por esse terceiro
com habilidades específicas e treinadas para isso.
Outra vantagem, ainda a se destacar pelo exame a partir da violência, é que as insti-
tuições (estrutura e agências) concebidos ao modelo criminal persecutório-punitivo não de-
vem ingressar sem a devida e profunda filtragem do axioma da não violência. “Pena crimi-
nal” e o “sistema processual penal persecutório”, com as finalidades e pela metodologia
empreendidas, não têm incidência neste outro modelo.275
A teoria que se apresenta neste estudo, portanto, também a partir da consciência da
história, ideologia, metodologia e teleologia da violência que permeia e constitui todo o
modelo criminal persecutório-punitivo, visa a construção de uma base apta a orientar, orga-
nizar, filtrar e promover o desenvolvimento de práticas não violentas cujas especificidades
se encaixem melhor às várias formas e tipos de violência e pessoas envolvidas no “fenôme-
no criminal”. Ela não visa limitar o surgimento ou difusão das práticas existentes e outra

274
O perfil desses novos agentes para o novo modelo criminal não violento, assim como suas novas habilidades,
técnicas, funções e metodologia de atuação, serão tratados no item 48.3, e seus subitens, infra.
275
Cf. itens 48 a 50, infra.
45. A não violência como axioma de novo espaço político-criminal 585
que ainda possam surgir. Ao contrário! Com a mesma consciência de que se tratam de dois
modelos que não podem misturar-se, sob pena de a maior historicidade e peso da violência
fagocitar, progressiva e imperceptivelmente, as novas instituições que se quer criar, ela ser-
viria de arcabouço teórico comum e, simultaneamente, sistema de segurança àquelas práti-
cas não violentas já consolidadas ou ainda em formação.
Servirá de arena para a discussão e organização de padrões e técnicas que garantam
uma efetiva potencialização da abordagem não violenta para transformação do conflito;
torná-lo oportunidade de um estado individual de atenção e cuidado e um relacionamento
interindividual e comunitário de ações positivas.
Se essa teoria ora apresentada nasce da ausência de uma organização de ideias e
articulação de ações alinhadas com o axioma da não violência e que seja capaz de atender
não a uma específica prática, mas a todo um novo campo político-criminal não aberto apto
a recepcionar muitas práticas não violentas, ela deve se demonstrar um continente no qual
atuem com segurança práticas não violentas específicas.276 Coloca-se, portanto, na contin-
gência de preencher um vazio teórico para organização e segurança ideológicas do que há,
mesmo incipiente, e do que esteja por emergir. Ser uma estruturação maior que proteja as
iniciativas não violentas dos avanços fagocitários de institutos e agências do modelo crimi-
nal persecutório-punitivo.
Para a elaboração teórica que possa dar essa pretendida organização, sentido e segu-
rança é relevante demonstrar quais são as diretrizes fundantes desde o plano político-criminal
e se elas passam por uma verificação de constitucionalidade e garantem uma maior efetivi-
dade de direitos aos cidadãos.
Sem a ambição de definir e dar todas as respostas e fazer todas as propostas ao enor-
me desafio de se conceber uma política criminal, um modelo criminal e seus sistemas – um
trabalho para muitos pesquisadores e técnicos −, o desafio a que se propõe este trabalho é a
harmonização dos saberes da ideologia da não violência, de práticas já existentes e das ciên­
cias criminais conjuntas para traçar as linhas mestras daqueles âmbitos do aparato criminal
não violento voltados especificamente a um novo sistema processual criminal. Mostrar um
caminho possível e que deverá ser engrandecido com futuras e promissoras contribuições
de vários pensadores, pesquisadores e práticos de diversas áreas; sempre se nossa ideia
mostrar méritos para angariar interesses e desenvolvimentos futuros. O que se quer mostrar
é que existe, sim, um novo caminho, com muitos novos campos a semear em seu percurso.
É ao que se dá início a partir do próximo capítulo.

John R. FULLER (Criminal justice, cit., p. 48) sentiu o mesmo problema indicado no texto: “Tomadas em conjun-
276

to, as tradições religiosa e humanista, feminista e crítica providenciam uma fundação material para a perspec-
tiva da pacificação. Mas mais trabalho precisa ser feito se esse modelo de política pública desafiará seriamente
a dominante guerra ao crime como modelo em voga” (traduzimos). Não obstante tal posição, com a qual concor-
damos, o criminólogo, diversamente de nossa posição, procura inserir suas ideias no modelo criminal persecutório-
-punitivo, o que, em nossa visão, não trará resultados profícuos, pois parte de base e se destina a finalidades di-
versas. Contudo, estamos perfeitamente alinhados com o autor quando ele ressalta que o modelo não violento
somente poderá ser reconhecido e respeitado a partir de sua melhor estruturação e consistência teórica: “O pro-
blema com a falta de aceitação da perspectiva da pacificação por praticantes da justiça criminal e pelo público
em geral é que as fronteiras da pacificação não foram determinadas, e suas muitas facetas não foram clara-
mente articuladas e fixadas por criminólogos” (p. 54, traduzimos e destacamos).
CAPÍTULO X

Política criminal não violenta


e sua conformidade constitucional

SUMÁRIO: 46. Política criminal da não violência: diretrizes ao modelo crimi-


nal não violento (p. 588): 46.1 Existe uma criminologia da não violência(?):
necessidade de partir de uma abordagem científica e peculiar ao novo mo-
delo criminal (p. 592); 46.2 Diretriz material da política criminal não violen-
ta: a supressão da “pena criminal” no modelo criminal não violento (p. 598);
46.2.1 Política criminal não violenta como orientadora do novo paradigma de
resposta ao crime sem aplicação da pena criminal: a ultima ratio como diretriz
de prestígio ao modelo não violento (p. 606); 46.3 O modelo criminal não vio-
lento precisa de estruturas e agências próprias: razões para alguns elementos
elaborados e desenvolvidos ao modelo criminal violento não sejam aprovei-
tados (p. 612); 46.3.1 A transação penal (art. 76, Lei n. 9.099/1995): tentativa
“quase” não violenta cuja inserção no modelo criminal violento privou-a de
maiores e melhores ganhos sociais e individuais; a vítima se mantém excluí­
da e a cultura punitiva dirige agências e estruturas (p. 618); 46.3.2 “Justiça
restaurativa”: uma tentativa verdadeiramente não violenta em iminente ris-
co (p. 624). 47. Consonância entre a política criminal da não violência e a
Constituição: um aumento de efetividade ao cidadão e à sociedade (p. 633):
47.1 Empuxo internacional da não violência pelo instrumental restaurativo e
seus reflexos no Brasil do século XXI: normativas e projetos de lei (p. 643).
46. Política criminal da não violência: diretrizes ao modelo criminal não violento
Como exposto na Parte Introdutória sobre política criminal, ela busca em dois pla-
nos distintos os elementos de formação de seu conteúdo: o plano político e o plano dos sa-
beres criminais.1 Do plano político, haure os valores socialmente relevantes e as necessida-
des básicas a serem garantidas a todos. Do plano criminal advém o cabedal científico
construído pelos vários saberes que compõem sua ciência conjunta2. Os valores e necessi-
dades passam por escolhas, assim como também são escolhidas as formas de priorizá-los,
organizá-los e efetivá-los. A política criminal, como todo ramo político, é um ambiente de
escolhas.
Como também demonstrado anteriormente3, durante os últimos milênios, as esco-
lhas sempre estiveram dentro de um mesmo modelo criminal persecutório-punitivo orien-
tado pela ideologia da violência: punir ou não punir; punir mais ou punir menos. Tudo gira
ao redor de mais ou menos violência institucional (pena criminal e processo persecutório),
independentemente do sistema processual penal (do julgamento ou premial-negociado; em
suas versões mitigada ou intensa).4 Nunca houve, portanto, escolhas entre ideologias ou
modelos, mas apenas quanto a variações e velocidades dentro do único modelo e, por isso
mesmo, orientado sempre pela ideologia (também única) da violência.5
A ideologia da não violência, a partir da qual se constroem as bases para as propos-
tas deste estudo, indica outra direção. Se aceita, ela exige um modelo criminal ao feitio de
seus propósitos (reagir à violência por meios em si não violentos, e transformá-la em algo
positivo para os conflitantes e o meio social em que se inserem) e por meio de metodologia
dialogal.6 O proposto por meio deste estudo, portanto, não é de escolhas e alterações “no”
modelo criminal tradicional, mas de “alternativa” (outro, novo, mais um) ao modelo crimi-
nal cujas diretrizes formativas e informativas são diversas: a não violência.7

1
Cf. item 6, supra.
2
Sobre nossa percepção de “ciência criminal conjunta” e os saberes que a compõem e como se articulam, mais uma
vez vale remeter ao item 2, supra, pela fundamentalidade da abordagem em um trabalho processual penal, o que
não é comum na doutrina nacional.
3
Para origens e desenvolvimento do modelo criminal persecutório-punitivo, v. Parte I, supra, e, para sua disfun-
cionalidade e contribuição para a espiral da violência social, especialmente criminal e institucional, no Brasil
deste século XXI, v. Parte II, supra.
4
Sobre nossas considerações de todos esses sistemas processuais integrarem o mesmo modelo criminal persecutório-
-punitivo, variando apenas de intensidade, cf. item 26.4 e 27.1, supra. Para uma visualização esquemática, cf. Dia-
grama 1, supra, p. 368.
5
Cf. itens 26.3 e 26.4, supra.
6
Cf., respectivamente, itens 44.2 e 44.4, supra.
7
Nesse ponto divergimos de John R. FULLER (Criminal justice: a peacemaking perspective. Boston: Allyn and
Bacon, 1998). Embora ele afirme que o modelo tradicional não pode ser excluído, já que isso abriria espaço para
mais injustiças e a perpetuação de dominação dos mais fortes e opressão dos mais fracos – com o que concorda-
mos −, quer inserir suas propostas nele, na expectativa de que possa mudar. Ocorre que toda a densidade e a força
cultural da violência existente e produzida pelo modelo tradicional transmudarão, como já ocorrido entre nós com
os institutos da Lei n. 9.099/1995, qualquer ideia de não violência em mera mitigação ou arrefecimento punitivo,
46.  Política criminal da não violência 589
A inserção da não violência no aparato criminal deve se iniciar desde a política cri-
minal e sua inter-relação com modelo criminal. Política criminal tem espaço e conteúdo
maiores, por ser espécie de política pública8, e é dentro dela que o modelo se forma e é in-
formado por diretrizes. Em contrapartida, é ao modelo criminal que cabe, em grande parte –
mas não totalmente –, aplicar a política pública que trata do crime, das suas causas e efeitos
e, também, das suas formas de respostas e as consequências delas. Enfim, fala-se, crimino-
lógica e amplamente, do “fenômeno criminal” ou, para outros, “questão criminal”9.
Tradicionalmente, cabe à política criminal fazer um papel informativo e de crítica ao
modelo existente, mas, neste trabalho, resgatando seu papel e natureza formativa, caber-lhe-á
indicar critérios e orientar o desenho do alternativo modelo não violento. Em sentido inver-
so, caberá a este novo modelo criminal, em especial por meio de seu sistema processual
criminal não violento e suas dimensões transformativas, retornar com informações e suges-
tão de medidas a serem incorporadas e aplicadas pela política criminal junto a outras áreas
de políticas públicas. Essa nova política criminal terá, portanto, um efeito mediato de, por
meio daquele instrumento processual, retornar para informar e orientar outras políticas pú-
blicas, ampliando para novos espaços e sentidos vetoriais sua feição de instrumento social.
O processo criminal, nessa função, assume a dimensão transformativa que este presente
estudo lhe propõe.10
Neste trabalho, dada a novidade da proposta e de sua abordagem, não caberá à polí-
tica criminal, em sua relação com o modelo, fazer uma crítica para sua melhoria. Isso por-
que não há, ainda, legal ou estruturalmente um modelo criminal não violento pronto e
operante.11 Esse modelo deverá ser desenvolvido, e a teoria deste trabalho se propõe a indi-
car, já desde o plano da política criminal, critérios e decorrências coerentes com sua forma-
ção e informação. Todavia, e uma vez que os modelos criminais (persecutório-punitivo e o
não violento) têm sistemas diversos de atuação, este estudo tem como preocupação apresen-
tar o necessário à estruturação de padrões claros ao sistema processual não violento que o
integrará, fazendo considerações quanto ao sistema criminal material no que for pertinente
e essencial àquele escopo processual. Tanto a política quanto o modelo criminais não vio-
lentos serão explicitados no limite do necessário para se demonstrar suas bases teóricas e as
do correspondente sistema processual e deste à sua atuação transformativa.

sem qualquer alteração de abordagem, finalidade e procedimento. O que significa dizer, não mudará em nada e
fagocitará toda proposta de mudança, transformando-a apenas em “menos” violência. O autor, assim, “reconhece
que o crime é um problema real e imediato e que alguns ofensores ainda não estão prontos para serem soltos na
sociedade. Mas o modelo pacificador tem uma visão otimista da natureza humana e se diferencia do modelo de
guerra ao crime principalmente na atribuição de responsabilidade pelo crime. A perspectiva pacificadora não
defende a exclusão do sistema de justiça criminal, ela simplesmente desenvolve reformas para as leis, para a
forma como o sistema opera, e para o objetivo em geral do instrumento de controle social do governo” (p. 59,
traduzimos e destacamos). No mesmo sentido, v. BIANCHI, Herman. Justice as sanctuary: toward a new system
of crime control. Bloomington: Indiana University Press, 1994. p. 96.
8
Sobre a política criminal como espécie de política pública voltado ao conflito criminal, v. BINDER, Alberto M.
Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2014. t. II. p. 152.
9
Os termos, em seus conteúdos mais significativos e seu uso mais corrente na criminologia, são equivalentes, va-
riando em pontos que, para este trabalho, não trazem relevância, muito mais sendo uma preferência a uma distin-
ção técnica para os criminólogos. Nossa opção pela expressão “fenômeno criminal” e “respostas” já foi esclare-
cida no item 6, supra, quando tratamos da política criminal, saber no qual a expressão “fenômeno” tem certa
predileção.
10
Sobre os sentidos vetoriais do sistema processual criminal não violento, v. item 50 e seus subitens, infra.
11
Como se verá no item 47.1, infra, damos os primeiros passos em uma tentativa de organização de uma experiência
restaurativa. Todavia, ainda não há uma estrutura sistêmica, vinculada a um modelo e uma política criminal pró-
pria. Há apenas os primeiros passos na sua formulação legal (projetos de lei) e doutrinária, com um corpo mais
consistente apenas em suas práticas que convivem às margens do modelo criminal persecutório-punitivo.
590 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Para esse mister cabe, em primeiro lugar, discutir se a política criminal é suscetível
a mudanças ideológicas. Caso positiva a resposta, abrem-se duas tarefas igualmente neces-
sárias. A primeira objetivando fixar sua identidade e independência em relação à política
criminal violenta que se espelha no modelo criminal persecutório-punitivo; conferindo a
esse novo espaço em sua realização sistêmica (penal e processual penal) um mínimo de
segurança contra qualquer interpenetração de nossa cultura violenta, notadamente no cam-
po jurídico-criminal. Para essa primeira tarefa expor-se-á o que a nova ideologia político-
-criminal não pode receber da anterior qualquer influxo (instrumental, de agentes ou de
saberes) daquele modelo tradicional. Logo, a apresentação será em sentido negativo, ou seja,
o que não deverá existir no modelo criminal não violento. A segunda tarefa, não menos
basilar e relevante, definidos aqueles cortes e diretrizes aos sistemas penal e processual
penal, será verificar se a política criminal da não violência tem guarida, permissão ou é
desejada pela nossa atual Constituição Federal. Os primeiros pontos serão expostos nos
subitens que seguem; essa citada segunda tarefa, referente à sua verificação constitucional,
no próximo item.12
Os valores, penetrantes em todos os campos da vida humana, não estão ausentes da
sociologia e das ciências políticas. Correlatamente, também não estarão ausentes da política
criminal, em ambos os seus planos (político e criminal-instrumental)13. Não há técnica ou
ciência que neutralize ou elimine os valores. Muito ao contrário: elas existem a partir des-
ses, pois são eles a fornecerem o importante norte à ação humana e, portanto, também às
escolhas do poder instituído e às expectativas populares. Os valores, junto com as ideias,
compõem a noção de “ideologia”14, fundamental na ciência e sociologia políticas e, em de-
corrência, nos dois planos citados da política criminal.

12
Acerca da susceptibilidade da política criminal a mudanças ideológicas, cf. item 46.1, infra; quanto a demarca-
ções iniciais da identidade e independência da política criminal não violenta, com novos paradigmas, cf. item 46.2
e seu subitem, infra, sendo que, para a impossibilidade de fusão de seu resultante modelo criminal não violento
com o modelo criminal vigente, cf. item 46.3, infra. Acerca de sua consonância com a Constituição Federal,
cf. item 47, infra.
13
Para relevantes considerações sobre esses planos e suas articulações e potencializações, v. item 6, supra.
14
Mario STOPPINO (Ideologia. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicioná-
rio de política. Coordenação da tradução por João Ferreira. 5. ed. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2004. v. 1. p. 585-597), já de início destacando que a expressão tem uma gama ampla de
significados que lhe são atribuídos em várias áreas, traça seu fio narrativo a partir da diferenciação de sentidos
elaborada por Norberto Bobbio, para quem a “ideologia” tem um significado “forte” e outro “fraco”. Indica que
é este último sentido o que predomina nas ciências sociais e políticas. Nesse sentido fraco, explica aquele autor,
ideologia é um conceito neutro que exige “o caráter eventual e mistificante das crenças políticas”. “Acha-se tam-
bém na interpretação dos vários sistemas políticos e na análise comparada dos diversos sistemas. Encontra-se
ainda na investigação empírica dirigida à averiguação dos sistemas de crenças políticas como se apresentam
nos estratos politizados ou na massa dos cidadãos” (p. 585, 1ª coluna). Com base em colóquios e debates sobre o
caráter de sistematicidade e de coerência de “Ideologia”, traz uma definição de Herbert McClosky, para quem as
ideologias são como “sistemas de crenças explícitas, integradas e coerentes, que justificam o exercício do poder,
explicam e julgam os acontecimentos históricos, identificam o que é bom e o que é mau em política, definem as
relações entre política e outros campos de atividades, e fornecem uma orientação para a ação”, concluindo esse
autor que são exatamente os caracteres de sistematização e coerência das ideologias que permitem verificar as
diferenças ideológicas entre “as elites políticas” e os “homens da rua” (p. 587, 2ª coluna). Por fim, cita estudo de
Edward Shils, em que este identifica as ideologias com base na presença conjunta de nove traços característicos:
“1) uma formulação explícita; 2) um alto grau de integração e de solidez sistemática, obtida através de uma
concentração apoiada em algumas proposições cognitivas e valorativas; 3) o destaque da própria diversidade
(em vez da similaridade), a respeito de outros sistemas de crenças e de outras Ideologias; 4) a resistência às
inovações do sistema ideológico e a tendência de negá-las ou a diminuir-lhes o significado; 5) a imperatividade
com a qual a Ideologia exige a obediência no pensamento e na conduta de todos os que a ela aderem, e a própria
atuação prática; 6) uma forte carga emotiva que acompanha tanto a promulgação quanto a aceitação e a aplica-
ção da Ideologia; 7) o consentimento completo exigido a todos os que a ela aderem; 8) o caráter autoritário que
46.  Política criminal da não violência 591
A ideologia, como a combinação política (estatal e social) entre valores e ideias, tem
interpenetração em todos os temas de política criminal. Talvez isso explique o costume de
(con)fundir seus estudos. São áreas diferentes, apesar de próximas. A ideologia é o critério
principal para orientar a política criminal e, portanto, serve inclusive como um de seus cri-
térios classificatórios. Dentro da ideologia da violência, a política criminal foi classificada,
tradicionalmente, como liberal, igualitária ou autoritária,15 ou, ainda, e mais recentemente,
como garantista ou não garantista.16 A política criminal tem suas escolhas informadas por
valores e, portanto, ela é ideologicamente orientada. “Balizar o território da política crimi-
nal é, portanto, localizar as correntes ideológicas que podem influenciá-la”.17 Todavia, a
política criminal não se resume à ideologia. Ela é composta por agentes, funções e instru-
mentos diversos, todos voltados em conjunto a realizá-la.
Essa ligação entre política criminal e ideologia, contudo, não significa dizer que
qualquer ideologia pode ser aceita como informadora.
A política criminal e a ideologia são balizadas e limitadas pelos preceitos constitu-
cionais e de tratados internacionais subscritos e introjetados pelo Brasil em seu ordenamen-
to. Não se pode, portanto, aceitar uma ideologia qualquer. Desde o pós-guerra, todos os
mecanismos internacionais de salvaguarda e orientação − e os mais relevantes já integram o
nosso ordenamento − indicam que os novos rumos podem variar e ser alterados, mas devem
permanecer dentro da primazia do respeito ao ser humano, sua dignidade e o sistema demo-
crático, não se olvidando que não menos humanos são as vítimas, os infratores e os integran-
tes comunitários a eles próximos. Como asseverado por EUGENIO RAÚL ZAFFARONI, a
política criminal deve ser “jus-humanista”.18
Essa relação precisa ficar clara em sua ordem e coordenação: a ideologia informa e
dá sentido à política criminal, a qual, por sua vez, sendo forma para sua concreção prática,
deve se utilizar de modeloS criminaIS19 para atuar em propósito e direção por ela definidos.

os seguidores reconhecem à sua promulgação explícita; 9) o nexo com qualquer forma de associação coletiva,
com a finalidade de manter a disciplina entre os aderentes e de traduzir em realidade o sistema ideológico”.
Na mesma linha, mas especificamente sobre valores, escolha e ação do poder político e política criminal,
v. DELMAS-MARTY, Mireille. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução por Denise Radanovic Vieira.
São Paulo: Manole, 2004. p. 44-45.
15
Classificação proposta por Mireille DELMAS-MARTY em suas obras Modelos e movimentos de política crimi-
nal. Tradução e notas por Edmundo Oliveira. Rio de Janeiro: Revan, 1992; e Os grandes sistemas de política
criminal, cit. Mireille DELMAS-MARTY, com base em critérios ideológicos, empreendeu ampla classificação de
vários sistemas de política criminal ao longo da história (diacronicamente) e, de modo sincrônico, na realidade das
décadas de 80 e 90 do século XX (cf. Os grandes sistemas de política criminal, cit., p. 42-59). Para essa autora, a
política criminal sempre decorreu de modelos políticos firmados por três correntes ideológicas centradas nas
várias concepções de liberdade, igualdade e autoridade e suas respectivas combinações “igualdade e liberdade”
e “igualdade e autoridade” (cf. Modelos e movimentos de política criminal, cit., p. 30-40).
16
Cf. item 26.3.1 e seu subitem, supra.
17
DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de política criminal, cit., p. 30. Com base nas correntes
ideológicas, essa autora realizou percuciente e exaustiva classificação dos denominados por ela “sistemas de po-
lítica criminal”, inicialmente na obra citada e, com mais complementos, em sua obra posterior Os grandes siste-
mas de política criminal, cit., p. 95-272.
18
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Tradução
por Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 147-153. No mesmo
sentido, v. BINDER, Alberto M. Política criminal: de la formulación a la práxis. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997. p. 38.
19
Intencionalmente utilizamos a expressão no plural, pois, não obstante tenhamos atualmente apenas um modelo
criminal, no sentido já esclarecido neste trabalho em especial no item 3 e Parte I, supra, a explicitação do pará-
grafo em apreço se refere ao ideal e esperado de qualquer política pública, da qual a política criminal é apenas uma
das espécies. Não é possível, em nenhuma área do poder político, que haja apenas um modelo para cada área da
vida em suas inerentes complexidades, notadamente na atual sociedade em plena “modernidade radical”.
592 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Esses, por sua vez, são integrados por agências e sistemas, entre estes se insere o processual,
como prolongamentos e formas de a política criminal atingir as situações concretas da vida.20
A proposta não violenta de política criminal não rompe em nada com a noção cons-
truída nos últimos dois séculos de estudo sobre o que seja “política criminal”. Ao contrário,
aproveitando a “perspectiva ampliada” de MIREILLE DELMAS-MARTY21, abre-lhe um
espaço novo, que passa a integrar seu “conteúdo ampliado”. Todo este, por sua vez, para ser
legítimo e representar um ganho aos cidadãos deve estar inserido e ter suas ações dirigidas
à maior efetividade dos princípios fundantes da própria Constituição atual e, também, aos
direitos e garantias daqueles cidadãos que são seus criados e destinatários.
Logo, e antes de se operar tal fundamental verificação de legitimidade e eficiência, é
importante estender-se um pouco mais a política criminal para além da ideologia. Com isso a
verificabilidade não se dará apenas sobre elas (política criminal e ideologia não violentas),
mas também sobre o respectivo conteúdo político-criminal segundo essa nova diretriz. As-
sim, é importante traçar as linhas mestras necessárias da política criminal não violenta, mes-
mo que de forma incipiente e dirigida às necessidades deste estudo, para que não apenas a
ideologia, mas já uma sua composição informativa, também passem pelo filtro constitucional.

46.1  Existe uma criminologia da não violência(?): necessidade de partir de uma abordagem
científica e peculiar ao novo modelo criminal
O título deste item foi assim escrito como única forma de ter, na mesma frase, sem
indicar contradição, a concomitância de uma afirmação e uma pergunta. Isso estimula, ipso
facto, a pensar se já tivemos (temos) um pensamento criminológico próprio para a não vio-
lência e o modelo que a ela se projeta neste trabalho. Certamente, com esse exato nome, não
tivemos – o que não implica não existirem consistentes linhas criminológicas que têm, en-
tre seus fundamentos e finalidades, franca oposição à violência institucional da pena crimi-
nal, as quais se aproximam em muito da ideologia da “não violência”, ao menos naquela
parte material.22
Elas deram esteio criminológico ao início do movimento restaurativo, que corres-
ponde atualmente à mais pronunciada manifestação concreta da ideologia da não violência

20
Sobre os elementos que compõem o modelo criminal, na concepção desenvolvida e aceita neste trabalho, v. itens 3,
supra, e 48, infra.
21
DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de política criminal, cit., p. 24-25. Essa autora, para além da
ampliação dos campos tradicionais do “fenômeno criminal” e suas “respostas”, ainda esclarece que a política
criminal transcende os âmbitos normativos dos direitos penal e processual penal e não se confunde com as esco-
las criminológicas (crítica, radical, ou a “nova criminologia”) nem com o interacionismo e a sociologia da reação
social. Sobre seus conceitos ampliados de “fenômeno criminal”, v. Os grandes sistemas de política criminal, cit.,
p. 61-64, sob o subtítulo “Os comportamentos de desvios das normas”, e, na mesma obra, p. 64-66, v. sua visão
ampliada para as “respostas”, sob o subtítulo “As respostas do corpo social”.
22
Quanto à crítica à violência institucional, há toda a corrente da criminologia crítica e, dentro dela, suas muitas
variantes. Por exemplo, e para ficarmos apenas no âmbito restaurativo, há o abolicionismo penal, o minimalismo
penal e a criminologia da pacificação, além da vitimologia. Para um exame dessas linhas teóricas e seus princi-
pais atores, v. SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa: um modelo de reacção ao crime diferente da justi-
ça penal. Porquê, para quê e como? Coimbra: Coimbra Ed., 2014. Capítulo I, “As origens criminológicas e político-
-criminais do paradigma restaurativo”. Consistente estudo entre “justiça restaurativa” e abolicionismo penal foi
elaborado, entre nós, por Daniel ACHUTTI em seu Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições
para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. Sobre os precursores da
vitimologia, tanto na Europa quanto no Brasil, v. relação feita por SCARANCE FERNANDES, Antonio. O papel
da vítima no processo criminal. São Paulo: Malheiros, 1995. Item 11, “Vitimologia e trabalhos doutrinários”,
p. 32-34.
46.  Política criminal da não violência 593
na realidade brasileira atual. Foi essa base criminológica, com franca inserção político-criminal,
que direcionou grande parte daquele movimento social à área criminal.23
Como bem observado por VERA MALAGUTI BATISTA, o ponto comum das vin-
culações entre aqueles dois saberes (política criminal e criminologia) é a ideia de “ordem”.24
Entende-se esta como uma escolha no já referido plano político de valores e sentidos inte-
grante da política criminal25 e, por sua destinação à esfera criminal, segundo plano desse
específico ramo da política pública, é introjetada e funcionalmente operada pelo aparato
criminal, notadamente os sistemas material e processual.26 Nesse sentido é que a criminolo-
gia pode ser crítica ou dócil à ordem imposta ou absorvida ou, ainda, escolhida para melho-
ria das condições de um maior grupo de pessoas.27

23
Sobre a amplitude da “justiça restaurativa” para além da área criminal, mas, inegavelmente, tendo nessa área sua
maior incidência, sendo o que nos importa neste estudo, Lode WALGRAVE [Imposing restauration instead of in-
flicting pain: reflections on the judicial reaction to crime. In: VON HIRSCH, Andrew et al. (org.). Restorative justice
and criminal justice: competing or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 61-78], já na abertura
de seu texto, informa que a “justiça restaurativa” tem tido aplicação para as mais variadas situações de conflitos com
danos provocados a alguém, mesmo que não criminais – embora tenha no ambiente criminal sua maior incidência –,
e suas práticas têm sido úteis até mesmo no âmbito de insatisfações sociais, o que bem demonstra a plasticidade e a
extensão do movimento restaurativo. Nas palavras desse criminólogo e psicólogo: “Em uma publicação anterior, a
justiça restaurativa foi definida como ‘toda ação que é primariamente orientada para fazer justiça, restaurando os
danos causados por um crime’ (Bazemore e Walgrave, 1999: 48). A justiça restaurativa é, portanto, caracterizada
por seu objetivo de fazer justiça reparando os danos, que incluem danos materiais, formas psicológicas e outras
formas de sofrimento infligidas à vítima e seu ambiente próximo, mas também agitação social e indignação na co-
munidade, incerteza quanto à ordem jurídica e à capacidade das autoridades de garantir a segurança pública.
Também abrange danos sociais que o agressor causou a si próprio por sua ofensa. Justiça restaurativa não está,
portanto, limitada a resolver um ilícito de acordo com a lei civil, mas lida com crimes, que também são eventos
públicos tradicionalmente tratados pela lei criminal” (p. 61, traduzimos). Isso demonstra a extensão que, na prática,
a “justiça restaurativa” alcança fora do Brasil e, por exemplo, por que restaurativistas da importância de Howard
ZEHR (The little book of restorative justice. 2nd ed. New York: Good Books, 2015) preferem sempre trabalhar em
seus conceitos e textos com as expressões “wrongdoing” (malfeitos, p. ex., p. 28), “harm” (prejuízo, dano; p. ex.,
p. 29), “offence” (ofensa; p. ex., p. 31) e até mesmo “damages” (p. ex., p. 29). Os termos se misturam e se revezam em
clara preocupação de evitar repetições da mesma expressão. Embora em regra relacionem-se com a noção de crime
e justiça criminal, há momentos em que, propositalmente, para não procurar limitar a “justiça restaurativa” apenas
a essa área, o autor empreende espaços mais amplos àquelas expressões. Isso fica claro na edição atualizada de seu
livro, em que relaciona extensões e práticas da “justiça restaurativa” pelo mundo em áreas diversas da criminal:
“Essas abordagens e práticas também estão se espalhando além do sistema de justiça criminal para escolas e
universidades, para o local de trabalho e para instituições religiosas. Alguns defendem o uso de abordagens
restaurativas, como processos de círculos (uma prática que emergiu das comunidades da Primeira Nação no
Canadá) como uma maneira de trabalhar, resolver e transformar conflitos em geral. Outros buscam processos
circulares e outras abordagens restaurativas como forma de construir e curar comunidades. Kay Pranis, uma
importante defensora da justiça restaurativa, chama os círculos de uma forma de democracia participativa que vai
além do simples domínio da maioria. Nas sociedades em que os sistemas jurídicos ocidentais substituíram e/ou su-
primiram os processos tradicionais de justiça e resolução de conflitos, a justiça restaurativa está fornecendo uma
estrutura para reexaminar, e às vezes reativar, essas tradições. [...] Em última análise, a justiça restaurativa forne-
ce uma estrutura alternativa para pensar sobre malfeitos” (p. 7, item “An overview”, traduzimos e destacamos).
24
Vera Malaguti BATISTA (Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011), com arguta
observação, com base em Massimo Pavarini (Control y dominación), ao associar a “questão criminal”, importan-
te conteúdo da criminologia, com o aspecto político imanente às escolhas e teorias criminológicas, assim conclui:
“É por isso que todas as definições da criminologia são atos discursivos, atos de poder com efeitos concretos, não
são neutros: dos objetivos aos métodos, dos paradigmas às políticas criminais. Aqui reside o enigma central da
questão criminal. Talvez seja essa a lição principal do inspirador livro de Pavarini: para entender o objeto da
criminologia, temos de entender a demanda por ordem de nossa formação econômica e social. A criminologia se
relaciona com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem” (p. 19). Nesse sentido, v. ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 1988. v. I. p. 20-21.
25
Não por outra razão, Eugenio Raúl ZAFFARONI (Em busca das penas perdidas, cit., p. 88-89) denomina-as
“correntes de propostas político-criminais”.
26
Para a exposição desses dois planos e suas articulações no campo da política criminal, cf. item 6, supra.
27
As palavras de Vera Malaguti BATISTA (Introdução crítica à criminologia brasileira, cit.) devem novamente
ser trazidas à colação: “A criminologia como racionalidade positiva é uma resposta política às necessidades de
594 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Neste ponto é necessário ficar claro que a escolha deste trabalho pela não violência
é uma escolha política “e” criminal por uma “nova ordem”. “Nova” no sentido de diferente
do que há, diversa, ou seja, uma alternativa ao modelo criminal persecutório-punitivo; sem
defender sua exclusão − como já tantas vezes ressaltado. “Ordem” é entendida como diretriz
orientada pela ideologia da não violência (e aqui está a escolha política) e que abre um novo
campo de “resposta(s)” ao “fenômeno criminal” (e aqui, o espaço de sua incidência crimi-
nal). Contudo, e isso precisa ser sublinhado com traço grosso, é também “nova” porquanto
precisa ser construída de modo estruturado, organizado e indene das interpenetrações dos
instrumentos e agências do modelo criminal violento (persecutório-punitivo tradicional). É
a única forma de ser empreendida e testada na resposta a conflitos criminais sem mais vio-
lência acrescentar-lhes e, ainda, transformar seus efeitos negativos em positivos a todos os
envolvidos (vítima, comunidade e infrator).
Fixada a “não violência” como axioma ideológico,28 deve-se entender o que ela sig-
nifica como outra estrutura axial criminológica e um novo espaço político-criminal. Em
uma simples frase: significa reconhecer a violência advinda do conflito criminal como algo
a ser tratado sem a violência imanente à metodologia (inquisitio) e ao aparato (agências e
instrumentos) do modelo criminal persecutório-punitivo.
A “nova ordem” proposta neste trabalho, portanto, estabelece outro propósito que
procura despertar o interesse por estudos e diálogos na formação de uma linha criminológi-
ca que seja própria da não violência e a partir da ampliação do espaço dentro da política
criminal. Não há mais apenas uma política pública de resposta ao crime, mas, agora, ao
menos duas diversas, coexistentes em seus distintos espaços: uma persecutória e punitiva,
outra da busca de resposta pelas partes do conflito por meio de um diálogo empático.
Nesse contexto, mesmo os saberes criminológicos já consolidados e mais próximos
à ideologia da não violência, tais como o abolicionismo penal, o minimalismo e o pacifismo,
devem ser examinados e expandidos para não apenas terem uma crítica a um modelo vio-
lento, mas na construção e desenvolvimento de um modelo alternativo não violento. Assim,
enquanto o minimalismo tende a se voltar mais ao sistema criminal persecutório-punitivo,
cumprindo seu mister de contenção da violência institucional, o abolicionismo e o pacifis-
mo precisam desenvolver filtros identificadores de agências, movimentos e institutos vio-
lentos para que não ingressem nesse modelo não violento.29

ordem que vão mudando no processo de acumulação de capital. Para compreender o seu léxico, seu vocabulário,
sua linguagem, temos de ter a compreensão da demanda por ordem. A política criminal também está historica-
mente subordinada a essa demanda” (p. 22-23). Voltada à sua percepção de como a política econômica é política
pública e, por isso, projeta implicações na política criminal e, portanto, também na criminologia, afirma a autora:
“A questão criminal se relaciona então com a posição de poder e as necessidades de ordem de uma determinada
classe social. Assim, a criminologia e a política criminal surgem como um eixo específico de racionalização, um
saber/poder a serviço da acumulação de capital. A história da criminologia está, assim, intimamente ligada à
história do desenvolvimento do capitalismo” (p. 23).
28
Cf. item 45, supra.
29
Essa associação feita entre “ordem”, como propósito, e “abolicionismo penal” indicam que tratamos esse movi-
mento criminológico como o que Eugenio Raúl ZAFFARONI bem definiu como “novo abolicionismo penal”,
vinculado à contenção da violência institucional (direitos do preso, e “desmanicomialização”), do que a sua feição
mais antiga ligada ao anarquismo. v. A questão criminal. Tradução por Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan,
2013. Item 27. Uma forma de visão crítica a partir do abolicionismo penal e dirigida à “justiça restaurativa” pode
ser vista em trabalhos de Daniel ACHUTTI, por exemplo, em coautoria com Salo CARVALHO, o recente artigo
Justiça Restaurativa em Risco: a crítica criminológica ao modelo judicial brasileiro. Seqüência. Florianópolis,
v. 42, n. 87, p. 1-39, 2021.
46.  Política criminal da não violência 595
Nesse mister, é preciso, já desde a política criminal, definir as peculiaridades, os
meios de consecução e finalidades desse novo modelo. É a única forma de iniciar uma or-
ganização apropriada a seu perfil e, simultaneamente, revelar áreas conflituais em que tal
modelo seja o mais eficaz na “resposta” em toda a complexidade e ao mesmo tempo parti-
cularidade de causas, efeitos e relações do conflito.
Os saberes criminais, mesmo os criminológicos e próximos ao combate à violência,
foram forjados ao feitio do modelo criminal tradicional e, portanto, a partir de seu locus de
mirada e de destino, não são capazes de cuidar desse perfil e peculiaridades não violentos
a um novo modelo criminal. Por mais desenvolvidos que estejam, muito mais indicam o que
o modelo criminal não violento não deve ser do que podem orientá-lo no que deva ser. São
inaptos a atender, por mera incidência automática do até então desenvolvido, a toda peculia-
ridade (filosófica, sociológica e política; constitucional e funcional) e servir de filtros e de-
lineadores dos diversos conteúdos, extensões e escopos. Todavia, devem servir como cabe-
dal de conhecimento e experiências a identificar e desenvolver muitos campos a serem
escrutinados pelas novas perspectivas e finalidades. São a bagagem científica que possuí-
mos para nos orientar, mas em outra afinação e sintonia: o gradiente da não violência.
Para atestar essa necessidade por estudos específicos, pode-se tomar de empréstimo
exemplificativo e argumentativo as experiências e dificuldades enfrentadas pelo movimen-
to restaurativo, uma dentre as várias práticas e pensamentos passíveis de serem inseridos
dentro do modelo criminal não violento, quando visto pelas lentes dos saberes criminais
tradicionais.
Em estudo acadêmico voltado “exclusivamente” à “justiça restaurativa”, CLÁUDIA
CRUZ SANTOS fez rigoroso escrutínio de vária facetas desse movimento sociopolítico
em seu endereçamento criminal. Um dos marcos de seu estudo foi o esforço científico
jurídico-penal de pontuar um conceito para a “justiça restaurativa”.30 Ela identifica que não

30
As dificuldades quanto à conceituação de “justiça restaurativa” são reconhecidas por todos os que já se debruça-
ram sobre o tema. Não obstante alguns autores tentem contribuir destacando traços característicos, nenhum ainda
teve como escopo teórico conceituá-la de modo técnico e ideal ao consenso do próprio movimento. Apontam tal
dificuldade, por todos: ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 47-48; BRAITHWAITE,
John. Principles of restorative justice. In: VON HIRSCH, Andrew et al. (org.). Restorative justice and criminal
justice: competing or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 1-20, item III, “Thinking theo-
retically about restorative justice”; do mesmo autor, v., ainda, Restorative justice and responsive regulation.
Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 10-12; O’MAHONY, David; DOAK, Jonathan. Reimagining restorati-
ve justice. Oxford: Hart Publishing, 2017. p. 16-18; LARRAURI, Elena. Tendencias actuales de la justicia restaura-
dora. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n. 51, p. 67-104, nov./dez. 2004. Item 3; JACCOUD,
Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa. In: SLAKMON, Catherine; DE
VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 166-179, item “Definições e objetivos de justiça
restaurativa”; VAN NESS, Daniel W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring justice: an introduction to restora-
tive justice. 5th ed. Waltham: Anderson Publishing, 2015. p. 43-44. No Brasil, destacam essa mesma dificuldade:
ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal, cit., notadamente em seu Capítulo 2, p. 57-59; e
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCrim, 2009.
p. 53-55. Kathleen DALY [Restorative justice: the real story. In: McLAUGHLIN, Eugene et al. (ed.). Restorative
justice: critical issues. London: SAGE, 2003] abre seu estudo reconhecendo o problema da falta de definição da
“justiça restaurativa”, o que, na visão dela, obriga o pesquisador a sempre delimitar qual o sentido em que empre-
ende os termos e para qual tipo de conflito dirige sua atenção na aplicação da prática restaurativa por ele escolhi-
da (p. 196). Para se ter uma ideia de como, não raro, seja em preceitos normativos, seja em textos científicos, há
uma junção de vários níveis de ideias e planos diversos, tome-se como referência nacional a definição de “justiça
restaurativa” empreendida pelo Conselho Nacional de Justiça no art. 1º, caput, da Resolução n. 225/2016: “Art. 1º
A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e
atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores
de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados
de modo estruturado na seguinte forma”.
596 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

há, mesmo entre os restaurativistas, um consenso mínimo quanto ao que seja “justiça
restaurativa”.31
Após destacar o dissenso, empreende um estudo por suas linhas criminológicas, fi-
losóficas, políticas e jurídicas em busca de uma conceituação.32 Ao final dessa parte de sua
obra, não apenas reconhece a falta de um conceito seguro como conclui pela dificuldade de
“encaixar” a “justiça restaurativa” entre as ciências criminais aos moldes em que é aberta-
mente compreendida e defendida.33
Concordamos com a conclusão da penalista quanto à dificuldade de catalogação da
“justiça restaurativa” nos moldes dos existentes saberes criminais, pois há claro desencai-
xe em todos os aspectos entre as abordagens (restaurativa e criminal tradicional). Isso não
se dá – a nosso sentir – pela “anarquia” da primeira ou a limitação de saberes da segunda.
Dá-se por serem e partirem de ideologias diferentes para chegar a resultados diferentes e
por vias diferentes, enfim, por serem em tudo “diferentes”. São modelos ontológica e teo-
logicamente diferentes. Não visam a realizar a mesma política pública (criminal), pois
uma “combate o crime” enquanto a outra “restaura os efeitos da sua violência”. Têm dife-
rentes premissa, finalidade e meio de consecução. Logo, necessário desenvolver específi-
cos saberes criminais não violentos para comportar, nesse “novo” espaço político-criminal,
um também “novo” modelo criminal e deste a um novo sistema processual criminal (não
violento).
Não há encaixe possível entre esses dois “mundos”. Eles devem ser independentes e
conviverem de modo a combinarem suas atuações na redução da violência criminal confor-
me suas peculiaridades. Certamente, em determinados pontos do caso criminal, poderão ter
que estabelecer pontes de travessia em possível trânsito da causa criminal. Mas devem ser

31
Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 297) assume que mesmo a se focar no espaço em que a
“justiça restaurativa” se relaciona com o crime, ela é de difícil definição por suas muitas práticas e correntes in-
ternas de pensamentos.
32
Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit.) afirma que “existem vários fatores que desaconselham, se-
gundo se crê, uma qualquer tentativa de catalogação da justiça restaurativa no panorama das ciências criminais
no actual momento, mas que se relacionam, todos eles, sobretudo com duas circunstâncias” (p. 298). A primeira,
uma crise de paradigmas nas próprias ciências sociais e, por decorrência, nas ciências criminais e a exigir uma
reformulação desde a criminologia e a política criminal (p. 298-299). A segunda, a desarrumação interna da pró-
pria teoria restaurativa, que, na busca de uma extensão a vários países e situações, apresenta, internamente, “uma
pluralidade de teorias e de programas com contornos diversos. Com um intuito de mera simplificação, talvez
possa afirmar-se que, na teoria restaurativa, existem reflexões de natureza mais substantiva (orientadas, por
exemplo, para o sentido e as finalidades da intervenção) e outras de índole mais adjectiva (e centradas nos con-
dicionalismos procedimentos restaurativos). E depois, além dessa teoria mas também genericamente agrupados
sob a designação ‘justiça restaurativa’, existem programas restaurativos diversos em funcionamento em distintos
espaços. Todavia, mesmo quando se toma para análise apenas essa ‘teoria’ da justiça restaurativa, aquilo que em
primeira linha salta à vista continua a ser a diversidade: só a título de exemplo, pode notar-se que existem pers-
pectivas essencialmente jurídicas, outras de índole mais filosófica, outras ainda relacionadas com a ciência po-
lítica, algumas orientadas para uma abordagem mais sociológica ou psicológica. Trata-se, nesta medida, de uma
teoria tendencialmente anárquica, no sentido em que é alheia às regras de delimitação do objecto das restantes
ciências criminais. A tentativa de delimitação conceptual que aqui se procura é, segundo se crê, influenciada por
quadros mentais que não são os preponderantes entre os cultores do pensamento restaurativo” (p. 299).
33
Não obstante Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 304-305), após muitas considerações, supe-
rando obstáculos e faltas teóricas, acabe por sugerir uma conceituação que, longe do ideal de concisão, opta por
incluir tudo o que a “justiça restaurativa” teria de essencial: “a justiça restaurativa deve ser vista como um modo
de responder ao crime (e, nessa medida, como uma pluralidade de práticas associadas a uma pluralidade de te-
orias agrupadas em função de uma certa unidade) que se funda no reconhecimento de uma dimensão (inter)
subjectiva do conflito e que assume como função a pacificação do mesmo através de uma reparação dos danos
causados à(s) vitima(s) relacionada com uma auto-responsabilização do(s) agente(s), finalidades estas que só
logram ser atingidas através de um procedimento de encontro, radicado na autonomia da vontade dos interve-
nientes no conflito, quer quanto à participação, quer quanto à modulação da solução”.
46.  Política criminal da não violência 597
constituídos e mantidos independentes em matrizes e diretrizes próprias. A percepção des-
sas diferenças e dos riscos de aportes fagocitários do modelo criminal tradicional por sobre
o não violento que motivam o presente estudo.
Foi exatamente essa visão ampla e, ao mesmo tempo, classificatória e diferenciadora
de ideologias, meios e finalidades que justifica todas as opções deste estudo como resposta
à pergunta sempre feita aos abolicionistas: senão for o modelo criminal que nós temos, o
que há para colocar em seu lugar?
Na medida em que se queira dar incidência e encaixar um novo modelo em um es-
paço político-criminal específico de atuação, não se pode prescindir dessa tarefa científica
de identificar as peculiaridades para posterior análise e classificação, sob pena de não se
preparar o objeto de estudo para ter a individualidade (a)firmada; empecilho à sua incidên-
cia dentro das possíveis “respostas” ao “fenômeno criminal” e para filtragem de indevidas
interferências de instituições e agências violentas.
Não há vácuo no poder. O modelo tradicional não cederá espaço em seu “poder de
controle” pelo aparato criminal persecutório-punitivo se não houver critério e organização
suficiente para que o modelo alternativo não violento consiga um âmbito de incidência para
redução ou eliminação da violência envolvente do crime.34 Nisso, o modelo criminal violen-
to, em seus sistemas penal e processual penal, tem larga vantagem e produz, seja pela resis-
tência seja pela consistência teórica, uma força sedutora, porquanto facilitadora e confortá-
vel, de atração e diluição da mais tênue oportunidade ao diverso dele.35
Por essa razão a descrição que se faz das diretrizes fundantes ao modelo criminal
não violento tanto em âmbito material quanto processual penal será feita nos subitens que
seguem de modo a identificar o que eles não devem conter; sob pena de serem desconstituí­
dos na sua ideologia axial já de partida.

34
Na linguagem criminológica de Louk Hulsman e Nils Christie, como bem apontado por Daniel ACHUTTI (Jus-
tiça restaurativa e abolicionismo penal, cit., p. 122-123), há que se produzir uma nova “gramática”, que, neste
trabalho, está sendo desenhada mais para o viés processual, mas que deve ter futuros estudos também na área do
direito material, assim como constitucional, sociológico, psicológico e penológico. Tudo sob pena de, como alerta
Daniel ACHUTTI, “não virar presa do sistema penal” (p. 123), que, devido à sua densidade teórica e tradição
cultural, tende sempre a fagocitar, se não pela inércia, pela dificuldade em se formar uma massa crítica para se
pensar algo fora das convenções. Pensar e desenvolver algo verdadeiramente novo e diferente do modelo criminal
violento persecutório-punitivo de nossa tradição cultural.
35
Embora não se trate de fagocitose entre “modelos criminais” distintos, mas, como explicado neste trabalho
(cf. item 27.1, supra), de variedade sistêmico-processual dentro de um mesmo modelo (o persecutório-punitivo),
essa infindável e magnética capacidade de absorção de tudo o que é mais punitivo em relação ao que é menor
incisivo penalmente vem sendo apontado, com muita propriedade, por Marcos Alexandre Coelho ZILLI [Pelo
movimento antropófago do processo penal: “to bargain or not to bargain?” eis a questão. In: MALAN, Diogo et al.
(org.). Processo penal humanista: escritos em homenagem a Antonio Magalhães Gomes Filho. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2019. p. 143-180] ao tratar da colonização e espraiamento que o bargaining tem produzido em ordena-
mentos jurídicos por todo o mundo, mesmo os de cultura europeia continental, como o brasileiro. Diz aquele au-
tor, nesse ponto apoiado em clássica obra de Máximo Langer (“From legal transplants to legal translations: the
globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure”, p. 38): “Langer, contudo,
mostra-se cético quanto à capacidade de contenção do avanço da fórmula processual negociada. É nesse ponto
que o autor recorre a uma nova e metáfora: o Cavalo de Troia. O fenômeno é capturado no sentido de movimen-
tação do organismo receptor em direção à absorção de outras características do sistema de origem e que não
foram objeto da tradução inicial. No caso da justiça negociada, ainda que traduções e filtragens sejam feitas, a
abertura de espaços de negociação por parte de um modelo acostumado com outras dinâmicas resolutivas do
conflito penal, abre o portal para a contaminação de todo o sistema. Há, portanto, uma imponderabilidade re-
sultante da ação dos intérpretes e dos operadores a qual mais tarde poderá ser absorvida pelo legislador”
(p. 146). Tudo que é mais afeito às nossas raízes culturais violentas e, com isso, serve melhor aos poderes instituí­
dos para punição e controle, prevalece sobre o menos violento ou o não violento.
598 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

46.2 Diretriz material da política criminal não violenta: a supressão da “pena criminal” no


modelo criminal não violento
Como se deixou claro desde o início36, é desde a política criminal, revelando e justi-
ficando as escolhas feitas, que se pode alargar o seu horizonte para estabelecer novas pre-
missas e novas finalidades por ser escolha dentre valores. Da política criminal se vai ao
modelo criminal e deste ao seu correlato sistema processual. Este trabalho não tem como
escopo final a política criminal, mas, diante de sua proposta de outro sistema processual
criminal37, é impossível não iniciar por aquele âmbito e, ainda, marcar as posições necessá-
rias para expor a partir dele o caminho trilhado.
Segundo JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, em um Estado Democrático e Social de
Direito, por ele denominado “Estado de Direito material”, há uma relação de precedência
da política criminal sobre a dogmática jurídico-penal. Isso porque o jurista deixa de ser

[...] um simples fazedor de silogismos, que se limita a deduzir do texto da lei as


soluções dos concretos problemas jurídicos da vida, para se tornar em alguém
sobre quem recai a indeclinável responsabilidade de procurar – se bem que de
modo jurídico – a solução “mais justa” para cada um daqueles problemas.38

Nesse seu novo mister, não há escolha dogmática que não careça de “penetração axiológica”
a ser “feita por apelo ou com referência teleológica às finalidades valorativas e ordenadoras
de natureza político-criminal, numa palavra, a ‘valorações político-criminais imanentes do
sistema’”. Concluindo, mais adiante, para o direito penal, mas em tudo válido ao direito pro-
cessual, que “o sentido e a aplicação do direito penal ficam em última análise dependentes da
‘teleologia’, das ‘valorações’ e das ‘proposições’ político-criminais inerentes ao sistema”.39
Vistos como um dos fios condutores por toda a Parte I deste trabalho, a “pena crimi-
nal” e seu sentido de punição como “dor”, “vingança”, “exclusão”, “medo”, “marginaliza-
ção” ou “ameaça” sempre protagonizaram, ao lado de seu instrumento de consecução
(o processo penal), o aumento e a perpetuação da “violência social”. Sempre que a diversi-
dade ou a resistência ameaçam o poder instituído ou mesmo quando os conflitos interpes-
soais atingem intensidade ou frequência aptas a abalar o que se desejava por “paz” ou “ordem”,
ele socorria-se do aparato persecutório-punitivo tendo como objetivo último a inflição de
“pena criminal”. Essa, para além das teorias, justificativas e críticas variadas que ainda a
cercam neste século XXI, sempre foi tida como “um mal necessário”40, desde sua origem.

36
Cf. item 6, supra, e tudo o que nele se desenvolveu.
37
Cf. itens 49 e 50, infra.
38
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: questões fundamentais. A doutrina geral do crime. São Paulo: RT,
2007. t. I. p. 26-27, sendo o trecho extraído desta última página. Neste sentido, v., ainda, BECHARA, Ana Elisa
Liberatore Silva. Bem jurídico-penal. São Paulo: Quartier Latin, 2014. Item 6.3, e seus subitens.
39
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal, cit., com trechos extraídos de, respectivamente, p. 28 e 38.
40
Essa compreensão é “lugar-comum” no direito penal e nos estudos específicos sobre teoria da pena. Sobre esse
ponto, analisando os pensamentos de vários autores, v. SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu.
Teoria da pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: RT,
2002. p. 181-183. Tais autores destacam, analisando penalistas de referência nacional e internacional, que a pena
é um “mal imposto pelo juiz ao delinquente, em virtude do delito, para expressar a reprovação social em relação
ao ato e ao autor” (de Franz von Liszt; v. SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da
pena, cit., p. 181); logo a pena é uma lesão imposta ao autor. No mesmo sentido de retribuição a mal anterior, citam
Edmund Mezger (idem), para quem a pena “é a imposição de um mal proporcionado ao fato, ou seja, uma privação
46.  Política criminal da não violência 599
Nela sempre foi identificada uma violência ínsita, funcionalmente instrumentalizada e am-
pliada desde o poder instituído. Sempre teve “natureza de” e foi “espécie de” violência
institucionalizada. Para manter um marco inicial relevante, e já contextualizado neste tra-
balho quanto a essa percepção, cite-se, novamente, passagem de Santo Agostinho sobre o
tema já no século V, último do Império Romano do Ocidente:

Como é profunda e obscura a questão de determinar a quantidade da pena para


evitar não só que a pessoa que a sofre não receba nenhum bem, mas também que
sofra um dano por causa dela! Além do mais, não sei se foi maior o número dos
que melhoraram ou dos que pioraram quando assustados com as ameaças de tal
pena nas mãos dos homens. Qual é, então, o caminho do dever, visto que aconte-
ce frequentemente que, se infliges uma pena a alguém, ele é destruído, ao passo
que, se o deixas impune, outro é destruído?41

As teorias justificadoras da pena, com maior ou menor sucesso, indicam-lhe duas


finalidades: uma, a retributiva ao comportamento desviado, e a outra, a dissuasória a futuros
crimes pelo mesmo agente já punido (prevenção especial) ou por outrem (prevenção geral).42

de bens jurídicos que alcança o autor”. Trazem, também, Francesco Antolisei (p. 182), para quem “pena é sinôni-
mo de castigo e que do ponto de vista substancial consiste na privação ou diminuição de um bem individual”. Para
Giuseppe Bettiol (p. 182), explicam os autores, a pena é uma “retribuição moral” advinda da exigência ética em
se reafirmar o ordenamento jurídico-penal, impondo ao infrator uma perda de direito proporcional à gravidade da
infração, também, portanto, um mal a este imposto pelo juiz. Dentre os doutrinadores nacionais, os autores expli-
cam que Aníbal Bruno (p. 182) também vê a pena com caráter aflitivo e retributivo, mas a ela une, também, o
sentido de meio de defesa social pelo Estado contra ataques a bens jurídicos. Já Frederico Marques, Damásio de
Jesus e Julio Fabbrini Mirabete (p. 183), preferindo o conceito de Sebastián Soler, entendem que pena é sanção
aflitiva como retribuição ao infrator por seu ato ilícito e que consiste na diminuição de seus direitos como punição
e também para evitar novos delitos. SHECAIRA e CORRÊA JÚNIOR não deixam de afirmar a pena como “um
mal necessário” (p. 144), mas indicam que a relação da pena com o Estado exige uma ampliação do conceito para
entendê-la como “instrumento da autoconstatação do Estado, ou seja, serve para a reafirmação de sua existência
[...] a sanção penal é essencialmente retributiva”. Cezar Roberto BITENCOURT (Falência da pena de prisão:
causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 104), trazendo à colação Santiago Mir Puig, quando este defi-
ne a pena com base em vários filósofos do direito, também deixa clara a visão do penalista espanhol da pena como
um “‘mal’ que se impõe ‘por causa da prática de um delito’: conceitualmente, a pena é um ‘castigo’”. Jorge de
FIGUEIREDO DIAS (Temas básicos da doutrina penal: sobre os fundamentos da doutrina penal. Sobre a doutri-
na geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., 2001. p. 72-73), defensor de que apenas a finalidade preventiva pode ser
aceita como um fim da pena consentâneo com os preceitos de direitos humanos (p. 104-105), é firme em assentar
que mesmo as teorias relativas da pena são unânimes em reconhecê-la como “um mal para quem a sofre”.
41
Trecho de Santo Agostinho, já inserido neste trabalho quando tratamos do sistema penal do modelo criminal da
Alta Idade Média (cf. item 14.1, supra). O excerto, por sua vez, foi citado por John Maurice KELLY (Uma breve
história da teoria do direito ocidental. Tradução por Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
p. 144-145), quando trata do tema “A teoria do direito penal e da pena” na Alta Idade Média. Esse historiador
destaca que, mesmo sem teoria da pena nessa fase histórica, não se pode deixar de reconhecer que as teorias, sé-
culos mais tarde, tiveram sua gênese justificadora a partir desse desenho cristão do protomedievo. E, acrescenta-
mos, cientes todos da violência que ela representa.
42
Nosso Código, assim como muitas legislações, unifica as teorias (v. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena:
fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005. p. 12-13) ou, como leciona Alamiro
Velludo SALVADOR NETTO (Finalidades da pena: conceito material de delito e sistema penal integral. São
Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 191), aceita a “teoria mista” (reprovação e prevenção). Preceitua o art. 59, caput,
do nosso vigente Cód. Pen.: “Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamen-
to da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:” (des-
tacamos). Saindo do plano normativo e ingressando na política criminal, concordamos com o último penalista
citado quando (248-250), elaborando análise político-criminal, afirma que, observadas “a faceta prática e gover-
namental do país”, não há operacionalização e atuação pública no sentido de dar à pena uma finalidade social
melhor que a segregação ou redução de direitos inerentes à sua prescrição legal. Não se definem e, portanto, não
se implementam “fins” claros para a pena criminal no Brasil.
600 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Todos a reconhecem como “violência” em si, explicando sua necessidade para manutenção
da ordem ou da paz social (rectius, do Estado), e a justificam pela previsão legal (“violência-
-obediência” ou “violência-submissão”) e pela “violência-resposta” à violência anterior
(o crime; descumprimento da lei).43 Todavia, em essência, sempre para reafirmar as razões
políticas do Estado e inscritas pelos integrantes do poder instituído na lei no binômio
“crime-pena”.44
A demonstração histórica já procedida neste trabalho revela que todo poder insti-
tuído, em qualquer tempo, quando se utiliza do aparato criminal para perseguir e punir o
“inimigo da vez”, muito mais do que definir “crimes”, ele deseja “aplicar pena”. A cons-
trução conveniente do “crime” é meio para junto a ele se aderir a pena criminal, com tudo
o que ela trará de desejado pelo poder instituído a seu “inimigo”; a violência das formas
mais variadas e cruéis. O motivo de um crime ser construído é a pena.45 Há violência na
escolha arbitrária e sempre política do poder instituído “criminalizar”, porquanto esse
ato é feito para justificar o “penalizar” que lhe segue no preceito secundário da norma
incriminadora.46
Contudo, para chegar à pena criminal – violência institucional em si –, desde o Me-
dievo Tardio, não bastava definir um “crime”. Até nossos dias, para chegar à pena foram
(são) necessárias a criação e a articulação de outra violência institucional: a persecução

43
Para a explicação dos termos destacados e usados neste trabalho, assim como da exposição das formas de se criar
e usar “justificativas” para encobrir as violências perpetradas e, por fim, da aplicação disso no aparato criminal,
cf. item 43.2 e subitem 43.2.1, supra.
44
Sobre a indissociável relação entre “pena” e “Estado”, v. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan,
2003. p. 92-113.
45
Não se desconsidera aqui toda a cultura da violência que sempre estabeleceu, desde as religiões antigas
(cf. item 43.1, supra), que ao ato vedado se aplicava um castigo. O que se destaca neste ponto do texto, é exata-
mente o ponto em que o crime, como afirma Juarez TAVARES (Crime: crença e realidade. Rio de Janeiro: Da
Vinci Livros, 2021), “passa de uma identificação concreta, de um fato empírico, para um enunciado normativo”
(p. 116). Este penalista, após demonstrar como a elaboração de crime passou a ser uma opção política, estabelece
as seguintes perguntas fundamentais para se ter uma autêntica e útil crítica sobre a necessidade da pena criminal:
“A questão que está inserida no tema da relação entre crime e pena diz respeito, assim, a verificar se, efetivamen-
te, essa relação é necessária. Pode parecer uma grande heresia duvidar dessa relação de necessidade, mas essa
dúvida é relevante porque estimula uma indagação mais profunda sobre os objetivos latentes da punição. Toman-
do em conta essa questão principal, pode-se equacionar o tema sob as seguintes perspectivas, que implicam sua
redução analítica a alguns tópicos fundamentais e que, na verdade, são também indagações candentes: a) A pena
é uma reação natural ao crime? b) Há entre crime e pena perfeita simetria? c) O crime sempre existiu? d) A pena
sempre existiu? e) Como se produz a metamorfose da pena no decorrer de sua evolução na história? Essas per-
guntas estão na mente de uma filosofia crítica da punição porque trabalham as condições que interferem direta-
mente na convivência humana. A grande festa política da pós-modernidade em todos os países é embalada pelo
chamado combate ao crime e pelo endurecimento das penas. As penas já foram muito duras. Parece, no entanto,
que esse endurecimento jamais deixou de povoar a política estatal. Por que será?” (p. 116-117). A resposta a essas
perguntas será por nós trabalhadas no item 48.1, infra, mas vale ainda um trecho do citado penalista para indicar
a direção a que se caminha: “Ao estabelecer-se que a pena pressupõe a presença de um ato proibido, que pode ou
não ser considerado criminoso, será preciso discutir, inicialmente, se a prática desse ato implica necessariamen-
te a imposição de pena ou, pelo menos, de uma resposta mais agressiva por parte da comunidade ou do Estado.
A reação ao ato proibido pode se dar, pelo menos, por três modos: por conciliação, por reparação ou por puni-
ção” (p. 117).
46
Aqui reside nosso ponto de divergência em relação ao abolicionismo penal de Louk HULSMAN (em coautoria
com CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam.
Niterói: LUAM, 1993. p. 94-99) e nossa aproximação de um abolicionismo menos radical de Nils CHRISTIE
(Uma razoável quantidade de crime. Tradução, apresentação e notas por André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan:
Instituto Carioca de Criminologia, 2011. Capítulo 6): sabemos da intencionada construção do crime, mas aceita-
mos essa base definida como ilícita para a discussão do que denominamos “conflito” e os abolicionistas “proble-
ma”, mas não aceitamos a entrada da “pena criminal” (preceito secundário da norma penal incriminadora) no
modelo criminal não violento.
46.  Política criminal da não violência 601
penal pela metodologia da inquisitio47. Para conseguir infligir a pena, constrói-se, portanto,
não só o “crime”, mas também o “processo penal”.48 Com o processo, a pena torna-se pos-
sível e a mera imputação de possível crime a alguém torna essa pessoa estigmatizada; daí
por que criminalizar passou também a ser estigmatizante. A criminalização primária não só
prenunciava a pena, mas também anunciava uma persecução e suas inerentes adversidades
(p. ex., a tortura e a humilhação pública e, mais atualmente, os registros criminais que im-
pedem o trabalho) até sua consecução.
A história mostra que não há erro em afirmar que a pena criminal orientou não ape-
nas as estruturas e teleologia da persecução, mas, também, seu próprio modo de ser e realizar-
-se. Em sua função, o processo foi transformado em outra forma de violência institucio-
nal. O processo não era apenas a forma de “legitimar” (justificar) a pena (violência); ele
passou a produzir dor, exclusão, estigmatização e marginalização em seu transcurso.
O sistema processual penal tradicional foi criado e usado como forma de violência. Sendo
meio para a consecução da pena “desejada” pelo poder instituído, o processo também era
controlado. Não é suficiente construir qualquer “processo”. Se não se controla o meio, a
obtenção do resultado é incerta. Para seu controle, muitas estruturas foram desenvolvidas:
instituiu-se o método inquisitivo com o entronamento do sujeito do poder-saber em cada
fase persecutória49; apropriou-se do conflito, expungindo a vítima de seu papel central50;
verticalizou-se o saber, que não apenas advém do primado da lei (moldada pelo poder insti-
tuído) mas também necessita de intérpretes (perseguidores, defensores e julgadores) forma-
dos e informados do conhecimento jurídico51; monopolizou-se o poder de decidir por aque-
la lei e por agente do poder instituído (julgador) e, por óbvio, de executar a pena (agências

47
Sobre a metodologia da inquisitio como violência institucionalizada, cf. item 11, supra.
48
James GOLDSCHMIDT, em ciclo de conferências seminal de dezembro de 1934 a março de 1935 na universidade
de Madrid, posteriormente já publicado com o nome de Problemas jurídicos y políticos del proceso penal
(Montevideo-Buenos Aires: B de F, 2016), abre sua exposição com a seguinte frase que marca e sintetiza todo um
pensar sobre a definição de processo penal: “A definição usual de processo penal se contenta em qualificá-lo de
‘procedimento que tem por objeto a declaração do delito e a imposição de pena’” (primeiras linhas da p. 1, do
item 1, do § 1, traduzimos). E, para ficarmos com outro clássico internacional, mas agora na Espanha, Pedro
ARAGONESES ALONSO (Instituciones de derecho procesal penal. 4. ed. Madrid: Rubi, 1983. p. 31), quase
cinquenta anos depois assim abre sua obra: “I. Conceito de processo penal. Em razão do fim, o processo penal
surge-nos como um instrumento para a realização da Justiça penal, que se específica no combate ao crime, que
se manifesta por meio da função preventiva, que se consegue com a imposição de medidas de segurança, e a fun-
ção repressiva, com a aplicação da pena. Olhando, então, ao final, o processo penal pode ser definido como ‘uma
instituição do Estado, especificamente instituída para a imposição de penas e medidas de segurança’” (capítulo 1,
item I, texto integral do primeiro parágrafo, traduzimos). Em estudo recente, Gustavo BADARÓ (Epistemologia
Judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019) pergunta e responde com clareza este ponto:
“Qual a finalidade do processo penal? Numa resposta direta, para uma pergunta ambiciosa, pode-se dizer que o
processo penal tem por função a legitimação do exercício do poder de punir estatal” (Epistemologia Judiciária e
prova penal, cit., p. 18). Apesar de ressalvar, com FERRAJOLI, a epistemologia garantista, não deixa de trazer,
ainda, e também com coerência, qual sua função: “O mecanismo processual é colocado em funcionamento para a
verificação da imputação penal, isto é, a atribuição de um fato concreto o que se subsuma a um tipo penal e con-
figure um crime, a quem o tenha praticado ou para o qual ele tenha concorrido” (Epistemologia Judiciária e
prova penal, cit., p. 21).
49
Sobre o surgimento do sujeito do poder-saber, cf. item 20.2.1, supra.
50
Sobre o afastamento da vítima do sistema penal, cf. itens 8.2.2, ao ser pela primeira vez excluída; 9.2, quando se
coloca o “poder político” no seu lugar, com a transformação de várias infrações – originariamente privadas – em
violações de natureza pública; 14.1, com a “paz do rei” ou a “paz de Deus”; 19 e 20.3, dada a completa expropria-
ção do conflito pelos poderes centrais; e 24.3.1, ao deixar de sequer ser ouvida na inquisitio radical, supra. Mesmo
no sistema premial-negociado, a vítima também é desconsiderada (cf. item 27.1, supra).
51
Sobre a necessidade de existência dos “intérpretes” da lei, cf. item 20.3, supra.
602 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

penitenciárias)52. Toda essa estrutura processual, funcional e finalisticamente, justifica-se


pela necessidade de a pena ser aplicada “como”, “quando” e “se” o poder instituído assim o
definir (criminalização primária) e o agente interno por ele escolhido (juiz) assim o decidir.
A pena criminal forma, informa e direciona o “seu” processo de realização – por isso deno-
minado processo “penal”.
Mas a pena, a violência institucional primaz, desejada e prestigiada por toda a nossa
história jurídico-criminal, não se compraz apenas em ser violenta e ter como consectários o
crime e o processo penal. A análise histórica empreendida revelou que até nossos dias a
pena exige uma estrutura executora (instrumentos e agentes) que, a despeito de ter variado
em tamanho e intensidade no decorrer do tempo, existe até nossos dias. No Brasil deste
século, para sermos diretos à nossa realidade, já se demonstrou que o cárcere não é apenas
violência em si, mas é deletério em suas finalidades, pois permite a violência de todas as
ordens intramuros e, com isso, produz e alimenta a violência (criminal) que se pratica extra-
muros.53 Tudo isso incute altíssimos custos humanos, sociais e financeiros.54
A pena criminal é a violência escolhida pelos poderes instituídos – e por isso violên-
cia “institucional” – para ser o eixo do modelo criminal tradicional.
Ela é violência, e tudo de que precisa, funcional ou teleologicamente, nasce também
sob esse signo. Por isso, a pena criminal e toda a violência institucional por ela criada (sis-
tema persecutório-punitivo) não têm lugar na porção de política criminal que orientará o
modelo criminal não violento e deste o sistema processual criminal não violento.
Não se trata de adaptá-la à política criminal e ao modelo não violentos ou estes a ela,
assim como também não é possível adaptações nas bases teóricas articuladas para justificá-
-la no modelo criminal persecutório-punitivo com o fim de torná-la “não violenta”. A reali-
dade entre os modelos é distinta na mesma medida em que é contraditório imaginar a “pena
criminal” e tudo o que de institucional a cerca perante o modelo criminal não violento.
A incompatibilidade é completa.
A política criminal não violenta tem o propósito de diminuir a violência social e,
para isso, não agrega, institucionalmente, com a inflição de “pena criminal” − em qualquer
grau − e seus consectários, mais violência em decorrência do crime praticado. A pena cri-
minal, ao contrário, parte da ideologia da violência, e sua finalidade é produzir violência
justificada, seja pela retribuição, seja pela dissuasão da opressão efetiva ou prometida, mes-
mo que limitada pelas várias teorias da culpabilidade55 e pela perspectiva constitucional da
dignidade da pessoa humana.56 Limitar a violência institucional não a torna compatível com
a ideologia da não violência.
A pena criminal justifica-se pelos sentimentos de vingança e raiva (retribuição)
e de ameaça e medo (prevenção) a serem produzidos no infrator e, a partir dele, instru-

52
Acerca do monopólio estatal sobre a elaboração legislativa, cf. item 26.1, supra.
53
Cf. nossos levantamentos e análises no item 38.1, supra.
54
Cf. itens 38.2, supra, para custos do preso, e 38.3, supra, para a projeção dos custos com todo aparato criminal,
incluídas as agências persecutório-judiciárias, os quais, em 2020, estima-se terem alcançado a casa de R$ 150
bilhões, v. Gráfico 57, supra.
55
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão, cit., p. 102-104.
56
Sobre os vários “princípios constitucionais de direito penal relativos à pena”, notadamente em seu caráter e inci-
dência restritiva à aplicação desmedida da pena como violação à dignidade da pessoa do infrator, v. SHECAIRA,
Sérgio Salomão; CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Teoria da pena, cit., p. 71-105.
46.  Política criminal da não violência 603
mentalizando-o em seu sofrimento, para desestímulo de todos os integrantes sociais.57
Teorias, mesmo sofisticadas e arrefecedoras, não escondem a (i)logicidade da ideologia
da violência: pena criminal não apaga a violência decorrente do crime, mas, indubita-
velmente, acresce (institucionalmente) mais violência a seu autor e ao meio social. É
violência (institucionalizada) sobre violência (criminal), sem reduzir qualquer efeito
traumático de ambas e produzido na pessoa ou na comunidade vitimizadas e, também,
no infrator e seus próximos.
Além da razão ontológica (“pena criminal” é violência), e o espaço da política crimi-
nal alternativo que se defende neste trabalho ser seu oposto, há outra razão em não se aceitar
qualquer grau ou forma derivada da pena criminal no modelo não violento: o propósito da
não violência é, ao menos em parte, eliminar também a violência que a pena constitui. Aqui
reside a diversidade teleológica da pena e do modelo não violento. É uma contradictio in re
ipsa imaginar um modelo que aplique ou opere exatamente por meio daquilo que ele visa
eliminar: no caso, a violência. Isso porque ela é, constitutivamente, “violência institucional”
aplicada ao meio social.58
Essas diferenças ontológica e teleológica tornam um erro de base e de pressupostos
querer, no novo modelo criminal, e a partir da política criminal da não violência, aceitar a
“pena criminal” como formulada em sua natureza e finalidades desde a sua história e para
as feições do modelo criminal tradicional. Tudo o que dela deriva ou nela toca torna-se cau-
sa ou efeito de violência.59 Fática e objetivamente, a pena criminal é acréscimo de violência
(institucional) sobre violência (criminal), com todos os custos humanos, sociais e econômi-
co que isso implica60 e com toda a sua decorrente inefetividade constitucional em matéria
de respeito à vítima, à comunidade atingida e ao imputado submetido à persecução penal
nas condições brasileiras atuais e, pior ainda, em caso de encarceramento.61

57
Para o discurso crítico das teorias de justificação da pena, v., por todos, SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da
pena, cit., p. 14-37, e ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito penal brasileiro I, cit., p. 92-113.
58
O modelo não violento também visa à eliminação da violência institucional decorrente tanto da persecução penal
quanto de sua execução, ambos coligados e instrumentos daquela mesma “pena criminal”, o que será visto adian-
te e ainda neste item.
59
Mesmo neste modelo no qual a pena se insere há milênios, toda a filosofia, dogmática e penologia desenvolvidas
ao seu redor não conseguem resolver as incoerências entre seus “fins” (rectius, finalidade) e as justificativas de
necessidade nos sistemas políticos estatais em que se insere. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos
da doutrina penal, cit., p. 65-67. Sobre o incremento desse problema de horizonte e de raiz que a “pena” é a todo
o Direito Penal e, por decorrência, ao Direito Processual Penal, deixando aquele de ser “direito penal do crime” e
passando a ser “direito penal da pena”, e este mero instrumento de verificabilidade de sua incidência ou não, in-
clusive com o crescimento de medidas cautelares de cunho meramente antecipativo, v. ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I, cit., p. 87-96, e,
mais voltado ao Direito Penal, v., também, SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Finalidades da pena, cit.,
Parte 2, itens 1 e 2.
60
Para uma breve síntese desses custos e disfuncionalidade persecutória, cf. itens 33, 36.5, 37.3, 38.3 e 40, supra.
61
Sobre o nível de violência a que o atual sistema processual penal nos conduziu, é de se trazer importante mani-
festação do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 e que está
assim mencionada pelo CNJ nos “considerandos” à elaboração da Resolução n. 288/2019, que “[D]efine a polí-
tica nacional do Poder Judiciário para a aplicação e promoção de alternativas penais, com enfoque restaura-
tivo, em substituição à privação de liberdade”: “Considerando que o Supremo Tribunal Federal, nos autos da
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, reconheceu que o sistema penitenciário nacional se
encontra em ‘estado de coisas inconstitucional’, porquanto ‘presente quadro de violação massiva e persistente
de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação
depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária’”. Sobre este ponto,
v. item 42.3.3, supra.
604 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Tendo em vista o fato de o objeto-problema ser a violência, nessa nova área da polí-
tica criminal, a pena criminal não o resolve, pois ela a potencializa e a (re)cria.62 Some-se a
isso o fato de que ela desconsidera o espectro amplo da “violência envolvente” do crime
(anterior e posterior a ele). Foi criada, funcional e teleologicamente, para infligir violências
(no plural), seja pela dor em sua incidência no infrator, seja pelo medo (violência interna)
que sua finalidade preventiva visa incutir em todo corpo social. Foi pensada e tem sido
aplicada para estigmatizar o condenado ou mesmo “apenas” o imputado (perseguido insti-
tucionalmente) para produzir danos colaterais àquela privação direta de direitos e dor, por
exemplo, perda de oportunidades educacionais e profissionais63, o que provoca redução e
piora em suas condições de vida (alimentares, de saúde e/ou habitação digna) – todas neces-
sidades básicas que se tornam de difícil acesso. O imputado, tão só por essa condição, sub-
metido a qualquer fase da persecução penal, exigência legal à aplicação da pena criminal,
em maior ou menor grau, sofre dessocialização. Mercados de trabalho e de estudo com altas
demandas e poucas oportunidades, mesmo a pessoas sem histórico criminal, não são mais
benevolentes com egressos do presídio, “apenas” condenados não encarcerados ou mesmo
“meros” imputados criminais (ao final absolvidos). Danos preliminares e colaterais que, não
raro, tornam-se causas de (novos) crimes. A “pena criminal” marca negativamente a todos,
mesmo que apenas pela sua aproximação com o sistema processual penal.
Tudo o que envolve a “pena criminal” é violência. Tudo em que ela toca, ou ameaça
tocar , reage (passiva ou ativamente; fugindo ou atacando) pela dor ou por medo. Sentimentos
64

tão primitivos no homem quanto a pena/punição o é na cultura e na tradição humanas. A pena


criminal é, no aparato criminal tradicional, o eixo a manter a cultura da violência viva e ali-
mentada, não havendo como esquecer dessa sua constituição etiológica e ontológica para, por
um discurso ideológico, mistificar sua implementação prática em “causa justa”.65

62
Sobre a mudança de paradigma do “objeto-problema” da política e do modelo criminais não violentos, v. item 44.2,
supra. Sobre o modelo criminal persecutório-punitivo estar colapsado no Brasil atual, agir disfuncionalmente e,
com isso, ser promotor de mais violência institucional e também criminal, cf. nossas considerações finais da
Parte II, item 40, supra.
63
Sobre a relação falta de educação e contingente prisional, v. item 32, Gráficos 14 e 15, supra. Sobre a população
dos “nem-nem”, aos quais nada é sequer proporcionado, não obstante precisem comer, vestir e existir, v. o mesmo
item 32, Gráfico 17, supra.
64
Luigi FERRAJOLI (Diritto e ragione: teoria del garantismo penale. 3. ed. Roma-Bari: Laterza, 1996. p. 761), no
item 44.6 de sua obra, intitulado “Il processo come pena. Imputazione penale ed etichettamento sociale”, prele-
ciona: “Aqui estamos obviamente na patologia judiciária. Mas se trata de uma patologia que assinala a possibi-
lidade de fazer uso do processo com o objetivo de uma punição antecipada, ou de intimidação policialesca, ou de
estigmatização social, ou de persecução política, ou por todos estes escopos juntos. Em todos os casos, além de
cada intenção persecutória dos instrutores, a sanção mais temida na maior parte dos processos não é a pena –
quase sempre leve ou não aplicada –, senão a difamação pública do imputado, que ofende irreparavelmente sua
honra, mas, também, as condições e perspectivas de vida e de trabalho; e se hoje se pode ainda falar em um valor
simbólico e exemplar do direito penal, ele deve ser associado não tanto à pena como ao processo e, mais exata-
mente, à acusação e à amplificação realizada, sem possibilidade de defesa, pela imprensa e pela televisão. Rea-
pareceu, portanto, em nossos dias a antiga função infamante característica do direito penal pré-moderno, quan-
do a pena era pública, e o processo, secreto. Exceto que a berlinda e o pelourinho agora são substituídos pela
exibição pública do acusado nas primeiras páginas dos jornais ou na televisão; e não como consequência da
condenação, mas da acusação, quando o imputado ainda é presumido inocente” (traduzimos).
65
Jean-Marie MULLER (O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica. Tradução por Inês Polegato. São
Paulo: Palas Athena, 2007. p. 42): “Na realidade, a incontornável necessidade que o homem para justificar sua
violência revela que tem consciência de que ela não é justa. Uma vez que se sente culpado, tem necessidade de se
desculpar e proclamar sua inocência, justificando-se. Recorrerá a subterfúgios que irão produzir uma deforma-
ção e um enrijecimento de sua consciência moral e, assim, poderá continuar a agir sem sentir culpa. Todos os
sistemas de legitimação da violência não são nada além do que sistemas de defesa do homem, para proteger-se
do sentimento de culpa que experimenta diante de sua própria violência”.
46.  Política criminal da não violência 605
Não se trata, portanto, de adaptar a “pena criminal”, em qualquer uma de suas for-
mas (p. ex., penas substitutivas), à política criminal em sua incidência pela não violência.
Ela pertence e deve ter sua oportunidade e intensidade discutidas no modelo criminal
persecutório-punitivo. Trazê-la e, com ela, todas as discussões, justificativas, finalidades e
instrumental do qual precisa é, em verdade, não dar o passo decisivo para inaugurar e imu-
nizar esse outro modelo criminal como alternativo e diverso. É desejar que esse dito “novo”
modelo criminal não violento seja, de partida, absorvido e transmudado pela ideologia da
violência muito mais antiga, forte e tradicional por seu eixo central e que lhe traça todo o
horizonte e extensão: a pena criminal. Ela guarda em seu conteúdo uma densidade nuclear
ímpar e capaz de atrair e contaminar de violência tudo o que se aproxime de sua órbita ou
da órbita de seus consectários satélites.66
O não ingresso da pena criminal é passo fundante e pressuposto lógico a ser cons-
truído desde a política criminal. Ela deve permanecer em seu mundo persecutório-punitivo,
com suas regras, lógicas e peculiaridades em tudo diversas do modelo criminal e sistema
processual criminal não violentos decorrentes daquela nova política pública.67 Naquele ela
tem função e joga papel central a sua estruturação, guardando pertinência a situações em
que os próprios envolvidos diretos no conflito queiram dele se servir para entregarem-se e
a suas causas penais.
Todavia, o não ingresso da “pena criminal” não significa a impossibilidade de acei-
tar o crime como algo que deva ser tratado no modelo não violento. Resta, pois, uma inda-
gação: é possível haver a aceitação da normativa incriminadora (“crime”), sem que isso
implique recepcionar de qualquer modo a pena prevista no preceito secundário daquela
norma?
A resposta a essa pergunta deve ser positiva, e sua explicação é feita no subitem
seguinte.

66
Foi o que ocorreu, no Brasil, com os novos e inspiradores conteúdos político-criminológicos da Lei n. 9.099/1995,
que, com o tempo, tornaram-se meras burocracias sem qualquer aderência transformadora do autor do fato e seu
entorno (transação penal – art. 76 – e composição civil – art. 72) ou meros rito (procedimento sumaríssimo;
art. 394, § 1º, III, Cód. Proc. Pen.) ou interrupção processual para cumprimento de acordo com possível extinção
de punibilidade (art. 89).
67
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva (Bem jurídico-penal, cit., p. 369-372), ao tratar da política criminal
e da intervenção penal, expondo exatamente as relações político-criminais de valores com maior ou menor
intensidade penal, alerta que as escolhas políticas podem ser feitas tanto para punir mais quanto menos.
É nesse sentido que este trabalho é oferecido, pois, ao se colocar o modelo fora da possibilidade da pena
criminal não se discutirá dentro de sua dogmática a intensidade da punição, mas que ele representa uma
forma de sanção positiva e totalmente diversa da pena criminal e seus consectários. As palavras daquela
autora, portanto, servem de aviso para não haver misturas de modelos criminais a partir do momento em que
se evita confusões de espaços de política criminal. Assim, o direcionamento dado pela autora na direção de
uma intervenção orientada a partir de um Estado Democrático de Direito impõe não apenas que se afine
dogmática penal e política criminal no modelo criminal persecutório-punitivo (p. 372-374), mas, como pro-
posta deste trabalho que ora se apresenta, abre-se a possibilidade de a política criminal ter espaços distintos
e que, em cada qual, deve haver afinidade constitucional e efetividade de maiores garantias a todos os cida-
dãos. Com isso fica claro que todo o endereçado pela penalista ao “direito penal mínimo” precisa, por coe-
rência ideológica, ser cumprido por desígnio constitucional àquele modelo violento (p. 374-379). Para o
modelo não violento, o espaço político criminal, de partida, é outro − igualmente não violento −; logo, sua
orientação constitucional também tem outro fundamento, assim como os novos conteúdos e limites axioló-
gicos que a política criminal não violenta formulará.
606 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

46.2.1 Política criminal não violenta como orientadora do novo paradigma de resposta ao


crime sem aplicação da pena criminal: a ultima ratio como diretriz de prestígio
ao modelo não violento
Pela concepção deste trabalho sobre a relação entre “modelo” e “sistemas”, esses são
elementos instrumentais que compõem aquele.68 A relação entre os dois âmbitos não é de
“gênero ↔ espécie”, mas funcional. São os sistemas que realizam as ações e diretrizes do
modelo, podendo, dentro de um mesmo modelo, haver diversidade de sistemas, variando em
natureza (p. ex., penal, processual penal), e, dentro deles, em incisividade de atuação (p. ex.,
legislação de crimes hediondos e Lei do Juizado Especial Criminal; regimes prisionais de
diversos níveis de restrição) ou, ainda, apresentar diferenças de extensão e complexidade
(p. ex., procedimentos sumaríssimo, especial ou ordinário).
O que empresta uma característica comum aos vários sistemas é o modelo criminal,
e o que dá a esse modelo o propósito e os critérios é a política criminal que lhe informa. Esta
determina ao modelo ser (mais ou menos) violento ou não violento, fixando, portanto, as
diretrizes para a sua construção em sistemas que deverão estar afinados com ele e, entre si,
coordenados. Os propósitos, direcionamento e limites vêm das escolhas no plano da política
criminal e se estendem até os sistemas que compõem o modelo criminal. Como um modelo
é composto por sistemas, que cumprem diversas finalidades, também a política criminal,
como política pública que é, pode (e deve) ter vários modelos para a atuar junto ao “fenôme-
no criminal”.69
Nossa escolha pelas ideologia e política criminal não violentas impõe essa diretriz
ao modelo e seus respectivos sistemas – todos devem ser, por decorrência, também “não
violentos”.
Neste ponto, principalmente devido à existência de um único modelo persecutório-
-punitivo, deve-se responder à indagação com a qual terminamos o subitem anterior: como
o modelo criminal não violento pode se propor a tratar o “crime”, entendido aqui como
conduta incriminada em tipo legal, mas não aplicar como sua resposta a pena criminal
prevista no preceito secundário da mesma norma legal?
A dúvida não é de pouca importância e precisa ser enfrentada. Todavia, o primeiro
ponto a ser resolvido antes de se responder àquela indagação é em que plano aquela questão
deve ser resolvida. Em outras palavras: sua resposta deve ser dada pela política criminal ou
pelo modelo criminal?
É à política criminal a quem cabe tal tarefa. A resposta fica um tanto facilitada na
medida em que se veja que a questão anterior surgiu exatamente da mistura de situações
existentes em modelos criminais distintos: a pena criminal prevista no sistema penal (mate-
rial) tradicional − localizado no modelo criminal violento − e o espaço de abordagem/res-
posta não violentas que a rejeitam como possibilidade de “solução” para a conduta tipifica-
da como crime. Ao se visualizar que há modelos criminais distintos (violento e não violento)
dentro da política criminal, percebe-se que não é de dentro de um desses modelos que a
resposta deverá emergir, sob pena de já se definir, de antemão, que um prevalecerá sobre o
outro. A questão não é de prevalência, pois dentro da sinfonia da política criminal já os

68
Isso foi estabelecido já no item 3, supra, e vem se demonstrando como verificável e lógico desde o século I a.C.
até o presente século XXI (cf. Parte I, supra).
69
Sobre o tema, já tratamos no item 6, supra.
46.  Política criminal da não violência 607
identificamos como aparelhos de diapasões diferentes e a serem tocados em diferentes gra-
dientes político-criminais.70 A resposta à segunda questão formulada, postas e vistas as
coisas em seus espaços distintos, exige uma mirada comum e anterior ao modelo criminal
e que somente poderá ser empreendida pelo plano da política criminal.
Resolvida a segunda questão, passemos à resposta da primeira (pode-se trabalhar
com o crime, previsto em tipo legal, e não aplicar a pena neste inserida como a consequên-
cia jurídica do crime?).
A resposta à questão deve ser positiva. E esse “sim” não causará estranheza até mes-
mo à lógica violenta do modelo criminal persecutório-punitivo, pois isso ocorre, é bem
verdade que de modo menos frequente, dentro dele e há séculos. Logo, uma nova área da
política criminal pode, em seu plano informador e formador do novo modelo criminal, de-
terminar que, para o de cariz não violento, os tipos legais incriminadores sejam o referencial
de se estamos ou não diante de um “conflito criminal”. A partir desse ponto, porém, a polí-
tica criminal orienta à não incidência da “resposta-pena” no novo modelo; abre-se possibi-
lidades mais amplas de resposta – um leque de opções de ações do infrator destinadas às
vítimas e à comunidade que tenham sofrido os efeitos de sua violência criminal. Teremos,
assim, abordagem, tratamento e diálogo processuais não violentos e, ao final, uma resposta
consensual e não violenta ao crime. Para isso, vejamos com mais vagar como a separação
do binômio “crime-pena” acontece mesmo no modelo criminal violento.
O tipo penal incriminador, pensada, elaborada e inserida no sistema penal punitivo
do modelo criminal violento é composta de duas normas: a primária, como “norma de con-
duta” de função descritiva e definidora do comportamento indesejado pelo ordenamento,
v.g., “matar alguém” (art. 121, caput, do Código Penal), e a norma secundária (“norma de
sanção”), definidora da consequência jurídica para quem pratica aquela conduta e no qual
se estabelece um pena: continuando no mesmo exemplo, “Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20
(vinte) anos”.71 O tipo penal incriminador-punitivo associa as duas normas mas não as torna
uma só, de modo que são “dissociáveis” em algumas situações. Aliás, fê-las distintas exata-
mente para que pudessem ser dissociadas quando a política criminal, em sua manifestação
legislativa, assim o determinasse. E ela determina amiúde e tradicionalmente.
Há normas de natureza penal e de natureza mista (penal e processual penal) que
foram criadas e operam exatamente para separar aqueles preceitos, aceitando que a conduta
incriminadora descrita na primeira ocorra (norma de conduta) e impedindo a incidência da
segunda (norma de sanção). Esse efeito desagregador, que decorre da quebra da relação
“conduta (causa) → pena criminal (consequência)”, ocorre sempre que incida uma norma
despenalizadora do comportamento concreto ou que impeça o Estado de punir. Isso é pre-
visto no modelo criminal violento tradicional, respectivamente, com as normas que de qual-
quer modo prevejam a isenção de pena72 e com outras que preceituem, por escolha de polí-

70
Sobre a política criminal como espécie de política pública e, portanto, precisar ter gradientes diversos de atuação
para diferentes tipos de demandas e soluções, v. item 6, supra.
71
Sobre essas espécies de normas (“norma primária” ou “norma de conduta” e “norma secundária” ou “norma de
sanção”) e suas inter-relações, assim como suas necessárias justificativas materiais e âmbitos de incidência,
v. SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Finalidades da pena, cit., p. 114-127.
72
Pode-se citar, desconsiderando leis esparsas, e apenas alguns exemplos do Cód. Pen., as seguintes previsões: art.
143 (retratação de calúnia ou difamação), art. 181 (isenção de pena para a prática de crimes contra o patrimônio
quando a vítima é o cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou o ascendente ou descendente, seja o paren-
tesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural) e art. 348 (isenção de pena para o crime de favorecimento pes-
soal quando o sujeito ativo é ascendente, descendente, cônjuge ou irmão do criminoso a quem presta auxílio);
608 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

tica legislativa, extinguir a punibilidade da conduta73 ou mesmo, de forma indireta em


relação à pena, impedindo o início ou o desenvolvimento da persecução penal.74
Sem distanciar-se dessa argumentação expendida, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
explicando a função e a extensão da política criminal no direito penal do modelo criminal
tradicional, vai ainda além do acima proposto. Assevera, dentro de sua compreensão de
“Estado de Direito material”, que a política criminal “torna-se em ciência competente para,
em último termo, definir os limites da punibilidade”.75
A essa proposição, já por si muito significativa, o penalista português acrescenta
outra, não menos relevante para o presente estudo, ao afirmar que “as categorias e os con-
ceitos básicos da dogmática jurídico-penal devem agora ser não simplesmente ‘penetra-
dos’ ou ‘influenciados’ por considerações político-criminais”. Concluindo em seguida, mas
ainda nessa mesma proposição: “eles devem ser ‘determinados’ e ‘cunhados’ a partir de
proposições político-criminais e da função que por estas lhes é assinalada no sistema”.
Terminando por exemplificar de modo definitivo:

Quando, para dar um só exemplo, a dogmática jurídico-penal estuda os conceitos


integrantes da noção de facto punível − a acção, a tipicidade, a ilicitude, a culpa,
a punibilidade –, não os deve ela tomar em si e por si mesmos, ou fazê-los deri-
var, como todavia é ainda frequente, de considerações lógicas, filosóficas ou
mesmo metafísicas. Ela deve sim construí-los como unidades funcionalizadas à
consecução dos propósitos, das finalidades, do “thelos” político-criminal que o
sistema jurídico-penal lhes assinala.76

assim como os casos de perdão judicial: art. 121, § 5º (do homicídio culposo, no qual as consequências da condu-
ta atingem o próprio agente de forma grave a ponto de a pena ser desnecessária), art. 140, § 1º (da injúria, quando
o ofendido provoca, de forma reprovável, a conduta do agente; e retorsão imediata), art. 168-A (da apropriação
indébita previdenciária, quando o agente é primário e de bons antecedentes, desde que atendidos requisitos elen-
cados nos dois incisos), art. 176, parágrafo único (referido como “outras fraudes” e inserido no Capítulo VI, do
estelionato), art. 180, § 3º (receptação culposa), art. 242, parágrafo único (parto suposto, ou supressão ou alteração
de direito inerente ao estado civil de recém-nascido, quando o crime é praticado por motivo de reconhecida po-
breza), art. 249, § 2º (subtração de incapazes, se observado na restituição do menor ou do interdito, que este não
sofreu maus-tratos ou privações), e art. 337-A, § 2º (sonegação de contribuição previdenciária, quando o agente é
primário e de bons antecedentes, desde que atendidos requisitos elencados nos dois incisos).
73
Fiquemos apenas no elenco exemplificativo do art. 107 do Cód. Pen.: morte do agente; anistia; graça; indulto;
abolitio criminis; prescrição; decadência; perempção; renúncia do direito de queixa; perdão do ofendido, nos
crimes de ação penal de iniciativa privada; retratação do agente, quando admitido em lei; perdão judicial, quando
cabível. Há, ainda, previsões em legislação esparsa, como é o caso da extinção da punibilidade pelo cumprimen-
to das condições da suspensão condicional do processo (art. 89, § 5º, Lei n. 9.099/1995).
74
Ainda, no campo híbrido do processo e do direito penais do modelo persecutório-punitivo, tem-se mostrado uma
tendência mundial, incluindo-se aqui as últimas reformas no ordenamento brasileiro, a ampliação de hipóteses e
extensão de “acordos sobre pena” cuja implicação também é mitigar ou isentar o infrator de pena criminal por
acordos de imunidade ou em outra função no jogo processual penal (p. ex., colaborador, “testemunha” ou de
qualquer modo “informante”). Isso sem contar as já tradicionais autorizações que estão na esfera deliberativa da
vítima (ou de seu representante) para iniciar até mesmo a persecução penal e, com isso, caso resultem negativas,
impedir a incidência de pena, mesmo que se esteja diante de uma conduta que se amolda a uma norma incrimina-
dora. A “representação” da vítima aos delitos ditos de “ação penal condicionada”, são tradição no direito brasilei-
ro: por exemplo, e para ficarmos apenas no Cód. Proc. Pen., v., por todos, o art. 5º, § 4º e art. 24, caput e seus
parágrafos, que impedem, respectivamente, o início do inquérito policial e da ação penal sem a “representação”
(rectius, autorização) da vítima ou de seu representante. Alamiro Velludo SALVADOR NETTO (Finalidades da
pena, cit., p. 173-174) afirma que a própria inação da vítima não deixa de ser uma outra forma de captar, se não
sempre, ao menos em regra, a falta de lesividade da conduta e, também por este aspecto, revelar-se-ia a desneces-
sidade da pena.
75
Com o destaque feito pelo autor em negrito no original, v. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal, cit., p. 34.
76
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal, cit., p. 33-34.
46.  Política criminal da não violência 609
Fica claro, portanto, que, mesmo pela tradição e pelo saber criminal construídos no
modelo criminal violento, a cisão entre normas primária e secundária é escolha de política
criminal e plenamente passível de ser implementada na construção do modelo criminal não
violento.77 Neste o “crime”, como preceito incriminador da conduta descrita, é tido como
pauta a partir da qual se identificou uma “violência envolvente” que se deseja transformar;
sem nele ingressar, a norma de sanção (norma secundária) que traz a violência institucional
da “pena criminal”.
Logo, nada há de ruptura na norma típica ao se aceitar a conduta definida como
crime como pauta inicial para atuação do modelo criminal não violento sem que isso impli-
que sequer a possibilidade de incidência da “pena criminal”, mesmo em sua forma mitigada
ou substitutiva. A possibilidade desse uso em separado dos preceitos está, portanto, à dis-
tância de uma escolha legislativa orientada pela política criminal não violenta.78

77
Não são poucos os autorizados penalistas que, analisando a estrutura da teoria do crime, desenvolvida e aplicada
há centúrias para o modelo criminal persecutório-punitivo, bem vinculam a pena à “norma secundária” e esta à
culpabilidade, como segundo nível de exame para a sua aplicação. Alamiro Velludo SALVADOR NETTO (Fina-
lidades da pena, cit., item 4.3 e seus subitens, Parte 1), ao analisar a norma secundária do tipo penal em face do
filtro da culpabilidade – tendo já procedido a exames semelhantes com a norma primária (ou “norma de conduta”)
nos planos da tipicidade e antijuridicidade (item 3, Parte 1) −, coloca questões na direção e que, mesmo sem se
referir, servem de início de base teórica ao modelo não violento e sem incidência de pena criminal, que ora se
propõe: “O conceito de culpabilidade, diretamente vinculado à norma de sanção [também denominado “norma
secundária” pelo penalista], é o segundo nível ou pressuposto para a aplicação da pena ao caso concreto. Ele é
resultado da segunda valoração político-criminal inserida na teoria do delito, que buscará estabelecer os crité-
rios pelos quais uma dada ocorrência concreta deve ser também concretamente punida. Trata-se, então, dos
elementos que vão além de transformar um fato em injusto merecedor de pena. Aqui, precisarão concorrer outras
circunstâncias que façam daquele injusto merecedor um fato ademais punível, isto é, necessitado de pena. Todo
comportamento juridicamente necessitado de pena é, obviamente, merecedor; no entanto, o inverso não é verda-
deiro. A primeira consideração que deve ser realizada é de que o momento da culpabilidade é responsável por
restringir, ainda mais, o universo de comportamentos que transpuseram a barreira da antijuridicidade. Neste
último caso, o questionamento político-criminal que se colocava diante era a respeito dos fatos que mereceriam
em abstrato, ‘ex ante’, a ameaça de pena. No âmbito da culpabilidade, a pergunta não é mais assim. O que deve
ser respondido é: Quais os comportamentos que, uma vez realizados e submetidos ao juízo de valor ‘ex post’,
devem sofrer a incidência do castigo? A resposta resulta na possibilidade de maior violência se comparada com
a referida à pergunta anterior. Desse estágio de maior violência inerente ao pressuposto segundo de imposição
da pena resulta a própria concepção mais fechada, ou estreita, de sua filtragem. Não se está mais diante de
pressupostos da proibição, mas sim da sanção, o que impõe a existência de critérios que, não obstante a existên-
cia da infração do dever, limitam a ocorrência violenta da sanção. Aqui, a violência da pena não se resume à
restrição da liberdade enquanto ameaça. A incidência punitiva estabelece a violência individualmente direcio-
nada, que supera o grau anterior e alcança a privação da liberdade, a obrigação de exercer atividades, de
omitir-se de certos comportamentos, de submeter-se à diminuição patrimonial forçada. Por conseguinte, os
requisitos que condicionam as normas secundárias são diferentes daqueles que condicionam as normas pri-
márias. Os juízos de valoração são de outra espécie. Os fundamentos da antijuridicidade cedem espaço para os
pressupostos da intervenção penal, amplamente denominados como fundamentos da culpabilidade. Esta altera-
ção é responsável pela inversão da polaridade da importância legislativa e judicial no âmbito da norma de sanção.
Pode-se dizer que o protagonismo se altera” (p. 164-165, destacamos e inserimos, sem destaque, colchetes de re-
ferência ao leitor).
78
Sobre a política criminal como orientadora da intervenção penal, mesmo no modelo criminal persecutório-punitivo,
v. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva (Bem jurídico-penal, cit.). Em seu profundo e atualizado estudo sobre bem
jurídico e sua posição fundamental ao direito penal atual, inclusive com algumas mudanças dogmáticas e de inter-
penetração em análises político-sociais da Modernidade, a autora é categórica ao atribuir à política criminal uma
forma de orientar a dogmática para estabelecer novos valores e, com isso, redefinir limites de intervenção penal:
“6.3. POLÍTICA CRIMINAL E RACIONALIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL. A concepção social conforma o
campo de intervenção jurídico-penal, influindo, de forma implícita ou explícita, na essência do delito e nas formas
de sua prevenção e repressão pelo Estado. A partir dessa constatação, verifica-se a necessária penetração dos
valores político-criminais na elaboração e aplicação do Direito Penal. Assim, a análise do conteúdo de um deter-
minado sistema penal não há de se estabelecer por meio da norma em si, mas sim, antes, da orientação desta por
meio da política criminal. [...] De todo modo, a partir de Franz von LISZT, a política criminal passa a receber cres-
cente importância em sua relação com a dogmática penal, concepção esta que foi adquirindo maior força, no sen-
tido de articulação ou colaboração entre as esferas, conforme um modelo de sistema aberto, na linha exposta por
610 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Nesse sentido este trabalho tem como fundamental o exame da compatibilidade


constitucional do novo espaço da política criminal.79 Mais uma vez nos alinhamos à posição
de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ao inferir, a partir das duas consequências quanto à
relação entre política criminal e direito penal, a necessidade de consonância da política cri-
minal com os valores positivados no texto constitucional – novamente, em tudo compatível
com a normativa e dogmática processuais criminais novas e a serem desenhadas. Com a
devida vênia pela transcrição, explicada pela precisão do texto do professor de Coimbra:

E todavia, apesar da predominância que assim se atribui à política criminal no


contexto da ciência conjunta do direito penal, ela haverá em todo o caso de se
condicionar estritamente pelos fundamentos jurídico-políticos da concepção do
Estado. Se a política criminal (poderá também dizer-se assim) é, como acaba de
ver-se, extra-sistemática relativamente ao direito penal, ela é todavia “intra-
-sistemática relativamente à concepção do Estado”, quer dizer, ela imanente ao
sistema jurídico-constitucional. A esta luz surgirá especialmente justificada a
afirmação anterior de que não é exacto que a política criminal possa e deva fazer
apelo directo e imediato ao sistema social como tal para estabelecimento das
suas finalidades e das suas proposições. Exacto é antes que as finalidades e as
proposições político-criminais devem, elas também, ser procuradas e estabeleci-
das no interior do quadro de valores e de interesses que integram o consenso
comunitário mediado e positivado pela Constituição. Apenas desta maneira po-
derá de resto a política criminal, como deve, conceder uma importância primária
à protecção dos direitos, das liberdades e das garantias de “toda e qualquer pes-
soa”, incluído o delinquente mais empedernido.80

Implementar a premissa já assentada no item anterior (o primeiro passo para a cons-


trução de uma política criminal não violenta do crime e transformação de seus efeitos vio-
lentos é impedir a incidência da pena criminal) é uma escolha e uma tarefa políticas. Come-
ça pelo seu desenho técnico de base político-criminal e se realiza, sem qualquer estranheza
ao que já possuímos, por definição legislativa.81 São planos de saber criminal e legislativo
que devem, respectivamente, representar e implementar a necessária interação harmônica
entre sistema criminal material e o novo sistema processual criminal não violento.

Claus Roxin. Chega-se, na atualidade, à consideração da política criminal como transcendente à própria dogmáti-
ca, de forma a determinar seu conteúdo, em um contexto teleológico-racional. Tomada, assim, sob um conceito
amplo, correspondente ao conjunto dos procedimentos pelos quais o corpo social organiza a prevenção e a as res-
postas ao fenômeno criminal, faz-se necessário analisar as influências contemporâneas da política criminal para o
estabelecimento dos critérios de legitimidade e, portanto, de racionalidade da intervenção penal” (p. 367-369).
79
Cf. item 47, infra.
80
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal, cit., p. 35.
81
Essa opção de política legislativa já é praticada de há muito no modelo criminal persecutório-punitivo, logo pode-
rá ser implementada por um viés político-criminal não violento nesse novo espaço de abordagem e tratamento da
“violência envolvente” ao crime. Ainda no escólio de Alamiro Velludo SALVADOR NETTO (Finalidades da
pena, cit. item 4.3.3, Parte 1), quando encerra o exame da norma de sanção e a culpabilidade com o exame da
“necessidade da pena”: “No interior do conceito de culpabilidade, referente à norma de sanção e direcionado ao
intérprete aplicador do Direito, resolveu-se por bem efetuar uma divisão. De um lado, os elementos positivados,
legislados. No caso brasileiro, são eles: o tipo de culpabilidade, a imputabilidade, a consciência do ilícito e as
causas de extinção da punibilidade. Todos eles encerram um julgamento de necessidade de pena. Porém, ao invés
de entregarem esta tarefa integralmente para o magistrado, permitem que este a realize de modo mais estreito,
com menor discricionariedade, mais fortemente amparado por critérios legais. Cuida-se, assim, de uma transfe-
rência mais cautelosa do juízo legislativo à apreciação judiciária, razão pela qual estes conceitos refletem, para
o interlocutor da norma secundária, a avaliação da necessidade de pena em sentido amplo, predeterminado”.
46.  Política criminal da não violência 611
A percepção desse não pertencimento da pena no modelo não violento abre, ipso
facto, o necessário horizonte para a transformação social. Isso porque a resposta à violência
que envolve o crime e seus padrões subjacentes deixa de ser binária, “pena ou não pena”, e
passa a ter uma vasta gama de possibilidades cuja escolha e construção devem ser determi-
nadas pelo caso concreto e tendo em vista a situação mais ampla da violência de sua ocor-
rência e consequência (o novo espaço de política criminal).82 Essas possibilidades de resposta
possuem limites e diretrizes constitucionais e legais que lhe gizam a área ampla – mas não
infinita – e orientam o propósito da política criminal em seu espaço da não violência.
Por não ser punitivo e, portanto, não ser mais violência (institucional), esse mode-
lo criminal não violento se coloca como um prius do modelo tradicional (persecutório-
-punitivo) por incidência do princípio penal e processual penal da ultima ratio que orienta e
limita a incidência da violência institucional e, portanto, do próprio aparato criminal.83 O
primado da ultima ratio deverá, portanto, ser orientador de precedências e prevalências,
mas não impositivo do modelo criminal não violento, cuja voluntariedade é um de seus
elementos constitutivos.84
A ultima ratio, portanto, será a diretriz político-criminal a servir de critério organi-
zativo de convivência entre os modelos criminais (violento e não violento).85 Porém, deve-se
assentar, para não se deixar dúvida da renovação de leitura que se propõe neste trabalho,
que ela não é usada para fim de “reduzir” a intervenção (punitiva) penal – no modelo cri-
minal não violento não há essa forma de resposta ao crime. Tal postura tem todo nosso
apoio e deve ser mantida e incrementada no modelo criminal violento, que precisa ser arre-
fecido e buscar uma tendência de punir menos, nas palavras de ALBERTO M. BINDER:
tendência de “economia da violência”.86
Todavia, aqui se propõe um outro nível de utilização da ultima ratio. Ela deve operar
como diretriz de convivência entre os modelos, sendo que o não violento, por tudo que sig-
nifica quanto à redução das violências institucional e transformação dos efeitos da violência
criminal, deve preceder ao persecutório-punitivo sempre possível em face da voluntarieda-
de e comprometimento das pessoas diretamente envolvidas no conflito criminal.

82
Sobre essas possibilidades de resposta e sua metodologia construtiva, cf. item 48.1, infra.
83
Para uma análise do primado da ultima ratio tanto ao sistema penal quanto processual penal, v., por todos,
BINDER, Alberto M. Derecho Procesal Penal, cit., t. II, Capítulo XV. Sobre esse ponto, em uma síntese de prin-
cípios que forma e decorrem daquele primado, leciona: “3. O princípio da mínima intervenção ou ‘ultima ratio’,
em sentido lato, é uma regra de eficácia e como tal constitui um limite interno da política criminal. De acordo
com esta regra, se você quiser acabar com a violência e o abuso de poder na resolução de conflitos (e esse é o
objetivo final da política criminal como parte da política de gestão de conflitos), é claro que deve usar o mínimo
de violência possível para alcançar esses fins e ademais evitar o exercício do poder que historicamente mais
perigosamente se aproximou das formas brutalmente abusivas, até o presente” (p. 221, traduzimos).
84
Sobre a essencialidade da voluntariedade tanto do infrator quanto da vítima, sem possibilidade de imposições ou
ameaças para a aceitação do modelo não violento, cf. item 48.2, especialmente seu subitem 48.2.1, infra.
85
O uso do primado da ultima ratio neste ponto do texto tem a mesma funcionalidade do empreendido por Alberto
M. BINDER (Derecho Procesal Penal, cit., t. II, p. 152-156 e Capítulo XV) para fixa-lo como diretriz político-
-criminal ao que denomina “processo composicional” (sobre esse “processo” dedica todo o Tomo IV de sua obra,
Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2018. t. IV). Se o uso funcional da ultima ratio é o mesmo,
dirigem-se a “processos” distintos, pois se aplicam de formas diferentes: para nós, antes e sobre os modelos cri-
minais, de forma a orientar-lhes a convivência; para BINDER, dentro do modelo criminal contendo a sua violên-
cia (institucional) seja reduzindo-a, seja impedindo-a.
86
Nesse sentido não é usada apenas pelos processualistas penais, tal qual exemplificado com BINDER (Derecho
procesal penal, cit., t. II, Capítulo XV, § 2, p. 229), pois nesse passo colocam-se também os penalistas em geral,
v., por todos, Ana Elisa Liberatore Silva BECHARA (Bem jurídico-penal, cit., item 6.3.2) quando explica que o
sentido atual da intervenção mínima e da subsidiariedade tem como seu fundamento aquele primado.
612 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A proposta é nova e há desafios a serem enfrentados na busca da melhor harmoniza-


ção do funcionamento compartilhado e alternativo entre os modelos. Dos desafios, o primeiro
é estabelecer a convivência sem que a aproximação gere interpenetração de agências e insti-
tutos produzidos e formados pela ideologia da violência na matriz do novo modelo criminal;
o que, de certo, minaria “de” princípio e “no” seu axioma o modelo criminal não violento.
Para dar maior nitidez do que se deve evitar na convivência dos dois modelos, traça-
remos no próximo subitem algumas diretrizes que nos parecem fundamentais para garantir
uma boa harmonização.

46.3 O modelo criminal não violento precisa de estruturas e agências próprias: razões
para alguns elementos elaborados e desenvolvidos ao modelo criminal violento não sejam
aproveitados
Por toda a Parte I deste trabalho foi demonstrado que ideais e ideias que formaram
e conduziram toda a história do modelo criminal e seus sistemas penais e processuais pe-
nais estavam diretamente ligados ao momento político-social, às vicissitudes militares das
guerras de conquista ou de defesa e às variações religiosas e econômicas.87 Mostrou-se,
enfim, que o(s) sistema(s) processuais penais, assim como todo o Direito, foram formados,
implementados e alterados ao sabor das variações históricas de todas aquelas áreas da vida.
Evidenciou-se que o aparato criminal (instrumentos normativos; agência se agentes; propó-
sito e metodologia) sempre foi consequência de escolhas do poder instituído para se proteger
e imprimir seus desígnios de controle social e dirigismos, essencialmente de natureza político-
-econômica, na qual se inseriram no curso da história justificativas religiosas e sociais e,
ainda, ações bélicas e policiais.88 Com isso, e limitando-nos apenas ao âmbito das institui-
ções e agências criminais, não há erro em se afirmar que todas sempre surgiram, evoluí­ram,
desapareceram e foram reformadas e novamente implantadas sob novas vestes e intensida-
des diversas a partir da cultura da violência. Ela, de raízes longínquas no tempo e profundas
em nós, está na base cultural dos povos atuais e, portanto, está no antes e no fundo da for-
mação e da informação da cultura jurídico-criminal.89 Muitos lutam para reduzir a violência
dentro do aparato criminal; tantos outros, ora com maior ora com menor grau de sucesso,
pelas mais variadas justificativas, ampliam-na e resistem a seu arrefecimento. Porém, am-
bos os grupos travam disputas em meio a agências e estruturas pré-formadas, instituídas e
desenvolvidas para agências e agentes de um modelo criminal violento.90
Este modelo único é o destino para o qual novos agentes são preparados pelas uni-
versidades e faculdades de direito, conforme regras jurídicas constituídas a partir da lógica
retributivo-preventiva (vingança e medo) ao binômio “crime-punição” (pecado-castigo;
insurgência-opressão; diversidade-controle; etc.).91 Esta mesma lógica, observada pela pers-
pectiva da violência ínsita a todos esses binômios de “ação-reação”, revela-se ilógica a quem
deseje reduzir a violência social dentro da qual, neste trabalho, compreende as violências

87
Acerca do momento político-social, cf. itens 8.1, 10.1, 12, 17, 25.1 e 26.1, supra; quanto às guerras de conquista ou
de defesa, cf. itens 8.2.1, 12, 17, 24.2, 25.1 e 26.1.1, supra; no que tange às variações religiosas e econômicas, cf.
itens 9.1, 12, 17, 18.2 e 24.1, supra.
88
Cf. item 28, supra.
89
Cf. itens 43.1 e 43.2.1, supra.
90
Cf. item 46.1, supra.
91
Cf. itens 17.1 e 44.4, em especial a nota 251 deste último item, supra.
46.  Política criminal da não violência 613
conflitual-criminal e institucional. Ela, que nos impregna e a como somos formados e está,
desde a raiz, nas estruturas e agências do aparato criminal, ensina que para conter a violên-
cia (criminal) precisamos do uso de mais violência (institucional, persecutória e punitiva),
pois a combinação de ambas resultaria em “paz” e “ordem”. A força cultural nos oblitera o
senso crítico e permanecemos acreditando, aprendendo e ensinarmos que violência contra
(rectius, mais) violência resulta em “harmonia social”.92 Mesma força que forma e se insere
na cultura jurídico-criminal para nos manter acreditando, aprendendo, ensinando e prati-
cando aquela lógica da violência a despeito da força da realidade de incremento de violência
social (criminal e institucional) em meio à qual vivemos no Brasil nas últimas décadas.93
A cultura da violência integra e molda a cultura e a “lógica” jurídico-criminal do seu
modelo violento (persecutório-punitivo) desde as opções político-legislativas até as ações
cotidianas das agências persecutório-judiciais. Passando, indubitavelmente, e não com me-
nor importância, pelos centros universitários que ensinam e praticam aquelas cultura e lógi-
ca desde o modelo de metodologia de ensino até o de avaliação de mérito-prêmio por quem
melhor se notabiliza por reproduzi-las.
Fomos todos formados em meio a essa cultura jurídica, que espelha e perpetua a
da violência, para naturalizar aquela lógica e empreendê-la (ambas) nas estruturas do apa-
rato criminal já pré-formadas àquele molde, por metodologia (inquisitio) e com propósito
(controle-submissão para a “paz” e pela “ordem”) também a seu feitio.94
As considerações até aqui feitas – e dentro do possível demonstradas no curso deste
estudo – não têm um sentido crítico, purgatório ou mesmo revolucionário, mas visam a
evidenciar a situação em que nos encontramos: temos estruturas e agentes internos forma-
dos e informados (por metodologia de atuação e propósito advindo dos agentes externos do
modelo e integrantes dos poderes instituídos) apenas na cultura da violência. A indagação
decorrente é óbvia: essas estruturas e esses agentes são aptos a servirem ao modelo criminal
de ideologia e eixo central antípodas (a não violência) àqueles em que foram forjados e dos
quais se nutrem cotidianamente?
A pergunta é tentadora e desafiadora. Porém, antes de buscar por sua resposta, pre-
cisamos indagar se ela é pertinente ou, de outro modo, qual de suas possíveis respostas
trará benefício.
Se entendermos por “benefício” uma maior eficiência interna do modelo criminal
persecutório-punitivo, a resposta deve ser negativa. Isto porque, como já demonstrado por
toda a Parte II, com base em números, todas as fases (persecutório-judicial-executória) do

92
Cf. itens 43.2 e 43.2.1, supra.
93
Cf. item 40, supra.
94
Salo de CARVALHO [O papel dos atores do sistema penal na Era do Punitivismo (o exemplo privilegiado da
aplicação da pena). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Parte I, Capítulo 6] destaca toda a tradição inquisitória na
formação dos “atores” do que ele denomina sistema penal, para nós “modelo criminal”, mas ambos tratamos da
modalidade persecutória e excessivamente punitiva. Com base em José Eduardo Faria, Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho, Anita Novinsk e Leonardo Boff, assevera neste ponto: “Importante destacar, portanto, que a técnica
repressiva moldada no sistema inquisitório estabelece modelo paradigmático de administração da justiça crimi-
nal que orientará grande parte dos modelos jurídicos autoritários contemporâneos. Conforme destaca Jacinto
Coutinho, a elaboração desta matriz processual penal é tão genial que permanece vigente nos tempos atuais –
diagnóstico, diga-se, não restrito apenas à realidade brasileira. Caracterizar a estrutura do paradigma inquisi-
tório, com a precisa identificação dos papéis atribuídos aos sujeitos da persecução penal, permite, portanto,
traçar o horizonte de projeção, apontar o direcionamento da atuação do sistema punitivo, pois ‘mudam os sinais,
mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.’” (p. 75).
614 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

modelo criminal violento estão colapsadas95 e não atendem a contento nem mesmo a crimi-
nalidade que lhes é oficialmente informada; havendo grande percentual de cifra oculta96.
Do que atendem, com dificuldade e mercê de muito esforço de seus agentes internos (poli-
ciais, acusadores, defensores, juízes e executores), o que resulta em pena criminal ou gera
mais violência estigmatizante ou encarceramento, o que, como também ali demonstrado, é
fator criminógeno para novas violências criminais e institucionais. Tudo a, disfuncional-
mente, retroalimentar a espiral ascendente da violência social. Sendo assim, retirar ou utili-
zar parte da estrutura (instrumentos e agências) e agentes para a formação e implementação
de um novo modelo criminal é contraproducente para o modelo persecutório-punitivo exis-
tente. Máxime se a isso acrescentarmos que esses agentes, para alterarem a metodologia e
propósito que dão dinâmica e direção ao modelo, deverão fazer esforço adicional para novo
aprendizado e treinamento para, somente depois − e, ainda − alterar a natureza e funciona-
lidade de todos os elementos (normativos e estruturais) que o integram. Definitivamente,
retirar essas pessoas e desviar o uso das estruturas não será benéfico a esse modelo, para o
qual este estudo não defende a substituição ou extinção, mas apenas o arrefecimento puni-
tivo por meio de uma racionalidade constitucional.
Se o aproveitamento de agentes e elementos do modelo criminal persecutório-
-punitivo não é eficiente ou útil para ele, resta saber se será benéfico ao modelo criminal não
violento aqui proposto; ou seja, se aqueles podem ser utilizados dentre de uma ideologia, ló-
gica e dinâmica da não violência. A resposta também é no sentido negativo: o aproveitamen-
to de agentes e estruturas é contraproducente e prejudicial também a um modelo emergente,
pois trarão consigo toda uma cultura da violência impregnada em sua ontologia e teleologia.
Algumas indagações que podem guiar a explicação do acima afirmado: é mais fácil
mudar as pessoas e estruturas já existentes ou formar novas e outras já de partida afeitas
e treinadas na ideologia e dinâmica da não violência? Melhor (re)adaptar as pessoas já
com posição funcional hierárquica (agentes internos) definida a algo novo, ou buscar no-
vas pessoas afinadas por personalidade e ideologia à não violência para, com novas técni-
cas e práticas, integrarem novos papéis no novo sistema processual não violento?
A história é recheada de experiências em que somente com novos agentes um novo
modelo criminal pode ser implementado com sucesso.97 É iterativo e senso comum que
pessoas tendem a manter e fazer o que aprenderam e já fazem a terem que aprender novos
conhecimentos e a desenvolver novas habilidades, notadamente quando esse novo aprendi-
zado muda sua posição social e funcional-laborativa.
Sem anteciparmos o que será adiante tratado com especificidade, não se pode deixar
de fazer breves considerações sobre o profundo distanciamento ontológico e teleológico
entre os modelos criminais (violento e não violento) para evidenciar que o mais benéfico a

95
Para as fases investigativa e acusatória, cf. item 36, e seus subitens, supra. Para a fase judicial, cf. item 37, e seus
subitens, supra. Para a fase da execução da pena, cf. item 38, e seus subitens, supra.
96
Cf. item 39, e seus subitens, supra.
97
Para o Império Romano da “cognitio extra ordinem” e a sua fase final da católica, cf. itens 8.2.1 e 9.2, supra. Para
a Alta Idade Média, na formação da “inquisitio católica” cf. item 14.2, supra. Para o início da Baixa Idade Média
e a “inquisitio escolástica” na Europa continental, cf. item 20.2, supra. Para a implementação inicial do jury system
na Inglaterra da formação da common law, cf. itens 21.3 e 22, supra. Para o movimento político da Inquisição, e
suas variações de “inquisitio radical” na Europa continental, cf. item 24.3.2, supra. Para a criação e implementa-
ção do trial by jury inglês já nas monarquias da Idade Moderna e a “inquisitio mitigada”, cf. item 25.2.2.1, supra.
Para a fase humanista do Iluminismo e sua reação anti-iluminista da “inquisitio revolucionada” tanto na Europa
quanto em suas possessões nas Américas e, em especial, no Brasil, cf. item 26.2, supra. Por fim, para a diversidade
processual da “inquisitio premial-negociada”, cf. item 27.1, supra.
46.  Política criminal da não violência 615
um novo modelo criminal não é “importar” agentes de outro modelo, mas ensinar e treinar
novas pessoas para serem os específicos agentes internos dessa nova alternativa não violen-
ta de resposta ao “fenômeno criminal”.
A estrutura e os agentes internos do modelo persecutório-punitivo funcionam em
uma dinâmica implementada pela metodologia da inquisitio e estão direcionados a um pro-
pósito violento (persecução e/ou punição). Ao se mudar, no modelo não violento, a metodo-
logia (para dialogal)98 e a finalidade (para a busca de novas respostas sem uso da violência
institucional) não se pode deixar de notar uma mudança funcional e de posição dos agentes
internos em comparação com as existentes no modelo criminal violento. Os facilitadores do
novo modelo criminal não investigam, acusam ou julgam.99
Ao se proceder à busca de uma resposta consensual pelas partes diretas do conflito
pelo método dialogal não há posição institucional para “sujeitos do poder-saber”, os agentes
internos que controlam as fases persecutórias e decisórias no modelo tradicional. Os tercei-
ros que facilitam o diálogo entre vítima e infrator não substituem àquela ou impõe vertical-
mente “sua” decisão a este. Ambos laboram, facilitados por um novo agente interno (facili-
tador) que atua no plano horizontal das partes naturais do conflito e em dinâmica horizontal.
Assim, aos agentes internos do atual aparato criminal violento não basta o aprendizado da
ideologia da não violência, de uma nova metodologia de atuação em que assistem à busca
de uma resposta a ser criada a partir dos integrantes naturais do conflito. Eles precisam
estar dispostos a sair da posição verticalizada sobre o conflito e as suas partes e, com isso,
perder sua posição de “poder” e de “saber”.
É compreensível que alguns agentes internos do modelo persecutório-punitivo este-
jam dispostos a colaborar com tamanha mudança, seja por afinidade pessoal e ideológica
com a não violência, seja pela constatação de que aquele modelo não “resolve” as causas
penais e gera mais violência em meio à social. Movidas por essas razões, essas pessoas po-
dem e devem auxiliar nessa mudança. Contudo, é necessário se respeitar a imprescindibili-
dade de independência do novo modelo com estrutura e agências próprias. Isso significa
que, integrantes das agências do modelo criminal persecutório-punitivo, sem deixarem suas
agências e modelo para intervir ou determinar ações ou procedimentos no modelo não vio-
lento e seu sistema processual, poderão participar na definição de critérios e diretrizes im-
pessoais e objetivos que sirvam para, recebidos os casos concretos, fazerem sua triagem e
encaminhamento a esse modelo.100
Inserir no modelo violento nova ideologia, metodologia e propósito somente causará
tensão nas estruturas e reação contra essas mesmas pessoas que querem a mudança. Assim,
os agentes que não se identificam com o modelo criminal tradicional terão mais sucesso se
migrarem para o novo modelo ora proposto, pois o modelo criminal persecutório-punitivo
de séculos sempre resiste e fagocita qualquer iniciativa em torná-lo diverso. Esse modelo
tradicional muda a todas as iniciativas que não lhe sejam afins; elas nunca o mudaram. Ele
as absorve e transforma em suas variantes internas, mas sempre punitivas e violentas.
Práticas e procedimentos incipientes precisam de estruturas e agências próprias e
afeitas à não violência. Como já destacado neste trabalho, a cultura da violência se mantém,

98
Sobre o diálogo quanto à metodologia da não violência na solução dos conflitos, cf. item 44.4, supra. Quanto ao
diálogo como metodologia, v. item 48.2.2, infra.
99
Sobre novas agências e agentes no novo sistema processual não violento, cf. item 48.3, infra.
100
Acerca das aproximações entre os modelos persecutório-punitivo e não violento, cf. itens 48.3 e 49.1.1, infra.
616 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

difunde e resiste a qualquer alteração pelas “estruturas de dominação” em cujo bojo se in-
serem tanto elementos normativos do aparato criminal quanto suas agências persecutórias,
judiciárias e executivas.101
O modelo criminal não violento também não pode utilizar essas estruturas e agên-
cias pois, para além de um novo agente interno (facilitador) tem que inserir outros partici-
pantes no diálogo e que estão, historicamente, defenestrados do modelo criminal persecutó-
rio-punitivo: a vítima e sua comunidade próxima também atingida pelos efeitos da violência
criminal, assim como próximos ao infrator e que tanto podem ter sido atingidos por sua
violência, quanto podem ajudá-lo na autorresponsabilização e no diálogo de busca de uma
resposta por sua ação positiva.102 Se a vítima perdeu seu lugar de fala há séculos no sistema
processual penal tradicional, o infrator não tem um apropriado ambiente de fala com espaço
de escuta. Ambos foram afastados entre si para não dialogarem sob a alegação de que a
violência pública da pena era melhor, socialmente, do que a vingança privada.103
Pela política criminal não violenta, a vítima e a comunidade voltam a ter o protago-
nismo na resposta ao conflito criminal, sendo destinatárias das ações e preocupações do
infrator quanto aos atos por este cometidos (crime) e que devem ser reparados. O terceiro
desse diálogo não é o juiz, como titular do direito de punir, mas um facilitador cuja função
é promover e estabelecer um ambiente dialogal confiável e respeitoso e que não tem poder
decisório ou impositivo sobre as partes.104
Com o ingresso desses novos integrantes em suas reconquistas de protagonismos no
espaço político-criminal de novas modalidades de respostas ao crime e sua violência envol-
vente, os agentes internos clássicos do modelo persecutório-punitivo perdem função. Como
a fixação do fato se faz pelo autorreconhecimento das partes do conflito (vítima, infrator),
as estruturas persecutórias de reconstrução histórico-fática são desnecessárias. Com as es-
truturas e agências acusatórias não ocorre diferente. Fixado e assumido o fato e sua violên-
cia envolvente pelas partes como a pauta da aproximação para o diálogo, não há o que ser
imputado a alguém.105 Por fim, as estruturas e agências decisórias também perdem a função

101
Cf. item 43.2.1, supra.
102
Sobre esses novos participantes, cf. item 48.3, e seus subitens, infra.
103
Aqui há um erro histórico que o trabalho se incumbiu de desmistificar: a vítima foi retirada do cenário processual
como forma de tomada de poder pelos poderes e erro atual de que ficarão sozinhas e se matarão. Isso foi identifi-
cado já na mudança do direito germânico antigo (horizontal) para o verticalizado da inquisitio católica do final da
Alta Idade Média, cf. item 14.1, supra, e dela a todos os sistemas penais e processuais que a sucederam até nossos
dias.
104
Sobre a impossibilidade estrutural, funcional e metodológica da impossibilidade de o juiz, ou qualquer outro su-
jeito de poder-saber que ocupe posição de presidente da inquisitio, fazer parte do modelo não violento, uma vez
que é de método diverso, v. item 48.2.2, infra. Sobre a figura do facilitador na metodologia dialogal, v. item 44.4,
supra. Para a mesma figura no sistema processual criminal não violento, em seus vários subsistemas restaurati-
vos, v. item 48.3.2, infra.
105
Alberto M. BINDER (Derecho Procesal Penal, cit., t. II, p. 252-258) inclui como “instrumentos” da política cri-
minal a polícia investigativa, o Ministério Público e as agências carcerárias e de penas alternativas (respectiva-
mente, p. 252-257, para as duas primeiras, e p. 260-262, para as últimas); levando ao nível do indivíduo, não das
agências, preferimos denominar “agentes internos”, a fim de facilitar a compreensão de que há pessoas que atuam
na aplicação da política criminal de modo violento institucionalmente. Ele adverte ser um equívoco incluir os
“juízes” como “instrumentos” daquela política; e, nesse ponto, o autor refere-se expressamente às pessoas, não à
instituição do Poder Judiciário. Este processualista afirmar que os juízes não são instrumentos de política crimi-
nal, pois em um sistema adversarial (para ele o oposto do “inquisitivo”), eles não investigam ou acusam, mas
apenas se limitam a agir dentro do requerido pelos órgãos persecutórios, seja em matéria de medidas cautelares,
seja na fixação de pena criminal, sendo que ele poderá decidir no máximo o que a ele fora requerido pela acusação;
pode ser uma pena menor ou até mesmo a inocência, nunca indo além do pedido ministerial. Além disso, e ainda
46.  Política criminal da não violência 617
de “dizer o direito” e impor “sua decisão”, restando-lhes o controle externo de a resposta
construída pelas partes do conflito consistir em ação positiva digna e que traga uma trans-
formação dos efeitos da violência praticada aos por ela atingidos. As estruturas e agências
executórias não terão sorte diversa, pois terão funções reduzidas uma vez que a construção
da resposta por quem deverá realizá-la confere alta probabilidade de cumprimento, devendo
auxiliar na sua melhor exequibilidade junto a terceiros ou às próprias partes para manterem
seus compromissos recíprocos.106
Esses novos e relevantes papéis e atores impactam nas formas e hipóteses de possí-
veis resoluções do conflito criminal e às quais o modelo violento da pena criminal só res-
pondia de forma binária, punir ou não punir; e para satisfação do poder estatal, que detém
o monopólio punitivo.
Enfim, como se demonstrou pelos exames ontológicos e teleológicos, como as estru-
turas e agências persecutório-punitivas perdem em muito sua função e sua racionalidade no
modelo não violento, caberá a mudança dos agentes internos afins e dispostos ao desafio de
formarem um novo modelo não violento mudarem para ele. Esse movimento lhes garante
muito menos pressão vertical descendente da estrutura de dominação da qual fazem parte e
lhe cobram uma atuação violenta contra o crime.107
O caminho inverso de se inserir práticas não violentas, ou mesmo menos violentas,
no modelo tradicional, confiando que alguns agentes internos afins poderiam alterar ou
resistir às estruturas e agências que o compõem, não deu certo no curso da história e não
deu certo na experiência recente do Brasil. Esta última é o que se analisa, exemplificativa e
analiticamente, no próximo subitem.

o campo ideal, afirma que os juízes se pautam dentro de “[...] uma política criminal democrática e minimalista que
busca ser eficaz e eficiente, por imperativo da gravidade dos instrumentos que utiliza, que não dá a ninguém
margem para improvisação e ao excesso de violência [...]” (p. 258-259). Se teoricamente podemos também con-
cordar com aquele jurista, no Brasil a realidade tem sido diversa, seja em matéria legislativa, seja pela postura
confessada de alguns magistrados. Legalmente, e apenas como um exemplo, fiquemos no art. 385, Cód. Proc. Pen.
(“[N]os crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público
tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”). Este
dispositivo ainda vem sendo sistemática e reiteradamente reafirmado como válido por nossos Tribunais [“O Juiz
pode, de ofício, observar agravante – artigo 385 do Código de Processo Penal” (RHC 102.985, rel. Min. Marco
Aurélio, Primeira Turma, DJe 23.11.2020, julgado em 16.11.2020); “É constitucional o art. 385 do CPP. Jurispru-
dência desta Corte” (HC 185.633 AgR, rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, DJe 24.03.2021, julgado em
24.02.2021); “2. O art. 385 do CPP foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. Precedentes do STJ
e do STF” (AgRg no REsp 1.943.370-RS, rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 16.11.2021, julgado em
09.11.2021); “Descabe falar em violação do princípio da correlação. Isso porque, conforme a dicção do art. 385
do Código de Processo Penal, aplicável, igualmente, às circunstâncias judiciais do art. 59 do CP [...]” (AgRg no
HC 591.914-SC, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 27.09.2021, julgado em 21.09.2021)]. Quanto à
postura aferível por meio de pesquisas e declarações, é exemplo significativo o estudo trazido por Rubens R. R.
CASARA, realizado em maio de 2011 junto aos juízes criminais no fórum central da Comarca do Rio de Janeiro,
no qual se identificaram “indícios de que os magistrados fluminenses, em sua maioria, acreditam atuar como
agentes garantidores da segurança pública” (Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 208). Dos
25 juízes respondentes, 21 afirmaram que consideravam a “segurança pública” em suas decisões (CASARA, Rubens
R. R. Mitologia processual penal, cit., p. 208-209). Com isso, se teoricamente se pode discutir o acerto ou posição
do citado jurista, no Brasil há uma disfunção que, olhada a realidade, deve incluir os juízes criminais em um “ser”
instrumento de política criminal, apesar de esta configurar afirmação incorreta no plano do “dever ser”. No senti-
do do afirmado por este pesquisador, v. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das
leis processuais penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 104-105; e CARVALHO, Salo de. O papel dos
atores do sistema penal na Era do Punitivismo (o exemplo privilegiado da aplicação da pena), cit., Parte I, Capí-
tulo 4, p. 59-66.
106
Sobre o leque de soluções e como a ela as partes chegam por construção dialogal facilitada, cf. item 48.1, infra.
107
Sobre a justificativa da violência pela estrutura de dominação que os agentes internos integram, cf. item 43.2.1, supra.
618 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

46.3.1 A transação penal (art. 76, Lei n. 9.099/1995): tentativa “quase” não violenta cuja inserção
no modelo criminal violento privou-a de maiores e melhores ganhos sociais e individuais;
a vítima se mantém excluída e a cultura punitiva dirige agências e estruturas
Inicialmente cabe esclarecer a razão de se tomar apenas o instituto da “transação
penal” como exemplo, e não os assim tidos outros institutos também “despenalizadores” da
Lei n. 9.099/1995; nominadamente a “composição civil” (art. 74) e a “suspensão condicional
do processo” (art. 89).
A composição civil não é analisada quanto à sua adesão e aplicação pelas estruturas
ou agências criminais do modelo violento pois ela, em regra, ocorre fora do aparato crimi-
nal e sua natureza não integra o instrumental normativo-criminal. É, tecnicamente, instru-
mento normativo de acordo civil entre as partes do conflito, ao qual foi conferido, por polí-
tica legislativa, o condão de extinguir a punibilidade se homologado judicialmente e, ao
final, cumprido. Além disso, seu âmbito de incidência vincula-se às situações em que a
iniciativa da ação penal depende de autorização da vítima (as ditas ações penais de iniciativa
pública condicionada à representação) ou de sua integral condução (as ditas ações penais de
iniciativa privada).108 Ressalve-se que neste caso a vítima tem protagonismo, pois as tratati-
vas são feitas por ela ou seus representantes.
A suspensão condicional do processo não é analisada neste item, por tratar-se de
forma de simplificação processual, já tratada neste trabalho e ali classificada como
forma persecutória mitigada, uma vez que há persecuções investigativa e acusatória até
que ela seja oportunizada ao imputado.109 Está, portanto, dentro da variedade processual
penal como instituto que pressupõe a persecução e busca evitar apenas a punição, tam-
bém por incidência político-criminal de extinção de punibilidade caso o imputado acei-
te a proposta de suspensão processual e cumpra com as condições estabelecidas e ho-
mologadas judicialmente.110
A transação penal, ao contrário, prevê a não realização de persecuções penais inves-
tigativa ou acusatória, uma vez que, registrada a ocorrência fática em “termo circunstancia-
do”, sem qualquer ato investigativo pela metodologia da inquisitio, a causa é levada perante
o agente do Ministério Público para analisar se é caso de arquivamento ou oferecimento de

108
Seu texto legal é: “Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante
sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se
de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homolo-
gado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação”.
109
Cf. item 42.3.3, supra.
110
Seu texto legal é: “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas
ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois
a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime,
presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá sus-
pender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:  I – reparação do dano,
salvo impossibilidade de fazê-lo; II – proibição de freqüentar determinados lugares; III – proibição de ausentar-se
da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV – comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmen-
te, para informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordi-
nada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será revogada
se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado,
a reparação do dano. § 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do pra-
zo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o
Juiz declarará extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.
§ 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos”.
46.  Política criminal da não violência 619
transação penal. Isso deve (rectius, deveria) sempre ocorrer em uma audiência com a pre-
sença do “autor do fato” (não sendo denominado imputado, suspeito, investigado, denuncia-
do, acusado ou réu), seu defensor (de presença obrigatória), o representante do Ministério
Público e o juiz. Como a transação penal está prevista em lei para incidir em crimes cuja
ação penal seja exercida, em regra, por acusador público de modo incondicionado ou, se
condicionado, após a vítima ter representado autorizando esse exercício acusatório, a vítima
não participa dessa audiência. Aqui se revela a primeira razão de a “transação penal” ser um
“quase” instrumento criminal não violento: a vítima continua, em regra, excluída da discus-
são sobre aquele “acordo penal”.111 A segunda grande razão desse “quase” é o fato de que a
transação penal redunda em aplicação de “pena criminal”.112
Definitivamente a “transação penal” não é um instituto não violento, pois, a despei-
to de impedir a persecução penal e reduzir a punição a penas menos violentas, ela é forma
de impor pena criminal mais rápido e sem qualquer benefício à vítima ou às pessoas atingi-
das pela violência produzida pelo crime. Ela também não aborda ou trata qualquer questão
que tenha envolvido o “autor do fato”, não compreendendo eventuais situações criminóge-
nas que, também sendo violências no sentido de supressão, redução ou negação de necessi-
dades básicas do ser humano,113 podem ser tratadas para evitar continuarem sendo causas
de novos conflitos (criminais ou não).
A despeito de os institutos acima descritos não serem uma nova política criminal –
eram apenas menos violentos −, houve uma natural euforia pois acenavam como uma mu-
dança n linha penal-expansionista daquela política na década de 90 no Brasil. Todavia,
frente a euforia de muitos doutrinadores e de alguns setores dos poderes Legislativo e Exe-
cutivo, notadamente por acenarem com uma contenção do aprisionamento que já então
crescia, houve resistências e os institutos, de modo especial a transação penal, sofreu desca-
racterizações intencionais pelas estruturas e agências do modelo criminal persecutório-
-punitivo.114 Poder Judiciário e Ministério Público foram protagonistas nessas resistências.

111
Esse afastamento foi afirmado pela doutrina − não sem exceções tão prestigiosas quanto − que comentou a lei já
em seu primeiro momento: “16. Pode o ofendido interferir na transação penal? O ofendido não tem qualquer
interferência na tentativa de transação penal. A lei é expressa, ao considerar apenas a vontade do Ministério
Público e do autuado, tanto no $ 4° como no § 5° do art. 76. E ainda que se adote a linha moderna que entende
ter o ofendido interesse à repressão penal (v. comentário n. 1), não se pode chegar a ponto de fazer prevalecer
sua vontade sobre a do Ministério Público, único titular da ação penal pública, de quem a vítima pode ser apenas
assistente simples. Assim, mesmo que a tentativa de conciliação civil tenha ficado frustrada, o acordo sobre a
aplicação imediata da pena não privativa de liberdade não poderá sofrer qualquer oposição por parte da vítima”
(GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, 26.09.1995. São Paulo: RT,
1996. p. 133). Este trecho consta da obra que em 1996 tornou-se a maior referência doutrinária sobre a lei, pois foi
obra escrita por três dos integrantes do grupo de Trabalho que apresentou o anteprojeto da futura lei e o último, um
estudioso do direito penal e criminologia: os professores Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio MAGALHÃES
GOMES FILHO, Antônio SCARANCE FERNANDES e Luiz Flávio GOMES.
112
O texto legal a indica essas duas razões referidas é: “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de
ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a
aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses
de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. [...] § 3º Aceita a proposta pelo
autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério
Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará
em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
[...]” (destacamos os trechos específicos).
113
Sobre essa aproximação da noção de violência neste trabalho, cf. item 43.1.1, supra.
114
Também à época, muitas foram as críticas de o texto legal não permitir a participação da vítima e aumentar a
submissão do “autor do fato” no momento “negocial”, não havendo qualquer diálogo entre as partes naturais do
conflito e, também, entre imputado e Ministério Público. Houve um desvelo de que a dita “justiça consensual
620 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A força da cultura da violência que formou desde os bancos universitários todos os


agentes internos do modelo criminal, assim como defensores privados e públicos, e, ainda,
informa as agências das quais fazem e a cultura forense para a aplicação das leis punitivas
conduz ao sempre ao “embate criminal” entre acusação e defesa, sendo o imputado o seu
objeto e a vítima a sua excluída.
Isso pode ser sentido por um dos principais autores da Lei n. 9.099/1995 e seus ditos
institutos “despenalizadores”, LUIZ FLÁVIO GOMES. Atuante por toda sua vida profissio-
nal e intelectual na área criminal115, atuou em entidades científicas, sendo o primeiro Presi-
dente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) no biênio 1993-1994. Foi um
dos primeiros e mais consistentes entusiastas daquela lei, tendo escrito e assinado artigo no
Boletim do IBCCrim em maio de 1996 intitulado “Juizados Especiais: uma revolução em
marcha”. Representava o pensamento e desejo de muitos doutrinadores e fez constar nesse
seu texto:

Não se pode negar que a Lei nº 9.099/95 padece de incertezas e omissões. É mui-
to rara, aliás (para não dizer impossível), nos sistemas jurídicos de direito escrito
(‘civil law’), uma produção legislativa isenta de controvérsias. Isso não impede
reconhecer sua extraordinária virtude de ter posto cm marcha no Brasil a maior
revolução do Direito Penal e Processual Penal. As vantagens do sistema de reso-
lução de conflitos penais pelo ‘consenso’ (que antes, no Brasil, somente Mato
Grosso do Sul conhecia) são perceptíveis e, até aqui, irrefutáveis. Por mais que
deixe aturdidos e estupefatos os que gostariam de conservar ‘in totum’ o moroso,
custoso e complicado modelo tradicional de Justiça Criminal (fundado na ‘verda-
de material’ – que no fundo não passa de uma verdade processual), essa forma
desburocratizada de prestação jurisdicional, autorizada pelo legislador consti-
tuinte (CF, art. 98, I), tornou-se irreversivelmente imperativa.116

O mesmo autor, sem perder sua posição de defesa da lei, em abril de 2000, escreve
outro artigo no Boletim do IBCCrim com o nome “Juizados Criminais: Esplendor ou Ocaso?”
em cujo ponto 5 mostra, claramente os efeitos que as agências e estruturas do modelo vio-
lento produzem sobre qualquer forma de arrefecer sua cultura formadora e informadora:

5. O mais preocupante na atualidade, não obstante, é a precária qualidade que se


nota em muitos processos consensuais, em termos de respeito às garantias míni-
mas penais e processuais. Ainda que sejam incontáveis as vantagens do sistema
consensual, já podem ser observadas umas claras tendências comprometedoras
do sistema, destacando-se, dentre tantas outras: (a) a aplicação ‘contra legem’ da

penal” muito pouco, ou quase nada, tinha de “consensual”. Na linha crítica, com a qual concordamos, veio a con-
sistente obra de Geraldo PRADO (Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003), publicada em 2003, com título alterado apenas para Transação Penal em sua segunda edição de
2006. Sobre as críticas da não participação da vítima, Alexandre WÜNDERLICH e Salo de CARVALHO, orga-
nizaram obra (Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005) que
consolidava e apresentava propostas de melhoria para que o Juizado (rectius, seus três principais institutos) tives-
se melhorias para ser menos punitivo e mais eficiente na diminuição da violência e trato do “fenômeno criminal”.
115
Este jurista foi em sua carreira profissional delegado de polícia, promotor público, juiz, advogado e parecerista,
sempre lecionando direito penal e criminologia paralelamente ao trabalho forense, terminou sua vida como depu-
tado federal.
116
GOMES, Luiz Flávio. Juizados especiais: a revolução em marcha. Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 41, p. 1,
maio 1996.
46.  Política criminal da não violência 621
pena privativa de liberdade (embora sem fundamento legal, há juiz que arbitra-
riamente está aplicando a pena de prisão quando há o descumprimento da transa-
ção); (b) a inexistência de uma solução racional quando acontece esse fenômeno:
iniciar o processo é impossível por falta de lei; mandar prender é arbitrário porque
o sistema consensual não admite a prisão; logo, com a máxima urgência necessi-
tamos de uma reforma legal para corrigir essa anomalia autofágica do sistema;
(c) a inobservância dos critérios interpretativos da insignificância e adequação
social, que levam à atipicidade; (d) a realização de transação penal em relação a
fatos concretos penalmente atípicos; (e) a desconsideração das garantias inerentes
à imputação objetiva e subjetiva; (f) o absurdo de se formular a proposta de tran-
sação penal sem a mínima descrição do fato típico cometido (para se condenar
alguém já não é preciso o processo tradicional, ocorre que agora estão ‘dispen-
sando’ até a existência de um fato típico); (g) a não participação do juiz na dis-
cussão da transação penal; (h) a desconsideração do princípio de ofensividade,
etc. Se em teoria a Lei dos Juizados foi concebida para despenalizar (mínima in-
tervenção), na ‘praxis’, muitas vezes, está dando efeito contrário, porque as garan-
tias mínimas penais e processuais não estão sendo observadas.117

Após essas considerações desse insuspeito e qualificado defensor da Lei do Juizados


Especiais e, por conseguinte, da transação penal, ele termina com a seguinte constatação do
que o modelo criminal violento (agências e estrutura) fizera àquela iniciativa redutora de
violência:

6. O atual estágio do sistema consensual brasileiro, tendencialmente anti-garantista


e burocratizante, especialmente em razão do menosprezo com que muitos tribu-
nais o estão considerando (até hoje vários Estados ainda nem sequer instalaram
os Juizados), nos leva a concluir que a flexibilização das garantias penais e pro-
cessuais, que caracteriza a moderna desformalização do Direito Penal, sempre
pode implicar no grave risco de não se praticar nem sequer as garantias míni-
mas. Eis o nosso alerta: reivindique sempre e nunca aceite transacionar com o
respeito às regras que disciplinam o devido processo consensual. Desburocrati-
zar não é desformalizar. Transação penal não pode significar aniquilação dos
direitos e garantias fundamentais da pessoa. A continuar como está, do esplen-
dor os Juizados logo conhecerão seu ocaso. E isso o que queremos?118

Os alertas das resistências e mau uso das estruturas normativas e físicas pelos agen-
tes internos vem sendo deletérias e opositoras até mesmo a minimalização da pena. Não é
possível se imaginar que estes mesmos agentes e estruturas ajam diferentemente com uma
política criminal que, mais que reduzir a violência institucional, defende o seu não uso em
um novo espaço normativo e de abordagem e tratamento de conflitos criminais. Mas con-
vém examinar qual foi a realidade após aquele alerta.
Tudo isso revelava uma completa falta de sintonia entre a cultura forense criminal
dos agentes internos e uma política de redução de danos punitivos. A transação penal, que
nasceu para ser um momento de encontro específico para cada caso criminal entre “autor do

117
GOMES, Luiz Flávio. Juizados criminais: esplendor ou ocaso? Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 89, p. 1, abr.
2000, destacamos.
118
GOMES, Luiz Flávio. Juizados criminais, cit., p. 1, destacamos.
622 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

fato”, Ministério Público e Judiciário, rapidamente passou a ser realizado em audiências


“coletivas”. Com a experiência pessoal e direta deste observador no Fórum Criminal Central
da Cidade de São Paulo (Complexo Judiciário Ministro Mário Guimarães – Barra Funda),
essas audiências reuniam aproximadamente uma centena de casos por evento. No auditório,
mais de centena de pessoas reunidas, em poucas palavras o juiz explicava que quem aceitas-
se pagar um valor em dinheiro poderia sair do recinto e se dirigir a cartorários para forma-
lizarem o acordo com o qual não responderiam a processo criminal e correriam o risco de
serem punidos. Os que não aceitassem, poderiam ficar na sala. Aos que ficavam, havia uma
segunda rodada de “esclarecimentos” de que o melhor era pagarem, iniciando-se indaga-
ções à membros da plateia sobre a razão da não aceitação da proposta de transação penal
anterior. As justificativas variavam de prescrição do crime, normalmente indicada por de-
fensores, até a impossibilidade de o autor do fato pagar valores de R$ 100,00 ou menos até.
Tudo girava em torno do que se precisava fazer para se ter um acordo ao final. Nada era
discutido sobre qualquer ponto do “fenômeno criminal” e da violência que dele se originara.
Nenhuma vítima era convocada e os recursos arrecadados nunca eram destinados a elas.119
JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO alertava, já após dez anos de vi-
gência da os Juizados Especiais Criminais, citando inclusive a transação penal, estavam mui-
to mais punindo do que “despenalizando”. Havia mais pena, embora com menos encarcera-
mento. Identificou que o problema estava na mentalidade e ideologia dos agentes internos que
transacionavam sobre fatos atípicos e usavam de pressão para os “acordos” serem realizados;
tudo sem qualquer consideração ao aumento estigmatizante de efeitos penais às pessoas, em
outras palavras, mais violência (institucional) onde sequer havia violência criminal. Tratando
especificamente da transação penal, que o professor identifica como “o instituto central da
Lei nº 9.099/95”, afirma que o legislador infraconstitucional precisava, com urgência, produ-
zir norma específica em que se traça-se, com segurança e nitidez, regras específicas do devi-
do processo legal, da nulla poena sine iudicio e o da nulla poena sine judice.120 As palavras
desse jurista muito bem indicam a necessidade da teoria que ora se formula como arcabouço
técnico e protetivo da ideologia da não violência já a partir do espaço político-criminal neces-
sário para a elaboração de um modelo coerente e resistente a essa aproximação e infiltração
fagocitária das estruturas e agências concebidas e postas no modelo criminal violento.

119
Essa situação de audiências coletivas, e inclusive mutirões de finais de semana, não realizadas para se tratar da
violência ou da vítima, mas para evitar milhares de prescrições, foi relatada em matéria jornalística elaborada em
2005 pela repórter Laura DINIZ (Sem Justiça para 15 mil casos de SP. O Estado de São Paulo, 15 ago. 2005.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/310645/noticia.htm?sequence=1. Acesso
em: 14 dez. 2021). O reconhecimento institucional da ocorrência dessas audiências coletivas, não obstante elas
violarem profundamente o próprio espírito do instituto transacional, pode ser visto, ainda em 2005, pelo I Con-
gresso Brasileiro de Execução Penal de Penas e Medidas Alternativas, realizado em Curitiba-PR, entre 30 de
março e 1º de abril. Na elaboração de suas diretrizes finais, a de número 5 foi destinada aos “Juizados Especiais
Criminais e sua efetividade na solução dos conflitos”. O subitem 5.3 assim preceituava: “Observação do disposi-
tivo legal das audiências individuais, não realizando audiências coletivas” (Disponível em: https://criminal.
mppr.mp.br/pagina-56.html. Acesso em: 14 dez. 2021).
120
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Manifesto contra os Juizados Especiais Criminais (Uma leitura de
certa “efetivação” constitucional). In: WÜNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (org.). Novos diálogos
sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 3-14, com trecho citado em p. 11.
Alertava, em um diagnóstico sobre como as estruturas inquisitivas eram mantidas a força da descaracterização
dos a ela corpos estranhos: “Desde esta perspectiva, algumas coisas ganham novos – e imprescindíveis – contor-
nos, tudo ao contrário do horror que foi o exibicionismo (de barbárie jurídica, naturalmente) do momento ‘post
legem habemus’. O sistema segue sendo inquisitório (não esquecer ser ele definido por quem, no processo, é se-
nhor da gestão da prova), razão por que o Juiz segue, pela lei, ‘dominus’ do processo (que nada tem a ver com a
ação – por favor – embora, com o CPP, insista-se no câmbio) e, assim, seu condutor-mor” (p. 11).
46.  Política criminal da não violência 623
A transação penal inserida dentro do modelo criminal existente ainda luta, mesmo
após mais de 25 anos de convivência,121 com as dificuldades de mentalidades despreparadas
para sua melhor aplicação122, falta de estruturas e recursos e uma confusão proporcionada
pela ideia que não encarcerar é produzir menos violência. Não prender é evitar uma violên-
cia vertical, mas alastrar acordos penais sobre fatos atípicos e outros que sequer apresentam
ofensividade penal concreta também é aumentar e usar o aparato criminal tradicional para
dissolver uma novidade menos violenta por meio de uma mentalidade (unidirecional) puni-
tiva. Não houve aproximação com o autor do fato e não houve abertura de espaço para a
vítima.123 Essa falta de aproximação impediu que se visse (ou se quisesse ver) para além do
“fato” e na direção da violência envolvente e seus aspectos e aptidão criminógena.

121
O cenário deletério à aplicação da transação penal como forma de aproximação para compreensão do problema
individual do autor do fato e, com isso, proceder-se a um exame criminológico e despenalizante sem estigmatiza-
ção, continua a existir. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça, em companhia com a Secretaria da Reforma do Judi-
ciário, encomendou ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) um “relatório de pesquisa” para exame,
levantamento de dados, e produção de informações sobre as dinâmicas e estruturas, assim como pessoal e reco-
mendações, quanto aos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. O relatório (INSTITUTO DE PESQUISA ECO-
NÔMICA APLICADA. Desburocratização dos cartórios judiciais: análise dos juizados especiais do Tribunal de
Justiça de São Paulo. Relatório de Pesquisa. Brasília: IPEA, 2015) traz em seu item “diagnóstico”, importantes
considerações. Com relação ao item “gestão de serviço e pessoas”, especificamente aos Juizados Criminais, iden-
tificaram em entrevistas que para haver menos burocracia e melhor organização de processos que para haver ce-
leridade e regularidade os promotores e defensores devem evitar requerimentos de diligências ou medidas que
signifiquem ampliação do procedimento. Não apenas reconhecem as “audiências coletivas em caso de advertên-
cia sobre os efeitos de drogas”, como ressaltam que a “organização específica” tende a ser “menos burocrática”
e, como instrumento disso, “há os termos de audiências e acordos coletivos” em que “ao invés de fazer um docu-
mento para cada sujeito da audiência, faz-se um, com opões para ser marcada com ‘X’ e espaço para que o su-
jeito assine ao lado” (Item 3.1.2, p. 13-14). Quanto ao item “organização do processo judicial” duas observações
demonstram uma preocupação pelo acordo prioritariamente e, em matéria de tóxicos, audiências coletivas “em
momento de transação penal ou em audiência de instrução e julgamento, a depender do Juizado onde são con-
duzidas” (Item 3.2, p. 18, item IV, e p. 19 em comentário final). Na parte 4 do relatório, voltada às “recomenda-
ções”, sempre com o intuito de agilizar e desburocratizar os processos para dar vazão à demanda, são feitas
considerações à falta de prestígio do princípio da oralidade e recomendações para adaptações dos agentes poli-
ciais civis, dos integrantes do Ministério Público e da Defensoria Pública. Indicando que todos, cada qual a sua
maneira (carência de atuação, demora por reenvio à delegacia, ausência atuação por falta de pessoal), não se
adaptaram a uma maior fluidez dos trabalhos.
122
Nesse sentido, v. REALE JÚNIOR, Miguel; WÜNDERLICH, Alexandre. Justiça negocial e o vazio do Projeto
Anticrime. Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 318, p. 6-8, maio 2019. Edição especial.
123
No sentido do exposto neste parágrafo, v. ACHUTTI, Daniel; CARVALHO, Salo. Justiça Restaurativa em Risco,
cit., p. 17-19. Neste artigo, dirigindo sua atenção à “justiça restaurativa” e os riscos que ela corre com o que deno-
minam a “colonização” pela “lógica inquisitorial”, os autores demonstram as experiências malsucedidas não
apenas com a Lei n. 9.099/1995, mas, também, com as ditas “penas alternativas”, instituídas pela Lei n. 9.714/1998
na Parte Geral do Cód. Pen., e as medidas cautelares alternativas, instituídas pela Lei n. 12.403/2011 no Cód. Proc.
Pen. Esses autores, analisadas a sua hipótese de trabalho e argumentado com esses três fatores, além das manifes-
tações de instituições de juízes sobre a figura do “juiz de garantias” e das “audiências de custódia”, afirmam que:
“4.3. Os dois episódios, lidos em conjunto com os três casos analisados, parecem confirmar o diagnóstico (hipó-
tese do ensaio) de que ‘a formação (e a ação) autoritária do Poder Judiciário brasileiro tem impedido a eficácia
dos institutos descarcerizadores’. Os episódicos esforços dos Poderes Executivo e Legislativo na redução do
controle penal são inviabilizados, no cotidiano forense, pelos atores judiciais, que mantêm a privação de liber-
dade como o centro ‘gravitacional’ das suas formas de pensar e de agir. [...] Assim, são entraves para a imple-
mentação de modelos alternativos de resolução de conflitos não apenas a estrutura normativa inquisitória do
processo penal brasileiro, mas (sobretudo) a formação autoritária do Poder Judiciário, enraizada na centraliza-
ção vertical das decisões, na burocratização dos procedimentos e na profissionalização dos atores, comprome-
tendo a superação dos paradigmas retributivo e correcionalista em direção ao paradigma restaurativo. Todos
esses elementos apontam para critérios de resolutividade de conflitos concentrados em práticas judiciais pre-
ponderantemente paternalistas, isto é, um modelo estruturado em procedimentos institucionais no qual o repre-
sentante estatal (juiz) protagoniza a cena e decide em nome ou apesar das partes. A forma tradicional de abor-
dagem é paternalista porque toma os indivíduos envolvidos em situações problemáticas como incapazes de
olhar, interpretar e superar os seus conflitos. Assim, ao mesmo tempo desresponsabiliza e incapacita as pessoas
de se tornarem sujeitos da sua própria história”.
624 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A experiência da transação penal não foi mais enriquecedora pois foi sufocada por
uma mentalidade punitiva (retributiva-preventiva) que foi forjada pela cultura da violência
desde a infância, teve sua reafirmação no ensino jurídico universitário e é perpetuada pelas
estruturas e agências do modelo criminal.
É exatamente por este contexto permanecer que entendemos que somente haverá
oportunidade de um sistema processual criminal não violento em um modelo criminal tam-
bém diverso e separado daquelas estruturas e agências do modelo persecutório-punitivo
tradicional.
Essa interpenetração fagocitária, todavia, já começa a ser percebida entre o modelo
existente e a “justiça restaurativa”; com claro risco para esta ter o mesmo fim da transação
penal. No próximo subitem faz-se esse alerta pela evidenciação de uma aproximação em
franco progresso.

46.3.2 “Justiça restaurativa”: uma tentativa verdadeiramente não violenta em iminente


risco
No subitem anterior foi feito um diagnóstico das expectativas (positivas) que cerca-
ram a recepção e implementação da transação penal no ordenamento (1995), sua resistência
inicial por agentes e estruturas, seguindo-se progressiva disfunção e, por fim, a perda de
uma iniciativa com muitas possibilidades. Neste tópico, ao contrário, haurida a experiência
anterior, fazemos um levantamento do que há para evitar que os erros já ocorridos com a
transação penal se repitam com a “justiça restaurativa”124.
Para isso, será feita uma análise quanto aos andamentos das propostas e projetos
normativos hoje existentes, a fim de se fazer alertas quanto a seu melhor encaixe no sistema
processual não violento e não no modelo criminal persecutório-punitivo.125 Para isso toda a

124
Com os mesmos argumentos e razões já esboçados quando tratamos de nossa preferência em não usar o termo
“justiça penal negociada” (cf. item 27, supra), entendemos que o termo “justiça” traga mais confusão do que
segurança à ideia que se quer passar com esse atuar. Contudo, seja pela tradição que reveste essa linha
político-criminológica desde sua formação, seja porque seus lineamentos ainda não estão precisos o sufi-
ciente para podermos precisar qual sua melhor nominação, sempre referiremos ao termo entre aspas e sem
outros destaques.
125
Como já destacado desde a segunda nota de rodapé do item 46.1, supra¸ há perfeita ciência deste pesquisador de
que a “justiça restaurativa” não se aplica apenas à esfera do conflito criminal. Nada obstante seja reconhecida em
sua “história próxima”, que data da década de 70 a sua difusão mais consistente sempre como meio alternativa de
abordagem e resposta ao conflito criminal (v. PRUDENTE, Neemias Moretti. Justiça restaurativa: marco teóri-
co, experiências brasileiras, propostas e direitos humanos. Maringá: Kindle, 2013. 1ª Parte, item 1), registrada em
caso de 1974 na cidade de Kitchener, província de Ontário-Canadá, com dois jovens acusados de vandalismo
contra 22 propriedades, o fato é que sua força não violenta e reparadora foi se espraiando há muitos domínios, por
exemplo, escolas e universidades, locais de trabalho e organizações (v. ELLIOTT, Elizabeth M. Segurança e
cuidado: Justiça Restaurativa e sociedades saudáveis. Tradução por Cristina Telles Assumpção. São Paulo: Palas
Athena, 2018. p. 109). O Manual sobre programas de justiça restaurativa (UNITED NATIONS OFFICE ON
DRUGS AND CRIME. Handbook on Restorative Justice Programmes. 2nd ed. Vienna: United Nations, 2020; e
sua tradução para o idioma português, publicada em 2021, ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE
DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa. Tradução por Cristina Ferraz Coimbra e
Kelli Semolini. 2. ed. Brasília: CNJ, 2021), elaborado pelo United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC),
bem demonstra essa incidência dentro e fora do âmbito do conflito criminal, na medida em que afirma: “Este
manual foca os programas de justiça restaurativa em questões criminais, mas é importante lembrar que os pro-
cessos restaurativos também estão sendo usados com bons resultados para resolver conflitos e danos em uma
variedade de outros contextos e cenários como famílias, escolas, bairros, desporto, locais de trabalho, prisões
e até no tratamento de queixas contra a polícia” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E
CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 3, destacamos). Dessa forma, no âmbito proces-
sual relacionado ao crime em que este trabalho se realiza e para o qual se dirige, a “justiça restaurativa” sempre
será observada e aplicada em face do conflito criminal.
46.  Política criminal da não violência 625
experiência limitadora e descaracterizadora vivida nesse último quarto de século com a
transação penal será de grande utilidade.
Antes, porém, é necessário se verificar se a “justiça restaurativa” é mecanismo de
minimalismo penal ou se integra os movimentos da não violência. Afinal, pela teoria desen-
volvida neste trabalho, na primeira hipótese ela deve ser inserida no modelo persecutório-
-punitivo. Ao contrário, se filiada ao axioma da não violência, deverá integrar o modelo
criminal diverso e espaço político-criminal a ele afeito. Inicia-se, pois, com a localização
daquela forma de resposta ao conflito penal, para depois identificar sua melhor inserção
sistêmica no Brasil.
A “justiça restaurativa” é de história recente no Brasil126, mas não se pode considerá-
-la inexistente ou uma novidade ainda não ocorrente.127 Há, em verdade, um movimento
restaurativo mundial que vem tomando corpo normativo no exterior e por meio de diretrizes
internacionais de maneira mais consistentes desde pelo menos as duas últimas décadas do
século passado.128
A “justiça restaurativa” tem “três pilares”: (i) ver o “crime, antes de tudo, como um
malfeito a pessoas e comunidades”, não a “regras” ou a “leis”; (ii) uma preocupação com a
vítima e suas necessidades, “procurando reparar o dano/lesões na sua maior extensão pos-
sível”; e (iii) “enfatizar comprometimento e responsabilidade daqueles que causaram os
danos/lesões”.129 A partir desses fundamentos, ela em muito se alinha com o que se defende

126
Fernanda Carvalho dias de Oliveira SILVA (A experiência e o saber da experiência da justiça restaurativa no Bra-
sil: práticas, discursos e desafios. São Paulo: Blucher, 2021), em rico trabalho informativo sobre o tema, relata que
os caminhos iniciais da “justiça restaurativa” têm uma narrativa “oficial”, em que prevalece os acontecimentos ins-
titucionais e, também, uma narrativa histórica que, detectando os primeiros exercícios dessa prática, mesmo “não
oficial”, já era prática e debate teórico que se mostrava eminentemente nacional. O que chama de “narrativa ‘oficial’”
marca o surgimento da “justiça restaurativa” a partir de trabalhos da Secretaria da Reforma do Judiciário, órgão do
então Ministério da Justiça, que firmou acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e da realização de um seminário em Brasília em 2003 e a partir dele surge o projeto “Promovendo Práticas
Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”. Este projeto “tinha como objetivo acompanhar e avaliar o impacto
da aplicação dos princípios da justiça restaurativa na abordagem das relações entre infrator, vítima e comunidade,
além de fundamentar as práticas junto ao Sistema de Justiça Juvenil” e deu origem a três projetos pilotos no ano de
2005 em São Caetano do Sul/SP, em Brasília/DF e em Porto Alegre/RS (p. 79-80). Embora o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) tenha publicações, todas referidas pela autora, em que articulistas relatam outras experiências, aquele
é a “narrativa ‘oficial’ contada principalmente pelo CNJ” (p. 85). A autora traz, porém, de modo oportuno, uma
outra narrativa que ela denomina “outras vozes” (p. 85-93). Por esta narrativa “não oficial”, há o reconhecimento de
atividades restaurativas com “menor grau de institucionalidade”, mas que datam de desde a década de 90 do século
passado em vários locais brasileiros. Atividades que “que adotam modelos de administração de conflitos baseados
em princípios, valores e procedimentos que se assemelham às práticas restaurativas, como diferentes tradições
indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais” (p. 86).
127
Sobre as experiências já tidas no Brasil, v. ORSINI, Adriana Goulart de Sena; LARA, Caio Augusto Souza. Dez
anos de práticas restaurativas no Brasil: a afirmação da justiça restaurativa como política pública de resolução de
conflitos e acesso à justiça. Responsabilidade, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, p. 305-324, set. 2012/fev. 2013; CONSE-
LHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Seminário Justiça Restaurativa: mapeamento dos programas de justiça restau-
rativa. Brasília: CNJ, 2019; SILVA, Fernanda Carvalho Dias de Oliveira. A experiência e o saber da experiência
da justiça restaurativa no Brasil, cit., p. 107-164. Cabe observar que, percentualmente, os casos levados à “justiça
restaurativa” são desprezíveis em face da criminalidade levada, formalmente, ao conhecimento dos Tribunais.
Ainda há muito (quase “tudo”) a ser feito.
128
Sobre os fundamentos antropológicos da metodologia dialogal da “justiça restaurativa” até a formação desse
movimento sociopolítico e de preocupação criminológica a partir da década de 1970, v. JACCOUD, Mylène.
Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa, cit., p. 163-186, item “Origem e precur-
sores de movimentos de justiça restaurativa”; David O’MAHONY e Jonathan DOAK (Reimagining restorative
justice, cit., p. 2-3) informam que o movimento, nascido de discussões acadêmicas e pela crítica do modelo crimi-
nal nos anos 1970 e 1980, alcançou, nas últimas décadas, a posição de um “movimento social global” que preten-
de transformar o modo de as sociedades contemporâneas verem e responderem ao crime. No mesmo sentido,
v. SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa, cit., p. 156.
129
Todas as expressões foram traduzidas de ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 31-33.
626 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

neste trabalho como ideologia da não violência para o modelo criminal.130 Para HOWARD
ZEHR, um dos precursores e mais respeitados teóricos da “justiça restaurativa” no mundo,
a “justiça restaurativa” tem uma proposta mais transformadora de “malfeitos” (“wrongdoing”)
do que de “restabelecer” situações passadas. O que está feito (malfeito) não se apaga, mas
pode ter seus efeitos (marcas, traumas) modificados. Em suas palavras: “a justiça restaura-
tiva geralmente envolve um movimento na direção de um novo senso de identidade e de
novos relacionamentos saudáveis”.131
Ela diz respeito com o atendimento de quem foi atingido por violações e, portanto,
atende à vítima e à comunidade, e também o infrator, compreendendo e “restaurando” as
necessidades (valores, direitos) atingidas por meio do diálogo aproximativo e realizado de
forma controlada, mas não controladora ou decisionista. É um método de reunião de pessoas
afetadas em um diálogo não dominado para definirem providências diante de um erro
(“a injustice”). Da prática restaurativa pode produzir um resultado mais rico em termos de
valores integrativos e não dissociativos, por exemplo, desculpas, reparação de danos, perdão
e reconciliação. “Ao avaliar o quão restaurador um programa é, precisamos analisar tanto
a capacidade de restauração de seus processos quanto de seus valores”.132
Como se vê, a experiência restaurativa, com toda sua riqueza, é “uma” das formas
de o sistema processual criminal não violento realizar-se. A ideologia da não violência, em
seu duplo viés – buscar resolver os conflitos geradores de violência sem acrescer mais vio-
lência (institucional) para isso –, está na raiz das ideias restaurativas, sendo esta prática uma
das formas daquele sistema processual se concretizar.133
Demonstrado que a “justiça restaurativa”, em suas práticas e experiências, integra o
espectro maior da não violência, resta verificar se ela deve ser incluída dentro do sistema

130
Sobre o tema, tratamos no item 44, e seus subitens, supra.
131
ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 14, traduzimos. Na segunda edição do Manual sobre
programas de justiça restaurativa, publicado em 2021 pelo UNODC, a “justiça restaurativa”, na linha exposta no
texto, vem assim definida: “A justiça restaurativa é uma abordagem que oferece aos ofensores, vítimas e comunida-
de um caminho alternativo para a justiça. Promove a participação segura das vítimas na resolução da situação e
oferece às pessoas que assumem a responsabilidade pelos danos causados por suas ações uma oportunidade de se
reabilitarem perante aqueles a quem prejudicaram. Sua base é o reconhecimento de que o comportamento crimino-
so não apenas viola a lei, mas também prejudica as vítimas e a comunidade” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNI-
DAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 4).
132
Todas as ideias deste parágrafo foram extraídas de BRAITHWAITE, John. Restorative justice and responsive
regulation, cit., p. 11-12. No referido Manual sobre programas de justiça restaurativa do UNODC, constam os
seguintes valores orientadores das práticas restaurativas: “‘Reparação’: Foco em reconhecer e reparar danos
físicos, emocionais e financeiros causados pelo crime e atender às necessidades das pessoas afetadas. ‘Respeito’:
Tratar todos os participantes com dignidade, compaixão e igual consideração. ‘Voluntariedade’: Garantir que a
participação das vítimas, ofensores e membros da comunidade seja voluntária e baseada no consentimento livre,
informado e contínuo. ‘Inclusão’: Promover e apoiar a participação significativa das pessoas afetadas incluindo
vítimas, ofensores, seus amigos, familiares e comunidades. ‘Empoderamento’: Dar a oportunidade para que os
participantes se comuniquem aberta e honestamente e tenham um papel ativo na determinação de como atender
às suas necessidades da forma que as compreendem. ‘Segurança’: Cuidar da segurança e do bem-estar físico,
emocional, cultural e espiritual de todos os participantes. A participação na justiça restaurativa não deve resul-
tar em mais danos a nenhum participante. ‘Responsabilização’: Auxiliar aqueles que causaram dano a reconhe-
cer e assumir a responsabilidade pelo dano e reparação. ‘Transformação’: Oferecer oportunidades de compre-
ensão, recuperação e mudança, e contribuir para a restauração e reintegração de vítimas e ofensores”
(ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça
restaurativa, cit., p. 6).
133
Sobre a associação da não violência com a “justiça restaurativa”, não obstante tenham desenvolvido grande parte
do trabalho sobre religiosidades diversas e tenham um conteúdo em muito incipiente quanto àquela tarefa asso-
ciativa, v. BRASWELL, Michael; FULLER, John; LOZOFF, Bo. Corrections, peacemaking, and restorative
justice: transforming individuals and institutions. New York: Routledge, 2001, com destaque quase exclusivo ao
Capítulo 8.
46.  Política criminal da não violência 627
processual persecutório-punitivo, como uma de suas variações, ou deve estar em espaço
político-criminal próprio.
Antes de adentrar nas propostas e momento juspolítico brasileiro, deve-se considerar
o que os restaurativistas indicam de diferenças entre o sistema persecutório-punitivo tradi-
cional da retribuição e da punição criminal e os processos restaurativos.
HOWARD ZEHR simplifica as diferenças que separam a “justiça restaurativa” da
“justiça criminal” por dois critérios: pontos de vista da abordagem do conflito e questões a
serem respondidas. Quanto à abordagem, ele define quatro níveis de aproximação para cada
“justiça”. Para a “justiça criminal” elas são: “crime é uma violação da lei e do estado”;
“violações criam culpa”; “a lei exige que o estado determine a culpa [‘blame’] (culpa [‘guilt’])
e imponha dor (punição)”; e “o foco central: ofensores recebendo o que merecem”. Para a
“justiça restaurativa” a abordagem é: “crime é a violação de pessoas e relacionamentos”;
“violação cria obrigações”; “a justiça envolve vítimas, ofensores e os membros comunitá-
rios em um esforço para reparar o dano e para ‘reparar as coisas’”; “o foco central: neces-
sidades da vítima e responsabilidade do ofensor pela reparação do dano”. Quanto às per-
guntas orientadores, aquele sociólogo assim diferencia para a “justiça criminal”: “que leis
foram violadas?”; “Quem fez isso?”; e “O que eles merecem?”. Já para a “justiça restaurati-
va”, propõe: “quem foi lesado?”; “Quais são as suas necessidades?”; e “De quem são essas
obrigações?”.134 As diferenças ontológicas e teleológicas são evidentes e inconciliáveis.
A teoria ora apresentada, de um modelo criminal não violento garante proteção,
notadamente ao ambiente restaurativo, a proporcionar toda uma base para aquelas práti-
cas se desenvolverem em ambiente afastado das estruturas e agências do modelo tradicio-
nal persecutório-punitivo. Isto porque diversas abordagens, tratamentos e respostas ao
“fenômeno criminal” exigem modelos também diferentes e que sejam afinados com cada
ideologia (da violência e da não violência).
A similitude entre a ideologia da não violência e a proposta restaurativa permite que
uma teoria comum a todos os instrumentos e práticas não violentas permaneçam próximas,
interagindo e trocando experiências e saberes que lhe são próprios e comuns. Um arcabouço
técnico e de experiências que, mesmo se hauridas das ciências criminais conjuntas, devem
ser adaptadas135 para maior eficiência daquelas propostas na efetivação constitucional de

ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 11-12.


134

A teoria proposta pode servir de macrocampo para ganhos técnico com elaboração de conceitos e definições que
135

expandam as práticas para se tornarem sistemas, inclusive com organização normativo-material e de consolida-
ções de diretrizes a partir de tipos e formas específicas de casos. A falta de uma base teórica e orientadora mais
ampla pode ser bem utilizada, mesmo na já consistente “justiça restaurativa”. Cláudia Cruz SANTOS (A justiça
restaurativa, cit., p. 153-158), por exemplo, demonstra, com farto apoio de fontes, que a “justiça restaurativa”
ainda carece da formulação de um conceito. A autora, diante dessa carência que dificulta o trabalho de desenvol-
vimento do tema, pois falta-lhe já um espaço delimitado e identificador, procura dar-lhe rumo por entre as várias
ideias trazidas pelos restaurativistas. Todavia, ela expõe a dificuldade científica de realizar o trabalho uma vez que
aquelas ideias são intencionalmente abertas e pouco precisas; mesmo quando oriundas de autores que gozam de
enorme prestígio na área (p. ex., Tony Marshall e Howard Zehr). Discorre que essas dificuldades dos restaurativis-
tas podem se explicar por três razões: a) o relativamente curto tempo dessa nova linha teórica, que teve seu início
mais remoto, com esse nome, a partir da década de 70 do século passado (p. 154); b) sua incidência e aplicabilida-
de em diversos e numerosos países fazem com que absorva e tenha características muito díspares em suas
experiên­cias e práticas, o que dificulta a construção de um “senso comum” (p. 155-156); e c) dada a antecedência
da justiça criminal tradicional e, ainda, pelo fato de a “justiça restaurativa” ter nascido exatamente devido às fa-
lhas, disfuncionalidades e violências inerentes à justiça tradicional, ela se define não por si, mas como “não sendo
o que a justiça penal é” (p. 157-158). Por isso entender-se que a teoria proposta no presente trabalho possa repre-
sentar um ganho e ajudar nos debates e na elaboração coerente, uma vez que, adaptando o cabedal científico
(cf. item 46.1, supra) sob a ideia da não violência, dirige o foco em dar “respostas” positivas para mitigar e elimi-
nar os efeitos das violências criminal e envolvente por meio de “processos” e “práticas” também não violentas.
628 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

direitos e necessidades essenciais. Um amplo filtro a proteger esta nova forma prática de
resposta ao “fenômeno criminal” das interpenetrações indevidas e desviantes. A não vio-
lência, como axioma que é, impede que o crescente e auspicioso movimento restaurativo
não abarque práticas, ou aceite interferências ou resultados que conflitem com sua orienta-
ção fundante: atender necessidades e (re)estabelecer relações olhando e cuidando de pessoas.
Isso é aplicável a todas as formas pelas quais a “justiça restaurativa” se realiza com mais
intensidade: as mediações, as conferências e os círculos decisórios.136 Assim também, e
desde essas e de novas experiências e experimentos, deve ser a referência para novas práti-
cas ainda não tão conhecidas e/ou desenvolvidas no Brasil.
A proposta teórica organizadora e protetiva deste trabalho já se mostra útil ao se
perceber que, no afã de aumentar o âmbito de incidência da “justiça restaurativa”, alguns de
seus defensores vêm cedendo, mesmo que de modo imperceptível, a posturas punitivas, tí-
picas da metodologia da inquisitio e da força vertical de imposição de decisão pelo sujeito
do poder-saber. Desse modo, mudam os fundamentos da “justiça restaurativa” de um movi-
mento de não violência para uma postura punitiva minimalista; mesmo que a pretexto de
ampliar a área de abrangência ou a efetividade daquela prática.137 Por essas abordagens
“radicais” já se defende, v.g., como válida a coerção para o ofensor tanto ingressar na práti-
ca restaurativa quanto para aceitar o seu resultado decidido por outrem138 o qual, inclusive,

136
No sentido de definir esses três grandes grupos, dentro dos quais há muitas variações, v. SHAPLAND, Joanna.
Restorative justice and criminal justice: just responses to crime? In: VON HIRSH, Andrew et al. (org.). Restora-
tive justice & criminal justice: competing or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 195-218.
A autora denomina esses grupos “mediation”, “conferences” e “sentencing circles”, explicando suas característi-
cas identificadoras e variações (p. 197). Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a primeira
edição de seu Handbook on Restorative Justice Programmes (UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND
CRIME. Handbook on Restorative Justice Programmes. New York: ONU, 2006), dentro da série de publicações
denominada Criminal Justice Handbooks Series. Na citada publicação, no item denominado “Main types of pro-
grammes” (p. 14-15), inseriu, além daqueles indicados por SHAPLAND, os “peacemaking circles” e os “repara-
tive probation and Community boards and panels”, e, no item subsequente (item “2.2 Variation in criminal justi-
ce programmes”, p. 15-17), demonstra, na linha da autora citada, inclusive com tabelas, que tais programas
apresentam alta variabilidade a depender do local, sistema criminal e pessoal e agências que os aplicam. Sobre
essas práticas e a necessidade de elas serem adaptadas e aplicadas na realidade brasileira, cf. itens 48 e 49, e seus
subitens, infra.
137
A inclusão da “justiça restaurativa” dentro do modelo criminal persecutório-punitivo e com isso transformá-la
em apenas mais um “programa de Justiça Criminal” com função de conter a retribuição punitiva (rectius, redu-
ção da violência institucional), em autêntica estratégia de “minimalismo penal”, já é objeto de alerta de há muito
por restaurativistas do porte de Elizabeth M. ELLIOTT (Segurança e cuidado, cit.): “‘APENAS MAIS UM PRO-
GRAMA DE JUSTIÇA CRIMINAL?’ Até agora a discussão nos levou à preocupação frequente com a interpreta-
ção da JR como um programa, em vez de uma visão ampla. Geralmente, a noção de JR como programa é endê-
mica no tocante às práticas dirigidas pelo Sistema de Justiça Criminal e incorporadas a ele. Os programas de
JR conduzidos pelo governo, ou por autoridades, são necessariamente limitados pelo desejo de torná-los con-
sonantes com a prática retributiva corrente – os processos de JR terão permissão para existir somente à me-
dida que não desafiarem os elementos centrais do Sistema Retributivo. Isto relega a JR ao ‘status’ de algo que
foi adicionado (devido a seus processos menos formais); isso geralmente significa que a maioria dos conflitos de
baixa gravidade serão enviados à JR, abrindo a mesma à crítica de que está diminuindo o rigor da Justiça Cri-
minal. Um dos efeitos da abordagem limitada da JR como mero programa é a necessidade de sujeitá-la aos
padrões existentes” (p. 115, destacamos).
138
Na busca de maior ampliação de incidência e resultados para a “justiça restaurativa”, Lode WALGRAVE (Impo-
sing restauration instead of inflicting pain, cit., p. 61-78): “Em muitos casos, o acordo não pode ser alcançado ou
o que é acordado pode ser insuficiente. Por várias razões, a coerção pode ser necessária. Isso só pode ser im-
posto pelo sistema judicial. Na versão maximalista da justiça restaurativa, procedimentos e sanções judiciais
também são considerados sob uma perspectiva restaurativa. As sanções restaurativas incluem a imposição de
restituição ou compensação formal, o pagamento de uma multa ou a realização de um trabalho em benefício de
fundo à vítima e/ou serviço comunitário. Outras privações de liberdade, como uma permanência forçada em ins-
talações fechadas, são usadas para garantir o cumprimento das sanções restaurativas ou para incapacitar os in-
fratores considerados de alto risco em relação à segurança pública. Porque eles são obrigados e não um resultado
46.  Política criminal da não violência 629
poderia ser o encarceramento139. Diante dessas iniciativas, a teoria que ora se apresenta
funciona proteção a essas dissonâncias que, se inicialmente são sedutoras, ao final resulta-
rão no desvirtuamento das raízes e princípios da “justiça restaurativa”.
Na experiência restaurativa no Brasil essa base teórica e arcabouço protetor se mos-
tram prementes.
A intensidade das violências institucionais, aliada à evidente sobrecarga e disfunção
do aparato criminal persecutório-punitivo, com evidente contribuição, ao menos em parte,
com o aumento da criminalidade e a completa desconsideração pela vítima, a comunidade
afetada pelas violências criminais e, de modo mais amplo, às causas e efeitos do “fenômeno
criminal” faz crescer no Brasil o movimento restaurativo. Não por outra razão, ele é inte-
grado por agentes internos do modelo criminal persecutório-punitivo de vários níveis e
agências: juízes e desembargadores, promotores públicos e procuradores da república, dele-
gados de polícia, defensores públicos (estaduais ou da União), funcionários de várias hierar-
quias, funções e agências acessórias ou mesmo das quais aqueles agentes fazem parte. Além
deles, há também advogados (criminais ou não), educadores (de várias áreas e níveis), psi-
cólogos, assistentes sociais, além de tantas outras profissões e formações. Também entida-
des públicas (de vários níveis e dos três Poderes), instituições privadas e entidades civis
começaram a integrar e a se interessar não apenas pela proposta e pelos princípios do movi-
mento, mas, principalmente, pela transformação comunitária e nos efeitos da violência cri-
minal que já começa a produzir efetivamente. O cenário era promissor na pluralidade de
visões e na riqueza dos encontros e de cursos de formação prática e teórica.
Todavia, a aproximação inevitável da “justiça restaurativa” dos conflitos criminais
e, ainda, a forte cultura jurídica de muitos daqueles integrantes acima citados, fez com que
as forças centrípeda e centrífuga históricas do modelo criminal começaram a atuar. Por
força do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle administrativo e financeiro o Po-
der Judiciário, também com o papel de aperfeiçoar e otimizar os trabalhos dos tribunais
estaduais e federais, elaborou normativas e começou a fomentar o debate sobre “justiça
restaurativa” sob seus auspícios e dirigidos para o ambiente jurídico-penal. Com isso o mo-
delo criminal persecutório-punitivo começou a aproximar suas estruturas e agências do

de acordos voluntários, essas sanções não cumprem completamente o potencial do paradigma restaurador. Eu
vou desenvolver minhas razões pelas quais as considero mesmo assim preferíveis a outras sanções ou punições”
(p. 62, traduzimos). O autor, conhecido restaurativista, não deixa de desenvolver argumentos que tornariam a
solução restaurativa coercitiva, por imposição judicial, melhor que o modelo criminal tradicional. Contudo, cla-
ramente, essa forma “restaurativa” insere aquela filosofia dentro desse modelo violento e de cariz persecutório-
-punitivo, o que nega a própria ideologia da não violência constitutiva da “justiça restaurativa”, como se mostrou
parágrafos anteriormente no texto principal.
139
Sobre a possibilidade de o encarceramento, por meio de pena criminal, ser um resultado possível da “justiça res-
taurativa”, além de Lode WALGRAVE em passagem já citada em nota anterior, tem-se, ainda como outro exemplo,
Alisson MORRIS [Criticando os críticos: uma breve resposta aos críticos da justiça restaurativa. In: SLAKMON,
Catherine; DE VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Jus-
tiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 439-472]: “Os objetivos da justiça
restaurativa são, principalmente, responsabilizar de forma significativa os infratores e proporcionar uma repa-
ração às vítimas, certamente no plano simbólico e, quando possível, também concretamente. Os resultados res-
tauradores são muitas vezes vistos como focados exclusivamente em pedidos de desculpa, reparações ou traba-
lhos comunitários, caminhos pelos quais a propriedade roubada poderia ser ressarcida ou as injúrias feitas às
vítimas poderiam ser compensadas. No entanto, qualquer resultado – incluindo o encarceramento – pode ser,
efetivamente, restaurativo, desde que assim tenha sido acordado e considerado apropriado pelas partes princi-
pais. Por exemplo, pode-se chegar à conclusão de que o encarceramento do infrator é o meio adequado, naquela
particular situação, para proteger a sociedade, para representar a gravidade do crime ou mesmo para reparar
a vítima” (p. 442).
630 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

movimento restaurativo. Os Tribunais passaram a ser estimulados, e, também, cobrados, a


terem práticas e atividades restaurativas em suas atividades – dentro, portanto, de suas es-
truturas já existentes e com pessoal interno. Com menos intensidade, isso também começou
a ocorrer em alguns ambientes do Ministério Público. Mas, visivelmente, o Poder Judiciário
começa a hospedar em seu interior a mais consistente parte dos debates teóricos e atividades
práticas daquele movimento.
Tendo em vista a experiência forense ocorrida com a transação penal, essa aproxi-
mação da “justiça restaurativa” com as estruturas e agências do modelo criminal persecutório-
-punitivo não tende a render bons frutos a médio e longo prazo àquelas práticas não violen-
tas. Considerada, ainda, toda a reconstrução histórica procedida na Parte I deste trabalho,
na qual se indicou o papel fundamental que os agentes internos, a metodologia empreendida
e propósito determinado para a definição do perfil e incisividade de um sistema processual,
não há como não verificar que o movimento restaurativo está em risco.140
As facilidades de implementação pela capilaridade das estruturas já existentes assim
como o fascínio pelo próximo relacionamento com os sujeitos do poder-saber no exercício
funcional sobre o “conflito criminal” oferecem vantagens iniciais; mas apresentam um ris-
co muito grande do desvirtuamento da “justiça restaurativa” como um movimento não vio-
lento de respostas criativas e positivas para o “fenômeno criminal”. No embate entre, de um
lado, toda a força da tradição cultural da violência das estruturas e das agências do modelo
criminal persecutório-punitivo, com sua maior extensão e número de integrantes, assim
como sua força normativa de impor-se, e, de outro lado, um movimento ainda incipiente, faz
crer que se repetirá o que já foi constatado nos últimos dois milênios de história processual
penal e nos últimos 25 anos de experiências minimalistas brasileiras.141
Um marco dessa necessidade de reflexão, proteção e imediato afastamento do movi-
mento restaurativo das forças de atração (rectius, sedução) do modelo criminal persecutório-
-punitivo que quer continuar único, foi a inclusão da “justiça restaurativa” nas últimas versões
de substitutivos do projeto de lei para criação de um novo Código de Processo Penal no Brasil.
Sem adentramos em comentários da redação dos dispositivos (arts. 114 a 123) que in-
tegram o capítulo denominado “Da Justiça Restaurativa Penal”, inserido no Substitutivo de
26/04/2021 de relatoria do Deputado JOÃO CAMPOS (PRB/GO), e mantido no Substitutivo de
30/06/2021 do mesmo relator, é inegável que esta opção de política legislativa não contribuirá
para o melhor desenvolvimento da “justiça restaurativa” no Brasil. Esta posição deste trabalho

140
Nesse sentido, v. importantes e consistentes alertas de ACHUTTI, Daniel e CARVALHO, Salo. Justiça Restaura-
tiva em Risco, cit., e ACHUTTI, Daniel. Justiça restaurativa e abolicionismo penal, cit. Há, ainda, sobre esse
último trabalho, relevante resenha elaborada por Salo de CARVALHO e que vale a leitura: Sobre as possibilida-
des de um modelo crítico de justiça restaurativa. Sistema Penal e Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 129-136,
jan./jun. 2014.
141
Elizabeth M. ELLIOTT (Segurança e cuidado, cit.) afirma, quando a essa resistência dos agentes internos pela
cultura jurídico-criminal reducionista do problema ou “crime” e fundada nos pilares da violência institucionali-
zada como resposta e como submissão pela expectativa das estruturas às quais eles se ligam: “Rigor teórico e
evidência da eficácia da JR são pré-requisitos importantes para uma mudança total do Sistema no ‘mundo poli-
tizado onde as organizações de Justiça Criminal existem’ (Lemly 2001: 61). Os proponentes de programas de JR
que trabalham no Sistema existente são constrangidos pelas expectativas do Sistema, estejam estas expectativas
em consonância ou não com a ampla visão da JR. A visão limitada da JR também impede práticas restaurativas
em escolas e outras instituições sociais, formais ou informais. Uma das vantagens da JR é sua capacidade de
expandir as lentes do inquérito para o conflito, de modo a incluir uma ampla gama de problemas deixados de
fora pelas questões retributivas: ‘Um crime foi cometido ou uma regra foi violada? Quem fez isto? O que eles
merecem?’. A tendência política atual, de simplificar comportamentos indesejados criminalizando-os, tem como
consequência que o significado mais profundo dos problemas sociais permanece inexplorado” (p. 115).
46.  Política criminal da não violência 631
não se limita ao âmbito restaurativo mas a todos que tenham na ideologia da não violência um
processo a ser implementado. As experiências nacionais bem demonstram que a melhor estraté-
gia é um caminho legal alternativo e autônomo, mas que reconheça e seja reconhecido pelo
modelo tradicional persecutório-punitivo a fim de atuarem de modo articulado.142
Contudo, essa não é a posição apenas deste trabalho. Mesmo os agentes internos que
entendem a os princípios e propósitos da “justiça restaurativa” e da “justiça criminal” tradi-
cional afirmam que eles são inconciliáveis, com clara perda futura ao “corpo estranho” a
todo o restante do projeto de Código de Processo Penal: o modelo persecutório-punitivo, de
metodologia inquisitiva, integrado por sujeitos do poder-saber e destinado ao propósito de
definir culpa e atribuir pena criminal. Este trabalho faz suas as palavras precisas e atentas
da manifestação oficial da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) ao comenta-
rem o erro de se incluir a “justiça restaurativa” no projeto de novo Código de Processo Pe-
nal, a transcrição é longa, mas é precisa em cada ponto indicado:

Há que se ter em conta, desde logo, que a Justiça Restaurativa não nasceu e
nem se desenvolveu dentro do sistema jurídico positivado. Muito ao contrário,
surge do reconhecimento da insatisfação por ele trazida de não conseguir
obter suas finalidades precípuas de pacificação e inclusão social.
Não se trata de desmerecer o sistema posto, mas do reconhecimento de que
não alcança todas as situações, havendo um grande campo de trabalho para que
a própria comunidade possa se debruçar sobre os conflitos ocorridos, mesmo
quando eles venham a emoldurar na conduta prescrita como crime.
Nesse sentido, foi editada a Resolução 2002/12 da ONU – Organização das Na-
ções Unidas e, posteriormente, em 2016, em âmbito interno, a Resolução 225 do
Conselho Nacional de Justiça.
Isso porque a Justiça Restaurativa não trabalha com leis ou violação de leis,
mas sim foca seu olhar para as relações entre as pessoas (e eventualmente
com o meio ambiente), sem descuidar dos valores postos nas normas, de
modo que o crime é visto como um dano e é trabalhado em diversas dimen-
sões, quais sejam: relacional, institucional e social.
Dessa forma, busca-se entender as causas que levaram à prática daquele ato, bem
como as consequências geradas para a vítima direta e todos os outros que sofre-
ram qualquer repercussão em maior ou menor graus, ou seja, a comunidade en-
volvida, lidando com o fenômeno da violência em sua complexidade e aumentan-
do a probabilidade de não reincidência.
Assim, desde logo, não nos parece ser o Código de Processo Penal o locus
ideal para se tratar a Justiça Restaurativa.
O atual sistema posto não vem alcançando os resultados pretendidos tanto assim
que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em 2015, a situação prisional no
país um “estado de coisas inconstitucional”, com “violação massiva de direitos
fundamentais” da população prisional por omissão do poder público.
Assim, vê-se que a privação de liberdade deve cada dia mais ser reconhecida
como uma hipótese excepcional, abrindo, assim um vasto campo de trabalho

142
As peculiaridades da cultura da violência das estruturas e agências brasileiras, espelhadas em uma forte tendên-
cia ao punitivismo e mesmo ao encarceramento, que vem reforçada pelas experiências com a Lei n. 9.009/1995
(cf. item 46.2, supra), com a Lei n. 9.714/1998, das ditas penas “alternativas”, e a Lei n. 12.403/2011, das medidas
cautelares alternativas à prisão provisória; como bem retratadas por Daniel ACHUTTI e Salo CARVALHO (Jus-
tiça Restaurativa em Risco, cit.).
632 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

em outro âmbito, alternativo, com a derivação do procedimento restaurativo


para Núcleo especializado, em que se busca efetivamente trabalhar a conscien-
tização a respeito dos atos praticados, e sua responsabilização, com a inclusão do
autor do dano na sua comunidade, para que não se sentindo um párea, mas sim
alguém pertencente, possa, de fato, desabrochar o que tem de melhor em si. Além
da responsabilidade individual, trabalha-se também a questão das corres-
ponsabilidades coletivas, o que permite alcançar e superar muitas das cau-
sas motivadoras dos conflitos.
Isso não se faz concomitantemente com a aplicação de uma sanção ou pena,
são propostas nitidamente excludentes. Então precisamos pensar o que real-
mente queremos – realmente se pretende a redução dos índices de reincidên-
cia (o que tem sido obtido como efeito da aplicação da Justiça Restaurativa),
a reinclusão (reintegração) social do autor do fato e a promoção da repara-
ção (indenização) dos danos sofridos pela vítima? Se sim, o caminho não é
diminuir a Justiça Restaurativa e transformá-la num apêndice do sistema
tradicional, com mero abrandamento de pena.
O grande potencial da Justiça Restaurativa em todos esses aspectos é evi-
dente, tanto que cresce exponencialmente a procura por essa política pública
tanto em âmbito internacional quanto interno. Mas aí se está olhando para a
Justiça Restaurativa como efetiva forma de transformação e finalização
(ou resolução) do conflito.
Com essa breve introdução, propõe-se:
1) A retirada de toda e qualquer referência à Justiça Restaurativa da pro-
posta de alteração do Código de Processo Penal.143

Essa manifestação da AJUFE é o reconhecimento, por parte dos próprios agentes


internos, de que não haver um espaço específico e não violento para a “justiça restaurativa”
impedirá que ela se realize. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) foi na mesma
direção da retirada da “justiça restaurativa” do projeto de Código de Processo Penal e seja
tratada por legislação própria e afeita às suas características144; com o que estamos de pleno
acordo. Ressalvada a posição deste trabalho quanto à necessidade de as modalidades de
processos criminais de cariz não violentos atuarem por meio de agentes internos próprios,
formados e informados conforme sua mentalidade, tendo apenas necessárias pontes de co-
municação com o modelo criminal persecutório-punitivo para uma melhor articulação de
seus desempenhos e interações.

143
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL. Nota técnica nº 03/2021 AJUFE. Proposição: PL
8045/2010, 29 abr. 2021. p. 22-24, destacamos. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/pl-8045-10-codigo-de-processo-penal/expedientes-
-recebidos/manifestacoes-recebidas-1/NotaTcnicaCPPAJUFE.pdf. Acesso em: 14 dez. 2021. No segundo item,
não transcrito no trabalho, a AJUFE propõe, alternativamente, caso não seja acatado o ponto 1, algumas suges-
tões para aperfeiçoamento do texto, os quais, assim como as normativas nacionais e internacionais existentes e
projetadas serão examinadas no próximo capítulo ao tratarmos de aspectos mais concretos e específicos da teoria
da não violência para o modelo e o sistema processual criminais.
144
ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Nota técnica. Proposição: Projeto de Lei n.º 8045/2010
(Novo CPP), na forma do Substitutivo apresentado pelo Relator no dia 26 de abril de 2021. Tema: Direitos da Ví-
tima e Justiça Restaurativa. 3 maio 2021. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comis-
soes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/pl-8045-10-codigo-de-processo-penal/expedientes-recebi-
dos/manifestacoes-recebidas-1/AMB_NotaTcnica_NCPP_DireitosdaVtimaeJustiaRestaurativa.pdf. Acesso em:
14 dez. 2021.
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 633
Insistimos neste ponto final com o que pode ser tida como a síntese do desenvolvido
por todo este item: a não violência representa uma forma alternativa de se dar “respostas”
socialmente positivas a toda a violência envolvendo do “fenômeno criminal”. Sendo assim,
é diversa em ideologia, diretrizes e propósito, de forma que precisa de um espaço de políti-
ca criminal que seja a ela afeito para que, a partir dele, construa-se um modelo criminal não
violento e sistemas materiais e processuais criminais também não violentos. Para isso se
realizar de maneira fiel àquele axioma, é essencial a utilização de estruturas e agências que
sejam formadas e informadas a partir daquela ideologia, metodologia dialogal e propósito
de transformação dos efeitos deletérios da violência em algo positivo para a vítima, para o
ofensor e para a comunidade afetada. A sua atuação é alternativa, no sentido de não querer
eliminar ou se contrapor ao modelo existente, mas deve caminhar com autonomia e inde-
pendência, articulando-se em uma atuação que seja reconhecida (efetividade e validade le-
gal) em seus resultados e assistência a situações em que se mostre mais eficaz que o mode-
lo criminal persecutório-punitivo.
Deve ter, portanto, corpo legal próprio e que garanta seu compromisso de afinidade e
efetividade constitucionais. É exatamente sobre esses pontos que trataremos no próximo item.

47. Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição:


um aumento de efetividade ao cidadão e à sociedade
A ideologia da não violência, na medida em que ingressa e se articula no campo
político-criminal, deve passar por uma verificação de sua compatibilidade constitucional.
Não mais ela, como ideologia que é, mas por ter se tornado axioma diretivo de uma parte
importante da política pública. Política que, como bem lembrou JORGE DE FIGUEIREDO
DIAS, não pode estar apartada de sua imanência jurídico-constitucional.145 Nas palavras de
ALBERTO SILVA FRANCO, fonte inspiradora do que aquele penalista português denomi-
nou “Estado de Direito material” e que este pensador brasileiro denomina “Estado Demo-
crático e Social de Direito”, “só a Constituição permite identificar em função de qual mo-
delo social foi elaborada a ordem jurídica”.146
Antes, porém, da verificabilidade, uma ressalva deve ser feita: a Constituição brasi-
leira atual, assim como os tratados internacionais de direitos humanos do pós-guerra que
inspiraram o plexo de direitos e garantias fundamentais nela inseridos, foram criados e de-
senvolvidos dentro da “ideologia da violência”; indubitavelmente, a tradição reinante até
meados do século XX. A necessária compreensão desse momento constitutivo não limita os
valores ali insculpidos, a sua interpretação, que sempre deve estar atualizada aos anseios
dos seus cidadãos, ou, ainda, as ampliações dos seus âmbitos de proteção de seus próprios
fundamentos e dos direitos fundamentais que ela dá guarida. É a partir dessas diretrizes e
consciência que se procede ao exame de compatibilidade constitucional que precisa existir
como um prius a qualquer estudo à implementação da não violência como novo paradigma
a um alternativo aparato criminal formado dentro de um outro espaço político-criminal.
Tal ressalva não visa a justificar eventuais arestas da ideologia da não violência com
as normas constitucionais. Ao contrário, serve para esclarecer que o plexo de garantias penais

145
FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal, cit., p. 35.
146
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coord.). Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência.
8. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 33.
634 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

e processuais penais foi desenhado e insculpido naqueles diplomas fundantes tendo em vista
o modelo criminal persecutório-punitivo de ideologia violenta no trato e resposta institucio-
nal ao crime e ao criminoso. Assim, a ausência de normas infraconstitucionais para dar
aplicabilidade prática, total ou parcial, à política criminal não violenta não significa que esta
seja inconstitucional, mas apenas que precisará se realizar mediante normativa infraconstitu-
cional específica (no âmbito dos sistemas material e processual do modelo criminal) e dentro
de axiologia e epistemologia constitucional autorizativa e com ela condizente.
Verificar a afinidade constitucional é exatamente identificar se nossa Carta Política
aceita ou comporta tal perspectiva não violenta de resposta ao conflito criminal e dele ao
fenômeno que ele representa em todo seu contexto. Afinal, difícil imaginar que as normas
de contenção e garantias feitas para controlar a violência institucional de modelo criminal
violento, e até sua promulgação (1988) o único vigente, possam desservir a um modelo que
será, de partida, “não violento”. Assim, a atestação constitucional da ideologia da não vio-
lência deve ocorrer não a partir dos direitos e garantias criminais nela inseridos, mas,
como preconizado pela própria Constituição, desde seus “Princípios Fundamentais”, ins-
culpidos em seus arts. 1º a 4º. Pórtico constitucional formulado exatamente para situações
como a presente, é dizer, sempre que necessária aquela verificabilidade diante de novas
propostas e realidades não existentes ao escrutínio constituinte antes ou ao tempo de sua
promulgação.147 A Carta Política deixou claros aqueles seus “princípios” como critérios
reitores a nortear a todos (legislador, intérprete e cientista) sobre admissibilidades e expan-
sões futuras.148
Esclarece-se, outrossim, que a filtragem constitucional da política criminal da não
violência dar-se-á a seguir em dois níveis. No primeiro, verificar-se-á se a ela contraria al-
gum dispositivo constitucional, o que impediria sua inserção como diretriz orientadora de
um novo modelo criminal em nosso ordenamento. No segundo nível, analisar-se-á se o novo

147
“Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é
possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua
força sobre todo o mundo jurídico. Alcança os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de
precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes
permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de preceitos.
Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um
sem-número de outras normas. O reflexo mais imediato disto é o caráter de sistema que os princípios impõem
à Constituição. Sem eles a Constituição se pareceria mais com um aglomerado de normas que só teriam em
comum o fato de estarem juntas no mesmo diploma jurídico, do que com um todo sistemático e congruente. Des-
ta forma, por mais que certas normas constitucionais demonstrem estar em contradição, esta aparente contradi-
ção deve ser minimizada pela força catalisadora dos princípios. Outra função muito importante dos princípios
é servir como critério de interpretação das normas constitucionais, seja ao legislador ordinário, no momento
da criação das normas infraconstitucionais, seja aos juízes, no momento de aplicação do direito, seja aos
próprios cidadãos, no momento da realização de seus direitos. Em resumo, são os princípios constitucionais
aqueles valores albergados pelo Texto Maior, a fim de dar sistematização ao documento constitucional, de
servir como critério de interpretação e finalmente, o que é mais importante, espraiar os seus valores, pulverizá-
-los sobre todo o mundo jurídico” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 21. ed. São Paulo:
Saraiva, 2000. p. 153-154, destacamos).
148
Nas palavras de Luiz Alberto David ARAÚJO e Vidal Serrano NUNES JÚNIOR (Curso de direito constitucio-
nal. 17. ed. São Paulo: Verbatim, 2013. p. 106-107): “Não podemos pretender estudar o texto constitucional posi-
tivo de qualquer Estado sem antes identificar os princípios que informaram tal documento. Os princípios são
regras-mestras dentro do sistema positivo. Devem ser identificados dentro da Constituição de cada Estado as
estruturas básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema. Fazendo isso estaremos identificando os princí-
pios constitucionais. [...] Os princípios, portanto, determinam a regra que deverá ser aplicada pelo intérprete,
demonstrando um caminho a seguir. Podemos falar na existência de uma hierarquia interna valorativa dentro
das normas constitucionais, ficando os princípios em um plano superior, exatamente pelo caráter de regras es-
trutural que apresentam”.
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 635
espaço juspolítico que se quer construir (uma normativa e prática não violentas) apresenta
novas vias para efetivar direitos e garantias fundamentais ao cidadão e à sociedade. Naque-
le nível se indaga se a ideologia é vedada; no segundo, se haverá um ganho de efetividade
pelo que aqui se propõe em relação ao que hoje existe. No primeiro, verifica-se a permissão
constitucional; no segundo, busca-se a maior efetividade constitucional.
Defina-se, primeiro, qual o material constitucional usado para o teste de constitucio-
nalidade: o Preâmbulo da Constituição149 e seu Título I, denominado “Dos princípios
fundamentais”.150 Ambos nada dizem contra a ideologia da não violência. Aliás, sua leitura
deixa claro um alinhamento perfeito entre seus conteúdos e anseios diretivos, essa ideologia
e o que se almeja pela política criminal por ela informada.
Não obstante não haja posição firmada se o Preâmbulo pode ser considerado como
filtro de constitucionalidade, não se pode deixar de reconhecer que ele traz uma carga axio-
lógica e é um referencial constitucional interpretativo.151 Assim, tendo-o em foco, deve-se
reconhecer que está afinado e pretende a promoção da não violência na medida em que
consigna que a Assembleia Constituinte, na representação do povo brasileiro, instituiu o
Brasil como

149
Ingo Wolfgang SARLET (Curso de direito constitucional. Coautoria com MARINONI, Luiz Guilherme e
MITIDIERO, Daniel. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação. 2018. Primeira Parte, item 3.1.2), após esclarecer que
no Preâmbulo é um momento especial ao constituinte propor “uma espécie de síntese e mesmo expressar quais os
valores e/ou a noção de direito e de justiça subjacentes ao texto constitucional. [...] é a formulação de posturas
valorativas, convicções, motivações, de modo que se pode mesmo falar de uma espécie de profissão de fé por
parte das respectivas comunidades políticas, verdadeiros fragmentos de uma ‘religião civil’, como, com acuida-
de, leciona Peter Häberle”, conclui que tais elementos e significados estão presentes naquela nossa abertura
constitucional.
150
Quanto ao artigo 1º da Constituição, no qual se alinham os “fundamentos” de nossa República Federativa como
um Estado Democrático de Direito, assim esclarece de modo apropriado ao encaminhado neste trabalho José
Afonso da SILVA (Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009): “[O] valor norma-
tivo do artigo consiste na definição de vários princípios conformadores do ordenamento constitucional brasilei-
ro, dos quais decorre a previsão de outros princípios de grau secundário referentes a cada uma das instituições
definitivamente estabelecidas no dispositivo: a Federação, que gera o princípio da autonomia das entidades-
-membros (v. art. 34, I, II e VII, ‘c’) e toda a estruturação consubstanciada no Título III, e a República, com seus
princípios (v. art. 34, VII, ‘a’, ‘b’ e ‘d’) e a organização de seus Poderes constante do Título IV; e o regime polí-
tico, com seus valores traduzidos na declaração dos direitos fundamentais da pessoa humana, arrolados no Tí-
tulo II. Tudo isso, na verdade, é que empresta as bases do nosso sistema constitucional e de uma sociedade plu-
ralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com
a solução pacífica das controvérsias, na forma referida o Preâmbulo” (p. 32-33).
151
Ingo Wolfgang SARLET (Curso de direito constitucional, cit., Primeira Parte, item 3.1.2) traz o debate de várias
experiências constitucionais europeias para fixar três correntes sobre a função e o valor do Preâmbulo: “A despeito
de tal modo de compreensão, a tendência que se verifica é a de atribuição de alguma força jurídica aos preâmbu-
los, destacando-se, neste contexto, três alternativas: (a) força jurídica meramente legal, portanto inferior à da
constituição; (b) força jurídica constitucional direta; (c) força jurídico-constitucional indireta, muito embora
apenas as duas últimas (eficácia direta e autônoma ou eficácia indireta) sejam realmente representativas no plano
do direito constitucional comparado, além da tese da irrelevância jurídica”. Analisada a posição de nosso Supre-
mo Tribunal Federal, que já rejeitou a “relevância jurídica autônoma” do Preâmbulo, não lhe emprestando “caráter
normativo ou força obrigatória”, ressalta que há recente posição daquele Tribunal Constitucional reconhecendo, à
abertura de nossa Carta Política, “(embora sem formular uma doutrina propriamente dita sobre a matéria) que, no
âmbito da interpretação e aplicação do direito, os valores e objetivos expressos no Preâmbulo podem ser invoca-
dos como reforço argumentativo para justificar determinada decisão, mediante uma leitura articulada e sistemá-
tica, mas sempre em conjunção com preceitos normativos do texto principal da Constituição Federal”. Ao final,
não temos como concordar e assumir nesse trabalho a ponderada posição do autor de que não é possível enquadrar
o Preâmbulo em um único modelo, dada a sua variedade de conteúdos de preceitos heterogêneos. Dessa forma,
conclui o constitucionalista: “O caráter de certa forma subsidiário desses princípios, decorrente especialmente do
fator ‘topográfico’, de estarem sediados no Preâmbulo e não no corpo do texto constitucional, não poderia, por si
só, retirar-lhes força jurídica, inclusive como parâmetro do controle de constitucionalidade e mesmo com eficácia
derrogatória de norma anterior e manifestamente incompatível com seu sentido”.
636 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

[...] um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos so-


ciais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, plura-
lista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na or-
dem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Todas as expressões destacadas por nós, no exato contexto em que foram inseridas pelo
Constituinte, além de não destoarem daquela ideologia, aspiram por uma política criminal
não violenta no trato das “controvérsias”; nelas incluídas, por óbvio, o “crime”.
Além do mais, e continua-se com o expresso texto constitucional acima destacado,
o modelo criminal não violento (re)empodera vítima e comunidade afetada dentro do siste-
ma processual para que tenham seus traumas (físicos e psicológicos; de necessidades e de
direitos) compreendidos e reparados sem “preconceitos” e buscando a “harmonia social”
afastada com o conflito.152 O modelo não violento, exatamente por acolher e respeitar aque-
les traumas, objetiva transformar seu conteúdo e seu contexto de ocorrência em realidade
socialmente positiva e de “bem-estar” dos envolvidos nas “controvérsias”. Para tanto, a
“solução” para manter a “ordem interna” não poderia ser mais “pacífica” ao afastar a vio-
lência (institucional) da “pena criminal” e do processo persecutório e, ainda, revela-se “justa”,
na medida em que é fruto do diálogo entre as partes e a comunidade atingidas.153 Os “direitos
sociais e individuais”, como necessidades básicas154 de todos, são compreendidos em sua
maior extensão e profundidade, o que inclui percebê-los além e aquém do espaço estrito do
“crime” como tipificado em lei e, com isso, diminuindo outras formas de violência social e
estrutural; a violência (a ele) envolvente.
Saindo do “Preâmbulo” constitucional e ingressando em seus “Princípios Fundamen-
tais”, verifica-se que seus quatro artigos não possuem uma única expressão que faça compreen­
der que a ideologia da não violência com eles conflite.155 Muito ao contrário, esses artigos

152
Sobre a vítima e a comunidade afetada como participantes do sistema processual não violento, cf. item 48.3.3,
infra.
153
Sobre a “resposta não violenta de conciliação criminal”, cf. item 48.1, infra.
154
Sobre esse ponto, cf. item 44.3, supra.
155
José Afonso da SILVA (Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008) leciona, so-
bre o que são esses “princípios fundamentais” e sua função ordenadora: “Temos que distinguir entre princípios
constitucionais fundamentais e princípios gerais do Direito Constitucional. Vimos já que os primeiros integram
o Direito Constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matriz,
‘que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte’, normas que contêm as deci-
sões políticas fundamentais que o constituinte acolheu no documento constitucional. Os princípios gerais
formam temas de uma teoria geral do Direito Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos,
que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional” (p. 95, destacamos). Esse mesmo
autor, lastreado em Gomes Canotilho, assim classifica os “princípios fundamentais” que utilizamos como refe-
rencial para filtragem de constitucionalidade: “Para Gomes Canotilho, constituem-se dos ‘princípios definidores
da forma de Estado’, dos ‘princípios definidores da estrutura do Estado’, dos ‘princípios estruturantes do regime
político’ e dos ‘princípios caracterizadores da forma de governo’ e da ‘organização política em geral’. A análise
dos princípios fundamentais da Constituição de 1988 nos leva à seguinte discriminação: (a) [...] (b) [...] (c) prin-
cípios relativos à organização da sociedade: ‘princípio da livre organização social’, ‘princípio de convivência
justa’ e ‘princípio da solidariedade’ (art. 3º, I); (d) princípios relativos ao regime político: ‘princípio da cidadania’,
‘princípio da dignidade da pessoa’, ‘princípio do pluralismo’, ‘princípio da soberania popular’, ‘princípio da
representação política’ e ‘princípio da participação popular direta’ (art. 1º, parágrafo único); (e) princípios re-
lativos à prestação positiva do Estado: ‘princípio da independência e do desenvolvimento nacional’ (art. 3º, II),
‘princípio da justiça social’ (art. 3º, III) e ‘princípio da não discriminação’ (art. 3º, IV); (f) princípios relativos
à comunidade internacional: ‘da independência nacional’, ‘do respeito aos direitos fundamentais da pessoa
humana’, ‘da autodeterminação dos povos’, ‘da não intervenção’, ‘da igualdade dos Estados’, ‘da solução pací-
fica dos conflitos e da defesa da paz’, ‘do repúdio ao terrorismo e ao racismo’, ‘da cooperação entre os povos’ e
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 637
fundantes trazem muitas determinações constitucionais principiológicas que parecem mes-
mo ter sido escritas para a ideologia da não violência. Dentre essas determinações, por maior
utilidade ao presente estudo, destacam-se as noções de “cidadania” e “dignidade da pessoa
humana”156 (incisos II e III do art. 1º) que, por aquela ideologia, serão garantidas a todos os
envolvidos, direta ou indiretamente, no conflito criminal, seja (re)empoderando a vítima, seja
incluindo a comunidade afetada pela violência criminal, seja trazendo o infrator sem desso-
cialização e para reparar os efeitos de seu ato violento e, com isso, ter papel comunitariamen-
te positivo. Assim, o exame de cada um daqueles princípios fundantes da própria Constitui-
ção, deve ser feito, nos estritos limites desse trabalho, de modo individualizado à mais
apropriada verificabilidade e efetividade constitucional da política criminal da não violência.
Iniciando-se pelo princípio fundante da “cidadania”, em precisa ponderação de
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, ela desempenha um espaço de liberdade cívica
novo em relação ao traço constitucional marcadamente desenvolvimentista e repressivo de
um estado autoritário e que buscava sua legitimação não na diversidade fraterna, mas nas
forças econômico-dirigistas. A cidadania, continua o professor, cristaliza e enfeixa, portan-
to, todas as aspirações e valores do preâmbulo, mas por meio do bem-estar e dignidade do
cidadão. O bem-estar e o desenvolvimento passam a ser entendidos como valores “mutual-
mente complementares”, sendo que a despeito de não haver bem-estar sem desenvolvimen-
to, este, como valor, passa a se sobrepor sobre aquele.157 É da cidadania que, dentre os
princípios fundamentais, assegura a igualdade em seus vários aspectos e desdobramentos.
De modo sintético, ela se manifesta desde garantir respeito e oportunidades (cívica, política,
social, econômica) equilibradas de partida até, em uma “aproximação negativa” da igualdade,
ela impedir a discriminação em todas as áreas da vida e sob qualquer pretexto (sexual, reli-
gioso, cultural, racial, econômico, etc.). É um dos fundamentos primeiros pois reconhece e
atribui um lugar primeiro ao ser humano, entendido este como qualquer cidadão. Reafirma,
assim, a construção de CELSO LAFER, e seu estudo sobre HANNAH ARENDT e a sua
ideia de cidadania, de que ela é o “direito a ter direitos”.158

o ‘da integração da América Latina’ (art. 4°)” (p. 94-95). Por fim, como sua função, agora com esteio em Jorge
Miranda, assim assevera aquele constitucionalista: “Jorge Miranda ressalta a ‘ função ordenadora’ dos princí-
pios fundamentais, bem como sua ação imediata, enquanto diretamente aplicáveis ou diretamente capazes de
conformarem as relações político-constitucionais, aditando, ainda, que a ‘ação imediata dos princípios con-
siste, em primeiro lugar, em funcionarem como critério de interpretação e de integração, pois são eles que dão
coerência geral ao sistema’. Isso é certo” (p. 95-96, destacamos). Agora com Jorge MIRANDA (Manual de di-
reito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000. v. II), complete-se que “[A] acção mediata dos princí-
pios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles
que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exacto dos preceitos constitucionais tem de ser encon-
trado na conjugação com os princípios e a integração há-de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou
explicitáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente. Servem, depois,
os princípios de elementos de construção e qualificação: os conceitos básicos de estruturação do sistema cons-
titucional aparecem estreitamente conexos com os princípios ou através da prescrição de princípios” (p. 230).
156
Ingo Wolfgang SARLET (Curso de direito constitucional, cit., Segunda Parte, item 1.7), ao tratar desse ponto
específico, indica que seu conjunto de normas impositivas de objetivos e tarefas em várias áreas, dentre as quais
destacamos a social e a cultural, empresta-lhe um indubitável caráter dirigente e arremata: “Tanto o Preâmbulo
quanto o título dos Princípios Fundamentais são indicativos de uma ordem constitucional voltada ao ser humano
e ao pleno desenvolvimento da sua personalidade, bastando lembrar que a dignidade da pessoa humana, pela
primeira vez na história constitucional brasileira, foi expressamente guindada (art. 1º, III, da CF) à condição de
fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, por sua vez também como tal criado e consagrado no
texto constitucional”.
157
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito e cidadania na Constituição Federal. Revista da Procuradoria Geral
do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 47-48, p. 11-27, jan./dez. 1997. p. 1-2.
158
FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito e cidadania na Constituição Federal, cit., p. 3-4.
638 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A cidadania, portanto, em todos seus aspectos, partes ou finalidades rejeita a noção


de violência institucional, pois esta nada mais é que a conduta de lesionar, reduzir, suprimir
ou negar necessidades básicas ao ser humano que, em regra, vem garantida em um plexo de
direitos essenciais.159 Também não compactua com a violência criminal, pelas mesmas ra-
zões. Contudo, se esta é inevitável ao convívio humano, como já tratamos160, a sua aborda-
gem e tratamento como oportunidades de transformação dos efeitos negativos em positivos
para a vítima e a comunidade afetada bem se encaixam no aspecto social em que a cidada-
nia garante e promove a harmonia e o bem-estar.161 No mesmo diapasão, do novo (no senti-
do de mais um) espaço político-criminal e seu reflexo no sistema processual criminal não
violento de potencialidade transformadora, também o infrator é respeitado como cidadão
desde o tratamento, passando por sua assunção de responsabilidade com o que fez e seus
efeitos, e terminando por suas ações positivas para a vítima e a comunidade afetada.
Em uma aproximação para os interesses deste trabalho, pode-se afirmar, sem erro,
de que se a cidadania visa a assegurar bem-estar ao cidadão e convívio em harmonia e paz
social, sem perder o vínculo com a realidade do Brasil atual (crescente criminalidade e dis-
funcional uso da violência institucional no aparato criminal), o proposto para o modelo
criminal alternativo a partir de uma política criminal não violenta está por ela garantido.
Isto porque, a metodologia dialogal para abordagem e tratamento do (inevitável) conflito
criminal em busca de resposta positiva para todos nele envolvidos (vítima, comunidade
afetada e ofensor) busca exatamente aproveitar a oportunidade da desarmonia interpessoal
ou intracomunitária para estabelecer uma nova relação, potencialmente melhor, de bem-
-estar e harmonia; sem (mais) violência (institucional), sem exclusão das dores e traumas da
vítima e sem dessocialização do ofensor.
A dignidade da pessoa humana, princípio orientativo da Constituição de mesmo nível
da cidadania, com esta se imbrica para garantia e potencialização recíprocas. A dignidade da
pessoa humana, em especial, por ser princípio de conteúdo ético-jurídico, é meio de identi-
ficação e incorporação de “princípios constitucionais implícitos”, o que seria um argumen-
to de reforço para a constitucionalidade da não violência.162
Na linha de INGO WOLFGANG SARLET, para além de sua ontologia e natureza, a
dignidade da pessoa humana trata de um valor próprio de cada um e de todos seres humanos

159
Sobre o tema das relações entre conflito, necessidades básicas ou essenciais do ser humano e os direitos que as
garante, cf. item 44.3, supra.
160
Cf. itens 4.2 e 4.2.1, supra.
161
Tomando de empréstimo, para maior clareza do endereçamento que se pretende dar neste trabalho a princípio tão
amplo e fundamental, aproveitamos uma conceituação clássica de Thomas Humphrey MARSHALL (Cidadania,
classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1963): “Estarei fazendo o papel de um sociólogo típico se começar di-
zendo que pretendo dividir o conceito de cidadania em três partes. Mas a análise é, neste caso, ditada mais pela
história do que pela lógica. Chamarei estas três partes, ou elementos, de civil, política e social. O elemento civil é
composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento
e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Este último difere dos outros porque
é o direito de defender e afirmar todos os direitos em termos de igualdade com os outros e pelo devido encaminha-
mento processual. Isto nos mostra que as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis são os tri-
bunais de justiça. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como
um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo.
As instituições correspondentes são o parlamento e conselhos do Governo local. O elemento social se refere a tudo
o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo,
na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.
As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e os serviços sociais” (p. 64-65).
162
Sobre essa capacidade de recepção da dignidade da pessoa humana, v. SOARES, Ricardo Maurício Freire.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 136-137.
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 639
e, portanto, só tem sentido em uma observação intersubjetivo e plural. Com isso a dignida-
de se une à igualdade já destacada acima para a cidadania.163 Disso deflui, para este traba-
lho, que pluralidade e igualdade somente se compatibilizam no respeito à diversidade.164
Nesse sentido é que o citado estudioso, trazendo à colação posição habermasiana de “ação
comunicativa”, afirma que o ser natural somente se torna indivíduo no encontro comunica-
tivo; que o modelo criminal não violento – completamos − proporciona a todos envolvidos
no conflito pela metodologia dialogal. Para ele:

Assim, como bem destaca Hasso Hofmann, a dignidade necessariamente deve


ser compreendida sob perspectiva relacional e comunicativa, constituindo uma
categoria da co-humanidade de cada indivíduo (Mitmenschlichkeit des Indivi-
duums), de tal sorte que, na esteira da lição de Peter Häberle, a consideração e
reconhecimento recíproco da dignidade no âmbito da comunidade pode ser defi-
nida como uma espécie de ‘ponte dogmática’, ligando os indivíduos entre si. Tais
considerações, conforme já anunciado, retomam aspectos da filosofia de Hegel e
confirmam a tendência – correta também no nosso entender – de se atribuir ao
reconhecimento um papel central também no âmbito da dignidade da pessoa
humana e dos direitos fundamentais [...].165

Complementando a seguir, com uma conceituação, que o próprio autor entende em


construção, mas que é, para as finalidades deste trabalho, de viva importância:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e dis-
tintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra
todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,’ além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existên-
cia e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido
respeito aos demais seres que integram a rede da vida.166

Difícil não ver, na política da não violência e no seu sistema processual criminal de
metodologia dialogal entre todos envolvidos no conflito. Assim como, também, ganham
todos em suas esferas de necessidades essenciais quando a resposta construída por eles é
pela manutenção do tecido social com posições melhores para as pessoas afetadas (vítimas
e comunidade) e comunitariamente positiva (ofensor e seus próximos). Havendo ainda, ou-
tro ganho à dignidade de todos quando atendida a vítima e não dessocializado o ofensor, os
instrumentos para isso não foram as tradicionais estruturas de vingança-dor (retribuição) e

163
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 66.
164
Para nossa distinção entre diversidade e desigualdade e a importância que isso tem na compreensão da violência
estrutural, cf. item 43.1.1, supra.
165
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988, cit., p. 67.
166
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988, cit., p. 73.
640 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

exclusão-medo (prevenção) inerentes à violência institucional (persecução e pena) que o


modelo criminal não violento não recepciona.
Tendo analisado os princípios fundantes e sua aceitação da não violência, adentre-
mos, ainda na parte orientadora de toda a Constituição, nos seus “objetivos fundamentais”.
Tendo em foco os “objetivos fundamentais da República” (art. 3º)167, a afinidade
constitucional com a não violência também se mostra evidente. Sem nenhuma dissonância,
pode-se destacar os que a tornam uma política pública (escolha a ser feita pelas instituições
públicas e privadas) almejada pelo constituinte. Nesse sentido, observa-se que o Brasil é
norteado para:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]


III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
[...];
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, ida-
de e quaisquer formas de discriminação.

Esses “objetivos fundamentais” destacados são propósitos claros e acessíveis pela transfor-
mação não violenta do conflito criminal na busca de resultados social e casuisticamente
positivos. Com isso, serão as comunidades a perceber e impedir a discriminação dos seus
(vítimas e ofensores), seja pela punição por preconceito ou para a manutenção das desigual-
dades, seja pela avaliação de justiça e paz verticalizada e ditada por terceiro estranho (no
modelo criminal tradicional, o sujeito do poder-saber; juiz) que, em regra, nunca conheceu
ou esteve na comunidade que abriga, muitas vezes, tanto infrator quanto vítima e onde pode
haver fatores criminógenos e seus efeitos. Como se vê, referidos “objetivos fundamentais”
fixados pela Constituição não apenas não vedam como serão plenamente atingidos168 pela
proposta do modelo criminal da não violência.
Mesmo o art. 4º da Constituição, voltado a definir os “princípios” que regem as
“relações internacionais” do Brasil, não veda a ideologia da não violência. Muito pelo con-
trário, fossem eles aplicados como diretrizes internas e estariam consoantes a ela e ao espaço

167
José Afonso da SILVA (Comentário contextual à Constituição, cit., p. 46) informa a finalidade e endereçamento
desses objetivos: “Não se trata de objetivos de governo, mas do Estado Brasileiro, denominado ‘República Fede-
rativa do Brasil’. Cada governo pode ter metas próprias de sua ação, mas elas têm que se harmonizar com os
objetivos fundamentais aí indicados. Se apontarem em outro sentido, serão inconstitucionais. ‘Objetivo’ é um
signo que aponta para a frente, indicando um ponto adiante a ser alcançado pela prática de alguma ação – aqui:
ação governamental. ‘Fundamental’, aqui, é adjetivo que se refere ao que se tem como mais relevante no momen-
to, ao que é prioritário e básico. Não significa que outros objetivos não devam constituir preocupação do Estado.
Significa apenas que os objetivos fundamentais são impostergáveis e hão de ser preocupação constante da ação
governamental, porque a Constituição entende que sua realização constitui meio de conseguir a realização plena
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, enunciados no art. 1º. A Constituição Portuguesa de 1976
fala em ‘tarefas fundamentais do Estado’, que Canotilho e Vital Moreira interpretam como objetivos, com uma
observação que é perfeitamente transponível para o caso brasileiro, qual seja, a de que, na concepção da Cons-
tituição, o Estado não é um aparelho sem objetivos. Enquanto Estado constitucional, ele está submetido à Cons-
tituição e comprometido na realização dos objetivos constitucionais. O Estado está, pois, constitucionalmente
vinculado quanto aos meios e quanto aos fins” (p. 46).
168
Atingindo exatamente as metas traçadas por Celso Ribeiro BASTOS (Curso de direito constitucional, cit.):
“A ideia de objetivos não pode ser confundida com a de fundamentos, muito embora, algumas vezes, isto possa
ocorrer. Os fundamentos são inerentes ao Estado, fazem parte de sua estrutura. Quanto aos objetivos, estes
consistem em algo exterior que deve ser perseguido. Portanto, a República Federativa do Brasil tem por meta
irrecusável construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a
pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem precon-
ceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (p. 159-160).
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 641
político criminal definido nos itens anteriores deste capítulo. Nem poderia ser diverso, pois
a não violência como forma de resposta ao conflito tem suas maiores e melhores experiên-
cias e práticas emergentes dos desafios em solucionar conflitos internacionais. Isso se ex-
plica exatamente porque nos conflitos entre povos, regiões, etnias e nações não há autorida-
de em posição vertical superior e de mando; o “sujeito do poder-saber” não tem assento
nesse âmbito. No plano internacional não se impõem soluções; elas precisam ser construí-
das pelas partes.169 O conflito deve ser resolvido horizontalmente pelo diálogo assistido,
mas entre iguais, único caminho para eliminar, muitas vezes, conflitos armados fratricidas
nos quais mesmo os vitoriosos não podem ser considerados vencedores. As soluções pacífi-
cas de conflitos internacionais não ocorrem fora do âmbito do diálogo e da não violência.
Para a constatação do quanto foi explicitado acima sobre o art. 4º da Constituição,
destaquem-se os seus seguintes “princípios” pelos quais o Brasil deve pautar-se no plano
internacional:

II – prevalência dos direitos humanos;


III – autodeterminação dos povos;
IV – não intervenção; [...]
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Há, pois, diante dessa análise, perfeita aceitação e compatibilidade constitucionais


com a política criminal não violenta proposta, servindo esses dispositivos como a mais in-
dicada filtragem para a proposta ora formulada.
Desse modo, concluído que não há oposição ou contradição entre os “princípios
fundamentais” da Constituição e a política criminal da não violência, cabe ingressar no
exame de se ela pode gerar um ganho de efetividade constitucional.170 O que significa dizer,

169
Essa abordagem da não violência para a resolução de conflitos internacionais, logo, de maior magnitude e nível de
complexidade, foi orientadora de algumas das obras já citadas neste trabalho, notadamente no capítulo IX, quando
tratamos dos fundamentos da não violência. São elas: DIETRICH, Wolfgang. Uma breve introdução à pesquisa
sobre paz transracional e transformação elicitiva de conflito. Tradução por Neuza L. R. Vollet. Organicom, São
Paulo, v. 15, n. 28, p. 90-104, set. 2018; GALTUNG, Johan. Transcender e transformar: uma introdução ao traba-
lho de conflitos. Tradução por Antônio Carlos da Silva Rosa. São Paulo: Palas Athena, 2006; LEDERACH, John
Paul. Transformação de conflitos. Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012; MULLER, Jean-
-Marie. O princípio da não-violência, cit.; ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de
conflitos: sua próxima fala mudará seu mundo. Tradução por Grace Patricia Close Deckers. São Paulo: Palas
Athena, 2019; e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos humanos e não violência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
170
Com as devidas adaptações ao que defendemos neste trabalho (cf. itens 46.2 e 46.3, e seus subitens, supra), em
muito se aplicaria sem ressalvas o escólio do professor José Afonso da SILVA (Comentário contextual à Consti-
tuição, cit.): “A paz é um valor que, tradicionalmente, se contrapunha à guerra. Por isso, era conceituada como
uma situação caracterizada pela ausência de guerra. Esta é conflito que se manifesta juridicamente por uma
declaração formal de um Estado ou Estados em relação a outro ou outros. Acontece que hoje ocorrem inúmeros
conflitos armados internacionais sem uma declaração formal de beligerância, de tal sorte que, formalmente, a
paz – no sentido de ausência de guerra – não estaria rompida. Por isso, a paz autêntica há se ser concebida no
sentido de ausência de qualquer combate armado – e tal é o sentido que se deve emprestar ao termo no contexto
constitucional, dada a vocação pacifista do Brasil. Pois é essa paz, como forma de direito fundamental do ho-
mem (direito de terceira geração), cuja defesa foi erigida em princípio constitucional das relações internacio-
nais da República Federativa do Brasil” (p. 51). A aproximação entre o que se propõe neste trabalho como meio
não violento para um fim transformativo dos efeitos deletérios da violência em algo socialmente positivo e o foi
642 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

em outro sentido, se a não violência ajuda a assegurar direitos constitucionais em seu pro-
pósito e por sua metodologia dialogal. Para esse teste de efetividade parte-se, agora, do Tí-
tulo II de nossa Constituição (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”).
De início cabe consignar que, nos 13 artigos e dezenas de incisos e alíneas que o
compõem, não há nada que seja contrário à incidência da não violência nos âmbitos da po-
lítica e do modelo criminais. A leitura atenta de todos os dispositivos revela que não há uma
única expressão ou ideia voltada ao aparato criminal que incite, promova ou tolere a violên-
cia criminal. Com a mesma preocupação e direção, mas diante de sua ciência quanto à
violência institucional, o constituinte foi garantidor e claramente optou por uma política
punitiva minimalista, impondo limites e controles ao exercício do poder de punir. Sabedor
de que a pena criminal e o processo penal, nos moldes da tradição persecutório-punitiva
construída pela humanidade até aquele instante, eram (e são) efetivas violências institucio-
nalizadas, ele foi firme e extenso em limitar, respectivamente, a incidência da pena e vedar,
sob qualquer aspecto, o indevido processo penal; seja em sua fase investigativa, judicial ou
penitenciária. Se o modelo criminal violento era o único existente antes da Constituição, ela
deixou clara a sua intenção de limitar suas violências (institucionais) ao indispensável e de
forma proporcional.
Com os olhos agora voltados à gama de direitos e garantias previstos no art. 5º da
Constituição a todos os cidadãos, incluídos aqui a vida, a liberdade, a igualdade, a seguran-
ça e a propriedade (caput do art. 5º), mas não só, todos serão melhor efetivados se a socie-
dade vivenciar menos violência. A menor violência social possível é o propósito basilar e
para o qual todos os esforços da ideologia da não violência estão voltados.171
No plano constitucional, portanto, a ideologia da não violência passa pelos dois filtros:
plena afinidade e mais uma via para efetividade dos princípios e objetivos constitucionais.
Mais do que permitido constitucionalmente, o que se percebe de modo especial nas
duas últimas décadas, no Brasil e no mundo, é que a ideologia da não violência tem se apro-
ximado da justiça criminal tradicional para alterar sua abordagem. Os métodos e práticas
restaurativos têm capitaneado essa instrumentalização e sido importante movimento juspo-
lítico para materialização do ideal não violento. É do que se trata no próximo subitem.

destacado das palavras acima do professor José Afonso da SILVA, pode ser produzida pelas de John R. FULLER.
Como criminólogo da linha da pacificação, ele explica (Criminal justice, cit.; os trechos traduzidos seguem com
indicação de páginas) que o modelo da pacificação “desafia a perspectiva da guerra como uma abordagem polí-
tica efetiva e humana. A perspectiva da paz enfatiza a justiça social, a resolução de conflito, a reabilitação e a
crença de que as pessoas precisam cooperar em instituição democrática a fim de desenvolver comunidades sig-
nificativas. A perspectiva da paz é um modelo político inclusivo que tem como objetivo empoderar todos os indi-
víduos e dar a eles a oportunidade de controlar seus destinos” (p. 41). O contraponto existente, portanto, é que a
“guerra ao crime” busca “identificar, separar e punir criminosos” (p. 57), o que para nós explica a lógica do uso
do aparato criminal para a marginalização, segregação e estigmatização do “outro”. Enquanto – seguimos com
FULLER − a perspectiva pacificadora busca uma reforma das instituições sociais na mesma medida em que bus-
ca a reforma do indivíduo (p. 58). Assim, ela opera não apenas com (re)habilitação dos presos e com a sua (re)adap-
tação a uma vida de liberdade, mas também com sistemas mais justos e democráticos (p. 58-59).
171
De modo um pouco diverso do texto, uma vez que com os olhos na “justiça restaurativa” e por entendê-la como
uma justiça com maior participação democrática, o que tanto diminui as desigualdades como aumenta o acesso a
direitos fundamentais, v. OXHORN, Philip; SLAKMON, Catherine. Micro-justiça, desigualdade e cidadania
democrática: a construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, Catherine;
DE VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.). Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Pro-
grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 187-210.
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 643
47.1  Empuxo internacional da não violência pelo instrumental restaurativo e seus reflexos
no Brasil do século XXI: normativas e projetos de lei
A ONU, em 1999, por meio de sua Resolução n. 26172, passou a pautar e estimular,
no âmbito internacional, as práticas restaurativas como meio de resolver de modo não vio-
lento os conflitos criminais.
Tal iniciativa, após boa aceitação internacional, levou à elaboração de outras duas
diretivas: a Resolução n. 2000/14173 e a Resolução n. 2002/12174. Em 2006, as Nações Uni-
das, por meio de seu escritório voltado à redução do tráfico de drogas e de crimes (UNODC),
e dentro da última resolução citada, que solicitava do Secretário-Geral a maior difusão e
disseminação entre as nações dos programas restaurativos, publicou um manual para auxi-
liar as várias nações na implementação de políticas e práticas restaurativas: o Handbook on
Restorative Justice Programmes175. Com esse manual, respeitando as sempre amplas e aber-
tas possibilidades de novas práticas e programas restaurativos, a depender das característi-
cas de onde seja aplicado, assim como do modelo de justiça criminal e das agências e pes-
soas responsáveis pela aplicação, as Nações Unidas pretendem orientar a implantação de
programas restaurativos pelo mundo. Por esses programas ela entende “qualquer programa
que utiliza processos restaurativos e busca obter resultados restaurativos”. Por processo
restaurativo, por sua vez, fixa que são aqueles “em que a vítima e o infrator e, quando apro-
priado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime,
participem ativamente na resolução de questões que surjam do crime, geralmente com a
ajuda de um facilitador”.176 Em 2017, por determinação da Resolução 2016/17 do Conselho
Econômico e Social, o UNODC promoveu reunião de especialistas para analisarem o nível
de utilização e aplicabilidade dos “Princípios básicos para utilização de programas de jus-
tiça restaurativa em matéria criminal” já existente na ONU, assim como “o desenvolvimen-
to e abordagens inovadoras na área da justiça restaurativa”. Desse trabalho resultou a atua-
lização e a elaboração de uma segunda edição daquele manual.177
Nessa atual versão do manual, já publicada em português pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) como forma de induzir e difundir as práticas restaurativas por todo o Brasil,
houve a colaboração de especialistas brasileiros na discussão de propostas e trocas de expe-

172
Resolução ONU n. 1999/26 – “Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurati-
va na Justiça Criminal”. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/commissions/CCPCJ/Crime_Resolu-
tions/1990-1999/1999/ECOSOC/Resolution_1999-26.pdf. Acesso em: 14 dez. 2021.
173
Resolução ONU n. 2000/14 – “Princípios Básicos para utilização de Programas Restaurativos em Matérias Crimi-
nais”. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/commissions/CCPCJ/Crime_Resolutions/2000-2009/2000/
ECOSOC/Resolution_2000-14.pdf. Acesso em: 14 dez. 2021.
174
Resolução ONU n. 2002/12 – “Princípios Básicos para Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em
Matéria Criminal”. Essa importante resolução, que foi elaborada pelo Conselho Econômico e Social da ONU,
considerando e indo além das duas anteriores, pode ser encontrada, em vernáculo, no endereço eletrônico: http://
www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_
ONU_2002.pdf. Acesso em: 14 dez. 2021.
175
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Handbook on Restorative Justice Programmes, cit.
176
Definições extraídas e traduzidas do citado UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Handbook
on Restorative Justice Programmes, cit., p. 7. Essas mesmas definições podem ser vistas desde o item “I – Termi-
nologia”, do Anexo à já mencionada Resolução n. 2002/12 da ONU.
177
ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça res-
taurativa, cit. Referido manual veio à público em março de 2020, tendo sido traduzido para o idioma português
em 2021, como referência de orientações práticas sobre a aplicação da “justiça restaurativa” no âmbito criminal.
No Brasil, seu objetivo, como mencionado na apresentação da edição em português, é corroborar com a “Política
Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário”.
644 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

riências. Tudo a demonstrar que a experiência restaurativa tem tido importante desenvolvi-
mento entre nós.178
Nessa linha internacional de não violência proposta pela ONU, que inclusive concitou
seus Estados-membros a introjetarem e dinamizarem os meios de resolução pacífica dos con-
flitos criminais179, o Brasil passa a aceitar e realizar práticas restaurativas. Como se vê, desde a
perspectiva internacional, que inclusive foi a mesma que informou os direitos fundamentais de
nossa Constituição180, o Brasil incorpora o movimento restaurativo como instrumentalização
prática de resolução de conflitos criminais e que tem na pacificidade dos meios e na interação
dialogal das partes do conflito para a construção do resultado seus pilares de sustentação.
Limitando-nos, por força da temática deste estudo, apenas à incidência das práticas
restaurativas no âmbito criminal no Brasil181, deve-se registrar que em 2005 iniciaram-se,
oficialmente, e por iniciativa do Ministério da Justiça e do PNUD, três projetos-pilotos no
Distrito Federal e nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. Isso registra uma história
– inicial, é bem verdade – de experiências de mais de 15 anos dessas práticas no Brasil.182
Nesse período, o Poder Executivo, por meio da Secretaria de Reforma do Judiciário
em associação com o PNUD, assim como o Ministério da Justiça, vem criando legislação
para inserir ações não violentas em várias áreas do Plano Nacional de Direitos Humanos 3
(Decreto n. 7.037/2009) e com a Lei n. 12.594/2012, que estabelece o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo, regulamentando a execução das medidas socioeducativas des-
tinadas ao adolescente que pratique ato infracional, modalidade de violência criminal, nos

178
A UNODC, organizador do Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa, em sua segunda edição (ESCRI-
TÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa,
cit.), agradece “pelas valiosas sugestões e contribuições” de vários especialistas, dentre os quais estão Daniel
Achutti e Fernanda Fonseca Rosenblatt; e tantas outras pessoas e organismos afeitos ao restaurativismo e que
auxiliaram tecnicamente na produção da edição brasileira patrocinada pelo CNJ (p. iii).
179
Cf. Resolução n. 2002/12 da ONU, itens 4 a 6.
180
Cf. item 26.3, supra.
181
O movimento restaurativo, como forma não violenta de resposta a conflitos, mesmo no Brasil, não se limita à área
criminal. Prova disso é a sua inserção em vários pontos, alguns dos quais sem qualquer conotação criminal, do
“Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3” do Brasil, fixado pelo Decreto n. 7.037/2009. Nesse pro-
grama, por exemplo, dentro de seu “Eixo Orientador IV: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violên-
cia:” estabelece, entre outras diretrizes, a “Diretriz 17: Promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efe-
tivo, para o conhecimento, a garantia e a defesa dos direitos” e na qual, em seu “Objetivo estratégico III: Utilização
de modelos alternativos de solução de conflitos”, define como ação programática, não voltada ao âmbito criminal,
porquanto já tratado em outro item (cf. diretrizes 12 a 16), “a) Fomentar iniciativas de mediação e conciliação,
estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, voltados à maior pacificação social e menor
judicialização” e “d) Incentivar projetos pilotos de Justiça Restaurativa, como forma de analisar seu impacto e
sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro”, ambos de responsabilidade, entre outros órgãos, do Ministério
da Justiça. Além disso, e distante da esfera judicial, o mesmo PNDH-3 estabelece, sem sua “Diretriz 19: Fortale-
cimento dos princípios da democracia e dos Direitos Humanos nos sistemas de educação básica, nas instituições
de ensino superior e outras instituições formadoras”, por meio do “Objetivo Estratégico I: Inclusão da temática de
Educação e Cultura em Direitos Humanos nas escolas de educação básica e em outras instituições formadoras”,
que uma de suas ações programáticas é “e) Desenvolver ações nacionais de elaboração de estratégias de media-
ção de conflitos e de Justiça Restaurativa nas escolas, e outras instituições formadoras e instituições de ensino
superior, inclusive promovendo a capacitação de docentes para a identificação de violência e abusos contra
crianças e adolescentes, seu encaminhamento adequado e a reconstrução das relações no âmbito escolar”.
182
Sobre a origem da “justiça restaurativa” no Brasil, em sua versão oficial e em “outras vozes”, já tivemos a opor-
tunidade de nos manifestar no item 46.3.2, supra, o primeiro momento que nos utilizamos da “justiça restaurati-
va” para demonstrar a importância teórica de se construir um sistema processual criminal não violento como ar-
cabouço de desenvolvimento e segurança de novas práticas e experiências. Nossas considerações tiveram como
fonte das “outras vozes” o trabalho de Fernanda Carvalho Dias de Oliveira SILVA (A experiência e o saber da
experiência da justiça restaurativa no Brasil, cit., item 2.4, subitens I e II) cuja riqueza de dados sobre a história
e a atual situação da “justiça restaurativa” no Brasil é de ser registrada e lida.
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 645
termos deste trabalho. Tais legislações alteraram normativas de diversas naturezas a fim de
iniciar um plexo legal que permita afirmar que no Brasil o ideal não violento, já está inte-
grado pelo movimento restaurativo183, não obstante ainda incipiente e procurando definir
seu espaço, está em crescimento e pode incorporar não apenas novas práticas, mas mesmo
novos âmbitos de envolvimento do “fenômeno criminal” que leve à identificação de violên-
cias diversas das criminais e que se tornam, sem percebermos, fontes criminógenas.
Na delimitação de espaços de menor violência institucional, o CNJ tem sido atuan-
te.184 Por meio da elaboração de sucessivas resoluções, no sentido de integrar no Judiciário
as práticas restaurativas, tem promovido práticas não violentas185. Em outra direção, tem
promovido política de mudança de mentalidade (prioritária ou exclusivamente) encarcera-
dora com orientações a sua redução (Resolução n. 288/2019186). Há, ainda, o direcionamen-
to dos recursos oriundos das penas de prestação pecuniária a projetos ligados a práticas
restaurativas (Resolução n. 154/2012, após a reforma pela Resolução n. 225/2016), princi-
palmente, após a edição desta última resolução citada, que institui a “Política Nacional de
Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário”187 e pela qual se consolida a preocupa-
ção com o tratamento não violento do conflito e atenção à vítima, que deve ser encaminha-
da para os programas de “justiça restaurativa” promovidos pelos tribunais (alteração imple-
mentada na Resolução n. 253/2018 do CNJ).
Além do Executivo e do Judiciário, também no âmbito legislativo tem havido inicia-
tivas de propostas de projetos de lei específicos para regulamentar as práticas restaurativas
com o fito de diminuir a violência institucional do modelo tradicional e integrar as partes
atingidas pela violência criminal.
Em 2006, na Câmara dos Deputados, foi elaborado projeto de lei para inserir os mé-
todos restaurativos no modelo criminal persecutório-punitivo, alterando disposições tanto
do Código de Processo Penal quanto do Código Penal.188 Mais recentemente, no ano de 2019,
outros projetos foram propostos. Um, o Projeto de Lei n. 2.976189, destinado a “disciplinar a

183
Para uma visão ampla sobre os diversos núcleos e projetos de “justiça restaurativa” em andamento no Brasil entre
abril e setembro de 2020, v. mapeamento realizado por Fernanda Carvalho Dias de Oliveira SILVA, em extensa e
profunda pesquisa, baseada em formulário de questões e entrevistas com profissionais da área (A experiência
e o saber da experiência da justiça restaurativa no Brasil, cit., p. 107-164). Para dados de 2019, v. CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA. Seminário Justiça Restaurativa, cit.
184
Essa atuação, se de um lado, tem como efeito negativo uma não aconselhável incorporação da “justiça restaurati-
va” sob os auspícios judiciários, mesmo contra a posição de instituições de classes dos magistrados (cf. item
46.3.2, supra), não deixa de desempenhar papel oficial central na promoção dos debates, do desenvolvimento e da
divulgação de ideias.
185
A afinidade e a relação entre práticas restaurativas como forma não violenta de tratar conflito e a violência dele
decorrente pode ser vista nas considerações iniciais de justificação da Resolução n. 225/2016 do CNJ, em que se
lê: “Considerando que, diante da complexidade dos fenômenos conflito e violência, devem ser considerados, não
só os aspectos relacionais individuais, mas também, os comunitários, institucionais e sociais que contribuem
para seu surgimento, estabelecendo-se fluxos e procedimentos que cuidem dessas dimensões e promovam mu-
danças de paradigmas, bem como, provendo-se espaços apropriados e adequados; [...] Considerando que cabe
ao Poder Judiciário o permanente aprimoramento de suas formas de resposta às demandas sociais relacionadas
às questões de conflitos e violência, sempre objetivando a promoção da paz social”.
186
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2957. Acesso em: 14 dez. 2021.
187
Cf. Resolução n. 225, de 31 de maio de 2016. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-
-normativos?documento=2289. Acesso em: 14 dez. 2021.
188
Cf. Projeto de Lei n. 7.006/2006, “Facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça
criminal, em casos de crimes e contravenções penais”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposico-
esWeb/fichadetramitacao?idProposicao=323785. Acesso em: 14 dez. 2021.
189
Cf. Projeto de Lei n. 2.976/2019, iniciativa do Deputado Paulo Teixeira. Disponível em: https://www.camara.leg.
br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E6AC81FD0E854888C61FD4557A5ACDF5.proposicoesWe
bExterno1?codteor=1768290&filename=Avulso+-PL+2976/2019. Acesso em: 14 dez. 2021.
646 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

prática de justiça restaurativa entre as pessoas atingidas por conflitos de natureza crimi-
nal”, procura ser uma regulamentação própria e autônoma, que abarca desde a definição
principiológica e conceitual até as dinâmicas gerais de práticas restaurativas e suas relações
com o aparato e a legislação penal já existentes. Propõe-se, por exemplo e de maneira acer-
tada, que o cumprimento do acordo restaurativo gere a extinção da punibilidade da conduta.
O segundo, o Projeto de Lei n. 5.621, foi destinado a acrescentar à Lei Maria da Penha a
possibilidade de “determinar o encaminhamento das partes para atendimento em Núcleos
Modernos de Resolução de Conflitos, tais como os Centros Judiciários de Conciliação e
Mediação, Oficinas de Justiça Restaurativa e/ou Oficinas de Direito Sistêmico”.190
O movimento legislativo mais recente sobre “justiça restaurativa”, e com o qual não
concordamos,191 foi o de incorporá-la nos últimos Substitutivos do Deputado João Campos
(26/04/21 e 30/06/21) de projeto de lei de reforma global do Código de Processo Penal. Nes-
sa nossa crítica, alinhamo-nos à AJUFE e à AMB, que em suas manifestações oficiais ao
Substitutivo de 26/04/21, foram categóricas em identificar um conflito principiológico, me-
todológico e de propósito entre o que chamam de “justiça restaurativa” e “justiça criminal”.
Com essas associações, assim como pelas diretrizes da UNODC, entendemos que sim, é
necessária uma regulamentação legal para definir princípios, objetivos, metodologia, agen-
tes internos e propósitos específicos e claros para a atuação da “justiça restaurativa” e,
ainda, sua articulação em alternatividade com o modelo criminal tradicional.192 Porém,
como já referido e explicitado anteriormente193, as experiências recentes e mal sucedidas
com institutos de minimalismo penal194, em muito pelo colapso estrutural do modelo crimi-
nal nacional195 e, de não menos relevância, também pela cultura jurídico-punitiva dos agen-
tes internos em resposta ao aumento incontrolável da criminalidade196, que os coloca à mer-
cê da pressão social para que se sintam integrantes da segurança pública197, há um altíssimo

190
Cf. Projeto de Lei n. 5.621/2019, iniciativa do Deputado Emanuel Pinheiro Neto. Disponível em: https://www.ca-
mara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2226588. Acesso em: 14 dez. 2021.
191
Cf. item 46.3.2, supra.
192
Quanto as manifestações da AJUFE e da AMB, v. ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL. Nota
técnica nº 03/2021 AJUFE, cit.; e ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Nota técnica, cit. No
que concerne às diretrizes do UNODC, v. ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME.
Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., item 1.5.
193
Cf. item 46 e, de modo especial para a “justiça restaurativa”, item 46.3.2, supra.
194
Para a transação penal, cf. item 46.3.1, supra.
195
Cf. Parte II, supra.
196
Cf. item 31, e seus subitens, supra.
197
Como previamente mencionado na nota 105 deste Capítulo, supra, Rubens R. R. CASARA trouxe em sua obra
(Mitologia processual penal, cit.) pesquisa realizada com juízes criminais no fórum central da Comarca do Rio
de Janeiro, em que “[N]a coleta de dados para a investigação, foram apresentadas três questões objetivas e fe-
chadas (1ª – Nas decisões criminais, leva-se em conta a segurança pública? 2ª – As decisões criminais produzem
efeitos na redução da criminalidade? 3ª – O bem jurídico ‘segurança pública’ é levado em consideração no mo-
mento da fixação da pena?). [...] Assim, do universo de 25 sujeitos pesquisados que apresentaram respostas ao
questionário, 21 responderam ‘sim’ à primeira questão (ou seja, que levam em consideração a ‘segurança pública’
ao decidirem casos criminais) e 4 responderam que não. Um dos magistrados, embora tenha respondido ‘não’ à
questão, apresentou justificativa por escrito, na qual explicou que ‘nas decisões relativas às medidas cautelares’
a segurança pública ‘pode ser levada em conta, mormente quando envolvem organizações criminosas estrutura-
das’. No que tange a segunda questão, 16 juízes responderam ‘sim’, manifestando a crença de que as decisões
criminais produzem efeitos na redução da criminalidade, enquanto 6 responderam ‘não’ e 3 afirmaram não po-
der responder a essa pergunta. Frise-se que, dos 6 magistrados emitiram resposta negativa, [...] [U]m deles
afirmou que ‘infelizmente, não, em função de uma legislação penal e processual penal benevolente’, certo de que
a ‘exigência do trânsito em julgado e a infinidade de recursos existentes, postergando sempre a execução da
pena carcerária, além do descrédito que trazem para a Justiça, não produzem os efeitos desejados na redução
47.  Consonância entre a política criminal da não violência e a Constituição 647
risco de a “justiça restaurativa” ser fagocitada pelas estruturas e agências formadas e infor-
madas pela cultura da violência e que operam dentro do Código de Processo Penal atual e
estão sendo mantidas no projeto de novo código. Assim, e como sugere o UNODC, o
“enquadramento jurídico” deve buscar uma realização legal para salvaguarda de fundamen-
tos e objetivos da “justiça restaurativa”, mas isso deve respeitar as características de cada
país198, e as do Brasil não têm sido condescendentes e receptivas sequer a institutos ou ini-
ciativas de minimalismo penal, sendo pouco esperançoso que seja diferente com essa im-
portante iniciativa não violenta.
Como se percebe, há perfeita compatibilidade da ideologia não violenta com os va-
lores constitucionais e ela já é uma realidade em suas exteriorizações pelas práticas restau-
rativas. Não deve haver qualquer recuo ou contramarcha nesse processo de implementação
da ideologia da não violência. Faz-se necessário, neste ponto histórico e consolidada sua
aceitação e afinidade com as diretrizes básicas internacionais, iniciar sua melhor e mais
organizada compreensão para aperfeiçoamento de seus institutos, com elaborações de sabe-
res próprios e adequados para sua incidência nas várias realidades do Brasil.
Sendo assim, autorizada e já iniciada a escolha pela política criminal não violenta,
deve-se começar a empreendê-la de modo claro e a se construir espaços específicos e infor-
mados de atuação. Os debates e diretrizes precisam ser realizados no plano criminal daque-
la política pública e a alternativa não violenta deve ser estruturada já com valores, princí-

da criminalidade’. [...] Por fim, 12 juízes admitiram levar em consideração o bem jurídico ‘segurança pública’,
também no momento da fixação da pena” (CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal, cit., p. 208-209).
Assim, ainda que a pesquisa tenha sido feita em 2011 e parta de um pequeno universo de entrevistas (25 juízes
respondentes) se examinada a realidade nacional – que contava com 17.988 magistrados em 2020 (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2021: ano-base 2020. Brasília: CNJ, 2021. p. 92) –, não se pode
deixar de considerar que a pesquisa revela uma preocupação dos juízes em apresentar uma resposta à sociedade,
o que tende a ter se intensificado, ainda mais diante dos números crescentes de criminalidade, os quais só piora-
ram desde o período analisado (cf. item 31 e seus subitens, supra).
198
A posição da ONU, nesse aspecto, sempre uma diretriz supranacional e que respeita a realidade e perfil cultural
de cada localidade, tem duas orientações claras. A primeira é a recomendação de uma legislação específica para
a implementação segura e criteriosa da “justiça restaurativa”. A segunda, de que essa legislação e implementação
respeitem as características de cada nação. No item 1.5 do seu Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa,
pode-se ler: “O enquadramento jurídico pode, entretanto, ser um recurso essencial no desenvolvimento de novos
programas de justiça restaurativa e pode fortalecer o modo como sua legitimidade é percebida. Quando uma
nova iniciativa visa transformar radicalmente a forma como o sistema responde a certas categorias de ofensores
(por exemplo, adolescentes em conflito com a lei), certos tipos de crimes (como os crimes contra a proteção da
pesca), ou introduz respostas alternativas (por exemplo, implementação de programas de diversão processual),
em geral é necessário um novo enquadramento jurídico. [...] A existência de uma base legal sólida e bem articu-
lada para os programas de justiça restaurativa não garante, necessariamente, a sua implementação ampla e
efetiva. A menos que haja adesão de todos os principais interessados, essas iniciativas podem ser ignoradas.
Como será discutido no Capítulo 7, normalmente será necessária uma abordagem estratégica para o seu estabe-
lecimento e implementação. Geralmente, os programas de justiça restaurativa operam dentro do contexto do
sistema de justiça criminal mais amplo ou paralelamente a ele. Assim, esses programas devem negociar um papel
substancial no sistema de justiça formal ou como alternativa a ele, sob pena de serem marginalizados e subutili-
zados. Na ausência de uma base legal, pode ser difícil inserir um programa de justiça restaurativa na rotina
diá­ria do sistema de justiça criminal. A legislação pode fornecer o ímpeto para o uso mais frequente do processo
restaurativo, além de garantir maior previsibilidade e certeza no seu uso, uma vez que estabelece todas as salva-
guardas legais necessárias para o seu uso mais amplo. Os países que usam a justiça restaurativa em grande
escala, como Nova Zelândia, Irlanda do Norte, Bélgica, Finlândia e Noruega, implementaram uma legislação
robusta que obriga os tribunais e o Ministério Público a encaminharem os casos para a justiça restaurativa. No
entanto, a legislação por si só não é suficiente para melhorar sua iniciação, promover a acessibilidade e garan-
tir uma implementação ampla e eficaz. O Capítulo 7 do manual traz uma análise mais aprofundada da questão
do desenvolvimento de um enquadramento jurídico adequado, bem como de uma abordagem estratégica para o
seu estabelecimento e implementação” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME.
Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., item 1.5, p. 11).
648 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

pios, objetivos e propósitos especificados de modo diretivo à construção normativa e


organizacional de novos espaços que não possam ser revertidos ou diminuídos a partir de
ações ou interpretações de agentes internos do modelo criminal persecutório-punitivo.
É o que se faz no próximo capítulo para evidenciar, um pouco mais de perto, a teoria
ora oferecida aos processos que lidem com o “fenômeno criminal” por meios não violentos
e com propósito de transformação dos efeitos negativos da violência em ações positivas
para os envolvidos diretos no conflito e toda a comunidade por eles afetada. Ressalvando-se
que os temas adiante tratados são intencionalmente escolhidos pelos reflexos que produzem
no sistema processual criminal não violento, mas não serão exauridos, pois o que se preten-
de é fornecer uma base comum, fiel e adaptável às experiências que já estão sendo discuti-
das e também a outras que estejam por surgir.
CAPÍTULO XI

Do modelo criminal não violento


ao processo criminal transformativo

SUMÁRIO: 48. Modelo criminal não violento: elementos estruturantes e agen-


tes peculiares a ele; coexistência autônoma e alternativa ao modelo crimi-
nal tradicional (p. 651): 48.1 Finalidade do modelo criminal não violento:
atender a necessidades fundamentais e melhorar os seres humanos, suas
relações e o meio ambiente comunitário; vantagens da “resposta não vio-
lenta de conciliação criminal” em face da pena criminal (p. 654); 48.2 Vo-
luntariedade e diálogo: novas racionalidade e metodologia, instrumentos
essenciais ao modelo criminal não violento (p. 662); 48.2.1 Voluntariedade
como móvel constante e necessário desde a escolha pelo modelo criminal
não violento até seu resultado: empatia e as suas vantagens como diferencial
a ser esclarecido às partes do conflito (p. 663); 48.2.2 Metodologia dialo-
gal e horizontalidade: nova dinâmica e sentido relacional no modelo criminal
não violento (p. 671); 48.3 Participantes novos para um também novo modelo
criminal: políticas criminais diversas demandam agências diversas com agen-
tes internos formados e informados em outras técnicas e habilidades (p. 679);
48.3.1 Novas agências e a oportunidade de uma cooperação privado-pública
na resposta à “violência envolvente” (p. 684); 48.3.2 Do terceiro “facilitador”
do diálogo (p. 690); 48.3.3 Das partes naturais do conflito e uma nova posição
para a “comunidade” (p. 696). 49. Sistema processual criminal não violento:
seus princípios e a natureza jurídica de seu instrumento (p. 706): 49.1 Devido
processo criminal não violento: a mesma cláusula ‘mater’ com novas diretrizes
sistêmicas (p. 707); 49.1.1 Inafastabilidade do Poder Judiciário: uma nova dis-
cussão sobre a necessidade de sujeito de poder-saber no sistema processual
não violento; e as aproximações inevitáveis entre os modelos criminais tradi-
cional e o não violento (p. 712); 49.1.2 Direito ao procedimento não violento e
seu prazo razoável (p. 721); 49.1.2.1 Breves notas sobre os tipos de ritos e
práticas existentes e a necessidade de se ter aderência à cultura brasileira
e à peculiaridade local de sua aplicação (p. 725); 49.1.3 Da publicidade
650 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

no sistema processual persecutório-punitivo e da confidencialidade no siste-


ma processual criminal não violento: uma necessária compreensão (p. 729);
49.1.4 Neutralidade como ideia-síntese da imparcialidade e da impessoali-
dade e sua imprescindibilidade aos (novos) agentes internos do sistema pro-
cessual criminal não violento (p. 733); 49.1.5 Assistência jurídica integral e
gratuita e igualdade na dinâmica dialógica: a informação e seus objetivos
no sistema processual criminal não violento (p. 738); 49.2 “Processo crimi-
nal não violento” e sua natureza jurídica de processo (p. 742); 49.2.1 Pre-
missas ontológicas das teorias da natureza jurídica do processo (p. 743);
49.2.1.1 Premissas ontológico-processuais não penais utilizadas na origem
das formulações teóricas (p. 745); 49.2.1.2 Processo penal e sua fenome-
nologia diversa (p. 747); 49.2.2 Premissas ontológicas do processo crimi-
nal não violento (p. 749); 49.2.3 Principais teorias quanto à natureza jurídi-
ca do processo (p. 750); 49.2.3.1 Processo como relação jurídica (p. 751);
49.2.3.2 Processo como situação jurídica (p. 753); 49.2.3.3 Processo como
procedimento em contraditório (p. 754); 49.2.4 Processo criminal não violento
e sua adaptabilidade à evolução teórica da natureza jurídica do processo: um
encaixe individual e socialmente melhor (p. 755). 50. Processo criminal não
violento como instrumento de política pública social (p. 757): 50.1 Transfor-
mação e “resolução de conflitos”: planos intrapessoal e comunitário da “res-
posta não violenta de conciliação criminal” (p. 758); 50.2 Processo criminal
(não violento) transformativo: finalidade, estrutura e inter-relação de agências
para ser instrumento de política (pública) social (p. 762).
48. Modelo criminal não violento: elementos estruturantes e agentes peculiares a ele;
coexistência autônoma e alternativa ao modelo criminal tradicional
Este item pressupõe todas as bases teóricas expostas nos capítulos precedentes desta
Parte III e, também, alguns aspectos e fundamentos também já desenvolvidos nas outras
Partes anteriores. Por essa razão, neste ponto do trabalho, não cabe retomá-los de modo
completo (bases e fundamentos teóricos). Este item, assim como os subitens que o integram,
tem por objetivo a organização e a exposição dos elementos estruturais do novo modelo
criminal não violento. O uso do instrumental é dirigido à intenção de sistematizar de forma
didático-metodológica, sem novas preocupações em justificá-lo. O desenvolvimento que se
dará visa a demonstrar as especificidades desse modelo e, portanto, o que há de diferente do
persecutório-punitivo e com o qual não pode fundido ou por este interpenetrado.
Iniciando por uma breve contextualização de modelo criminal, para os interesses do
momento em que se está no trabalho, necessário esclarecer que ele é a materialização da
política criminal.1 Ela, em posição superior e anterior a qualquer modelo criminal, confere-
-lhe ideologia, intensidade e propósito. A política criminal, como visto, é uma espécie de
política pública e, assim, tem espaços internos (políticos e ideológicos) para diversos espec-
tros de orientação; gradientes de políticas públicas. Este trabalho está a mostrar que no
Brasil há apenas o espaço da política criminal da violência (maior ou menor) e propõe que
essa esfera de política pública também tenha gradientes para dar respostas de espectro tão
largo quanto o é o “fenômeno criminal”.2 Isto porque também é no plano político-criminal
que se define o objeto-problema e a forma com a qual se lida com ele.3 Feitas essas conside-
rações, explique-se como elas ocorrem em cada um dos modelos criminais: o persecutório-
-punitivo tradicional e o não violento.
No modelo criminal persecutório-punitivo o objeto-problema é o “crime” e a forma
de tratá-lo é a violência institucional, tanto representada pela violência punitiva (pena cri-
minal) quanto pela violência processual estigmatizante e invasiva (persecução penal). Há,
pois, uma vinculação matricial dele ao binômio “crime-punição” que está no centro do
modelo violento. Para realizar essa abordagem (persecutória) e imprimir aquela resposta
(punitiva) o modelo se serve, essencialmente e ao que nos importam mais de perto, de dois
instrumentos normativos: o sistema penal-material e o sistema processual penal. Ambos
esses sistemas são os instrumentos do modelo, mas estão à mercê da intensidade que a po-
lítica criminal a eles implementa. Logo, tanto o sistema penal quanto o sistema processual

1
Sobre modelo, cf. item 3, supra, e para nossa exposição de política criminal, cf. item 6, supra.
2
Para uma análise da ideologia da não violência e de como por ela é constitucional e recomendável para efetivida-
de de direitos aos cidadãos ter um novo e compatível espaço de política criminal, cf., respectivamente, itens 44
a 47, supra.
3
Sobre nossa proposta de mudança do objeto-problema do binômio “crime-pena” para a “violência envolvente”,
cf. item 44.2, supra.
652 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

penal podem ser ora de violência “intensa”, ora de violência “mitigada”.4 Porém, necessário
se compreender, sempre haverá violência institucional neles, restando apenas modular sua
incidência em força e direção sempre conforme os desígnios dos ocupantes do poder insti-
tuído, seus interesses e suas políticas dirigistas. Esses ocupantes que determinam como será
formulada essa espécie de política pública (a política criminal) são os agentes externos
àquele modelo criminal.5
Tratando especificamente sobre o sistema processual penal, já demonstramos que
ele sempre conviveu, no curso da história, com dois subsistemas, ou espécies daquele gêne-
ro: o sistema processual do julgamento e o sistema processual premial-negociado. Suas di-
ferenças intrínsecas e de operacionalidade (forma, velocidade e resultado) não têm o condão
de posicioná-los para fora do modelo criminal persecutório-punitivo. Não há dúvida em se
afirmar que ambos integram esse modelo quando se observam alguns elementos que o for-
mam e são determinados exatamente no plano lógico daquele modelo: metodologia; agentes
internos; sentido relacional entre agentes internos e entre estes e as partes diretas do confli-
to criminal (imputado e vítima); e, por fim, a própria finalidade do modelo.6
No modelo criminal violento (persecutório-punitivo), a metodologia é a “inquisitio”7.
Os agentes internos são os “sujeitos do poder-saber” que são formados para ingressarem no
modelo segundo a cultura jurídico-criminal persecutório-punitiva, que é um reflexo da cul-
tura de raízes ancestrais da “vingança-medo”, e, também, informados em todas as suas ati-
vidades profissionais pelas estruturas das agências às quais se ligam (policial, acusadora,
julgadora, penitenciária e, também, defensiva).8 Para que os desígnios político-criminais
possam perpassar o modelo criminal e atingir aos envolvidos diretos no conflito criminal, é
necessário um estrito controle funcional e ideológico daqueles agentes e, também, um con-
trole das partes naturais do conflito por esses agentes internos. Isso sempre ocorreu – e diria,
somente pode ocorrer – de uma única forma e sentido vetorial: a forma é a hierarquia e o
sentido é vertical descendente.9 A força normativa e das estruturas das agências determinam

4
Sobre a construção e permanência histórica deste modelo como único desde a fase do Império Romano do Ocidente,
cf. itens 8.2, 9.2, 10.2, 14, 19, 24, 25.1, 26, 27 e seus respectivos subitens, supra. Sobre a violência como marca cul-
tural da humanidade, como ela se perpetua e se justifica, inclusive pelos criminosos e pelos agentes internos do
sistema persecutório-punitivo, cf., respectivamente, itens 43.1 e 43.2, e seus subitens, supra.
5
Sobre a relação entre os agentes internos e externos do modelo e sistema criminais, cf. item 3, supra. Sobre seu
papel crucial na história para implementação de mudanças perenes nos sistemas processuais penais, cf., para o
modelo criminal romano, itens 8.1 e 8.2 e seus subitens, supra; para o período de fusão do Império Romano com
o Cristianismo, item 9.2, supra; para o processo de substituição do modelo criminal germânico pelo modelo ro-
mano-canônico, item 14, notadamente o seu subitem 14.2, supra; para a consolidação do modelo criminal único
a partir do século XI, item 19, supra, in fine; para o processo de reforma da inquisitio católica e surgimento da
inquisitio escolástica, itens 20.2, e seus subitens, e 20.3, supra; para a inquisitio radical, itens 24.3 e, notadamen-
te, 24.3.2, supra; para o modelo criminal inglês, itens 25.2.2.1 e 25.2.2.2, supra; para a inquisitio revolucionada,
item 26.2, supra. Sobre as peculiaridades desses agentes no modelo criminal violento ora proposto, cf. item 48.3,
e seus subitens, infra.
6
Para uma síntese expositivo-analítica da razão pela qual o sistema premial-negociado integra o modelo criminal
persecutório-punitivo violento, cf. item 27.1, supra. Sobre como essa diversidade sistêmica sempre acompanhou
em paralelo o sistema processual penal do julgamento, cf., para o direito romano, item 8.2.2, supra, in fine; para o
sistema inglês, itens 21.2 e 25.2.2.3, supra; para sua larga utilização nas Inquisições europeias, item 24.3.3, supra.
7
Sobre seu surgimento no modelo criminal romano, cf. item 8.2.2, supra; sobre sua perenidade no modelo criminal
persecutório-punitivo, cf. itens 11, 15, 22 e 28, supra.
8
Sobre as origens dos agentes internos do modelo criminal tradicional como sujeitos do “poder-saber”,
cf. itens 20.2.1 e 20.3, supra.
9
Isso foi explicado e demonstrado em várias fases da história, mas, para uma identificação que marcou a história
e o sistema processual penal e, também, com considerações comparativas com o nosso sistema processual penal
vigente no Brasil, cf. item 20.3, supra.
48.  Modelo criminal não violento 653
que haja controle entre os agentes e que esses controlem aquelas partes conflitantes; em
regra, afastando a vítima e submetendo o imputado. Em cada fase (persecutória; instrutória
ou negocial; decisória ou homologatória; recursal; executiva ou penitenciária) de cada um
daqueles sistemas processuais penais (do julgamento e premial-negociado) haverá um agen-
te interno que a controle e um órgão superior ao qual esteja submetido estrutural e hierar-
quicamente submetido ou outra agência à qual seu trabalho está destinado (a próxima na
sequência das fases processuais). Por fim, a finalidade do modelo criminal é sempre deter-
minar o acertamento de fatos (por instrução ou consenso) e analisar eventual aplicação de
pena (por julgamento ou acordo). Como se vê, examinada a metodologia, os agentes inter-
nos, o sentido relacional e a finalidade, ambas aquelas espécies de sistemas processuais in-
tegram um único modelo: o persecutório-punitivo da ideologia da violência.
No modelo criminal não violento percebe-se a mesma lógica de sua relação com a
política criminal e que seus elementos estruturais também são os mesmos (metodologia,
agentes internos, sentido relacional e finalidade). Todavia, por advirem da ideologia da não
violência, tanto aquela política quanto os citados elementos são diferentes constitutiva e
teleologicamente, o que produz, inevitavelmente, um modelo também diverso. Por essa ra-
zão não pode haver interpenetração entre os modelos ou, ainda, o não violento ser inserido
dentro do violento como um seu sistema.
Necessária uma breve exposição estrutural de concatenação lógico-dinâmica entre
os elementos do modelo criminal não violento nos parágrafos que seguem, pois o exame
mais profundo de cada um será feito nos subitens deste tópico.
A política criminal da não violência tem como diretriz constituir meios e fins não
violentos de atuação do aparato criminal para dar resposta (também não violenta) a um
objeto-problema mais amplo e que engloba o “crime”, qual seja, a “violência envolvente” do
fato humano que está no “fenômeno criminal”. O objeto-problema muda, passando a ser a
“violência” que decorre do crime, mas, também, pode ter preexistido a ele e/ou dele decor-
rer quando seus efeitos geram outros fatores criminógenos. Com isso, a finalidade também
muda, pois não é combater, por repressão e/ou prevenção, a conduta (comissiva ou omissiva)
do violador e, com isso, agregar-lhe mais violência (pela pena criminal e/ou pela persecu-
ção). A finalidade passa a ser a compreensão dos traumas e dores causados na vítima e na
comunidade indiretamente afetada em suas necessidades essenciais pelos efeitos violentos
da conduta do violador e, também, a compreensão deste como ser humano que pode, sem
aplicação de pena criminal, atuar positivamente para, por sua ação, mitigar ou eliminar as
violências que causou.
Para essa finalidade diversa ser atingida, necessário mudar a metodologia e os agen-
tes internos do sistema, assim como suas formas de atuarem entre si e com as partes natu-
rais do conflito e, com isso, o sentido vetorial da relação entre aqueles e entre esses e as
citadas partes.
Alterada a política com que o modelo é informado, há que se mudar a dinâmica em
que atua e o seu sentido, assim como a função de seus agentes internos. A metodologia da
dinâmica processual é a dialógica, produzida a partir da construção da empatia e a fim de
atingir uma atuação voluntária das partes para com o novo sistema, entre elas e para com o
agente interno.10 Este, por sua vez, com os novos propósito e meios colocados à sua disposição

Sobre essa nova dinâmica dialogal e a necessária voluntariedade, cf. item 48.2, e seus subitens, infra.
10
654 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

para alcançá-lo, deverá ter outras habilidades técnicas e práticas, sendo formado em conhe-
cimento específico, não sendo o jurídico-criminal o indicado ou apropriado para funcionar
nesse novo gradiente político-criminal.11
Como já se tratou no capítulo anterior da ideologia da não violência e o novo (outro,
alternativo) espaço que ela abre na política criminal, assim como sua constitucionalidade e
maior efetividade de direitos fundamentais aos cidadãos12, passa-se a explicitar, com mais
profundidade, encetados quatro elementos estruturantes de um modelo criminal, mas agora
em sua feição não violenta.
Esses elementos são expostos de modo a explicitar em que novo ponto se quer che-
gar, por quais dinâmica e sentido relacional isso deve acontecer e, por fim, quais as pessoas
indicadas para tal tarefa e os novos participantes processuais.
É o que se faz nos próximos subitens, dentro da necessidade de se apresentá-los e
organizá-los para o nível da teoria que ora se formula e, ainda, nos exatos limites de se
construir as bases de um caminho que, mesmo incipiente, mostra-se como o apropriado
para comportar uma virada de paradigma que nos permita algo diverso após mais de dois
mil anos: a ideologia da não violência para abordar e responder ao “fenômeno criminal”, por
meio de um sistema processual não violento e que comporte também um processo criminal
transformativo do meio ambiente humano-social como indutor de políticas públicas reduto-
ras ou eliminadoras de fator criminógenos e, com isso, seja ele instrumento (não violento)
de redução da violência social.

48.1 Finalidade do modelo criminal não violento: atender a necessidades fundamentais e


melhorar os seres humanos, suas relações e o meio ambiente comunitário; vantagens da
“resposta não violenta de conciliação criminal” em face da pena criminal
A finalidade do modelo criminal não violento não é perseguir ou punir alguém por
um fato tido como crime. Mas, em um nível “intrapartes” do conflito, partir desse mesmo
fato ocorrido identificar as necessidades essenciais das pessoas por ele afetadas (vítima in-
dividual e/ou comunidade) para minorar seus traumas. Em um nível “metapartes”, ou seja,
no ambiente comunitário para além das pessoas afetadas, perceber toda a violência que
circunda (antes e depois) aquele crime, a denominada “violência envolvente”, para levar
melhoria àquele ambiente comunitário. Esses níveis, como se verá, sempre guiarão as con-
siderações que seguem.
O ponto de partida para o exame da “resposta não violenta de conciliação criminal”13
é o pressuposto já assentado ao se examinar a política criminal não violenta: o fato tido

11
Sobre as peculiaridades desses agentes e as novas agências, cf. item 48.3, infra. Sobre a impossibilidade de inter-
penetração dos atuais agentes internos do modelo criminal persecutório-punitivo, limitados em seus saberes jurídico-
-criminais forjados pela cultura da violência, cf. item 46.3, supra.
12
Sobre esse ponto, cf. item 47, supra.
13
Essa denominação foi criada por reunir, já em sua nominação, a sua essencialidade. É uma “resposta”, pois traz em
si uma noção mais ampla de abordagem e tratamento em face de um conflito surgido e que cujos efeitos já ocorre-
ram e mudaram a realidade das pessoas nele envolvidos. Logo, um conflito não se resolve ou se soluciona, pois ele
está no passado e o passado ninguém muda (cf. itens 4.2 e 4.2.1, supra). O que se pode é praticar uma ação sobre
seus efeitos. Esta ação é uma resposta das partes do conflito a ele; resposta que se espera tão positiva quanto foram
os efeitos negativos que dele advieram. A expressão “não violenta” reforça o locus onde se está (o modelo criminal
não violento e, portanto, diverso do persecutório-punitivo) e a ideologia que o rege: não se responde a violência
(criminal) com outra violência (institucional). É “conciliação” pois a etimologia e significado do vocábulo
48.  Modelo criminal não violento 655
como crime é considerado como ponto de partida para a atuação do sistema processual não
violento, mas a resposta a ele não pode ser, nem direta nem indiretamente, a pena criminal.14
Uma vez previsto e aceito o modelo não violento pelas partes para levarem seu conflito, a
pena-violência não será nem possibilidade nem referência.
Partindo-se desse pressuposto lógico e teórico, cabe definir qual o conteúdo da “res-
posta não violenta de conciliação criminal”, seu cumprimento e seus efeitos. Todavia, para
se compreender esses pontos inerentes a ela é necessário se assentar, mesmo que breve e
antecipadamente, quem são as pessoas que podem fixá-la e a essencial “voluntariedade”
que deve nortear todo esse caminhar (o sistema processual não violento).
Em palavras diretas para o objetivo de seguir na explicação, sem antecipar pontos
melhor tratados à frente, as pessoas são “partes naturais” do conflito criminal, em face do
seu objeto-problema que é a “violência envolvente”: a vítima, a comunidade afetada se hou-
ver no caso, e o ofensor-violador. Aquelas (vítima e comunidade afetada) sofreram a violên-
cia tida como crime e o ofensor é o agente desta conduta (comissiva ou omissiva). Quanto à
voluntariedade, é um estado racional-emocional que deve orientar as partes já desde suas
escolhas pela alternativa do modelo criminal não violento até o cumprimento do acordado.
Este estado racional-emocional é essencial para que não haja violência institucionalizada
(rectius, coação e controle) para submetê-las, o que é característico do modelo criminal
persecutório-punitivo. Assim como esta teoria é uma oferta cuja escolha dependerá de um
ato voluntário (racional-emocional) do leitor em aceitá-la como coerente e viável, também o
modelo não violento depende da escolha daquelas partes: vítima e infrator deverão livre-
mente dizerem se preferem o modelo criminal violento, que já é conhecido e praticado ou,
se aderirão a alternativa do novo “modelo responsabilizador-conciliatório”.
Antecipados esses pontos, voltemos ao conteúdo, efeitos e cumprimento da “respos-
ta não violenta de conciliação criminal”.
O conteúdo dessa forma de conciliação é muito mais extenso e profundo se compa-
rado com a “pena criminal”, pois ele não se limita à uma resposta única: punir (retribuir e
prevenir), variando apenas em intensidade e forma. Ele é tão extenso quanto o são os trau-
mas provocados e as necessidades essenciais atingidas pela conduta do ofensor. Como a
resposta terá em vista atender a esses pontos imediatos da violência produzida, ela deverá
estender-se até onde as partes (agente da conduta e quem sofreu seus efeitos danosos) enten-
dam ser o suficiente para o atendimento e o possível de ser cumprido.15 Essa amplitude de

traz o sentido de “pôr em boa harmonia, por de acordo, congraçar” (v. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário
etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 203), o que está
bem de acordo com a busca de um “equilíbrio” e com trazer harmonia a um ambiente ou uma relação conflagra-
dos por um ato violento. O último ponto é exatamente o termo “criminal” e se relaciona com o citado “ato violen-
to”. Essa teoria não se dirige a todo e qualquer conflito, mas apenas os legalmente classificados como “crime”.
Não raro, para evitar repetições completas do termo aqui cunhado, prefere-se apenas algumas de suas partes que
tiverem maior relação com o ponto da narrativa em que se insira. Assim, ora se dará ênfase ao “não violento”, ora
a “resposta” e ora a “conciliação”.
14
Sobre as impropriedades lógica e teórica de a pena criminal existir no modelo criminal não violento, v. item 44.2,
supra. Sobre a possibilidade de utilizar-se o preceito primário da norma penal incriminadora apartado da pena
criminal prevista no preceito secundário da mesma norma, v. item 46.2.
15
Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa: um modelo de reacção ao crime diferente da justiça penal. Porquê,
para quê e como? Coimbra: Coimbra Ed., 2014. p. 600-603), ao cuidar dos prováveis contextos de desigualdade
entre as partes, sugere que as respostas sejam múltiplas e em sentidos muito diversos da mera reparação de cunho
patrimonial a fim de que a “justiça restaurativa” não se torne uma “justiça indenizatória”: “Uma via para evitar a
conversão da justiça restaurativa em instrumento de desigualdade é acreditar na criatividade na procura de
656 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

conteúdo à resposta “intrapartes” pode ser aplicada no nível “metapartes”, isto é, para o
âmbito em que as falas e escutas ocorridas em ambiente empático pela metodologia dialógi-
ca puderem revelar possibilidades de compreensões de situações circundantes àquelas par-
tes e que, como fatores criminógenos do meio ambiente comunitário, possam ser mitigadas
ou eliminadas a partir de novas e outras ações de política pública cuja iniciativa adveio do
informe haurido pelo facilitador (agente interno) e repassado à sua agência.16 A resposta de
que trataremos neste item, portanto, é a “intrapartes”, deixando-se a sua dimensão “meta-
partes” para quando tratarmos do “processo criminal transformativo”.
Ter grande extensão e profundidade de conteúdo não significa que a resposta “intra-
partes” seja ilimitada. Ele precisa ter balizas seguras visto que pode haver formas de vio-
lências (não criminais) que dela não podem constar. O sistema processual criminal não
violento age por instrumental não violento e tem a mesma finalidade; seria uma contraditio
in re ipsa aceitar-se que de um processo daquele cariz adviesse resultado violento. Assim,
nessa perspectiva, a amplitude do conteúdo encontra balizas seguras e intransponíveis exa-
tamente em dois princípios constitucionais essenciais para o modelo criminal não violento:
a dignidade da pessoa humana e a liberdade individual das partes.
Princípio fundante da própria Constituição, a dignidade da pessoa humana é filtro
cogente para que nenhuma resposta tenha conteúdo que atinja negativamente a dignidade de
qualquer das partes do conflito. Essa norma-princípio orienta e impõe ao facilitador que
impeça que o diálogo caminhe para soluções de qualquer modo indignas a quem a imple-
mentará (ofensor) ou a receberá (vítima). Ela atua, nesse momento, como baliza tanto de
dimensão defensiva, impedindo que se acorde sobre situação violadora da pessoa do infra-
tor, quanto positiva, indicando a direção em que deve caminhar aquele conteúdo para poten-
cializar a dignidade da vítima, sanando-lhe traumas e colmatando necessidades básicas.17
Em síntese, o princípio axiológico e reitor da dignidade da pessoa humana tanto serve ao
estímulo da definição do resultado que tanto atenda à dignidade da vítima lesada quanto
impeça ofensa à dignidade do infrator.
Essa função de diretriz deste princípio constitucional não é novidade, pois, mesmo
para o modelo criminal tradicional, ele já está posto como “fundamento jurídico” do direito
penal, dando, portanto, sua base antropológica e destino de preocupações na formulação de
suas normas (incriminadoras ou reguladoras).18 Ainda no campo do sistema material da

formas de reparação de cunho não eminentemente patrimonial. A reparação restaurativa tem, como antes se viu,
um sentido que deve ultrapassar em muito uma sua compreensão de cunho exclusivamente patrimonial. Logo,
dever-se-ão cogitar formas de reparação possíveis para os mais desfavorecidos” (p. 603).
16
Essa dimensão bidirecional do processo não violento é a peculiaridade do “processo criminal transformativo”,
objetivo final de proposta deste trabalho e que será tratado com mais detalhes no item 50 e seus subitens, infra.
17
Sobre essas dimensões funcionais ínsitas à cláusula pétrea de nossa Constituição (art. 1º, inciso III, CR), v. SARLET,
Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 7. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2018. Segunda Parte, item II, subitem 2.1.3).
18
Sobre a relação limitadora e informativa entre a dignidade da pessoa humana e a “pena criminal”, no sistema
penal do modelo tradicional, assim se manifesta Helena Regina Lobo da COSTA (A dignidade humana: teorias
de prevenção geral positiva. São Paulo: RT, 2008. Item “1.3.3. A dignidade humana como princípio do direito
penal”): “Como princípio aplicável ao direito penal, a dignidade humana determina, diretamente, a adoção de
certos comportamentos, tais como a absoluta proibição da tortura pelo sistema penal, além de constituir prin-
cípios de maior concretude, que intermedeiam sua aplicação. Entre eles, os de maior importância para o direi-
to penal são o princípio da culpabilidade e da humanidade das penas. Deve-se ressaltar, primeiramente, a
diferença entre a função de constituição de sobreprincípios e a de indicação de critérios materiais de interpre-
tação de normas. Como critério material de interpretação das normas jurídicas, a dignidade humana impõe
48.  Modelo criminal não violento 657
pena criminal, é seu “postulado normativo”, emprestando critério de interpretação a suas
normas e, também, às normas processuais penais. Com muito mais razão, dessarte, aplicá-
-lo como limitador das hipóteses de respostas não violentas de conciliação criminal.
O direito fundamental à liberdade, por sua vez, é outro limitador do conteúdo desse
resultado “intrapartes”. Se a finalidade do modelo criminal não violento é reconstruir pes-
soas, relações e tornar saudável o meio ambiente social, não pode haver pena que limite a
liberdade de qualquer das partes19, direta ou indiretamente; mentalidade ínsita à pena crimi-
nal e seus substitutivos, mas que não pode estar nesse diverso modelo criminal.20 Insista-se,
a pena criminal não pode, nem direta (no conteúdo da resposta) nem indiretamente (por
ameaça de imposição em caso de descumprimento), estar no íntimo ou decorrer do resulta-
do conciliatório-criminal.
Estes limites, entre outros que possam ser trazidos no futuro, não podem ser tidos
como impunidade. A implementação dessa política criminal sem pena criminal não é, cer-
tamente, violenta; mas está longe de ser uma “não resposta” a toda a dimensão traumática
da vítima e da comunidade afetada. Ela é a resposta mais próxima tanto das necessidades
básicas da vítima e da comunidade quanto de seus traumas. Incomparavelmente mais posi-
tiva, individual e comunitariamente, que a pena criminal. É uma mudança de paradigma,
mas não pode ser tida como algo inexistente.21 Pode não atender aos sentimentos de vingança

que se respeite e se busque a promoção da imagem da pessoa tal como delineada em nossa Constituição, con-
siderando tanto a faceta individual quanto a social, bem como contemplando uma visão concreta da pessoa, e
não uma mera abstração. Se este critério não for respeitado, a norma interpretada foi diretamente violada e
não o postulado normativo da dignidade, que apenas pode ser transgredido de forma oblíqua. Como princípio,
a dignidade necessita muitas vezes de princípios intermediários que operacionalizam sua aplicação. Se estes
princípios forem violados, a dignidade humana também será, na medida em que eles constituem seu núcleo”
(p. 62-63).
19
Considerações sobre as penas restritivas de direito e sobre as penas pecuniárias serão tecidas mais adiante, nesse
mesmo item 48.1.
20
Sobre a impossibilidade do uso da coação, direta ou indireta, sendo o acordo um ato voluntário e dentro do que as
partes entenderem razoável, já se manifestou a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Manual so-
bre programas de justiça restaurativa, elaborado em sua segunda edição de 2020 pelo United Nations Office on
Drugs and Crime (UNODC) e vertido para o idioma português em 2021: “2.3 Salvaguardas legais e políticas. [...]
‘Os acordos devem ser voluntários e razoáveis’: Os acordos decorrentes de um processo restaurativo devem ser
alcançados de modo voluntário e conter apenas obrigações razoáveis e proporcionais (parágrafo 7)” (ESCRI-
TÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa.
Tradução por Cristina Ferraz Coimbra e Kelli Semolini. 2. ed. Brasília: CNJ, 2021. p. 16). Não discrepa dessa li-
nha, incluindo até mesmo as exigências de respeito à dignidade da pessoa humana e da liberdade, o Substitutivo
de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo
Penal (Projeto de Lei n. 8.045/2010): “Art. 115. São princípios que orientam a justiça restaurativa a corresponsa-
bilidade, a reparação dos danos, o atendimento das necessidades, o diálogo, a igualdade, a informalidade, a
extrajudicialidade, a voluntariedade, a participação, o sigilo e a confidencialidade. [...] § 5º O acordo decorren-
te da prática restaurativa deve ser construído a partir da livre atuação e expressão da vontade dos participantes,
respeitando a dignidade humana de todos os envolvidos”.
21
Não obstante as considerações de Juarez TAVARES (Crime: crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros,
2021) tenham sob sua análise o sistema penal punitivo, modelo criminal tradicional, após discutir de modo críti-
co todas as teorias da pena, assevera como ponto do qual se deve partir as reflexões para este modelo criminal
não violento que ora se sistematiza: “A pergunta que permanece é esta: o que fazer com a pena? Essa pergunta
comporta apenas uma resposta: excluí-la definitivamente do direito penal. Contra essa resposta surgem muitas
outras perguntas, que podem ser resumidas a uma: que consequências produz na sociedade a extinção das pe-
nas? Para contestá-la tem-se que partir de uma assertiva: um Estado Democrático de Direito não pode manter
e dispor de um instrumento de coação e sofrimento sem uma justificativa que o possa validar. Diante da perple-
xidade das pessoas, todas acostumadas a associarem uma pena a qualquer ato proibido, pela proposta de
eliminação das penas criminais, é de se ver que os atos proibidos podem ser levados em conta e prevenidos
por meio de outras medidas, que não impliquem sofrimento e humilhação, porque do sofrimento e da humi-
lhação a pessoa afetada jamais poderá se livrar, tal como acontece com a pena criminal. Para implementar
658 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

e dor (retribuição penal) ou servir ao propósito de incutir o medo nas pessoas (prevenção
geral), mas é sim forma de revalidar o direito violado pela via de não se inserir mais violên-
cia no meio social. Além disso, é positivo para a vítima, esquecida no modelo criminal tra-
dicional e violento.
Exemplifiquemos esse ponto a partir de hipóteses mais simples, para objetivar a di-
dática. Imagine-se uma pessoa ter sido expropriada de seu meio de transporte à escola e ao
trabalho (p. ex., uma bicicleta), ou tenha ele sido destruído pelo ofensor. Este poderá ressar-
cir o bem e, para além disso, atuar na recuperação de alguma parte ou serviço de que a es-
cola esteja carente ou necessite. Tal comportamento ligará o infrator não apenas à vítima
atingida, mas, também, ao entorno comunitário que não teve qualquer dano. Imaginando-
-se, agora, um crime de dano (depredação) a uma escola, a parte atingida é, para além do
proprietário (público ou privado) da escola, toda uma “comunidade afetada” que usa e pre-
cisa de referida escola. Portanto, a reparação do que foi atingido pela ação delitiva já reinte-
graria o infrator com a vítima e com aquela comunidade. Todavia, algum outro ato poderá
ser acordado entre o representante da escola e o infrator para uma “melhoria” para além da
reparação; v.g., participar de debates escolares sobre ética e convívio social, prestar algum
auxílio de acordo com suas habilidades pessoais ou, ainda, auxiliar em atividades escolares
de educação ou celebração comunitária. Vedado seria, em situações como tais, obrigar o
infrator a qualquer tempo ou hora a transportar a proprietária da bicicleta ou ter que narrar
seus atos na escola como padrão de mau comportamento aos alunos. Nessas últimas hipó-
teses haveria formas de violência no conteúdo do acordo, seja na forma de humilhação, seja
pela submissão de ficar à disposição do proprietário da bicicleta. Ambas as soluções são
vedadas nesse modelo criminal não violento.
Ainda quanto ao conteúdo da “resposta não violenta de conciliação criminal” im-
portante assentar que ela implica uma “ação positiva” do infrator. Isto é, um agir que, se-
gundo o juízo das pessoas atingidas, atenda a seus traumas e necessidades. Em sua consciên­
cia da violência por ele praticada e seus efeitos, deve atuar (agir ativamente) de modo
positivo, ou seja, benéfico à vítima (individual ou coletiva). Isso será uma transformação no
meio ambiente comunitário de significativa reverberação tanto à vítima quanto ao ofensor.
Àquela, pois terá escuta, visibilidade e atendimento de suas necessidades essenciais.
Ao ofensor uma vez que, além de não sofrer nenhuma dessocialização, ainda se mostrará
capaz de ser ente atuante e útil para si e para os outros. Todos ganham.
A pena de encarceramento não pode ser aceita por ser ela estigma que sempre impli-
cará dessocialização do infrator, o que é de todo incompatível com o modelo não violento,
no qual a atuação positiva do ofensor, após se responsabilizar, é a prova do merecimento que
não seja retirado do corpo social. Além do que, a aceitação (rectius, submissão) ao cárcere
depende do cumprimento de regras afeitas e próprias do modelo criminal persecutório-
-punitivo, seja no sistema processual do julgamento, seja no sistema premial-negociado.

essas medidas e eliminar a pena criminal basta que o Estado altere sua estrutura, de modo a potencializar
organismos administrativos adequados a tratar o ato proibido sem a dessocialização do sujeito e compreen-
der a pessoa humana como centro da ordem jurídica e não como simples mercadoria. Essas medidas são di-
fíceis? São difíceis, mas constituem uma necessidade para recuperar a função do sujeito diante do Estado e
para diminuir a intensidade dos distúrbios decorrentes de uma sociedade autoritária, os quais destroem a
pessoa humana e todos os elementos saudáveis de seu entorno. Uma sociedade sem pena é, portanto, possí-
vel” (p. 183-184, destacamos).
48.  Modelo criminal não violento 659
As penas ditas “alternativas”, que tecnicamente são aplicadas para substituir a pena
de prisão impostas prioritariamente e que permanece em segundo plano para servir de estí-
mulo (rectius, ameaça) para que o condenado cumpra aquela “pena alternativa”, devem so-
frer uma profunda análise técnico-ideológica antes de serem aceitas no modelo criminal não
violento; o que extrapola os limites deste trabalho e as habilidades deste pesquisador. Toda-
via, ressaltam-se alguns pontos que devem ser observados como diretrizes críticas para
eventual aceitação.
De partida, não podem ser tratadas como “penas”, ou seja, como algo a ser imposto
por terceiro com força legal. A resposta vem de uma conciliação voluntária. Mesmo se fruto
de aceitação, ainda há que se ponderar o sentido para o qual se dirige a resposta. Assim,
respostas pecuniárias (reparatórias e/ou indenizatórias), mesmo se aceitas e represente uma
ação, não devem ser tidas como escopo ou mesmo o conteúdo primaz da resposta não vio-
lenta a fim de não se criar situações em que as partes, notadamente o ofensor, entenda a dor
e trauma causado e que, não raro, supera qualquer valor em dinheiro.22 Por isso a ação diri-
gida à vítima, suas necessidades e traumas, visa muito mais a reparar traumas. Há de haver
um sentido empático determinante na busca e definição das respostas; aspecto em muito
desconsiderado pelas teorias tradicionais da pena criminal. Toda a resposta não é o desejo
de um terceiro, mas das partes e ela deve ser pensada e busca tendo os traumas causados e
o quanto a ação-resposta revela a responsabilização do ofensor e sua empatia para com os
por ele vitimados.23
Na mesma linha racional-emotiva das considerações à resposta pecuniária, deve-se
caminhar na “resposta-prestação de serviço”. Não se pode aceitar como “resposta concilia-
tória” entre as partes a “prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas”24

22
Prova do mau uso da pena pecuniária pode ser vista nas considerações que nortearam a Resolução n. 154, de
13 de julho de 2012, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Diz uma delas: “Considerando que as destina-
ções das penas pecuniárias, espécie de pena restritiva de direitos, têm que ser aprimoradas, para evitar total
descrédito e inutilidade ao sistema penal, já que a execução da pena é o arremate de todo o processo crimi-
nal; [...]”. Essa mesma resolução foi alterada em parte pela Resolução n. 225/2016, do CNJ, que, feita para
implementar a “Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário”, inseriu o inciso V no
§ 1º do art. 2º: “Art. 2º Os valores depositados, referidos no art. 1º, quando não destinados à vítima ou aos
seus dependentes, serão, preferencialmente, destinados à entidade pública ou privada com finalidade social,
previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, educação e saúde,
desde que estas atendam às áreas vitais de relevante cunho social, a critério da unidade gestora. § 1º A recei-
ta da conta vinculada irá financiar projetos apresentados pelos beneficiários citados no ‘caput’ deste artigo,
priorizando-se o repasse desses valores aos beneficiários que: [...] V – Projetos de prevenção e ou atendimen-
to a situações de conflitos, crimes e violências, inclusive em fase de execução, que sejam baseados em princí-
pios e práticas da Justiça Restaurativa”.
23
Sobre as naturezas e extensões dos traumas como consequência do conflito, notadamente o criminal, v. item 44.3,
supra. Sobre uma necessária adequação teórica entre os conceitos sociológicos de comunidade e a sua vitimiza-
ção, cf. item 48.3.3, infra.
24
A prestação de serviço comunitário ou em entidade pública tem sua previsão no Cód. Pen., mas sem quaisquer
especificações de finalidade ou resultado. Preceitua o art. 46 do Cód. Pen.: “Art. 46. A prestação de serviços à
comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberda-
de. § 1º A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas
ao condenado. § 2º A prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas,
orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais. § 3º As tarefas a que se
refere o § 1º serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora
de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho. § 4º Se a pena
substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo
(art. 55), nunca inferior à metade da pena privativa de liberdade fixada”.
660 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

como prevista ou ocorrente nos moldes atuais.25 Ela também precisa ser pensada por um
outro filtro teórico antes de ser implementada. Isto porque é necessário se romper com a
cultura de que prestação de serviço é pagamento de bens (p. ex., cestas básicas) ou valores
a entidades públicas ou comunidades carentes. A “resposta conciliatória” precisa estar rela-
cionada com o ato praticado, com as pessoas por ele atingidas e estruturada de modo que a
ação seja transformadora dos efeitos negativos da conduta a quem os sofreu. Além disso,
qualquer ação voluntária do ofensor, como dito, não pode representar sua humilhação ou ato
de vergonha pública, por desrespeito à dignidade de sua pessoa.
As ideias que norteiam e orientam todas as teorias da pena criminal devem ser repen-
sadas pelo filtro da “não violência” em um modelo criminal que se baseia em recuperar
pessoas e relações. Ela não pode ingressar neste novo modelo se continuar tópica, fundada
em sentimentos de raiva e vingança (retribuição), dor (neutralização; prevenção especial
negativa) e submissão (ressocialização a ser aprendida por exclusão social ou estigmatiza-
ção; prevenção especial positiva). Se mantiver, desde o plano abstrato da norma, uma amea-
ça de violência institucional (prevenção geral negativa). Mesmo na sua atual justificativa de
finalidade preventiva geral positiva (“revalidar”, “reafirmar” ou “relegitimar” o próprio sis-
tema legal instituído pelo poder que o mantêm pela força coercitiva da própria pena), ela não
deixa de ser violência (efetiva ou prometida) sem qualquer vínculo ou utilidade aos afetados
pelo conflito. Ela assume, sob essa justificativa, seu maior grau funcional à pura defesa da
norma por si e em si, sem olhar para as pessoas e todo o complexo do “fenômeno criminal”.26
Saindo do âmbito do conteúdo da “resposta” e ingressando em seus efeitos, há evi-
dente ganho em relação à sua finalidade maior que é reduzir ou eliminar a violência social.
A resposta intrapartes tem efeitos positivos tanto mediatos quanto imediatos na busca da
harmonia da relação afetada ou mesmo dos traumas e violências produzidos nas partes na-
turais do conflito criminal. De modo imediato, a vítima é empoderada e, com isso, tem o
direito de ser vista, considerada e ouvida em seus traumas e necessidades; o que em muito
é respeito por sua humanidade e dor. O mesmo efeito imediato benéfico atinge ao ofensor,
que também poderá ser ouvido e visto como pessoa humana. Nesse contexto, ainda há um
ganho, pois terão a oportunidade de falarem e ouvirem-se – o que é um ganho emotivo e
diminuidor de (mais) violência contida ou a ser (re)produzida por essas pessoas. Mais um
efeito imediato é a não utilização de violência institucional para se obter tais respostas, seja
por não haver persecução penal e imposição de pena por um terceiro. Como efeitos mediatos,

25
Sobre o despreparo estrutural e de mentalidade, assim como efetivas resistências da comunidade e das entidades
públicas em receber a prestação de serviço do condenado, em grande parte pela distância e não pertencimento
daqueles no meio dessas, v. SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judi-
cial. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005. p. 87-88; e BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão:
causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 317-319.
26
Sobre a finalidade de prevenção geral positiva da pena como teorias desenvolvidas apenas desde o final do sécu-
lo XX, suas falhas e incoerências, v. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão, cit., item 3.6;
SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Finalidades da pena: conceito material de delito e sistema penal inte-
gral. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Parte 2, item 1.4; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Temas básicos da doutri-
na penal: sobre os fundamentos da doutrina penal. Sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., 2001.
p. 105-108; e ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito
penal brasileiro I: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 121-124. Cláudia Cruz SANTOS
(A justiça restaurativa, cit., p. 356-365) teve preocupação específica em analisar as teorias relativas em face da
finalidade da “justiça restaurativa”, chegando à conclusão da existência de mais pontos de distanciamento do que
de alinhamento; o que para nós reforça a ideia de que precisamos de uma teoria própria para o âmbito não violen-
to da política criminal e ao modelo dela decorrente.
48.  Modelo criminal não violento 661
caso haja “conciliação não violenta” e seja obtida uma resposta pela construção conjunta
das partes do conflito, tanto a vítima terá suas necessidades atendidas e/ou traumas cuida-
dos e considerados, quanto o ofensor terá a possibilidade de, por uma ação sua, agir positi-
vamente e demonstrar que não precisa ser dessocializado, por força institucional (encarce-
ramento) ou forma comunitária (segregação, marginalização) de exclui-lo, podendo
permanecer de modo útil e benéfico na comunidade.
Há efeitos positivos da “resposta não violenta” também para além das partes; e é
nesse sentido que se pode pensar em um resultado “metapartes” do processo criminal não
violento. Os efeitos imediatos são (i) não inserir na sociedade mais violência (institucionali-
zada), seja por meio de persecução, seja pela pena criminal; (ii) o atendimento (escuta e
compreensão) das partes naturais do conflito faz com que não apenas elas, mas o seu entor-
no comunitário viva uma menor tensão relacional, uma vez que está havendo visibilidade do
conflito e se atuando para que ele tenha seus efeitos deletérios eliminados; por fim, mas não
menos relevante, (iii) do diálogo e percepção pelo facilitador pode resultar a possibilidade
de que a atuação positiva do ofensor atinja efeitos criminógenos daquela comunidade e, as-
sim, já por sua atuação, tanto vítima como comunidade sejam atendidas. Uma decorrência
desse último efeito imediato pode advir um desdobramento mediato e maior. A percepção e
reunião de várias experiências de diversos conflitos pode revelar a necessidade de uma in-
tervenção de política pública na comunidade, o que não beneficia só as partes naturais do
conflito, mas, também, todas as pessoas que lá convivam e que passaram a ter necessidades
básicas atendidas como consequência da oportunidade advinda do conflito intrapartes.
Caminhando para o terceiro e último ponto, a grau de cumprimento do acordado
entre as partes, mais uma vez deve-se observar que a “resposta não violenta de conciliação
criminal” é fruto de uma aproximação voluntária e guiada pela permanente empatia. Esse
pressuposto racional-emocional é crucial para se supor que o cumprimento do acordado se
dará em alto grau.
Essa percepção não é um a priori, mas ela vai se revelando pelo comportamento do
infrator por todas as fases do processo não violento. Desde a demonstração da voluntariedade
em participar do encontro dialogal com a vítima, permanece durante todo o período de encon-
tro não violento e se solidifica na celebração de um acordo consensual e para o qual ele se
manifesta sobre suas possibilidades reais de ação. Além disso, cumprir o acordo é demonstrar
às pessoas sua disposição em não voltar a delinquir e, ainda, ser por elas aceita a sua perma-
nência. Tudo a militar para haver uma força comunitária para o cumprimento do acordado.
Caso haja mudanças em situações da vida da vítima e, notadamente, do ofensor a
dificultar a inicialmente acordado, nada impede que haja a necessária adaptação, sem que o
sentido e a finalidade da resposta inicial sejam alterados. Além do que, nada obsta a própria
comunidade ou as pessoas próximas daquelas partes e que, de algum modo, contribuíram
para a consecução daquele resultado, de também auxiliar no cumprimento em face das di-
ficuldades surgidas. Todavia, de modo algum deve se utilizar de coação para que o acordo
seja cumprido; seja ela direta, pelo estabelecimento de pena substitutiva ao seu não cumpri-
mento, seja ela indireta, ameaçando levar à persecução penal tradicional os termos acorda-
dos e que devem estar cobertos de sigilo.27

Sobre a confidencialidade que deve permear todo o sistema processual não violento, incluído aqui o acordo, tra-
27

tamos no item 49.1.3, infra. Sobre a impossibilidade do uso da coação, direta ou indireta, para o cumprimento do
acordo, v. ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de
662 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Neste ponto fica clara a importância não apenas da obtenção da resposta, mas, tanto
quanto, é a relevância de todo o iter (não violento) com que foi construída e que deve ser
mantido até seu cumprimento.
Outro fator, não menos estimulante, que ajuda no cumprimento da resposta concilia-
tória é a consequência jurídica dele decorrente: extinguir a punibilidade do crime que levou
aquelas partes ao processo não violento.28

48.2 Voluntariedade e diálogo: novas racionalidade e metodologia, instrumentos essenciais ao


modelo criminal não violento
Se no subitem anterior os temas da finalidade e do resultado pretendidos estavam
muito mais próximos do âmbito material do modelo criminal não violento, os temas trata-
dos neste subitem relacionam-se muito mais ao sistema processual não violento. A decisão
sobre a metodologia dialógica e a racionalidade da voluntariedade mediante aquela se torna
possível no modelo criminal são materializadas já nos atos que compõem o rito e práticas
do processo criminal não violento. Assim, sua estruturação, justificação e lógica já devem
ser analisadas desde o modelo, pois é ele quem conformará e impedirá o ingresso de racio-
nalidade e dinâmicas diversas.
Por razões didáticas, inicia-se a explicação pela racionalidade da voluntariedade
guiada pela empatia e não pela coerção para dar-lhe os contornos, peculiaridades e diferen-
cial frente à “voluntariedade” do sistema premial-negociado. No segundo subitem que se-
gue, trataremos da metodologia dialogal e o que ela representa de diverso e peculiar em
relação à inquisitio, metodologia que revelamos como a axial no modelo criminal persecu-
tório-punitivo.

justiça restaurativa, cit., p. 17: “2.3 Salvaguardas legais e políticas. [...] ‘Não aumento da punição no caso de
falhar a implementação de um acordo’: O insucesso na implementação de um acordo alcançado no decurso de
um processo de justiça restaurativa (que não seja uma decisão judicial ou julgamento) ‘não deve ser usado como
justificativa para uma pena mais severa em procedimentos subsequentes de justiça criminal’ (parágrafo 17)”.
Nesse ponto, a redação do Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Pro-
jeto de Lei de novo Código de Processo Penal é contundente: “Art. 123. Não alcançado o acordo restaurativo, será
vedada a utilização de dados obtidos na prática restaurativa como prova processual ou sua utilização como
causa para aumento de eventual sanção penal”.
28
Nesse sentido, vem o Projeto de Lei n. 2.976/2019, que pretende regular a “justiça restaurativa” no Brasil, atual-
mente apensado ao Projeto de Lei n. 9.054/2017 – este último, no que interessa para este trabalho, ainda sem
texto disponibilizado que recepcione as propostas daquele, prevê a realização de “práticas restaurativas” com
presos provisórios, com condenados, bem como com os indígenas, além de casos de roubo e “crimes praticados
sem violência contra a vítima em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 3 (três) anos”. O Projeto de
Lei n. 2.976/2019, embora limitado às infrações de menor potencial ofensivo ou sem violência ou grave ameaça à
pessoa: “Art. 8º São efeitos decorrentes do cumprimento integral do acordo firmado no procedimento da justiça
restaurativa: I – a extinção de punibilidade da infração de menor potencial ofensivo ou que não envolva violência
e grave ameaça à pessoa; [...] § 1º Da decisão que declarar extinta a punibilidade na hipótese do inciso I não
decorrerá qualquer efeito condenatório”. Em nossa concepção de modelo criminal não violento, não vemos razão
para sua limitação apenas àquela esfera de crimes. Sobre a possibilidade de a política criminal determinar regras
que definam não apenas o fato típico, mas também sua punibilidade e, portanto, também as causas de extinção de
sua punibilidade, v. item 46.2, supra. Por essas razões estamos em desacordo com a proposta limitada de extinção
de punibilidade do Substitutivo do Deputado João CAMPOS para o Código de Processo Penal que, nesse ponto
prevê: “Art. 121. O cumprimento do acordo restaurativo implicará a extinção da punibilidade: I – nos casos de
ação penal de iniciativa privada; II – nos casos de ação penal de iniciativa pública condicionada à representa-
ção, a qualquer momento antes da prolação da sentença; III – em qualquer momento do procedimento sumarís-
simo; Parágrafo único. A requerimento do Ministério Público ou pelo juiz, de ofício, o conflito criminal poderá
ser derivado para as práticas da Justiça Restaurativa nas hipóteses de suspensão condicional do processo, de
trâmite do processo pelo procedimento sumário bem como pelo procedimento sumariíssimo, com consequente
homologação dos acordos restaurativos e a extinção da punibilidade com o cumprimento”.
48.  Modelo criminal não violento 663
48.2.1 Voluntariedade como móvel constante e necessário desde a escolha pelo modelo
criminal não violento até seu resultado: empatia e as suas vantagens como diferencial
a ser esclarecido às partes do conflito
A voluntariedade é ponto central no modelo não violento. Neste modelo ela ocupa o
lugar que a coerção e a submissão desempenham no modelo persecutório-punitivo. O que
anima, enfeixa e nutre todos os elementos estruturais do modelo criminal responsabilizador-
-conciliatório e, a partir dele, o sistema processual penal não violento, é que as partes natu-
rais do conflito devem escolher o caminho da não violência.29 Mas, mais que uma escolha,
a voluntariedade deve ser constante. Precisa durar desde os momentos iniciais de contato
entre o facilitador, seu agente interno com função e habilidades próprias, e as aquelas partes
e, depois, em toda relação destas durante o rito ou as práticas não violentas daquele sistema.
Deve haver voluntariedade desde os momentos preparatórios para se iniciar o pro-
cesso criminal não violento até a fase de cumprimento de seu resultado conciliatório.30
Sendo assim, a busca pela voluntariedade das partes deve ser o primeiro objetivo do facili-
tador ao estabelecer formas e estratégias de se aproximar das partes do conflito (vítima e
ofensor). Somente a partir de sua existência, tanto para o ofensor quanto para a vítima, é que
decorrem as próximas fases do processo não violento (organização, elaboração e realização
do encontro) para a construção do resultado conciliatório. A voluntariedade, portanto, deve
existir em dois momentos: o primeiro, de aceitação pela via não violenta de resposta ao
conflito criminal; o segundo, de sua manutenção durante todo o processo não violento,
cessando este quando aquela deixar de existir. No primeiro a voluntariedade é despertada e
faz com que as pessoas caminhem a um ponto comum. No segundo momento ela deve ser
mantida até esse ponto comum ser atingido, realizado e cumprido.
Todavia não se pode deixar de reconhecer que a sua consecução não é tarefa à qual
agências e estruturas estejam acostumadas ou tenham sido concebidas para assim agir.
Logo, principalmente pela incipiente introdução da não violência entre nós, é necessário se
expor o que caracteriza a voluntariedade no modelo criminal não violento, quem deve tê-la
no curso do processo, como se pode obtê-la e se ela apresenta alguma vantagem às partes
do conflito e à comunidade.
Como já exposto neste trabalho ao se analisar a ideologia da não violência para a
abordagem, tratamento e resposta ao conflito31, para que haja voluntariedade é necessária a
conjugação de duas formas de se colocar diante da vida e dos desafios de relacionamento

29
Aplicando o mesmo pressuposto para a mediação penal, v. GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación pe-
nal: hacia un modelo de ADR integrado en el sistema procesal penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2015. Item IV.3.1;
NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel. Origen y fundamentos criminológicos de la mediación. Revista Brasileira de Ciên-
cias Criminais, São Paulo, v. 17, n. 80, p. 370-406, set./out. 2009. p. 377; BARONA VILAR, Silvia. Mediación
penal: fundamento, fines y régimen jurídico. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. p. 266-269; BELTRÁN MONTOLIU,
Ana. Modelo de mediación en los Estados Unidos de América. In: BARONA VILAR, Silvia (dir.). La mediación
penal para adultos: una realidad en los ordenamientos jurídicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. p. 53-84, em es-
pecial item III.1, p. 65-67; SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça
criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 55-56. No Substitutivo de 30.06.2021, elabo-
rado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal, o capítulo da
“Justiça Restaurativa” tem a voluntariedade citada por seis vezes, relevando-se necessária por todo o procedimen-
to ali previsto.
30
Cf. parte final do item 48.1, supra.
31
Cf. item 44, supra.
664 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

que ela apresenta: ter empatia pelo outro e vê-lo com respeito e dignidade, portando um
desejo e a necessária disposição para atuar na melhora de relações, traumas e necessidades
afetadas por uma conduta violenta (própria, ou seja, do ofensor; ou de outrem, quando se é
vítima da conduta). Estes sentimentos e formas de nos colocarmos diante da vida é que dão
a base para que a voluntariedade surja. Se o desejo de superação do conflito e de melhora
dos efeitos que ele deixou direciona-se à conduta perpetrada (para este trabalho, o crime), a
empatia tem seu foco na “outra” parte natural do conflito. A empatia é uma consciência de
que sua visão do “conflito” é “a” certa e de que sua perspectiva do (seu) problema é a única.
O “dono da verdade” nunca terá uma posição empática, pois esta somente é possível a quem
está disposto, atenta e sinceramente, a “ouvir o outro” e aceitar que sua visão não é “a” cer-
ta ou “a” única.
Se a voluntariedade é essencial ao modelo criminal não violento, sua não consecu-
ção ou cessação impede que se chegue à resposta ao conflito criminal. Sim, e essa perda ou
não manutenção de voluntariedade têm trazidos as primeiras indagações. A questão pode
ser posta em dois níveis de indagação. O primeiro: a voluntariedade pode ser obtida por
coerção? O segundo: a voluntariedade deve haver de ambas as partes do conflito, ou basta
que uma escolha o modelo não violento como via de tratamento do “ fenômeno criminal”
para que a outra tenha que dele participar?
Se a resposta à primeira indagação for afirmativa, aumenta a possibilidade de se
chegar à “voluntariedade”, e, portanto, o modelo terá maior gama de casos em que pode
incidir, o que é uma tendência dos defensores de maximalização da “justiça restaurativa”.
Caso a resposta para aquela pergunta seja negativa (não pode haver coerção), a contrario
sensu, diminuirá, proporcionalmente, o número de casos em que o modelo criminal poderá
ser utilizado. Somos adeptos desta segunda corrente, pois entendemos que seria contrário a
seu axioma impor a qualquer das partes uma força (coercitiva) para que “escolhesse” esse
modelo criminal não violento. A questão principal que cerca a voluntariedade no modelo
criminal não violento é a liberdade de escolha entre assim agir ou não.32 Se ela for um valor
fundamental da ideologia da não violência não poderá haver coerção.
Segundo a teoria deste trabalho, aceitar a coerção para obter a voluntariedade não
deixa de ser uma forma de justificar a violência institucional (a coerção) para uma “causa
justa”: obter a voluntariedade para levar a pessoa a “fazer” um acordo que é melhor que a
pena criminal a ela prevista. Essa forma de atuação já é conhecida e ocorre no sistema
premial-negociado que, como já demonstramos, integra o modelo criminal persecutório-
-punitivo.33 Essa coerção aplicada (direta ou indiretamente) diferencia a voluntariedade exi-
gida, por exemplo, nos acordos de colaboração premiada34, da voluntariedade empática aci-
ma explicitada.

32
Para a mediação penal, assim se posiciona BARONA VILAR, Silvia. Mediación penal, cit., p. 266.
33
Cf. item 27.1, supra.
34
Após a reforma implementada pela Lei n. 13.964/2019, o instituto da “colaboração premiada” passou a prever a
“voluntariedade” como exigência para a celebração do acordo e sua homologação judicial, nos seguintes termos:
“Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a
pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e vo-
luntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais
dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das
infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da orga-
nização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização
48.  Modelo criminal não violento 665
Aceitar tal coerção é permitir a interpenetração da violência em um modelo que está
orientado para “não ser violento”; logo, tal posição não pode ser permitida em prol da pró-
pria coerência interna do modelo criminal não violento.35 Como se vê, essas são as vanta-
gens analíticas de se examinar as questões a partir de uma teoria que organiza e filtra tais
corpos estranhos.
A segunda questão acima (a voluntariedade deve haver de ambas as partes do con-
flito, ou basta que uma escolha o modelo não violento como via de tratamento do “ fenôme-
no criminal” para que a outra tenha que dele participar?) traz debates mais interessantes.
Tome-se como referencial o que vem sendo discutido entre restaurativistas e defensores da
mediação penal, em razão de sua experiência com práticas orientadas a partir da ideologia
da não violência.
Os restaurativistas, também nesse ponto, não têm um consenso firmado se algum
grau de coerção afasta a essência restaurativa. Para efeito de demonstrar esse dissenso, há a
possibilidade de identificar ao menos dois grupos de posições sobre esse tema. Aqueles que
entendem que a “justiça restaurativa” deve substituir o modelo criminal tradicional e, por-
tanto, passar a ser o único modelo para resposta ao crime, aceitam a coerção para obrigar as
partes a aceitarem participar e a chegar a um resultado “restaurador”. Há, também, um
grupo que defende uma mescla entre “justiça restaurativa” e modelo criminal persecutório-
-punitivo; assim, não recusam certo grau de coercitibilidade, tanto antes de o modelo tradi-
cional incidir sobre o caso quanto depois de seu início e quando há práticas restaurativas,
por exemplo, na fase de execução da pena.36 O acordo entre esses dois grupos de restaurati-
vistas é apenas que não pode haver coerção sobre a vítima.37

criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. [...] § 7º Realizado o
acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações
do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu
defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: I – regularidade e legalidade;
II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no ‘caput’ e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas
as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-
-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código
Penal e na Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime
não abrangidos pelo § 5º deste artigo; III – adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos
exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do ‘caput’ deste artigo; IV – voluntariedade da manifestação de vontade,
especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares” (destacamos).
35
Nesse sentido se posiciona firmemente a ONU que, na segunda edição do Manual sobre programas de justiça
restaurativa, elaborado em sua segunda edição de 2020 pelo UNODC e vertido para o idioma português em 2021,
não aceita para a “justiça restaurativa” que haja coação para a vítima ou para o ofensor aceitar essas práticas:
“2.2 Direitos dos participantes. [...] ‘O direito de não participar’: Nem a vítima nem o agressor devem ser coagi-
dos ou induzidos por meios desleais a participar de processos restaurativos ou a aceitar os resultados restaura-
tivos. O consentimento é necessário. As crianças podem precisar de aconselhamento e assistência especial antes
de conseguirem chegar a um consentimento válido e informado” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE
DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 16).
36
Lode WALGRAVE [Imposing restauration instead of inflicting pain. In: VON HIRSCH, Andrew et al. (org.).
Restorative justice and criminal justice: competing or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003.
Item “1. Coerced restoration and punishment”] traz restaurativistas de ambas as linhas teóricas, incluindo-se nos
que entendem que pode haver certo grau de coerção sem que isso fira o sentido restaurativo; mas sempre ressal-
tando que, quanto mais voluntária é a participação, melhor os resultados da prática restaurativa, seja ela qual for.
Lorraine Stutzman AMSTUTZ (Encontros vítima-ofensor: reunindo vítimas e ofensores para dialogar. Tradução
por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2019. p. 42), após abordar o ponto crítico sobre o uso ou não de
coerção para os encontros entre vítima e ofensor, assumindo posição de que ela não deve existir, propõe uma
forma de superação do dilema quando se está diante de partes resistentes: “Em vez de colocar o processo como
sendo ‘voluntário’ ou ‘obrigatório’, é proveitoso estimular a participação como meio de se tornar responsável ao
assumir o dano causado a outrem. Se os ofensores percebem que ser responsável é um passo importante no pro-
cesso de virar a página e recomeçar, muitas vezes se sentem bem mais dispostos a participar”.
37
Pete WALLIS (Understanding restorative justice: how empathy can close the gap created by crime. Bristol: Policy
Presse/Bristol University, 2014) dedica todo o seu Capítulo 8 (“Choice, encouragement or coercion?”) a tal tema.
666 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Neste trabalho, em que classificamos as práticas restaurativas como expressões mais


ocorrentes do axioma da não violência e, ainda, defendemos as independências e separações
entre os modelos criminais (violento e não violento), entendemos que a voluntariedade não
pode ser obtida por qualquer coerção direta ou indireta.38 Portanto, não caberá coação para
uma ou para ambas as partes do conflito. Conquanto isso implique reconhecer que o mode-
lo criminal não violento apresenta, de partida, limitações, o que de modo algum o fragiliza
ou o torna menos útil. Na verdade, reconhecer esse limite traz mais vantagens a ele do que
desvantagens.
As vantagens são de duas ordens. A primeira, que se querer estender a um modelo
criminal ainda incipiente uma gama enorme de conflitos criminais gerará uma demanda
enorme, o que prejudicará tanto uma necessária “curva de aprendizagem” de todos (agentes
internos, teóricos e público em geral) e, ainda, dificultará uma estruturação progressiva e
apropriada, o que fará com que se sirva de estruturas já existente, notadamente as do mode-
lo criminal persecutório-punitivo.39 A segunda ordem de vantagem é o grau de eficiência e
resultados profícuos que se obtém quando as partes estão, sem coerção, dispostas ao diálogo
empático para a consecução de uma “resposta não violenta de conciliação criminal”.
O modelo criminal não violento, portanto, não pode admitir a voluntariedade decor-
rente da coerção, mas terá excelente ganho se ela for obtida a partir do convencimento das
partes do conflito, com ganho para todos.40

Expõe que o único ponto comum é não submeter a vítima a mais essa violência (coerção), informando ser esse o
“pior pecado” nos círculos restaurativos (WALLIS, Pete. Understanding restorative justice, cit., p. 101). Expõe
métodos e técnicas de abordagem e convencimento, muito ligadas à empatia e ao respeito por parte do facilitador,
mas, ao final, indica que, caso não haja concordância, entende que não possa haver coerção e as pessoas deverão
ser encaminhadas ao modelo tradicional (WALLIS, Pete. Understanding restorative justice, cit., p. 111-112). Di-
recionando sua preocupação especificamente para mediação, mas asseverando que cabem ao mediador apenas
persuasão e encorajamento, v. UMBREIT, Mark S. The handbook of victim offender mediation: an essencial
guide to practice and research. San Francisco: Jossey-Bass, 2001. Capítulo 3, “Mediation process”, p. 59-60. Con-
cordamos com os autores citados. Contudo, tratando de mediação penal, Ana BELTRÁN MONTOLIU (Modelo
de mediación en los Estados Unidos de América, cit., p. 66) informa que, embora o ideal seja que a voluntarieda-
de exista tanto para vítima quanto para infrator, há, em diferentes estados dos EUA, a previsão de que, se houver
a voluntariedade por parte da vítima, a mediação já poderá ser possível. Nesse caso, haverá o que se denomina
“mediação obrigatória” (“mandatory mediation”), voltada a casos envolvendo questões familiares e que acabam
por transcorrer sob a tutela jurisdicional.
38
Quanto à impossibilidade de haver coerção sobre as partes (vítima e autor), v. GONZÁLEZ CANO, María Isabel.
La mediación penal, cit., item IV.3.1, p. 102. Quanto à posição aqui externada de que a coerção não pode ir além
da exposição de vantagens em relação a cada participante em face do modelo criminal tradicional como a outra
opção de tratamento do conflito criminal, v. BRAITHWAITE, John. Restorative justice & responsive regulation.
Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 34-36; VAN NESS, Daniel W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring
justice: an introduction to restorative justice. 5th ed. Waltham: Anderson Publishing, 2015. p. 90. Estamos, pois,
alinhados à recomendação internacional da ONU, por meio de sua Resolução n. 2002/12, que, no ponto, assim
preceitua: “7. Processos restaurativos devem ser utilizados somente quando houver prova suficiente de autoria
para denunciar o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor. A vítima e o ofensor
devem poder revogar esse consentimento a qualquer momento, durante o processo. Os acordos só poderão ser
pactuados voluntariamente e devem conter somente obrigações razoáveis e proporcionais” (destacamos).
39
É o que vem ocorrendo com a “justiça restaurativa”, e já tivemos a oportunidade de comentar, cf. item 46.3.2,
supra.
40
Nesse sentido, vem o Projeto de Lei n. 2.976/2019, que visa regular a “justiça restaurativa” no Brasil: “Art. 2º [...]
§ 4º É vedada qualquer forma de coação ou envio de comunicação judicial para as sessões de justiça restaurati-
va [...] Art. 5º [...] § 2º O encaminhamento para o procedimento de justiça restaurativa não vinculará o ofensor e
vítima, sendo imprescindível o prévio consentimento destes para a realização das sessões”. No mesmo sentido da
inexistência de coação, vem a Resolução n. 225/2016, do CNJ: “Art. 2º São princípios que orientam a Justiça
Restaurativa: [...] § 2º É condição fundamental para que ocorra a prática restaurativa, o prévio consentimento,
livre e espontâneo, de todos os seus participantes, assegurada a retratação a qualquer tempo, até a homologa-
ção do procedimento restaurativo”. Redação semelhante consta do Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo
48.  Modelo criminal não violento 667
A escolha deve ser voluntária e livre pressões, tanto pela vítima quanto pelo ofensor, o
que não impede que sejam procurados e informados das vantagens desse modelo para suas
vidas e para a comunidade em que estão. É nisso que a voluntariedade se diferencia da espon-
taneidade. Ser espontâneo é buscar e ter a iniciativa na procura pelo modelo não violento, o
que é pouco provável nesse instante incipiente de sua operacionalização e, principalmente, por
não ser conhecido da população. Ter voluntariedade é aceitar a proposta não violenta após
conhecê-la e ser convencido de suas vantagens. A inexistência de espontaneidade é superada
pela iniciativa que o facilitador deve ter em procurar as partes do conflito. Já a voluntariedade
é obtida pela argumentação e convencimento de que, para as “necessidades básicas” dos en-
volvidos e a vida comunitária, a resposta consensual e orientada em local seguro é a melhor
opção a ambos. O facilitador pode e deve buscar a voluntariedade com uma atuação direta,
sincera e verdadeira na exposição das diferenças dos modelos e seus propósitos e, ainda, do
que se espera do comportamento das partes, mas não deve coagir qualquer delas.41
Tratando agora do primeiro momento (o convencimento das partes), é possível imagi-
nar que, diante de toda a cultura da violência42 e de milhares de anos de tradição persecutório-
-punitiva do aparato criminal43, haja um inicial (e natural) desconhecimento da via não
violenta como resposta ao crime. Porém, mesmo vencido o desconhecimento pela informa-
ção, é também altamente provável que a ele suceda uma (também natural) descrença, pois
tudo o que é novo pode trazer essa resistência.44 Por essas duas razões (desconhecimento e

Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal: “Art. 115. São princípios
que orientam a justiça restaurativa a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento das necessi-
dades, o diálogo, a igualdade, a informalidade, a extrajudicialidade, a voluntariedade, a participação, o sigilo
e a confidencialidade. [...] § 2º Para que ocorra a prática restaurativa, é necessário o consentimento livre e
espontâneo dos que dela participam, podendo ocorrer a revogação do consentimento a qualquer tempo. § 3º A
participação dos envolvidos é voluntária, vedada qualquer forma de coação ou a emissão de qualquer espécie
de intimação judicial ou extrajudicial para as sessões”. Daí o papel crucial das novas agências e do treinamento
de seus agentes, conforme será exposto no item 48.3.1, infra, exigido pelo mesmo Projeto de Lei n. 2.976/2019 do
facilitador, no referenciado art. 2º, § 3º, também destacado no item 48.3.2, infra. Na Lei portuguesa de mediação
penal, também é necessária a voluntariedade sem coação de ambas as partes do conflito (art. 3, itens 5 e 6, Lei n.
21/2007, de 12 de junho. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1459&tab
ela=leis&ficha=1&pagina=1. Acesso em: 23 dez. 2021).
41
Sobre o dever de o facilitador informar e o direito de a vítima e o ofensor serem informados, v. Resolução n.
225/2016, do CNJ, sobre a “justiça restaurativa”: “Art. 2º [...] § 3º Os participantes devem ser informados sobre o
procedimento e sobre as possíveis consequências de sua participação, bem como do seu direito de solicitar orien-
tação jurídica em qualquer estágio do procedimento”. Redação semelhante consta do Substitutivo de 30.06.2021,
elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal: “Art. 115.
[...] § 4º Os participantes devem ser informados sobre a prática restaurativa, as possíveis consequências de sua
participação, e sobre o direito à solicitação de orientação jurídica”. Essa linha já era afirmada pela ONU e veio
reiterada no Manual sobre programas de justiça restaurativa, elaborado em sua segunda edição de 2020 pelo
UNODC e vertido para o idioma português em 2021: “2.2 Direitos dos participantes. [...] ‘Direito a receber acon-
selhamento jurídico: A vítima e o ofensor devem ter o direito de receber aconselhamento jurídico sobre o proces-
so restaurativo e, se necessário, sua tradução e/ou interpretação” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 16).
42
Cf. item 43.1, supra.
43
Cf. Parte I, supra.
44
Embora não tenham sido encontrados registros históricos da passagem do modelo criminal germânico para o mo-
delo romano canônico nos séculos IX e X (cf. item 14, supra), não é difícil imaginar que o mesmo tenha sucedido
lá. Tanto que foram necessários séculos de empenho da doutrina e da religiosidade cristãs e, ainda, a concepção das
universidades, que, a partir do século XI, produziram os novos agentes do modelo criminal da “inquisitio escolás-
tica”, para a “expropriação do conflito” ser completada. Aliás, todo modelo, mesmo em transições menos paradig-
máticas, precisa sempre de agentes para sua apropriada aplicação (cf. item 48.3, infra). Seria um erro se não apren-
dêssemos com a história e não investíssemos nessa necessidade de criação de estruturação objetiva (agências) e
subjetiva (agentes) para o modelo criminal não violento tornar-se uma realidade. Historicamente, qualquer mudan-
ça mais acentuada, mesmo no modelo criminal tradicional, necessitou dessa base estruturante para se firmar.
668 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

descrença) os facilitadores devem ser especialmente treinados para esse primeiro momento,
que, embora não seja sempre bem-sucedido, somente tem possibilidade de sê-lo se as van-
tagens ficarem claras e ele parecer melhor a ambas as partes.45
É natural se ter em conta que a posição empática para uma atuação voluntária é mais
difícil para a vítima, devido ao trauma que lhe fora perpetrado. O trabalho de convencimen-
to junto a ela para a voluntariedade empática deverá ter essa probabilidade presente. A em-
patia exigirá um trabalho mais ampliado, que envolva e lhe explique a “violência envolven-
te”. Ajudá-la a empreender uma mudança de foco da violência que sofrera, existente e que
deve ser respeitada e considerada, para a ela agregar a visão das violências-causas e resul-
tantes do crime que se projetarão para o futuro e, provavelmente, ainda à sua volta. Uma
visão ampliada tendo o crime apenas como uma parte do todo facilita a construção da em-
patia na vítima. Também a situação de vergonha social e, às vezes, própria, deverá ser tra-
balhada nesse momento.46
A voluntariedade do infrator também deve ser desenvolvida se o facilitador conse-
gue retirá-lo das justificativas que ele construiu para legitimar seu ato violento, sejam elas
próximas ou distantes, e, também para ele, mostrar-se toda a “violência envolvente” de seu
ato e efeitos que ele produziu. O infrator deve se ver não como alguém que atua com justi-
ficação, mas como pessoa que perpetrou violência e que pode agir para, assumindo sua
responsabilidade, mitigar os efeitos de seu ato. A voluntariedade nascerá do reconhecimen-
to do erro de seu ato primeiro para si, para depois fazê-lo ao outro. E nesse ponto também
ingressa a situação psicológica da “vergonha”, tanto quanto para a vítima. Justificativas e
vergonha são obstáculos a serem superados pelo infrator para atingir um comportamento
voluntário e empático diante da vítima e da comunidade. O facilitador deve estar atento a
essas dificuldades e não atuar para subjugar o infrator pela vergonha, mas deve estar atento
ao fato de que esse sentimento é natural após se reconhecer um erro e, não raro, impeditivo
de se dar o passo determinante na direção do encontro com o outro por ele vitimizado.
O facilitador, na busca da voluntariedade, deve preocupar-se com a resistência que
pode advir do sentimento de desigualdade relacional que provavelmente pode haver entre as
partes do conflito e, ainda, o medo que a vítima pode sentir de se ver diante de seu agressor
em situações de ter sofrido violência direta.47

45
Ao facilitador, por sua formação empática, não cabe apenas explicar as vantagens, mas, também, os riscos de cada
modelo criminal (violento ou não violento), pois esta alternativa ora tratada também traz os seus. Alberto José
OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción penal. Madrid:
Dykinson, 2017) informa dos riscos e vantagens tanto para o infrator quanto para a vítima. Em uma tabela resu-
mida, após algumas explicações, assim sistematiza o autor citado. São os riscos da vítima na “justiça restaurati-
va”: “Aparecimento de sentimentos desconfortáveis relacionados à vitimização. Reviver a ansiedade inicial e a
variedade de sintomas psicológicos relacionados. Conhecer novas informações dolorosas sobre detalhes rela-
cionados aos eventos. Não ver o nível de remorso desejado na pessoa que o ofendeu. Expectativas irrealistas em
torno do processo de reabilitação da pessoa infratora” (p. 298, traduzimos). Os riscos para os infratores são:
“Reviver o medo, a frustração, a perda de controle associados à prática dos fatos. Reforço da vergonha e do
desespero por meio da aprendizagem dos efeitos do que aconteceu na vítima. Expectativas irrealistas sobre a
resposta da vítima (capacidade de trabalhar com seus sentimentos, de aceitar o agressor como ser humano,
apesar de seu comportamento). Sentir-se vulnerável como resultado de expressar alguns de seus verdadeiros
sentimentos de vergonha sobre o que fez ou sobre as circunstâncias de sua vida” (p. 298, traduzimos).
46
Esse importante aspecto da vergonha a ser trabalhada para a consecução da restauração é trabalhado por
ELLIOTT, Elizabeth M. Segurança e cuidado: Justiça Restaurativa e sociedades saudáveis. Tradução por Cristina
Telles Assumpção. São Paulo: Palas Athena, 2018. Capítulo 8, p. 199-219.
47
Destacando esse aspecto quanto ao crime grave, v. JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos
que cercam a justiça restaurativa. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.).
Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento –
48.  Modelo criminal não violento 669
O caminho deve ser o facilitador informar que isso é objeto de sua atenção constan-
te durante toda a metodologia do diálogo e na aproximação no curso do processo não vio-
lento, caso a parte que se sinta em inferioridade ou temerosa aceite ingressar no modelo
criminal responsabilizador-conciliatório.48 Para tanto, algumas medidas devem ser por ele
informadas, tais como: que as partes poderão se fazer acompanhar de pessoas aptas a lhes
dar conforto na situação; que as regras da prática serão previamente informadas às partes
para que sejam conhecidas e aceitas; que a oportunidade de fala e escuta serão iguais e, caso
haja qualquer ato de opressão ou prevalência intencional, que não cesse diante da sua adver-
tência à parte, o processo será por ele interrompido; que o local será aquele em condições de
bem-estar para garantir segurança às partes, inclusive mudando no decorrer do processo e
dos encontros se assim desejarem.49
Caso o facilitador perceba que uma das partes tem a intenção de se colocar diante da
outra apenas para praticar atos de violência verbal ou mesmo ameaças, não deve dar conti-
nuidade desde esse momento, sendo sincero quanto às razões que o fizeram não prosseguir;
havendo derivação do conflito para o modelo persecutório-punitivo. A igualdade das partes
nem sempre existirá, assim como também não existe, em regra, no modelo tradicional, bas-
tando ver que a grande massa dos imputados é desassistida e está em franca desvantagem
em relação ao órgão acusador público. Contudo, assim como nesse modelo tradicional se
formaram regras para mitigar tais defasagens, no modelo não violento o mesmo deverá se
dar e ser preocupação e compromisso do facilitador já no momento inicial da informação
para escolha por este modelo pelas partes.
Tratando agora das vantagens para as partes, deve-se examinar cada qual indivi-
dualmente.
Começando pela obtenção da voluntariedade da vítima, personagem do conflito e de
extrema importância no processo não violento, seja ela um indivíduo ou uma “comunidade
afetada”50, ela deve ser informada de que, no modelo não violento, será empoderada e reas-
sumirá sua posição de protagonista no conflito: será vista, respeitada, terá direito à fala com
escuta atenta. Situação que lhe ter considerados e ser reparada pelos traumas que lhe foram
causados pelo infrator, assim como nas necessidades básicas atingidas.51 Terá o direito de
falar, e, podendo estar acompanhada por pessoas próximas e na presença do facilitador, ser-
-lhe-á garantida a situação de escuta atenta pelo infrator e demais pessoas. Sua reparação

PNUD, 2005. p. 174-175, item “b) O lugar e o papel das vítimas”; e SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa,
cit., p. 185, e, em item próprio, p. 601-603. Nessa mesma obra, esta última autora refere-se ao cuidado quanto à
desigualdade entre comunidade e infrator também em p. 192-193.
48
Sobre a necessidade de informar tanto a vítima quanto ao infrator e de manter um ambiente seguro para evitar
desigualdades ou violências nas práticas restaurativas, a segunda edição do Manual sobre programas de justiça
restaurativa, elaborado UNODC, preceitua: “2.2 Direitos dos participantes. [...] ‘O direito de ser plenamente
informado’: Antes de concordar em participar de um processo restaurativo, as pessoas devem ser integralmente
informadas sobre os seus direitos, a natureza do processo e as possíveis consequências das suas decisões. [...]
2.3 Salvaguardas legais e políticas. [...] ‘Segurança dos participantes’: A segurança das pessoas deve ser consi-
derada na referência a qualquer caso de um processo restaurativo e na sua condução (parágrafo 10). As dispa-
ridades que levem a desequilíbrios de poder, assim como diferenças culturais entre os participantes, devem ser
consideradas ao encaminhar um caso para um processo de justiça restaurativa e durante a condução do proces-
so (parágrafo 9)” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre progra-
mas de justiça restaurativa, cit., p. 16).
49
Sobre esse ponto trata-se, mais detidamente, no item 49.1.5, infra.
50
Cf. item 48.3.3, infra.
51
Sobre os conceitos de trauma e necessidades básicas no conflito em geral e sua incidência também para o crime,
v. item 44.3, supra.
670 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

começará pelo respeito que lhe será endereçado e terminará com uma resposta que ela,
juntamente com o infrator, entenderem a melhor a ambos e, sempre que possível, também à
comunidade.52 Se comparado com o sistema processual penal brasileiro, a vítima terá um
ganho efetivo e imediato em respeito e reparação; será protagonista empoderada no modelo
criminal não violento.53
Quanto ao infrator, esse modelo também oferece vantagens em relação ao tradicio-
nal. Isso porque, se a sua ação voluntária é, já de partida, reconhecer o ato criminoso prati-
cado e assumir a correspondente responsabilidade em reparar seus efeitos, ele terá como
contrapartida também o direito de ser ouvido em suas razões, ser respeitada a sua dignidade
como pessoa e não ser a ele aplicada “pena criminal”. A não incidência de pena produz sua
não dessocialização pelo encarceramento ou mesmo pelo anátema da imputação e da custo-
sa, e já penalizante, persecução penal. Além disso, por seus atos e ações serem praticados
em favor, em um primeiro e necessário momento, da vítima e, depois, se possível, em favor
da comunidade, terá a compreensão de ambas essas instâncias sociais de que não deve ser
excluído, a despeito do erro praticado, uma vez que agiu para assumi-lo e repará-lo. O mo-
delo não violento também é, portanto, vantajoso ao infrator se comparado ao modelo crimi-
nal persecutório-punitivo.54
Para a comunidade local e para a sociedade como um todo, o modelo não violento
também oferece vantagens em relação ao tradicional. Para além de não precisar aumentar
progressivamente o custeio do dispendioso aparato criminal – o que já não seria desprezível
–, aquele modelo criminal, por não empreender violência institucional (persecutória e puni-
tiva) como resposta ao problema criminal, não incrementa a violência social. Não encarcera
o infrator e, com isso, também cessa de fornecer mão de obra ao crime organizado.55 O re-
sultado, por ser equilíbrio de relações humanas, tende a diminuir as tensões e estado perma-
nente de insegurança social e “medo do crime”.56
Mas acreditamos que a maior vantagem, comum a todos, é não haver mais perdas
humanas. Isso porque a vítima, reparada em seus traumas e necessidades, terá maiores
chances de superar o ocorrido e ter uma vida socialmente mais saudável, o mesmo ocorren-
do com o infrator, que, para além de não ser dessocializado pela pena criminal e/ou pela
persecução penal, ainda atuará para ser mantido como integrante positivamente atuante da co-
munidade. A sociedade, pois, não perderá mais cidadãos para o crime e pelo crime, cessando

52
As possíveis respostas conciliatórias pelas partes para a vítima e, quando possível, para além dela, cf. item 48.1,
supra.
53
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit.) informa em um quadro sinóptico as vantagens tanto para o infrator quanto para a vítima. Após algu-
mas explicações em seu texto, assim sistematiza as vantagens à vítima na “justiça restaurativa”: “Expressar a
raiva e dor diretamente à pessoa responsável pelo ocorrido. Conhecer nova informação necessária para enten-
der o que aconteceu. Ver os sentimentos de remorso da pessoa ofensora. Experimentar uma maior sensação de
fechamento. Sensação de maior poder e controle sobre a sua própria vida” (p. 298, traduzimos).
54
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit.) informa em também quais as vantagens ao infrator na “justiça restaurativa”: “Aprender sobre o real
impacto de seu comportamento, passando da negação do que aconteceu para assumir a responsabilidade. Cons-
truir autoestima tomando medidas para consertar as coisas para sua vítima. Ter a oportunidade de contar sua
história, de representar-se a si mesmo, de ser ouvido. Ter a oportunidade de participar do plano de reparo.
Sensação de maior poder e controle sobre a própria vida” (p. 298, traduzimos).
55
Sobre o nível de disfuncionalidade do modelo criminal brasileiro, que, ao encarcerar, alimenta a espiral ascenden-
te das violências criminal e institucional, v. toda a Parte II deste trabalho, notadamente os seus itens 36.5, 37.3,
38.3, 39.2 e 40, supra.
56
Sobre a noção de “medo de segundo grau”, v. item 43.2.1, supra.
48.  Modelo criminal não violento 671
tanto o incremento de custos financeiros para manter todo o aparato criminal persecutório-
-punitivo quanto a retroalimentação da violência social pelo estímulo às violências criminal
e institucional que a disfunção daquele aparato tem produzido no Brasil.
Expor tais vantagens a cada parte do conflito é um meio profícuo de conseguir a
necessária voluntariedade inicial de aproximação das partes. Contudo, essa sua ocorrência
não é suficiente. Ela ainda deverá ser mantida durante toda a prática não violenta.
Da voluntariedade empática se chega ao essencial diálogo como única metodologia
apta a se atingir o resultado almejado no modelo criminal não violento. É deste e de suas
possibilidades que trata o próximo subitem.

48.2.2 Metodologia dialogal e horizontalidade: nova dinâmica e sentido relacional no


modelo criminal não violento
O diálogo está para o modelo criminal não violento assim como a inquisitio está para
o modelo persecutório-punitivo. A sua mudança como metodologia e dinâmica nas relações
entre as partes naturais do conflito para a consecução da resposta ao “fenômeno criminal”
produz correlatas alterações em pontos importantes se comparado com esse modelo tradi-
cional. Também por este elemento estrutural do modelo não violento (responsabilizador-
-conciliatório) há profunda diferença com aquele e apta a impossibilitar serem acoplados ou
de algum modo imiscuírem-se. Podem e devem conviver, mas separados e com alguns
pontos de aproximações.
A investigação histórica procedida na Parte I deste trabalho permite afirmar que a
inquisitio, em qualquer de suas modalidades57, é (sempre foi) a metodologia a garantir a ideo-
logia da violência no sistema processual persecutório-punitivo; desde sua fase investigativa até
a execução da pena. Se toda a política criminal persecutório-punitiva foi construída em torno
da pena criminal,58 a estrutura processual dela decorrente teve na inquisitio seu eixo rotor.
A inquisitio, existente desde o Império de Otaviano Augusto, foi mantida pelos ca-
nonistas por toda a Alta Idade Média e ganha grau de cientificidade com os escolásticos a
partir do século XI, cuja maior contribuição foi fixar-lhe os pontos fundamentais.59 O mais
importante foi a figura do representante do poder instituído para presidi-la, em todos e em
cada um de seus momentos (inquiridor-investigador; acusador; julgador; executor) e que se,
inicialmente, nascera para ser “sujeito do poder-saber”, paulatinamente se transforma em
“sujeito do saber-poder”; mas, em essência, o mesmo. Para esse “sujeito” desempenhar sua
função há, no processo penal, um controle hierárquico verticalizado, que reproduz, em seu
interior, o mecanismo de controle do poder instituído em cujo cume está o líder político e
seus representantes que são, para o modelo criminal, seus agentes externos. O sistema pro-
cessual reproduz em seu interior o controle vertical que o modelo de poder passa ao modelo

57
Neste trabalho, especificamente na Parte I, supra, definiram-se as diversas modalidades de inquisitio. A partir do
sistema romano da cognitio extra ordinem (cf. item 8.2.2, supra), por meio da conversão do juramento germânico
em delatio e da “decisão divina” em decisão do clero ou da nobreza, advém a inquisitio católica (cf. item 14.3,
supra). Com as mudanças possibilitadas pela escolástica universitária, nos séculos XI e XII, desenvolve-se a
inquisitio escolástica (cf. itens 20 e 21.2, supra), transmutada posteriormente, entre os séculos XII e XVIII, com
a Inquisição, em inquisitio radical (cf. item 24, supra). No início do século XIX, ao ensejo das reformas napoleô-
nicas, especialmente aquela que instituiu o que ficou conhecido por “sistema processual penal misto”, forma-se a
inquisitio revolucionada (cf. item 26.2, supra).
58
Cf. item 46.2, supra.
59
Cf. itens 17.1, 20.2, com seus subitens, e 20.3, supra.
672 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

criminal. O líder político, direta ou indiretamente, é quem seleciona aqueles “sujeitos” para,
internamente, não apenas reproduzirem a verticalização de poder, mas para, controlando-os
mais eficazmente, melhor e indiretamente garantir que seus interesses e escolhas prevale-
çam por meio do instrumento processual persecutório e da pena criminal.60
Para além dos pilares do “sujeito do saber-poder” e do controle hierárquico vertica-
lizado, há, ainda, um outro imanente à inquisitio: a dinâmica duelista de debate e não de
encontro de ideias.
Toda a retórica aprendida e desenvolvida desde as universidades medievais pelo ensino
escolástico é reproduzida fielmente na instrução probatória e nos “debates orais”61 e explica a
razão de o processo penal tradicional ter se tornado um lugar de desencontros e de exercício
de poder62, quer pela auctoritas (do saber), quer pelo imperium (do poder impor).63 Como se
pode perceber do exame histórico iniciado no século I a.C., não resta muita dúvida sobre a
inquisitio ser a estrutura axial do modelo criminal tradicional desde o Império Romano até
nossos dias. Não há qualquer mudança sistemático-processual, no decorrer das mais de duas
centúrias analisadas, que tenha operado uma mudança de eixo metodológico. A perenidade é
explicada pelo fato de não ser possível modificar, a partir das estruturas sistemáticas (punitivo-
-penal e persecutória-processual), o eixo central do “modelo criminal”, criado e aperfeiçoa­do
desde o plano político-criminal com paradigma da promoção da violência institucional.
Insistimos: não se muda o modelo a partir do sistema; o sistema é construído a partir
do modelo e este, por sua vez, a partir da política criminal. Logo, só se muda o sistema pro-
cessual a partir de alterações primeiro na política criminal e, depois, em seu modelo crimi-
nal.64 Todos foram criados para serem violências institucionais em resposta ao que os pode-
res instituídos não desejavam como comportamento e classificavam como “crime”.
Logo, esse propósito intrínseco (responder à violência criminal com violência institucional)

60
A troca de agentes internos, para representar as mudanças ideológicas do poder central, foram destacadas neste
trabalho desde a Roma Antiga, quando os cristãos ingressaram no Estado (cf. itens 8.2.2 e 9.2, supra), passou pela
Idade Média tanto na Europa continental, pela ascensão canonista (cf. item 14.3, supra), e, depois, na Inquisição
(cf. item 24, supra), terminando pelo movimento napoleônico anti-iluminista (cf. item 26.2, supra), que projetou
a estratégia de escolha de agentes internos para dominar o sistema processual, com os Estados autoritários na
primeira metade do século XX e que, internamente, apenas reproduziam a ânsia bélica de seus governos
(cf. itens 26.2 e 26.3, e seus subitens, supra). No direito inglês a metodologia foi a mesma no instante da conquis-
ta normanda, pois de um rei conquistador e dominador não se poderia esperar menor controle do aparato criminal
(cf. item 21.1, supra). Contudo, foi desse direito insular que veio a demonstração de que a falta de controle dos
agentes internos pode levar problemas políticos ao poder central, o que já destacamos na investigação da funda-
ção da Magna Carta e da criação do jury system, já próximo ao perfil atual (cf. item 21.3, supra) e, também, já na
Era Moderna, quando os juízes togados e instruídos nas universidades ofereceram resistência aos abusos reais e
instituíram as bases do adversarial system (cf. item 25.2.2.2, supra). No Brasil de hoje, impossível não notar,
observando o perfil socioeconômico dos agentes internos do sistema processual, que nas agências persecutório-
-judiciais não se reproduzam, hoje sob a justificativa da “meritocracia”, as posições de privilégios e prevalências.
61
A tradição e a mentalidade da inquisitio foram (são) tão fortes desde a sua “cientificização” escolástica que ainda
se mantêm em nosso Código de Processo Penal, com a respectiva reprodução no ensino jurídico e apesar das vá-
rias mudanças legislativas ocorridas neste século XXI. Mantém-se, ainda a fase de “debates orais”, cf., por exem-
plo, no código processual brasileiro o nome iuris de “Dos debates”, dado à Seção XII do capítulo destinado à fase
plenária do procedimento do júri. O termo “debate”, com algumas derivações, é citado naquele codex ao menos
mais de uma dezena de vezes, v.: art. 271, caput; § 2º do art. 384; art. 411, caput e seu § 9º; art. 478; § 1º do art. 480;
art. 492, I, b; art. 495, XIV; art. 497, III e XII; art. 531, caput; e art. 613. Especificamente sobre a inserção dessa
mentalidade inquisitiva no sistema probatório, cf. itens 20.2 e 20.3, supra.
62
Para uma diferenciação esquemática entre “debate” e “diálogo”, v. Tabela 2, no item 44.4, supra.
63
A investigação histórica da Parte I também identificou o surgimento e a diferença entre esses pontos já desde a
cognitio extra ordinem romana e, depois, romano-canônica (cf., respectivamente, itens 8.2.2 e 9.2, supra).
64
Por isso o alerta nesse sentido já vem sido feito desde o item 3, supra.
48.  Modelo criminal não violento 673
vincula-os de partida ao paradigma da violência. A metodologia do diálogo, em sentido em
tudo diverso da inquisitio, garante ao modelo não violento se realize por meio de um sistema
processual que, em qualquer de suas fases ou atos, não atua por meio da violência institu-
cional ou coerção de seus agentes.
Mudar do modelo criminal persecutório-punitivo para o modelo não violento é, e
exige, mudar também esses citados pilares pelos quais a violência institucional se realiza,
notadamente o que lhes dá esteio e coerência sistêmica, ou seja, a metodologia da inquisitio.
Para atender à modificação neste ponto surge a metodologia dialogal; antagônica àquela já
desde seu propósito ser promover o encontro de pessoas e de ideias como única forma de
melhorá-las e suas relações e não afastamentos.
O diálogo visa a aproximar as pessoas do conflito criminal para conhecê-las e suas
relações com respeito a seus traumas e violações a fim de, aproveitando a oportunidade
daquele conflito, mudar-lhes os seus efeitos de negativos para positivos para as partes e a
comunidade. O diálogo olha para o passado como uma oportunidade de mudar o futuro a
partir do que as pessoas que o integram vierem a produzir.
As pessoas que viveram um conflito criminal não têm suas (inter)relações “re”criadas
ou “re”estabelecidas ou “re”construídas ou, ainda, “re”feitas.65 No espaço pós-conflito crimi-
nal não há “re”encontro, mas um “sempre” e “novo” encontro; é isso que o diálogo dinamiza
e potencializa. As marcas não podem ser esquecidas, mas devem ser enfrentadas e tratadas.
Tentar esquecê-las é, em verdade, guardá-las em algum canto dentro de nós mesmos para, por
justificativas criadas, praticarmos formas de violências a outrem ou a nós mesmos.
O conflito “nunca” é esquecido e não desaparece da vida de seus integrantes. O que
pode e deve ocorrer pelo diálogo é a sua superação ao transformarem seus efeitos de negativos
em positivos ou pelo menos compreendê-los e minorá-los. Uma transformação do mundo in-
terno e externo dos conflitantes e seus entornos. Pela metodologia dialogal não se discute se o
conflito e sua violência são coisas boas ou ruins, se violam ou não ordens legais. Uma vez que
haja voluntariedade empática é porque já se estabeleceu que houve violência, e ela tem respon-
sável e atingido, o foco é o outro e as formas de atendê-lo são não violentas. Aceita-se a vio-
lência já ocorrida e se trabalha tanto nela, como algo maior e envolvente, quanto com as pes-
soas por ela atingidas e que se comprometem com a construção, por meio não violento, de algo
(também não violento) melhor (a “resposta não violenta conciliatória criminal”66). O sistema
processual criminal não violento é esse “meio”, e o diálogo, o seu paradigma metodológico.67

65
Nesse sentido de não se defender a cultura do “re” para a “justiça restaurativa”, porém por outras justificativas,
v. ZEHR, Howard. The little book of restorative justice. 2nd ed. New York: Good Books, 2015. p. 38-39. A primei-
ra razão para não haver “re”, mas sim uma sempre “nova situação”, é a possibilidade de inexistir qualquer relação
anterior entre vítima e ofensor; por exemplo, se eles se desconheciam. A segunda razão, e mesmo se houvesse uma
relação entre eles pré-conflito, é que todo conflito causa traumas que deixam marcas (materiais e imateriais; físi-
cas e psicológicas) mais ou menos intensas nas pessoas, notadamente na vítima, mas também no perpetrador, o
que faz com que essas mesmas pessoas estejam modificadas. Exatamente por isso, seria um erro imaginar que
possam voltar ao status quo ante, “apagando” em si tais marcas.
66
Sobre o tema, cf. item 48.1, supra.
67
Sobre o método dialogal como base das práticas restaurativas, v., por todos, para a mediação, UMBREIT, Mark S.
The handbook of victim offender mediation, cit., Capítulo 3, “Mediation process”, p. 52-57. Para os encontros
vítima-ofensor’ em geral, v., por todos, AMSTUTZ, Lorraine Stutzman. Encontros vítima-ofensor, cit., p. 17, in
fine, e 20-24. Para os círculos, v. PRANIS, Kay. Processos circulares de construção de paz. Tradução por Tônia
Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2010. p. 54-56. Para as práticas restaurativas em geral, inclusive mostrando
seu receio quanto à confusão entre “justiça restaurativa” e mediação, dentro da qual entende não haver um autên-
tico diálogo restaurativo, v. ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 15-16.
674 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

O diálogo, que aproxima pessoas para conhecê-las, respeitá-las e oportunizar suas


transformações, não deve ser estabelecido apenas entre partes do conflito em meio aos ritos
e práticas do processo criminal não violento. Ele deve começar desde a abordagem indivi-
dualizada (convite) que o facilitador faz à vítima e ao infrator para tratar da possibilidade de
eles participarem e aceitarem que elas e seu conflito sejam tratados no modelo criminal não
violento.68 Com essa abordagem dialogal inicial já se ressalta, fática e objetivamente, e, a
cada parte, que em qualquer variedade processual que se escolha dentro do modelo não
violento não haverá nem auctoritas nem imperium. Ele não se dará em plano vertical e com
sujeito do poder-saber impondo seu poder, vontade e compreensão (sobre leis e fatos), mas
horizontalmente e entre iguais. O diálogo advindo da voluntariedade empática põe a todos
(partes e facilitador) no mesmo plano de inter-relações, em ambientação segura e próxima
a todos.69 Com isso o modelo criminal não violento rejeita a “estrutura de dominação” da
qual se extrai grande parte da justificativa da “violência submissão” usada pelos agentes
internos do processo criminal tradicional para atuarem e se justificarem de violências insti-
tucionais (processual penal ou material).70 Com isso se cria um espaço de respeito mútuo
para oitivas e falas recíprocas, em uma dinâmica que não é de confrontação ou contradição,
mas de concordância e construção.71

68
Sobre o convite, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis: um guia prático de aplicação
imediata. Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2018. p. 40; e nossos comentários no item
48.3.2, infra.
69
Nesse sentido, v. Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal: “Art. 117. Os procedimentos restaurativos consistem em sessões coordenadas,
realizadas com a participação dos envolvidos de forma voluntária, das famílias e com a participação da comu-
nidade para que, a partir da solução obtida, possa ser evitada a recidiva da infração penal, vedada qualquer
forma de coação ou a emissão de intimação judicial para as sessões. [...] § 2º O facilitador restaurativo é res-
ponsável por criar ambiente propício para que os envolvidos promovam a pactuação da reparação do dano e
das medidas necessárias para que não haja recidiva do conflito, mediante atendimento das necessidades dos
participantes das sessões restaurativas” (destacamos).
70
Sobre a violência buscar justificativas em estruturas ou hierarquia de poder em que o violador se insere para
buscar conforto psicológico na transmutação da violência em “causa justa”, v. item 43.2, supra. Sobre o diálogo
como desestruturação da “dominação” relacional, v. ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo
de conflitos: sua próxima fala mudará seu mundo. Tradução por Grace Patricia Close Deckers. São Paulo: Palas
Athena, 2019. p. 61-68. Esse autor diferencia dominação, por ele designada como “poder sobre”, de consenso,
designado como “poder com”; informando, ainda, que aquele representa uma “exigência”, típica do modelo cri-
minal hierarquizado – acrescentamos –, enquanto este revela um “pedido”, para nós típico do processo dialogal e,
dessa forma, não violento. Afirma o autor: “A última distinção sobre a qual precisamos ter clareza é a diferença
entre os conceitos de ‘poder sobre’ e ‘poder com’. Com poder sobre os outros obtemos resultados a partir da
submissão das pessoas. Podemos castigar ou premiar. Isso é poder sobre. É um poder fraco porque pagamos um
preço por ele. Pesquisas revelam que empresas, famílias ou escolas que usam a tática do poder sobre têm um
custo indireto que se revela em problemas com um clima de insatisfação geral, violência e ações sutis contra o
sistema. O ‘poder com’ permite que as pessoas ajam de bom grado por perceberem que contribuirão para o bem-
-estar de todos. Isso é CNV [comunicação não-violenta]. Uma das formas mais poderosas de criar poder com as
pessoas é demonstrar que o grau de interesse que temos por suas necessidades é o mesmo que temos pelas nos-
sas. Criamos mais poder com as pessoas na medida em que avaliamos com honestidade e vulnerabilidade, sem
críticas. As pessoas se preocupam mais com o nosso bem-estar quando partilhamos o poder do que quando lhes
apontamos seus erros” (p. 67-68, e esclarecemos entre colchetes o significado de ‘CNV’).
71
Nesse sentido, vem precisa a Resolução n. 225/2016, do CNJ: “Art. 2º [...] § 4º Todos os participantes deverão ser
tratados de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a
construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução cabível e eficaz visando sempre
o futuro”. Redação semelhante consta do Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João
CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal: “Art. 115. São princípios que orientam a justiça
restaurativa a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento das necessidades, o diálogo, a igual-
dade, a informalidade, a extrajudicialidade, a voluntariedade, a participação, o sigilo e a confidencialidade. [...]
§ 5º O acordo decorrente da prática restaurativa deve ser construído a partir da livre atuação e expressão da
vontade dos participantes, respeitando a dignidade humana de todos os envolvidos” (destacamos).
48.  Modelo criminal não violento 675
O sentido relacional horizontal de compreensão empática e aproximação estimula a
construção da “resposta conciliatória” e, principalmente, torna as partes mais propensas a
seu cumprimento, não precisando haver “força” externa (de terceiro dotado de imperium,
poder de coerção) para se conciliar e se cumprir o acordado entre elas.72
É nesse ponto que a conciliação voluntária e empática ora exposta, obtida em ambien-
te seguro em que as partes naturais do conflito em relação entre iguais (horizontalidade) se
diferencia da “negociação” sobre “pena criminal” ocorrida no sistema premial-negociado73.
A negociação, no modelo criminal persecutório-punitivo, dá-se em plano vertical em
decorrência de a parte acusadora/investigadora ser pública, estar em cargo ou função de “au-
toridade” e, portanto, superior ao infrator, em regra, pessoa física e um particular. Não há
aproximação, pois aquela autoridade não fez parte do conflito criminal. A pessoa-autoridade
não tem qualquer direito, bem ou valor pessoal prejudicado pelo infrator, logo, não é possí-
vel um diálogo entre iguais.74
Tais peculiaridades impedem uma comunicação dialogal na “negociação penal”,
estabelecendo-se, efetivamente, uma relação desigual de barganha, em que as partes não
querem ou irão se aproximar. O Ministério Público/Polícia Judiciária, como previsto em lei,
deve preocupar-se em garantir as finalidades da pena (retribuição e prevenção), assim como
ter o maior benefício probatório em face dos delatados e, ainda, o procedimento encurtado
para aquela causa penal negociada. O imputado, por sua vez, visa obter a maior redução de
pena possível, ser isento dela ou, ainda, não ser perseguido criminalmente. Há, de fato, uma
estratégia de posições e posturas de barganha com clara posição de supremacia negocial a
uma das partes. A premissa metodológica e a posição vertical entre as partes tornam todo o
sistema negocial estranho ao modelo criminal não violento.
Nesse, as partes são vítima e infrator; naquele, a vítima sequer é chamada ao palco
das conversas. Nesse, as partes visam a uma aproximação empática para um diálogo respei-
toso entre iguais e em plano horizontal; naquele, o plano é vertical, a pauta se dá por meio
de propostas e contrapropostas e não há qualquer necessidade de empatia. O negócio se
estabelece por uma análise de perdas e ganhos na “justiça negocial”, enquanto no modelo
não violento a aproximação nasce para superar e transformar a “violência envolvente”; não
incluindo mais violência (a pena criminal) no meio social. Nesse modelo não há discussão
sobre culpa-pena, mas, partindo da autorresponsabilização voluntária do infrator, as partes
buscam estabelecer pontos comuns para deles chegarem em um resultado positivo e não
violento. Tudo, de fato, é estrutural, metodológica e teleologicamente diferente.
O facilitador, por sua vez, tem a função de promover e dinamizar o diálogo75, poden-
do suspendê-lo, ou mesmo interrompê-lo caso ocorram violências na aproximação para o
diálogo, tudo para manter o respeito pelos instrumentos desse modelo não violento e con-
forme entenda conveniente para melhor proficuidade do processo. Contudo, ao exercer sua
função, deve deixar claro que não o faz sob o signo da “autoridade”, mas como um terceiro
aceito previamente pelas partes. Mantendo-se no plano das partes, o que em muito o auxilia

72
Cf. item 48.1, última parte, supra.
73
Sobre a preferência a essa nominação e suas razões à “justiça penal negociada”, cf. item 27, supra.
74
Não por esses fundamentos, e sem as bases históricas trazidas neste trabalho, Nereu José GIACOMOLLI (O de-
vido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo:
Atlas, 2014. Item 10.6.2) aponta como característica da “justiça penal negociada” a verticalização e a presença da
autoridade pública como fatores de desequilíbrio na busca do “acordo penal” e uma inexistência do essencial
“diálogo” para o “consenso”. Sobre esse ponto, já fizemos considerações no item 27.1, supra.
75
Sobre o papel do facilitador, assim como suas características e habilidades, cf. item 48.3.2, infra.
676 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

no cumprimento das regras pela proximidade delas para com ele, impede que a estrutura da
inquisitio ou suas derivações (verticalização hierárquica, coerção, sujeito do poder-saber,
debate e imposição decisória) se estabeleçam. A proximidade também é fundamental para
que o facilitador possa perceber a “violência envolvente” àquele conflito tratado e cujas
fontes ainda podem estar presentes na comunidade. Deve-se permitir que se revele no diá-
logo para melhor compreensão sobre as causas do conflito, os pontos comuns que precisam
ser criados e compartilhados pelas partes para elaborarem, juntas, uma resposta conciliató-
ria com eventuais reflexos positivos para a comunidade.76
O diálogo empático empodera a vítima e exige posição (particip)ativa do infrator,
outras duas diferenças em relação ao modelo criminal tradicional. Nesse último modelo, o
infrator, por sua estratégia e conveniência, pode escolher assumir posição passiva77, pois
cabe ao órgão acusador provar a imputação por ele formulada, sendo o acusado beneficiado
pela dúvida no momento da decisão judicial.78 À vítima, por sua vez, é relegado um papel
de colaborar com a narrativa dos fatos descritos na denúncia.79 Ambos (infrator e vítima)
são mantidos afastados entre si e, não raro, incomunicáveis.80

76
Sobre a importância de esse nível do diálogo e o papel do facilitador para uma dinâmica bidirecional do sistema
processual não violento voltarem à política criminal a orientar políticas públicas para comunidades, v. item 50, infra.
77
Alexandre Morais da ROSA (A teoria dos jogos aplicada ao processo penal. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direi-
to; Lisboa: Rei dos Livros, 2015. Item “1.4. A teoria de processo como jogo processual”, p. 43-52) enfatiza que o
processo e a pena, que vieram substituir a guerra, guardam com esta as similitudes de buscarem o confronto e a vi-
tória (p. 39-40) e, para isso, contam com estratégias de jogo e subjogo processuais que precisam ser apreendidas, pois
a “vitória” estará não com quem “tenha razão”, mas com aquela parte que melhor desempenhar as estratégias para
obtê-la. Nesse cenário volátil, pouco sincero e, ainda, de certa margem para acasos, o infrator pode, casuisticamente,
escolher uma atitude omissiva durante toda a persecução penal, sem que isso dê como certa sua “derrota” ao final.
Explicando a dinâmica do processo penal tradicional a partir de uma análise que associa a “teoria dos jogos”, o autor
leciona: “No caso do processo penal o jogador-acusador possui o dever legal de antecipar as informações que
pretende trazer ao jogo, enquanto o jogador-defensor organiza a estratégia e táticas a partir dos movimentos do
jogador-acusador. Diante de uma ação da parte, no campo do discurso, abrem-se 3 (três) movimentos táticos:
a) silêncio/inação; b) contra-ataque; c) tangência/derivação. Essa dinâmica se divide em diversos momentos proba-
tórios e processuais, vinculadas à finalidade” (p. 119-120, item “4.5.2. Dinâmica probatória”).
78
Sobre o ônus acusatório de provar sua tese imputativa e, ainda, o fato de o acusado ser favorecido caso não se
desincumba dessa atribuição de maneira clara ao juiz da causa, v. BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova no proces-
so penal. São Paulo: RT, 2003. p. 239-240; e ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no
processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judi-
cial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 462.
79
Como bem sintetizou Antonio SCARANCE FERNANDES (O papel da vítima no processo criminal. São Paulo:
Malheiros, 1995. Item 11 “Vitimologia e trabalhos doutrinários”, p. 15-16): “O processo penal acusatório, inqui-
sitório ou misto neutraliza a vítima; a relação jurídica que se forma é entre juiz, réu e acusador, este, de regra,
um órgão de Estado. Por isso mesmo, desponta e se consolida o Ministério Público como o órgão encarregado
de promover a ação penal em quase todos os crimes. Na administração da justiça penal, importa o interesse
público, não o privado, devendo a resposta ao crime ser proveniente de órgão marcado pela imparcialidade e
isento de paixões. É encetada uma verdadeira luta para acabar com a justiça privada. Por tudo isso, restringe-se
bastante o papel da vítima: só poderá acusar em número pequeno de casos, enquanto nos demais, a grande
maioria, cabe-lhe somente o dever de noticiar o fato e de testemunhá-lo perante o tribunal” (p. 16). Para um
exame detalhado do papel da vítima na ação penal de iniciativa privada, v. itens 31-33 da referida obra; na ação
penal de iniciativa pública, v. seus itens 34-59. No ordenamento brasileiro, é autorizada a intervenção do ofendido
ou seu representante legal, ou ainda de qualquer das pessoas mencionadas no art. 31 do Cód. Proc. Pen. (“cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão”), na ação penal de iniciativa pública (incondicionada ou condicionada à repre-
sentação), auxiliando (atividade complementar) o seu titular (Ministério Público); cf. art. 268 do Cód. Proc. Pen.
Também é prevista a atividade subsidiária, enquanto hipótese de legitimação extraordinária do ofendido, que
poderá, em situações limitadas, propor ação penal privada subsidiária da pública quando o titular ordinário (Mi-
nistério Público) permanecer inerte, não exercendo seu direito de acusar no prazo legal. Todavia, mesmo nessa
hipótese, o secundarismo do papel da vítima é ressaltado pela possibilidade de o órgão acusatório aditar a queixa,
repudiá-la ou até mesmo oferecer denúncia substitutiva, caso no qual retomará a titularidade exclusiva da ação
penal (cf. art. 29 do Cód. Proc. Pen., combinado com art. 5º, LIIX, CR e art. 100, § 3º, Cód. Pen.).
80
Sobre o tema, nosso Cód. Proc. Pen. preceitua, em seu art. 217: “Se o juiz verificar que a presença do réu poderá
causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a
48.  Modelo criminal não violento 677
No processo criminal não violento, ao contrário, a vítima é empoderada, tendo pro-
tagonismo equivalente ao infrator. De ambos se esperam posições ativas, mesmo que para
isso o facilitador deva, com habilidade e sem coerção, estimular que a dinâmica se inicie ou
não esmoreça. O infrator, de seu turno, partindo da assunção de sua responsabilidade por
seus atos ilícitos, obriga-se a um agir (ativo/positivo) retirando-lhe a cultura ou possibilida-
de (estratégica) de passividade processual. Não há qualquer estratégia pela resistência ou
direcionamento na produção probatória, mas de construção de respostas a partir da concor-
dância sobre os fatos ocorridos.81 Não há, na dinâmica dialogal, fase instrutória para acer-
tamento de fatos, mas fase dialogal para acertamento de pessoas e relações, que deve ser
realizada pela dinâmica bilateral e equivalente de escutas atentas e falas respeitosas. Se
comparada, a diferença de conduta com o processo penal persecutório-punitivo advém da
mudança de ponto de partida e de sua finalidade: sai a demonstração da culpa (modelo cri-
minal tradicional) e entra a conjugação de entendimentos a partir de pontos comuns para
dela se formular pelas partes a resposta conciliatória.82
O diálogo, em muitos casos ocorrente em meio a exposições fortes pelos traumas,
exige a presença e atenção de um facilitador treinado e que saiba, quando as emoções exi-
gem, fazer paradas nos trabalhos quando isso afastar as partes e mantê-lo se fortalecer os
novos vínculos que estão sendo descobertos. Tudo para que as partes entendam que suas
dinâmicas não serão mais de “imputação versus reação defensiva”, mas entre falas e escutas
atentas e respeitadoras dos próprios sentimentos e em relação aos do outro.83 O “outro”, seja
ele infrator ou vítima, passa a ser figura central da preocupação de todos os envolvidos no
diálogo (incluído aqui o facilitador). Pela empatia, deixa de ser “o errado” e passa a ser a
pessoa com a qual se pode entender e realizar algo melhor para reverter a violência (crimi-
nal) que trouxe a todos até aquele momento de encontro.
O diálogo é uma metodologia de fácil compreensão, mas que exige habilidade e trei-
no para sua consecução e esforço permanente para sua execução. Medos ou receios de

verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, de-
terminará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor” (destacamos). Não é
equivocado afirmar que, na prática forense, a retirada do acusado no momento da tomada de declarações do
ofendido é realizada como regra geral, senão automática, a despeito da clara redação do dispositivo legal a esta-
belecer se tratar de exceção calcada em circunstâncias concretas. Nossos tribunais chancelam essa subversão da
exceção à regra, basicamente justificando-a com a melhor “busca da verdade real”. Veja-se, por exemplo, trecho
da ementa da Correição Parcial n. 0264525-75.2015.8.21.7000, 5º Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul (Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/tj-rs-manda-juiz-ouvir-vitimas-presenca.pdf. Aces-
so em: 23 dez. 2021): “Tratando-se de delito praticado com manifesta violência e grave ameaça contra as vítimas,
é natural que elas se sintam temerosas ou constrangidas de prestar seu depoimento perante o agressor. Justa-
mente para essa situação há o regramento insculpido no art. 217 do Código de Processo Penal. Assim, para
preservar a identidade pessoal das vítimas e a lisura de seus depoimentos, de molde a se alcançar a verdade real,
o questionamento acerca de eventual constrangimento em depor na frente do réu deve ser formulado antes de seu
ingresso na sala de audiências. E diante do agir costumeiro do Magistrado, que faz tal questionamento na frente
do réu, é de ser deferida a correição para que o réu somente seja introduzido na sala de audiências se as vítimas,
previamente questionadas, expressamente não se opuserem a depor em sua presença”.
81
Nesse sentido, v. Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal: “Art. 115. [...] § 1º Para que o conflito seja passível da prática restaurativa, é
necessário que as partes reconheçam os fatos essenciais, sem que isso implique admissão de culpa em eventual
processo judicial; [...]”.
82
SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa, cit., p. 433-434.
83
Kay PRANIS (Processos circulares de construção de paz, cit., p. 26), ao tratar do “bastão de fala” na prática dos
círculos, em geral, exemplifica tal oitiva e fala atenta pelos integrantes. Assim também sobre esse ponto da oitiva
e fala respeitadoras e atentas de todos os que participam dos vários procedimentos não violentos, uma vez que não
é um rito de combate, mas de respeito mútuo, cf. item 44.4, supra.
678 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

quaisquer naturezas, assim como dificuldades psicológicas e emocionais de se colocar dian-


te do “outro”, têm levado a construções de estratégias de aproximação em que pessoas
próximas das partes têm papel crucial.84 Isso também colabora com a redução das desigual-
dades no modelo e no processo não violentos,85 assegura maior conforto das partes, em
certas situações, até que a aproximação entre elas se realize. Pessoas confiáveis e referen-
ciais às partes garantem que se inicie e concretize o desejo da aproximação voluntária e
empática, mesmo que nos primeiros momentos haja obstáculos internos (medos, traumas,
vergonhas) e, também externos, a serem superados.
Seguramente, o diálogo é mais profícuo quando as partes dele participam diretamen-
te. Contudo, por todo o referido no parágrafo anterior, pode ser que uma ou ambas as partes
queiram resolver seu conflito de modo não violento, mas, por questões que não conseguem
transpor, têm maior dificuldade de ficar diante da outra parte. A questão, portanto, não é de
recusa ao modelo criminal não violento ou, ainda, de indisposição quanto à proposta dialo-
gal ou à resposta conciliatória. O problema está em dificuldades, normalmente mais afeitas
às vítimas de violências diretas ou em situações de temor do “outro”, haver um “distancia-
mento comunicacional”. Como o método precisa da anuência e participação das duas partes,
esse “hiato” presencial precisa e pode ser reduzido e até superado por meio de técnicas de
aproximação.86
Nesses casos, a experiência restaurativa tem mostrado bons resultados com o deno-
minado “diálogo indireto”, isto é, o diálogo em que uma pessoa próxima à parte do conflito
(infrator ou vítima) a representa nos momentos iniciais, e até mesmo durante boa parte do
processo ou, ainda, apenas no momento final de ajustamento do acordo conciliatório.87 Tudo
para manter o desejo da representada de levar adiante a aproximação e busca do consenso,
mas com o pontual e necessário auxílio para ela superar suas dificuldades. O diálogo, por-
tanto, se faz por “comunicação indireta”.
Não resta dúvida de que o “diálogo indireto” não é o ideal, pois o processo dialogal,
como afirmado acima, já é em si um resultado de aproximação e empatia entre as partes.88

84
Como se verá em subitem adiante (cf. item 48.3.3, infra), alguns autores denominam essas pessoas de “comunida-
de dos próximos”. Lorraine Stutzman AMSTUTZ (Encontros vítima-ofensor, cit., p. 43) trata como “vítimas se-
cundárias” e indica que sua inclusão nos encontros vítima-ofensor (EVO) ajuda a vencer obstáculos de comu-
nicação, citando como exemplo frequente desse recurso as práticas restaurativas das “conferências de grupos
familiares”.
85
Sobre a questão de as desigualdades preexistentes ou intrínsecas às partes serem uma atenção especial do facilitador
já tratamos neste item para se evitar que elas não ingressem no modelo criminal não violento. Para se evitar que
preponderem no curso de qualquer procedimento não violento (rito ou prática), v. item 49.1.5, infra.
86
Pete WALLIS (Understanding restorative justice, cit., p. 117-119) trata o tema como um “gap” de comunicação,
mas não de intenção de “restaurar”.
87
ZEHR, Howard. The little book of restorative justice, cit., p. 36-37.
88
Nesse sentido vem o Projeto de Lei n. 2.976/2019, que pretende disciplinar a “justiça restaurativa” no Brasil e que,
no ponto específico da comunidade dos próximos e da possibilidade de conferências familiares como procedi-
mento a ser regulado, informa: “Art. 2º [...]. § 1º É necessária a participação do ofensor e, se possível, da vítima,
familiares e demais envolvidos no fato danoso, e a presença de representantes da comunidade direta ou indire-
tamente prejudicada pelo dano e de um ou mais facilitadores da justiça restaurativa. § 2º Serão admitidos nas
sessões de justiça restaurativa pessoas direta ou indiretamente afetadas pela situação de conflito ou violência e
aquelas que puderem apoiar os envolvidos”. Redação semelhante, embora com menor técnica e abrangência,
consta do Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo
Código de Processo Penal: “Art. 117. Os procedimentos restaurativos consistem em sessões coordenadas, reali-
zadas com a participação dos envolvidos de forma voluntária, das famílias e com a participação da comunidade
para que, a partir da solução obtida, possa ser evitada a recidiva da infração penal, vedada qualquer forma de coação
ou a emissão de intimação judicial para as sessões” (destacamos).
48.  Modelo criminal não violento 679
É, dessa forma, um valor em si da não violência. Por isso não se deve descartar tal meio
indireto de aproximação, conquanto não se transforme em regra ou sirva para se distorcer
ou manipular a vontade da parte representada. Para que tais riscos não ocorram, o diálogo
por meio de intermediário deve se dar entre as partes, mas não entre elas e o facilitador, que
sempre devem ter contato direto entre si, inclusive como forma de verificar se suas vontades
estão sendo mantidas pelo representante nos momentos em que este precisar auxiliar.

48.3 Participantes novos para um também novo modelo criminal: políticas criminais diversas
demandam agências diversas com agentes internos formados e informados em outras
técnicas e habilidades
O marco característico de toda esta Parte III é formular uma teoria que sirga de ar-
cabouço maior e técnico de organização de um sistema processual criminal diverso, pois
lastreado na ideologia da não violência que, por sua vez, exige um outro e diverso espaço
político-criminal de abordagem e resposta do “fenômeno criminal”, que passa a ter como
objeto-problema a “violência envolvente” do crime e não apenas este. Entre aquele sistema
processual e a política criminal da não violência que o informa, explicou-se haver o plano
do modelo criminal, que é movido por outro propósito, metodologia e sentido relacional
entre seus participantes. Todas essas diferenças exigem também diversos participantes
(agências e agentes), assim como serão diversas as suas atividades e atribuições no sistema
processual não violento. As diferenças ontológica e teleológica nascida desde a ideologia,
para chegar no sistema processual precisam de novas agências e agentes.
Como já vimos no estudo histórico empreendido neste trabalho sobre o modelo cri-
minal violento tradicional, a definição de agências e seus agentes, assim como de suas fun-
ções, poderes e competências é determinante não apenas para a perenidade de um novo
sistema, mas da manutenção de suas características essenciais. O estudo empreendido de-
monstrou que tais agências e agentes são formados e informados desde antes de ingressa-
rem no sistema processual, ou seja, são preparados para um novo sistema processual. Logo,
isso ocorre no plano do modelo criminal, onde atuam as escolhas, diretrizes e formação
técnica e prática dos futuros agentes internos – escolhas estas feitas por agentes do poder
instituído com desígnios políticos próprios.89

A preocupação de os poderes instituídos sempre controlarem os agentes e criarem agências específicas para o
89

aparato criminal sempre esteve presente na história processual penal, o que ficou claro em toda a investigação
empreendida na Parte I, supra. Com relação à fase romana, cf. itens 8.1.1, 9.1 e 9.2, supra. Com relação ao alto
medievo, cf. item 14.2. Na Europa continental do Baixo Medievo, já a partir da criação das universidades
(cf. item 17.1, supra), que, dentre outras razões, tinham a função de preparar os operadores do direito que iriam
povoar toda a Europa Ocidental e, com isso, implementar um único modelo criminal, cf. item 20.3, supra, e, no
mesmo período, na Europa insular, cf. item 21 e seus subitens, supra. Nas Inquisições, a escolha e o giro mental
dos agentes internos do modelo criminal foram fatores determinantes para a implementação daquele movimento
político de extirpação da diversidade e dissidência. Sobre isso, cf., em especial, item 24.3.2, supra. Sobre o perfil
diverso dos agentes internos no sistema da common law e, por conta disso, a produção de um diverso sistema
processual de cariz acusatório-adversarial, v. itens 25.1, 25.2 e, em especial, item 25.2.2 e seus subitens, supra. No
movimento anti-iluminista do início do século XIX, no sistema processual penal capitaneado pelo código misto
napoleônico, esse imperador deu um giro sistêmico, inovando para repristinar a inquisitio (inquisitio revoluciona-
da), principalmente pela nomeação de novas ordens de agentes internos para seu processo penal misto. Seu enge-
nho misto, por fim, espraiou-se pela Europa até o início do século XX com os Estados autoritários das duas
Grandes Guerras e, da Itália fascista de Mussolini até o Brasil getulista de 1940, que permanece até nossos dias
com a mesma estrutura de código processual dito “misto”, apesar de estarmos na fase histórica da “inquisitio
humanizada”. Sobre esse caminhar anti-iluminista até a atualidade nacional, cf. item 26 e seus subitens, supra.
680 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Inegavelmente, observando desde sua formação, informação e critérios de escolha,


tudo ocorre já desde antes se ingressar como agente do sistema processual, logo, em um
plano anterior: o do modelo criminal. Essa a razão de se analisar esse importante elemento
estrutural neste instante do trabalho e antes de se ingressar, no próximo item, no sistema
processual criminal não violento e suas diretrizes constitucionais.
O objeto deste subitem é traçar, dentro do nível planificador da teoria ora desenvol-
vida neste trabalho, as características estruturais das agências e as habilidades indispensá-
veis aos seus agentes e o que ambas (características e habilidades) guardam de diferente em
relação àquelas atualmente existentes no modelo criminal tradicional. Para isso, trataremos
em linha sintética nos parágrafos que seguem e de forma a fixar o paradigma hoje existente
e as razões pelas quais a orientação deste estudo e que não ingresse, ao menos como hoje se
encontram, no modelo criminal não violento. Após, em tópicos próprios deste subitem, são
feitas algumas considerações pontuais e gerais para traçar alguns pontos e limites para os
futuros debates científicos e práticos sobre (i) as agências e (ii) os agentes internos mais
afinados ao sistema processual não violento; instrumentos (agências e sistema processual)
pelos quais pessoas operam as diretrizes do modelo criminal.
O modelo criminal tradicional está fundado na cultura da violência e sua diretriz é
persecutório-punitiva.90 Dessa forma, suas agências foram estruturadas para implementar aque-
la diretriz e seus agentes são quase exclusivamente formados no saber jurídico-normativo.
No Brasil, exige-se ao menos o grau de bacharel em ciências jurídicas para prestarem con-
cursos ou se submeterem a exames de ingresso nas diversas carreiras centrais no aparato
criminal (delegado de polícia, integrante da magistratura e do Ministério Público e, tam-
bém, da Defensoria). Além dessas formação e informação recebidas, há, desde o ingresso
em suas funções, todo um preparo para a persecução, o debate e a decisão; ou seja, para a
dinâmica metodológica da inquisitio factis, da interpretatio legis e da iuris dictio. Todos
atos de “autoridade” dos agentes para com os cidadãos e, portanto, embebidos de cariz “pú-
blico”. A causa penal, assim, é um debate jurídico em que as partes diretas e naturais do
conflito criminal (infrator e vítima) ficam alheias até mesmo à linguagem e técnicas digla-
diadas; afinal, elas são feitas e praticadas para iniciados e formam um mundo à parte à rea-
lidade delas.91 Todos os participantes processuais, mesmo os secundários, tais como os auxi-
liares judiciais ou persecutórios, têm seu mister voltado a contribuir para o preparo do
resultado sempre binário: punir ou não punir.
Dessarte, as agências para ele estruturadas e as habilidades técnicas exigidas como
mínimas a seus agentes internos principais são orientadas para o exercício da violência institu-
cionalizada na persecução criminal e na aplicação da pena criminal, quando o caso. Não po-
dem servir, portanto, ao modelo criminal não violento que não aplica a “pena criminal” em sua
“resposta não violenta de conciliação criminal” e se exerce pela dinâmica do diálogo empático.
Ao menos, não pode haver uma passagem ou interpenetração sem filtros e limites. O que não
significa, de modo algum, que seus agentes não sejam capazes de entender um novo modelo.
Todavia, o que impede a fusão ou atuação cruzada de agências entre modelos crimi-
nais distintos é o fato de, ao agirem no modelo criminal não violento, não terem deixado de
ser “autoridades públicas” postas em posição superior à das partes naturais e essencial do

90
Sobre essas considerações, v., por todos, os itens 28, 40 e 43.3, supra.
91
ROSA, Alexandre Morais da. A teoria dos jogos aplicada ao processo penal, cit., Item “1.1.2. O caos do processo
penal e seus sentidos”, p. 25-28.
48.  Modelo criminal não violento 681
modelo não violento (infrator e vítima) e, portanto, romperem com o plano horizontal essen-
cial à realização daquela dinâmica do diálogo, única possível em uma aproximação sem
coerção.92
Além disso, a formação, quase exclusivamente jurídica, não fornece o treina-
mento suficiente e diverso para as técnicas de aproximação de encontro dialogal empá-
tico. Assim como também não foram treinados para serem apenas dinamizadores (“fa-
cilitadores”) desse diálogo, atuando, em regra, por força do poder de que são investidos
(“autoridades públicas”), como determinadores de rumos dentro do espaço da lei for-
mal (rectius, da interpretação que façam da lei para o caso). São, em essência, sujeitos
de saber-poder, e nessa direção desempenham suas atividades profissionais próprias.93
O modelo criminal não violento não tem entre seus agentes “sujeitos de poder-saber”,
pois há consenso sobre os fatos, as partes não debatem, mas dialogam, e o resultado é
construído por elas em forma conciliatória. O agente interno desse modelo não produz
decisão ou age verticalmente, mas apenas facilita o diálogo para a aproximação das
partes naturais do conflito.94
Outra razão, em desfavor da atuação direta e sem qualquer filtragem e preparo das
agências e agentes do modelo criminal tradicional nos procedimentos e espaços do modelo
não violentos, é que, em regra, não integram ou são próximos às comunidades onde os con-
flitos criminais se deram. Isso gera distanciamento deles em relação à realidade de onde
ocorreu o conflito e, assim, também do meio ambiente humano das partes desse conflito.
Os agentes internos, amiúde, são pessoas com diversa realidade socioeconômica e de pa-
drões culturais e comportamentais e, por força da autoridade (saber-poder) de que foram
formados (saber) e estão investidos (poder), foram ensinados que o “certo e errado” vem
fixado na lei, mesmo para situações socioculturais e locais com relações ético-comunitárias
diversas ou mesmo por eles desconhecidas. E aqui, destaque-se, não se discute se o “quid
dicere-imponeret” é melhor ou pior, certo ou errado. A diversidade de “mundos cognoscí-
veis” é uma realidade e é desde ela que se impede o início de construção empática de lado
a lado, pois não se trata mais de impor, mas de aproximar.95

92
Nesse sentido de perda da horizontalidade, o que é crucial para as práticas não violentas, v. SICA, Leonardo.
Justiça restaurativa e mediação penal, cit., Item “1.4.4. O mediador”, p. 69, ao tratar da mediação penal, uma das
espécies dessas práticas.
93
Não se pode esquecer o fato de a origem juspolítica dessa formação de “sujeitos do saber-poder” nos remeter às
universidades canônico-escolásticas (cf. item 17.1, supra) e que foram os centros medievais de formação de agen-
tes para a implementação da inquisitio; metodologia “cientificizada” pela escolástica, cf. item 20 e seus subitens,
supra. Tal origem, investigada e identificada neste trabalho, vem produzindo efeitos até hoje. Mudar o paradigma
do modelo exige, portanto, mudar o paradigma de conhecimento ensinado e que deve ser o instrumental dos novos
agentes no modelo criminal não violento.
94
Para o exame das características e função do “facilitador”, cf. item 48.3.2, infra. Mas, para este ponto, é impor-
tante vermos a Resolução n. 2000/14 da ONU, quando trata de “facilitadores”, em seu item IV, e cujo primeiro
tópico recomenda: “17. Os facilitadores devem ser recrutados em todos os setores da sociedade e geralmente
devem possuir um bom conhecimento das culturas e comunidades locais. Eles devem ser capazes de demonstrar
bom senso e as habilidades interpessoais necessárias para conduzir processos restaurativos” (traduzimos). Na
segunda edição de seu Manual sobre programas de justiça restaurativa, a ONU, por meio de seu escritório espe-
cífico ao tema (UNODC), preceituou: “III. Funcionamento de programas de justiça restaurativa. [...] 19. Os faci-
litadores devem possuir um bom entendimento das culturas e comunidades locais e, se apropriado, receber
treinamento inicial antes de assumir suas funções de facilitação” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 116).
95
Sobre a essencialidade da empatia na solução de conflitos de quaisquer naturezas, v. item 44.4, supra. Sobre a
fundamentalidade da empatia na construção e no exercício da voluntariedade no modelo criminal não violento,
v. item 48.2.1, supra.
682 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Necessárias, portanto, a formação e a informação de novas agências em estruturas e


agentes em novos saberes, habilidades e práticas. Além disso, as matrizes a partir dos sabe-
res criminais dos profissionais atuantes nesse novo modelo criminal também devem se
transformar em face do outro axioma, valores, meios e propósito. Nesse âmbito destacam-se
os saberes sociológicos, psicológicos e relacionais, sendo que o saber jurídico-formal deixa
de ter o tradicional protagonismo.96
A preocupação das novas agências e agentes não é a reconstrução fática do conflito
e a revalidação ou reafirmação da validade da lei, espaços eminentemente jurídicos e a se-
rem atendidos pelo modelo criminal tradicional. Devem partir do conflito criminal ocorrido
e assumido pelo infrator para, desde essa “oportunidade” faticamente imposta, verificar
seus efeitos negativos, dimensionar os traumas e perdas das vítimas e trabalhar na constru-
ção de sua transformação positiva e de relações entre as partes conflitantes e, ainda, se
possível, entre elas, notadamente o infrator, e a comunidade. Não se tratará de “re”construir
o que havia (situação, relação). O que havia já é passado e levou ao crime; “reconstruí-lo”
seria, mesmo logicamente, propiciar as mesmas condições para o ato se repetir. Também
não se trata de “decidir” se é devido punir ou não punir o infrator, pois a pena criminal é
violência em si e, por isso, já não integra esse modelo criminal não violento. Todo enfoque
está em reparar ou eliminar efeitos negativos dos atos criminosos junto à vítima (individual
ou coletiva) e construir relações novas; tudo a partir da oportunidade do conflito criminal.97
Todo o saber para esse intento é bem diverso do tradicionalmente ensinado nas instituições
de ensino jurídico, notadamente na área penal e processual penal (mas não só).
As estruturas das agências e as técnicas dos agentes do novo modelo criminal não
violento não serão constituídas para o debate ou confronto de ideias. Logo, não precisam ser
constituídas em dualidades de estruturas e profissionais (acusação – defesa) para uma con-
frontação adversarial que, ainda, precisa de outra estrutura e agência decisória (judiciária).
As agências do novo modelo criminal não violento serão únicas e formadas por corpo ad-
ministrativo e técnico com todos os seus agentes voltados ao mesmo escopo: recepção do
conflito, abordagem das partes, tentativa de aproximação entre elas e/ou seus representan-
tes e, se possível, procedimentos dialógicos empáticos e não violentos para as partes natu-
rais do conflito, e apenas elas, construírem a resposta conciliatória também não violenta.
Esse resultado deverá reparar a vítima, não dessocializar o infrator, e, se o caso concreto
permitir, modificar a situação comunitária de “violência envolvente” por ação positiva do
infrator e/ou por adaptações ou mudanças de políticas públicas locais a que se poderá chegar
mediante o “processo criminal transformativo”.98
As agências e os agentes internos do modelo criminal tradicional podem contribuir
em muito para o novo modelo criminal não violento sem integrá-lo. Necessário se dizer que

96
Sobre as diferentes habilidades culturais que os facilitadores devem ter para atuar em mediações, v. Mark S.
UMBREIT (The handbook of victim offender mediation, cit., Capítulo 4, “Multicultural implications of victim
offender mediation”, em especial p. 72-76). Sobre nossa adesão à visão teórica das “ciências criminais conjuntas”
composta de todos esses saberes, v. item 2, supra.
97
Nesse sentido vêm a abordagem e a forma de entender e analisar o conflito de John Paul LEDERACH (Transfor-
mação de conflitos. Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012. p. 22-24) e de Wolfgang
DIETRICH (Uma breve introdução à pesquisa sobre paz transracional e transformação elicitiva de conflito. Tra-
dução por Neuza L. R. Vollet. Organicom, São Paulo, v. 15, n. 28, p. 90-104, set. 2018. Item 1).
98
Sobre as respostas, seu conteúdo e extensão, v. item 48.1, supra. Sobre o dúplice vetor do processo criminal trans-
formativo, em especial a sua atuação como instrumento de política pública comunitária, v. item 50.2, infra.
48.  Modelo criminal não violento 683
sem a atuação desses agentes o novo modelo tem poucas chances de ser implementado ou
seu tempo de crescimento será maior.
Se há diferenças formativas, informativas e de força estrutural das agências em que
estão inseridos, nada obriga que cada qual, em seu respectivo modelo criminal, queira e
trabalhe para o mesmo fim: diminuir a violência social. Este pesquisador crê que todos nós
brasileiros estamos cansados e com medo de tanta violência social, pouco importando a
natureza dela. Os agentes internos do modelo criminal não são diferentes. A consciência
de que há um caminho de se lidar com o crime e, por meio dele, atuar-se para transformar
a “violência envolvente” deve ser convidativo a todos. Aqueles agentes internos, podem,
portanto, ajudar nesse projeto que, mais que jurídico, é político-social. Assim, e como este
trabalho sempre defendeu a convivência entre os dois modelos (violento e não violento) em
uma atuação combinada em que cada qual possa contribuir no que de melhor pode trazer
à sociedade, também seus agentes internos, mesmo de dentro de seu modelo criminal
persecutório-punitivo, por meio das agências ali já existentes e sem aumentar seus fluxos
de trabalhos ou atribuições, têm uma função essencial nessa coexistência harmônica.99
Eles devem, cada qual em sua agência, criar e implementar critérios impessoais e racionais
para triar todos os casos que tenham a potencialidade de terem sua resposta pelo modelo
não violento.
Desse modo, em uma atuação conjunta para elaboração de critérios, para controle de
demanda conforme as agências novas estiverem sendo estruturadas e seus agentes aptos a
bem atenderem, podem organizar, com esses agentes internos do modelo não violento, o
fluxo de casos a serem enviados ao modelo não violento.
Essa sugestão já orienta e se aproxima à noção do que se defende nesse trabalho de
autonomia harmônica entre ambos os modelos. As agências e agentes internos de cada
modelo não deve migrar, trabalhar ou influir no outro modelo. Seu treinamento, habilidade
e estrutura organizacional não o torna apto a obter o melhor de si se cruzar a linha e passar
a tentar implementar diálogo no processo penal persecutório-punitivo ou, em sentido con-
trário, estabelecer coerção para forçar vítima e/ou ofensor a dialogarem para chegarem a
uma decisão que aquele agente julgue “a melhor”. Ao fazer isso, não colaborará para

As agências e agentes do modelo criminal persecutório-punitivo não suporta mais sobrecarga e o modelo criminal
99

ora proposto não pode sê-lo. Como foi demonstrado em toda a Parte II, supra, as agências do modelo criminal
tradicional não estão sendo suficientes para lidar com o nível alto e crescente da criminalidade (cf. item 31 e seus
subitens, supra). A violência em nada arrefece; quando não aumenta, pouco varia (Gráficos 7, 8, 9, 11, 12 e 13,
supra). Ilustração dessa espiral ascendente destrutiva está no número de mais de 500.000 mortos (por mortes
violentas intencionais e por causas indeterminadas) no período de nove anos (Gráfico 10, supra), quantia assusta-
doramente superior à de países declaradamente em guerra (Gráfico 5, supra). Também, mesmo com apenas a
parte da criminalidade que lhe chega diariamente (cf. a cifra oculta da criminalidade, item 39.1, supra). A dura
resposta brasileira à violência não é capaz sequer de produzir a sensação de segurança e confiança em seus cida-
dãos. Os números revelam que a estrutura persecutória do país responde, em média, a menos de um quinto dos
conflitos vividos pelos brasileiros – nomeadamente, 19,90%; os demais nem chegam a ser notificados (Gráfico 58,
supra, com dados detalhados na Tabela 1 da Parte II, supra), está colapsado e em atuação disfuncional: apresenta
decréscimos na capacidade de suas agências lidarem com seu passivo criminal. As agências persecutórias brasi-
leiras são cada vez mais exigidas: os MPEs receberam, apenas no ano de 2018, mais de dez milhões de inquéritos
policiais e termos circunstanciados (Gráfico 25, supra; dados de 2020 detalhados nos Gráficos 26 e 27, supra). O
Poder Judiciário, por sua vez, luta para atender aos anseios da sociedade por uma resposta à violência, mas pouco
varia o seu acervo de quase seis milhões de casos pendentes criminais (Gráfico 44, supra). Por fim, o Poder Pú-
blico é severamente encarcerador, com seus mais de 915 mil presos (Gráfico 53, supra) e presídios superlotados
– taxa oficial superior a 178% de ocupação (Gráfico 52, supra), gerando apenas e sempre mais recursos humanos
para o crime organizado, que controla os presídios (v. nota 125 do Capítulo VIII, supra).
684 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

reduzir a violência social e estimulará à submissão do modelo não violento ao modelo tra-
dicional, pois este, com muito mais tradição cultural, estrutura e capilaridade e, ainda,
força atrativa, começará, progressiva e paulatinamente, a dissolver a ideologia central da
não violência em todos seus elementos fundamentais. Como já destacado, a força de atra-
ção da pena criminal é gigantesca, e dela se aproximar é perder suas feições e assumir a
violência institucional daquela.
Isso precisa ser gizado a traço largo e forte: os modelos não se misturam ou se
fundem; não se imiscuem um no outro nem podem atuar pelos mesmos agentes e agên-
cias. Mas seus agentes, de dentro de seu respectivo modelo, podem e devem conversar e
estabelecer critérios e formas para que “os casos criminais” e “as pessoas nele envolvidas”
possam atravessar a ponte que separa esses dois mundos para seus integrantes, mas não para
os cidadãos e comunidade envolvidos no conflito criminal.
Eles atuam de forma independente em espaços, funcionalidade e estruturas objeti-
vas e subjetivas, não obstante possam ter pontos de passagem do “caso concreto” de um a
outro modelo, o que deve ser feito de modo que o caso mude de dinâmica e tratamento por
agências e agentes diversos, mas os modelos não se fundam em uma tentativa de serem um.
Isso será um erro que levará à submissão e, ao final, à supressão dos valores e princípios do
modelo criminal não violento.100

48.3.1 Novas agências e a oportunidade de uma cooperação privado-pública na resposta à


“violência envolvente”
A indefectível necessidade de se criarem agências estruturadas e agentes internos
treinados técnica e praticamente em novas habilidades não demanda apenas tempo e vonta-
de política, mas também apresenta inevitáveis custos. Esse ponto deve ser tido como invia-
bilizado pelo levantamento dos já altíssimo custos do aparato criminal persecutório-punitivo
já realizados na Parte II deste trabalho.101 Muito ao contrário, esta também foi uma preocu-
pação sempre presente a este pesquisador: como viabilizar financeiramente qualquer novo
custo com uma resposta ao “ fenômeno criminal”?

100
Cf. item 46.3.2, supra. Daniel ACHUTTI (Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um
novo modelo de administração de conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014, notadamente em seu Capítulo 3),
tratando da “justiça restaurativa”, expõe, usando exatamente como pano de fundo a Lei n. 9.099/95 e seu insuces-
so em face de seu projeto e alcance iniciais, que: “Para que a adoção da justiça restaurativa seja possível no
sistema de justiça criminal brasileiro, contudo, muito mais do que uma reforma legislativa, toda uma cultura
jurídica deverá ser repensada, de forma a não aplacar ou colonizar o potencial da justiça restaurativa e a sua
necessária distinção em relação ao sistema tradicional” (p. 129). Após, relaciona todas as barreiras a serem su-
plantadas “dentro” do modelo criminal para que este mudasse na direção da “justiça restaurativa”. Por toda a
análise histórica, com a devida vênia ao autor citado, dele divergimos. Não é possível mudar o modelo criminal
persecutório-punitivo; séculos de história mostraram isso. Para além da expressão “colonizar”, utilizada no excer-
to do autor, parece-nos mais um processo fagocitário, em que há mudança de natureza do objeto dito “coloniza-
do”. Sobre nossas considerações já conclusivas dessa necessária separação e coexistência de ambos os modelos
em espaços distintos de atuação político-criminal, cf. item 46.3 e seus subitens, supra.
101
Em quantias sempre ascendentes, estima-se que o Poder Público dirigiu, apenas em 2020, valor estimado apro-
ximadamente em R$ 150 bilhões para manter toda essa estrutura (Gráfico 57, supra), em muito superior àquele
destinado a outros serviços essenciais, como Trabalho, Transporte, Agricultura, Ciência e Tecnologia, e Indústria
(Gráfico 24, supra). Note-se que toda essa despesa não se reflete na qualidade da estrutura proporcionada, já que,
em 2016, apenas 12,86% das delegacias de Polícia Civil tinham número suficiente de funcionários (Gráfico 28,
supra; quanto à defasagem nos recursos humanos das agências policiais para números de 2019, cf. item 36.2, supra)
e apenas pouco mais de 30% delas apresentava estado de conservação das celas bom ou ótimo (Gráfico 30, supra; para
números de 2019, v. Gráfico 31, supra).
48.  Modelo criminal não violento 685
Se já se asseverou que investir mais recursos no modelo criminal violento tradicional
drena possibilidades de investimentos públicos em necessidades essenciais, tais como edu-
cação, alimentação e saúde públicas, de parcela significativa da população, investir em no-
vas estruturas de agências e treinamento e preparação de novos agentes, mesmo para o
modelo criminal não violento, também drenaria. Isso poderia levar a um falso dilema; e
como todo falso dilema, conduz as pessoas a se perderem em infindáveis discussões (apai-
xonantes e traumáticas) sobre qual seria o mais útil à sociedade: o modelo criminal violento
ou o não violento? Em qual investir os parquíssimos recursos públicos?
Este trabalho, em nada defende a ideia de “privatização” da “justiça criminal” ou de
passar a “resolução de conflitos” (criminais ou não) à esfera privada.102 Isso deve ficar for-
temente marcado.
O que se propõe é avaliar, se no atual estágio da sociedade, não estamos prontos para
uma nova e positiva relação a se constituir entre o “privado” e o “público”; ambos também
interessados em ter um Brasil menos violento.103
Um bom encaminhamento de debate, e que está em consonância com as premissas
deste estudo, é que a discussão não deve existir em termos (sempre culturalmente trazi-
dos) de submissão do privado ao público ou vice-versa.104 A resposta que parece encami-
nhar a uma direção construtiva não se dá pela via da posição “ou/ou”, mas da posição de
interligação cooperativa entre modelos diferentes: “com” mesmo objetivo; a redução da
violência social.
Para dar base a tal posição, faz-se referência à experiências atuais, vividas e assis-
tidas por todos os habitantes do planeta durante a pandemia de Covid-19105 e no lançamen-
to da SpaceX106, que ainda não foram totalmente analisadas pelos sociólogos, filósofos e

102
Para a crítica à ideia de que a “justiça restaurativa” é uma justiça de vingança privada, ou mesmo a privatização
do direito penal, com o que estamos de acordo, v. GOMES PINTO, Renato Sócrates. Justiça restaurativa é possí-
vel no Brasil? In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.). Justiça restaura-
tiva. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005.
p. 19-39, em especial p. 27-29.
103
Sobre as perdas humanas já tratamos notas acima (cf. nota 99 deste Capítulo). Sobre os custos que essas vidas
geram em perdas econômicas a nosso país, já ressaltamos as centenas de bilhões de reais gastos a cada ano, sem-
pre ascendentes, para perpetuação de nosso modelo criminal disfuncional (cf., por todos, item 38.3, notadamente
seu Gráfico 57, supra).
104
Essa lógica de inserção de um em outro ou de “submissão” ou, ainda, de continente e conteúdo, surge, em certo
grau, nos debates restaurativos. Sobre a “justiça restaurativa” como um sistema cujo foco está não apenas na di-
mensão pública, mas também privada dos envolvidos e, ainda, comunitária, v. ZEHR, Howard. The little book of
restorative justice, cit., p. 19-20. Para uma nova abordagem do problema criminal, mas ainda inserindo a “justiça
restaurativa” no interior da justiça criminal – com o que este trabalho não concorda −, em um espaço privado
dentro de um ambiente maior e público, v. O’MAHONY, David; DOAK, Jonathan. Reimagining restorative jus-
tice. Oxford: Hart Publishing, 2017. Capítulo 2, itens III e IV. No sentido de a “justiça restaurativa” constituir um
ambiente de atividade de atuação da sociedade civil, nunca independente do Estado, v. OXHORN, Philip; SLAKMON,
Catherine. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democrática: a construção da sociedade civil através da justi-
ça restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato; GOMES PINTO, Renato (org.). Justiça
restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD,
2005. p. 187-210.
105
Sobre a necessidade de uma união da comunidade internacional em cooperação globalizada e coesa, com forças
inclusive públicas e privadas, para vencermos o desafio de uma pandemia viral, v. HARARI, Yuval Noah. In the
battle against coronavirus, humanity lacks leadership. Time, New York, 15 mar. 2020. Disponível em: https://time.
com/5803225/yuval-noah-harari-coronavirus-humanity-leadership/. Acesso em: 23 dez. 2021.
106
A corrida espacial na época da Guerra Fria era uma das armas estratégicas para a demonstração de poderio mili-
tar e tecnológico. O ingresso do setor privado nesse espaço militar de política internacional era impensável. Todo
o sigilo e todos os recursos eram dominados pelos Estados. O tempo passou e, no pandêmico de 2020, os EUA,
após associar seu domínio tecnológico na engenharia espacial, até então sigiloso, a uma empresa privada, com sua
686 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

cientistas políticos. Pode-se afirmar que, não fossem a cooperação e a integração do (poder)
público com o (poder) privado e a associação de esforços e recursos de ambas as iniciativas,
certamente muitos mais teriam morrido, e a saída da fase viral ainda seria uma promessa, e
a NASA ainda não teria retomado seu projeto espacial após a aposentadoria do modelo de
ônibus-espacial. O Covid-19, entre tantas infelicidades que trouxe, pode ajudar-nos a ver
que todos estamos na mesma nau, e, ou chegamos todos juntos ao destino de uma vida mais
harmoniosa e menos violenta, ou ninguém chegará pleno (ou há vacina para todos, ou have-
rá vírus para todos).
O crime, a depender de sua construção legal ou teórica, pode ter como escopo pro-
teger um bem jurídico privado ou apto a ser individualizado, ou público e “impessoal”, na
medida em que atinge um número maior e/ou indeterminado de pessoas.107 Contudo, a vio-
lência emergida do conflito é imposta a todos, atingindo os mais próximos a ela de forma
mais forte e violenta e a outros, mais afastados, de modo mediato ou, ainda, meramente
reflexo. A violência praticada em um ponto do tecido social, direta ou indiretamente, atinge
a todos: poderes públicos e entidades privadas; o individual e o coletivo; todos, enfim.
A violência é, pois, o inimigo comum, para o qual todos os esforços devem convergir e não
se sobreporem ou se anularem.
No modelo criminal da não violência, atingir essa perspectiva integrativa e colabo-
rativa entre o público e o privado fica muito mais fácil na medida em que, inexistindo “pena
criminal”, a resposta conciliatória passa a ser um conjunto de possibilidades muito mais
amplo e profícuo para o estabelecimento de novas relações harmônicas e saudáveis.108 So-
cialmente útil e relevante tanto para as pessoas (privadas) quanto para as instituições (pú-
blicas) envolvidas, que ganham com a redução ou a eliminação da violência social. Isso sem
mais violência institucional e, portanto, também sem mais custos (altíssimos, relembre-
mos109) e perdas humanas e sociais com encarceramentos e estigmas que, em muito, tor-
nam-se novos fatores criminógenos.110
Sempre caberá ao Poder Público a elaboração de normativas de diversas naturezas;
a definição de estratégias junto às outras políticas públicas (sempre diretivamente suas),
assim como alterá-las para melhor atender à comunidade na medida em que poderá reduzir
ou eliminar os fatores criminógenos externos às partes conflitantes. Também lhe cabe man-
ter o modelo criminal persecutório-punitivo quando o não violento não for o escolhido ou
se mostrar ineficaz. Por fim, ainda é ele que possui a melhor rede de atendimento e centra-

ajuda voltou a fazer lançamentos aeroespaciais. Para tanto, foi fundamental que a NASA, agência militar aeroes-
pacial e estratégica, se unisse à SpaceX, empresa privada fundada em 2002, a fim de que o intento fosse alcança-
do com sucesso (cf. CRUZ, Bruna Souza; UCHINAKA, Fabiana. Nova fase na corrida espacial: SpaceX e NASA
lançam foguete com astronautas. UOL, Caderno Tilt, 30 maio 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/
noticias/redacao/2020/05/30/spacex-e-nasa-lancam-foguete-com-astronautas.htm. Acesso em: 23 dez. 2021).
107
Para a “justiça restaurativa” como uma interface entre a justiça civil e a justiça criminal, com ênfase nos procedi-
mentos e resultados para lhe dar peculiaridade, v. SHAPLAND, Joanna. Restorative justice and criminal justice:
just responses to crime? In: VON HIRSH, Andrew et al. (org.). Restorative justice and criminal justice: competing
or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. Item II.
108
Cf. item 48.1, supra.
109
Sempre, e mais uma vez, tenhamos em conta as enormes perdas humanas, sociais e econômicas das vidas e da
mais de centena de bilhões de reais/ano que se gasta com a estrutura e agências ligados ao aparato criminal.
Cf. itens 33, Gráfico 22, 36.4, Gráfico 38, 37.2, Gráfico 50, 38.2, Gráfico 56, e 40, supra, e que foram sintetizados,
visualmente, no Gráfico 57 da Parte II, supra.
110
Sobre essa espiral ascendente da violência (social) causada pela disfuncionalidade do aparato criminal atual do
Brasil, v. item 40, supra.
48.  Modelo criminal não violento 687
lização das ocorrências criminais e que, ao menos nos primeiros momentos do modelo
criminal não violento, dela dependerá.111 Tudo isso, que foi citado apenas exemplificativa-
mente, dá ao Poder Público um papel relevante na implementação e estruturação do modelo
não violento. Esse papel relevante, porém, não lhe garante exclusividade e preponderância
em todas as áreas do modelo.
Há espaços peculiares à iniciativa privada, tais como estruturar e manter as novas
agências, com fornecimento de agentes, seus treinamentos e locais e equipamentos próprios a
serem usados nas áreas administrativa e de planejamento. Poderá propiciar uma rede de locais
de encontros para procedimentos não violentos em estabelecimentos privados (p. ex., escolas,
empresas, centros comerciais); aos moldes do ocorrido em várias localidades para a vacinação
do Covid-19. Além disso, e principalmente, a participação privada será fundamental na cons-
trução das respostas acordadas pelas partes do conflito. Isso porque os representantes comu-
nitários, na função de facilitadores, por serem próximos da “comunidade afetada”112 pela vio-
lência, poderão melhor compreender as razões e necessidades básicas dos envolvidos no
conflito. Como os locais para os encontros devem ser ambientes seguros e apropriados à
partes do conflito, melhor que sejam o mais próximo de suas comunidades a fim de que as
partes se sintam mais à vontade na construção empática do diálogo.113 Para isso, seu feitio e
estrutura devem ser desenhados pela aproximação, que, sem dúvida, pode começar com in-
vestimentos privados, mas deverão ser mantidos e ocupados por representantes locais; ou
mesmo serem espaços já privados e destinados também a esse fim.114 Isso fará com que inicia-
tivas privadas de pessoa e de empresas, ou mesmo da comunidade, criem e mantenham am-
bientes diversos dos sempre circunspectos, austeros e distantes que caracterizam os fóruns e
Tribunais, as delegacias ou escritórios das agências persecutórias ou defensivas. Além do fato
de guardarem ou despertarem uma percepção de verticalização hierárquica das agências do
modelo criminal tradicional (persecutórias, judiciais ou mesmo de defesa pública ou privada),
o que é nocivo à horizontalidade do modelo criminal não violento.
No atual estágio social, não parece haver dúvida se instituições privadas ou mesmo
empresas teriam interesse em investir dinheiro e se aproximar de tais propostas novas de
resposta “ao crime”. Isso parece também ter que ser repensado em nossos dias em favor de
uma resposta afirmativa. As empresas hoje compreendem, por força do apelo de mercado
que isso significa, que os recursos investidos em meio Ambiente, no meio Social em que
estão e no gerenciamento interno de integridade (Governança) formam a política de atuação
e de investimentos no que se convencionou denominar pela sigla “ASG” em português; em
idioma inglês “ESG” (environmental, social and governance).115 O termo ESG apareceu

111
É intuitivo que as agências e os agentes precisem receber informações sobre ocorrências de conflitos criminais e,
ainda, seus detalhes para a atuação das agências. Isso deverá ser efetivado por meio de agências próprias que,
segundo critérios predefinidos, farão os encaminhamentos a um ou outro modelo criminal. Sobre a necessidade
de critério de escolha quanto ao que integra ou é canalizado especificamente à mediação, assim como a necessi-
dade das informações do caso para as primeiras abordagens dos “mediadores”, v. UMBREIT, Mark S. The hand-
book of victim offender mediation, cit., Capítulo 3, “Mediation process”, p. 35-36.
112
Sobre os conceitos de “comunidade afetada” e “comunidades dos próximos”, v. item 48.3.3, infra, última parte.
113
Sobre empatia e diálogo como, respectivamente, abordagem e método não violentos para os conflitos em geral,
v. itens 44.4 e 48.2.2, supra.
114
Sobre a importância das estruturas das agências e lugares para os encontros restaurativos e, ainda, a participação
comunitária como forma relevante de participação privada na contribuição da resposta ao conflito, v. AMSTUTZ,
Lorraine Stutzman. Encontros vítima-ofensor, cit., p. 45-47.
115
“O A em ASG [ESG], critério ambiental, inclui a energia que sua empresa utiliza e despende, os recursos que
necessita e as consequências resultantes para os seres vivos. Além disso, o E abrange a emissão de carbono e as
688 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

pela primeira vez em um relatório das Nações Unidas (Who Cares Wins: Connecting Finan-
cial Markets to a Changing World).116 Era um apelo para desenvolvimento de melhor inte-
gração do desenvolvimento econômico com questões ambientais, sociais e de governança
corporativa. Governo (estatal) e governança de empresas passam a ser não opostos, mas
complementares, de forma que governos nacionais e locais, bem como atores privados, têm
papéis variados a cumprir e que, nos limites deste trabalho, pode ser comum e dirigido à
redução da violência social.117 A consideração dessas questões gradativamente não é vista
mais como um adicional à companhia, mas como uma redefinição mais essencial e integral
de suas estruturas.118 Como consequência, esses fatores estão cada vez mais interligados
com questões envolvendo o mercado de controle corporativo, ainda mais dentro da discussão
de formação de valor de curto e de longo prazo.119 Apesar de não serem diretamente financei-
ros, esses fatores têm sido ligados a melhores práticas da empresa e, por decorrência, à sua

mudanças climáticas. Toda empresa usa energia e recursos; toda empresa afeta e é afetada pelo meio ambiente.
O S, critério social, aborda os relacionamentos que sua empresa tem e a reputação que mantem com as pessoas
e instituições nas comunidades onde desenvolve suas atividades. O S inclui relações de trabalho e diversidade e
inclusão. Toda empresa opera dentro de uma sociedade mais ampla e diversa. G, governança, é a o sistema
interno de práticas, controles e procedimentos que sua empresa adota a fim de se governar, tomar decisões efe-
tivas, cumprir [‘comply’] a lei, e atender as necessidades dos interessados [‘stakeholders’]. Toda empresa, que é
em si uma criação legal, requere governança” (HENISZ, Witold; KOLLER, Tim; NUTTALL, Robin. Five ways
that ESG creates value. McKinsey Quarterly, online, nov. 2019. p. 1, traduzimos, destacamos e mantivemos em
colchetes as expressões originais).
116
UNITED NATIONS; SWISS FEDERAL DEPARTMENT OF FOREIGN AFFAIRS. Who cares wins: connecting
financial markets to a changing world. [s.l.]: IFC, 2004. p. ii. Para uma breve história do termo “ESG”, v. ECCLES,
Robert G.; LEE, Linda-Eling; STROEHLE, Judith C. The social origins of ESG: an analysis of Innovest and KLD.
Organization & Environment, online, v. 33, n. 4, p. 575-596, 2020. p. 576-577.
117
“A governança ambiental global foi definida como ‘as normas, regras, leis, expectativas e estruturas estabeleci-
das para guiar comportamentos de acordo com uma série de propósitos públicos’. Ao invés de ver o governo e a
governança necessariamente como opostos, essa interpretação sugere um continuum de sistemas de governança,
nos quais o Estado, governos subnacionais e locais e atores privados têm papeis variados. Nesse sentido, a go-
vernança ‘se tornou um dos temas centrais na política ambiental global’” (REI, Fernando Cardozo Fernandes.
International environmental law and global environmental governance: southern influences. Veredas do direito,
Belo Horizonte, v. 15, n. 32, p. 143-166, maio/ago. 2018. p. 152, traduzimos).
118
“Nos últimos anos, houve um acentuado incremento no interesse em questões de cidadania corporativa. Mais e
mais pessoas, indivíduos e grupos, estão cada vez mais exigindo que empresas sejam mais econômica, ambien-
tal e socialmente sustentáveis; responsáveis e transparentes; inclusivas, éticas e mais igualitárias. Essas são
algumas das principais questões dentro das discussões sobre cidadania corporativa, que se desenvolveram des-
de a década de 1940, e que ganharam força novamente no fim da década de 1990. Está ficando cada vez mais
claro que o social (e ambiental) deve ser incorporado, não como um aditivo às atividades de uma empresa, mas
como uma essencial, integral e mais social redefinição daquela empresa, a fim de melhor refletir a economia
pós-industrial em rápida mutação na qual nós operamos atualmente” (BIRCH, David. Social, economic and
environmental capital: corporate citizenship in a new economy. Alternative Law Journal, Melbourne, v. 27, n. 1,
p. 3-6, fev. 2002. p. 3, traduzimos e destacamos).
119
“Na busca por valores de ações de longo prazo e na procura por retornos financeiros positivos, essas considera-
ções e abordagem em desenvolvimento têm complicado a já complexa dinâmica entre gerentes de empresas, in-
vestidores institucionais e ativista interessado [‘shareholder activist’]. As grandes parcelas de participação dos
investidores nas ações da companhia normalmente servem de baluartes operacionais para os ativistas interes-
sados. Eles podem ajustar suas influências e determinar se as campanhas de ativistas serão bem ou malsucedi-
das. Como resultado, as questões sociais em governança são agora entrelaçadas com matérias envolvendo o
mercado de controle corporativo, especialmente no que tange ao debate acerca de valor longo ou curto prazo.
Como consequência, gerentes e ativistas agora devem rotineiramente satisfazer os investidores, priorizando as
questões ESG nas suas deliberações e estratégias. Poucas empresas têm sido imunes a questões envolvendo ESG.
Recentemente, a Apple, a Amazon e a ExxonMobil têm sido alvo de críticas. As empresas devem agora considerar
o ESG como central para as operações empresariais em andamento e para os grupos interessados dentro dos
mercados” (KRAIK, Alexander T. Environmental, social and governance issues: an altered shareholder activist
paradigm. Vermont Law Review, South Royalton, v. 44, n. 3, p. 493-552, 2020. p. 495, traduzimos, destacamos e
mantivemos expressão original em colchetes).
48.  Modelo criminal não violento 689
maior competitividade, com valor mais sustentável e de longo prazo.120 Por todos esses as-
pectos, fácil perceber que haverá espaço para construção de interesses das empresas no
modelo não violento na sua área de atuação “S”, de social.
Pela perspectiva da prevalência ou predominância, o ambiente não deve ser nem
público nem privado; nenhum predomina. Deve haver nova relação, para a qual indagar
sobre possível superposição deixar de ser uma preocupação de seus integrantes.121 O espaço
deve ser de cooperação e preocupação público-privadas. Para atingir a visão cooperativa,
não se deve buscar a quem pertença cada parte desse novo espaço, definindo-se áreas de
mando ou prerrogativas. A pergunta orientadora é: com o que cada setor (público e privado)
pode contribuir para o resultado comum da redução/eliminação da violência (criminal ou
social)? Novamente a resposta cooperativa deve ter como norte não uma necessária vertica-
lização, mas o objetivo maior do modelo não violento e que é seu objeto-problema: a redu-
ção ou eliminação da “violência envolvente”, em cada um de seus espaços de ocorrência.122
A construção dessa base cooperativa entre os entes públicos e privados deve dar-se
no plano do modelo criminal não violento, pois é a partir dele que se organiza a atuação para
todos os instrumentos e agentes dos seus sistemas (material e processual).
Por fim, não se pode negar, nas agências que consolidarão os resultados dos proce-
dimentos não violentos no “processo criminal transformativo”, que seus agentes tenham
atuação de finalidade mediatamente pública, porquanto serão responsáveis pela coleta de
informações advindas dos resultados das práticas para a integração com outros órgãos de
políticas públicas na (re)programação conjunta de atuações locais.
A sugestão de início de discussão para a implementação dessas agências e do treina-
mento dos agentes é que a necessária relação entre o público e o privado não se dê mais pelo
critério de prevalência constitutiva ou predominância de poder, mas pela interação funcio-
nal e teleológica voltada à melhor consecução do resultado e seus efeitos mediatos e imedia-
tos de redução da violência social.

120
“A adesão das empresas às práticas de sustentabilidade tem sido direcionada pelo interesse de garantir com-
petitividade nos novos modelos de mercado, responder à valorização do consumo consciente e à necessidade
de boas práticas com a sociedade e com o relacionamento governamental e, ainda, para se adequar ao cenário
econômico, ao perfil dos investidores e em busca de resultados sustentáveis de longo prazo. O conceito ASG é
utilizado para definir as práticas corporativas e de investimento que consideram três dimensões de sustenta-
bilidade. A sigla vem do inglês “Environmental, Social and Governance” (Ambiental, Social e Governança, em
português). Dessa forma, serve para nortear as melhores práticas em negócios, observando as dimensões am-
bientais, sociais e de governança. Essas práticas visam aumentar oportunidades, obter vantagem competitiva na
imagem e na reputação da empresa, mitigar riscos e gerar valor no longo prazo. Empresas com práticas ASG
apresentam, potencialmente, menor risco aos fatores de impacto, como, por exemplo, fraudes, escândalos,
processos trabalhistas e inadequações legais, por possuírem maior controle, governança e seguirem protoco-
los mais rígidos de atuação. As práticas ASG são utilizadas para materializar e mensurar o desempenho das
empresas considerando impactos positivos e negativos dentro da nova tendência de valores que os consumidores
desenvolveram. Nesse sentido, as práticas sustentáveis que antes eram vistas como fatores não financeiros
passaram a se enquadrar como materiais e a integrar os itens de avaliação de desempenho, uma vez que a
adoção das melhores práticas ASG contribui para aumento de receita, redução de custos, mitigação de riscos
e aumento de produtividade, consequentemente elevando a eficiência da empresa e contribuindo com o plane-
ta e com a sociedade” (SANTOS, Daniel José Ferraz dos et al. Proposta de regulação para classificação de fundos
de investimento sob a temática ASG/ESG (Ambiental, Social e Governança). Boletim Economia Empírica, Brasí-
lia, v. 2, n. 8, p. 63-69, 2021. p. 64, destacamos).
121
No sentido de a “justiça restaurativa” constituir um ambiente de atividade de atuação da sociedade civil, nunca
independente do Estado, v. OXHORN, Philip; SLAKMON, Catherine. Micro-justiça, desigualdade e cidadania
democrática: a construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil, cit., p. 189.
122
Sobre a “violência envolvente” ser o novo objeto-problema nesse outro espaço da política criminal, e não o binô-
mio “crime-pena”, como ocorre no modelo criminal tradicional, v. item 44.2, supra.
690 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

48.3.2  Do terceiro “facilitador” do diálogo


Trata-se, aqui, sob o termo genérico de “facilitador”123, o terceiro ao conflito crimi-
nal que atue nos vários procedimentos não violentos de abordagem de sua “violência envol-
vente” para viabilizar a obtenção da resposta conciliatória pelas partes naturais daquele
conflito.124 Tal termo traduz muito bem, e de modo geral a quaisquer procedimentos, ritos
e/ou práticas, a sua função primordial de promover a aproximação das pessoas para e pelo
diálogo empático e, a partir desse ponto, estimular a dinâmica, atenta e respeitosa entre as
partes para, juntas, construírem aquela resposta.125 Ele deve agir de maneira próxima, mas
sem interferir a favor de uma ou outra, agindo com uma neutralidade ativa, evitando pesso-
alidades ou parcialidades no trato das partes no conflito, pouco importando sua posição
específica nele (vítima ou ofensor).126
O facilitador é o terceiro do conflito, assim como o são os sujeitos do saber-poder do
modelo tradicional, em especial o juiz, mas, diferentemente deste, não está presente para
julgar, decidir ou impor sua vontade e nem mesmo seu conceito de “certo ou errado”. Não
se pode perder de vista, neste ponto da impossibilidade de “julgamento”127, o que acima foi
dito sobre traumas.128
O facilitador, se não estiver treinado e atento para as peculiaridades de sua função,
poderá ser enredado pelas violências narradas e descritas pelas partes em suas falas.129

123
Utiliza-se neste trabalho o termo “facilitador”, por ele melhor exprimir a ideia central do que esse terceiro ao
conflito deve fazer. Nessa escolha não há preferência pelas práticas ou “processo restaurativo”, nos quais o termo
foi cunhado e parece ter domínio. Veja-se, por exemplo, que a ONU, em sua Resolução n. 1996/26, na busca de
reduzir os crimes e dar a vítima e ofensor um tratamento diferenciado da “justiça criminal” tradicional, coloca, já
no nome daquela orientação, em condições de igualdade a mediação e a “justiça restaurativa”: “Desenvolvimento
e implementação de medidas de mediações e justiça restaurativa na justiça criminal”. Todas as diretrizes tiradas
para a elaboração desta teoria que ora se desenvolve para se estabelecer um “processo criminal transformativo”
inserido em um novo modelo criminal não violento, também foram hauridas de estudos de, por exemplo, media-
ção penal. A diretriz do trabalho é, portanto, identificar, harmonizar e reunir os conhecimentos necessários para
uma primeira abordagem ampla e organizada; tão “ampla” quanto possível e indicado para uma “teoria”.
124
Utiliza-se, como o faz a ONU, em sua Resolução n. 2002/12, no item dos “Princípios básicos para utilização de
programas de justiça restaurativa em matéria criminal”, o termo “facilitador”, como está no tópico 5 do item
destinado à “Terminologia”: “5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e impar-
cial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo”. Para considerações do facili-
tador, empatia e diálogo, na teoria não violenta do conflito, cf. item 44.4, supra.
125
VAN NESS, Daniel W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring justice, cit., p. 91-92.
126
Na Resolução n. 2000/14, da ONU, sobre “Princípios básicos no uso de programas de justiça restaurativa em
problemas criminais”, preceitua: “IV. Facilitadores. [...] 18. Os facilitadores devem desempenhar suas funções de
maneira imparcial, com base nos fatos do caso e nas necessidades e desejos das partes. Devem sempre respeitar
a dignidade das partes e garantir que as partes ajam com respeito umas pelas outras” (traduzimos).
127
Sobre a impossibilidade de o “mediador” fazer juízos de valor, v. NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel. Origen y funda-
mentos criminológicos de la mediación, cit., p. 394, quando trata das características do “terceiro” na mediação
penal.
128
Cf. item 44.3, supra.
129
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 63, Capítulo 8, “Desenvolver nossas capacidades”.
Como referência de tempo e forma de preparação de um “mediador”, Miguel Ángel NÚÑEZ PAZ (Origen y
fundamentos criminológicos de la mediación, cit., p. 395-396) indica 180 horas de ensino teórico, completadas
com um mínimo de 40 horas de prática junto a mediadores mais experientes. Sobre a necessidade – diríamos,
imprescindibilidade – de aquisição de técnica e práticas específicas pelo facilitador, o Manual sobre programas
de justiça restaurativa, em sua segunda edição de 2020 elaborada pelo UNODC e vertida para o idioma portu-
guês em 2021, preceitua em seu item 2, denominado “Visão global dos padrões e normas, incluindo os Princípios
Básicos Sobre o Uso de Programas de Justiça Restaurativa”: “2.5 Diretrizes e padrões nacionais. [...] Os Prin-
cípios Básicos recomendam que os Estados-Membros considerem o estabelecimento de diretrizes e normas, com
autoridade legislativa se necessário, para reger o uso de programas de justiça restaurativa. Os Princípios Bá-
sicos estipulam, ainda (no parágrafo 12), que tais diretrizes e normas devem respeitar os princípios básicos
48.  Modelo criminal não violento 691
Não pode perder de vista a sua qualidade de terceiro e tornar-se vítima da violência pul-
sante no conflito, em suas falas pelas suas partes e dentro delas mesmas, sofrendo o cha-
mado “trauma secundário” ou “trauma vicário”, que é aquele experienciado “por agentes
de resgate, socorristas e outros profissionais que atendem catástrofes e, de imediato, às
vítimas diretas. [...] Os efeitos do trauma secundário são similares àqueles experimenta-
dos por vítimas e sobreviventes”.130 A empatia do facilitador não é se identificar com uma
parte, julgar a outra e apresentar “sua” visão da violência e “sua” resposta conforme “sua”
vivência, “seu” conhecimento, “seus” valores ou perspectivas de “sua” vida. Não lhe cabe
“julgar”, pois não pode se manifestar sobre quem ou o que lhe pareça certo ou errado no
conflito.131 Sua importante atribuição é criar um ambiente favorável de diálogo entre as
partes para, aproximando-as, compreenderem-se e criarem pontos comuns para a cons-
trução de resposta “delas”.132
Por essa razão, a empatia por parte do facilitador também não é se solidarizar, acon-
selhar ou indicar o resultado que a ele pareça “o melhor” ou mesmo o “razoável” ou, ainda,
consolar qualquer parte ou pessoa colateralmente envolvida na violência (p. ex., os pais ou
filhos de alguma das partes). Todas essas condutas não são empatia, mas formas sutis de
julgamento e, portanto, de perda de equidistância e de sua função, a qual consiste em garan-
tir o diálogo e promovê-lo sem que ocorram mais violências, com respeito e encaminhado à
compreensão recíproca das partes.133 Primeira compreensão esta que é passo essencial e
anterior para se chegar ao consenso que, por sua vez, viabiliza a resposta positiva e a ser
implementada de modo construtivo e voluntário.134
O facilitador não terá empatia pelo conflito e falhará em promover a transformação
da violência se assumir a posição de juiz, conselheiro ou orientador da “melhor” resposta;
mesmo se, para isso, bem-intencionadamente, utilizar-se de (“suas”) experiências (profis-
sionais) anteriores. Essas sempre serão desse terceiro ou de outrem, não das partes. A res-
posta deixará de ser dessas, no sentido de construídas, ajustadas, individualizadas e, portan-
to, com elas autocomprometidas. Se essas respostas não forem construídas pelas partes,

estabelecidos naquele instrumento e abranger, entre outros: [...] (c) As qualificações, formação e avaliação dos
facilitadores;” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas
de justiça restaurativa, cit., p. 20).
130
YODER, Carolyn. A cura do trauma: quando a violência ataca e a segurança comunitária é ameaçada. Tradução
por Luís Bravo. São Paulo: Palas Athena, 2018. p. 19.
131
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 12. Ambos os pesquisadores, coordena-
dores de diálogos com vasta experiência, são categóricos ao afirmar: “Embora idealmente o diálogo leve à ação,
organizadores e facilitadores não podem comandar a ação. O objetivo do diálogo é criar maior compreensão,
que por sua vez poderá motivar os participantes a tomarem medidas, pessoal e coletivamente. É importante que
os participantes ‘comprem’ por si mesmos a ideia de agir, ao invés de se sentirem moralmente coibidos a fazê-lo”.
Por essas razões entendemos correto o dispositivo que regula a profissão e atividade do facilitador no Projeto de
Lei n. 2.976/2019, de autoria do Deputado Paulo TEIXEIRA e que visa instaurar a “justiça restaurativa” no Brasil:
“Art. 7º É vedado ao facilitador da justiça restaurativa: I – impor determinada solução, antecipar decisão judi-
cial, julgar, aconselhar ou diagnosticar durante as sessões; [...]”.
132
Nesse sentido, v. Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal: “Art. 117. [...] § 2º O facilitador restaurativo é responsável por criar ambien-
te propício para que os envolvidos promovam a pactuação da reparação do dano e das medidas necessárias para
que não haja recidiva do conflito, mediante atendimento das necessidades dos participantes das sessões restau-
rativas” (destacamos).
133
Sobre a neutralidade, como uma ideia-síntese da imparcialidade e impessoalidade que devem nortear o processo
criminal não violento, cf. item 49.1.4, infra.
134
Nesse sentido, v. ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamen-
tos pessoais e profissionais. Tradução por Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006. p. 136-140.
692 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

terão baixa adesão e alto risco de inexecução voluntária. Quanto mais consensual o resulta-
do alcançado, maior o comprometimento e a probabilidade de as partes a cumprirem, até
para além das expectativas iniciais.135
Dos envolvidos no conflito, ao contrário, o esperado é, ao menos no momento inicial
do diálogo, julgarem o outro e a si mesmos, o que é natural.136 Transformar isso em compreen­
são da perspectiva, experiências e valores do outro (diversidade “lato sensu”) é uma das
funções do facilitador para despertar-lhes a empatia recíproca, passo imprescindível para
compreenderem, que consiste, por sua vez, na antessala do consenso.137
A abordagem empática do facilitador não parte ou deve ter como princípio qualquer
religião por algumas razões. A primeira é que sua eventual religião pode não ser a das par-
tes, as quais, inclusive, podem não ter religiosidade alguma ou mesmo ter diversidade reli-
giosa; portanto, abordagem por essa perspectiva pode mais afastá-las do que aproximá-las
do diálogo. A segunda é que toda religião possui dogmas que, quando próximos da violên-
cia, já mostram na história seus efeitos de “perdoar” o inimigo, mas também de tê-lo como
um infiel que precisa ser “punido” por heresia.138 Além disso, o “perdoar” pode ser entendi-
do com certa postura de superioridade advinda de ideias de poder e de quem julga, e quase
sempre está acompanhado nas sombras por suas irmãs siamesas “culpa-punição”, que são a
base do modelo criminal violento.139
O facilitador não está em posição superior às partes do conflito. Está em plano
horizontal em relação a elas. Sua atuação é pautada pelo convencimento, não pela autori-
dade. Sua tarefa é estar e manter as partes no mesmo plano horizontal; e, mesmo se elas
forem entre si materialmente desiguais (recursos, educação, desenvoltura etc.) – o que é
natural –, isso será uma preocupação e um ônus a mais ao trabalho do facilitador.140

135
Marshall B. ROSENBERG (A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 67-68), ao explicar a diferença
entre “poder sobre”, que equivale a exigência e se relaciona com uma “estrutura de dominação”, com castigo e
prêmio, e “poder com”, que parte de um convencimento, esclarece que naquele é necessário força para o cumpri-
mento do decidido, já neste o alto grau de convencimento gera um correspondente grau de cumprimento do acor-
dado. Nesse sentido, v. item 48.2.2, supra, in fine, em especial sua nota 70.
136
Sobre essas tendências a autoculpar-se, como diferenciar luto de culpa e autopunição e desenvolver a autoempatia,
v. ROSENBERG, Marshall B. A linguagem da paz em um mundo de conflitos, cit., p. 73-86. No mesmo sentido,
apontando as situações iniciais e pós-crime de ofensor e vítima, v. WALLIS, Pete. Understanding restorative
justice, cit., p. 25-28.
137
Sobre essa relação, tratamos, de modo mais específico, cf. item 48.2.1, supra, ao abordar a “voluntariedade empática”.
138
MULLER, Jean-Marie. O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica. Tradução por Inês Polegato. São
Paulo: Palas Athena, 2007. p. 136-138. Sobre as interferências canônicas na elaboração, desenvolvimento e aper-
feiçoamento da inquisitio e o que ela significou e significa no modelo criminal violento até nossos dias, v. Parte I,
supra. Sobre as Inquisições e o uso político da heresia para perseguir e aniquilar a diversidade, v. itens 24.1 e 24.2,
supra. Quanto à mudança de posição dos cristãos em relação ao Império Romano, que passaram de inimigos para
perseguidores, resultando em sua fusão política, cf. item 9, supra.
139
Sobre esse ponto da mistura da religiosidade, “culpa-punição”, “pecado-punição” e a cultura da violência, cf.
item 43.1, supra.
140
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 31-32. Na Resolução n. 2002/12 da ONU
(“Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal”), em seu item “II.
Utilização de Programas de Justiça Restaurativa”, orienta: “9. As disparidades que impliquem em desequilíbrios,
assim como as diferenças culturais entre as partes, devem ser levadas em consideração ao se derivar e conduzir
um caso no processo restaurativo”. O Manual sobre programas de justiça restaurativa, elaborado pelo UNODC,
segue na mesma direção: “2.3 Salvaguardas legais e políticas. [...] ‘Segurança dos participantes’: A segurança
das pessoas deve ser considerada na referência a qualquer caso de um processo restaurativo e na sua condução
(parágrafo 10). As disparidades que levem a desequilíbrios de poder, assim como diferenças culturais entre os
participantes, devem ser consideradas ao encaminhar um caso para um processo de justiça restaurativa e duran-
te a condução do processo (parágrafo 9)” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME.
48.  Modelo criminal não violento 693
A resposta a ser alcançada não será advinda dele ou por ele imposta como ocorre no mode-
lo criminal persecutório-punitivo da ideologia da violência e da autoridade.141 É na ação
conjunta que a execução do acordo se realiza, naturalmente, como forma de manutenção
das partes no meio social.
Embora possa parecer que “facilitar” o diálogo seja apenas desenvolver habilidades
para aproximar e fazer pessoas interagirem, isso é apenas a parte visível do trabalho.142 Em
sentido mais amplo, “facilitar” também implica antes organizar e planejar o trabalho a ser
realizado. O recomendável é que tais diferentes tarefas preparatórias sejam feitas por profis-
sionais distintos e com habilidades mais afeitas a elas.143
O “facilitador organizador” recebe a informação do conflito e a demanda de resolvê-
-lo, “coordena o processo de convidar as pessoas para participarem do diálogo”, além de
“gerenciar a logística e a atmosfera do processo dialógico”.144 O que significa, nesse último
caso, escolher o lugar mais apropriado para as partes sentirem-se confortáveis, sendo ele
“neutro, tanto do ponto de vista simbólico como do ponto de vista logístico”, notadamente
em locais de pessoas com limitações de horários e recursos para deslocamentos.145 Isso já é
um meio de demonstrar aos participantes que nenhum tem “prevalência” ou “vantagem”,
não sendo incomum a utilização de mais de um lugar em casos de mais de um encontro.146
Ainda é atribuição integrante dessa logística o fornecimento de condições mínimas ao diá-
logo, como instalações apropriadas e eventual fornecimento ou solicitação de que devem
trazer e compartilhar alimentação básica.147

Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 16). Sobre a metodologia dialogal como cerne da dinâmica
do processo criminal não violento e o papel do plano horizontal para sua garantia, v. item 48.2.2, supra. Sobre a
desigualdade no processo criminal não violento e suas formas de atenuação, v. item 49.1.5, infra.
141
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit., p. 273), analisando e descrevendo os vários planos do conhecimento e do atuar do facilitador, em inte-
ressantes abordagens, visto ser doutor em intervenções sociais e mediação, ressalta, ao tratar do “saber ser” do
facilitador, que ele considera um importante âmbito de seu treinamento e valor como profissional, que: “O media-
dor, como facilitador e (co)construtor de um diálogo complexo, é o responsável por sustentar a comunicação
entre os participantes, abstendo-se de tomar decisões. Perante a mediação civil, onde os direitos legais são di-
versos, neste espaço de intervenção, existem compromissos pessoais íntimos que põem em evidência a emocio-
nalidade e o psiquismo, sobretudo nos casos em que o grau de vitimização é maior” (p. 271, traduzimos).
142
Tratando da mediação penal, certamente um dos procedimentos a ser analisado e regrado para integrar o proces-
so criminal não violento, Miguel Ángel NÚÑEZ PAZ (Origen y fundamentos criminológicos de la mediación,
cit., p. 393-394) indica que o mediador precisa ter e desenvolver “habilidades sociais” a fim de manejá-las em
todos os momentos do encontro.
143
A preparação para essas tarefas distintas pode ser abarcada no sentido empreendido pelo Projeto de Lei n. 2.976/2019,
que pretende regular a “justiça restaurativa” no Brasil: “Art. 2º [...]. § 3º As sessões de justiça restaurativa ocorrerão
em espaços próprios e adequados e serão coordenadas por facilitadores previamente capacitados em técnicas
autocompositivas e consensuais para resolução de conflitos. [...] CAPÍTULO III – DO FACILITADOR DA JUS-
TIÇA RESTAURATIVA Art. 6º O facilitador da justiça restaurativa deverá ser submetido a cursos de capacita-
ção, treinamento e aperfeiçoamento permanentes” (destacamos). Infelizmente, o Substitutivo ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal, datado de 30.06.2021 e elaborado pelo Deputado João CAMPOS, não incluiu
disposição semelhante.
144
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 39. No mesmo sentido, indicando um
roteiro mais dirigido à mediação, v. UMBREIT, Mark S. The handbook of victim offender mediation, cit., Capítu-
lo 3, “Mediation process”, especialmente, para este momento inicial, p. 37-39.
145
Sobre esse ponto, tanto as normativas internacionais quanto as nacionais projetadas seguem a mesma linha.
146
Sobre a preocupação do facilitador em manter as partes em equilíbrio entre si, procurando diminuir ou neutralizar
suas prováveis e naturais diferenças e desigualdades sociais e/ou econômicas, v. item 49.1.5, infra.
147
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 41-42. Sobre esse ponto, chama-se a
atenção para o mesmo dispositivo do Substitutivo de 30.06.2021, já citado na nota 69 deste Capítulo, supra.
694 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

O “convite” também é tarefa do “facilitador organizador” e não é tarefa simples.


Para marcar o início do processo não violento recomenda-se o encontro pessoal e separado
com as partes, pois é a partir daí que começará a ter relação mais próxima e sensível com os
sentimentos delas, o que ajuda a identificar os pontos mais delicados e centrais e o melhor
procedimento a ser empreendido.148 A conversa deve ser explicativa das opções procedi-
mentais (ritos e práticas) no sistema processual criminal não violento, seus propósitos e
valores e, de modo direto e sincero, de suas dinâmicas e dificuldades, assim como da parti-
cipação voluntária das partes com a presença constante do facilitador.149 Nesse momento, o
“facilitador organizador” também percebe se será necessária companhia para as partes do
conflito e quem seria a pessoa mais indicada para desempenhar esse papel, nesses primeiros
momentos do procedimento. Intermediários próximos à parte (vítima ou ofensor) podem
ajudar desde essa primeira aproximação do facilitador e, depois, entre aquelas partes em
meio ao procedimento não violento.150 Como se vê, o processo não violento não começa
necessariamente pela espontaneidade de ambas as partes, ou mesmo de uma delas, até por-
que esse modelo é novo e desconhecido, assim como o são suas vantagens. Porém, ele so-
mente se desenvolverá a partir desse ponto inicial se o organizador perceber a possibilidade
de ambos terem voluntariedade empática na aproximação.151
Outra função do facilitador, ainda antes de o procedimento não violento entre as
partes começar, é a de “planejamento”. Essa atribuição consiste na escolha do melhor proce-
dimento (rito e prática) em face dos pontos de dificuldades e de aproximações do caso, assim
como a necessidade de participação de pessoas próximas (“comunidade dos próximos”),
para tornar provável o diálogo empático. Ainda faz parte do planejamento estabelecer as
regras de funcionamento específicas dentro da liberdade e mobilidade que os procedimentos
não violentos devem comportar. Como se verá, eles têm uma forma preestabelecida para
identificar suas características (p. ex., mediação, círculos, conferências familiares, encon-
tros), mas apresentam espaços para especificações próprias para a situação concreta.152 A li-
berdade e a maleabilidade dentro de molduras, dinâmicas e direcionamento previamente
definidos evitam trazer mais estresse às partes, que teriam dificuldade de se ajustar a uma
ou outra prática. Deve-se buscar o melhor para o caso concreto.153

148
UMBREIT, Mark S. The handbook of victim offender mediation, cit., p. 39-42; SICA, Leonardo. Justiça restau-
rativa e mediação penal, cit., item “1.4.4. O mediador”, p. 70; SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para
assuntos difíceis, cit., p. 40. Sobre esse instante do “convite” integrar o procedimento restaurativo, já se posicio-
nou o CNJ, em sua Resolução n. 225/2016: “Art. 1º [...] § 1º Para efeitos desta Resolução, considera-se: [...]
IV – Sessão Restaurativa: todo e qualquer encontro, inclusive os preparatórios ou de acompanhamento, entre as
pessoas diretamente envolvidas nos fatos a que se refere o caput deste artigo”.
149
Sobre esses momentos e atuações na abordagem inicial, Pete WALLIS (Understanding restorative justice, cit.,
Capítulo 6, “Restorative enquiry”, p. 79-87) traz o modo, ordem e preocupações a serem tidas pelo facilitador.
Inclusive, para os encontros individualizados entre ele e cada parte do conflito, produz um roteiro/questionário
subdividido em cinco partes: 1) narrar a história; 2) explorar pensamentos e sentimentos; 3) considerar o impacto;
4) explorar as necessidades e 5) caminhos a seguir.
150
Howard ZEHR (The little book of restorative justice, cit., p. 56), ao tratar dos encontros entre vítima e ofensor de
modo geral, informa que não raro esse apoio dos integrantes da “comunidade dos próximos” (cf., sobre essa ex-
pressão, item 48.3.3, infra) é importante: “Às vezes, se um encontro entre uma vítima e um infrator é impossível
ou inapropriado, representantes ou substitutos podem ser usados. Às vezes, cartas ou vídeos são usados na
preparação ou no lugar de uma reunião direta. Todos esses modelos, no entanto, envolvem alguma forma de
encontro e diálogo, com preferência pelas reuniões presenciais” (traduzimos). Sobre a possibilidade da “comu-
nicação indireta” ou do “diálogo indireto”, v. item 48.2.2, supra, última parte.
151
Cf. item 48.2.1, supra.
152
Nesse sentido, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 37.
153
Essa temática será melhor aprofundada quando tratarmos do processo criminal não violento, cf. item 49.1.2, infra.
48.  Modelo criminal não violento 695
Todas essas funções exigem pessoas técnicas, bem formadas nesse novo mister e
que atuem coordenadamente. O “organizador de diálogo” convida e convence as pessoas a
participarem e, ainda, gerencia a logística dos encontros (quem e onde). O “planejador do
diálogo” deve desenvolver a sequência e a estratégia do específico processo dialogal, levan-
do em conta o conflito e suas partes (modo e tempo). O organizador também pode ter a ta-
refa de escolher quem será o facilitador, ou facilitadores, que conduzirão as partes e seus
comportamentos por todo o processo dialógico ou, caso entenda conveniente, pode ele tam-
bém assumir tal tarefa.154
Todas essas funções exigem preparo e treino constante do organizador, planejador e
garantidor do diálogo, e para isso também contribui a combinação entre a formação constan-
te para desenvolvimento técnico e treino e a consciência das próprias emoções. Facilitadores
não devem ter apenas desenvolvimento de técnicas intelectivas, mas, por lidarem e promove-
rem o acesso e a exposição de âmbitos sentimentais, devem ter e treinar também suas inteli-
gências emocional e social.155 A boa e bem-sucedida condução de diálogos exige novas apti-
dões e treinamentos que podem ser ministrados a partir de cursos técnicos e até universitários,
desde que dirigidos a despertar e treinar habilidades e formar pessoas para tais tarefas.156
Nesse mister formativo e informativo, novos valores, propósitos e metodologia devem estar
claramente definidos desde o início da formação técnica e/ou universitária.
Nesse ponto, algo deve ser aprendido com a história dos escolásticos-canonistas
quando da criação da Universidade nos séculos X a XII: há a necessidade da formação des-
se novo corpo de agentes internos do sistema processual criminal não violento, uma vez que
a dinâmica a ser apreendida e treinada e a aptidão a ser desenvolvida não estão em conhecer
leis e jurisprudência, mas em serem capazes de identificar necessidades e sentimentos e
conduzir por voluntariedade empática uma metodologia dialogal até o resultado conciliató-
rio.157 As Universidades foram constituídas sobre a escolástica do debate, que foi passada ao
sistema jurídico. Precisa-se, agora, do ensino de outras habilidades e técnicas para o mode-
lo criminal não violento ser implementado.158

154
SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 37-38.
155
Tais aptidões intelectuais, que romperam com o único paradigma até então conhecido para avaliar as pessoas, mas
que não conseguiam explicar o sucesso de muitas e o fracasso de outras, foram desenvolvidas por Daniel GOLEMAN,
respectivamente em suas obras Inteligência emocional (Emotional intelligence), de 1995, e Inteligência social: a
nova ciência das relações humanas (Social intelligence: the new science of human relationships), de 2006. Ambas
as obras estão publicadas em vernáculo pela Editora Objetiva, respectivamente nos anos de 2005 e 2019.
156
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit., p. 273), analisando os aspectos mais valorizados em práticas restaurativas, segundo pesquisa feita
em dois centros espanhóis diretamente com pessoas (vítimas e infratores) que passaram pelo processo, in-
forma que em média 30% dos resultados restaurativos foram tributados à forma de condução dos trabalhos
pelos facilitadores.
157
Para uma noção de como o fato de os valores e propósitos, assim como a metodologia e o processo, serem diversos
muda em muito a formação e a informação de profissionais é relevante ver a comparação entre as diferentes pers-
pectivas do crime para a “justiça restaurativa” e a justiça criminal tradicional feita por Howard ZEHR (The little
book of restorative justice, cit., p. 30-31) e por nós já registrada no item 46.3.2, supra.
158
Lisa SCHIRCH e David CAMPT (Diálogo para assuntos difíceis, cit., Capítulo 6, “Como facilitar o diálogo”)
informam, mesmo que de maneira breve, os seguintes atributos do facilitador, atribuindo-lhe papel central no
diálogo: determinar com as partes o propósito do diálogo; desenvolver, também com as partes, as regras do diálo-
go; gerenciar a agenda, fomentar e guiar o diálogo; exemplarmente, escutar de modo ativo o outro; monitorar e
empreender dinâmicas entre os participantes; mostrar interesse pela perspectiva de todos; ajudar e lidar com
participantes difíceis; ser imparcial; utilizar-se de perguntas e paráfrases para instigar as pessoas a acessar o outro
e a si mesmas, a fixar pontos expostos e deixar claro seu nível de compreensão sobre as falas de todos; elaborar
um resumo; ser e inspirar modelos de comportamento dos participantes durante o diálogo, mantendo-se calmo e
envolvido.
696 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Embora o tema das agências e agentes mereça estudo próprio, com aproximações e
maiores detalhamentos de seu funcionamento e dinâmica de acordo com cada tipo especí-
fico de procedimento não violento, tal aprofundamento não cabe no presente estudo. Por
essa razão, a preocupação foi oferecer as linhas básicas de sua estruturação e direcionamen-
to. Marcando-se, mais uma vez, que o objetivo aqui é, no nível de uma teoria, fornecer os
critérios que justificam sua existência e sua diferença em relação às agências persecutório-
-judiciais-defensivas hoje existentes.

48.3.3 Das partes naturais do conflito e uma nova posição para a “comunidade”


Quanto às partes do conflito, a figura do infrator não traz muitas dificuldades, e
talvez isso ocorra muito pela consolidação juspolítica de ele precisar ser pessoa física, em
regra maior de idade, sendo capaz de a ele ser atribuída “responsabilidade penal”.159
De certo modo, também é diminuta a dificuldade de detecção da figura da vítima
quando se está diante de pessoas (física ou jurídica) tidas pela lei como as diretamente lesa-
das pela conduta do infrator descrita na norma primária (“norma de conduta”) do tipo penal
incriminador. Dentro desse contexto, pode-se pensar, exemplificativamente, em qualquer
modalidade de dano patrimonial, físico (lesão ou homicídio), subtração ou desvio patrimo-
nial e, ainda, em regra, nos crimes que se processam mediante queixa-crime ou por repre-
sentação, que consiste em autorização legal prévia e obrigatória aos órgãos de persecução
(Polícia e Ministério Público) iniciarem sua atuação. Em todos esses exemplos não é difícil
identificar, fenomênica (ôntica) e formalmente (em lei), o titular de bens ou direitos lesado
pelo infrator, no conflito criminal.
Todavia, ainda no contexto da vítima, o problema ganha outra dimensão quando se
pensa em crimes que são, em uma visão hulsmaniana, “construídos”160 para tutelar bens
jurídicos cuja titularidade é atribuída, de uma forma ou de outra, a toda a coletividade, en-
tendida aqui a sociedade inteira “dentro do” e se confundindo “com o” Estado. “Estado”, ou
algo que a ele facilmente é associado por não ter titular certo, explica expressões como
“coletividade”, “saúde pública”, “sistema financeiro nacional”, ou mesmo “sociedade”161

159
A única exceção em nosso ordenamento a permitir a imputação de pessoa jurídica são os crimes ambientais pre-
vistos na Lei n. 9.605/98. O legislador, por espaço constitucional específico (art. 225, § 3º, CR), definiu a hipótese
legal de a pessoa jurídica praticar aqueles – e apenas aqueles – crimes. Embora não se negue a relevância do bem
jurídico tutelado nessas hipóteses, percentualmente as ocorrências são diminutas se comparadas com toda a am-
plitude da criminalidade nacional. Quanto à exigência de maioridade penal para a responsabilização penal, ela
também tem fundamento constitucional (art. 228 da CR: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito
anos, sujeitos às normas da legislação especial”), não obstante a limitação já estivesse, também, no Código Penal
(art. 27 do Cód. Pen.).
160
HULSMAN, Louk, em coautoria com CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.
Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro, 1993, notadamente itens 7, 11 e 32-34.
161
Tal qual tivemos a oportunidade de mostrar na Parte I deste trabalho, a “expropriação do conflito”, com a retirada
da vítima, começou com a assunção de sua posição por parte da Igreja e do Rei, transferindo-se essa prerrogativa
e primazia monopolizante à figura do Estado-Nação a partir da Idade Moderna. Sobre essas questões, cf. itens 14.1
(modelo canônico), 20 (escolástica continental), 21.2 (escolástica insular), 24.3.1 (inquisitio radical), 25.2.2 (inqui-
sitio mitigada britânica); 26.2 (inquisitio revolucionada); 26.3 (inquisitio humanizada) e 27 (“inquisitio premial-
-negociada”). John R. FULLER (Criminal justice: a peacemaking perspective. Boston: Allyn and Bacon, 1998.
p. 73-75) trata, também, dessa expropriação que a vítima sofreu em sua posição no conflito, passando a analisar
as dificuldades e traumas que as vítimas têm de enfrentar no modelo criminal tradicional. Sobre essa expropria-
ção, é seminal o trabalho de Nils CHRISTIE (Conflicts as property. The British Journal of Criminology, Oxford,
v. 17, n. 1, p. 1-15, jan. 1977).
48.  Modelo criminal não violento 697
para indicar o “titular” da violação da norma e que, assim, passa a ser tido como a “vítima”
da ação criminosa.
Tão complexas são, outrossim, as situações em que, para além da vítima direta ou
mesmo se ela inexistir – quando o “Estado”, ou qualquer de seus espaços, intitula-se como
“o” lesado −, pode-se ter uma pequena comunidade diretamente atingida, para nós denomi-
nada no trabalho de “comunidade afetada”.162 Isso ocorreria, por exemplo, quando se destrói
um logradouro público, um monumento histórico ou mesmo barcaças de uma empresa pri-
vada que seja a única (ou ao menos a melhor e mais prática) forma de ligar ou atender co-
munidades distantes. A destruição desses bens atinge ora bens públicos (praças e monu-
mentos), ora bens privados (as barcaças), mas, para além deles, e independentemente de
haver vítima individual direta ou não para ser titular do bem, há comunidades que são me-
diatamente atingidas porquanto também prejudicadas pelos efeitos do ato violento, mesmo
que os bens lesados/expropriados não sejam direta e legalmente “seus”.163

162
Sobre sua aceitação já pacificada mesmo em nível internacional, inclusive com a ampliação aqui desejada sobre
o conceito de vítima e, com isso, dos participantes do processo criminal não violento, a ONU, em sua Resolução
n. 2002/12, assim estabelece ao conceituar suas “partes”: “4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer ou-
tros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo
restaurativo”. A segunda edição do Manual sobre programas de justiça restaurativa, originariamente de 2020,
elaborada pelo UNODC, abre seu primeiro tópico (“1. Justiça restaurativa e processo penal”) esclarecendo, em
alguns pontos: “Os programas de justiça restaurativa têm como fundamento a crença de que as pessoas envolvi-
das ou afetadas pelo crime devem ter participação ativa na reparação do dano, amenizando o sofrimento que o
crime causou e, sempre que possível, tomando providências para prevenir a recorrência do dano. [...] Tanto as
formas novas quanto as já estabelecidas de justiça restaurativa oferecem às comunidades alguns meios bem-
-vindos para resolver conflitos e reduzir os danos causados pelo comportamento criminoso. Delas participam as
pessoas diretamente envolvidas ou afetadas pelo crime e, em alguns casos, membros da comunidade”. Indicando
aspectos centrais para uma definição de “justiça restaurativa”, informa como essencial: “Participação voluntária
das pessoas mais afetadas pelo dano, incluindo a vítima, o ofensor e, em alguns processos e práticas, seus apoia-
dores ou familiares, membros de uma comunidade interessada e profissionais adequados”. Sobre os valores que
orientam a “justiça restaurativa”, indica: “‘Reparação’: Foco em reconhecer e reparar danos físicos, emocionais
e financeiros causados pelo crime e atender às necessidades das pessoas afetadas. [...] ‘Inclusão’: Promover e
apoiar a participação significativa das pessoas afetadas incluindo vítimas, ofensores, seus amigos, familiares e
comunidades”. Em uma síntese de todo tratado no citado item 1: “Um programa restaurativo envolve um proces-
so no qual a vítima e o agressor e, quando possível e apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime, participam ativamente da resolução de problemas decorrentes do crime, em
geral com a ajuda de um facilitador”. Explicando alguns termos, assim define “processo restaurativo”: “Um ‘pro-
cesso restaurativo’, que pode incluir mediação, conciliação, conferência e círculos de sentença, é definido como
qualquer processo em que a vítima e o ofensor e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros
da comunidade afetados por um crime, participem conjunta e ativamente na resolução dos problemas decorrentes
do crime, em geral com a ajuda de um facilitador” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E
CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 3, 4, 6, 14 e 15). Tal posição ingressou na for-
mação técnica do Brasil, sendo incluída no Projeto de Lei n. 2.976/2019: “Art. 2º [...]. § 1º É necessária a partici-
pação do ofensor e, se possível, da vítima, familiares e demais envolvidos no fato danoso, e a presença de repre-
sentantes da comunidade direta ou indiretamente prejudicada pelo dano e de um ou mais facilitadores da justiça
restaurativa. § 2º Serão admitidos nas sessões de justiça restaurativa pessoas direta ou indiretamente afetadas
pela situação de conflito ou violência e aquelas que puderem apoiar os envolvidos”. Infelizmente, o Substitutivo
de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo
Penal não é tão preciso o tratamento específico, embora contemple a participação da “comunidade”, sem maiores
especificações: “Art. 114. A Justiça Restaurativa é política pública destinada à recomposição social, com a par-
ticipação da vítima, do autor do fato e da comunidade, e tem como objetivos: [...]”.
Aqui vale trazer ao contexto a diferença proposta por Antonio SCARANCE FERNANDES (O papel da vítima no
163

processo criminal, cit., item 18 “A vítima e o sujeito prejudicado”, p. 48-50) quando enceta uma construção dife-
renciada de conceitos: “Fala-se também em sujeito prejudicado. Não corresponde ele ao sujeito passivo do delito.
Este, como visto, é̟ o titular do direito protegido pela norma penal. O sujeito prejudicado é titular do direito à
indenização civil, ou seja, aquele que, em razão de um ilícito civil, tem direito a pleitear a reparação do dano
sofrido. Pode, contudo, a mesma pessoa ser sujeito passivo e sujeito prejudicado. Isso acontece quando, em de-
corrência de um fato criminoso, o sujeito passivo tenha sofrido lesão e, pelos termos da lei civil, possa pleitear a
698 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A perspectiva ampla e geral de uma “teoria”, empreendida neste trabalho pelo axio-
ma da não violência, não traz, ipso facto, respostas a tais dificuldades que se apresentam
para a estruturação teórica do novo modelo criminal. Mas revelam os pontos e indicam os
critérios que devem ser usados por meio de vários saberes. Isso porque ela não posiciona a
política criminal, o modelo criminal e, por consequência, o sistema processual criminal não
violentos, apenas entre o binômio “crime-pena”, procedendo à mudança no “objeto-problema”,
toma-o como a “violência envolvente” do crime; antes existente, por ele produzida e após
ele remanescente.164 Desse modo, a definição de “vítima”, ou seja, da pessoa atingida pelo
crime e seus efeitos que, portanto, deverá participar do processo não violento para ser não
apenas ouvida, mas também reparada, precisa de uma construção teórica diversa (e mais
ampla) da tradicional: “sujeito passivo da conduta criminosa”. Essa nova construção precisa
alcançar pessoas individuais e coletivas (a comunidade) atingidas pelos efeitos negativos do
ato criminoso; não apenas pela conduta do infrator e posta como “titular” do bem jurídico
tutelado.165
No modelo criminal não violento, seja em seu sistema material seja no processual,
precisa-se trabalhar com o conceito amplo de vítima, ou seja, toda pessoa (individual ou
a comunidade) atingida pela “violência envolvente” ao crime.166 O que implicará novas

reparação do dano. Se o proprietário ao ser enganado entrega bem a ele pertencente, será sujeito passivo prin-
cipal de um crime de estelionato, mas também o prejudicado pela ação delituosa se a coisa não for recuperada;
se o credor, cometendo o crime de exercício arbitrário das próprias razões, para satisfazer o seu crédito retira
dinheiro da mesa de trabalho do devedor, este, sujeito passivo secundário, será o prejudicado” (p. 48).
164
Cf. item 44.2, supra.
165
Nesse ponto, e para o modelo criminal não violento, propomos exatamente ir além do limite traçado por Antonio
SCARANCE FERNANDES (O papel da vítima no processo criminal, cit., item 18, “A vítima e o sujeito prejudi-
cado”, p. 48-50). Isso porque esse processualista penal endereçou suas preocupações ao sistema processual penal
do modelo persecutório-punitivo, âmbito em tudo diverso do objeto de nossas preocupações. Exatamente para
endereçá-lo àquele ambiente mais restritivo, precisou fazer um corte epistemológico e temático no conceito e
concepção internacional de vítima que, por fidelidade acadêmica, ele mesmo trouxera para a mesa de debates em
seu trabalho seminal. Afirma sobre a concepção ampla de vítima, da qual devemos partir: “Importa saber se todo
prejudicado, apesar de nem sempre corresponder ao sujeito ofendido, será considerado vítima em sentido pro-
cessual penal. Há um conceito amplo na Vitimologia. São vítimas todas as pessoas que de alguma forma sofrem
prejuízo com a infração penal. Assim, Rodríguez Manzanera utiliza noção extensa de vítima para abranger o
sujeito passivo, o ofendido e o prejudicado. Sujeito passivo é ‘o titular do bem juridicamente protegido’; ofendi-
do ‘será aquele que sofre um prejuízo devido ao cometimento do delito e que tenha direito à reparação do dano’
e prejudicado é ‘todo aquele que sofre um prejuízo pelo cometimento do delito, mas que não pode lograr que o
dano seja reparado, ainda que não tenha culpa nem tenha participado do ilícito’. Exemplifica com o homicídio,
em que o morto é o sujeito passivo, seus familiares constituem os ofendidos, enquanto os familiares do delinqüen-
te poderão ser os prejudicados se ele vier a ser preso. Também abrangente é a ‘Declaração Universal dos Direi-
tos da Vítima’: considera vítimas de crime aquelas pessoas que, individual ou coletivamente, tenham em razão
dele sofrido dano, incluindo-se os familiares e os dependentes da vítima direta e ainda as pessoas que tenham
sofrido algum prejuízo ao interferirem para assistir às vítimas em perigo ou para prevenir a vitimização (arts. 1
e 2)” (p. 49, destacamos). Para depois, ao escopo de seu estudo, fazer o corte: “Aqui, contudo, será adotado con-
ceito mais restritivo, que melhor se ajusta aos estudos de processo penal e corresponde ao sistema adotado entre
nós. Nem todo prejudicado será considerado vítima, mas somente o prejudicado que, ao mesmo tempo, é sujeito
passivo da infração penal e tem direito à reparação do dano” (idem). No sentido dado em nosso texto principal,
v. VAN NESS, Daniel W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring justice, cit., item “Inclusion of community
members”, p. 76.
166
Para esse contexto utilizamo-nos do referencial da Resolução n. 40/34, de 29 de novembro de 1985, da ONU, co-
nhecida como “Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de
Poder – 1985”. As Nações Unidas, por essa normativa, preceituam, no “Anexo” àquela Declaração, que entendem
como “vítima da criminalidade” e “vítima do abuso de poder”, respectivamente, vítima da violência conflitual e
da violência estatal lato sensu, nela se inserindo o que este trabalho trabalha, no plano persecutório-punitivo, como
“violência institucional”: “‘A. Vítimas da criminalidade’. 1. Entendem-se por ‘vítimas’ as pessoas que, individual
ou colectivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental,
um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como
48.  Modelo criminal não violento 699
formas de representação processual e reparação167, uma vez que o novo conceito ampliado
não pode levar à impossibilidade prática do processo criminal não violento quer quanto a
ser viável trazer um novo partícipe ao diálogo, quer ao permitir a consecução de um resul-
tado de consenso que seja factível ao autor da infração cumprir desde a “violência premen-
te”, não podendo ela ser de dimensões tão largas.168
No plano material, tais necessidades de revisão passam pela definição de quem deva
ser ou não considerado atingido pelos efeitos do crime, o que implica uma reanálise para
adaptação ao modelo criminal não violento se as noções de bem jurídico e sua titularidade
ainda devem seguir como norte absoluto; sendo que o mesmo se aplica às noções de domí-
nio ou predomínio dos interesses públicos em todos os conflitos criminais. Esse tema, no
plano processual, toca como correspondente as teorias de “parte processual” não apenas
como o titular do direito de “estar em juízo”, mas, se esse fator subjetivo processual não
deva ser recentralizado para afastar o órgão público acusador e (re)empoderar a vítima.
Também esse tema da definição de “comunidade” a participar do modelo criminal
não violento e seu novo papel deverá ser objeto de construção teórica específica àquela
sua nova sistemática processual, pois, vista a “violência envolvente” como o novo objeto-
-problema, aquele grupo de pessoas afetadas deve ser percebida, ouvida e trazida para o
diálogo.169 Nessa “construção”, novamente, os saberes criminais são ponto de partida, mas
não são limitação teórica. Afinal, se assim o fossem, estaríamos laborando para, quando
muito, “modificar” o modelo criminal persecutório-punitivo e não, como proposto neste
trabalho, passar à elaboração teórica de um outro modelo e sistema processual criminais.170

consequência de actos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que
proíbem o abuso de poder. 2. Uma pessoa pode ser considerada como ‘vítima’, no quadro da presente Declaração,
quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de
parentesco deste com a vítima. O termo ‘vítima’ inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas
a cargo da vítima directa e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às
vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização. 3. As disposições da presente secção aplicam-se
a todos, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, cor, sexo, idade, língua, religião, nacionalidade, opiniões
políticas ou outras, crenças ou práticas culturais, situação económica, nascimento ou situação familiar, origem
étnica ou social ou capacidade física. [...] B. Vítimas de abuso de poder 18. Entendem-se por ‘vítimas’ as pessoas
que, individual ou colectivamente, tenham sofrido prejuízos, nomeadamente um atentado à sua integridade física
ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamen-
tais, como consequência de actos ou de omissões que, não constituindo ainda uma violação da legislação penal
nacional, representam violações das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de direitos do homem”.
Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/ajus/prev29.htm. Acesso em: 23 dez. 2021.
167
Sobre a possibilidade de aplicação da “justiça restaurativa” para os chamados “crimes sem vítimas” identificáveis ou
que suportam lesão direta, com o que concordamos, v. SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa, cit., p. 594-600.
168
Nesse aspecto a abordagem de Howard ZEHR (The little book of restorative justice, cit., p. 37-38) sobre “comunida-
de de cuidado” e “microcomunidade”, misturando critérios de responsabilidade e proporção, pode ser útil. Ressal-
vando, junto com o citado restaurativista, que tais concepções em nada se relacionam com a noção de “comunidade
de serviço” (“community service” são agências responsáveis por verificar/acompanhar o cumprimento de penas dos
condenados em alguns estados/localidades estadunidenses), entendida pelo autor como forma alternativa de puni-
ção, não de “justiça restaurativa”, sendo “uma ‘pseudo-’ ou ‘não-restaurativa’ categoria comunitária” (p. 73).
169
Sobre a centralidade do papel da comunidade em práticas restaurativas, com sua participação seja como prejudi-
cada, seja apenas para dar suporte às partes diretas do conflito a fim de que se aproximem ou mesmo para auxiliar
no cumprimento do acordo, v. JOHNSTONE, Gerry. Restorative justice: ideas, values, debates. Oregon: Willan
Publishing, 2002. Item 7, subitem “The role of community”. p. 151-158. Sobre a necessidade da participação
comunitária como parte na “justiça restaurativa”, que deve ter uma ampliação de ingressantes, nesse ponto,
v. LARRAURI PIJOAN, Elena. Tendencias actuales de la justicia restauradora. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 12, n. 51, p. 67-104, nov./dez. 2004. Subitem “3.2. La participación de las partes”.
170
Sobre a centralidade da discussão a respeito de “comunidade” na temática restaurativa, v. CUNNEEN, Chris.
Thinking critically about restorative justice. In: McLAUGHLIN, Eugene et al. (ed.). Restorative justice: critical
issues. London: SAGE, 2004. p. 182-194, em especial o item “Community”, e SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça
700 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Qualquer limite ou impedimento que advenha do tradicional marco teórico-penal


construído deve ser estímulo a seu necessário repensar. Uma transcendência para resolver
as novas demandas sociais indicadas e a serem satisfeitas por respostas não violentas e ob-
tidas pelo instrumental de mesma natureza. Que limites e “desencaixes” existirão, não há
que se ter dúvida. Eles são mais do que esperados, pois são naturais, tendo em vista a dife-
rença de paradigmas de que partem referidos modelos. Para isso poderemos aproveitar mui-
tas das vívidas e pertinentes críticas ao modelo criminal tradicional para, em vez de endereçá-
-las contra a ele, romper com sua exclusividade existencial e empreender estudos para um
novo desafio que deve se estabelecer “fora” dele.
Insista-se, à exaustão, os modelos não são excludentes, mas devem atuar separada-
mente. Ocupam e operam em espaços diversos de uma ampliada política (pública) criminal,
com seus também diversos pressuposto, objeto-problema, metodologia de endereçamento
do conflito e, por fim, finalidades almejadas. Portanto, se em tudo são diversos, não podem
servir-se das mesmas teorias fundantes, com suas limitações, sem adaptações às peculiari-
dades de cada qual. E nisso, insista-se, mais uma vez, o modelo criminal não violento parte
em franca desvantagem. Contudo, por oferecer mais ganhos e menor custo, tende a ter
maior aceitação e espaço de crescimento social e institucional.
Dentre os saberes necessários para essa transcendência quanto à “participação da
comunidade” no modelo criminal não violento destacam-se, mas não só, os saberes jurídico-
-penal, sociológico e das ciências políticas.171 Máxime os dois últimos saberes citados
podem aproveitar o instante da humanidade para o início dessa nova proposta, uma vez
que a “modernidade radical”, e sua decorrência reflexiva sobre seus conceitos e realida-
des sempre novas e que precisam ser reposicionadas em estabilidade segura, mas dinâmi-
ca, para não ser superada já no momento de sua concepção (“modernidade reflexiva”).172

restaurativa, cit., p. 183-197. Mylène JACCOUD (Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça
restaurativa, cit., p. 176) traz aquela centralidade e as incertezas que cercam o tema nos estudos de “justiça res-
taurativa”: “Os debates são calorosos quando se trata de definir a noção de comunidade. De acordo com alguns,
não há dúvidas que os contraventores e as vítimas são membros de várias comunidades e organizações infor-
mais, tais como as comunidades pessoais, as organizações escolares, religiosas, profissionais, comunitárias ou
de comunidades locais mais formais como um bairro, um distrito e um Estado (McCold em Hudson e Galaway,
1996, pág. 91). Para outros, esta definição está longe de ser simples no contexto das mutações importantes que
as sociedades pós-modernas conheceram, mutações particularmente marcadas pelo surgimento do individualis-
mo e da sociedade civil. Aliás, Crawford (1997) sublinha o paradoxo no qual nós somos confrontados: jamais se
tratou tanto da(s) comunidade(s) em uma sociedade marcada pela desagregação de seus laços comunitários e
pelo crescimento do individualismo. As comunidades existem? O que as caracteriza? A reflexão de Crawford tem
a vantagem de nos sensibilizar menos para a ausência de comunidade(s) real(reais) que para a elasticidade des-
te conceito. No desenvolvimento da justiça restaurativa, a insistência sobre o recurso à comunidade se insere no
contexto de uma transformação do papel do estado e de sua dificuldade para manter suas funções de controle da
ordem pública”.
171
Um dos primeiros pontos que devem ser resolvidos, notadamente por estes dois últimos saberes, é se a melhor
construção teórica do conceito de comunidade para o modelo criminal não violento se dará, por exemplo, sobre
bases afetivas ou geográficas, aplicando-se o mesmo às diversas variações e funcionalidades que desempenham
seus membros quer como integrantes das agências (facilitadores), quer como seus representantes no processo não
violento. A importância dessas abordagens, ainda irresolutas mesmo na “justiça restaurativa”, é apresentada por
WALGRAVE, Lode. Imposing restauration instead of inflicting pain, cit., p. 68-69, e por SANTOS, Cláudia
Cruz. A justiça restaurativa, cit., p. 186-187. Essa mesma autora expõe que tais pontos ainda estão em aberto e,
diante das várias modalidades de práticas restaurativas, encontra-se sem “unanimidade em sua definição”
(p. 193-194).
172
Sobre o tema da modernidade radical e sua característica reflexiva, cf. itens 42 e 42.1, supra. Ulrich BECK
(A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução por Maria Luiza X. de A. Borges.
Rio de Janeiro: Zahar, 2018), em seu último escrito, reunido e publicado postumamente, sentia os ventos da mu-
dança e indicava o desafio, exemplificando com a “mudança climática”: “Talvez o tema da mudança climática
48.  Modelo criminal não violento 701
Identificando os novos anseios e os novos problemas sociais com a atual limitação das es-
truturas públicas de serviços (p. ex., o sistema processual penal) e das suas respostas sem-
pre binárias “punir/não punir”. Tudo a fim de partir “de” e “para” um modelo criminal al-
ternativo, com outra roupagem sociopolítica, para constituir também diversos sistemas
material e processual não violentos.
Isso é necessário, na linha já demonstrada, para termos teoria ajustada a esse novo
modelo e, principalmente, no atual momento humano vivido na história. Assim como as
características antropológicas do Medievo já não servem a qualquer modelo criminal, tam-
bém as abordagens e preceitos iluministas e contrailuministas do fim da Idade Moderna e
início da Idade Contemporânea (fins do século XVIII e século XIX) precisam ser revistos e
adaptados tendo em vista um novo modelo criminal e os avanços e as necessidades do sé-
culo XXI.
Como construções importantes ao trabalho, tanto que citadas em algumas passagens
dele, torna-se relevante indicar construções teóricas que já se vêm solidificando sobre as
espécies de “comunidade” que têm sido mais identificadas na abordagem restaurativa e que,
no presente estudo, podem ser utilizadas: “a “comunidade dos próximos” e a “comunidade
afetada”.173
A comunidade, em uma acepção mais restrita, denominada como “comunidade de
próximos”174, é aquela ligada às partes diretas do conflito: infrator e vítima. Tal comunida-
de, ao menos no plano socioemocional, é atingida pelo crime e, amiúde, também sofre efei-
tos no âmbito patrimonial. Ela é composta pelos parentes e conviventes mais próximos da

seja mesmo uma forma de mobilização até agora desconhecida na história humana, que arromba um mundo
autista nacional santimonial com a visão do apocalipse iminente? Seria possível, então, que o risco climático
global, longe de ser uma catástrofe apocalíptica, possa ser transformado por trabalho (cultural) ativo e política
cooperativa de muitos atores numa espécie de ‘catástrofe emancipatória’?” (p. 155). Respondendo em seguida:
“Três lentes conceituais são úteis para se compreender como a metamorfose do mundo funciona. Primeiro, a
violação cria a norma (e não o contrário). A previsão de catástrofes globais viola normas sagradas (não escritas)
da existência humana e da civilização. Segundo, uma violação de valores sagrados causa um choque antropoló-
gico; terceiro, causa uma catarse social. É assim que emergem novos horizontes normativos como um enquadra-
mento para a ação social e política e um campo cosmopolizado de atividades. Como já se disse, a emergência de
uma bússola para o mundo do século XXI não deve ser mal interpretada como algo que acontece automaticamen-
te ou é naturalmente causado pelo evento cama tal. Ao contrário, ela é produto de ‘trabalho cultural’. A confron-
tação entre as instituições existentes da lei e da política e esses novos horizontes normativos leva a um processo
permanente de reforma e contrarreforma – não linear e indefinido. Metamorfose é um processo em processo.
Não conhecemos o fim – talvez não haja fim. E há muitas complicações. Antes de mais nada, há uma poderosa
resistência” (p. 155).
173
Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 193-195), todavia, indica que os estudos restaurativos, se
oferecem pontos de partida, ainda não possuem “unanimidade em sua definição” (p. 193, in fine).
174
Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 189-194), apesar de em várias passagens de sua obra se
posicionar contra a afirmação de que a comunidade está na condição de “vítima” da “justiça restaurativa” (p. 154;
161, última parte; 163-164, nota 262; entre outras), assim define o termo “comunidade de próximos”, que aceita-
mos e utilizamos neste trabalho: “Ora, a conclusão a que se julga poder chegar é precisamente a de que na
maioria dos estudos orientados para a justiça restaurativa que sublinham a sua vertente comunitária, o que em
regra se pretende é tão-somente sublinhar a participação, nas práticas restaurativas, de pessoas para além do
agente do crime e da vítima, que os acompanham com o intuito de os apoiar e de favorecer a sua aceitação na
comunidade depois do cometimento do delito. O critério que se julga dever ser usado para delimitar quais as
pessoas que devem ser incluídas nesta ‘comunidade de próximos’ talvez seja, porém, mais amplo. Segundo se crê,
a intervenção destas pessoas não almeja apenas facilitar a reintegração comunitária; a sua participação nas
práticas restaurativas pode ser também fundada na aptidão que manifestarem enquanto facilitadores da comu-
nicação, nomeadamente porque a sua presença contribui para a tranquilidade e para a segurança, quer do
agente do crime, quer da vítima. Nesta medida, os ‘próximos’ serão aqueles que puderem dar um contributo para
a reparação dos danos sofridos pela vítima (através do próprio processo e através dos resultados que ele visar)
e para uma assunção da responsabilidade pelo agente que favoreça a reparação do seu sentido de pertença ao
grupo e a sua reintegração”.
702 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

vítima e do infrator. Um membro dessa comunidade pode integrar o procedimento não


violento com a finalidade de auxiliar o infrator ou a vítima, dependendo de a quem seja
próximo. Ele contribui para a formação da voluntariedade e diálogos empáticos. Seria a
pessoa de apoio àqueles atores principais. Essa comunidade será atendida pelos efeitos da
resposta consensual na medida em que a vítima seja reparada (material ou moralmente) e o
infrator não seja dessocializado.
Há, ainda, a já mais consolidada concepção de “comunidade afetada”. Ela é o grupo
de pessoas atingidas pelos efeitos do crime perpetrado e que sofre prejuízos diretos, haja ou
não vítima titular de bem ou direito especifica e legalmente tuteados pela ação criminosa.
No exemplo citado pouco acima, está representada pela comunidade que teve seu principal
acesso cortado com a destruição ou roubo das barcaças da empresa que fazia o trajeto entre
aquela comunidade e outras localidades. Ela é “também” atingida, pois, apesar de não ser o
titular daqueles bens (barcaças), teve perdas como coletividade. A “comunidade afetada”,
portanto, pode integrar, pela violência sofrida, o espaço não violento de construção de res-
posta consensual.175
Importantes essas concepções de “comunidades” neste instante do exame do mode-
lo criminal não violento por evidenciarem dois aspectos que ele precisa atender. O primeiro,
a visão de “violência envolvente” e a extensão, sempre dentro do possível, que o resultado
consensual deve atingir e, mais importante, que as políticas públicas podem e devem atin-
gir. O segundo, que, embora a força da violência vá diminuindo na medida em que se afasta
do epicentro representado pela ação criminosa e seus efeitos, é no conjunto dos desequilí-
brios de todas as ações criminosas vibrando ao mesmo tempo e se espraiando por todo o
tecido social que há a sua ruptura.
O rompimento do tecido não vem ou se produz por um único crime. Ele advém dos
vários focos de violência. Daí a grave perturbação e aumento da violência social que repre-
senta o modelo criminal persecutório-punitivo. Isso porque sobre as vibrações sociais cau-
sadas pela violência criminal se “despeja” mais violência, qual seja, a violência institucional
(pena e persecução). Ao fazer isso o modelo criminal persecutório-punitivo não diminui a
propagação das ondas de ruptura da violência criminal. Ao contrário, aumentam cada epi-
centro emissor (o crime) de violência conflitual com mais violência-resposta (institucional,
pena criminal), levando todo o tecido social a alto grau de instabilidade e, daí, à ruptura.

A clareza da exposição de Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 193) merece o destaque in verbis:
175

“Em jeito de síntese e com um mero intuito de simplificação (que neste caso se justifica pela ‘desordem’ com que
tão frequentemente se inclui a comunidade na definição da justiça restaurativa), talvez haja que, no seguimento
do que antes se afirmou, distinguir várias hipóteses. Em um primeiro conjunto de casos aqueles que são os em
primeira linha destinatários da proposta restaurativa há um conflito de que são sujeitos directos pessoas indivi-
dualizáveis que ocupam os papéis de agente e de vítima, sendo que a comunidade poderá ser considerada uma
espécie de ‘vítima indirecta’. Em outras hipóteses, no sentido que antes referiu de alguma excepcionalidade,
existe um conjunto de pessoas interligadas por determinados vínculos – nesse sentido, uma comunidade – que é,
enquanto grupo, sujeito directo do conflito. Ora, naquele primeiro grupo de situações em que a comunidade só
pode ser vista como vítima indirecta a quebra da paz dos intervenientes no conflito se repercute na perda da paz
para a comunidade – ela, essa comunidade, não será sujeito principal das práticas restaurativas nem estas se
orientarão para a satisfação, em primeira linha, das necessidades colectivas. O que não equivale a uma exclusão
da comunidade da resposta restaurativa, mas antes a compreensão da sua participação como suporte e factor de
auxílio para o agente do crime e a sua vítima. No segundo grupo de casos, quando a comunidade é, enquanto tal,
interveniente directa no conflito, ela será já sujeito principal das práticas restaurativas e intervirá, não como
suporte para a resolução do conflito que é de outros, mas no papel central de quem reivindica uma reparação ou
de quem assume o dever de a propiciar”. Este segundo grupo é denominado no trabalho de “comunidade afetada”.
48.  Modelo criminal não violento 703
As comunidades, seja em que extensão e em qual função ingressarem na política
criminal não violenta, não podem perder de vista que, nesse novo modelo, não há como
ingressar com uma atuação ou anseio punitivista (vingança, dor ou mesmo o medo). Nele
a “pena criminal” ou qualquer forma de punição não é aceita. A partir desse ponto, deve-
-se impedir quaisquer tendências punitivistas ou vingativas que assolem ou informem
tais participações comunitárias no modelo não violento.176 O objetivo é, e sempre será,
reduzir a violência em uma colaboração associativa de esforços e em uma visão solidária
de comunidade.177
Assim, é na medida em que tais pontos de conflito criminal começam a ser tratados
sem violência institucional que se alcança a estabilidade do tecido. Estabilidade que, diante
da imanência do ser humano ao conflito, não deve ser de “parada” impositiva ou coercitiva.
O equilíbrio do tecido social é um “equilíbrio em movimento”. A estabilidade pela “parada
social” é inalcançável tanto pela própria natureza humana e de suas inter-relações com o
grupo quanto, e principalmente, pelo fato de ela exigir altas doses de controle social e força
(violência) estatal, o que, na sociedade mundial de poucos bilhões de habitantes e interco-
municação informático-globalizada instantânea, é, faticamente, impossível. Isso só leva à
deslegitimação do aparato estatal como matriz de comportamento e, com isso, à inseguran-
ça de um padrão de equilíbrio pela imobilização.

176
Esse talvez seja mais um ganho possibilitado pela abordagem desde o axioma da não violência e, ainda, da sepa-
ração total entre os modelos criminais. Marcos importantes para afastar os receios postos no texto principal e que
são apontados por muitos estudiosos da “justiça restaurativa”, v., por todos, JACCOUD, Mylène. Princípios, ten-
dências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa, cit., p. 176-177; e SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça
restaurativa, cit., p. 185-186, ambas com muitas referências de fontes bibliográficas. Do modo como proposto de
separação de modelos e não incidência da pena criminal, entendemos possível responder à inquietação teórica
trazida pela última autora citada: “O cerne da questão está, portanto, em não se conseguir vislumbrar como pode
um modelo de reacção ao crime que critica na justiça penal a solução do conflito no interesse da comunidade
(com desconsideração da vítima) pretender depois a intervenção da comunidade (com um papel principal) nas
práticas restaurativas” (SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa, cit., p. 187).
177
Assim como Howard ZEHR (The little book of restorative justice, cit., p. 26-27), entendemos que as comunidades
têm despertadas necessidades a partir do crime e, por isso, tarefas a desempenhar. Qualquer crítica no sentido de
estar em uma sociedade que despreza o espaço comunitário e tende ao isolamento deve ser vista, a nosso sentir,
também a partir do afastamento de séculos quanto às práticas comunitárias de resolução de seus problemas inter-
nos. Nas palavras daquele autor: “As comunidades também podem ter responsabilidades para com as vítimas,
ofensores e outras pessoas que fazem parte da comunidade. Quando uma comunidade se envolve em um caso,
pode iniciar um fórum para trabalhar nesses assuntos, fortalecendo a própria comunidade. Este tópico também
é amplo. A lista a seguir sugere algumas áreas de preocupação. As comunidades precisam de justiça para forne-
cer: 1. Atenção às suas preocupações como vítimas. 2. Oportunidades para criar um senso de comunidade e
responsabilidade mútua. 3. Oportunidades e incentivo para assumir suas obrigações pelo bem-estar de seus
membros, incluindo os que foram prejudicados e os que causaram danos, e a promover as condições que promo-
vem comunidades saudáveis” (p. 26, traduzimos). Esse é, em essência, o que decorre de todo o profundo e exaus-
tivo desenvolvimento que o mesmo autor faz em sua obra Changing lenses: restorative justice for our times.
25th ed. Virginia: Herald Press, 2015. Parte III, “Roots and signposts”, p. 99-178. O mesmo autor, agora em coau-
toria com Harris Mika [Fundamental concepts of restorative justice. In: McLAUGHLIN, Eugene et al. (ed.).
Restorative justice: critical issues. London: SAGE, 2004. p. 40-43], afirma: “‘As obrigações da comunidade são
para com as vítimas e ofensores e para o bem-estar geral de seus membros’. 1. A comunidade tem a responsabi-
lidade de apoiar e ajudar as vítimas de crime a atender suas necessidades. 2. A comunidade é responsável pelo
bem-estar de seus membros e pelas condições e relações sociais que tanto promovem o crime quanto a paz na
comunidade. 3. A comunidade tem responsabilidades no sentido de apoiar os esforços para integrar os infratores
na comunidade, de se envolver ativamente nas definições das obrigações dos infratores e de garantir oportuni-
dades para os infratores fazerem as pazes” (p. 41-42, traduzimos).
Diagrama 2.  Modelo criminal não violento (responsabilizador-conciliatório)

Política criminal

Modelo criminal não violento


(responsabilizador-conciliatório)

Sistema processual criminal


Sistema criminal
não violento

Criminalizado Conciliatório
mas
“não punitivo”

Metapartes
Intrapartes
Ofensor se responsabilizar
e
resposta positiva
(vítima e comunidade)

Metodologia: Dialogal

Sentido: Horizontal

Agentes internos: Facilitador

Finalidade: Reconstruir pessoas e


aperfeiçoar ambientes
humanos

Processo
(instrumento) “Justiça restaurativa” Processo Criminal Transformativo

Exemplos
Círculos restaurativos

Ritos conciliatórios com informes


Vítima-Ofendido

a áreas de políticas públicas


vítima-ofensor
Conferência

Procedimentos
Mediação

diversas da criminal
(MVO)

Ritos/Práticas

Fonte: Elaboração própria.


Diagrama 3.  Política criminal e seus espaços violento e não violento

Política criminal

Modelo criminal violento Espaço da Espaço da Modelo criminal não violento


(persecutório-punitivo) violência não violência (responsabilizador-conciliatório)

Sistema processual criminal


Sistema penal Sistema processual penal Sistema criminal
não violento

Punitivo Julgamento Negociado Criminalizado Conciliatório


mas
“não punitivo”

Intenso
Intenso
Intenso

Mitigado
Mitigado
Mitigado
Ofensor se responsabilizar
Intrapartes
Metapartes

e
resposta positiva
Metodologia: Inquisitio Inquisitio (vítima e comunidade) Metodologia: Dialogal
Sentido: Vertical descendente Vertical descendente Sentido: Horizontal

Agentes internos: Sujeitos do poder-saber Sujeitos do poder-saber Agentes internos: Facilitador

Finalidade: Reconstruir fatos e Fixar fatos e/ou novas Finalidade: Reconstruir pessoas e
autorizar pena criminal linhas persecutórias e aperfeiçoar ambientes
acordar penas humanos

Processo Processo de conhecimento Processo de execução Processo “Justiça restaurativa” Processo Criminal Transformativo
(instrumento) (instrumento)

Exemplos
Comum Especial

Procedimentos Inúmeros, a depender


do tipo de pena Procedimentos Ritos conciliatórios com informes
Ritos Inúmeros, a Ritos/Práticas
e fase cumprida a áreas de políticas públicas
depender do diversas da criminal
(MVO)

direito
Círculos

Mediação

Sumário
Conferência

restaurativos

Ordinário
material
vítima-ofensor

Vítima-Ofendido

Sumaríssimo
Fonte: Elaboração própria.
706 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

49. Sistema processual criminal não violento: seus princípios e a natureza jurídica


de seu instrumento
Dentro da metodologia empreendida neste trabalho, passados os antecedentes e im-
prescindíveis planos da política criminal (capítulo X) e do modelo criminal não violentos
(item 48), necessário ingressar no nível do sistema processual àqueles correlato.
Também é parte deste trabalho ser uma teoria que, com fundamento ideológico-
-filosófico claro (não violência), não seja exauriente em profundidade de cada ponto e ato
desses novos modelo criminal e sistema processual, mas lhes confira coerência, lógica es-
trutural e linhas diretivas fundamentais. Esses passos, relevantes em si, não esgotam os
pontos, nem sequer pretendem fazê-lo, mas proteger e garantir liberdade para que os debates
novos e futuros se deem em espaços afinados sempre com o axioma central: a não violência.
Nesse nível de abordagem epistêmica, o sistema processual será analisado não em
seus detalhes ou operacionalidades, mas, a partir de alguns desses pontos, será verificada a
sua principiologia constitucional. Isto para se demonstrar que o sistema processual não vio-
lento está sim no âmbito de proteção daquelas matrizes constitucionais voltadas para o
processo criminal tradicional, mas desde que o intérprete faça as necessárias adaptações ao
seu axioma próprio (a não violência). Para tal mister, imprescindível se ter claro que naque-
las normas constitucionais há âmbitos de proteção ainda não explorados e/ou visualizados
pela ciência processual, que nunca os procurou dado estar voltada apenas ao sistema proces-
sual penal persecutório-punitivo. Todavia, uma vez que se verificou que o axioma da não
violência, como ideologia e espaço de política criminal é autorizado constitucionalmente, os
novos âmbitos de proteção também não estão vedados178.
A questão se põe em outro plano, superada a autorização constitucional. O desafio é
de se abrir as mentes para a ampliação dos saberes processuais voltados ao exame principio-
lógico da Constituição e em face dos conflitos criminais. Esses novos espaços no âmbito
normativo da norma de direito fundamental179 devem ser construído a partir não de um de-
sejo ilimitado de extensão, mas com os novos critérios fixados já desde o modelo criminal:
a) metodologia dialogal; b) sentido relacional horizontal entre as partes naturais do conflito
criminal; c) voluntariedade empática de escolha livre e consciente pelo modelo não violento
de resposta ao conflito; e d) autoconsciência das partes quanto à responsabilização do infra-
tor e sobre um consenso fático do ocorrido. Esse mesmo desenvolvimento de novos espaços
não deve perder de vista o que a finalidade e o meio para se atingi-la têm em comum: não
serem violentas. Assim, a resposta ao conflito criminal apresentado não é a pena criminal,
mas a busca por ações positivas que o infrator terá que tomar para transformar os efeitos
negativos de sua conduta em face da vítima (individual ou coletiva) e, se possível, mas não
necessariamente, à comunidade em meio à qual os fatos se deram. Como meio não violento
para esta consecução de resultado: não é possível se servir da metodologia da inquisitio
que se realiza pela persecução e que já é, em si, violência institucional.180 Isso faz com que
o processo criminal não violento, como instrumento a ser empreendido por aquele sistema,

178
Cf. item 47, supra.
179
ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro, cit., item 4.4.2.
180
Conquanto toda a história da violência ínsita ao aparelho persecutório tenha sido destacada na Parte I deste estu-
do (cf., exemplificativamente, itens 8.2.2; 11; 15; 20.3; 24.3.2, e seus subitens; 25.2.2, e seus subitens; 26.2; e, por
fim, 27.1, supra), para sua rejeição pelo axioma da não violência, cf. itens 46.2 e 46.3, supra.
49.  Sistema processual criminal não violento 707
seja tão relevante para aquela política criminal quanto a consecução de seu resultado con-
sensual. Ele já passa a ser, em si, atuação não violenta para resposta ao conflito. É uma
forma que, mesmo que não atinja o melhor e mais extenso resultado, já corresponde à nova
posição política de não se aumentar a violência social por meio de instrumentos violentos,
mesmo que institucionalizados (rectius, legalizados). Atingir um resultado será certamente
melhor, mas há um valor constitucional intrínseco que se levanta já neste ser diverso do
próprio sistema processual criminal não violento em si e por meio de seus instrumentos.
Logo, o desenvolvimento desse saber processual-principiológico não se faz isolado e
sem critérios informadores e diretrizes. Conhecê-los é a chave para verificar até que ponto
os itens abaixo descritos estão coerentes e devem ir além do que agora somente se enceta.
Assim como, para servir de esteio para os desenvolvimentos futuros, e que fogem dos limi-
tes deste estudo que ora se apresenta, quanto às fases, procedimentos (ritos e práticas),
agências e atuação de seus respectivos agentes nas formas de o processo criminal não vio-
lento se operacionalizar em face da realidade estrutural do local e a escolha das pessoas
envolvidas nos conflitos.181
Este estudo, para iniciar os diálogos pelo descortínio e justificativa de espaços espe-
cíficos para o sistema processual criminal não violento, far-se-á pela filtragem do saber te-
órico tradicional quanto aos princípios processuais constitucionais voltados ao conflito cri-
minal em face daqueles novos axioma, critérios e diretrizes especificados desde a política
criminal e do modelo criminal não violentos.
É nesse contexto teórico-expositivo que os subitens seguintes congregam todo o
antes relacionado neste trabalho e, espera-se, dão um passo adiante ao apontar novas áreas
processuais a serem desenvolvidas por outros estudiosos e pesquisadores desenvolverem se
e na medida que entenderem oportuno se ter um saber processual não violento.

49.1 Devido processo criminal não violento: a mesma cláusula ‘mater’ com novas diretrizes
sistêmicas
Para dar cumprimento às necessidades expostas no item anterior, importante se ana-
lisar a construção de espaços normativos e principiológicos não violentos a partir da cláu-
sula constitucional do “devido processo legal”: um devido processo criminal não violento.
Assim como fora e continua sendo, para o sistema processual persecutório-punitivo, o eixo

181
Para que não pareça incoerente afirmar, repetidas vezes desde o início deste trabalho, que o modelo criminal
persecutório-punitivo é o “único”, mas oferecer base teórica e citar algumas experiências práticas no âmbito da
“justiça restaurativa”, é necessário indicar que, embora esta ocorra para atender conflitos criminais no Brasil, ela
é muito incipiente e, percentualmente, ainda insignificante diante da criminalidade nacional. No Seminário Jus-
tiça Restaurativa (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Seminário Justiça Restaurativa: mapeamento dos
programas de justiça restaurativa. Brasília: CNJ, 2019), um mapeamento de programas existentes e publicado pelo
CNJ em 2019, indicou-se que, dentre todos os tribunais estaduais e federais do Brasil, havia apenas um total de 44
programas (20), ações (18) ou projetos (6) de “justiça restaurativa” (cf. tabela 2, p. 10 da publicação), sendo que
em nove tribunais não havia normativa orientadora para qualquer prática (cf. tabela 3, p. 12). Comparativamente,
em pesquisa independente e por meio de formulários de questões e entrevistas com profissionais da área, Fernanda
Carvalho Dias de OLIVEIRA aponta a existência de “ao menos 121 núcleos e projetos de justiça restaurativa
ativos, abrangendo todos os estados brasileiros” em 2020 (A experiência e o saber da experiência da justiça
restaurativa no Brasil: práticas, discursos e desafios. São Paulo: Blucher, 2021. p. 166). Ainda assim, a verdade é
que tais experiências, apesar de reveladoras da integração efetiva do ideal não violento em solução de conflitos
criminais no Brasil, são aplicadas a um número de casos criminais que, em termos percentuais, se comparado
com a criminalidade nacional (cf. item 31, supra), deve ser considerado ainda ínfimo. Essa é a razão em se afirmar
que o modelo criminal tradicional é único em nosso ordenamento.
708 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

motriz para a garantia de surgimento de vários princípios que paulatinamente revelam sua
imprescindibilidade e adquirem autonomia (p. ex., inadmissibilidade da prova ilícita, prazo
razoável do processo e direito à assistência jurídica), também desempenha e ocupa posição
central na construção de um novo instrumental: o processo criminal não violento, em suas
diversas formas e práticas.
Deixe-se claro, com traços fortes e já de início, que a relevante posição de cláusula
mater, com viés voltado a tutelar o cidadão contra o excesso de violência estatal, notada-
mente quando aplicada a pena ou expropriação de direitos se dá sem “processo” ou em
processo carente das conquistas humanitárias do século XX, não se perderá ou será em
qualquer modo reduzida pela nova abordagem ora empreendida. Seu conteúdo normativo de
direito fundamental é que passa a uma nova ampliação, destinada a proteção ao modelo
criminal não violento alternativo que, como já dito em tantas outras passagens anteriores,
não é ilimitado ou sem axioma, diretrizes e finalidade claros e próprios.182 O espaço do
“devido processo criminal não violento” deve servir de baliza segura para a necessária re-
gulamentação e estruturação a ser feita.183
A cláusula do devido processo legal, historicamente, não nasceu para ter seu âmbito
de proteção limitado em extensão ou profundidade184, tanto que não há erro em dizer que os
hoje autônomos direitos fundamentais voltados ao processo penal tiveram como fonte aque-
la cláusula mater.185 Isso é mais verdade quando se observa que, mesmo com a inclusão de
todas as garantias constitucionais do processo tradicional em nossa Constituição, ainda as-
sim o constituinte a manteve autônoma e inscrita a fim de que necessidades futuras pudes-
sem dela se servir ampliando seu conteúdo normativo.186
Uma necessidade não prevista expressamente pelo constituinte de 1988187 é, sem
dúvida, o sistema processual criminal não violento ora proposto. Assim, como a política
criminal não violenta que lhe dá base e critérios informativos foi buscar sua justificativa

182
Como a dignidade da pessoa humana como um desses critérios e finalidade aplicados como limites de resultado
não violento, v. nossas considerações sobre a dignidade da pessoa humana e a “resposta não violenta de concilia-
ção criminal” (item 48.1, supra).
183
No sentido de ser necessário estabelecer “garantias fundamentais” para o processo restaurativo e, para isso, não
haver erro em buscar as experiências e saberes do modelo tradicional, v. BRAITHWAITE, John. Principles of resto-
rative justice. In: VON HIRSCH et al. (org.). Restorative justice and criminal justice: competing or reconcilable pa-
radigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 1-20, item III, “Thinking theoretically about restorative justice”, p. 6-7.
184
Sobre a história do surgimento da cláusula do devido processo legal no contexto de violência da Magna Carta de
1215, que custou ao povo inglês uma guerra civil e maior distanciamento da porção continental da Europa Cristã,
v. nosso breve ressalto investigativo no item 25.1, supra.
185
Sobre as dimensões objetiva e subjetiva e absoluta e relativa do conteúdo essencial do diploma constitucional,
com análise teórica e analítica empreendida para a norma fundamental da presunção de inocência, garantia que
defluiu, historicamente, daquela norma mater, v. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no
processo penal brasileiro, cit., itens 3.8, 4.1 e 4.2, com seus subitens. Quanto a considerações sobre “suporte fáti-
co amplo” e “âmbito de proteção da norma”, desenvolvimentos constitucionais aplicáveis a normas de garantia
processuais penais, v., na mesma obra, item 4.4 e seus subitens, porquanto importantes critérios de expansão do
conteúdo da norma constitucional dentro de uma concepção relativa de conteúdo normativo essencial. Por funda-
mento diverso, mas também afirmando o conteúdo ilimitado do devido processo legal, notadamente em sua por-
ção penal, e pela convencionalidade que também o reveste, v. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo
penal, cit., Capítulo 10, “Acordo no processo penal”, item 1.1.
186
SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo penal constitucional. 6. ed. São Paulo: RT, 2010. Item 3.3, p. 44.
Reza o inciso LIV do art. 5º da CR: “LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”.
187
Sobre a imprevisibilidade expressa do constituinte de 1988 quanto à ideologia da “não violência”, mas sua total e
perfeita compatibilidade com os mais significativos fundamentos da própria Constituição e a maior efetividade
que ela traz a todos cidadãos, pelas vias sociais mais positivas, cf. item 47, supra.
49.  Sistema processual criminal não violento 709
constitucional nos “Princípios Fundamentais” da Constituição, aquele sistema deve ter
como base constitucional ao desenvolvimento de seu estofo teórico aspectos ainda não
explorados da cláusula-fonte do devido processo legal. Haverá, em sentido oposto, espa-
ços tradicionalmente já desenvolvidos para o devido processo legal, assim como princí-
pios já autônomos, que continuarão pujantes e essenciais ao sistema processual persecutório-
-punitivo, mas não terão oportunidade no novo sistema processual não violento. O que de modo
algum reduz seus âmbitos de incidências já existentes. Haverá apenas uma não introdução, por
desnecessidade ou incompatibilidade com as diretrizes e finalidade desse novo sistema.
Essa consciência para o desenvolvimento criterioso e apropriado (rectius, filtrado) é
imprescindível a evitar que, mesmo com justificativas aparentemente constitucionais e pro-
tetivas, se coloque em risco todo o modelo criminal não violento por introjeções de estrutu-
ras, de agências ou de técnica-normativa do sistema processual persecutório-punitivo.
A alternativa que se apresenta neste trabalho é não violenta, logo não punitiva e não
persecutória. Ela não é “menos” persecutória ou punitiva. Ela rejeita a própria inserção das
noções de pena e da inquisitio desde seu modelo criminal.188 Logo, não se trata de aplicar a
tradição do “devido processo legal” para evitar excesso ou eliminar ilegalidades na punição
ou persecução criminais. Trata-se de evitar seu ingresso no novo sistema criminal para que
não se torne, progressivamente, uma extensão (menos, mas ainda) punitiva, ou seja, um
novo instrumento do modelo criminal violento, cujas forças de atração e homogeneização
aproximam-se para fagocitar (absorver e transformar) qualquer iniciativa que procure redu-
zir seus efeitos sistêmicos violentos.189
Fica claro, dessarte, que não se defende aqui, de modo algum, a redução, elimina-
ção ou substituição da tradicional cláusula do devido processo legal ou de todas as garan-
tias e princípios que dela defluíram e atualmente se posicionam como direitos fundamen-
tais na Constituição brasileira. Muito ao contrário, exatamente a partir daquela e desses é
que se pretende sejam adaptadas de forma coerente e mesmo criadas novas garantias
processuais ou novos espaços nas garantias já existentes.190 Mas sempre com a certeza de

188
Cf. itens 46.2 e 46.3, e os subitens de ambos, supra.
189
Direcionando seus comentários à “justiça restaurativa”, mas em tudo aplicáveis neste ponto ao modelo criminal não
violento, Elena LARRAURI PIJOAN (Tendencias actuales de la justicia restauradora, cit., p. 90-91) informa do
risco que os modelos novos correm diante da resistência dos mais consolidados e que os criminólogos denominam
“extensão de rede”. Ressalta, em suas conclusões, ser este o maior risco à “justiça restaurativa”, in verbis: “O maior
risco na minha opinião é que ocorra o conhecido efeito ‘extensão de rede’. Essa consequência pode ser causada por
vários fatores: pela prioridade dada ao sistema penal, que decide quais casos são adequados para a justiça restau-
rativa; devido à existência de critérios de referência muito restritivos que podem levar à derivação apenas de casos
triviais; pelo fato de que os acordos adotados nas conferências de justiça restaurativa não sejam necessariamente
levados em consideração pelo juiz no momento da definição da sentença; e, finalmente, porque eles não constituem
uma alternativa à prisão se a área escolhida para desenvolver a justiça restaurativa for precisamente o ambiente
da prisão. A justiça restaurativa representa uma nova tentativa de responder ao crime, mas seria ilusório esperar
grandes realizações se não for dotada de uma autonomia e recursos sociais que possam alterar as razões profundas
que muitos atos delitivos produzem” (traduzimos). Aponta esse mesmo risco, denominado “netwidening” ou “novas
clientelas”, JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa, cit.,
p. 178-179. Também produzindo um alerta à “justiça restaurativa” e o risco de ela romper com sua proposta não pu-
nitiva, sendo colonizada por uma noção de minimalismo penal e, portanto, dar o primeiro passo no sentido de ser
apropriada e, depois, desvirtuada pela pesada tradição cultural punitiva, v., o recente artigo de Daniel ACHUTTI e
Salo CARVALHO (Restaurativa em Risco: a crítica criminológica ao modelo judicial brasileiro. Seqüência. Floria-
nópolis, v. 42, n. 87, p. 1-39, 2021), já explorado por nós no item 46.3.2, supra.
190
María Isabel GONZÁLEZ CANO (La mediación penal, cit., item IV.4) traça também diretrizes e aponta a necessi-
dade de construir um “devido processo” para a mediação penal, não obstante guarde com esse trabalho uma dife-
rença essencial no tocante a aquela autora entender que a mediação penal deve integrar o modelo criminal tradicio-
nal, que ela denomina “sistema de justiça penal”. A ideia central, contudo, permanece a mesma: a necessidade de
implementar ações considerando conteúdo e formas peculiares, mas que devem ter um esteio de segurança jurídica.
710 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

que tê-las e criá-los ao processo criminal não violento não se turba, muda ou muda seu
destino e natureza de sempre servir de proteção ao cidadão contra a violência ou abuso do
poder instituído.
Assim, de se voltar as atenções às garantias processuais autônomas e decorrentes do
devido processo legal que podem e precisam ser redesenhadas por futuros estudos e estu-
diosos para o processo criminal não violento. Isso porque não devem ingressar sem análise
e filtros de pertinência e adaptabilidade ao processo criminal não violento.
Antes, porém, necessário destacar três grupos de garantias processuais que não en-
contram a mesma pertinência e relevância no sistema processual não violento, não obstante
sejam centrais no sistema persecutório-punitivo. Como desses grupos não trataremos nos
próximos subitens, necessário esclarecer por que eles perdem a relevância naquele sistema
ora proposto.
O primeiro grupo diz respeito às salvaguardas constitucionais da liberdade do impu-
tado. Como já assentado, a partir do não ingresso da pena criminal desde o plano do mode-
lo criminal não violento191, não é possível que o processo que dele derive se realize por
qualquer ato de violência; seja ele persecutório, seja cautelarmente punitivo. Assim se ex-
cluem quaisquer possibilidades de restrição de liberdade pessoal ou jurídica do infrator, seja
ela determinada por decisão cautelar, seja determinada em decisão de mérito. Todas as ga-
rantias processuais destinadas à proteção do cidadão contra ilegalidades ou abusos decor-
rentes de prisão ou privação de bens, valores ou direitos não têm aplicabilidade no sistema
processual não violento. Isso faz com que as normas constitucionais da vedação de prisão
ilegal ou excessiva, assim como as dela decorrentes, incluídas aqui as de restrição de direito
patrimonial, não guardem uma relevância a justificar seu estudo dirigido nesse passo do
sistema processual.192

Cf. item 46.2, supra.


191

O não ingresso da “pena criminal” no modelo criminal não violento faz com que as seguintes normas consti-
192

tucionais de direitos e garantias e a elas vinculadas, todas decorrentes do devido processo legal, não tenham
relevância para aquele modelo: “Art. 5º [...] XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a
obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos su-
cessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; XLVI – a lei regulará a in-
dividualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda
de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; XLVII – não haverá
penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis; XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos
distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX – é assegurado aos presos o
respeito à integridade física e moral; L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam per-
manecer com seus filhos durante o período de amamentação; [...] LXI – ninguém será preso senão em flagran-
te delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de trans-
gressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local
onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por
ele indicada; LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-
-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV – o preso tem direito à identificação dos respon-
sáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela
autoridade judiciária; LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade
provisória, com ou sem fiança; LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadim-
plemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; [...] LXXV – o Estado inde-
nizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença; [...]”.
Também faz parte desse rol a norma fundamental definidora da presunção de inocência (“LVII – ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”), aplicada em seu conteúdo de
“norma de tratamento”. Sobre esse sentido normativo, v. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de ino-
cência no processo penal brasileiro, cit., item 5.4.2.1. O devido processo legal como manifestação da dignidade
da pessoa humana também garante que mesmo o tratamento desrespeitoso às partes do conflito seja evitado, as-
sim também as possibilidades de resultados não violentos. Como afirmado por Ricardo Maurício Freire SOARES
49.  Sistema processual criminal não violento 711
Pela mesma lógica de filtragem, há um segundo grupo referente às atividades
persecutório-probatórias. A partir da constatação de que no sistema processual criminal
não violento se parte de um consenso fático, ou seja, as partes do conflito (infrator e vítima)
não divergem sobre a conduta havida e seus efeitos193, a verificação probatória por meio de
atividades de agências persecutórias ou acusatórias não existe como nos moldes conhecidos
no sistema processual tradicional. Há, apenas, diante do apresentado e consensuado pelas
partes, a verificação jurídica de se tais fatos são, ao menos em tese, um crime em análise
formal e material de legalidade e proporcionalidade. Isto é, a base empírica não deve ser
objeto de perscrutação, mas, apresentada e consensuada, serve como material para atestar a
existência de lesividade (formal e material) a revestir tal conduta como “crime” e que exija,
portanto, a intervenção do processo criminal não violento.194
Essa peculiaridade inicial do sistema processual criminal não violento (inexistência
de atividade persecutório-probatória), torna pouco relevante a vedação da obtenção de prova
por meio ilícito (art. 5º, LVI, da CR), pois isso se daria apenas na avaliação da atuação da
parte que apresentou alguns elementos probatórios para aquele exame de verificabilidade da
natureza criminal do conflito195, assim como de pouca valia o sentido da presunção de ino-
cência como “norma probatória”196.
No mesmo diapasão, surge um terceiro grupo de princípios sem relevância para o
sistema processual criminal não violento. Neste sistema a “resposta” ao conflito é construí­
da a partir do consenso das partes, sem interferências em suas vontades por meio de um

(O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. Item “8.1 A cláusula
principiológica do devido processo legal: significado e origem histórica”), ao estabelecer uma correta relação
entre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e o devido processo legal: “O devido processo
legal pode ser considerado uma cláusula geral principiológica decorrente do princípio da dignidade da pes-
soa humana, estando consagrado na Carta Magna de 1988, insculpido no art. 5º, LIV, ao estabelecer que
ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Irradia-se, pois, para a dis-
ciplina de todas as modalidades de processo (jurisdicional, legislativo, administrativo, negocial), como mode-
lo normativo de inegável inspiração pós-positivista” (p. 163).
193
Embora seja uma constante em todas as obras que tratam dos fundamentos restaurativos, interessante notar que
este ponto é requisito legal proposto no Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS,
ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal: “Art. 115. [...] § 1º Para que o conflito seja passível da práti-
ca restaurativa, é necessário que as partes reconheçam os fatos essenciais, sem que isso implique admissão de
culpa em eventual processo judicial”.
194
Nesse sentido de necessidade de se aplicar a “justiça restaurativa” como prática para solução de “conflitos crimi-
nais” se de fato a legislação local entender que a conduta é um “crime”, v. Manual sobre programas de justiça
restaurativa, traduzido para o idioma português em 2021 pelo UNODC, quando trata das salvaguardas legais e
políticas para a incidência de práticas restaurativas: “‘Processo a ser usado onde houver provas suficientes’: Os
processos restaurativos devem ser usados apenas onde houver provas suficientes para denunciar o ofensor (pará-
grafo 7). A vítima e o ofensor devem concordar com o relato básico do acontecido, sendo esta a base para sua
participação no processo (parágrafo 8)” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME.
Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 16). Dentro da experiência brasileira, é o mesmo corte
exigido para a aplicação tanto da transação penal (art. 76, caput, Lei n. 9.099/95) quanto do acordo de não persecu-
ção penal (art. 28-A, caput, Cód. Proc. Pen.), em que se coloca como condição legal “não ser caso de arquivamento”.
195
Preleciona a Constituição neste ponto: “Art. 5º [...] LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos;”. Esse dispositivo, formulado e de ampla incidência para controle das atividades dos órgãos de
persecução e acusação públicas, tem diminuta incidência ao se tratar de atividade de agente privado, notadamen-
te por estar, em regra, sob o mante de alguma hipótese excludente de ilicitude (v. art. 23, Cód. Pen.), o que retira
o caráter ilícito da conduta.
196
A norma constitucional que trata desse direito fundamental de índole processual penal é a presunção de inocência
nesses específicos sentido e conteúdo, melhor detalhados em ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de
inocência no processo penal brasileiro, cit., item 5.4.2.2.
712 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

poder vertical e decisório.197 Assim, as garantias quanto a critérios de decisão ou distribui-


ção de cargas probatórias também estão afastadas.198
Restam, contudo, algumas garantias que, se não podem ser aplicadas de modo dire-
to a partir do conteúdo técnico existente, porquanto constituídas histórica e teleologicamen-
te para o processo penal persecutório-punitivo, podem e devem ser desenvolvidas a partir
daquele saber criminal já existente, mas voltado agora ao sistema processual criminal não
violento, conforme as diretrizes de seu modelo específico.
Dentre elas destacam-se, aqui, algumas constantes explicitamente na Constituição,
tais como a inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV); o contraditório (art. 5º,
LV); a publicidade dos atos processuais ser a regra (art. 5º, LX); o prazo razoável (art. 5º,
LXXVIII) e, por fim, a assistência jurídica integral e gratuita (art. 5º, LXXIV). Além dessas
garantias explícitas, ainda há duas implícitas que merecem destaque: a imparcialidade, de
que decorre a garantia do juiz natural (art. 5º, combinando-se os seus incisos XXXVII e
LIII)199, e que deve ser adaptada ao facilitador; assim como o direito ao procedimento legal,
decorrente das disposições da segurança jurídica e da liberdade200 (art. 5º, caput).
A análise de cada uma dessas garantias constitucionais no âmbito do processo cri-
minal não violento segue nos próximos subitens. Contudo, e mais uma vez, procede-se a tal
exame não com a pretensão de exaurir cada temática, mas de realizar indicação norteadora
da sua importância em pontos relevantes àquele novo sistema processual. A ordem dos su-
bitens não está estabelecida por ordem de importância ou hierarquia, mas, apenas, para
melhor didática expositiva.

49.1.1 Inafastabilidade do Poder Judiciário: uma nova discussão sobre a necessidade


de sujeito de poder-saber no sistema processual não violento; e as aproximações
inevitáveis entre os modelos criminais tradicional e o não violento
A inafastabilidade do Poder Judiciário quanto a qualquer situação de “lesão ou
amea­ça ao direito” (inciso XXXV do art. 5º) tem suas raízes históricas já identificadas

197
O Manual sobre programas de justiça restaurativa, elaborado pelo UNODC, ao tratar das salvaguardas legais e políti-
cas para a incidência de práticas restaurativas, preceitua: “2.3 Salvaguardas legais e políticas. Os ‘Princípios Básicos’
também recomendam o estabelecimento das seguintes salvaguardas procedimentais importantes, seja na lei e nos re-
gulamentos, seja na política (ver parágrafos 14 a 17). ‘É necessário o consentimento do ofensor e da vítima’: Os pro-
cessos restaurativos devem ser usados apenas com o consentimento livre da vítima e do ofensor e ambos devem poder
retirar esse consentimento a qualquer momento durante o processo (parágrafo 7). [...] ‘Os acordos devem ser voluntá-
rios e razoáveis’: Os acordos decorrentes de um processo restaurativo devem ser alcançados de modo voluntário e
conter apenas obrigações razoáveis e proporcionais (parágrafo 7)” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE
DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 16). No mesmo sentido, v. Substitutivo
de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal:
“Art. 115. [...] § 5º O acordo decorrente da prática restaurativa deve ser construído a partir da livre atuação e expressão
da vontade dos participantes, respeitando a dignidade humana de todos os envolvidos”.
198
Citem-se, aqui, tanto o dispositivo constitucional de obrigatoriedade de fundamentação judicial das decisões
(art. 93, inciso “IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e
a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado
no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”) quanto o já referido dispositivo da presunção de ino-
cência, mas agora como “norma de juízo”. Para a definição desse conteúdo normativo, v. ZANOIDE DE MORAES,
Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro, cit., item 5.4.2.3.
199
BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 4. ed. São Paulo: RT, 2016. p. 44.
200
O procedimento legal ser um direito fundamental do cidadão tem seu mérito no desenvolvimento firmado por
Antonio SCARANCE FERNANDES em sua tese de titularidade, publicada como Teoria geral do procedimento
e o procedimento no processo penal. São Paulo: RT, 2005. Seção 2 do Capítulo I, cujo título é “O direito funda-
mental ao procedimento no processo penal”.
49.  Sistema processual criminal não violento 713
neste trabalho no tempo e em seus contextos juspolítico. A construção dessa ideia nasce a
partir da queda do Império Romano do Ocidente (século V)201, desenvolve-se com a virada
canonista sobre a tradição germânica até o século IX202 e se consolida a partir do século XI,
com as universidades escolásticas.203
A ideia central construída e mantida desde as citadas fases históricas, ensinada nas
universidades, a partir de uma visão de então e ainda não discutida devidamente na realida-
de do mundo atual, é que um terceiro ao conflito tende a decidir melhor, dado seu natural
distanciamento do conflito.
Após fixarem essa base argumentativa, notadamente para afastar as pessoas que
estavam no envolvidas nas (fortes e perigosas) emoções conflituais, ainda como produto
daquela criação medieval das universidades, estabeleceu-se que o terceiro, se técnico-
-normativo, tem maior senso de “justiça” por ser especialista nas leis que são feitas para
manter a paz e a ordem.204 Todavia, o que foi escorregando (rectius, sendo escondido) pelos
escaninhos histórico-argumentativos, é que por detrás do que se argumentava havia o inte-
resse de expropriar a vítima do poder de participar da resposta a seu próprio conflito crimi-
nal.205 Ainda se escondeu, por conveniência dos poderes instituídos (Igreja e/ou Estado),
que, ao tomarem a posição de vítima nos delitos, deixaram de ser um “terceiro” no conflito,
passando a “também” ser parte dele. Embora ontologicamente não integrassem a relação
material criminal (os acontecimentos da vida), processualmente se colocaram à mesa dos
debates “também” nesta posição.206 Assim, aqueles poderes instituídos (passados e atuais),
por meio de representantes escolhidos (os agentes internos do aparato criminal; inquiridor,
acusador, julgador e executor) passaram a figurar em todas as cadeiras da mesa processual
penal, exceção feita à do imputado.207
Assim, se a inafastabilidade do Poder Judiciário quiser ser mantida, mesmo no mode-
lo criminal tradicional, é necessário ter todo o explicitado em mente para uma rediscussão

201
Sobre as características do modelo germânico, cf. item 10, supra, e seus subitens. Sobre as condições socioantro-
pológicas a partir da queda de Roma Ocidental até o século XI, v. itens 12 e 13, supra.
202
Sobre esse ponto específico na história, quando os ilícitos ainda eram uma mistura entre o eclesiástico, o civil
e o criminal, inclusive com a construção da por nós denominada “inquisitio católica”, para representar essa
fase de transição em que há hábil e conveniente subversão das tradições germânicas para inserir os povos na
crença cristã e, com isso, mudar os critérios e definir os controladores do conflito penal, v. itens 14 e 15, supra,
e subitens.
203
Sobre o ambiente socioantropológico a partir do século XI (cf. item 17, supra) e que deu base ao surgimento das
universidades escolásticas sob a dominação do alto clero da Igreja e sua mentalidade dogmático-cristã, v. item 17.1,
supra. Sobre o empuxo dessa base teórico-antropológica para a construção de uma nova inquisitio, a “inquisitio
escolástica”, que representou o domínio definitivo do modelo criminal persecutório-punitivo tradicional, extinguindo-
-se o modelo germânico das composições e, por fim, preparando o terreno para as Inquisições, v., para a Europa
continental, os itens 19 e 20, supra, e, para a Europa insular, o item 21, supra, com seus respectivos subitens.
204
Cf. item 20.2, e seus subitens, supra.
205
Sobre essa “expropriação” como tomada de poder, é lúcido e profícuo o trabalho de Nils CHRISTIE (Conflicts as
property, cit.).
206
Sobre os momentos históricos de expropriação da posição de “poder” da vítima, por diferenças razões apresenta-
das, mas sempre para centralização do poder pelos ocupantes (da vez) do poder instituído, cf. itens 8.2.2; 14.1; 19;
24.3.1; 25.2.1; e 27.1, supra.
207
Tratou-se de evidenciar exatamente esse momento conclusivo quando, já nas Inquisições, e mesmo depois delas,
demonstramos tal monopólio do poder instituído desde o século XIII até o início do século XIX (cf., notadamen-
te, mas não apenas, os itens 24.2 e 25.2, supra). A investigação histórica procedida por toda a Parte I não deixa
nenhuma dúvida quanto a essa paulatina e progressiva manipulação e assenhoramento do conflito pelo Estado e
pela Igreja em todas as suas posições de poder.
714 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

sobre sua legitimidade no século XXI, notadamente em um mundo globalizado e cujos es-
paços e domínios públicos e privados estão buscando nova articulação.208
Considerando que as partes do conflito não serão entregues à própria sorte no proces-
so criminal não violento, mas serão conduzidas em método dialogal estimulado, controlado e
dinamizado por pessoa estranha ao conflito preparada e treinada para esse mister, que neste
trabalho tratamos de modo geral pelo termo “facilitador”209, é de se indagar: até que ponto o
resultado do consenso das partes sob os auspícios do facilitador é pior do que uma decisão
imposta por terceiro afeito a leis, mas distante dos traumas da parte-vítima e da violência
envolvente do “ fenômeno criminal”? Com toda a experiência já haurida da área não penal
em resolver causas por meios não adjudicados, até que ponto alguém é capaz de afirmar, ‘a
priori’, que a decisão judicial é (sempre) melhor que o consenso das partes do conflito, mes-
mo ele sendo um crime? Impor o Poder Judiciário é uma escolha de melhor decisão ou de
manutenção de controle de e pelo poder aos moldes históricos? Postas as bases do sistema
processual criminal não violento, qual o óbice a que possa ser instrumento de redução de
uma larga gama da criminalidade pela eliminação dos efeitos e causas da violência envolven-
te? E, por fim, em que medida tal processo precisa da submissão ao Poder Judiciário?
A partir dessas indagações surgem algumas reflexões que não devem desconsiderar
a realidade do sistema processual penal do Brasil atual210 que se deve analisar uma nova
dimensão à norma constitucional da “inafastabilidade judicial” apropriada ao sistema não
violento. O próprio CNJ, ao tratar da “justiça restaurativa”, em sua Resolução n. 225/2016,
já se posicionou por sua revisão. Sem indicar uma linha precisa de modificação, aponta que
aquele princípio deve ser repensado diante da realidade e da necessidade restaurativa. In
verbis, de seus “considerandos” iniciais, extrai-se:

CONSIDERANDO que o direito ao acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV,


da Carta Magna, além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica
o acesso a soluções efetivas de conflitos por intermédio de uma ordem jurídica
justa e compreende o uso de meios consensuais, voluntários e mais adequados a
alcançar a pacificação de disputa;
CONSIDERANDO que, diante da complexidade dos fenômenos conflito e violên-
cia, devem ser considerados, não só os aspectos relacionais individuais, mas tam-
bém, os comunitários, institucionais e sociais que contribuem para seu surgimento,
estabelecendo-se fluxos e procedimentos que cuidem dessas dimensões e promovam
mudanças de paradigmas, bem como, provendo-se espaços apropriados e adequados;

Para um mais apropriado direcionamento dos debates teóricos a serem travados, im-
portante alargar um pouco a problematização que devem abordar. Com esse escopo, inserem-
-se aqui dois temas capitais a envolver o princípio ora tratado. O primeiro é até que ponto a
“resposta não violenta de conciliação criminal” pode representar “lesão ou ameaça a direi-
to” a exigir a obrigatória intervenção jurisdicional. O segundo é se devem existir pontos de

208
Sobre o perfil “privado-público” por nós proposto para as novas agências no modelo criminal não violento,
cf. item. 48.3.1, supra.
209
Cf. itens 44.4 e 48.2.2, supra.
210
Por todos, v. Gráficos 9 e 57 e item 40, supra, embora somente a leitura da Parte II possa dar a exata noção do
colapso sistêmico e produtor disfuncional de mais violência (criminal e institucional) e dos custos humanos e fi-
nanceiros envolvidos em todo o aparato persecutório-judicial-penitenciário nacional.
49.  Sistema processual criminal não violento 715
intercomunicação entre os modelos criminais, uma vez que ambos coexistem e se prestam
a incidir sobre o crime, e quais são esses momentos e sua extensão.211
O primeiro ponto, que parece de construção teórica mais facilitada, deve ser aborda-
do a partir das premissas do modelo criminal não violento. É dizer: da voluntariedade na
escolha do modelo, sem qualquer coerção para as partes (infrator e vítima);212 de que seu
resultado é consensual e não pode ter conteúdo violento a qualquer das partes, notadamente
ao infrator;213 e, por fim, de que o instrumento utilizado (o processo criminal não violento)
para atingir a esse resultado também não pode comportar violência de qualquer natureza em
seus atos, sendo infenso a qualquer medida cautelar constritiva (pessoal ou real) e de ingres-
so e permanência voluntários de seu início (abordagem empática pelo facilitador às partes)
até a fase executória do resultado conciliatório.214
Dentro desse quadro, vítima e ofensor terão a seu dispor uma gama enorme de pos-
sibilidades de consensos a que podem chegar e entre si estabelecer, mas sempre na esfera de
seus direitos disponíveis (p. ex., não é possível se acordar sobre liberdade ou integridades
física, psicológica ou moral) que, unidos à voluntariedade, tendem mesmo à autoexecução;
o que dispensa até mesmo qualquer indagação sobre força coercitiva para cumprimento do
acordo. Isso coloca o modelo em um campo de disposição voluntária pouco diverso da rea-
lidade não penal dos direitos disponíveis, v.g., da conciliação e da mediação para conflitos
não criminais, tornando a verificabilidade judicial de sua resposta consensual até mesmo
despicienda para produção de feitos e seu cumprimento.215 No campo criminal, contudo, há
sempre uma tendência de se exigir a homologação judicial.216

211
Sobre a possibilidade de coexistência de modelos criminais diversos, integrados por sistemas processuais afeitos
a cada qual, já é permitida desde a Resolução n. 225/2016, do CNJ, ao estabelecer regras para a “justiça restaurativa”:
“Art. 1º A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e
atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos
e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na
seguinte forma: [...] § 2° A aplicação de procedimento restaurativo pode ocorrer de forma alternativa ou concorrente com
o processo convencional, devendo suas implicações ser consideradas, caso a caso, à luz do correspondente sistema proces-
sual e objetivando sempre as melhores soluções para as partes envolvidas e a comunidade” (destacamos).
212
Sobre o tema, cf. item 48.2, e seus subitens, supra.
213
Cf. item 48.1, supra.
214
Sobre o ponto, cf. item 46.2, e seu subitem, assim como o item 49.1, in fine, supra.
215
Conforme versa a Lei n. 13.140/2015, que “[D]ispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de
controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”, em seu art. 20, parágra-
fo único: “O termo final de mediação, na hipótese de celebração de acordo, constitui título executivo extrajudicial
e, quando homologado judicialmente, título executivo judicial” (destacamos). Se levado à homologação judicial,
verificar-se-á, dentre outros e a depender do caso, a efetiva existência de voluntariedade e plena ciência das partes,
bem como o respeito aos princípios gerais (art. 2º, Lei n. 13.140/2015), e, por fim, se não há óbices legais à autocom-
posição. Não se trata, neste ponto do trabalho da solução via “arbitragem”, pois, mesmo sendo uma forma não adju-
dicada de solução de conflito, ela traz em si a estrutura vertical de imposição de decisão por um terceiro (sujeito do
poder-saber), o que é incompatível com a aproximação de ideias do modelo criminal não violento, como já explici-
tado. O Código de Processo Civil de 2015 trouxe um significativo incentivo às formas de solução de conflito não
adjudicada e, mesmo adjudicada, por meio de mediação ou conciliação (cf. “Art. 3º Não se excluirá da apreciação
jurisdicional ameaça ou lesão a direito. [...] § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual
dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser esti-
mulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do proces-
so judicial”) em que, mesmo não havendo homologação judicial do acordo, ele produz efeitos jurídicos e vale como
título extrajudicial (cf. art. 784, IV e XII, Cód. Proc. Civ., combinado com o art. 20, parágrafo único da
Lei n. 13.140/2015), podendo-se dizer que talvez a principal diferença entre haver ou não homologação judicial é qual
a natureza do título a se executar. Todavia, também na esfera civil, o que se tem visto é que, por ser fruto de consen-
so voluntário, os acordos tendem a um alto índice de cumprimento espontâneo pelas partes (CONSELHO NACIO-
NAL DE JUSTIÇA. Manual de mediação judicial. 6. ed. Brasília: CNJ, 2016. p. 159).
216
O UNODC, no seu Manual sobre programas de justiça restaurativa, feito para uma gama enorme de países com
legislações não menos diversas em seus fundamentos e orientações, indica neste ponto: “‘Supervisão judicial’:
716 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Essa aproximação da natureza dos direitos conciliados também produz consequên-


cias jurídicas para os efeitos que à “resposta conciliatória” podem ser atribuídos. O cumpri-
mento desse acordo penal tem potencial não apenas para extinguir a punibilidade do crime,
mas, dentro de uma solução global de litigiosidade, também poderá impedir qualquer ques-
tionamento extracriminal entre as partes que participaram do processo não violento. Tudo a
compor o equilíbrio mais abrangente possível das relações intrapessoais dos envolvidos.
Isso porque, ao menos entre vítima e autor, como toda a questão foi inteiramente exposta e
tratada, não parece haver, ao menos na perspectiva das partes principais do conflito, algo
mais a pleitear, em qualquer área do direito.217
O segundo ponto acima indicado como relevante, para ampliação da visão e do de-
bate sobre o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário dirigido ao modelo não vio-
lento, diz respeito aos pontos de aproximação entre os sistemas processuais persecutório-
-punitivo (tradicional e violento) e a alternativa ora tratada (não violenta).
Para este trabalho, como já se afirmou, os modelos são independentes em espaços,
estruturas, instrumentos normativos, agências e agentes e não devem ser acoplados ou
misturados de qualquer forma.218 O mesmo tem que se dar com os seus correlatos sistemas

‘Os resultados de acordos decorrentes de programas de justiça restaurativa devem, se apropriado, ser supervi-
sionados judicialmente ou incorporados em decisões judiciais ou julgamentos’ (parágrafo 15). Sempre que isso
ocorrer, o resultado deve ter o mesmo valor de qualquer outra decisão judicial. Isso significa que, na maioria dos
sistemas, ofensor e Ministério Público podem recorrer do resultado. Esses resultados devem impedir oferecimento
de denúncia com relação aos mesmos fatos” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRI-
ME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 17). O Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo
Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal indica redação que per-
mite se entender pela “possibilidade” de homologação judicial, sem que sua falta implique ausência de eficácia
jurídica ao acordo celebrado e cumprido: “Art. 120. Ao final da prática restaurativa, deve ser juntada aos autos
da persecução memória com o registro dos nomes das pessoas presentes, o acordo firmado, que poderá ser ho-
mologado pelo juiz” (destacamos); não obstante, em dispositivo anterior, mas ainda no capítulo referente à “Justi-
ça Restaurativa”, preveja disposições que indicam a obrigatoriedade da homologação para produção de efeitos
jurídicos: “Art. 117. [...] § 3º Ao final da sessão restaurativa, caso não seja necessário designar outra sessão, po-
derá ser assinado acordo que, após ouvido o Ministério Público, será homologado pelo magistrado responsável,
preenchidos os requisitos legais. [...] Art. 118. [...] § 4º Na esfera penal, os efeitos da prática restaurativa serão
alcançados até o trânsito em julgado da sentença” (destacamos). E, ainda mais adiante, ao tratar da suspensão
condicional do processo, pareça exigir a homologação para a própria eficácia do acordo restaurativo: “Art. 323 [...]
§ 12. A homologação do acordo na justiça restaurativa, nas infrações penais de que trata o caput, acarretará os
mesmos efeitos da suspensão condicional do processo”.
217
No Projeto de Lei n. 2.976/2019, a preocupação dos efeitos abrange o âmbito penal, deixando em aberto a pos-
sibilidade de demanda civil indenizatória, sem explicar, contudo, se essa parte não coberta pelo acordo é ou não
de titularidade da vítima ou de terceira pessoa atingida pelos efeitos do ato do infrator. Referido projeto assim
preceitua: “Art. 8. São efeitos decorrentes do cumprimento integral do acordo firmado no procedimento da
justiça restaurativa: I – a extinção de punibilidade da infração de menor potencial ofensivo ou que não envol-
va violência e grave ameaça à pessoa; II – a redução da pena até a metade ou sua substituição por pena res-
tritiva de direitos de infração penal diversa das previstas no inciso I. § 1º Da decisão que declarar extinta a
punibilidade na hipótese do inciso I não decorrerá qualquer efeito condenatório. § 2º A prestação da justiça
restaurativa não terá efeitos civis, cabendo aos interessados demandar no juízo cível”. No mesmo sentido li-
mitador dos efeitos do “acordo restaurativo” apenas ao campo da “pena criminal”, v. Substitutivo de 30.06.2021,
elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal:
“Art. 121. O cumprimento do acordo restaurativo implicará a extinção da punibilidade: I – nos casos de ação
penal de iniciativa privada; II – nos casos de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação,
a qualquer momento antes da prolação da sentença; III – em qualquer momento do procedimento sumariíssi-
mo; Parágrafo único. A requerimento do Ministério Público ou pelo juiz, de ofício, o conflito criminal poderá
ser derivado para as práticas da Justiça Restaurativa nas hipóteses de suspensão condicional do processo, de
trâmite do processo pelo procedimento sumário bem como pelo procedimento sumariíssimo, com consequente
homologação dos acordos restaurativos e a extinção da punibilidade com o cumprimento. Art. 122. Afora a
hipótese prevista no artigo anterior, por ocasião da sentença, o juiz valorará o acordo homologado, conferindo-
-lhe eventual abrandamento da pena”.
218
Cf. item 46.3, e seus subitens, e item 48 e seus subitens, supra.
49.  Sistema processual criminal não violento 717
processuais que não devem ser misturados ou terem estruturas, agências e agentes co-
muns ou compartilhados ou, ainda, que se interpenetrem em atividades ou funções, mes-
mo que em fases únicas ou específicas. Isso seria fatal para os novos modelo e sistema
criminais não violentos, seja por suas ainda incipientes densidade cultural e formação
teórica, seja pela força ancestral da cultura da violência que existe pujante em nossa so-
ciedade ainda hoje.219
Porém, isso não significa que não precisem e devam ter “pontes” de ligação; elas
precisam existir e serem entendidas em espaços e atribuições. Isso precisa ficar claro: não
deve haver pontos de aproximação entendidos como de contato ou intervenção de um
sistema em outro, seja por agências seja por estruturas, mas pontes de ligação entre mo-
delos separados (violento e não violento) são necessárias. Talvez uma exposição figurada
possa auxiliar na visualização de uma colaboração compartilhada, mas independente e
separada, dos dois modelos nas suas respectivas respostas quando o “fenômeno criminal”
é comunicado.
Imagine-se a vida como um rio pelo qual navegam vários tipos de barcos com todos
os tipos de viajantes. A inevitabilidade e aperfeiçoamento da vida e das relações levam a
conflitos entre os passageiros no interior dessas embarcações, e alguns daqueles podem ter
natureza criminal. Nesses casos de desequilíbrios mais significativos em seus interiores e
até mesmo prejudicial a seu funcionamento, as embarcações devem aportar. Ainda seguin-
do na imagem figurada, sobre esse rio há uma ponte, em cujas cabeceiras, separadas pelas
águas, estão de um lado (cabeceira A) o modelo criminal violento (persecutório-punitivo),
com local de ancoragem para muitas (mas não todas) as embarcações com problemas. Do
outro lado, na cabeceira B daquela mesma ponte, ainda incipiente, começa a se formar – e é
o que se propõe neste trabalho −, um outro local de ancoragem: o modelo e sistema proces-
sual criminais não violentos. No presente momento de nossa realidade cultural, estrutural e
normativa, as embarcações não tem escolha, pois as regras de navegação e a existência real
de largos espaços de ancoragem apenas de um lado levam a que todos sejam dirigidos para
a cabeceira A (o sistema processual persecutório-punitivo). No futuro, e insista-se que é o
ora proposto neste estudo, haverá um posto avançado no rio que, antes da ancoragem das
embarcações nas cabeceiras A ou B, fará uma triagem, conforme critérios a serem defini-
dos. Todavia, no presente momento, também pela falta de informação e formação cultural,
todos os marinheiros e navegantes só conhecem a cabeceira A. Dessa forma, a passagem
das pessoas envolvidas em conflito criminal para o modelo não violento deve ser feita por
terra, exatamente por sobre a “ponte” que liga as duas margens (rectius, dois modelos e/ou
sistemas processuais). Assim, desembarcadas as pessoas com seus conflitos (atualmente só
na cabeceira A), elas não devem adentrar ao enorme porto do modelo criminal violento.
Antes, as agências ali existentes e daquele modelo devem ter as pessoas mais afeitas ao
modelo criminal não violento, seus valores, propósito e finalidade, para informar às pessoas
que estão sendo desembarcadas que há também uma outra margem (rectius, uma alternativa
de resposta ao seu conflito criminal) e que, devido às características (objetivas e impessoais)
do seu caso, ela pode escolher permanecer naquele porto ou atravessar a ponte para buscar
e construir sua resposta por meio do processo criminal não violento.
Na realidade das condições atuais, portanto, deve haver uma simples triagem das
causas para que a derivação ao modelo não violento já ocorra de início e como sua primeira

Sobre esse ponto, cf. item 43.1, supra.


219
718 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

opção, restando o modelo criminal persecutório-punitivo como ultima ratio.220 A transição


se dá pela ponte que, ao mesmo tempo que liga e permite a derivação das causas de um para
outro lado, mantém os modelos afastados e atuantes de forma independente, por meio de
suas ideologias, propósitos, metodologia, sentido relacional e finalidade próprios. Pontes
são necessárias, pontos de contato que, se resultarem em interpenetrações, são muito arris-
cados, como já vimos em nossa experiência jurídico-forense das últimas duas décadas.221
Trazendo a descrição alegórica para nossa realidade brasileira atual, os conflitos
criminais sempre aportam ou são desviados (mediata ou imediatamente) para as agências
persecutório-acusatórias do sistema processual penal tradicional, em regra, Polícia Civil e
Ministério Público. A imposição normativa e a força cultural do modelo criminal persecutório-
-punitivo, aliadas à maior capilaridade e quantidade daquelas agências em todo o território
nacional, além, é lógico, da falta de legislação específica para o modelo e processo não
violentos, fazem com que toda ocorrência de crime notificada seja conduzida àqueles ór-
gãos oficiais.222 O que gera, por decorrência natural, uma situação em que cabe a eles a
triagem já em primeiro contato com a causa e suas partes. Assim, e ainda dentro de nossa
realidade, como essas agências não definiram prioridades de encaminhamentos, critérios de
triagem e, ainda, não tem setores dentro de suas agências com agentes formados e prepara-
dos na nova mentalidade, valores e propósito do modelo criminal não violento, o que ocorre
é uma adesão aquém do que poderia ser. Além disso, também contribui decisivamente para
este baixo encaminhamento o fato de que o novo modelo, seu sistema processual e seu ins-
trumento (o processo) não têm agências estruturadas em quantidade e capilaridade para
operacionalizá-los na recepção e processamento das causas; sendo que em muitas localida-
des sequer existem. Ainda, reconheça-se, são necessários instrumentos normativos que per-
mitam a fixação de critérios básicos, objetivos e impessoais para orientar aquela triagem,
sob pena de a casuística e subjetivismo resultarem em baixa produtividade ao sistema pro-
cessual não violento, seja qual for o rito escolhido para ser aplicado.
Se são tantos os desafios a serem superados, de se reconhecer que eles precisam ser
enfrentados e, talvez, o início seja aproveitar, com muita parcimônia e orientação, as dire-
trizes do CNJ na atuação dos Tribunais e dos seus integrantes para prepararem-se para
essa nova mentalidade da não violência e serem os primeiros agentes, dentro do sistema

220
Cf. sobre esse ponto de o modelo criminal não violento ser a prima ratio para as causas cujos critérios permitam a
derivação para o modelo não violento, cf. item 46.2.1, supra. Quanto a essa prioridade, levando-se em conta ser não
produtor de violência e não ter altos custos (sociais, humanos e econômicos), a ONU define, em sua Resolução n.
2002/12, a “justiça restaurativa” como prevalente sobre a justiça penal tradicional: “11. Quando não for indicado ou
possível o processo restaurativo, o caso deve ser encaminhado às autoridades do sistema de justiça criminal para
a prestação jurisdicional sem delonga. Em tais casos, deverão ainda assim as autoridades estimular o ofensor a
responsabilizar-se frente à vítima e à comunidade e apoiar a reintegração da vítima e do ofensor à comunidade”.
221
Cf. item 46.3, e seus subitens, supra.
222
Assim ocorre, por exemplo, na mediação penal portuguesa, cujo art. 3º assim define: “Artigo 3º Remessa do pro-
cesso para mediação. 1 – Para os efeitos previstos no artigo anterior, o Ministério Público, em qualquer momen-
to do inquérito, se tiverem sido recolhidos indícios de se ter verificado crime e de que o arguido foi o seu agente,
e se entender que desse modo se pode responder adequadamente às exigências de prevenção que no caso se fa-
çam sentir, designa um mediador das listas previstas no artigo 11º e remete-lhe a informação que considere es-
sencial sobre o arguido e o ofendido e uma descrição sumária do objecto do processo. 2 – Se o ofendido e o ar-
guido requererem a mediação, nos casos em que esta é admitida ao abrigo da presente lei, o Ministério Público
designa um mediador nos termos do número anterior, independentemente da verificação dos requisitos aí pre-
vistos” (Lei n. 21/2007, de 12 de junho). Conforme a doutrina, isso se justifica por aplicação do princípio da
oportunidade, v. BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de. A mediação penal em Portugal. Coimbra:
Almedina, 2012. p. 84-85.
49.  Sistema processual criminal não violento 719
processual penal tradicional, a receberem as causas para seu encaminhamento.223 Isso pode
ser feito, neste momento inicial, sendo idealmente e no futuro realizado por agências e agen-
tes formados e informados para este fim específico de triagem/derivação das causas e que
deverão ser autônomas e diversas das instituições (Judiciário, Ministério Público, Defenso-
ria e Polícia) hoje existentes. Nesse mister, suas atividades seriam, precípua, mas não exclu-
sivamente, de: (i) verificar os critérios objetivos e impessoais para exame de viabilidade da
causa para o modelo não violento como prima ratio e (ii) dar orientação jurídica às pessoas
envolvidas no conflito criminal dessa “alternativa” de resposta aos efeitos negativos da
conduta tida como crime.224
Diante dos avanços tecnológicos, algo que já poderia ocorrer é a centralização das
comunicações de crimes, assim como das agências e agentes já existentes e que atuam em
espécies de processos não violentos, v.g., os centros de práticas restaurativas, para que hou-
vesse uma triagem a partir da fixação de critérios objetivos e impessoais para as causas.
Esse compartilhamento de dados poderia ser mais desenvolvido e coordenado para ser uma
boa forma de iniciar essa importante experiência.

223
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diretrizes do plano pedagógico mínimo orientador para formações em
justiça restaurativa. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/08/final-completo-planej-
-pedag-min-orient-formacoes-cgjr-cnj-pol-nac-jr-jul-21.pdf. Acesso em: 23 dez. 2021. Nessas Diretrizes, constam
no conteúdo programático previsto: “i) identificação da justiça restaurativa no contexto paradigmático maior em
que está inserida: Cultura de Paz e Direitos Humanos”; ii) “histórico da justiça restaurativa no mundo e no
Brasil”; iii) “concepção ampla de justiça restaurativa”; iv) “essência comunitária da construção da justiça res-
taurativa e participação comunitária nas práticas restaurativas”; v) “apresentação das metodologias de práticas
restaurativas”; vi) “referências normativas sobre justiça restaurativa”; vii) “como colocar a justiça restaurativa
em funcionamento” (p. 39-40, “Tabela 1 – Resumo”). São, portanto, base de início para a formação desses primei-
ros agentes a realizarem a triagem de casos.
224
Por defendermos a triagem e encaminhamento pelas agências persecutório-acusatório-defensivo-judiciárias ape-
nas neste primeiro momento, mas não em caráter definitivo, evitando a interpenetração arriscada e muito perigo-
sa ao sistema processual criminal não violento, temos ressalvas ao Projeto de Lei n. 2.976/2019, elaborado para
regulamentar a “justiça restaurativa” no Brasil. Neste se definiu que o ato de encaminhamento será do juiz, de
ofício ou a requerimento do Ministério Público, Defensoria Pública, das partes do conflito ou de seus procurado-
res. Preceitua o projeto nesse tema: “Art. 5º Para fins de atendimento da justiça restaurativa, o juiz encaminhará
o inquérito policial, procedimento investigatório ou processo penal, em qualquer fase de tramitação, de ofício ou
a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, das partes ou seus procuradores, ou do setor téc-
nico de psicologia e serviço social. § 1º Se o ofensor ou a vítima manifestar interesse no procedimento de justiça
restaurativa, o juiz não poderá negar o encaminhamento do inquérito policial, procedimento investigatório ou
processo penal para sua realização. § 2º O encaminhamento para o procedimento de justiça restaurativa não
vinculará o ofensor e vítima, sendo imprescindível o prévio consentimento destes para a realização das sessões.
§ 3º Na hipótese de morte ou impossibilidade de manifestação da vítima, sua participação no procedimento de
justiça restaurativa será suprida por familiares”. Tal posição foi reproduzida no Substitutivo de 30.06.2021, ela-
borado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal, no qual a
sistemática é mantida: “Art. 118. Ao juiz é facultado suspender o trâmite do procedimento ou processo judicial
encaminhado à prática restaurativa, que poderá ser desencadeada a qualquer momento. [...] Art. 119. Os proce-
dimentos e processos judiciais podem ser encaminhados, em qualquer fase de sua tramitação, para a prática
restaurativa em espaços especializados de Justiça Restaurativa, pelo juiz, de ofício ou a pedido das partes, do
Ministério Público, da Defensoria Pública, dos advogados e do delegado de polícia”. O tema é objeto de preocu-
pação na doutrina estrangeira, em que as hipóteses de solução tendem a flutuar conforme o autor entenda que a
“justiça restaurativa”, em qualquer de seus procedimentos, seja externa ou interna ao processo penal tradicional.
Silvia BARONA VILAR (Mediación penal, cit., p. 277-280), por exemplo, entendendo que a mediação penal in-
tegra o sistema processual tradicional, ao examinar o “princípio da oficialidade”. A autora, tratando do sistema
alemão de mediação, informa que há regra segundo a qual cabe ao órgão acusador encaminhar a causa penal, mas
se vem convertendo em norma processual básica que cabe às partes essa escolha e, também, tem se requerido à
polícia essa possibilidade de encaminhamento (p. 279). Para se escolher a forma de encaminhamento deve haver
uma tomada de posição anterior: os sistemas são independentes ou não. Caso a posição seja como a deste trabalho,
no sentido de que sejam, o encaminhamento deve ser feito por agência própria do modelo não violento, nos termos
já exposto no item 46.3, supra.
720 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A centralização atenderia não apenas novos casos informados ao sistema processual


persecutório-punitivo, mas outros que já estivessem em trâmite por alguma de suas fases.
Isso significa que mesmo causas já em curso no processo tradicional poderiam ter seu
trâmite suspenso para que ocorresse a derivação para o sistema processual não violento, ao
instrumento processual mais específico às peculiaridades do caso.225
A partir desse momento de derivação se suspenderia o fluxo do prazo prescricional
da pretensão punitiva e a persecução penal aos moldes tradicionais. A suspensão se prolon-
garia até o término desse processo criminal não violento, com ou sem sucesso na celebração
do acordo entre as partes; a persecução penal (em sua fase investigativa ou processual) já
iniciada seria suspensa no ponto em que se encontra, assim como o direito de acusar e/ou de
investigar que ainda não foi exercido estaria impedido por uma nova “condição de
procedibilidade”226, instrumento tão comum ao processo penal tradicional e que poderia ser
aplicado nesses casos.227
Essa mudança dos casos criminais já no curso procedimental do processo não se
dará apenas no sentido do tradicional para o não violento, é possível que haja insucesso ou
perda de voluntariedade no curso do rito não violento e o caso tenha que ser dirigido, ou
mesmo regressar, ao sistema processual persecutório-punitivo, iniciando ou continuando
neste os seus trâmites.228

225
Sobre essa variedade de instrumentos e suas distinções básicas, cf. item 49.1.2 e seu subitem, infra.
226
Vicente GRECO FILHO (Manual de processo penal. 12. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. Item 20.3) ex-
plica que: “Condições de procedibilidade são fatos, naturais ou jurídicos, cuja existência é exigida pela lei
para a propositura da ação penal. Assim, por exemplo, a representação do ofendido na ação penal pública
condicionada, a requisição do Ministro da Justiça no caso de crime cometido no exterior por estrangeiro
contra brasileiro (CP, art. 7º, § 3º, b). As condições de procedibilidade impedem a ação penal, tornando o
pedido impossível. Não são outras condições da ação, mas condições especiais subsumidas na possibilidade
jurídica do pedido” (GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal, cit., p. 138). No mesmo sentido,
Gustavo BADARÓ (Processo penal, cit., p. 167) ainda completa o rol daquelas condições: “Além disso, no
processo penal, as chamadas ‘condições de procedibilidade’ se enquadrariam nas condições da ação, como
requisitos da possibilidade jurídica do pedido. São elas: (1) representação do ofendido na ação penal pública
condicionada (CP, art. 100, § 1º, c.c. CPP, art. 24); (2) requisição do Ministro da Justiça (CP, art. 100, § 1°,
c.c. CPP, art. 24); (3) entrada do agente brasileiro, em território nacional, nos crimes cometidos estrangeiro
(CP, art. 7º, § 2º); (4) a sentença civil de anulação do casamento, no crime do art. 236 do CP (art. 236, pará-
grafo único); (5) exame pericial homologado pelo juiz, nos crimes contra a propriedade imaterial (CPP,
art. 529, caput); (6) a autorização do Poder Legislativo, para processar o Presidente da República, o Vice-
-Presidente e os Governadores, nos crimes comuns ou de responsabilidade”.
227
O Projeto de Lei n. 2.976/2016 teve a preocupação de, já em seu art. 1º, indicar que os casos criminais do modelo
tradicional podem derivar ao sistema processual não violento em qualquer fase em que se esteja na persecução e,
inclusive, na fase de execução da pena. Assim: “Art. 2º As práticas de justiça restaurativa aplicar-se-ão a situa-
ções de conflito e violência que acarretem dano concreto ou abstrato no curso do inquérito processual, investi-
gação criminal ou outra fase pré-processual, do processo penal e da execução da pena”. Mesmo no plano inter-
nacional, a ONU, em sua Resolução n. 2002/12, preceitua essa liberdade de intercomunicação entre os modelos:
“II. Utilização de Programas de Justiça Restaurativa. 6. Os programas de justiça restaurativa podem ser usados
em qualquer estágio do sistema de justiça criminal, de acordo com a legislação nacional”. Como já apontado na
nota 224 deste item, supra, o Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao
Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal prevê a mesma possibilidade em seu art. 119, não sendo muito
claro se admite tal possibilidade na fase de execução da pena.
228
Sobre o papel central que o princípio da confidencialidade deve desempenhar nessa situação de trâmite da causa
criminal do sistema processual criminal não violento para o tradicional, cf. item 49.1.3, infra. Apenas para refe-
rência, importante notar que a confidencialidade é princípio reitor das práticas restaurativas em todas as norma-
tizações ou tratos técnicos sobre o tema. Nesse sentido já se posicionara o norte normativo entre nós, o Projeto de
Lei n. 2.976/2019 (“Art. 5º [...] § 8º Não obtido o acordo, é vedado o emprego de informações do procedimento de
justiça restaurativa como prova, e não poderá este ser utilizado como fundamento para aumento ou agravamen-
to da pena em caso de condenação”). Para referência doutrinaria, v. BARONA VILAR, Silvia. Mediación penal,
cit., p. 274-276.
49.  Sistema processual criminal não violento 721
Para esses dois sentidos de movimentos do caso criminal, ou seja, do tradicional ao
não violento ou vice-versa, nossa sugestão é novamente a existência de uma agência de
triagem própria e para a qual os casos devem ser encaminhados como forma de ela controlar
sua tramitação sobre a ponte nas trocas de cabeceiras (de A → B ou de B → A). Isto não
apenas para permitir que seus agentes, preparados tanto juridicamente como dentro dos
valores e diretrizes não violentas, mais uma vez informem dos riscos, vantagens e desvan-
tagens às partes, mas mantenham a diretriz de solucionar a causa com respeito pela vontade
das partes do conflito e pela busca da diminuição da violência social, e sem que para isso as
agências especializadas de qualquer dos modelos tenha retrabalho ou se vejam no dilema de
explicar as desvantagens do sistema a que pertencem ou as vantagens do outro. Essa difícil
posição psíquica do agente que deve dar a informação certamente impactará na forma e
modo como a instrução será passada por seus agentes a pessoas possivelmente leigas em
assuntos e sem a devida cultura formada de solução pacífica de conflitos.229
Na fase de execução penal, somente possível no sistema processual tradicional,
também pode haver acordo não violento. Neste caso, o referido órgão de triagem deve ser
informado de que as partes do caso desejam celebrar eventual conciliação a fim de que
verifique se há condições estruturais e legítima voluntariedade empática das partes. Isto
porque, em havendo condições favoráveis a tal tentativa ela poderá se dar em um ambien-
te um pouco diverso do ideal, já que uma das partes cumpre pena e está em ambiente
carcerário ou em situação de controle de liberdade (p. ex., em cumprimento de pena em
regime mais mitigado). Superados esses desafios e entendido pelo facilitador que há con-
dições para um diálogo empático e horizontal, eventual acordo não violento entre vítima
e condenado poderá refletir na mitigação de sua pena, o que poderá ser obrigatório mas,
nesse caso, dependerá de homologação pelo juízo competente.230 Transitada em julgado a
decisão condenatória, há título executivo a ser cumprido e cuja característica rebus sic
stantibus exige sua adaptabilidade à mudança da situação fática, mas que sempre deverá
ser controlada pelo juiz das execuções.

49.1.2 Direito ao procedimento não violento e seu prazo razoável


A necessidade de haver a segurança jurídica por meio de procedimento equilibra-
do, prévio e cogente aos que o utilizem foi o que revelou a demanda por considerar o
“direito ao procedimento” um direito fundamental. O procedimento passou a ser a todos

229
Sobre a importância da assistência jurídica, e não apenas judiciária, como princípio reitor de ambos os sistemas
processuais, cf. item 49.1.5, infra.
230
Deixando implícita a necessidade da interferência judicial para a mitigação da pena, o Projeto de Lei n. 2.976/2019
indica a possibilidade de que o acordo interfira na redução da pena, o que, a nosso juízo, somente ocorre quando
a resultado consensual se deu após a decisão final condenatória pelo processo persecutório-punitivo. Contudo, o
Projeto parece ter preferido aplicar a “justiça restaurativa” apenas para uma faixa de crimes (sem violência ou
ameaça e de menor potencial ofensivo), para o qual prevê a extinção de punibilidade, resolvendo a questão penal.
E, de modo diverso, a redução da pena para os demais crimes. Não há, portanto, uma preocupação em diferenciar
faixas de redução ou extinção na medida do caminhar da persecução e do momento em que há a incidência da
resposta consensual. Nesse sentido, o texto projetado é: “Art. 8º. São efeitos decorrentes do cumprimento integral
do acordo firmado no procedimento da justiça restaurativa: I – a extinção de punibilidade da infração de menor
potencial ofensivo ou que não envolva violência e grave ameaça à pessoa; II – a redução da pena até a metade
ou sua substituição por pena restritiva de direitos de infração penal diversa das previstas no inciso I”. O Substi-
tutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei de novo Código de
Processo Penal traz possibilidade semelhante: “Art. 122. Afora a hipótese prevista no artigo anterior, por ocasião
da sentença, o juiz valorará o acordo homologado, conferindo-lhe eventual abrandamento da pena”.
722 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

que o integrem uma garantia em si e, também, a forma de outras salvaguardas serem (por
ele) asseguradas.231
Nessa linha, o procedimento também ganha destacada relevância no sistema proces-
sual criminal não violento, pois é meio de se definir e garantir não apenas formas seguras e
previamente conhecidas para a realização de atos, mas, principalmente, de se assegurar
direitos aos seus participantes. As características das práticas e ritos que integram aquele
sistema não violento, contudo, evidenciam dois pontos muito próprios ao seu ambiente: es-
paços regrados de liberdade de adaptação conforme o caso concreto (princípio da flexibili-
dade) e, ainda, a possibilidade de escolha dos ritos e práticas pelas partes, juntamente e
orientadas pelo facilitador quanto a seu grau de eficiência em face do caso.
Assim, a previsão normativa dos ritos e práticas deve preexistir para que possam ser
informados pelo facilitador às partes já desde a abordagem inicial para programação do
processo não violento a ser utilizado. Há que se explicar às partes como o rito se dará, a fim
de que aceitem e se diminuam expectativas, desconhecimentos e se propicie um ambiente
mais favorável ao diálogo. Todavia, e aqui entram os espaços de liberdade, não devem ser
rígidos e imutáveis em todos seus aspectos e dinâmica, a ponto de os facilitadores e partes
não poderem, dentro das linhas mestras de cada rito, estabelecer adaptações para melhor
atender à situação concreta do conflito, das partes ou mesmo do grupo dos próximos que,
no caso, se faça necessário para a aproximação delas. Essas alterações necessárias não tra-
zem ou importam insegurança na medida que, identificadas como necessárias pelo facilita-
dor no momento da organização do procedimento232, será avisada e combinada com as
partes de modo a saberem e concordarem antes do início dos diálogos diretos entre elas.
A segurança, portanto, não estará na rigidez da forma, mas na sua adaptabilidade informada
e consensuada com as partes. As margens, linhas especificadoras de diferenças e critérios
mínimos e comuns não impedem a necessária liberdade de adaptação que o procedimento
não violento precisa ter para se ajustar às peculiaridades do caso e das pessoas. A prática
hoje existente, em um importante e marcado sentido ritualístico, deve se tornar procedimen-
to em seu sentido ordenador e diretivo, mas tendo, em suas dinâmicas próprias, espaços de
liberdade a uma “flexibilidade” que leve a melhor ambiente ao diálogo entre as partes.233

231
SCARANCE FERNANDES, Antonio. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal, cit.,
seção 2 do Capítulo I, cujo título é “O direito fundamental ao procedimento no processo penal”.
232
Sobre essas fases, v. item 48.3.2, supra, quando tratamos das funções do facilitador. Para uma visão sistemática
sobre as fases de um processo restaurativo (recepção e valoração, preparação, eleição, realização e avaliação)
v. OLALDE ALTAREJOS, Alberto José. 40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit., item 31, p. 296-312.
233
Nesse sentido, Silvia BARONA VILAR (Mediación penal, cit., p. 280-283), tratando da mediação penal, precei-
tua: “De qualquer forma, parece mais consistente com o significado pretendido da mediação que há flexibilidade
no desenvolvimento de diálogos comuns, entrevistas individuais e, em suma, o procedimento de mediação ade-
quado, bem como o tempo necessário para obter os fins essenciais da reparação. Essa flexibilidade não é cate-
górica, mas uma característica do mesmo procedimento que visa justamente servir à confidencialidade necessá-
ria e à intervenção neutra do mediador. Esse princípio de flexibilidade, longe de afetar as garantias essenciais
que na legislação processual se outorgam aos sujeitos do processo, e especialmente ao imputado, incorpora-se
a um modelo que busca promover precisamente o respeito aos direitos essenciais da igualdade, contraditório,
direito de defesa ou presunção de inocência, de modo que a informalidade, a flexibilidade e a rigidez não impli-
quem mais que uma maneira de atuar que favoreça no seio da mediação os princípios essenciais de intervenção
das partes em qualquer modalidade de tutela realmente efetiva aos cidadãos” (traduzimos). Nesse sentido,
v. GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., item IV.3.5, que também trata do “princípio da
flexibilidade”. Esse princípio foi incorporado expressamente à legislação portuguesa: “Artigo 4º Processo de
mediação. 1 – A mediação é um processo informal e flexível, conduzido por um terceiro imparcial, o mediador, que
promove a aproximação entre o arguido e o ofendido e os apoia na tentativa de encontrar activamente um acordo
que permita a reparação dos danos causados pelo facto ilícito e contribua para a restauração da paz social”
49.  Sistema processual criminal não violento 723
Esse primeiro ponto de liberdade ainda comporta um outro aspecto pois, mesmo no
curso dos encontros dialogais entre as partes, pode ser indicado flexibilizar atos e formas se
o facilitador verificar que a metodologia inicial não está surtindo o efeito esperado ou possa
ser melhorada. Novamente, expondo clara e diretamente às partes sua intenção em melhorar
o diálogo e a aproximação, com ampliação ou redução procedimental, pode, com a anuência
delas, alterar atos ou optar por outra prática. As mudanças, informadas, justificadas e acor-
dadas com as partes, não ferem, dessa forma, a segurança jurídica que o direito ao procedi-
mento, como direito fundamental implícito, foi constituído para assegurar. Não haverá, por-
tanto, perda, mas ganho na busca da resposta não violenta de conciliação criminal.234
Quanto ao segundo ponto antes referido, ele é uma decorrência natural e esperada
da aproximação e mesmo constituição dos ritos a partir das formas tradicionais das cul-
turas locais e ancestrais resolverem seus conflitos. Isto porque, os formatos mais difundi-
dos pelo mundo de práticas e ritos, v.g.¸ restaurativos, nada mais são do que o resgate das
formas ancestrais pelas quais os povos praticavam diálogos para conciliarem. Assim, na-
tural que, dentre uma variedade de opções, o facilitador e as partes, conjuntamente, deci-
dam por qual procedimento implementarão.235 Tal participação em uma escolha orientada
pela informação que é passada às partes auxilia em muito à criação da voluntariedade
empática entre elas e o facilitador e, ainda, fazem-nos ter mais segurança de que as regras
do procedimento serão cumpridas por aderência (horizontal, aceitação), não por obediên-
cia (vertical, imposição).
Os ritos e/ou práticas, em suas regras e dinâmicas próprias, devem ser informados de
modo claro e inteligível aos futuros participantes a fim de que os conheçam, com eles con-
cordem e, principalmente, assumam compromissos de cumpri-los e respeitá-los. Diferente-
mente do sistema processual persecutório-punitivo, no qual imputado e vítima desconhe-
cem, quase sempre, tudo do procedimento das audiências e dos atos dos quais participarão,
no processo criminal não violento é fundamental não apenas a ciência das regras procedi-
mentais, mas a anuência e o compromisso de respeito a elas e aos participantes.236 Única

(Lei n. 21/2007, de 12 de junho). No mesmo sentido, v., também, RÍOS MARTÍN, Julián Carlos. Justicia restau-
rativa y transicional en España y Chile: claves para dignificar víctimas y perpetradores. Granada: Editorial Co-
mares, 2017. p. 23; e OLALDE ALTAREJOS, Alberto José. 40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa
en la jurisdicción penal, cit., item 31.5.
234
Ressalvando que a mediação penal deve evitar a burocratização e a juridicização, o que pode provocar o forma-
lismo e seu fracasso, já que perderia a proximidade e aproximação de integrantes comunitários, Silvia BARONA
VILAR (Mediación penal, cit., p. 283) conclui: “Por isso, na maior parte da doutrina, defende-se que o procedi-
mento de mediação seja minimamente configurado, mas se configure, com certas regras que garantam aos inter-
venientes a efetividade do modelo e o respeito aos princípios básicos, porém as táticas comportamentais não
podem configuradas de modo estrito, mas será em cada caso e em atenção às circunstâncias concorrentes ao se
determinar de forma específica o funcionamento da mediação penal” (traduzimos).
235
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit., p. 311) conclui dessa forma a fase procedimental do processo restaurativo que denomina “eleição do
processo restaurativo”: “A escolha do processo restaurador mais adequado para os participantes envolve um
trabalho conjunto com eles, não é uma decisão unilateral. Informar sobre as diferentes disponibilidades de pro-
cessos nos ajudará a satisfazer mais e melhor as necessidades. Como cada processo envolve uma metodologia
específica, isso será visto posteriormente, de forma mais detalhada, dependendo do processo. Nosso convite não
é maximizar a mediação como o único processo restaurador, mas se ter uma visão ampla da gama de processos
e práticas restaurativas” (traduzimos).
236
Nesse sentido, o CNJ se posicionou em sua Resolução n. 225/2016: “Art. 2º [...] § 3º Os participantes devem ser infor-
mados sobre o procedimento e sobre as possíveis consequências de sua participação, bem como do seu direito de
solicitar orientação jurídica em qualquer estágio do procedimento. § 4º Todos os participantes deverão ser tratados
de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a construir, a
partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução cabível e eficaz visando sempre o futuro”.
724 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

forma de não haver um “terceiro” superior para impô-las, mas seu cumprimento ser um
compromisso de todos e, portanto, por todos exigível no mesmo nível de posição e diálogo.
Tratando-se agora do direito fundamental ao “prazo razoável do processo” deve-se
ressaltar sua incidência no sistema processual não violento.
Deve ser definido legalmente e esclarecido às partes que há um tempo-limite em que
o procedimento deverá estar concluído, sob pena de serem encerradas as tentativas com a
remessa do conflito criminal às instâncias tradicionais ao sistema processual persecutório-
-punitivo. Como já exposto, é possível ao legislador definir regras de punibilidade237; desse
modo, pode estabelecer cláusulas suspensivas à prescrição penal e, portanto, prazo de início
e término para o processo não violento.238
Neste ponto, assim como na avaliação das durações e quantidade de reuniões entre
as partes, ingressa todo o já desenvolvido no estudo do direito fundamental ao prazo razoá­
vel de duração do processo penal tradicional. Aqui, como em todos os pontos e temas, algu-
mas peculiaridades (p. ex., que a resposta não é impositiva) e ganhos (p. ex., inexistência de
gastos e tempo no sistema carcerário) devem ser pensados na delimitação temporal, não se
podendo aceitar critérios referenciais do modelo criminal tradicional sem qualquer reflexão
apropriada e seletiva. Todavia, há que se ter um tempo máximo e improrrogável para que o
processo não violento não seja usado como subterfúgio para aqueles que, mesmo sabendo
que o levarão ao insucesso, apenas dele se sirvam para ganhar tempo em atrasar a persecu-
ção penal pelo sistema processual tradicional.
O preceito constitucional de “prazo razoável do processo” traz no vocábulo “razoá-
vel” sua dificuldade de dimensão, pois ele é, por natureza, expressão aberta. Todavia, não
parece ter havido erro na escolha. Isso porque a arte de se definir o prazo para determinada
tarefa está em se delimitar o que exatamente se busca com sua realização ou, ainda, o que
se deve ter como limite de tentativa em realizá-la; por exemplo, escolher entre conceder
mais prazo para uma tentativa conciliatória, ou estreitar tal margem já que há um sistema
processual de força pelo qual chegarei à imposição de uma solução, incluída aqui a avalia-
ção dos custos, humanos, sociais e financeiros com cada opção. Há, pois, considerações a
serem sopesadas e trazidas à mesa para uma discussão aberta sobre no que se quer investir
e prestigiar. Antes mesmo de se buscar um tempo-limite ideal à realização do procedimento
que, seguramente, não passa pelos critérios irrealistas e pouco aplicáveis da legislação pro-
cessual quanto à realização de seus procedimentos ordinário ou sumário.239

237
Cf. item 46.2, e seu subitem, supra.
238
Nesse ponto vemos o encaminhamento do tema no Projeto de Lei n. 2.976/2019: “Art. 4º Iniciado o procedimento de
justiça restaurativa, o inquérito policial, o procedimento investigatório ou o processo penal ficarão suspensos pelo
prazo de até seis meses, podendo este ser prorrogado, justificadamente, por igual período. Parágrafo único. A sus-
pensão do inquérito policial, procedimento investigatório ou processo penal implicará a suspensão do curso dos
respectivos prazos prescricionais”. No Substitutivo de 30.06.2021, do Deputado João CAMPOS, ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal, a regulamentação se dá de forma pouco diversa: “Art. 118. Ao juiz é facultado
suspender o trâmite do procedimento ou processo judicial encaminhado à prática restaurativa, que poderá ser de-
sencadeada a qualquer momento. § 1º A suspensão poderá ser determinada quando do encaminhamento à prática
restaurativa ou quando homologado o acordo para fins de se aguardar o cumprimento de seus termos. § 2º Na hi-
pótese de suspensão do trâmite do processo, suspende-se também o curso do prazo prescricional até a conclusão da
prática restaurativa. § 3º Caso o trâmite do processo não seja suspenso, o juiz deverá aguardar a conclusão da
prática restaurativa para proferir a sentença, respeitando-se o prazo prescricional. § 4º Na esfera penal, os efeitos
da prática restaurativa serão alcançados até o trânsito em julgado da sentença”.
239
De acordo com a legislação vigente, o prazo máximo para realização de audiência de instrução e julgamento para
o procedimento ordinário é de 60 dias (art. 400, Cód. Proc. Pen.) e de 30 dias para o procedimento sumário
(art. 531, Cód. Proc. Pen.).
49.  Sistema processual criminal não violento 725
Passado o plano abstrato, há ainda um outro nível de indagação quanto à razoabili-
dade do prazo, que é a o plano concreto da causa, como os atos do procedimento estão
sendo cumpridos e sua complexidade fática em razão do que pode, em menor tempo, ser
obtido com o mesmo grau de qualidade na solução da causa. Há, portanto, fatos objetivos e
subjetivos, assim como há necessidade de previsão legal abstrata e sua realização concreta.
Além disso, há procedimentos mais ou menos complexos, por natureza e grau de sofistica-
ção.240 Tudo a influir nessa condensação teórica para definir o que seria o tempo razoável a
um procedimento específico. Dessa forma, para o sistema processual criminal não violento,
melhor iniciar pelas dificuldades já, e de partida, na compreensão das várias práticas restau-
rativas que devem servir de base para elaborações legislativas e incidência prática. Isto é, a
fixação do prazo razoável não deve ter em vista padrões criados ou hauridos do procedi-
mento fixo, rígido, imposto e conduzido sob a batuta judicial, mas ter em vista que a dinâ-
mica relacional no processo dialogal apresenta muita variabilidade e peculiaridades em
cada prática que pode, segundo essas características, precisar de um novo sopesamento so-
bre o que “para elas” deva ser considerado “razoável”. Exemplificativamente, pelas experiên-
cias empíricas, em casos de baixa, média e alta complexidade, quantos encontros circulares
ocorrem até se chegar a um consenso pela prática dos círculos, tão comum na experiência
restaurativa nacional.
Se de um lado os saberes teóricos quanto aos direitos fundamentais do procedimen-
to e do tempo razoável do processo devem ser trazidos para uma análise diante do novo
processo criminal não violento, de outro lado é indispensável que o saber teórico e empírico
das práticas já existentes, mesmo em outros países, deva ser também posto para exame con-
junto e em uma combinação que tenha como base a cultura e a realidade nacionais. Para
isso, contribui decisivamente se saber e definir quais práticas e/ou ritos, suas formas e ex-
tensão, serão fixadas dentre nós. Isto porque, somente após definirmos tais procedimentos
se poderá iniciar uma discussão sobre seus prazos de duração e o que se poderá ter como
razoável deles.

49.1.2.1 Breves notas sobre os tipos de ritos e práticas existentes e a necessidade de se ter


aderência à cultura brasileira e à peculiaridade local de sua aplicação
Mesmo no sistema processual persecutório-punitivo, de história teórica muito mais
larga e densidade mais profunda, não há um estudo exauriente sobre todos os tipos de pro-
cedimento existentes nos vários sistemas jurídicos do mundo. Assim, também não há um
levantamento semelhante mesmo se limitássemos nossa pesquisa às construções teórico-
-restaurativas. A construção dos ritos e práticas, portanto, podem até ter como referências
algumas experiências estrangeiras mais desenvolvidas ou praticadas, mas devem ser formu-
ladas a partir da busca da melhor aderência à realidade cultural e mesmo étnica do povo de
cada região brasileira. Se o processo não violento deve ser forma de aproximar pessoas
conflitadas para um diálogo empático, a melhor forma de isso se dar é respeitando suas
raízes e as formas culturais com que foram educadas já em suas famílias; logo, com profun-
do respeito por suas crenças e hábitos. Com isso, deve-se reconhecer uma escolha já a partir
de uma premissa de quebra de paradigmas europeus-ocidentais típicos da cultura jurídica a
que estamos submetidos.

240
Nesse sentido, v. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal, cit., item 13.2.
726 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A questão, portanto, não passa por se organizar ou sistematizar todos os tipos de


ritos ou práticas existentes, pois elas nasceram dentro de peculiaridades próprias e que
podem ter pouca, ou mesmo nenhuma, aplicabilidade ao povo brasileiro. A proposta deste
item, portanto, é apresentar que há práticas, notadamente no âmbito restaurativo, que con-
tam com maior incidência e que podem servir como pauta de referência para a elaboração
de normativas básicas e iniciais que possibilitem a implantação do processo não violento no
Brasil; sem com isso terem a pretensão e exaurir novas e futuras formas.
Há uma grande variedade de práticas restaurativas conhecidas, pois são tão variadas
quanto o são as tradições culturais dos diferentes povos nos países em que são aplicadas.241
Há, porém, certo consenso em identificar grupos mais comuns de práticas, mas que não
exaurem a grande variedade de experimentos ocorrentes nos vários países. São eles: a me-
diação, as conferências e os círculos.242 Tais grupos, além de serem os mais difundidos em
muitos países, têm em comum aspectos centrais do pensamento restaurativo: o empodera-
mento e a reparação da vítima; que essa reparação seja obra de diálogo com o infrator, que

241
V., no mesmo sentido, O’MAHONY, David; DOAK, Jonathan. Reimagining restorative justice, cit., p. 4-9. Daniel
ACHUTTI (Justiça restaurativa e abolicionismo penal, cit., Capítulo 1, item 3.3), baseado em trabalho de Lode
Walgrave, indica essa diversidade quando aponta, dentre as práticas restaurativas, as seguintes: apoio à vítima;
mediação vítima-ofensor; conferência restaurativa; círculos de sentença e cura; comitês de paz; conselhos de ci-
dadania; serviço comunitário; e, por fim “outras práticas” menores e menos ocorrentes. Destaque-se, ainda, que,
amiúde e mesmo dentro dessas modalidades citadas, há variações. Para um exame das raízes indígenas de práticas
restaurativas estadunidenses, v. JOHNSTONE, Gerry. Restorative justice, cit., item 3.
242
Também nesse âmbito os restaurativistas não são unânimes, tendo esses grupos sido definidos a partir da leitura
de muitos deles e do que indicavam em comum. Sobre a não uniformidade de pensamento e até mesmo classifi-
catória, a título exemplificativo, veja-se que Howard ZEHR (The little book of restorative justice, cit., p. 15-16)
nega a mediação como prática restaurativa e, sob o subtítulo “Justiça restaurativa não é mediação”, afirma: “Como
programas de mediação, muitos programas de justiça restaurativa são projetados em torno da possibilidade de
uma reunião ou encontro facilitado entre aqueles que foram prejudicados e os que causaram danos, bem como
talvez alguns membros da família e da comunidade. No entanto, um encontro nem sempre é escolhido ou apro-
priado. Além disso, as abordagens restaurativas são importantes mesmo quando uma parte infratora não foi
identificada ou apreendida ou quando uma parte não está disposta ou não pode se encontrar. Portanto, aborda-
gens restaurativas não se limitam a um encontro. Mesmo quando ocorre um encontro, o termo ‘mediação’ não é
uma descrição adequada desse encontro. Em um conflito ou disputa mediada, presume-se que as partes estejam
no mesmo nível em um campo de jogo moral, geralmente com responsabilidades que talvez precisem ser compar-
tilhadas de ambos os lados. Embora esse sentimento de culpa compartilhada possa ser verdadeiro em alguns
casos criminais, em muitos casos não é. Vítimas de estupro ou até mesmo assaltos não querem ser conhecidas
como ‘disputantes’. De fato, elas podem estar lutando para superar a tendência a se culpar. De qualquer forma,
para participar da maioria dos encontros de justiça restaurativa, um transgressor deve admitir algum nível de
responsabilidade pela ofensa, e um componente importante de tais programas é nomear e reconhecer as irregu-
laridades. A linguagem ‘neutra’ da mediação pode ser enganosa e até ofensiva em muitos casos. Embora o termo
‘mediação’ tenha sido adotado desde o início no campo da justiça restaurativa, ele está sendo cada vez mais
substituído por termos como ‘conferência’ ou ‘diálogo’ pelas razões descritas acima” (traduzimos). Esse autor
entende que as práticas restaurativas mais significativas são: conferências vítima-autor, as conferências familia-
res e os círculos (p. 60-66), e reconhece que mesmo elas tendem a se misturar (p. 56). Por isso a preocupação em
construir algo que tenha essa experiência em mente, mas seja afeito ao Brasil do século XXI, com todas as suas
características e dificuldades. A ONU, em sua Resolução n. 2002/12, assim define “processo restaurativo”, indi-
cando como seus procedimentos os seguintes: “2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a
vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por
um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um
facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comuni-
tária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles)”. Já no Manual sobre programas de justiça restau-
rativa, publicado originariamente pelo UNODC em 2020, ao tratar dos “Principais tipos de processos” (item 3.2)
indica que: “Apesar da diversidade dos programas de justiça restaurativa, alguns tipos de processo restaurativo
são mais utilizados do que outros. São eles: (a) mediação entre vítima e ofensor (conciliação); (b) conferência
restaurativa; e (c) círculos” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual so-
bre programas de justiça restaurativa, cit., p. 24). No Brasil, essas práticas são destacadas e analisadas por
PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCrim, 2009.
Capítulo 3.
49.  Sistema processual criminal não violento 727
deve ser respeitado em suas posições; e, por fim, que a resposta seja alcançada por uma
construção comum entre eles.
Variedade e aderência às culturas e peculiaridades regionais faz com que dentre seus
teóricos e práticos não haja uma preocupação de organizar e uniformizar seus procedimen-
tos.243 Há maior preocupação em respeitar as características culturais, regionais e nacionais,
e é exatamente por isso que precisamos começar a construir “processos” não violentos ao
feitio brasileiro. Haurir dessas experiências bases e ideias é apenas um passo inicial, pois há
a necessidade de se empreender uma filtragem a partir de nossas peculiaridades étnicas,
religiosas e culturais que, também devido à nossa grande extensão territorial, pode variar
entre localidades, pois inegável as influências que os povos que para cá vieram ou foram
trazidos carregaram consigo suas ancestralidades.244 E isso talvez seja um dos problemas a
serem primeiro definidos no Brasil: quais as práticas mais adaptáveis à cultura do povo
brasileiro e quais as opções que devemos regular?
Não se recomenda iniciar uma regulamentação de largo espectro de possibilidades
procedimentais, sendo o ideal identificar algumas iniciais como as mais flexíveis e aderen-
tes à nossa realidade como forma de solidificação da cultura da resposta ao “fenômeno
criminal” por meio não violento.
No intuito de apresentar como referência do já existente em outros países, sem qual-
quer pretensão de fixar como o ideal, pode-se começar pelas experiências normativas da
mediação penal em Portugal e na Espanha.245 Uma variação muito identificada com o que

243
No preâmbulo de sua Resolução n. 2002/12, que trata dos princípios reitores e básicos da “justiça restaurativa”, a
ONU assim preceitua sobre esse ponto de encontro entre flexibilidade, procedimento ordenado e realidade cultu-
ral dos diversos países: “Observando que a justiça restaurativa enseja uma variedade de medidas flexíveis e que
se adaptam aos sistemas de justiça criminal e que complementam esses sistemas, tendo em vista os contextos
jurídicos, sociais e culturais respectivos”.
244
Sobre a variedade de “práticas restaurativas” já existentes no Brasil, v. o relatório CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA. Seminário Justiça Restaurativa, cit. Nele foram identificadas as seguintes práticas atualmente experi-
mentadas pelos Tribunais: “Quanto às áreas de aplicação das práticas restaurativas, percebe-se uma grande
diversidade, destacando-se a aplicação em questões envolvendo atos infracionais, conflitos escolares, infrações
criminais leves e médias, violência doméstica, bem como, o uso preventivo da Justiça Restaurativa. Ressalta-se,
ainda, que a Justiça Restaurativa é menos frequente em campos criminais de maior gravidade, sendo que 22,7%
dos programas atendem a questões de tráfico de drogas, 15,9% a crimes graves e gravíssimos e 11,3% a crimes
sexuais (Figura 8). Quanto aos procedimentos usados nas práticas restaurativas, 93% dos programas utilizam
os círculos de construção de paz, baseados em Kay Pranis. Outras metodologias bastante difundidas são o pro-
cesso circular, em 54% dos programas; e os círculos restaurativos baseados na comunicação não violenta, em
45% dos casos (Figura 9). Em 68% das iniciativas, é promovido o encontro entre vítima, ofensor e comunidade;
em 54% se promove o encontro entre ofensor e comunidade. O encontro de grupo de ofensores é uma prática em
48% dos programas, projetos ou ações. Por outro lado, o encontro somente da vítima com a comunidade ocorre
em 41% das iniciativas e o grupo de vítimas é proporcionado em 39% dos casos. O encontro somente entre vítima
e ofensor é uma das práticas menos usuais, ocorrendo em 36% dos programas, projetos ou ações em Justiça
Restaurativa (Figura 10). Na Tabela 5 é possível verificar outros métodos adotados pelos tribunais, que foram
categorizados na opção ‘outros’” (p. 14-15). Para números de 2020, em pesquisa independente sobre as atividades
desenvolvidas por núcleos e projetos de “justiça restaurativa” em andamento no território nacional, v. SILVA,
Fernanda Carvalho Dias de Oliveira. A experiência e o saber da experiência da justiça restaurativa no Brasil,
cit., p. 124-127, Tabela 1 e Quadro 1.
245
A “mediação penal”, com fundamentos e peculiaridades restaurativas, tem tido seu estudo muito incrementado na
Espanha e em Portugal, uma vez que em ambos foi recentemente estruturada legislativamente. Como bibliografia
de referência na Espanha, cite-se, com uma visão esperançosa, mas ainda crítica em alguns pontos e incluindo-a
no modelo criminal tradicional, Silvia BARONA VILAR (Proceso penal desde la historia: desde su origen hasta
la sociedad global del miedo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 606-616, e, em especial e específico, sua obra
Mediación penal, cit., Capítulo VII, item 2, ao defender mudanças no modelo criminal espanhol para incorporar
a mediação em seu bojo. Também na Espanha e ainda inserindo a mediação nas hostes do modelo criminal tradi-
cional, v. GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., em especial Capítulo IV, e, da mesma
autora, o artigo La mediación penal en España. In: BARONA VILAR, Silvia (dir.). La mediación penal para
728 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

entendemos por mediação são os chamados “encontros vítima-ofensor” (EVO). Tais práti-
cas envolveram discussões iniciais se a reconciliação entre vítima e ofensor deveria ser
atingida necessariamente ou se poderia inexistir para que a finalidade de pacificação tives-
se sido obtida.246 Por isso é comum a referência de alguns autores, para quase a mesma
prática, à expressão de encontro de reconciliação entre vítima e ofensor pela sigla VORP
(“victim-offender reconciliation program”).247
Além dela, e ainda como grandes grupos, há os círculos e as conferências248. Os
círculos têm sido muito utilizados no Brasil,249 pois não deixam de ser uma prática ancestral
de muitos povos, inclusive dentre os indígenas e negros africanos, que tem papel relevante
em nossa formação. Tal prática, conforme sua finalidade, pode assumir vários complemen-
tos para identificá-las, daí: “Círculos de Construção de Paz, Círculos de Cura, Círculos de
Conversa, Círculos de Cuidado e Círculos Escolares”.250
Tal qual nos círculos, nas conferências os processos não são “mediados”, mas “facili-
tados”, devendo o facilitador coordenar o diálogo, estimulando o respeitoso e atento fluxo de
falas/escutas atentas, compassivas e recíprocas. Ainda se indicam outras duas diferenças para
com a ideia central de mediação. A primeira, nos círculos e conferências pode haver outros
participantes além da vítima e do ofensor, incluídos aqui membros comunitários. A segunda,
o fato de que para as conferências a ambientação não se dá tanto por regras fixas, buscando

adultos: una realidad en los ordenamientos jurídicos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009. p. 9-52, em especial item
II. Em Portugal, além do trabalho tantas vezes já aqui lembrado de Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurati-
va, cit., em especial sobre o tema sua Parte III, na qual examina a mediação em seu país), ressaltem-se as obras
específicas de BELEZA, Teresa Pizarro; MELO, Helena Pereira de. A mediação penal em Portugal, cit., em um
exame por artigos da lei lusa; e LEITE, André Lamas. A mediação penal de adultos: um novo “paradigma” de
justiça? Análise crítica da Lei 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Coimbra Ed., 2008. Forçoso reconhecer, contu-
do, que as informações mais recentes dessas experiências nesses países não têm sido de que tenham atingido o
sucesso inicialmente esperado, sendo que as limitações pandêmicas podem ter contribuído para isso, assim como
ocorrido no Brasil, pois nas práticas não violentas o contato direto e pessoal entre as partes é de importância ca-
pital. Também em outros países a mediação tem sido prática constante. David O’MAHONY e Jonathan DOAK
(Reimagining restorative justice, cit., p. 5) informam ser a mediação entre vítima e ofensor o procedimento res-
taurativo mais comum na América do Norte e na Europa. Para o direito anglo-saxão, notadamente o estaduniden-
se, há a obra de referência de Mark S. UMBREIT (The handbook of victim offender mediation, cit.). No Brasil
ainda continua sendo uma obra de referência sobre o tema o já citado trabalho de SICA, Leonardo. Justiça restau-
rativa e mediação penal, cit.
246
Uma explicação dessa variação terminológica em decorrência de conteúdos e finalidades diversas pode ser vista
em AMSTUTZ, Lorraine Stutzman. Encontros vítima-ofensor, cit., p. 16-18. Para se ter uma ideia da mescla de
ideias, traduções e sentidos que crescem por falta de organização criteriosa no movimento restaurativo, a citada
autora menciona que, por força da legislação neozelandesa para os conflitos juvenis, aproxima os termos “encon-
tros” e “conferências” como sinônimos (p. 17).
247
Sobre a origem do VORP, v. ROBERTS, Julian V.; ROACH, Kent. Restorative justice in Canada: from sentencing
circles to sentencing principles. In: VON HIRSCH, Andrew et al. (org.). Restorative justice and criminal justice:
competing or reconcilable paradigms? Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 237-256, em especial item I.1; e Howard
ZEHR, The little book of restorative justice, cit., p. 53-56.
248
As conferências também apresentam uma variedade de práticas. David O’MAHONY e Jonathan DOAK (Reima-
gining restorative justice, cit., p. 7-8), por exemplo, informam serem comuns na Nova Zelândia as “conferências
familiares”.
249
A obra e a experiência de Kay PRANIS (Processos circulares de construção de paz, cit.) têm sido decisivas, além
da própria compatibilidade com a cultura de muitas de nossas regiões.
250
AMSTUTZ, Lorraine Stutzman. Encontros vítima-ofensor, cit., p. 23. Kay PRANIS (Processos circulares de
construção de paz, cit., p. 28), por sua vez, dentro de sua temática de “círculos de paz”, identifica ao menos oito
tipos: “diálogo, compreensão, restabelecimento, sentenciamento, apoio, construção de senso comunitário, reso-
lução de conflitos, reintegração, celebração”. O Canadá, importante país no movimento restaurativo, tem apre-
sentado experiências relevantes com os “sentencing circles”. V. ROBERTS, Julian V.; ROACH, Kent. Restorative
justice in Canada, cit., p. 237-256, em especial item I.3.
49.  Sistema processual criminal não violento 729
sua melhor ambientação na participação de mais pessoas próximas às partes.251 Não obstante
não sejam poucos os teóricos e práticos que defendam uma regulação e, principalmente, um
preparo das partes como primordial para as conferências; com o que concordamos.252
Desse breve aceno de pluralidade de práticas, com algumas diversidades dentro de
cada uma delas, já se pode extrair duas conclusões. A primeira é que, mais que organizá-las
e abarcá-las todas, deve-se compreendê-las em suas diversidades, vantagens e desvantagens
a fim de escolher as mais apropriadas para nossa realidade sociocultural. Segunda, a neces-
sidade de dar a essas escolhas uma consistência teórica e normativa sem o que não haverá
caminho para sua consolidação, mas sem com isso deixar espaços de liberdade às inevitá-
veis adaptações ao caso concreto (princípio da flexibilidade) e que, dentro da realidade da
vida, pode ser a garantia tanto de uma viva dinâmica quanto de perenidade aos procedimen-
tos a serem elaborados.

49.1.3 Da publicidade no sistema processual persecutório-punitivo e da confidencialidade


no sistema processual criminal não violento: uma necessária compreensão
A relação entre publicidade e os atos da persecução penal tradicional sempre preci-
sou de acurada atenção e cuidado, pois ela pode ser lesiva quer por sua falta, quer por seu
excesso. Seu acerto em extensão e intensidade precisa ser medido não a priori, e para todos
os casos, mas com critérios claros de balanceamento e proporcionalidade diante da situação
concreta.253 Essa busca permanente de equilíbrio tem suas diretrizes cogentes já postas na
Constituição, que preceitua sobre a publicidade interna e externa do processo: “a lei só po-
derá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o in-
teresse social o exigirem” (art. 5º, LX). Tendo ainda a publicidade externa como regra dos
atos estatais, definiu-a expressamente como princípio reitor da Administração Pública, di-
reta e indireta, e, também, dos julgamentos do Poder Judiciário.254

251
Sobre as ideias indicadas nesse parágrafo, exceção feita aos pontos com notas específicas, v. VAN NESS, Daniel
W.; STRONG, Karen Heetderks. Restoring justice, cit., p. 84-85.
252
Nesse sentido, com o qual concordamos, v. UMBREIT, Mark; ZEHR, Howard. Restorative family group confe-
rences: differing models and guidelines for practice. In: McLAUGHLIN, Eugene et al. (ed.). Restorative justice:
critical issues. London: SAGE, 2003. p. 69-75, em especial item 1. Como o próprio título do artigo sugere, os autores
identificam e diferenciam os modelos neozelandês e australiano de conferência familiar. Para uma análise das con-
ferências familiares na Inglaterra, na mesma obra há interessante artigo de Jim DIGNAN e Peter MARSH [Resto-
rative justice and family group conferences in England: current state and future prospects. In: McLAUGHLIN,
Eugene et al. (ed.). Restorative justice: critical issues. London: SAGE, 2003. p. 105-115].
253
Para além dessa análise de ponderação, cujos critérios devem ser desenhados para atentar aos interesses em con-
flito e, assim, definir extensão e intensidade, o direito fundamental da publicidade dos atos persecutórios penais,
incluídas aqui todas as suas fases processuais lato sensu (da fase investigativa à fase recursal), obedece a vários
critérios classificativos. Já se fazem clássicas as classificações indicadas por Rogério LAURIA TUCCI e José
Rogério CRUZ E TUCCI, colacionadas na monografia daquele (Direitos e garantias individuais no processo
penal. 4. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 184-185): “a) ‘publicidade ativa’, em que determinados atos do processo são
involuntariamente conhecidos do público; e ‘publicidade passiva’, que se verifica quando o público, por iniciati-
va própria, ‘sponte sua’, deles toma conhecimento; b) ‘publicidade imediata’, quando a cognição dos atos do
processo está franqueada a todos os cidadãos; e ‘publicidade mediata’, quando deles só se toma conhecimento
mediante certidão, cópia, ou pelos ‘mass media’ (imprensa, por exemplo); e, c) ‘publicidade absoluta’ ou ‘exter-
na’, quando todos os atos do processo se realizam perante as partes, e, ainda, são acessíveis ao público em geral;
e ‘publicidade restrita’ ou ‘interna’, quando alguns ou todos eles se realizam, somente, perante as pessoas dire-
tamente interessadas e seus respectivos procuradores judiciais, ou, ainda, apenas estes”. A este trabalho interes-
sa, particularmente, a classificação da alínea “c”, citada.
254
Referidas disposições constitucionais estão, respectivamente, nos arts. 37, caput (“A administração pública dire-
ta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”) e 93, IX
730 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Nos dispositivos que envolvem os atos processuais, o critério cogente é claro: todos
os atos gozam de publicidade externa ampla e irrestrita, exceção feita à necessidade de pro-
teger a “intimidade ou o interesse social”. A “intimidade” contida nos autos, portanto, limi-
ta o acesso de terceiros aos dados deles constantes (publicidade externa), mas nunca atinge
as partes diretamente interessadas na causa penal (publicidade interna). A proteção da inti-
midade, mesmo no processo penal tradicional, estende-se às informações das vítimas e
testemunhas, também não devendo ser submetidas à exposição ou escrutínio popular, não
raro podendo ser expostas pela mídia.255
A intimidade, portanto, quando existente, porquanto velada e integrante dos autos de
persecução, em qualquer de suas fases (investigativa ou processual), é causa de exceção à
regra da publicidade externa e ampla; limitando o acesso de terceiros que não tenham inte-
resses a defender ou sejam afetados pelo caso criminal.
No sistema processual criminal não violento a lógica constitucional deve permane-
cer a mesma: a intimidade das pessoas (vítima, infrator; comunidade afetada ou grupo dos
próximos) deve ser protegida como um espaço essencial de sua dignidade.
Todavia, nesse sistema não violento há um caráter reforçativo para essa proteção
existir. Isto porque, como se vem demonstrando por este capítulo, ele é o espaço de maior
exposição de traumas e necessidades básicas atingidas, tanto da vítima quanto do infrator;
não sendo raro de outros integrantes da comunidade também. É, portanto, um espaço cons-
tituído para que a intimidade e sentimentos mais profundos venham à tona; logo, a exposi-
ção de dados dos mais delicados de todos os envolvidos é sua pauta normal e até certo
ponto uma necessidade intrínseca. A narrativa da intimidade, portanto, é a regra, pois en-
volverá falas e exposições de extrema intimidade e dor.256 Garantir a vedação da publicidade
externa (a terceiros) é essencial ao instrumento processo criminal não violento. O acesso ao
levado para o encontro não violento não pode ultrapassar o grupo de pessoas que dele par-
ticipam com a anuência e prévio conhecimento das partes. Nada pode ser gravado ou regis-
trado por meios audiovisuais, ou qualquer outra forma, do que foi ali exposto. Tudo isso é
fundamental, muitas vezes, até mesmo como condição a ser assegurada na fase da aborda-
gem e convencimento para participação das partes do conflito no processo não violento.
Afinal, se já é um desafio olhar para a outra parte e a ela revelar intimidades de violências
e traumas, assim como de vergonhas e fraquezas, saber ou não confiar que todo o exposto
não poderá ser assistido ou levado ao conhecimento de estranhos é determinante à aproxi-
mação e a aceitarem participar. Isso deve ser dito de modo claro e garantido pelo facilitador
desde seu primeiro contato com o infrator e com a vítima, inclusive garantindo-lhes que
nem mesmo o conversado com ele nesse encontro individual para viabilidade de aceitação
será reportado ao alguém ou de qualquer modo registrado pelo facilitador.

(“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob
pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advoga-
dos, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não
prejudique o interesse público à informação;”). Visto em sua incidência global, deve-se concordar com Gustavo
BADARÓ (Processo penal, cit., item 1.9, p. 69) ao afirmar que a publicidade é um atributo legitimante de todo ato
de poder, até mesmo porque sua aceitação e escrutínio devem ter o reconhecimento popular. “A publicidade asse-
gura a transparência dos atos estatais” (idem).
255
SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo penal constitucional, cit., item 6.1, p. 69.
256
A ONU, no preâmbulo de sua Resolução n. 2002/12, que versa sobre “princípios básicos para utilização de progra-
mas de justiça restaurativa em matéria criminal”, assim preceitua sobre o ambiente do procedimento restaurativo:
“Focando o fato de que essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam compartilhar aberta-
mente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre como atender suas necessidades, [...]”.
49.  Sistema processual criminal não violento 731
Por essa característica essencial do processo não violento, que todas as suas abor-
dagens teóricas257 e normativas impõem aos “processos restaurativos”, assim como quais-
quer formas de mediação ou de conciliação a “regra da confidencialidade”258 como nor-
ma intransponível.259
Para o processo não violento, portanto, além do sigilo, é imposto o “princípio da con-
fidencialidade” que garante que tudo que foi revelado e ocorrido em sua realização, desde o
primeiro ato de contato entre facilitador e cada parte em separado260, não fique registrado ou
seja divulgado mesmo após o seu encerramento, com ou seu resultado conciliatório.261

257
A doutrina espanhola, preocupada com tal essencialidade do processo não violento, afirma que a “mediação pe-
nal” regulada naquele país, seja protegida pelo “princípio da confidencialidade”. Nesse sentido, v. GONZÁLEZ
CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., item IV.3.3, p. 105-106; e, da mesma autora, o artigo La mediación
penal en España, cit., p. 9-52, item III.2, p. 67-68; BARONA VILAR, Silvia. Mediación penal, cit., p. 274-276; e
NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel. Origen y fundamentos criminológicos de la mediación, cit., p. 370-406, item 1.3.2.
Como na Espanha a mediação penal está regulada de modo a projetar efeitos nas causas criminais que estejam em
curso ou, ainda, ser considerada na sentença a ser produzida pelo juiz penal, há séria preocupação em que não
chegue ao magistrado qualquer informação levada ou discutida nos procedimentos mediados. A confidencialida-
de é “a essência da mediação” e um “requisito ‘sine qua non’ para se atuar a mediação” (BARONA VILAR,
Silvia. Mediación penal, cit., p. 274, traduzimos).
258
Dentro da teoria de Robert Alexy, que diferencia as normas de direito fundamental em “regras” e “princípios”,
tendemos que melhor seria, em sentido técnico-normativo, se a confidencialidade fosse considerada “regra”. So-
bre nossas considerações sobre essa distinção alexiana, v. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de
inocência no processo penal brasileiro, cit., item 4.4.3, e seus subitens. No texto deste trabalho, sempre que citar-
mos “princípio da confidencialidade” o faremos em respeito às normativas orientadoras e doutrina que o trata
como norma com importância diretriz, não no sentido alexiano antes referido.
259
Tanto a Resolução n. 225/2016, do CNJ, quanto o Projeto de Lei n. 2.976/2019 são expressos nesse sentido ao re-
gularem a “justiça restaurativa”. Naquele ordenamento vem preceituado: “Art. 2º São princípios que orientam a
Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade, a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os
envolvidos, a informalidade, a voluntariedade, a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensua­
lidade, a confidencialidade, a celeridade e a urbanidade. § 1º Para que o conflito seja trabalhado no âmbito da
Justiça Restaurativa, é necessário que as partes reconheçam, ainda que em ambiente confidencial incomuni-
cável com a instrução penal, como verdadeiros os fatos essenciais, sem que isso implique admissão de culpa
em eventual retorno do conflito ao processo judicial”. No projeto de Lei, in verbis: “Art. 3º A justiça restaurati-
va será orientada pelos seguintes princípios: I – corresponsabilidade; II – reparação dos danos; III – atendimen-
to às necessidades de todos os envolvidos; IV – informalidade; V – voluntariedade; VI – imparcialidade; VII –
participação; VIII – fortalecimento; IX – consensualidade; X – confidencialidade; XI – urbanidade” (destacamos).
No mesmo sentido se coloca o Manual sobre programas de justiça restaurativa, ao tratar das “2.3. Salvaguardas
legais e políticas” para a “justiça restaurativa”: “‘Confidencialidade do processo’: O teor dos processos restaura-
tivos que não sejam conduzidos em público devem ser confidenciais e não podem, portanto, ser divulgados, a
menos que haja consentimento das pessoas que participam ou conforme exigido pela lei nacional (parágrafo 14).
Outros instrumentos de direitos humanos, em particular a Convenção sobre os Direitos da Criança (artigo 16),
também visam proteger a privacidade das crianças e a confidencialidade dos procedimentos que envolvem crian-
ças” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça
restaurativa, cit., p. 17, destacamos). O Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS,
ao Projeto de Lei de novo Código de Processo Penal traz no capítulo referente à “justiça restaurativa” dispositivo
principiológico semelhante: “Art. 115. São princípios que orientam a justiça restaurativa a corresponsabilidade,
a reparação dos danos, o atendimento das necessidades, o diálogo, a igualdade, a informalidade, a extrajudicia-
lidade, a voluntariedade, a participação, o sigilo e a confidencialidade” (destacamos).
260
Nesse sentido o Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto de Lei
de novo Código de Processo Penal é claro: “Art. 117. [...] § 1º O facilitador restaurativo coordenará os trabalhos
de diálogo entre os envolvidos, por meio da utilização de métodos consensuais por autocomposição, próprias da
justiça restaurativa, devendo ressaltar durante os procedimentos restaurativos: I – o sigilo, a confidencialida-
de e a voluntariedade da sessão; [...]” (destacamos).
261
Nesse sentido, o Projeto de Lei n. 2.976/2019 protege as informações e qualquer outro dado trocado no curso dos
encontros, de modo que não possam ser utilizados perante a persecução penal tradicional, mesmo quando o proce-
dimento restaurativo não for concluído de modo positivo: “Art. 5º [...] § 8º Não obtido o acordo, é vedado o emprego
de informações do procedimento de justiça restaurativa como prova, e não poderá este ser utilizado como funda-
mento para aumento ou agravamento da pena em caso de condenação”. Na legislação portuguesa de mediação
penal, essa vedação de uso de informações no processo persecutório-punitivo é expressa: “Artigo 4º Processo de
mediação. [...] 5 – O teor das sessões de mediação é confidencial, não podendo ser valorado como prova em processo
732 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A confidencialidade começa desde as primeiras aproximações do facilitador com as


partes, sendo que todo registro ou informação, desde o momento inicial, esteja acobertado
pela confidencialidade que o facilitador estará obrigado a manter. Confidencialidade que
não pode ser quebrada nem mesmo por ordem judicial a fim de esclarecer o crime, ou mes-
mo outros a ele correlatos, que seja o objeto do conflito discutido.262
Para que isso fique claro às partes, indica-se a necessidade de o facilitador apresen-
tar e explicar uma declaração de confidencialidade com a qual assume, direta e pessoalmen-
te, assim como de toda a agência que integre.263 Confidencialidade a ser mantida sob pena
de ele, e quem descumprir o compromisso, ser criminalmente processado, além de poder
sofrer consequências funcionais. A doutrina e as normativas são uníssonas em impedir o
depoimento do facilitador como testemunha de fatos que tenham sido a ele narrados no
exercício profissional.264

judicial” (Lei n. 21/2007, de 12 de junho). O projeto está em linha com a Resolução n. 225/2016, do CNJ, que define,
sobre a confidencialidade e impossibilidade de comunicação do tratado nos encontros restaurativos ao modelo cri-
minal persecutório-punitivo: “Art. 2º São princípios que orientam a Justiça Restaurativa: a corresponsabilidade,
a reparação dos danos, o atendimento às necessidades de todos os envolvidos, a informalidade, a voluntariedade,
a imparcialidade, a participação, o empoderamento, a consensualidade, a confidencialidade, a celeridade e a ur-
banidade. § 1º Para que o conflito seja trabalhado no âmbito da Justiça Restaurativa, é necessário que as partes
reconheçam, ainda que em ambiente confidencial incomunicável com a instrução penal, como verdadeiros os
fatos essenciais, sem que isso implique admissão de culpa em eventual retorno do conflito ao processo judicial”
(destacamos). Tanto essas normativas brasileiras quanto as internacionais, nesse ponto, vêm orientadas desde a Re-
solução n. 2002/12 da ONU, que preceitua: “8. A vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos
essenciais do caso sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá
ser usada como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior”.
262
Nesse sentido anda em risco o Substitutivo de 30.06.2021, elaborado pelo Deputado Federal João CAMPOS, ao Projeto
de Lei de novo Código de Processo Penal, ao trazer exceções imprecisas e que podem colocar todo o projeto de “justiça
restaurativa” a ruir: “Art. 115. [...] § 6º O conteúdo da prática restaurativa é sigiloso e confidencial, não podendo ser
relatado ou utilizado como prova em processo penal, exceção feita apenas a alguma ressalva expressamente acordada
entre as partes ou a situações que possam colocar em risco a integridade dos participantes”. Melhor, nesse tópico, os
já destacados preceitos na nota anterior ONU e do CNJ em sua Resolução n. 225/2016, do CNJ. Ainda poderia ter op-
tado por ter sido mais explícito, na linha da Lei n. 13.140/2015, que versa sobre a mediação entre privados e entre eles e
a Administração Pública. Nesse regramento, ao tratar em subseção específica sobre a confidencialidade e suas exce-
ções, o legislador foi expresso ao assentar: “Art. 30. Toda e qualquer informação relativa ao procedimento de media-
ção será confidencial em relação a terceiros, não podendo ser revelada sequer em processo arbitral ou judicial
salvo se as partes expressamente decidirem de forma diversa ou quando sua divulgação for exigida por lei ou neces-
sária para cumprimento de acordo obtido pela mediação. § 1º O dever de confidencialidade aplica-se ao mediador,
às partes, a seus prepostos, advogados, assessores técnicos e a outras pessoas de sua confiança que tenham, direta
ou indiretamente, participado do procedimento de mediação, alcançando: I – declaração, opinião, sugestão, promes-
sa ou proposta formulada por uma parte à outra na busca de entendimento para o conflito; II – reconhecimento de fato
por qualquer das partes no curso do procedimento de mediação; III – manifestação de aceitação de proposta de acor-
do apresentada pelo mediador; IV – documento preparado unicamente para os fins do procedimento de mediação. §
2º A prova apresentada em desacordo com o disposto neste artigo não será admitida em processo arbitral ou judi-
cial. § 3º Não está abrigada pela regra de confidencialidade a informação relativa à ocorrência de crime de ação
pública. § 4º A regra da confidencialidade não afasta o dever de as pessoas discriminadas no caput prestarem infor-
mações à administração tributária após o termo final da mediação, aplicando-se aos seus servidores a obrigação de
manterem sigilo das informações compartilhadas nos termos do art. 198 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 –
Código Tributário Nacional. Art. 31. Será confidencial a informação prestada por uma parte em sessão privada, não
podendo o mediador revelá-la às demais, exceto se expressamente autorizado” (destacamos).
263
NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel. Origen y fundamentos criminológicos de la mediación, cit., p. 377.
264
Nesse sentido está desenhado o Projeto de Lei n. 2.976/2019: “Art. 7º É vedado ao facilitador da justiça restaura-
tiva: [...] II – ser testemunha a respeito de informações do procedimento de justiça restaurativa; III – relatar ao
juiz, ao Ministério Público, aos procuradores ou a autoridade, sem motivação legal, o conteúdo de declarações
prestadas por envolvido no procedimento de justiça restaurativa”. Na própria legislação processual vigente já
haveria esse impedimento, por influxo do art. 207 do Cód. Proc. Pen. (“São proibidas de depor as pessoas que,
em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte
interessada, quiserem dar o seu testemunho”), sob pena de cometimento de crime de violação do sigilo funcional
(art. 325 do Cód. Pen.) com pena de 6 meses a 2 anos, ou mesmo de violação de segredo profissional (art. 154 do
49.  Sistema processual criminal não violento 733
A confidencialidade é imposta, portanto, a todos que participem dos instrumentos
processuais não violentos. Logo, quaisquer deles estão impedidos de procurem para infor-
mar ou de qualquer modo se utilizarem dos dados obtidos nos encontros não violentos pe-
rante as agências persecutórias e judiciais em qualquer fase do processo persecutório-
-punitivo.265 Qualquer informe que tenha sido originado ou obtido durante os ritos não
violentos não será admissível no processo penal tradicional, sendo considerado, se nele for
introduzido, elemento de prova obtido por meios ilícitos. Logo, perguntas em inquirições
nesse sentido estão proibidas de serem feitas pelas autoridades públicas. Em nosso entender,
o uso lícito do material cujo conhecimento se deu por força do processo criminal não vio-
lento precisará do consentimento expresso de todos os participantes e, excepcionalmente,
em situações favoráveis ao infrator, pela norma constitucional do favor rei.266

49.1.4 Neutralidade como ideia-síntese da imparcialidade e da impessoalidade e sua


imprescindibilidade aos (novos) agentes internos do sistema processual criminal
não violento
Os agentes internos do modelo criminal não violento (responsabilizador-conci­
liatório)267, em quaisquer de suas funções ou atividades, devem se pautar pela neutralidade em
relação às partes naturais do conflito criminal e não defender outros interesses que não a
melhor dinâmica para que elas o resolvam de maneira não violenta e por meio de ações posi-
tivas por parte do infrator. Na nova estruturação das agências, de natureza público-privada268,
deve haver equidistância e tratamento igualitário entre os facilitadores e as partes dos confli-
tos, mesmo em se tratando de situações mais complexas em que elas se façam acompanhar de
pessoas próximas para auxiliar na aproximação. Essa atuação neutra, equilibrada e sincera é
determinante para estabelecer relações de confiança entre “agentes internos ↔ partes” e, em
decorrência, entre as partes (vítima ↔ ofensor), sendo fator de manutenção da voluntariedade
de todos na participação e permanência no processo não violento.269

Cód. Pen.), com pena de 3 meses a 1 ano, além das sanções administrativo-funcionais a que estiver submetido.
Teria andado bem o Substitutivo do Deputado João CAMPOS se trouxesse impedimento específico neste ponto,
assim como no Código de Processo Civil, desde 2015, para tutelar os conciliadores e mediadores: “Art. 166. A con-
ciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcialidade, da autonomia da
vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada. § 1º A confidencialida-
de estende-se a todas as informações produzidas no curso do procedimento, cujo teor não poderá ser utilizado
para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes. § 2º Em razão do dever de sigilo, ine-
rente às suas funções, o conciliador e o mediador, assim como os membros de suas equipes, não poderão divul-
gar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da conciliação ou da mediação” (destacamos). Nesse sen-
tido, v. RÍOS MARTÍN, Julián Carlos. Justicia restaurativa y transicional en España y Chile, cit., p. 22.
265
GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., p. 105.
266
Sobre o “favor rei” como desdobramento do princípio constitucional da presunção de inocência, v. ZANOIDE DE
MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro, cit., item 5.4.1 e seus subitens, p. 363-369.
267
Este trabalho, que se preocupa apenas em identificar a necessidade de que o modelo criminal não violento tenha
agências e agentes internos próprios, não diferenciando as espécies em cada prática não violenta (p. ex., media-
ção, círculos, conferências, encontros, etc.) e suas características, centra seus comentários na figura do “facilita-
dor”, que já foi tratado em alguns pontos tanto no item 44.4 quanto no item 48.3.2, supra.
268
Cf. item 48.3.1, supra.
269
Julián Carlos RÍOS MARTÍN (Justicia restaurativa y transicional en España y Chile, cit.) assim se manifesta neste
ponto: “‘Neutralidade’. O processo de mediação tenta encontrar um equilíbrio entre as partes para resolver seu
conflito. Durante o processo, os mediadores não se posicionam a favor de nenhuma das partes intervenientes, mas
procuram fazer com que a vítima e o ofensor cheguem a um acordo que mais os beneficie. Eles permanecem neutros
durante as entrevistas individuais e durante a reunião de diálogo, o que lhes permite atuar caso detectem que
está ocorrendo algum desequilíbrio de poder, para corrigi-lo” (p. 23, traduzimos).
734 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A neutralidade está, portanto, na essência das ideias de imparcialidade, tipicamente


utilizada para a figura do juiz, no sistema processual persecutório-punitivo, em decorrência
do direito fundamental ao juiz natural270, e da impessoalidade, princípio constitucional im-
posto à Administração Pública, direta e indireta, e seus agentes271. O termo “neutralidade”
parece ser um consenso entre restaurativistas, notadamente entre os mediadores, por trazer
esse sentido de equidistância horizontal entre o facilitador e as partes.272
A teoria administrativista explica o princípio constitucional da impessoalidade na Admi-
nistração Pública, direta e indireta, como o dever de “tratar a todos administrados sem discri-
minações, benéficas ou detrimentosas” e “nem favoritismos nem perseguições”, “simpatias ou
animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa
e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécies”.273
No sentido jurisdicional, GUSTAVO BADARÓ associa à imparcialidade o princí-
pio da independência do julgador. Informando ser este último princípio também, per se,
essencial ao julgador, expõe sua distinção em sentido interno e externo, sendo este o que
o resguarda, muito próximo do caráter objetivo da impessoalidade, de influências não
apenas do Poder Executivo e do Poder Legislativo, mas de interesses sociais e de grupos
econômicos em nossos dias. No sentido interno, muito mais frequente, protege o juiz de
controle ideológico ou funcional dentro da própria estrutura jurisdicional, inegavelmente
uma estrutura verticalizada de poder.274 Essa mesma independência deve ser buscada, em
ambos os sentidos, para resguardo essencial do facilitador, que não pode estar submetido
seja a fatores externos à sua agência, seja a pressões internas na resolução de dado confli-
to. Isso porque, e ainda na linha daquele processualista penal, apesar de diferente da im-
parcialidade, a independência é condição necessária, embora não suficiente. Ao juiz, assim
como ao facilitador, não se pode exigir, respectivamente, imparcialidade e neutralidade, se
não tiver, antes, assegurada a independência em sua atuação funcional.275 Há, pois, evidente

270
Sobre a relação entre imparcialidade do juiz e juiz natural, v. BADARÓ, Gustavo. Juiz natural no processo penal.
São Paulo: RT, 2014. Item 1.1.3, “Do juiz natural como mecanismo para assegurar a imparcialidade”, p. 35-44.
271
A impessoalidade consta como princípio reitor de todo órgão da Administração Pública no art. 37, caput, da CR,
in verbis: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: [...]”.
272
Kay PRANIS (Processos circulares de construção de paz, cit., p. 53) tem usado esse termo para a prática dos
círculos, e parece-nos bem apropriado no sentido de oferecer um novo “lugar conceitual” que não desaloje tanto
a imparcialidade quanto a impessoalidade, com tudo o que possuem de tradição, e não produza significados dife-
rentes para um mesmo termo. Howard ZEHR (The little book of restorative justice, cit.) ao se referir às pessoas
com as funções de “coordenador” nas conferências entre vítima-ofensor e de grupos familiares e, nos círculos,
pelos seus “mantenedores” (circle keepers) usa a expressão “modo equilibrado” (“balanced manner”) ao precei-
tuar como devam atuar (The little book of restorative justice, cit., respectivamente, p. 60, 62 e 64).
273
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
p. 104.
274
BADARÓ, Gustavo. Processo penal, cit., p. 42-43. No mesmo sentido, v. GIACOMOLLI, Nereu José. O devido
processo penal, cit., item 8.2, p. 233-234.
275
Essa síntese principiológica foi bem apercebida pelo legislador português, que assim se posicionou ao regular a
mediação penal: “Artigo 10º Exercício da actividade do mediador penal. 1 – No desempenho das suas funções,
o mediador penal deve observar os deveres de imparcialidade, independência, confidencialidade e diligência.
2 – O mediador penal que, por razões legais, éticas ou deontológicas, não tenha ou deixe de ter assegurada a
sua independência, imparcialidade e isenção deve recusar ou interromper o processo de mediação e informar
disso o Ministério Público, que procede à sua substituição de acordo com o previsto no n. 1 do artigo 3º”
(Lei n. 21/2007, de 12 de junho, destacamos).
49.  Sistema processual criminal não violento 735
senso e essência comum entre essas noções empregadas, em regra, a campos diversos da
atuação pública.276
A imparcialidade jurisdicional também pode ser analisada em sua faceta objetiva e
subjetiva, e ambas podem ser aplicadas no exame da neutralidade do facilitador. Teoria
construída a partir do “Caso Piersack vs. Bélgica”, julgado pelo Tribunal Europeu de Direi-
tos Humanos (TEDH), identificou-se que a imparcialidade pode ser percebida e analisada
desde os atos praticados pelo julgador para demonstrar e assegurar sua posição equidistante
das partes (imparcialidade objetiva) até suas posturas e afirmações tendentes a uma posição
no curso do processo (imparcialidade subjetiva).277 Na dinâmica dialogal, mas desde os pri-
meiros contatos do facilitador com as partes, esse terceiro ao conflito deve procurar manter
também tais sentidos em sua atuação.
Não se pode deixar trazer, por oportuna, a análise feita por JACINTO NELSON DE
MIRANDA COUTINHO sobre neutralidade e imparcialidade judicial no processo penal
persecutório-punitivo.278 Analisadas (neutralidade e imparcialidade) por um senso episte-
mológico e, ao mesmo tempo, histórico e empírico, o processualista afirma que o juiz, como
sujeito humano, não é fenomenologicamente um “sujeito passivo” como por muito tempo se
afirmou e se quis fazer acreditar. “Como todos os outros seres humanos, também é ‘cons-
trutor da realidade’ em que vivemos, e não mero aplicador de normas, exercendo atividade
simplesmente recognitiva”. Ele, ao decidir e impor sua decisão, “atua sobre a realidade,
pelo menos de duas maneiras: 1º, buscando reconstruir a verdade dos fatos no processo e,
2º, interpretando as regras jurídicas que serão aplicadas a esse fato ou, em outras pala-
vras, acertando o caso que lhe é posto a resolver”, concluindo que tal realidade expunge a
possibilidade de querê-lo “neutro” em sua atuação no processo e que as “regras” dispostas
para controlá-lo não são suficientes para mudar a força e o sentido de sua atuação.279 Opor-
tuna, outrossim, a sua conclusão, totalmente aplicável ao processo penal tradicional:

276
Odete MEDAUAR (A processualidade no direito administrativo. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. Item 37.2), obser-
vando as expressões escolhidas pelas Constituições italiana e espanhola, procura um senso comum nas ideias
centrais que a Constituição brasileira usa para “impessoalidade” e, aqui, os restaurativistas usam para “neutrali-
dade”. Assim, aquela autora aproxima as noções de “impessoalidade”, “imparcialidade” e “objetividade” no pro-
cesso administrativo, sem qualquer perda de sentido com o que se fala à “neutralidade” no processo criminal não
violento: “Dentre as Constituições estrangeiras, a italiana (1947) contempla no seu art. 97 o preceito da impar-
cialidade da Administração; e a espanhola (1978), no seu art. 103, 1, determina que a Administração sirva, com
objetividade, os interesses gerais. Impessoalidade, imparcialidade, objetividade envolvem tanto a idéia de fun-
cionários que atuem em nome do órgão, não para atender objetivos pessoais, como de igualdade dos administra-
dos e atuação norteada por fins de interesse público. Trata-se de ângulos diversos do intuito essencial de impedir
que fatores pessoais, subjetivos, sejam os verdadeiros móveis e fins das decisões administrativas. Com o princí-
pio da impessoalidade, a Constituição visa a obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos
de vingança, represálias, trocos, nepotismo, favorecimentos diversos, muito comuns em concursos públicos, lici-
tações, processos disciplinares, exercício do poder de polícia. Busca, desse modo, fazer predominar o sentido de
função, isto é, o caráter objetivo nas atuações dos agentes, pois, sob tal enfoque, os poderes atribuídos não se
destinam a atender interesses e móveis subjetivos e pessoais; finalizam-se ao interesse de toda a coletividade,
portanto a resultados desconectados de razões pessoais” (p. 93).
277
Nesse ponto que ora se resume, destaca-se o trabalho de Nereu José GIACOMOLLI (O devido processo penal, cit.,
item “8.6. ‘Cases’”, p. 243-255), no qual examina decisões de Tribunais Internacionais e Nacionais sobre o tema, e,
ainda, BADARÓ, Gustavo. Processo penal, cit., p. 45-47. Para a íntegra da decisão, v. Case of Piersack v. Belgium.
Application no. 8692/79. European Court of Human Rights. Court (Chamber). Judgment, 1 out. 1982. Disponível em:
https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22fulltext%22:[%22piersack%22],%22documentcollectionid2%22:[%22GRAN
DCHAMBER%22,%22CHAMBER%22],%22itemid%22:[%22001-57557%22]}. Acesso em: 23 dez. 2021.
278
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observa-
tório da Mentalidade Inquisitória, 2018. Capítulo “O papel do novo juiz no processo penal”, notadamente item 3.4,
p. 56-62.
279
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais, cit., p. 59-60.
736 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Mas isto, a delimitação das regras, não basta! É preciso que se saiba, para além
dela, contra quem se está jogando e qual o conteúdo ético e axiológico do pró-
prio jogo. Como referido no início, alcançar tal patamar só é possível quando os
agentes em cena, no palco social, assumam sua face ideológica. Não é possível
jogar uma partida honesta ou justa contra quem se esconde sob máscaras tais
como as de “objetividade” ou “neutralidade”. Até mesmo porque se sabe que tais
referenciais têm como função principal a ocultação dos conflitos socioeconômico-
-políticos. Em outras palavras: democracia – a começar a processual – exige que
os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que não se exige que o
legislador, e de consequência o juiz, seja tomado completamente por neutro, mas
que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso
efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se não mais a neutralidade,
mas a clara assunção de uma postura ideológica, isto é, que sejam retiradas as
máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o que começa pelo domínio da dogmá-
tica, apreendida e construída na base da transdisciplinaridade. O novo juiz, ciente
das armadilhas que a estrutura inquisitória lhe impõe, mormente no processo
penal, não pode estar alheio à realidade; precisa dar uma “chance” (questionando
pelo seu desejo) a si próprio, tentando realizar-se; e a partir daí aos réus, no julga-
mento dos casos penais. Acordar para tal visão é encontrar-se com seu novo papel.280

A realidade forense processual penal coloca o trecho destacado como um alerta


oportuno e uma constatação sensível e real.
Tendo exatamente este alerta em mente, pode-se perceber que as ressalvas têm cam-
po de menor incidência se observada as peculiaridades do sistema processual criminal não
violento. Isto porque, nesse novo sistema processual concebido neste trabalho, o facilitador
− o terceiro ao conflito que poderia ser associado, mesmo que indevidamente, à figura do
juiz −, não reconstrói fatos, não interpreta a lei, não é chamado para decidir nada e não
empresta suas convicções às partes a fim de influenciá-las na construção de um acordo que
deve ser obra apenas delas. O alerta de JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO
não terá incidência no processo criminal não violento se o facilitador resistir a um enorme
e natural risco: ser influenciado pelos traumas e dores a que estará exposto e vier a se deixar
influenciar. Os riscos de ceder à tentação de imiscuir-se no conflito são menores que os do
juiz técnico-togado (sujeito do saber-poder de nossos dias), mas existem. E, por isso, ele
deve receber treinamento apropriado para saber despertar um diálogo que leve à exposição
de traumas e dores, sentimentos reais e profundos dos envolvidos no conflito criminal (ví-
tima e infrator), mas não seja por eles enredado.281
Por essa razão seus treinamentos devem estar mais próximos, ao menos nesse ponto,
dos saberes das ciências sociais, psicológicas e psiquiátricas, do que dos conhecimentos
jurídicos. Uma mudança já na formação das pessoas tradicionalmente destinadas a lidar
com o “fenômeno criminal”. Mas um salto necessário para se implementar o propósito que

280
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais, cit., p. 60-62, com
destaques no original.
281
Tais pontos da atuação do facilitador e a sua perda de “neutralidade” por decorrência de “trauma vicário” (trauma
secundário) já foram objeto de considerações no item 48.3.2, supra. Nesse ponto há interessante consideração de
Alberto José OLALDE ALTAREJOS (40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción
penal, cit., item 27), ao tratar da pessoa do facilitador: “‘O significado de neutralidade’. A vítima muitas vezes
quer ouvir que um mal foi infligido a ela e que isso não deveria ter acontecido. Somos imparciais com as pessoas,
mostrando-lhes igual respeito, mas não somos neutros em relação à transgressão cometida, então chamamos as
coisas pelo nome, sem evasivas” (p. 256).
49.  Sistema processual criminal não violento 737
guia o modelo criminal não violento: ter a “violência envolvente” do crime como “objeto-
-problema” a ser tratado pela redução ou eliminação de suas “violências-efeitos” de modo
imediato e de suas “violência-causas”, se existentes, como seu objetivo mediato. Durante
toda a formação do facilitador ele deve ser lembrado e introjetar que o modelo criminal não
violento, e por meio dele, seu sistema processual não visa punir ou, de qualquer modo, in-
clusive processual, infligir pena ou dor a alguém, seja este vítima ou infrator ou, ainda, a
comunidade atingida pelo crime.
A neutralidade do facilitador, portanto, como paradigma de sua conduta, fundindo
aqueles princípios e ideias centrais de imparcialidade, impessoalidade e independência, é pos-
sível para além das preocupações e realidades epistêmicas e fenomenológicas, porquanto o
processo criminal não violento está também fincado em outros paradigmas estruturais e em
torno de outro eixo axiomático. Mas, insista-se, tal ambiente processual mais propício à neu-
tralidade não a confere de partida ou a torna algo inato à condição de facilitador; precisa ser
obra de específicos treinamento e formação.282 Máxime ao se notar que ele desempenha fun-
ção essencialmente ativa, pois dele depende desde despertar a voluntariedade empática nas
partes até manter o diálogo respeitoso e cordato durante todo o procedimento não violento.283
A “neutralidade”, indispensável ao facilitador, não deve ser confundida, porém, com
passividade.284 O facilitador não deve ser passivo em momento algum, desde o convite até a
finalização da solução entre as partes. Como se verá no subitem seguinte, sua atuação deve
ser no sentido de estimular um diálogo equilibrado entre as partes, utilizando-se para isso,
conforme o caso, do estabelecimento de regras que ajudem a igualá-las e que aceitem no
processo e, ainda, o apoio de terceiras pessoas. Para essa neutralidade ser mantida na dinâ-
mica dos diálogos é necessário treinamento e preparação teórica adequados, pois, não raro,
pela natural exposição de traumas e dores, de ambas as partes, é comum um envolvimento
psicológico de quem os ouve (“trauma secundário” ou “trauma vicário”). Fato que não pode
ocorrer sob pena de o facilitador perder o controle e o direcionamento em seu principal
mister: eliminar os efeitos negativos do crime e não ser por eles engolfado.
A necessária “neutralidade”, portanto, não é fixada por regras que determinam com-
portamento ou postura subjetiva de qualquer agente interno. Isso não foi conseguido nas
dezenas de séculos do processo persecutório-punitivo, o que não inspira a se conseguir de
partida para o sistema processual criminal não violento. Ela apenas começa por esses pon-
tos, e vincá-los em textos normativos se faz necessário.285 Todavia, na relação direta das

282
O UNODC, no seu Manual sobre programas de justiça restaurativa, informa no item 3, de seu “resumo dos
pontos-chaves”, do capítulo 3 intitulado “Tipos de processos e programas de justiça restaurativa”: “3. Os progra-
mas de mediação entre vítima e ofensor oferecem um processo no qual vítima e ofensor discutem o crime e seu
impacto, facilitado por um terceiro imparcial treinado para esse efeito, seja em uma reunião presencial ou por
meios indiretos” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRIME. Manual sobre progra-
mas de justiça restaurativa, cit., p. 40, destacamos).
283
Raffaella da Porciuncula PALLAMOLLA (Justiça restaurativa, cit., item 4.4.3), ao tratar da “imparcialidade”,
aponta muitas dificuldades à sua existência feitas por muitos restaurativistas, mas conclui que ela está mais pró-
xima de ser atingida em um processo de decisão horizontal e que, por força da voluntariedade, garante às partes
(vítima ou infrator) retirar-se caso não se sintam respeitados.
284
Essa diferença vem muito bem destacada por Kay PRANIS (Processos circulares de construção de paz, cit.,
p. 53-54) ao ressaltar a importância de o facilitador/guardião manter e potencializar o fluxo do diálogo nos círculos.
285
Sobre esses vincos normativos, comecemos do plano internacional ao nacional. A ONU, em sua Resolução
n. 2002/12, já o fixa: “5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a
participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo”. Como já indicado acima, a legisla-
ção portuguesa define tanto a independência quanto a imparcialidade como essenciais à função do mediador pe-
nal como também determina seu afastamento, voluntário ou provocado, caso perca aqueles guias deontológicos e,
738 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

partes ela precisa ser um permanente cuidado do facilitador, que deve, por transparência,
não ser omitido das partes como atenção permanente, mas, por sua perícia e sem coerção,
ser garantido.

49.1.5 Assistência jurídica integral e gratuita e igualdade na dinâmica dialógica: a informação


e seus objetivos no sistema processual criminal não violento
Quando se analisa qualquer atividade processual fora do âmbito do sistema proces-
sual penal tradicional nota-se a presença constante da “informação” como um direito essen-
cial do cidadão,286 o que se explica dado, notadamente, à falta de cultura de que os conflitos
criminais possam ser abordados e tratados fora do modelo criminal persecutório-punitivo.
A assistência jurídica integral começa, portanto, a partir do dever de se informar que há
uma alternativa e em que ela consiste, passa por oferecer condições de organização, estru-
tura e agências para que ela se realize e termina por assegurar que, mesmo reconhecendo-se
a real desigualdade que pode haver entre algumas partes do conflito, é por meio daquela
assistência que ela será reduzida ao menos no curso do procedimento não violento. Esses
aspectos, expostos de maneira sintética, precisam ser explicados, mesmo que sem o devido
aprofundamento, em sua dinâmica.
Ao que importa a este estudo, a assistência jurídica integral e gratuita prevista na
Constituição como direito fundamental (art. 5º, LXXIV, da CR) tem três objetivos no siste-
ma processual criminal não violento: o primeiro, ser um fator de contracultura da violência
e esclarecer às pessoas que há outras formas (não violentas) de se tratar e transformar o
conflito criminal; o segundo, esclarecer a forma, dinâmica, conteúdo e finalidade do siste-
ma processual não violento de modo a formar uma consistente consciência no cidadão,
única forma de despertar-lhe uma voluntariedade empática para participar do processo; e,
por fim, o terceiro objetivo é garantir que, informado, saiba o que pode fazer e até onde a
outra parte poderá ir, de modo a propiciar o maior equilíbrio possível na dinâmica dialogal.
Expandindo um pouco o citado primeiro objetivo, para mostrar-lhe seu potencial
transformador, mesmo sem trata-lo de um modo amplo, por fugir ao escopo deste trabalho,
não se pode deixar de mencionar que difundir que há e como funcionam as práticas não vio-
lentas de solução de conflitos é benéfico a toda a sociedade, pois, faz com que os cidadãos

com isso, perca sua isenção (cf. art. 10º, itens 1 e 2, Lei n. 21/2007, de 12 de junho). O nosso atual Código de
Processo Civil, ao tratar “Dos conciliadores e Mediadores Judiciais” é claro em exigir tal pressuposto de compor-
tamento: “Art. 166. A conciliação e a mediação são informadas pelos princípios da independência, da imparcia-
lidade, da autonomia da vontade, da confidencialidade, da oralidade, da informalidade e da decisão informada”
(destacamos). No mesmo sentido, vem a Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2015), já em seus artigos iniciais: “Art. 1º.
Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocom-
posição de conflitos no âmbito da administração pública. Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade
técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e
estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. Art. 2º A mediação será orien-
tada pelos seguintes princípios: I – imparcialidade do mediador; [...]” (destacamos).
286
O UNODC, no seu Manual sobre programas de justiça restaurativa, informa dentre os “Possíveis Benefícios dos
Programas de Justiça Restaurativa”: “Dar às vítimas e à comunidade respostas, reconhecendo o seu direito de ter
voz, direito à informação e direito à verdade” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DROGAS E CRI-
ME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 10), assim como reconhece que os participantes têm
vários direitos relacionados diretamente à informação que precisam receber para atuarem conscientes e voluntaria-
mente, assim como conhecer e aceitar os métodos não violentos. Dentre esses direitos, cite-se: “‘Direito a receber
aconselhamento jurídico’: A vítima e o ofensor devem ter o direito de receber aconselhamento jurídico sobre o
processo restaurativo e, se necessário, sua tradução e/ou interpretação. ‘O direito de ser plenamente informado’:
Antes de concordar em participar de um processo restaurativo, as pessoas devem ser integralmente informadas
sobre os seus direitos, a natureza do processo e as possíveis consequências das suas decisões” (p. 16).
49.  Sistema processual criminal não violento 739
comecem a perceber sua larga aplicação a conflitos que, apesar de não serem criminais, são
os que sucedem em maior número de vezes em ambiências familiar, educacional, profissio-
nal e de convivência social (clubes, entidades comunitárias, associativas, agremiações,
etc.). Logo, a informação passa a ser, como sói acontecer, meio de transformação cultural
pela fixação de uma ideologia da não violência, diminuindo toda a tensão no tecido social.
Trazendo esses benefícios e esse primeiro objetivo para o ambiente forense, seria de todo
útil que toda a estrutura existente e destinada ao modelo criminal persecutório-punitivo
tivesse referências sobre a existência e as fontes onde as pessoas pudessem buscar mais
informações sobre como ter respostas não violentas e por meio também não violentos a
seus conflitos criminais. Essas posição e iniciativas das agências em oferecer informação e
direcionamento são formas de assistência jurídica integral e gratuita voltada à difusão e
implementação de menos violência social (criminal e institucional). Comportamento que
auxilia ao modelo criminal não violento na medida em que passa a ser política criminal de
retirada do âmbito do modelo persecutório-punitivo casos que podem ser tratados de uma
forma alternativa.
O segundo objetivo, e agora já tratando das assistências jurídicas para esclarecimen-
to do que é e como funciona o sistema processual não violento, em seus vários ritos e práti-
cas, assim como sua finalidade e valores, precisa levar em conta as peculiaridades do con-
flito, do “fenômeno criminal” que o cerca, incluindo as pessoas que dele participam. Nesse
passo a atuação do facilitador é fundamental, pois ele deve, já na primeira aproximação do
caso, identificar e informar; o que lhe exige uma atuação técnica e de muita sensibilidade.287
É de sua percepção sobre as fragilidades, peculiaridades de cada parte, assim como de fre-
quentes desigualdades entre elas e, diante disso, saber respeitá-las em suas diferenças e
explicar que assim continuará a ocorrer durante todo o processo não violento, que nascerão
fortes empatia e voluntariedade.288 A assistência jurídica integral, portanto, nesse segundo
objetivo, parte de um diagnóstico das peculiaridades das partes e do conflito para orientar
o procedimento mais apropriado para um equilíbrio no diálogo entre os envolvidos.
No processo criminal não violento, por sua metodologia dialogal e seu desenvolvi-
mento em plano horizontal,289 não pode ocorrer relação de dominação ou prevalência de
uma parte sobre a outra.290 Isso não significa negar a realidade da vida em que as partes do
conflito são, amiúde, desiguais entre si, quer por critérios socioeconômicos quer por fato-
res psíquicos e educacionais, quer pela própria posição conflitual (em um misto de senti-
mentos de dor, medos, vergonha, etc.) e que, de modo mais ou menos pronunciado, interfe-
rem e tornam díspares suas posturas e desenvolturas dialogais.291 Essas desigualdades entre
as pessoas são uma realidade e, exatamente por isso, devem ser uma preocupação constan-
te e desde o primeiro instante do processo criminal não violento. De uma constatação de
desigualdade material e anterior ao processo, busca-se – tanto quanto possível – atingir-se
uma igualdade no processo: a igualdade processual.

287
Sobre esse ponto já fizemos considerações anteriores e mais específicas quanto à natureza e dinâmica dos conflitos
em geral (cf. item 44.3, supra) e ao tratamos especificamente do terceiro que dinamiza e atua para o diálogo ocorrer
e que, neste trabalho, centralizamos na figura do “facilitador” (cf. item 48.3.2, especificamente, supra).
288
Sobre a posição fundamental da empatia e da voluntariedade no funcionamento do modelo criminal não violento,
cf. item 48.2, e seus subitens, supra.
289
Já tivemos a oportunidade de desenvolver isso nos itens 44.4 e 48.2.2, supra.
290
BRAITHWAITE, John. Principles of restorative justice, cit., p. 1-20, item IV, “Values”, p. 9-10.
291
GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., item IV.3.2, p. 104.
740 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A construção de um devido processo legal para esse processo criminal exige que tal
situação material desigual seja remediada desde o primeiro momento das atividades de
construção de um resultado consensual. Caso isso não ocorra, tanto o plano horizontal
quanto a dinâmica do diálogo estarão comprometidos.
A assistência jurídica integral inicia no momento do convite, no qual há o contato di-
reto e individualizado entre facilitador e cada parte do conflito em separado. A desigualdade
material e anterior deve ser detectada e entendida pelo facilitador em suas peculiaridades já
desde esse instante.292 Uma vez identificada e avaliada, uma série de atos e providências pode
ser adotada para minorá-la, até o ponto de torná-la aceitável no curso dos ritos não violentos.
As medidas de diminuição das desigualdades começam, sem dúvida, por fornecer às
partes informações completas e necessárias para que entendam o propósito e a dinâmica do
processo não violento, mas também ao lhes assegurar que o processo é gratuito. Assim
como há gratuidade no sistema processual criminal tradicional como regra e sempre a todos
os desassistidos, informar à pessoa sobre em que consistirá o processo e de que ele não trará
custos para ela e seus próximos é caminhar em direção à diminuição das desigualdades pelo
cumprimento do preceito constitucional de assistência jurídica (e não jurisdicional) gratuita
e integral.293 A informação e a gratuidade devem ser eficazes e mantidas durante todo o
procedimento não violento, incluída a fase de cumprimento do resultado conciliatório.
Ainda na atuação de uma assistência integral que vise diminuir desigualdades pode ser,
ainda por parte e segundo a análise do facilitador, escolher a espécie de procedimento não vio-
lento (p. ex., mediação, círculo ou conferência)294 e dos locais dos encontros mais apropriados, na
medida em que ajude na dinâmica dialogal de forma a nivelar ainda mais os participantes. Sem
privilégios a qualquer parte ou preferências pessoais do facilitador – o que violaria a neutralidade
indicada no subitem anterior como essencial −,295 aquelas escolhas podem aproximar ainda mais
as partes, o que é de todo profícuo para o propósito final: construir uma resposta não violenta de
conciliação criminal que reduza ou elimine os efeitos da “violência envolvente” do crime para a
vítima, de forma imediata, e para a comunidade, quando possível, de forma mediata.
A preocupação em reduzir desigualdades desde a informação inicial, passando ga-
rantia de gratuidade e pelas escolhas do lugar do encontro e da espécie mais apropriada de
procedimento, aproxima-se, ressalvadas as peculiaridades, da noção de “par conditio”
como igualdade no processo que a doutrina processual desenvolve há tempos para o sistema
processual penal persecutório-punitivo.296 Aplicando as conquistas desse saber teórico é

292
Sobre as fases do convite, assim como a organização e o planejamento dos procedimentos não violentos para o
encontro das partes do conflito, v. item 44.4, supra, e, mais especificamente, o item 48.3.2, supra, quando trata-
mos do facilitador e suas funções e características.
293
Sobre a gratuidade como essência de igualdade no procedimento de mediação, v. BARONA VILAR, Silvia. Me-
diación penal, cit., p. 276-277; e GONZÁLEZ CANO, María Isabel. La mediación penal, cit., item IV.3.2, p. 104.
294
O UNODC, no seu Manual sobre programas de justiça restaurativa, informa como principais práticas restaura-
tivas: “3.2 Principais tipos de processo. Apesar da diversidade dos programas de justiça restaurativa, alguns
tipos de processo restaurativo são mais utilizados do que outros. São eles: (a) mediação entre vítima e ofensor
(conciliação); (b) conferência restaurativa; e (c) círculos” (ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE
DROGAS E CRIME. Manual sobre programas de justiça restaurativa, cit., p. 24). Para a indicação das atuais
várias práticas restaurativas existentes que podem ser mais apropriadamente reguladas para que, com flexibilida-
de, possam ter suas características e estruturas fundamentais conhecidas de todos de modo a serem explicadas e
garantidas às partes, v. item 49.1.2 e seu subitem, supra.
295
Cf. item 49.1.4, supra.
296
Nesse sentido de “par conditio” como igualdade processual e sua asseguração pela dinâmica no processo, v. texto
já clássico de GRINOVER, Ada Pellegrini. Defesa, contraditório e par conditio na ótica do processo de estrutura
49.  Sistema processual criminal não violento 741
possível compreender que também se chega àquela forma de “igualdade processual” no
processo criminal não violento pela dinâmica empreendida no procedimento. Máxime nes-
sa forma proposta de processo criminal cuja metodologia se dá pelo diálogo.
A igualdade processual na dinâmica dialogal tem semelhanças e diferenças com o
“processo de partes” e que caracteriza o modelo criminal persecutório-punitivo.
Uma das diferenças é o fato de no processo criminal não violento não haver “debate”
entre as partes, no sentido já exposto de as partes digladiarem-se para provar quem tem
razão na causa. A metodologia dialógica não procura “vencer” a discussão, mas compreen-
der as diferentes perspectivas de cada parte sobre o conflito de modo que não se oportuniza
a alguém falar para desconstruir ou fragilizar ou desacreditar as razões do outro, mas que
falem e se escutem, respeitosamente, para compreenderem com as experiências do outro.
O diálogo exige posição empática para aceitar o outro em semelhanças e construir um pon-
to comum a partir das diferenças de perspectivas existentes; com a convicção de que não há
“certo ou errado”, mas a possibilidade de um lugar melhor do que aquele em que se está.
No debate, ao contrário, há a crítica e o confrontamento de ideias e perspectivas, sendo que
a pessoa que fala parte do pressuposto de que está certa e tem o “melhor direito” (bonis
iuris) a seu favor, opondo-se ao pedido ou postura da “parte contrária”.297
A semelhança, por sua vez – e é este o ponto que aqui importa −, está no movimen-
to de alternância de fala/escuta que deve existir entre as partes. A “escuta profunda”298 da
fala do outro somente pode ser atingida de modo respeitoso e igualitário se entremeada por
falas equivalentes em tempo e oportunidades da outra parte. Esse balanceamento de opor-
tunidades, a ser garantido e promovido pelo facilitador, é peculiar a todas as práticas res-
taurativas e, portanto, deve ser uma constante também nos procedimentos não violentos.
As pessoas tendem a respeitar e dar a mesma atenção que recebem, seja em seus momentos
de fala, seja em seus instantes de escuta. Movimento necessário para que, também no pro-
cesso criminal não violento, se caminhe para a frente na consecução de um resultado.
Contudo, aqui há uma diferença de finalidade fundamental: o resultado não será uma deci-
são de terceiro que dá razão a um “ou” outro conflitante, mas aquele construído pelas
próprias partes e que representa um lugar-comum, sem prevalência de versões, teses ou
razões. Há, portanto, na dinâmica do diálogo também um caminhar adiante como em um
avançar de fases no mesmo e único encontro ou entre sessões sucessivas a depender do
procedimento escolhido.299

cooperatória. In: Novas tendências do direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 1-16. V., ainda, GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal, cit.,
item 16.2, p. 383-384. É uma preocupação de Cláudia Cruz SANTOS (A justiça restaurativa, cit., p. 600-603)
como a desigualdade entre as pessoas pode inviabilizar ou, ao menos, reduzir o espectro de atuação da “justiça
restaurativa”. Sem deixarmos de reconhecer que as desigualdades trazem sim impedimentos para todos os setores
da vida, não podemos deixar de tentar reduzi-las por meio de atuações positivas e que, neste caso, começa − e
“apenas” começa – por informar, garantir participação igualitária por atuação de facilitador e pela gratuidade dos
procedimentos não violentos.
297
Para melhores explicações sobre as diferenças entre “debate”, do modelo criminal tradicional, e diálogo, do mo-
delo não violento, cf. item 44.4, supra, com base na obra de SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para as-
suntos difíceis, cit., e cuja síntese do que importa neste ponto pode ser vista na tabela produzida pelos autores em
sua p. 11 e que foi reproduzida neste trabalho na p. 578 (Tabela 2).
298
Sobre esse ponto, v. SCHIRCH, Lisa; CAMPT, David. Diálogo para assuntos difíceis, cit., p. 43, e, mais uma vez,
cf. item 44.4, supra.
299
Sobre o acordo de progressão de fases no diálogo e nas sessões, com retomadas em sessões seguidas, mas a partir
dos pontos já firmados nos encontros anteriores, v. UMBREIT, Mark S. The handbook of victim offender media-
tion, cit., Capítulo 3, “Mediation process”, p. 47-59.
742 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

A partir dessas diferenças e semelhanças de base resta evidente que o “princípio


do contraditório” deve ser repensado para sua utilização no sistema processual criminal
não violento. Ele pode e deve permanecer em sua dinâmica de alternância de oportunida-
des de ciência e manifestação e no encaminhamento do procedimento para sua conclusão.
Contudo, deve ser modificado em seu sentido de “contraposição” ou “oposição ao outro”
em comportamento e exposição. Isso não significa que palavras rudes, dores e cicatrizes
emocionais não sejam ditas de maneira forte nos encontros. Provavelmente isso ocorrerá,
pois o próprio processo não violento busca essa transparência de causas reais dos traumas
existentes e das necessidades básicas violadas; assim como dos medos e das vergonhas.
A diferença está em que essa exposição deve ser feita para melhor compreensão e aproxi-
mação recíproca e respeito mútuo entre as partes e não para que alguém se sagre o “ven-
cedor” na “disputa”.
O diálogo não deixa de ser uma duplicidade de razões ou perspectivas de um confli-
to. A diferença nasce já do plano do modelo criminal não violento e está na abordagem e
propósito implementados no movimento de alternância de falas e escutas. A abordagem é a
que vê o crime como uma violência, mas também como uma oportunidade de fazer algo
melhor. O propósito é que, desde os atos processuais, esse algo melhor não seja violento e,
ao contrário, reduza a “violência-efeito” provocada pelo cometimento do crime e por ela
compreenda a “violência-causa” daquele crime para também eliminar ou minorar o que
tenha produzido de prejudicial a alguém ou a um grupo de pessoas. Esses pressupostos de-
finidos desde o modelo criminal não violento fazem infrator e vítima se colocarem um
diante do outro com posições iniciais naturalmente opostas, mas dispostos ao “encontro”
(processual, no primeiro momento, e material, no segundo momento). Logo, o contraditório
perde sua feição tradicional de “oposição” constante e alimentada durante todo o procedi-
mento e passa a assumir uma feição de alternância de oportunidades para o consenso, que
colocará um ponto-final no procedimento porquanto é o seu resultado almejado.
As desigualdades existem. Elas são uma realidade inevitável na vida das pessoas e
não serão eliminadas por qualquer modelo criminal, quer o persecutório-punitivo tradicio-
nal, quer o não violento. Todavia, o empoderamento e a oportunidade de fala e escuta típi-
cos do sistema processual não violento proporcionam muito mais que tais desigualdades
sejam percebidas e superadas de forma mais profunda e duradoura.
O processo não violento, como instrumento de redução de violência social, tem mais
aptidão a expor e, portanto, apresentar tais desigualdades às partes do conflito para que
sejam também na oportunidade do seu encontro consideradas e minoradas. No modelo e no
processo criminais não violentos reside mais esperança de aproximação exatamente por
causa das desigualdades que tendem a avultar das realidades expostas em falas francas,
porquanto voluntárias e empáticas. Haverá, desse modo, um natural deslocamento de foco
do “crime” para a atenção às “necessidades básicas” atingidas e essenciais a cada um.
A sensibilização que o diálogo horizontal permite deve ser a porta para uma percepção que
vá além do “ilícito” definido em lei. Atinge a percepção da humanidade posta diante das
pessoas envolvidas e para as quais a reparação deixa de ser um direito e passa a ser respeito
pelo outro em sua realidade até então invisível.

49.2 “Processo criminal não violento” e sua natureza jurídica de processo


Pelo até aqui expendido nesta Parte III, identificaram-se as diferenças paradigmáticas
entre o modelo criminal tradicional, de cariz persecutório-punitivo, vinculado à resposta
49.  Sistema processual criminal não violento 743
violenta (pena criminal e persecução) ao crime, e o modelo criminal novo e formulado sob
o signo da não violência institucional como resposta à “violência envolvente” do “fenômeno
criminal”. Exposta essas divergências de fundo, foi feita toda uma indicação de percurso,
partindo da identificação de que há na política criminal espaços diferentes e nos quais po-
dem coexistir esses modelos diversos. Também se demonstrou que dentro do “novo” mode-
lo criminal deve haver um não menos e correspondentemente “novo” sistema processual
criminal, para o qual o devido processo legal e seus princípios processuais consectários
devem passar por uma reflexão na descoberta de novos âmbitos de proteção da norma de
direito fundamental.300
Fosse esse novo sistema processual não violento uma realidade cultural e legal ou,
ainda, fosse sua teoria muito difundida nas hostes jurídico-acadêmicas, sua exposição deve-
ria ter começado pela verificação de se possui natureza jurídica de “processo”. Contudo, ser
ele uma novidade incipiente naqueles ambientes não indicou essa como a melhor didática
expositiva. Daí entender-se melhor antes identificar e explicar a dinâmica de suas peculia-
ridades e sua possibilidade de se inserir em um novo espaço dentro da cláusula mater do
devido processo legal e esboçar os direitos fundamentais processuais penais já desprendi-
dos daquela cláusula e que com ele guardam pertinência e relevância, para somente neste
ponto examinar sua natureza jurídica em face das mais consagradas teorias que pretendem
explicá-la para o processo penal persecutório-punitivo (tradicional). Isto significa que se
deve proceder à explicação das teorias a fim de verificarmos se o “processo não violento”
pode nelas se inserir para se dizer ter ele a natureza jurídica de “processo”.
Essa didática escolhida, em verdade, se impôs, uma vez que seria impossível anali-
sar teoricamente algo que, pela falta de tradição e cultura, precisava antes ser identificada,
definir seu axioma político-ideológico, seu espaço político e constitucionalidade e ter ex-
posta a sua fenomenologia e dinâmicas. Isso porque todas as teorias sobre a natureza jurídi-
ca do processo partiram de algo já posto nas suas respectivas épocas. Nossa investigação
histórica mostra que o processo penal tradicional já tinha ao menos dois milênios de exis-
tência (século I a.C. a século XIX) quando lhe começaram a dissecar a natureza jurídica.
Logo, a tarefa de fazer o mesmo com o processo criminal não violento seria impossível se
antes não se tivesse demonstrado: “o que é”, “como se realiza” e “para qual finalidade”.
Por essa razão, inicia-se pela fenomenologia processual observada e tida como
objeto de análise desde meados do século XIX e que até hoje vige nos sistemas processu-
ais, já pontuando, porquanto fundamental, sua indefectível distinção entre os subsistemas
processuais civil e penal do modelo tradicional, para em seguida descrever o ocorrente no
processo criminal não violento.

49.2.1 Premissas ontológicas das teorias da natureza jurídica do processo


Meados do século XIX foi o marco inicial do desenvolvimento das teorias processuais
que buscam explicar a natureza jurídica do “processo” até nossos dias. O termo “processo”

300
A exposição desse modelo criminal não violento, como não poderia deixar de ser, partiu da exposição da política
criminal (cf. item 46, e seus subitens, supra) e de sua constitucionalidade (cf. item 47, supra), passando por um
espaço comum e típico do plano do modelo criminal, que congrega e formula diretrizes para o instrumental sis-
temático material e processual (cf. item 48, e seus subitens, supra). Tudo como necessária exposição logicamente
prévia a revelar os fundamentos e a coerência para o trato do sistema processual não violento que se faz necessá-
rio àqueles novos modelo e política criminal (cf. item 49.1, supra).
744 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

é usado aqui sem qualquer adjetivação (p. ex., civil, penal, administrativo, arbitral), pois
nessa fase histórica, e ainda algumas décadas depois, em vários países da Europa continen-
tal (p. ex., e mais destacadamente para o tema, Alemanha, Itália, Espanha e França), buscava-
-se algo que servisse de natureza comum a todas aquelas suas subdivisões. Nesse mister de
amplo espectro fixou-se um marco empírico-analítico que precisa desde já ser ressaltado: os
processualistas sempre partiram e testavam suas hipóteses na fenomenologia do “processo
não penal”, em especial o civil e o administrativo. Afirmavam que, se suas análises se pro-
vassem verdadeiras e úteis no campo “processual não penal”, “poderiam ter importância,
também, para a teoria do direito processual criminal”.301
O campo criminal, portanto, não foi analisado em suas peculiaridades por aqueles
teóricos para estabelecer algo a ele apropriado em sua ontologia; a realidade cujas raízes e
principais pontos que se procurou trazer por toda a Parte I deste trabalho. Tal “ser” proces-
sual penal tem crucial importância também no exame de sua natureza jurídica. Como afir-
mado naquela Parte, a história não é passado. Ela é presente e não pode ser olvidada, sob
pena de o futuro vir lento e errático pela impossibilidade de bem reflexionar sobre a essência
do processo penal devido à falta de nitidez compreensiva da ratio na sua construção políti-
ca, sua constituição estrutural e utilização de seus instrumentos e agências.
A “reflexão” a seguir feita visa a situar aquela ratio em sua época, com seus avan-
ços e precisões, mas considerando fenômenos por eles não considerados e existentes mes-
mo às suas épocas. O respeito pelas contribuições feitas por vários pensadores deve ser
tributado e compreendido no cenário e tempo em que foram feitas, devendo apenas, até
para mantê-las vivas e como marcos teóricos, assim como a seus importantes e prestigio-

301
Foi com essa frase que Oskar von BÜLOW terminou o prólogo de sua famosa obra Die Lehre von den Processein-
reden und die Processvoraussetzungen, publicada em 1868. O prólogo, curto em extensão, mas didático e fiel ao
encaminhamento da obra, assim alertava ao seu leitor: “PRÓLOGO: A ciência processual civil ainda tem um
longo caminho a percorrer para alcançar o progresso que foi feito nos outros campos do direito. Para isso, é
necessário, acima de tudo, o esforço de uma investigação dogmática livre. As ideias processuais mais importan-
tes e básicas ainda estão na penumbra, obscurecidas pela construção conceitual inadequada e terminologia
errônea; ambas, herança recebida da lei medieval e preservada com a maior fidelidade e constância. Neste
trabalho, tentei esclarecer alguns desses conceitos fundamentais. A principal tarefa era descartar uma teoria
equivocada e distorcida de todo o sistema processual civil, por causa da qual eles estavam totalmente ocultos
até hoje. Para esse fim, foram necessárias investigações especiais para penetrar nos aspectos mais íntimos e
profundos da história de nossa lei processual civil. No desenvolvimento dessas mesmas noções, limitei-me às
características fundamentais e estou convencido de que há algo incompleto. Mas acho que a falha deve estar
mais no fato de eu ainda estar muito apegado às ideias tradicionais do que em me afastar excessivamente delas.
As conclusões de que, como consequência dos resultados obtidos, devam ser adotadas pela legislação processu-
al, estão expostas ao final do trabalho. Embora o ponto central das investigações que nos dizem respeito seja
encontrado no direito processual civil, elas também se estendem, muitas vezes, ao direito comum, ou seja,
implicam uma regulamentação definitiva do limite entre direito privado e direito processual civil. Se as noções
básicas aqui desenvolvidas provarem sua eficácia, elas também podem ser importantes para a teoria do direi-
to processual criminal. Giessen, agosto de 1868. BÜLOW” (La teoría de las excepciones procesales y los presu-
puestos procesales. Tradução por Miguel Angel Rosas Lichtschein. Lima: Ara Editores, 2017. p. 19, traduzimos e
destacamos). Como prometido pelo autor, em toda a sua obra não se pode notar uma premissa de legislação cri-
minal ou incidência de suas conclusões no campo processual penal. Tentativas de aplicabilidade no processo pe-
nal foram feitas por alguns de seus seguidores, que na maioria eram também processualistas civis de formação.
Tal foco de preocupação com o processo civil pode ser constatado pelo rol exauriente de seus primeiros e mais
consistentes seguidores, de todas as nacionalidades, relacionados e escrutinados minudentemente por Hélio
TORNAGHI em sua clássica tese A relação processual penal (1945), com a qual ascendeu à cátedra da então
Faculdade Nacional de Direito, hoje a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (cf. A re-
lação processual penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 2-15). Como se vê, mesmo esse renomado processua-
lista carioca era processualista civil de formação originária e aplicou a teoria de BÜLOW ao sistema processual
penal tradicional. Nesse seu mister, escrutinou, com esmero cronológico e teórico, cada sequaz das ideias de
Oskar von BÜLOW até então; a maioria processualistas civis, alguns civilistas e romanistas (p. ex., Luigi Ferrara)
e, em reduzidíssimo número (p. ex., Arturo Santoro), processualistas penais.
49.  Sistema processual criminal não violento 745
sos defensores, reexaminar suas aplicabilidades frente às necessidades atuais do século
XXI. É com isso em mente que se procede à síntese e às respeitosas considerações nos
subitens que seguem.

49.2.1.1 Premissas ontológico-processuais não penais utilizadas na origem das formulações


teóricas
Fenomenologicamente, o “processo” já existia antes de meados do século XIX,
tanto em suas causas quanto em seus efeitos e em sua dinâmica interna. Era algo ao qual
faltava técnica e uma teoria própria e analítica de seus institutos, mas ontologicamente já
existente. De fato, como bem afirmou o próprio OSKAR VON BÜLOW, existia com
ideias obscurecidas, conceitos inadequados e terminologia errônea desde a Idade Média,
pois ainda mantinha sua base teórico-jurídica fincada no direito romano, renascido pelas
mãos canonistas e escolásticas do século XI.302 A observação da obra de citado processua­
lista não deixa dúvida sobre ele partir de construções de institutos desde o direito romano
antigo, passando pelo renascimento jurídico medieval e terminando com a realidade ale-
mã do século XIX.303 Tudo coerente com sua visão crítica e organizadora do que tinha, à
época, a seu dispor.
Nessa base fenomenológica tinham-se como pressuposto de pensamento e crítica os
seguintes pontos:

a) O processo nasce da necessidade sociopolítica de resolver (rectius, de-


cidir) os conflitos que lhe são anteriores, de natureza material e que
surgem entre as pessoas em sociedade.

b) Esse conflito (material) anterior, se não resolvido, tornava-se foco de


tensão social com (alto) potencial de risco de violência entre as pes-
soas.304 Para evitar a tensão e diminuir o risco ou fazer cessar a confli-
tuosidade (potencial violência), o poder instituído (Igreja, Monarquia
ou Estado-Nação) usa sua “força” juspolítica para canalizar a si (mo-
nopolizando) a tida forma mais “racional” e “civilizada” de pôr fim

302
No estabelecimento dessa premissa no trabalho de Oskar von BÜLOW, o seu “capítulo segundo” (La teoría de las
excepciones procesales y los presupuestos procesales, cit., p. 39-51) é explícito na clareza de fundamento remoto,
não obstante o exame de toda a obra confirme essa premissa em aplicações práticas à realidade do direito alemão,
de clara base romana. Sobre esse “renascimento jurídico” medieval do direito romano antigo pelas mãos dos ca-
nonistas, cf. item 13, supra. Pela natureza do presente estudo, o viés empreendido no citado item foi mais voltado
a destacar os reflexos nos campos penal e processual penal naquele momento antropológico vivido.
303
Essa base teórico-processual romanista reinante no século XIX é ainda mais clara na teoria desenvolvida por
BÜLOW. É dessa mesma base bülowniana que partem as críticas de James GOLDSCHMIDT àquela teoria,
apontando-lhe erros e insuficiências cometidos por aquele processualista. Para tanto, cf. GOLDSCHMIDT, James.
Derecho, derecho penal y proceso III: el proceso como situación jurídica. Una crítica al pensamiento procesal.
Tradução por Jacobo López Barja de Quiroga, Ramón Ferrer Baquero e León García-Comendador Alonso. Ma-
drid: Marcial Pons, 2015. Item II da “Primera Parte (Crítica)”, p. 50-111.
304
Sobre esse pressuposto de que o conflito material leva à violência, v. ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso
y derecho procesal: introducción. 2. ed. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1997. Capítulo I, item “I. En-
cuadramiento de la ciencia del proceso en la ciencia de la justicia”, p. 43-44. Esse processualista, citando Rudolf
von Ihering, nesse passo, já na primeira linha da obra citada ainda complementa, com base na doutrina de Werner
Goldschmidt: o processo é indiscutivelmente necessário como forma de fazer atuar a “justiça”, sendo ele um
“exercício de justiça”.
746 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

aos conflitos pela imposição da “sua” decisão conforme entenda a


quem pertence o direito material em disputa.305

c) Para esse propósito de “ordenar” e “pacificar” a sociedade de seus con-


flitos (materiais), cria um espaço ao qual os transfere. Esse “espaço”
juspolítico era (é) o “processo”. Nesse âmbito o conflito perderia sua
natureza de “guerra” entre cidadãos e passaria a ser um duelo, discus-
são, debates e disputas probatórias e argumentativas: tornava-se um
“conflito NO processo”. Essa nova “arena” não era apenas um “lugar”
diferente, mas se apresentava diferente pela organização da “disputa”
por regras e com novos e peculiares atores. Nele se incluía o “juiz”
(detentor do saber-poder estatal) que tinha o conhecimento técnico-jurí-
dico e a força a ele emprestada pelo Poder para decidir, impor sua deci-
são e fazê-la cumprir coativamente.306 Todavia, para seu mister o juiz
contava com a contribuição das atividades processuais das partes con-
flitantes. O propósito era, portanto, diminuir a conflituosidade extra-
processual (social) por meio de uma racionalidade impositiva por hierar-
quia vertical a partir do modelo de poder instituí­do existente.

d) Para garantir que o “processo” era mais confiável e seguro, assegurava-


-se às pessoas que pelo instrumento a atuação do Estado-juiz se dava
por equidade, pela racionalidade desejada e prometida, pela legitimi-
dade de uma decisão técnica e no exercício legal do poder. Para isso
começaram a construir de modo autônomo e sistemático, ou seja, para
o “processo”, um plexo de regras e garantias de modo a ter, em síntese,
o “devido processo legal”. Única forma de legitimar o processo como
instrumento de exercício monopolizado de poder (jurisdição) que ele
era e ainda hoje é.

Essa base fenomenológica, considerada pelos teóricos a mesma para as esferas pe-
nais e extrapenais, tinha diversa realização fática a depender do direito material em discus-
são. Isso porque a construção da lei civil não tinha a mesma carga política (escolhas axioló-
gicas e estratégicas) que a lei penal (material). Esta, como se demonstrou na Parte I deste
trabalho, não era feita para impedir o conflito violento entre os súditos/fiéis, mas como
forma (violenta; extremamente violenta, gize-se) de controle dos comportamentos sociopo-
líticos e religiosos indesejados.

305
Sobre a preexistência do “conflito material”, que até seu tempo, ao ingressar no processo, contaminava esse ins-
trumento por se entender que este nada mais era que o direito material em discussão, negando-se autonomia à
realidade própria do “processo”, v. BÜLOW, Oskar von. La teoría de las excepciones procesales y los presupues-
tos procesales, cit., p. 23-24. Já nas primeiras palavras dessa obra, citado processualista civil alemão estabelece,
objetivamente, a premissa do que entendia errado e a conclusão a ser desenvolvida e que começa a ser por ele
explicitada a partir do seu item denominado: “II. Las condiciones para la constitución de la relación jurídica
procesal o los presupuestos procesales. Importancia de este concepto. El supuesto de hecho (‘Tatbestand’) de la
relación material en litigio y el de la relación procesal. Consiguiente estructura del proceso. La ‘litiscontestatio’
y la ‘absolutio ab instantia’. Hechos constitutivos, impeditivos y extintivos del processo”.
306
Oskar von BÜLOW deixa clara a inserção desse “terceiro” ao conflito, naquele momento o “juiz”, como algo
diferenciador à formação de uma relação jurídica própria. Cf. La teoría de las excepciones procesales y los pre-
supuestos procesales, cit., capítulo primeiro, item “I. El proceso como relación jurídica entre el tribunal y las
partes. Unilateralidad del criterio tradicional sobre el concepto del proceso. La expresión ‘proceso’”, p. 23-25.
49.  Sistema processual criminal não violento 747
O direito material usado pelos processualistas desde BÜLOW para identificar a “na-
tureza jurídica do processo” foi de índole privatista, área mais desenvolvida desde a roma-
nística tradicional. Não tratavam nesses estudos e debates teóricos do “processo penal”
(persecutório-punitivo).

49.2.1.2  Processo penal e sua fenomenologia diversa


Como se fez questão de ressaltar, em estudo das raízes próprias do processo penal
desde o século I a.C. e até o final do século XX,307 esse ramo do processo guarda particula-
ridades advindas dos desígnios do poder político central e direito material que este constrói,
notadamente quanto ao binômio “crime-pena”. Tal relação entre direitos material e proces-
sual cria, também como já encetado neste trabalho,308 algumas profundas e cruciais diferen-
ças na apontada fenomenologia do instrumento “processo”, e, também, algumas semelhan-
ças. Fazem-se, a seguir, os comentários específicos sobre a fenomenologia processual penal
para, em seguida, analisar em que se assemelha e em que se diferencia daquela já descrita
nas alíneas do subitem anterior para o processo não penal.
Durante todo o trabalho, inclusive nesta Parte III, ressaltamos e demonstramos, des-
de suas raízes históricas, que o direito material penal tende, em um nível muito mais eleva-
do, a ser construído para controle social. O Direito, como um todo, é um espaço de controle
e regramento social, mas o direito penal, seja na manipulação do desenho típico do crime
seja pela utilização político-funcional da pena a ele associada, faz controle em nível muito
mais violento e de força. Essa “peculiaridade” não é pouca e muda tudo.309
Se, quanto às alíneas “a” e “b”, supra, não há como divergir da similitude entre pro-
cesso penal persecutório-punitivo e o não penal, a alínea “c” projeta diferença ontológica
que torna os sistemas processuais inconciliáveis.
O processo penal, que no século XIX mantinha-se único e de índole apenas persecu-
tória e punitiva como já vinha sendo há centúrias, não interfere nos conflitos criminais para
procurar resolvê-los (rectius, decidi-los) para diminuir ou evitar a “violência criminal” já
existente a partir e após o cometimento do crime, portanto, quando o interesse estatal se faz
necessário. Ele existe como forma de aplicar a pena, sendo filtro (fático-normativo) de veri-
ficabilidade de sua imposição ou não. Essa interferência processual no espaço entre o crime
e a pena é somente para assegurar que o direito estatal de punir não se dê sem o (devido)
controle do Estado-jurisdição para, em tese, proteção do cidadão contra abusos. Sua atua-
ção, mesmo quando conclui pela inaplicabilidade casuística da pena (inocorrência de crime
ou não comprovação de autoria), não muda os efeitos do fato ocorrido que, mesmo não
sendo criminal, pode produzir violência. A violência criminal persiste, e o processo penal
não evita seus efeitos, não os apaga e não os transforma em algo menos deletério. Mesmo
quando do processo penal resulta a incidência de pena, sua capacidade de evitar os efeitos
negativos do crime é “nenhuma”. Mesmo quando encarcera, o processo penal não “apaga”
os efeitos da violência criminal já ocorrida. Ao contrário, agrega-lhe mais violência (insti-
tucional), que é a pena, como já tivemos a oportunidade de indicar em vários momentos

307
Cf. Parte I, supra.
308
Cf. item 2, supra, ao tratarmos da nossa aceitação da “ciência criminal conjunta”.
309
Cf., exemplificativamente, itens 8.2.2; 9.2; 14.1; 19; 21.2; 24.2; 25.2; 26.2.1; 27.1; 29; 42.2; 43.3 e 46, e seus subi-
tens, supra.
748 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

deste trabalho. Assim, o processo penal não serve para evitar que do conflito material não
advenha violência, como prometido pela interseção do processo extrapenal, é ele um fator
de violência (institucional) para o corpo social; mesmo que atingindo “apenas” a figura do
condenado. O processo penal não diminui a tensão social, mas agrega-lhe mais tensão em
forma de violência.
Assim, se o processo não penal era justificado para que não prevalecesse “a lei do
mais forte”, o processo penal foi o meio de levar ao “mais forte” (os poderes instituídos) a
força da pena criminal, buscando apenas “legitimar” (rectius, instrumentalizar) um claro
exercício direto de poder. Se aquele processo tenta evitar a “lei do mais forte”, o processo
penal é funcionalmente utilizado “pelo mais forte”; ele é o instrumento (legal e institucio-
nalizado) que viabilizada a atuação “do mais forte” na direção que este escolher.
O processo penal, enfim, não “resolve” ou “soluciona” o conflito material anterior e
muito menos evita ou diminui a violência criminal já existente e daquele decorrente. Mas,
certamente, quando dele resulta a condenação penal, amplia a violência no corpo social,
fazendo incidir a violência institucional da pena criminal sobre o tecido já abalado. E, mes-
mo que do processo não resulte pena, sua índole persecutória pela metodologia inquisitiva
já é suficiente para deixar, no imputado e seus próximos, marcas pessoais e sociais de uma
estigmatização indelével.310
O processo penal, portanto, se cumpre os propósitos de “ordenar” e “pacificar” indi-
cados na alínea “c”, do subitem anterior, a circunscrever as disputas “entre os cidadãos” em
um “espaço afastado” e por ele controlado, pelos seus instrumentos punitivos e persecutó-
rios também agrega maiores ou menores doses de violência (institucional) sobre o corpo
social. Sem contar quando, para além ou apenas a pretexto de evitar “conflitos intrapesso-
ais”, usa o processo penal para perseguições e dirigismos políticos. No Brasil do século XXI
aquele acréscimo de violência é indefectível realidade; seja ele decorrente de punições a
criminosos, seja ele como instrumento de marginalização ou de controle político. O Brasil
é o exemplo acabado de que a utilização de um sistema processual completamente saturado
se torna disfuncionalidade, ou seja, funcionalmente produz violência (criminal) para além
daquela “institucional” para a qual já fora criado. Ele labora para potencializar as bases da
violência criminal, alimentando a espiral crescente da violência social.311
A partir dessa mudança de propósito e utilização funcional pelo poder instituído,
teleologicamente os sistemas processuais (penal e não penal) se distanciam. Todavia, como
outra diferença, eles também se afastam devido a como são constituídos em suas agências
internas, pois, ao contrário do ocorrente para o processo não penal do século XIX, por meio
do estabelecimento de regras próprias insere todos os agentes internos de “poder-saber”
(p. ex., investigador, acusador, julgador e executor) nas posições processuais relevantes para
a metodologia da inquisitio em que opera sua dinâmica persecutória. Diferentemente do
processo não penal, o persecutório-punitivo expropria a vítima (parte natural e material do
conflito criminal) como legítima representante processual da relação jurídico-penal entre

310
Sobre esse ponto, dentre várias passagens na Parte I, destacamos o item 46.2, e seu subitem, supra, que traz uma
síntese da ideia aqui exposta e na qual se fazem referências aos momentos de nossa investigação histórica daque-
la Parte.
311
Sobre o tema, com base no saber empírico de nossa realidade sistêmico-processual penal, v. Parte II, supra, e, em
breve síntese, no seu item 40, supra.
49.  Sistema processual criminal não violento 749
ela e o infrator, assumindo seu lugar por meio das agências persecutórias (investigativas e
acusadoras). Monopoliza o poder-dever de julgar, pelas agências públicas judiciais. Por fim,
assume a posição de executor de eventual condenação criminal, pelas agências penitenciá-
rias. Todas as posições processuais penais são de titularidade dos agentes públicos escolhi-
dos pelo poder instituído, exceção feita à do imputado.312 Também por esse último ponto não
era possível assimilar até mesmo a constituição ontológica entre processo penal e processo
não penal.
Diante dessa inegável diferenciação ontológica e fenomenológica entre processo pe-
nal e processo extrapenal, projeta-se uma parcial diferença na alínea “d”, supra: as garantias
processuais penais são maiores em qualidade e em quantidade se comparadas com as pro-
cessuais não penais. Maior grau de proteção que, se por um lado revela, a partir da Consti-
tuição e das dimensões do devido processo penal, essa diferença, também são frágeis por-
quanto facilmente manipuláveis pelos sujeitos do saber-poder (todos) desde a coleta e
análise fática da investigação materializada nos autos, até os graus de interpretação que as
normas jurídicas e aquele conteúdo probatório313 sempre permitem a todos órgãos judiciá-
rios (individuais ou coletivos; de piso ou superior).

49.2.2  Premissas ontológicas do processo criminal não violento


Mesmo sendo sua ocorrência residual se comparada com o processo penal persecutório-
-punitivo, não se pode deixar de reconhecer uma fenomenologia do processo criminal não
violento; por todo o expendido até este ponto desta Parte III, não se pode deixar de reconhe-
cer que possui ontologia própria e em muito distante das premissas e finalidades daquele
processo penal tradicional.
Assim, o exame das teorias tradicionais da natureza jurídica do processo precisa ser
feito em face das peculiaridades do processo criminal não violento, tudo para se verificar se
ele apresenta, ao menos segundo as teorias tradicionais, conformidade suficiente para ser
classificado como “processo”.
O objeto-problema que visa atingir e resolver, desde o plano de política criminal, é a
“violência envolvente” do crime, não se limitando a ter foco no binômio “crime-pena”.314
Sua razão de existir nasce do “crime cometido”, mas seu propósito não é punir e/ou desso-
cializar o infrator e excluir a vítima em suas perdas e traumas. A partir da assunção pelo
infrator do cometimento dos fatos e de sua responsabilidade, o processo visa empoderar a

312
Como se verá a seguir (cf. itens 49.2.2 e 49.2.3 e seus subitens, infra), tal diferenciação evidente quanto ao “ser”
de cada ramo processual foi que deu base às críticas mais consistentes à teoria bülowniana de processo como re-
lação processual. James GOLDSCHMIDT, com sua teoria da natureza jurídica do processo como situação jurídi-
ca, apontava exatamente que tal teoria das relações jurídicas processuais poderia ser aplicada ao processo penal,
mas não seria ela a revelar o identificador comum a ambos os ramos do “processo”. Nesse sentido, v. GOLDSCH-
MIDT, James. Derecho, derecho penal y proceso III, cit., p. 184-187.
313
Gustavo BADARÓ (Epistemologia Judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019), notando a
importância do conteúdo fático que a prova traz ao processo, elabora estudo cujo tema central é “a proposta de
um modelo de epistemologia judiciária que permita a adoção de mecanismos para a produção e valoração da
prova no processo penal” (p. 19). Tudo a mostrar que há um “juízo de fato” tão ou mais relevante que a análise
normativa (item 2.1) e que pode, também nesse âmbito tradicionalmente tido como seguro e infenso a interpreta-
ções, haver decisionismos e manipulações pelos sujeitos do poder-saber, notadamente, como foco da obra, pelo
juiz (cf. item 3.1, mas também em todas as fases judiciárias tratadas separadamente no capítulo 3).
314
Cf. item 44.2, supra.
750 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

vítima (individual ou coletiva), dar-lhe voz e visibilidade em suas dores e traumas e repará-
-la, tanto quanto entender suficiente, pelos efeitos negativos sofridos em decorrência do
crime. Para isso, sem um sujeito do poder-saber para decidir e impor sua decisão, fornece
um facilitador de diálogo (o terceiro) a fim de que aquelas partes naturais do conflito cons-
truam diretamente e por elas uma “resposta não violenta de conciliação criminal”. Não pre-
tende atender a interesse vingativo da vítima ou do Estado, mas, de forma imediata, recuperá-
-la em suas necessidades básicas e traumas e, quando possível – mas, se possível, sempre −,
projetar, mediatamente, suas ações também à comunidade que, de modo reflexo, também
fora atingida pelo crime praticado.
Para tal consecução, a metodologia processual muda radicalmente, deixando de ser
a “inquisitio” e passando a ser “dialógica”. Tal mudança implica a inexistência, a um só
tempo, da posição hierárquica do terceiro, como sujeito do saber-poder, da decisão imposta
verticalmente e, por fim, que a dinâmica comunicacional no processo não se dá pelo confli-
to (rectius, debate) processual entre as partes (acusadora e imputado) por mais consistentes
provas e argumentos. A dinâmica, no processo criminal não violento, passa a estar direcio-
nada ao encontro de posições e pontos de vistas inicialmente distintos que, respeitando-se
empaticamente, dispõe-se voluntariamente a falar e ouvir para a construção de um lugar
que não é de um ou de outro, mas o qual ambos entenderem o melhor para reparar traumas,
atender a necessidades básicas e diminuir a violência envolvente.315
O processo criminal não violento exige participação ativa tanto do infrator quanto
da vítima. Precisam partir voluntariamente na busca do diálogo, o infrator assumindo seus
atos e a necessidade de repará-los e a vítima, com espaço de protagonista, com voz e vez,
tornando visível a si e a seus traumas; ambos na busca de construírem algo comum e me-
lhor. Cabe ao infrator, por meio de ações positivas, envidar a reparação, para isso contando
tanto com a atuação da vítima quanto da comunidade que as receberá.
Nesse sentido, sem meios processuais violentos e resultado punitivo, o sistema pro-
cessual compatível com o modelo criminal não violento é antípoda ao tradicional; ontologi-
camente constituído a partir de axioma, estruturas e finalidades diversas.
A pergunta que se passa a responder é: com todas essas diferenças, o processo cri-
minal não violento tem natureza jurídica de “processo”?
A resposta exige uma pequena incursão prévia nas teorias desenvolvidas para dar
independência e explicar a natureza jurídica do “processo”.

49.2.3  Principais teorias quanto à natureza jurídica do processo


Tendo em vista, neste subitem, as principais teorias desenvolvidas para explicar a
natureza jurídica do processo316, não se busca afirmar qual a teoria “correta”. A análise se

315
Sobre a mudança de metodologia e seu reflexo no sistema processual criminal não violento, cf. item 48.2.2, supra.
Sobre o resultado conciliatório almejado por esse processo como consenso construído, cf. item 48.1, supra. Sobre
a necessidade de reformulação das construções teóricas de “partes processuais”, com novas agências e agentes
(p. ex., o facilitador) e novos papéis à vítima e ao infrator, cf. item 48.3, e seus subitens, supra.
316
Estudo bem robusto, conquanto, como ele mesmo afirma, ainda não exauriente, sobre as várias correntes teóricas
que tentaram explicar a natureza jurídica do “processo”, a obra de ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso y
derecho procesal, cit., “Capítulo III. – Naturaleza jurídica del proceso”, p. 197-261. Esse autor divide as várias
teorias em três grandes grupos, cada qual com suas subdivisões e principais sequazes. O primeiro, a das “teorias
que se utilizam de outros ramos jurídicos”, subdividindo-a em duas, as “teorias do direito privado” e as “teorias
do direito público”, entre as quais insere a teoria da relação jurídica, com cinco variações diferentes (p. 199-231,
49.  Sistema processual criminal não violento 751
dá a fim de verificar se, respeitadas as peculiaridades do processo criminal não violento,
qualquer uma delas pode a ele ser aplicada, assim como tem se feito para o processo penal
persecutório-punitivo desde meados do século XIX.

49.2.3.1 Processo como relação jurídica


O grande artífice dessa teoria foi OSKAR VON BÜLOW, que, mesmo não sendo o
primeiro, teve o mérito de organizar de forma sistemática o que já vinha sendo apontado por
outros.317 Pela qualidade de sua sistematização e coerência com uma realidade evidente (di-
reito material e processo eram instrumentos diferentes do modelo jurídico), muitos pensa-
dores a ela aderiram, alguns com maior ou menor ressalva.318
Em síntese, a teoria da natureza jurídica do processo como “relação jurídica” põe em
ressalto que há duas relações jurídicas distintas no debate processual: uma de natureza ma-
terial, que se discute no processo, e outra, peculiar à arena da discussão, que é a “relação
jurídica processual”, estabelecida entre sujeitos diferentes (juiz, autor e réu) por objeto dis-
tinto (a prestação jurisdicional) e com pressupostos próprios (os pressupostos processuais).319
O acerto inegável da teoria, e nisso foi que angariou rapidamente muitos defenso-
res, foi o fato de ter conseguido separar de modo lógico-racional, por meio de uma expo-
sição teórica clara e sintética, os planos do direito material e do direito processual. Eles são
planos distintos e mesmo seus opositores não negam essa obviedade. Isso permitiu um
avanço muito rápido à ciência processual e que, até então, vivia uma dependência prejudi-
cial do direito material com quem se misturava em uma relação teórica pouco clara. O pre-
juízo à área processual era evidente, pois a força material a impedia de se desenvolver com
autonomia.
Outra vantagem trazida por essa teoria, e com a qual angariou a simpatia de muitos
processualistas civis que olhavam para o processo penal e, também, processualistas penais, foi

para todo esse primeiro grupo). Como segundo grande grupo (p. 232-248), indica as “teorias que utilizam catego-
rias jurídicas próprias”, com suas subdivisões, e entre as quais está a teoria do processo como “situação jurídica”
de James Goldschmidt. Por fim, como terceiro grupo, as por ele denominadas “teorias mistas” (p. 249-258).
Ao final, o processualista espanhol se posiciona favoravelmente à teoria de Goldschmidt, com poucas ressalvas.
317
Apontam esse seu mérito, não sem antes ressalvar que ele não fora o primeiro a intuir e criar essa teoria, entre nós:
TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal, cit., p. 5-6; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER,
Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
Item 173; LAURIA TUCCI, Rogério. Teoria do direito processual penal: jurisdição, ação e processo penal (estu-
do sistemático). São Paulo: RT, 2003. Item 10.3; e LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução
crítica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. Item 2.2.
318
Para o detalhamento dessas nuances teóricas, v., por todos, ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso y derecho
procesal, cit., p. 203-214; e TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal, cit., p. 5-46. Este último autor, por
exemplo, sem divergir do processo penal como relação jurídica, variou, com o tempo, entre suas linhas teóricas
internas, passando de adepto da “teoria triangular de relação processual” (em 1945) para a “teoria angular da re-
lação processual” (em 1987). Sua conclusão para isso, após exauriente e detalhado exame dos autores e as nuances
teóricas entre eles, é um conceito que bem coloca o processo penal como antípoda do processo criminal não vio-
lento. Escreveu Hélio TORNAGHI: “Repensando o assunto, pareceu-me que a intervenção do Estado entre os
litigantes se faz exatamente para separá-los e, portanto, a relação processual é angular, não havendo nela
qualquer vínculo entre autor e réu. Essa posição me parece correta. O que dá à relação processual a aparência
de triangular são os possíveis direitos potestativos de cada uma das partes em relação à outra. Mas a sujeição
de uma à outra se faz sempre com a intermediação do juiz. Não há relação direta entre elas” (A relação pro-
cessual penal, cit., p. 47; destacamos os pontos em que o processualista esclarece que o processo tradicional visa
afastar as partes, não, como no sistema processual criminal não violento, aproximá-las).
319
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria ge-
ral do processo, cit., p. 280.
752 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

que, ao demonstrar que havia uma relação jurídica própria entre imputado e juiz, aquele deixa
de ser “objeto” do processo e assume a posição de “sujeito processual”. A modificação não foi
pequena, notadamente em plena fase anti-iluminista do final do século XIX e início do século
XX. Com essa mudança o imputado passou a ser titular de direitos “processuais”, ou seja,
independentemente de sua posição material na relação jurídica penal conflituosa que dera
origem ao processo, ele passou a ter direitos de proteção para serem exercidos no processo.
Com isso, o tratamento hostil (rectius, inumano) sempre dado ao réu, porquanto ele
permanecia por todo o processo como o potencial criminoso, uma efetiva condição de “ob-
jeto de persecução” não de sujeito de relação jurídica. A leitura das primeiras páginas da
obra de HÉLIO TORNAGHI não deixa dúvida quanto a sua empolgação com a mudança da
posição do “réu” de objeto a sujeito e o humanismo que isso acarretava. Quem compreende
a metodologia didática e rigorosa que aquele processualista sempre empreendeu em seus
escritos pode bem aquilatar o que significavam essas páginas iniciais em sua tese para con-
curso de cátedra na então Faculdade Nacional de Direito.320 O escólio desse processualista

320
Pela importância da pessoa de Hélio Bastos TORNAGHI para o direito processual brasileiro, assim como de sua
obra sobre o tema e as razões claramente por ele expostas para a sua aceitação da teoria da relação processual e
que, por isso, deixa marcas no Brasil até hoje, pede-se vênia para transcrever alguns dos parágrafos mais marcan-
tes do início de sua tese: “O acusado como objeto do processo: [...] Arrancado do lar sem qualquer explicação,
era levado a uma enxovia que, dali por diante, iria ser o esquife de suas aspirações e o túmulo de seus anseios.
Sonhos que sonhara, projetos que concebera, desejos que acalentara, tudo ali encontrava o termo final. O acon-
chego familiar desaparecia. E se ele saía da masmorra em que definhava era para ser conduzido à presença de
um juiz que lhe fazia perguntas vagas sobre fatos que nem sempre conhecia. Não alcançando o objetivo das in-
dagações e a correlação entre elas, era levado a responder ao que sabia e ao que ignorava. Ainda quando dis-
sesse a verdade, ‘não se livrava da acusação de estar mentindo ou de haver caído em contradição. Se respondia
com firmeza era tachado de audacioso e petulante; se tremia era tido como delinqüente confesso. Essa interpre-
tação de suas atitudes ainda mais contribuía para aumentar-lhe a confusão, perturbando-lhe a mente já cansada
pelo número e pela diversidade das perguntas que se sucediam em atropelo. A partir daí, já não se lembrava nem
do que havia dito nem do que realmente acontecera. E fraquejava, cedia ao pavor. Passava a negar a verdade,
entrava pelo reino da fantasia e da imaginação. Ou emudecia. Uma só preocupação o dominava: dizer o que o
juiz quisesse ouvir e livrar-se daquela tortura. Deslembrado do que já havia dito, temia expor-se ao perigo de
contradizer-se. Percebia que à medida em que o interrogatório se prolongava, mais crescia a prevenção do jul-
gador e aumentava o perigo de ser condenado. Ao fim da inquirição, que antes parecia um entrevero do que um
ato processual, era mandado apodrecer no fundo de um calabouço escuro e sufocado. Só o tiravam dali para
acareá-lo com pessoas que ele nem sempre tinha visto e cujos depoimentos não lhe eram mencionados. E não se
lhe havia manifestado o teor da acusação. Se o que os algozes desejavam era uma confissão, ele terminava por
fazê-la, verdadeira ou falsa, contanto que se libertasse daquele tormento e ainda que a admissão de culpa lhe
pudesse trazer uma condenação à morte. Morte aliás redentora, que o liberava de um processo iníquo e de um
juiz verdugo. Costumes ferozes, leis desumanas, juízes desalmados, implacáveis, truculentos, fruto de uma men-
talidade pervertida, faziam do processo uma monstruosidade. Como nas estradas perigosas, em que cruzes fu-
néreas assinalam a morte dos acidentados, na história dos processos criminais via-se, cada passo, o triste me-
morial de um erro judiciário. O inocente era condenado e o autor do crime escarnecia da Justiça, tranqüilo, na
certeza de que a obstinação e a vaidade dos juízes os impediriam de reconhecer o próprio engano. O acusado,
fosse ele culpado ou inocente, era um mísero desvalido ao qual se recusava a condição humana. Mas essa nega-
ção, que pode destruir, não consegue edificar. Era preciso devolver ao réu a nobreza de sua origem, a magnifi-
cência de sua natureza, a sublimidade de sua destinação. E a paixão da justiça, estímulo dos grandes movimen-
tos contra a opressão, terminaria impondo-se, irresistível, fascinante, imperiosa, inelutável. Contra aquela
ordem de coisas, que calcinava a convicção dos bons e rebaixava a dignidade dos maus, levantaram-se as vozes
essencialmente paladinas e tenazmente operosas de Beccaria, Filangieri, Romagnosi e tantos outros que desen-
cadearam um movimento grandioso, formaram uma dinastia intelectual e inauguraram uma época imorredoura.
Reis e príncipes os ouviram, os cingiram de honras e os cobriram de bênçãos. E lhes puseram o pensamento em
prática. O Direito Processual tomou novas asas, rasgou novos ares, tocou novos céus. Restituiu ao acusado a
condição humana e impôs ao juiz um caráter divino. O homem comum pode ser movido por boas ou más paixões,
sinal autêntico de sua humanidade, marca genuína de seu feitio, cunho fidedigno de seu caráter. Ao juiz só se
permite uma paixão: a da justiça. E nem pode satisfazer-se com ela, que a justiça é parca ao conceder e dura ao
exigir. Ele tem que ser equânime, e a eqüidade vê irmãos onde a justiça enxerga estranhos. Não lhe basta ser
humano, não o satisfaz a santidade. Ele há de procurar ser quase-Deus; o mister que lhe pesa ombros é tarefa
divina. Árdua obrigação! Penosa responsabilidade!” (A relação processual penal, cit., p. 3-4).
49.  Sistema processual criminal não violento 753
pelo viés humanista e com a solidez teórica de seu estudo específico fez escola entre muitos
teóricos humanistas do processual penal até nossos dias.

49.2.3.2  Processo como situação jurídica


JAMES GOLDSCHMIDT, em 1925, com sua obra “O processo como situação jurí-
dica: uma crítica ao pensamento processual” abre a mais consistente crítica à teoria do
processo como relação jurídica. Para isso, usa duas estratégias expositivas. A primeira par-
te de sua obra, por ele mesmo denominada “Crítica”, ingressa por dentro da teoria da rela-
ção jurídica, apontando-lhe alguns erros e insuficiências, desde seus fundamentos e regis-
tros romanos históricos e do direito material e processual germânico de seu tempo. Não se
limita à obra de BÜLOW, nomeando outros processualistas que o seguiram, mas inegavel-
mente a tem como o referencial a ser enfrentado.321 Na segunda parte da citada obra, deno-
minada pelo autor como “Construtiva”, foi destinada a explicar sua teoria da natureza jurí-
dica como “situação jurídica”. Ele a inicia exatamente por trazer os âmbitos penal e
processual penal − tão caros a esse pensador de base teórica filosófica-penalista −, como
pórticos de críticas quanto à insuficiência da teoria da relação jurídica para explicar a natu-
reza do “processo” como instituto-gênero (penal, civil, administrativo, etc.).322 JAMES
GOLDSCHMIDT efetivamente traz o mundo pena e processual penal para a mesa de estu-
dos dos processualistas.
Pela teoria da situação jurídica, o processo segue uma “dinâmica de estado de guerra”,
segundo a qual o avanço se dá pelo conjunto de situações jurídicas processuais pelas quais
as partes caminham na busca da decisão definitiva que cada um luta para ser-lhe favorá-
vel.323 A visão estática de processo, como posições de direitos subjetivos, explicada pela
teoria da relação jurídica, não contempla a dinâmica processual que GOLDSCHMIDT des-
tacava como uma alternância de expectativas, perspectivas, chances e cargas processuais e
suas liberações.324
Os defensores dessa teoria veem-na como a melhor representação da realidade feno-
menológica do processo, por ser ela embebida não de certeza de que o melhor direito será,
ao final, reconhecido pelo juiz (vencerá a guerra), mas que há alto grau de incerteza da

321
GOLDSCHMIDT, James. Derecho, derecho penal y proceso III, cit., item II da Primeira Parte.
322
Não por outra razão, James GOLDSCHMIDT abre a segunda parte de sua obra, por ele denominada de “Constru-
tiva”, com o item assim denominado: “El concepto empírico de proceso como punto de partida”, em cujas primei-
ras páginas faz exposição das características penais e processuais penais que a teoria da relação jurídica não
abarcava de modo apropriado, mas, em suas palavras, pouco útil (Derecho, derecho penal y proceso III, cit.,
p. 185-187). Aury LOPES JR. (Fundamentos do processo penal, cit., item 2.3), defensor da natureza do processo
como “situação jurídica”, indica que: “A noção de processo como relação jurídica, estruturada na obra de Bülow,
foi fundante de equivocadas noções de segurança e igualdade que brotaram da chamada relação de direitos e
deveres estabelecidos entre as partes e entre as partes e o juiz. O erro foi o de crer que no processo penal hou-
vesse uma efetiva relação jurídica, com um autêntico processo de partes” (p. 101). Como demonstrado em nossa
parte de fundamentos históricos, demonstramos que o processo penal europeu continental do final do século XIX
até meados do século XX, com o fim da Segunda Guerra Mundial, não tinha um perfil “adversarial”, ao menos
na maior parte da porção ocidental do continente (cf. itens 26.2 e 26.3, supra).
323
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal, cit., p. 102-103.
324
ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso y derecho procesal, cit., p. 240-242; LOPES JR., Aury. Fundamentos do
processo penal, cit., p. 103-107; e CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO,
Cândido Rangel. Teoria geral do processo, cit., item 174. Na obra de James GOLDSCHMIDT (Derecho, derecho
penal y proceso III, cit.) o tema é tratado em detalhes e especificações no item IV da Segunda Parte, notadamente
p. 278-380.
754 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

decisão favorável (vitória) e que ela depende, não raro, de vários fatores que não apenas o
direito ali discutido, tais (i) como melhor aproveitamento das regras do jogo processual e
(ii) maior habilidade das partes (contendores).325

49.2.3.3 Processo como procedimento em contraditório


ELIO FAZZALARI, com suas Instituições de direito processual, de 1975, dá um
passo adiante à teoria da situação jurídica e, também, tal qual GOLDSCHMIDT, rechaça a
teoria da relação jurídica.326 Com os olhos voltados ao procedimento como uma sequência
de atos individuais, mas que estão, em sua relação de atos e de posições subjetivas, previstos
e valorados normativamente. O processo, por sua vez, empresta dinâmica a essas relações,
animando-as por meio do contraditório, sendo este, para o autor, um avançar pela troca de
posições e situações até seu término que é o “resultado do procedimento”.327
FAZZALARI, por sua percepção de dinâmica e de direitos fundamentais animando
a sequência de atos até seu resultado, une no processo as garantias aos sujeitos processuais,
trazidas desde a teoria da relação jurídica. Porém, mais importante, não perde de vista o
processo como algo dinâmico e não estático, nesse ponto se alinhando próximo à teoria da
situação jurídica. Ele afirma o processo, portanto, como um instrumento colaborativo das
partes ao cumprirem os atos que lhes cabem na busca de seus (próprios) interesses, costu-
rando, pela segurança jurídica da previsão de atos em uma ordem prevista e previamente
valorada por norma jurídica, menor grau de incerteza em relação à teoria da situação jurí-
dica tal qual proposta inicialmente por GOLDSCHMIDT. Por via de uma “teoria jurídica do

325
Pedro ARAGONESES ALONSO (Proceso y derecho procesal, cit., p. 259) assim conclui após sua análise de to-
das as teorias: “Mas, por outro lado, a teoria da situação jurídica nos mostra o conteúdo real do processo, à
medida que se desenrola na vida, mostrando-nos, por sua íntima imperfeição, a evolução contínua à qual o
processo deve ser submetido. Portanto, oferecemos como conclusão que o processo (do ponto de vista de sua
natureza) é uma instituição jurídica para a realização da justiça que se desenrola pela situação que se produz a
cada caso concreto em que se pede a satisfação de uma pretensão” (traduzimos). Colmate-se com Aury LOPES
JR. (Fundamentos do processo penal, cit., p. 108): “A dinâmica do processo transforma a certeza própria do di-
reito material na incerteza característica da atividade processual. Para Goldschmidt, ‘a incerteza é consubstan-
cial às relações processuais posto que a sentença judicial nunca se pode prever com segurança’. A incerteza
processual justifica-se na medida em que coexiste em iguais condições a possibilidade de o juiz proferir uma
sentença justa ou injusta. Não se pode supor o direito como existente (enfoque material), mas sim comprovar se
o direito existe ou não no fim do processo. Justamente por isso é que se afirma que o processo é incerto, insegu-
ro. A visão do processo como guerra evidencia a realidade de que melhor vence (alcança a sentença favorável)
aquele que lutar melhor, que souber aproveitar as chances para libertar-se de cargas processuais ou diminuir os
riscos. Entretanto, não há como prever com segurança a decisão do juiz. E esse é o ponto crucial aonde quería-
mos chegar: demonstrar que a incerteza é característica do processo, considerando que o seu âmbito de atuação
é a realidade”.
326
A crítica feita pelo processualista italiano vem ácida já na abertura do “§ 1. ‘Procedimento’ e ‘processo’: due fe-
nomini e due nozioni”, em seu Capítulo II, “Struttura del processo”: “Nesse sentido, o pensamento jurídico seguiu
um caminho aparentemente estranho, mas historicamente explicável. Por causa da grandeza do fenômeno (a tra-
ve nos olhos...), os processualistas sempre acharam difícil definir o ‘processo’ – o próprio esquema da disciplina
sob sua competência – e estão parados, há algumas décadas deste século, para o antigo e inadequado ‘cliché’
pandetista de ‘relação jurídica processual’; quando finalmente emprestaram o conceito de ‘procedimento’ ofe-
recido pelos juristas do direito público [‘giuspubblicisti’], não compreenderam ou aprofundaram, em seu contex-
to, um conceito rico de ‘processo’. Por sua parte, os administrativistas elaboraram a disciplina e o conceito de
‘procedimento’ precisamente a partir do modelo de atividades de justiça, conforme arquétipo óbvio; sem, contu-
do, chegar à observação de que esse modelo não é exclusivo da justiça, é um esquema de teoria geral, utilizável
e usado além da jurisdição, em qualquer setor do ordenamento e, portanto, precisamente, na da administração
pública” (FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 6. ed. Milano: Cedam, 1992. p. 75-76; traduzimos
e mantivemos expressão original sem destaque e entre parênteses).
327
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, cit., p. 76-79.
49.  Sistema processual criminal não violento 755
procedimento”, revalorizando essa parte “externa” do processo, e pouco estudada desde
BÜLOW, o processualista italiano procura dar à dinâmica colaborativa das partes maior
segurança pela previsão legal e controlada do procedimento.
Ao pensar assim o processo, há um natural deslocamento de ênfase do poder juris-
dicional (juiz, sujeito do saber-poder) para as partes, que atuam e se coordenam por meio do
contraditório; único meio de defenderem e almejarem o reconhecimento de seus direitos/
interesses pelo juiz.328 E, de outro lado, uma reafirmação democrática do processo como
instrumento de direitos fundamentais às partes.329 Agora não mais estáticas, mas uma dinâ-
mica colaborativa sob os auspícios de um juiz da legalidade procedimental e, ao mesmo
tempo, destinatário das atividades processuais daquelas mesmas partes (interessadas).330
ODETE MEDAUAR, em obra de referência da “processualidade” no direito admi-
nistrativo, locus jurídico no que FAZZALARI busca muitos dos subsídios à sua teoria,
conclui que entre as colaborações seguidas e interativas entre teorias administrativistas e
processuais encaminharam o tema do procedimento a uma “concepção de procedimento-
-gênero como passagem do poder em ato. Nesse enfoque, o procedimento consiste na suces-
são necessária de atos encadeados entre si que antecede e prepara um ato final”. Concluin-
do que o procedimento “se expressa como processo se for prevista também a cooperação
de sujeitos, sob o prisma do contraditório”.331
A teoria de FAZZALARI, do processo com natureza jurídica de procedimento em
contraditório, pode ser vista como um passo adiante na teoria da situação jurídica goldsch-
midtiana se aceito que a esta foi conferido maior grau de segurança jurídica ao processo
pela previsão dos atos procedimentais com seus controles por legalidade e judicialidade.

49.2.4 Processo criminal não violento e sua adaptabilidade à evolução teórica da natureza


jurídica do processo: um encaixe individual e socialmente melhor
Como não é a intenção neste instante do trabalho discutir qual a teoria correta, até
mesmo porque isso seria em verdade ter que expor até quanto cada uma delas ajusta-se mais
ou menos à perspectiva pela qual se deseje entender o que seja o “processo” – e este é o
ponto que se esconde por detrás de cada teoria −, o que se pretende é demonstrar que há uma
noção consensualmente construída por essas teorias destacadas e que, se aplicável ao pro-
cesso criminal não violento, permite reconhecer a ele uma “natureza jurídica de processo”.
Isso é o que se deseja acima de tudo assentar neste momento de estímulo à aceitação e cons-
trução de uma teoria para outro sistema processual criminal.
Como paulatina e progressiva evolução entre saberes jurídicos (constitucionais, pro-
cessuais, administrativos e de direito material), pode-se afirmar que o que revela a natureza

328
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal, cit., item 2.4, p. 128.
329
Nesse sentido, mas limitados ao comento do contraditório como instituto juspolítico, v. CINTRA, Antônio Carlos
de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, cit., item 176,
p. 285.
330
É a partir dessa base fazzalariana que aproximou conjunto dinâmico de atos concatenados e teleologicamente
ordenados aos direitos e garantias, que Antônio SCARANCE FERNANDES (Teoria geral do procedimento e o
procedimento no processo penal, cit., Seção 2 do Capítulo I, cujo título é “O direito fundamental ao procedimen-
to no processo penal”) funda as bases de sua teoria geral ao procedimento e, em especial, ao procedimento pro-
cessual penal.
331
MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo, cit., item 25, p. 43.
756 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

jurídica de um processo é o conjunto de atos de colaboração previstos e concatenados na


busca de um resultado que atenda aos interesses das partes do conflito. Essa ideia-síntese
parece atender o que há de essencial ao processo penal tradicional, ao processo não penal
judicializado e, ainda, ao processo administrativo (sancionador ou não) de modo geral.
Verificar se em tal caracterização é possível inserir o processo criminal não violento
em sua ontologia fará com que se possa tratá-lo como um “processo”. Diverso, bem verdade,
assim como cada uma daquelas espécies processuais citadas no início do parágrafo anterior
também o são. Mas, afinal, um “processo”. Passa-se ao exame.
Há um conflito que justifica a existência e a operacionalidade do instrumento pro-
cessual criminal não violento. Esse conflito é o “crime”, que expõe posições jurídicas sub-
jetivas inicialmente opostas ao ordenamento e os titulares dos bens da vida atingidos. Nesse
processo ambas as partes naturais da relação material ingressam no intuito de verem suas
situações jurídicas atendidas. Atuam, portanto, movidas por interesses próprios, com a úni-
ca diferença de que a mudança de abordagem e propósito do modelo criminal não violento
não as dispõe, no contexto procedimental, como opositores, mas como partes em busca de
um consenso. O interesse de ambas, portanto, não é individual e ao mesmo tempo excluden-
te do interesse do outro, em uma relação “ou/ou”, isto é, ou um ou outro prevalecerá e será
imposto. Os interesses serão atendidos em uma relação “tanto/quanto”, em uma resposta
consensuada em que não há prevalência ou imposição, mas atendimento na reparação de
traumas e necessidades básicas, sem imposição de mais violência (institucional); portanto,
todos ganham.332
O procedimento para a consecução desse resultado é organizado, predefinido e con-
catenado de forma previamente sabida e informada às partes. Destas se exigem posições
ativas de alternância em oportunidades de manifestação da própria posição e da percepção
e compreensão da posição do outro. Não há debate sobre normas ou fatos, pois eles já estão
aceitos e reconhecidas as responsabilidades de partida. Há diálogo, também ele uma meto-
dologia diversa, mas não menos colaborativa e dinâmica de troca de oportunidades de
manifestação. Há, pois, a colaboração dinâmica do contraditório, sem a contraposição que
a doutrina tradicional lhe impõe.333 Há, pois, a alternância dinâmica de FAZZALARI e
GOLDSCHMIDT, com uma muito mais ampla redução de incertezas, pois tanto fato quan-
to responsabilidades e a situação (trauma e necessidades) a ser reparada já estão definidas e
aceitas desde o início.
Há, por fim, um terceiro estranho ao conflito e cuja função é promover a dinâmica
processual para a consecução do resultado almejado.
No processo criminal não violento esse terceiro não é um juiz, assim como também
não é em processo decidido pelo terceiro de solução não adjudicada (p. ex., arbitral, de me-
diação ou conciliação) ou mesmo processos administrativos. O que não significa que não
atue de modo a dinamizar o procedimento dialogal para a consecução do resultado. No
processo não violento, portanto, o terceiro não assume a função de separar das partes.
Ao contrário, aproxima-as para construam entre si um resultado conciliatório. Resposta ao
“fenômeno criminal”, aliás, que, como alcançada pelas partes em voluntariedade empática
constante, não apenas tem baixíssimo risco de impugnação como ainda apresenta altíssimo
grau de cumprimento, sem necessidade de força coercitiva para sua execução.

332
Sobre as atuações “ou/ou” e “tanto/quanto” no processo criminal não violento com dimensão transformativa e
como instrumento de política pública, cf. item 50 e seus subitens, infra.
333
Cf. item 49.1.5, in fine, supra.
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 757
Feitas as aplicações ao processo criminal não violento das ideias essenciais e carac-
terizadoras da natureza jurídica de processo, não se pode negar-lhe a condição de “processo”.
Voltado a ser instrumento de resposta a conflito criminal sem imposição de pena,
pode e deve integrar novo espaço no modelo não violento: ser uma alternativa de “processo
criminal”.
Não podendo ser em si violento, em qualquer de seus atos procedimentais ou resul-
tado, passa a atender, já em sua realização, a política criminal da não violência institucional;
logo, é “processo criminal não violento”.
Poderia neste ponto ser encerrada nossa proposta pelo reconhecimento e início de
desenvolvimento teórico desse instrumento do modelo criminal não violento. Contudo, ser
o processo um instrumento dentro desse modelo ligado a uma específica política pública
(a política criminal) empresta àquele uma conotação também política. O processo criminal,
tradicional ou não violento, é instrumento de política pública. Ocorre que, enquanto no mo-
delo criminal tradicional ele é um instrumento unidirecional utilizado exclusivamente no
sentido hierárquico-vertical descendente, no modelo criminal não violento ele pode apre-
sentar uma outra dimensão política: ser instrumento de política social que, em sentido veto-
rial distinto, saia do plexo de casos criminais e seja indutor de políticas públicas.
Ao instrumento pensado e operacionalizado a essa função demos o nome de “pro-
cesso criminal (não violento) transformativo”. É o que será objeto do próximo item.

50. Processo criminal não violento como instrumento de política pública


social
Desde a primeiras linhas deste trabalho, e por todo o seu transcurso, fez-se ver que
o processo não é um instrumento isolado, mas tem um encaixe dentro de um modelo que,
por sua vez, atende sempre a uma política pública e criminal. Perseguiu-se e revelou-se essa
relação desde o Principado Romano de meados do século I a.C. até o Brasil do século XXI.334
O processo persecutório-punitivo, dentro do modelo violento que prevalece até nos-
sos dias, é um instrumento apenas unidirecional, isto é, disposto vertical e hierarquicamen-
te para levar aos imputados os desígnios dos poderes instituído. Para garantir essa funcio-
nalidade, empreendida pela inquisitio, a presidência diretiva e impositiva de cada uma de
suas fases compete a um sujeito do saber-poder, escolhido e definido por critérios daquele
mesmo poder central (investigador, acusador, juiz e executor). O processo presta-se a exa-
minar, casuisticamente, se diante de um fato aparentemente criminoso há elementos de
prova e razões jurídicas para condenar alguém. Nessa posição instrumental que sintetiza
sua função, ele é o filtro de uma escolha binária: punir e não-punir. Para nesse ponto. Ter-
mina ao concluir se a “pena criminal” se tornará concreta ou fora só uma ameaça justifican-
te ao seu exercício persecutório.
Também como se demonstrou por este estudo, notadamente na Parte III, o sistema
processual criminal não violento põe-se de modo diverso. Entendê-lo é fundamental para

Tal relação foi vincada já desde o item 3, supra, deste estudo, em sua Parte Introdutória. Teve, em seguida, a
334

busca de seus fatos e registros históricos, em sua vinculação juspolítica para a construção e transformações do
aparato criminal até nossos dias em trabalho exposto por toda a Parte I, supra, nos mais relevantes momentos
histórico-processuais penais. Por fim, a relação se mostra evidente pela revelação empírica do colapsado e disfun-
cional sistema processual penal brasileiro atual, realizado na Parte II, supra.
758 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

perceber que os efeitos de seu modo de ser propicia uma atuação “bidirecional” e lhe per-
mite transcender àquela única função unidirecional, vertical e hierárquica no sentido do
processo tradicional.
A diretriz não violenta do processo criminal dota-o de uma função social abrangen-
te e, portanto, reforça sua característica de “instrumento de política pública”, mas agora
informador e promotor de políticas públicas outras e diversas da (apenas) criminal, única e
da qual o processo persecutório-punitivo é só seu “receptor-perpetuador”.
A proposta não violenta para o sistema processual criminal abre uma dimensão so-
cial transformadora a seu instrumento. Todavia, para sua compreensão, explicite-se, por
primeiro, em que consiste a visão transformadora do “conflito”, como gênero, para depois
fazê-la incidir no processo criminal não violento específico como a colaboração deste estu-
do na teoria formulada.

50.1  Transformação e “resolução de conflitos”: planos intrapessoal e comunitário da “resposta


não violenta de conciliação criminal”
JOHN PAUL LEDERACH tem sido um dos responsáveis pela ampliação da visão da
violência para além do conflito premente.335 A partir de suas noções e estudos do que seja
conflito, de traumas por ele provocados, assim como de necessidades básicas não respeita-
das ou mesmo lesadas a partir de práticas violentas, ele percebeu que, para além da solução
pontual do conflito, devem-se observar “relacionamentos” e “padrões” causadores daquela
violência. Essa percepção ampliada mostrou, ainda, a importância de agir também sobre
eles. Para evitar ou diminuir a volta do conflito ou de outros congêneres, ele grifa que sua
ideia de “paz”, como ausência ou diminuição da violência, “enfatiza a importância de cons-
truir relacionamentos e estruturas sociais corretos, incluindo o respeito radical aos direi-
tos humanos e à vida, e advoga a não violência como método de vida e de trabalho”.336
Sem deixar de tratar o conflito premente que expôs a violência por meio de seus
efeitos sobre a vítima (diretamente) e a comunidade (direta ou indiretamente), colocou foco
nas relações que estão subjacentes àquele conflito e que, analisadas, podem revelar um pa-
drão de violência, objeto de sua preocupação ampliada e para o qual caminha, e, também
entendemos, o caminho para a resposta ao caso concreto por meio de instrumento não vio-
lento. A atuação pontual ele denomina “resolução de conflito”, e nesse passo está de acordo

Sobre esse ponto, ver maiores e anteriores considerações no item 44, notadamente seu subitem 44.2, supra.
335

LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 16. John R. FULLER (Criminal justice, cit., 1998),
336

ao analisar a aplicação de sua “perspectiva da pacificação”, afirma que ela “opera em muitos e diferentes níveis e
todos tem influência no sistema de justiça criminal” (traduzimos), algo de certa forma expandido e que faz per-
ceber que a visão de LEDERACH tem fundamento também criminológico e penal, não apenas sociológico. Para
FULLER, há quatro níveis naquela pacificação: o primeiro, internacional/global, “visualiza a interconexão entre
todas as coisas vivas”; o segundo, institucional/social, visa à “pacificação, olha para os sistemas de governo
(democracias vs. ditaduras), sistemas econômicos (capitalismo vs. comunismo) e sistemas religiosos (cristianis-
mo, islamismo, ...). A perspectiva da paz olha para como nossas escolas, igrejas, famílias, sistemas de justiça
criminal e outras instituições desenvolvem e implementam regras, políticas e normas que estruturam as intera-
ções entre os cidadãos”; o terceiro, interpessoal, representa que “a perspectiva da paz olha para como indivíduos
tratam uns aos outros na resolução de conflitos e distribuição de poder e privilégio” e cuja “‘Regra de Ouro’,
‘ faça aos outros o que quer que faça com você’, é simples, mas é um jeito preciso de pensar na perspectiva da
pacificação nesse nível”; e, por fim, o quarto e último nível é o intrapessoal, que “considera como nós nos trata-
mos [...]. A perspectiva da pacificação nos encoraja a ser gentis com nós mesmos, a perdoar as nossas próprias
transgressões, e a aprender como fazer as pazes com as nossas almas” (Criminal justice, cit., p. 41, traduzimos).
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 759
com o senso comum de denominação e abordagem dos estudiosos do tema.337 Para a atua-
ção sobre os padrões de violência que alimentaram o caso concreto, ou que dele podem ir-
radiar à comunidade, denominou “transformação de conflitos”. “Transformação”, conclui,
“oferece uma imagem clara e importante, pois dirige nosso olhar para o horizonte em dire-
ção ao qual estamos caminhando: a construção de relacionamentos comunitários mais
saudáveis”.338
Propondo duas questões para tornar mais claro o conteúdo e a abrangência de “reso-
lução de conflito” e de “transformação de conflito”, indica que para aquela a pergunta é:
“como pôr fim a algo que não desejamos?”. Como a transformação remete à ideia de mudan-
ça, a pergunta para esta é: “como terminar algo que não desejamos e construir algo que
desejamos?”.339 Evidencia-se, portanto, que a “resolução” é passo necessário à transformação
ou, ainda com o autor, é a “janela” aberta pela situação conflitual premente e que permite as
mudanças construtivas de novos padrões e relacionamentos a partir, e inclusive, dela.340
A transformação, portanto, oferece uma percepção e atuação expandida e que abarca
um espectro maior de conteúdo (violência) e tempo (presente e futuro) em um contexto social
também mais amplo. Resta claro que a diferença de abordagens não gera qualquer incompa-
tibilidade entre elas, pois a diferença é o foco da observação: para a “resolução” é o “episó-
dio”, e para a transformação é o “epicentro”. “Episódio” entendido como o conflito visível
que surgiu no contexto relacional ou sistêmico dentro de uma estrutura temporal específica.
Já o “epicentro” representa uma teia de padrões relacionais e na qual pode ser detectado um
histórico de conflitos (episódios) já ocorridos ou em condições potenciais de ocorrer. Epicen-
tro, concluímos, é o local onde a violência-causa do crime se origina e sua violência-efeito é
produzida. E, ainda, completamos: pode haver (normalmente, há) a violência-estrutural apta
a gerar outras ocorrências criminais (conhecidas ou não; relatadas ou não).341 A “violência
envolvente” que trabalhamos como o novo objeto-problema engloba exatamente todos esses
aspectos do “fenômeno criminal” e cujo crime tratado é apenas a sua parte visível (episódio).342

337
John Paul LEDERACH (Transformação de conflitos, cit., p. 18) explica que sua preferência pela ideia de “trans-
formação” não é superior à daqueles que preferem a terminologia “resolução”, mas que articular as duas ideias
cria uma “tensão criativa” para melhor desenvolver ambas as ideias. Tanto isso é mais verdade que no Capítulo 5
(“Ligar resolução e transformação”), como o próprio título sugere, ele faz uma combinação sinergética que torna
coesa a atuação de ambas.
338
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 17.
339
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 44-45.
340
LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 63-64.
341
Para Wolfgang DIETRICH (Uma breve introdução à pesquisa sobre paz transracional e transformação elicitiva de
conflito, cit., item 1), com apoio expresso em Lederach: “O episódio é aquilo que percebemos como a situação
imediata e visível na superfície de um conflito. O epicentro, que consiste na força motriz da vida, só pode ser
encontrado além das camadas mais profundas do Ego das pessoas envolvidas. É preciso um olhar bem treinado
e muita empatia para enxergar além dos problemas apresentados e assim desvendar os padrões mais profundos
de relacionamento, incluindo o contexto em que o conflito se expressa”. Preocupado com a noção de “paz”, em
planos mais amplos, esse pesquisador e cientista político, agora com apoio em Franz Ruppert (Verwirrte Seelen:
Grundzüge einer systemischen Psychotraumatologie), afirma haver “as seguintes camadas terapêuticas entre o
episódio social e o epicentro energético: sociedade, parentesco, núcleo familiar, sujeito, corpo, órgãos, células e
átomos. Em sua variante mais radical, essa reflexão envolve todas as camadas concebíveis, desde a atômica até
a cósmica. Entretanto, no que concerne à pesquisa sobre paz e conflito como uma ciência social, é desafiador o
bastante considerar as camadas que, inequivocamente, infiltram-se através da máscara da pessoa e contribuem
de maneira evidente para o episódio do conflito na superfície”. Para o desenvolvido no parágrafo do texto prin-
cipal, v. LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 46-47.
342
Sobre o tema e da necessidade de deslocamento do objeto-problema para a “violência envolvente”, em direção e
espectro bem diverso do binômio “crime-pena” utilizado pelo do modelo criminal persecutório-punitivo, tudo a
fim de se compreender a constituição e direcionamento diversos dos dois modelos, cf. item 44.2, supra.
760 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Didaticamente, LEDERACH343 elaborou a seguinte tabela comparativa entre os pon-


tos essenciais de “resolução” e de “transformação”:

Tabela 3.  Relação de conflitos e transformação de conflitos: breve comparação de perspectivas


Perspectiva da “resolução Perspectiva da transformação
de conflitos” de conflitos
Como terminar algo que não Como terminar algo destrutivo e
Pergunta-chave
desejamos? construir algo desejado?
Foco Centrado no conteúdo. Centrado no relacionamento.
Chegar a um acordo e uma solução Promover processos de mudança
Propósito para o problema premente que gerou construtiva, incluindo soluções
a crise. imediatas, mas não se limitando a elas.
Vê o problema atual como
Inserido e construído na esfera oportunidade de respostas a sintomas,
Desenvolvimento
imediata do relacionamento onde os e envolvimento com sistemas, nos
do processo
sintomas de dissolução aparecem. quais os relacionamentos estão
inseridos.
O horizonte das mudanças está no
Estrutura O horizonte é o alívio, a curto prazo, da médio e longo prazos, e o processo
temporal dor, ansiedade e dificuldades. reage intencionalmente às crises em
vez de ser dirigido por elas.
Vê o conflito como uma ecologia
provida de dinâmica relacional, com
vazante (desescalada do conflito a
Vê a necessidade de desescalada do
Visão do conflito fim de buscar mudanças construtivas)
processo conflitual.
e enchente (escalada do conflito
para buscar igualmente mudanças
construtivas).
Fonte: LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos. Tradução por Tônia Van Acker. São Paulo: Palas
Athena, 2012. p. 48.

Ao ingressar na dinâmica de estratégias não violentas para reagir à violência, LEDERACH


deixa claro que a ação transformativa não é diversa da resolutiva de conflitos, mas apenas
ocorre em dois tempos: o primeiro, dando respostas mais a curto prazo ao conflito (para
nós, o crime) premente; o segundo, um atuar a médio e longo prazo para modificar, a partir
daquela atuação pontual, o plano das relações sociais em que ela ocorreu, construindo novos
e mais saudáveis padrões. Sugere, pois, não atuações diferentes, mas o desenvolvimento de
capacidades de integrá-las. Uma ação imediata e com soluções “funcionais e claras para o
problema específico” e, outra, de médio e longo prazo, que será desenvolvida a partir daque-
les benefícios imediatos, mas que terá como escopo atingir e modificar os padrões e relacio-
namentos que estimulam o ambiente em que ocorreram os conflitos. O atuar, portanto, dá-
-se em “estruturas temporais” distintas, mas por meio de ações em cooperação.344

Extraído de LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 48.


343

LEDERACH, John Paul. Transformação de conflitos, cit., p. 64-65.


344
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 761
A percepção de que tempos e ações não são excludentes ou impeditivos, mas devem
ser combinados, permite resolver “aparentes” paradoxos entre “resolução” e “transforma-
ção”, dentro dos sentidos acima indicados. É possível haver conflitos em que sua “resolu-
ção” pode, apenas aparentemente, estimular os padrões ou relacionamentos subjacentes de
conflitos. O que significaria, em outros termos, que resolver o “episódio” pareceria prejudi-
car ou impossibilitar a transformação do plano subjacente da violência em algo positivo.
A abordagem empática e o diálogo, que permitem acessar não apenas o conflito
como as “violências envolventes” e padrões estruturais subjacentes a ele, possibilitam que a
ação seja combinada e se dê no sistema “tanto/quanto” e não “ou/ou”.345 A metodologia do
diálogo empático é inclusiva das perspectivas acessadas do problema e exige uma inter-
-relação entre as partes e de ações; algumas imediatas, para o conflito premente, e outras
mediatas, para os padrões. A sistemática “ou/ou”, ao contrário, é exclusiva, colocando qua-
se em oposição os interesses das partes do conflito e o da comunidade em que se encon-
tram, apontando mais para um falso dilema do que para uma ação efetivamente positiva.
Entendemos que um dos sinais do bom termo a que se chegou na “resposta conciliatória”
construída pelas partes do conflito é observar que seu cumprimento não levará efeitos ne-
gativos ao meio comunitário em que as ações positivas do infrator em favor da vítima.
Não se está, com isso, a afirmar que não seja possível a ocorrência de “respostas con-
ciliatórias criminais” que sejam ações positivas para as partes do conflito, mas não se projetem
de qualquer modo na comunidade.346 São resultados pontuais e cuja extensão das ações posi-
tivas do infrator não excedem os efeitos negativos que seu ato criminoso produziu na vítima,
que, no caso, tende a ser um indivíduo específico ou de pequenas dimensões sociais (p. ex., um
pequeno grupo ou mesmo uma empresa pública ou privada). Dentro do que expusemos de que
há necessidade de rediscutir o conceito de “parte processual”, para nele inserir comunidades
(diretamente) afetadas, por meio de representações de modo limitado a não impossibilitar a
atuação nos ritos não violentos,347 é difícil imaginar situações em que o resultado consensual
não seja uma ação positiva tanto para os diretamente afetados pelo crime como para a comu-
nidade circundante àqueles. Caso ocorra o contrário, ou seja, a resposta ao caso produza efei-
tos negativos na comunidade, surge a necessidade de se rever o seu conteúdo, extensão ou
forma, pois, o sistema processual não violento, em qualquer de seus instrumentos ou resulta-
dos, não pode ser fator, meio ou gerador de violência (criminal ou não) no meio social.
O encaminhamento “tanto/quanto” é de mais fácil consecução exatamente dentro da
ideologia da não violência, com a necessária ampliação do objeto-problema da política cri-
minal para a “violência envolvente” no modelo criminal alternativo explicitado neste traba-
lho e cujo resultado da atividade processual criminal não violenta é uma ação consensual de
efeito imediato para as partes do conflito e efeito mediato quando o acordado na causa penal
também projeta efeitos na comunidade.348

345
Sobre os necessários diálogo e empatia na resolução de conflitos de modo geral, cf. item 44.4, supra. Para o mes-
mo binômio, agora voltado ao crime e ao aparato não violento para sua abordagem e tratamento, cf. item 48.2, e
seus subitens, supra.
346
Como se demonstrou no item 48.3.3, supra, se não há tanta complexidade quando se pensa em infrator e vítima
unipessoais, a teoria processual e material das partes das relações deve ser repensada para que a comunidade
comece a participar, por meio de representantes, quando for atingida direta ou reflexamente.
347
Cf. item 48.3.3, supra.
348
Sobre as noções fundamentais dessa “resposta não violenta de conciliação criminal” e seus efeitos imediato (obri-
gatório e sempre ocorrente) e mediato (eventual a depender do caso concreto), v. item 48.1 supra.
762 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

Neste ponto final do trabalho, o que se acresce, com base na visão transformadora
de LEDERACH, é um novo instrumento processual criminal e que somente pode ser reali-
zado pelo paradigma da não violência e por meio do qual transforma-se em instrumento de
política pública “social” e não apenas “criminal”.

50.2  Processo criminal (não violento) transformativo: finalidade, estrutura e inter-relação de


agências para ser instrumento de política (pública) social
O processo criminal transformativo, pela teoria desenvolvida por este trabalho,
coloca-se como uma espécie do gênero “processo criminal não violento”, inserido dentro do
sistema processual estruturado e afinado com o modelo criminal não violento (responsabi-
lizador-conciliatório). Ele está para o processo não violento no mesmo nível em que se inse-
re o “processo restaurativo”.349
O que traz de peculiar é a estrutura da qual depende e da coordenação que deve
haver entre as agências do modelo criminal que o implemente e as agências de políticas
públicas diversas da criminal, que estão fora daquele modelo, mas que se relacionam no
plano das políticas públicas, dentre as quais está a política criminal. Seu mister, por conse-
guinte, nasce já com a finalidade de, por meio dos atendimentos pontuais das violências
criminais de uma comunidade, orientar políticas públicas, diversas das criminais, na comu-
nidade em que os conflitos que lhe foi dado conhecer ocorreram. Essa mudança, como se
explicará a seguir, pode se dar de duas formas: pela identificação de carências e falhas es-
truturais dos serviços públicos que podem ter se tornado fatores de violência social (diversa
da criminal) e focos dos “fenômenos criminais” daquela comunidade ou, de uma segunda
forma, pela implementação ou redirecionamento desses mesmos serviços públicos que, em-
bora existentes, podem ser melhorados para eliminar ou já tratar de questões relacionais
antes que se tornem conflitos intrapessoais ou comunitários.

A ONU, em sua Resolução 2002/12, assim define de modo largo e geral, o que entende por “processo restaurati-
349

vo”: “I – Terminologia. [...] 2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e,
quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam
ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os proces-
sos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (‘conferencing’) e
círculos decisórios (‘sentencing circles’)”. Em nossa teoria exposta durante toda a Parte III deste trabalho, o gê-
nero dos meios não violentos de abordagem e tratamento do “fenômeno criminal” é denominado “processo não
violento”, sendo o restaurativo e, agora, o transformativo suas espécies, dentre tantas outras; todos inseridos no
sistema processual não violento e de cariz responsabilizador-conciliatório. Como já se indicou no trabalho, o
campo é largo e a proposta desta presente teoria visa exatamente a fornecer um arcabouço de organização das
ideias a fim de que se combinem e potencializem, sem confusão de espaços ou subaproveitamento de energias e
atuações, e proteção do axioma e fundamentos decorrentes da não violência. Alberto José OLALDE ALTAREJOS
(40 ideas para la práctica de la justicia restaurativa en la jurisdicción penal, cit.) abre suas considerações sobre
a impossibilidade de se definir com precisão a “justiça restaurativa” com a indicação de um número razoável de
ideias ainda não sistematizadas ou bem analisadas para se evitar sobreposição de conteúdo e atuações, com mul-
tiplicidade nominativa. Diz o autor: “1.2. O paradigma conceitual. Justiça restaurativa, justiça reparadora
(Tamarit, 2006), justiça participativa (Christie, 1984), justiça terapêutica (Wexler e Winick, 1996), justiça re-
construtiva (Subijana, 2009), justiça restitutiva (Highton, Álvarez e Gregorio, 1998), justiça vitimal (Beristain,
2006) ou justiça recriativa (Beristain, 1995) são termos para uma longa reivindicação, a recuperação do prota-
gonismo das vítimas na resolução de conflitos criminais, sem esquecer o autor do crime e o seu contexto social.
No mercado de conceitos alternativos de justiça, muitos concorrentes surgiram, sob fórmulas como ‘ jurispru-
dência terapêutica’, ‘ justiça procedimental’, ‘ justiça compreensiva’ ou ‘colaborativa’, ou ‘tribunais de resolu-
ção de problemas’. O surgimento de ‘novos paradigmas’ não obscurece a luz que a ideia de justiça restaurativa
traz, mas antes confirma a validade de sua intuição original e reforça sua solidez, destacando-se como a solução
mais comprovada e que melhor sustenta a crítica (Tamarit Sumalla, 2013a: 140)” (p. 40-41).
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 763
O “processo criminal transformativo”, por estar inserido no sistema processual não
violento, utiliza-se do diálogo empático e voluntário na busca de uma “resposta conciliatória”
construída pelas partes naturais do conflito em respeito mútuo e alternância de falas e escu-
tas.350 Nesse seu atuar, portanto, é próximo às experiências do “processo restaurativo”.
Sendo assim, natural e esperado que nos atos processuais nele ocorrentes ocorra o
mesmo que se dá nos encontros restaurativos, ou seja, muitas informações sejam levadas
pelas partes, dentre as quais muitas reveladoras de importantes dados quanto às violências
estruturais ou mesmo pontuais na comunidade e diversas do crime que justificou o encon-
tro. Dados e informações que se revelam pelo encontro, mas que estão para além ou aquém
do conflito criminal que propiciou aquele. São esses informes que abrem a possibilidade de
o processo criminal transformativo ser instrumento de política pública social.
Sempre respeitada de forma absoluta a intimidade de todos os participantes dos proce-
dimentos não violentos, por influxo e respeito ao “princípio da confidencialidade”, que é es-
sencial ao sistema processual criminal não violento,351 o facilitador e as agências que atuem
nesse modelo criminal terão função relevante. Isto porque, em relatórios finais dos processos,
a serem elaborados pelo facilitador e encaminhados às agências às quais esteja vinculado,
devem constar, de modo impessoal e sem identificação da fonte − insista-se −, os informes
relacionados às condições das políticas públicas. Tudo de modo a indicar insuficiência ou fal-
ta de atuações das agências dessas áreas e de natureza diversa da criminal, tais como educa-
cional, de saúde pública, de empregos ou mesmo de atendimentos sociais (p. ex., creches e
centros de identificação civil de pessoas). Tais informes, analisados isolada ou conjuntamente,
devem integrar relatórios dessas agências integrantes e de suporte ao modelo criminal não
violento para a identificação de problemas comunitários recorrentes ou relevantes. O “cami-
nho de volta” desses informes, entendido no sentido “comunidade → agências” será propicia-
do pelo “processo criminal transformativo”, uma vez que foi por meio dele que aquelas ques-
tões comunitárias puderam ser “vistas”, “ouvidas”, “compreendidas” em suas consequências
e causas e, por fim, encaminhadas ao ambiente da política pública responsável por articular
escolhas e determinações de organização e procedimento naquelas áreas políticas diversas.
Deverá haver, por conseguinte, já na estrutura típica desse processo transformativo,
uma relação prévia e coordenada entre suas agências internas (do sistema e modelo crimi-
nais não violentos) e uma rede de outras pertencentes a estruturas diversas de políticas públi­
cas. O processo deixará de apenas ser um tradicional instrumento de punição/não-punição,

350
Sobre essa dinâmica de alternância respeitosa como garantia da igualdade entre as partes do processo, v. itens
48.2.2 e 49.1.5, supra. Exatamente por partir de um resultado consensual, e não uma decisão de uma autoridade
pública (juiz) em um processo verticalizado, este trabalho também se afasta em muito das propostas de Tyrone
KIRCHENGAST (The criminal trial in law and discourse. London: Palgrave Macmillan, 2010). Embora esse
autor use termo semelhante “transformative criminal trial”, ele o faz para ilustrar um processo criminal que, se-
gundo informa, sofre alterações ao longo de sua história (por isso, “transformativo”). A partir da compreensão
foucaultiana de “discurso” (Capítulo 1), passando por uma análise histórica do sistema da common law (Capítulo
2) e das recentes mudanças na política criminal (Capítulo 3), o autor conclui que o processo penal (tradicional)
sempre se “transformou” a fim de atender às necessidades sociais do momento. Em nossa visão, diversa da do
autor, o processo se transformou, e exatamente a partir da visão de Foucault de discurso, que não pode ser apar-
tada de sua percepção sobre o “poder” e o controle pelo aparato criminal, não para acompanhar as “mudanças
sociais”, mas a serviço das mudanças ocorridas nos poderes instituídos ou entre seus integrantes. Não concorda-
mos que o Estado-juiz, em conjunto com as partes, decidem “em condições de igualdade” o que seja socialmente
melhor. É impossível ao sujeito do poder-saber, ontologicamente, existir em um diálogo de plano horizontal entre
iguais. Ele é constitutivamente diverso, superior e impositivo, pois é a representação, junto ao conflito, do Estado
que, mesmo formado por cidadãos, sempre se coloca acima deles.
351
Sobre o tema, cf. item 49.1.3, supra.
764 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

transcenderá sua função de instrumento de construção de resposta não violenta pelas partes
do conflito e, em uma nova dimensão ora proposta e aberta, de sentido vetorial diverso, de
comunicação a partir dos dados hauridos da comunidade em direção e sentido às agências
dos poderes públicos. Um sentido vetorial ascendente (comunidade → agências) para trans-
formação das condições socioambientais das localidades onde se deram os conflitos origi-
nários que demandaram a atuação do “processo criminal transformativo”.
Dessa forma, para além das extensões das ações positivas decorrentes do resultado
consensual entre as partes, que as atingirão e podem atingir também a comunidade circun-
dante ao crime, o que se propõe neste trabalho com o processo criminal transformativo é ele
ser meio de sinalização para ajustamentos e melhorias de políticas públicas. Ele retornará
como indutor de informações que terão aptidão de produzir efeitos em outras áreas da polí-
tica pública. O processo deixará de ser (apenas) instrumento descendente de política crimi-
nal para “transformar-se” também em instrumento difusor para o plano político proceder a
avaliações e escolhas axiológicas e materiais a serem implementados em várias áreas da
política pública.
Nesse sentido, a dimensão transformativa que ora se empreende e se propõe a esta
espécie de “processo criminal não violento” guarda distinções em relação à noção de “jus-
tiça transformativa”352 ou dos escopos de transformação ínsitos à própria “justiça restaura-
tiva”; embora todas essas espécies se insiram dentro daquele gênero (processo criminal não
violento) por possuírem mesma ideologia (não violenta) e metodologia (dialogal). Mais uma
vez a teoria desenvolvida e trazida nesta tese se mostra oportuna e traz ganho a todos. Isto
porque, a organização a partir da noção maior de “não violência” e a estruturação a partir
do plano político-criminal e de seu respectivo “modelo criminal não violento”, deixam cla-
ro que todas, guardadas suas peculiaridades, integram aquele mesmo gradiente político-
-criminal, seguem a mesma ideologia e buscam, pelo mesmo método, o mesmo resultado:
tratar a violência sem mais violência.
O “processo criminal transformativo” proposto prevê uma atuação em cooperação
com outros ramos das políticas públicas (p. ex., educacional, de assistência social, de saúde
pública e profissionalizante) em seu momento posterior ao tratamento do conflito intrapartes;

Para uma referência da “justiça transformativa” como uma expansão da “justiça restaurativa” para além do con-
352

flito criminal, atingindo inclusive outros tipos de conflitos entre as mesmas pessoas ou pessoas diversas, o que
não é tratado neste trabalho, v. HARRIS, M. Kay. Transformative justice: the transformation of restorative jus-
tice. In: SULLIVAN, Dennis; TIFFT, Larry (ed.). Handbook of restorative justice: a global perspective. New
York: Routledge, 2006. M. Kay HARRIS (Transformative justice, cit., p. 555-566), após ressalvar as imprecisões
de conceituação tanto da “justiça restaurativa” quanto da “justiça transformativa”, baseia-se em alguns restau-
rativistas consagrados para ir demonstrando em quais pontos entende haver a diferença. Em uma síntese inicial
e de proposta de encaminhamento do artigo, afirma: “Isso também se relaciona à preocupação geral de que o
escopo dos assuntos aos quais a justiça restaurativa é vista como aplicável é frequentemente muito mais restri-
to do que o que é verdadeiro para a justiça transformadora. Uma grande parte da prática da justiça restaura-
tiva se concentrou apenas no que Sullivan e Tifft (2001) se referem como ‘os aspectos correcionais da justiça
restaurativa (por exemplo, programas de reconciliação vítima-agressor, mediação e resolução de conflitos
interpessoais)’ (p. 94). Eles expressam preocupação de que muitos defensores da justiça restaurativa estejam
dispostos a falar sobre processos restaurativos no contexto ou como uma alternativa ao sistema de justiça cri-
minal, mas não estão dispostos a estender seu pensamento para reconhecer que esses processos restaurativos
têm aplicabilidade em todas as áreas de nossas vidas (Sullivan e Tifft 2001: 94-5). Olhando para o outro lado
das preocupações identificadas acima sobre maneiras pelas quais a justiça restaurativa pode ficar aquém do
alcance da justiça transformadora, também são avançados argumentos que enfatizam como a justiça transfor-
madora corrige as limitações da maioria das conceituações de justiça restaurativa” (p. 558, traduzimos). Nesse
estudo a autora indica quatro razões para diferenciar a justiça transformativa da restaurativa, embora reconheça
entre elas pontos comuns.
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 765
e aí já se pronuncia um de seus diferenciais. As novas agências que integrarão a estrutura
do modelo criminal não violento devem, portanto, já de partida, equipar-se com organiza-
ção e procedimento para não apenas e, imediatamente, atender conflitos criminais premen-
tes (o “episódio” lederachiano), sua função primaz. Mas, também, saber analisar os dados
empíricos colhidos dos relatórios produzidos de forma impessoal pelos facilitadores, seja
como forma de aperfeiçoamento e expansão no atendimento desse novo modelo não violen-
to, seja como fonte de dados para ajustes ou intervenções de políticas sociais de vários ma-
tizes (o “epicentro” lederachiano).
Pelo “processo criminal (não violento) transformativo”, o crime, com seus efeitos
deletérios e violentos, torna-se oportunidade para, no plano “intrapartes”, propiciar ações de
feitos positivos, empoderar, da visibilidade e atender às necessidades da vítima, e respeitar
– e não dessocializar – o infrator que se autorresponsabilizou. Mas, para além disso, no
plano “metapartes”, aquele processo passa a ser, outrossim, instrumento aperfeiçoador de
relações comunitárias mais completas e saudáveis a partir da identificação de fatores de
violência estrutural ou, antes disso, de políticas públicas ausentes ou falhas e cuja existência
ou ajustamento levará à melhoria da vida daqueles cidadãos.
Assim, a proposta ora apresentada se diferencia da ideia de “transformação” ineren-
te à “justiça restaurativa”, pois aqui o termo “transformador” não se refere à mudança em-
preendida nas pessoas e nas relações que passam por um “processo restaurativo”.353 Na pre-
sente proposta a transformação se opera no próprio “instrumento processual”, o “processo
criminal não violento”, que deixa de ser apenas instrumento político-criminal de como lidar
com o crime e passa a ser, para além disso, mas sem deixar de ser isso, um instrumento de
política (pública) social. Depois, exatamente por essa transformação do instrumento, tam-
bém transforma o meio ambiente comunitário muito além dos efeitos que aquele crime
projetou para as partes.
O uso do termo “transformativo” ou “transformador”, ora para caracterizar um atribu-
to ou o propósito da “justiça restaurativa” e ora para nominar uma forma mais ampla de abor-
dar e responder ao crime e outros conflitos entre pessoas nele envolvidas, como é para os que
o defendem na denominada “justiça transformadora”, não deixa de revelar também uma pre-
ocupação comum com este trabalho e que, como afirmam tanto M. KAY HARRIS354 quanto

353
A expressão “transformadora”, muitas vezes, é usada pelos próprios restaurativistas para emprestar à “justiça
restaurativa” o sentido de que ela “transforma” pessoas e relações na medida em que empresta ao crime uma
abordagem distinta e não punitiva, preocupando-se em não retribuir a ação negativa do crime cometido, mas,
principalmente, entender os danos causados, reparar a vítima e não dessocializar o infrator. Aponta, ainda, que,
ao aproximar as partes do conflito para o diálogo, a “justiça restaurativa” está “transformando relações” e, por
consequência, abrindo caminho até mesmo para uma transformação social maior a partir das mudanças empreen-
didas nas pessoas. Howard ZEHR, em seu blog (Disponível em: https://emu.edu/now/restorative-justice/2011/03/10/
restorative-or-transformative-justice/. Acesso em: 23 dez. 2021), discute esse assunto e diz, que no início dos es-
tudos da justiça restaurativa, refletiu se não seria o caso de escolher o termo “transformativo” no lugar de “res-
taurativo”: “A justiça restaurativa é suficientemente transformadora? O termo deveria ser ‘transformadora’, em
vez de justiça ‘restaurativa’? São fenômenos diferentes ou são o mesmo? Esse debate está em andamento desde
a origem do campo. Ao tentar decidir um termo na década de 1980, considerei a palavra transformadora, mas a
rejeitei como efêmera demais para se comunicar com os profissionais do mundo real. Mas o termo restaurador,
com suas conotações retrospectivas, certamente teve seus limites” (traduzimos). E conclui, após citar o já referido
artigo de M. Kay HARRIS: “Justiça restaurativa e transformadora são duas perspectivas bastante diferentes.
O processo restaurativo visa a transformação pessoal e interpessoal e pode abrir espaços para a transformação
social. A justiça restaurativa recai sobre um continuum entre justiça retributiva e transformadora” (traduzimos).
354
Essa autora (cf. HARRIS, M. Kay. Transformative justice, cit., p. 563-564), em uma quarta conclusão, assim
aproxima as duas formas de “justiça”: “A quarta e última perspectiva discutida neste capítulo é que a justiça
766 MODELO E SISTEMA CRIMINAIS NÃO VIOLENTOS

HOWARD ZEHR355, terminam por aproximar aquelas ideias de “justiça”. Nesse ponto,
mesmo limitado apenas ao conflito criminal, mais uma vez a proposta deste trabalho em
oferecer uma teoria a organizar, proteger e congregar mostrou-se acertada.
Ela “organiza”, na medida em que o sistema processual criminal não violento, já
inserido em espaço de política criminal mais alargado e com modelo que lhe oriente os
sentidos por meio de agências e estruturas próprias, pode e deve comportar vários tipos
processos para cada finalidade e característica de conflito; sem que com isso haja confu-
são ou superposição de espaços teóricos ou de atuação prática. Também se torna desne-
cessário discutir se há ou deva haver prevalência de um sobre o outro ou, ainda, se um é
melhor ou mais “certo” que o outro. É, pois, um ambiente que permite o avanço dos estudos
teóricos a aplicações práticas para todos; assim como no modelo criminal persecutório-
-punitivo temos processos e procedimentos diversos que se combinam e, buscando me-
lhor eficiência em face do direito material e características do caso concreto. Por isso e
para isso a teoria desenvolvida neste trabalho também “congrega” a todos as espécies de
processos criminais não violentos a atuarem como e onde forem mais apropriados e esti-
verem instalados, notadamente neste momento incipiente em que buscam espaço e pene-
tração cultural junto à população. Por fim, “protege” ao manter o axioma da não violên-
cia, não permitindo que qualquer espécie de processo sofra reduções ou alterações em
seus fundamentos ou atuação, seja pelo ingresso de agentes que não lhe sejam próprios,
seja impondo (coativa e não voluntariamente) a participação das partes naturais do con-
flito nele, seja determinando penas (mitigadas) por terceiros e, ainda, decididas e ordena-
das de modo vertical descendente.
O processo criminal transformativo como proposto neste trabalho dá ao instrumento
processual uma dignidade e um novo espaço de atuação como aparato de política pública
que até então não se concebia ao “processo” dirigido ao trato do “fenômeno criminal”.
Ele não apenas buscará abordar, tratar e responder ao crime. Ele não apenas buscará
tornar a vítima visível e protagonista e manterá o infrator integrado e útil ao corpo social.

restaurativa deve ser conceituada como abrangendo as características e os objetivos identificados para a justiça
transformadora a tal ponto que há pouco ou nada a ganhar com o tratamento da justiça transformadora como
perspectiva distinta. Para alguns, isso representaria uma transformação da justiça restaurativa de uma visão
que considera a justiça restaurativa preocupada com a cura ou principalmente em circunstâncias específicas
envolvendo pessoas diretamente envolvidas em conflitos e disputas que surgiram. No entanto, para outros, a
justiça restaurativa se mantém e é promissora em todas as situações em que há, ou ainda pode ocorrer, dor, le-
são, conflito ou outro dano, na medida em que carrega o potencial de prevenção, assim como o reparo pessoal,
interpessoal, comunitário, social e global. Essa é uma visão da justiça restaurativa como justiça transformado-
ra” (p. 565, tópico de suas conclusões, traduzimos).
355
Howard ZEHR, em seu blog (Disponível em: https://emu.edu/now/restorative-justice/2011/03/10/restorative-or-
-transformative-justice/. Acesso em: 23 dez. 2021), reconhecendo aspectos de aproximação, e mesmo desejando
que elas se aproximem cada vez mais e de modo complementar, informa que em sua prática tem sempre mais in-
formes de transformações intra ou interpessoais e que são mais afeitas à “justiça restaurativa”. Ao final, concorda
que a “justiça restaurativa” seria um campo entre a por ele denominada “justiça retributiva”, que no trabalho de-
nominamos “modelo criminal persecutório-punitivo” ou “tradicional”, e a “justiça transformativa”. E assim ca-
racteriza a abordagem restaurativa: “O incidente é uma violação de pessoas e relacionamentos. Cria obrigações
para corrigir as coisas. A resolução envolve examinar os danos causados pelo incidente: danos às pessoas que
foram vítimas, danos ao instigador/agressor e danos à comunidade em geral e perguntam ‘Como esse dano pode
ser reparado?’ Quem foi ferido e quais são suas necessidades? Quem é obrigado a atender a essas necessidades?
Quem tem ‘interesse’ nessa situação e qual é o processo para envolvê-lo na correção das coisas e na prevenção
de ocorrências futuras?” (traduzimos). Explicita comparativamente a abordagem transformadora: “O incidente
pode ter ocorrido como resultado, em parte, de relacionamentos e sistemas sociais prejudiciais. Cria obrigações
para construir relacionamentos novos ou melhores. Isso deve acontecer não apenas no nível individual, mas no
nível das estruturas sociais e políticas institucionais. A resolução envolve a mudança de sistemas sociais mais
amplos, de maneira a ajudar a impedir a ocorrência e a reincidência de incidentes prejudiciais” (traduzimos).
50.  Processo criminal não violento como instrumento de política pública social 767
Tudo isso de forma não violenta e sem aplicar pena criminal, ou seja, sem aumentar a vio-
lência social já existente. Isso não seria pouco, mas ainda seria o “processo” como instru-
mento de (uma nova) política criminal.
A proposta que ora se apresentou leva o instrumento processual a uma nova dimen-
são: potencializando-o como instrumento de política pública, permite-lhe ser indutor de
mudanças sociais para reduzir ou eliminar, com muito maior força de atuação e alcance, as
diversas formas de violência que existam no tecido social e possam por ele ser atingidas e
tudo isso a partir da participação comunitária que, acreditamos, é a fonte legítima e primor-
dial do poder de transformar a vida social.

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