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Que comunicação e que jornalismo para o mundo pós-coronavírus?

| Cultura | PÚBLICO 23/02/2023, 15)58

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CULTURA

Que comunicação e que


jornalismo para o mundo pós-
coronavírus?
José Luís Garcia
8 de Maio de 2020, 10-38

Com as medidas de confinamento tomadas para diminuir a exposição à covid-19


(https://www.publico.pt/2020/01/29/infografia/coronavirus-espalhar-virus-
mundo-409), as relações sociais não terminaram, embora muitas tenham sido
suspensas ou restritas ao espaço doméstico; do mesmo modo, os processos de
comunicação não terminaram; muitos foram interrompidos, outros substituídos
pela mediação tecnológica. Tendo-se alterado as relações sociais, alteraram-se os
processos de comunicação; alterados estes processos, alteram-se também as
relações sociais. Tornou-se, assim, uma evidência o significado substantivo da
comunicação humana, determinado pela relação intrínseca entre comunicação e
sociedade. A comunicação é consubstancial à criação do eu humano, das relações
sociais e da vida social, e não um recurso, um meio para qualquer objectivo; que
o seu sentido é dado pela dependência do ser humano — para se constituir como

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um eu-pessoa e construir, preservar e alterar a cultura das sociedades humanas


que dão sentido à sua vida — dos processos de simbolização que ocorrem nas
interacções e relações sociais.

Surge também claro da situação social excepcional que a comunicação mediada


por tecnologias de transmissão à distância pode ser adequada para certas formas
de sociabilidade e para a realização de várias actividades e outras passíveis de
transpor o espaço. Para não aumentar as possibilidades de contágio que
decorrem da proximidade física, têm vindo a ser evitados inúmeros processos
comunicativos em co-presença, surgindo a mediação tecnológica como meio de
comunicação ajustado às circunstâncias. Mas tal como o impedimento de
frequentar e trabalhar em lugares sociais mais amplos do que a casa e de conviver
com grupos de pessoas — em cafés, escolas, mercados, teatros, cinemas,
concertos, etc. — permite revalorizar inúmeras relações na presença física,
também se percebe melhor quão preciosa é a comunicação face-a-face, sem a
qual não ocorrem rituais que são o esteio dos laços sociais e de formas de
expressão dos sentimentos e emoções que formam os seres humanos.

Compreende-se ainda melhor, numa conjuntura em que o temor da doença e da


morte é um quadro fértil para a propagação de notícias falsas e para a
desinformação, a necessidade e relevância da intermediação realizada pelo
jornalismo e das suas normas e valores profissionais para colectar informação
vital, para a tratar de modo rigoroso e a disponibilizar ao conjunto da sociedade.
A importância do jornalismo, a compreensão da sua necessidade, despontou
porque, mesmo no mais pavoroso martírio, a experiência social gera formas de
consciência humana através da acção simbólica. Porque é necessário dizer aos
outros seres humanos o que eles talvez desconheçam; é fundamental uma
compreensão aceitável do que significa uma pandemia; é preciso dar-lhe uma
denominação; ir avaliando o que se está a passar. O jornalismo tem sido o mais
destacado interveniente dos circuitos de produção cultural em termos de colecta
de informação, tratamento, disseminação, comentário e organização dos debates
relativamente às circunstâncias vividas da calamidade da covid-19. Ainda que sob
as condições da competição no mercado dos média, que leva à dramatização,
agendamento monotemático, uso de metáforas duvidosas ou busca da atenção

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frente às compactas redes de troca comunicacional e cultural que povoam a


Internet, o jornalismo tem evidenciado aquilo que James Carey escreveu em The
Problem of Journalism History (James Carey: A Critical Reader, University of
Minnesota Press, 1997, p. 91): que é uma forma social particular de apreender o
mundo, de organização da experiência social, de imaginar o mundo. O jornalismo
é, para lembrar as suas palavras, “um trabalho criativo e imaginativo, uma
estratégia simbólica; o jornalismo avalia as situações, nomeia os seus elementos e
nomeia-os de uma maneira que contém uma atitude em relação a eles”.

Por força da industrialização e do alargamento do mercado, o jornalismo foi


adoptando normas, técnicas e práticas que não tinham de corresponder
verdadeiramente a necessidades sentidas pela profissão, mas a imposições das
instituições dos média, para a produção de uma mercadoria subordinada às
condições industriais e à venda rentável. No entanto, foi neste processo que se
expandiu como profissão e adquiriu uma autonomia enquadrada por
organizações profissionais e códigos de ética e deontologia. O jornalismo é, então,
um actor cultural colectivo, cujos produtos são razoavelmente homogéneos e
identificáveis, que são factos jornalísticos que acontecem ao dizerem-se e que
provocam coisas pelo facto de serem ditos; é promotor de sentidos na vida social
e de notabilidade; a sua justificação não está dependente da tecnologia, nem do
comércio de informação, e sim da vida cívica e do bem comum.

A mediação tecnológica por via digital tornou-se útil para manter certas relações
à distância, para formas de socialização, trabalho, ensino, actividades culturais,
de desporto e lazer em circunstâncias dramáticas. Mas com a interacção social à
distância, há um esvaziamento dos contextos mais amplos da acção e do
entendimento da própria realidade; uma ambiguidade entre o presente e o
ausente, entre estar e não estar; perde-se o contacto e a memória corporal, o
toque, o abraço, o beijo, o cheiro, a sinestesia dos sentidos. Nem todas as pessoas
têm capacidade aquisitiva para ter um computador pessoal, nem todos lhe têm
acesso, constatando-se a existência de “fossos digitais” entre classes, grupos
etários e gerações. Mais importante ainda, a mediação pelas tecnologias digitais
abre a possibilidade de ultrapassar o espaço quer para aumentar o efeito das
mensagens quer do controlo centralizado, e é por isso que são tão apropriadas

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como meio para a publicidade, a disseminação de mentiras e propaganda, a


vigilância digital generalizada e a dominação total. A Amazon, a Microsoft, a
Apple e a Facebook não interrompem a sua gesta de conquista da atenção e de
utilizadores, podendo até sair mais fortes da pandemia. O regime autoritário da
China, que começou por ocultar durante semanas preciosas a pandemia, prendeu
quem a divulgou, expulsou jornalistas e impôs finalmente a vigilância total da
sociedade. As limitações à liberdade na China, realizadas através das tecnologias
da informação com capacidade de controlo à distância e de tratamento massivo
de dados, não estiveram apenas associadas a uma situação excepcional, é uma
continuidade do sistema de controlo social (chamado de “crédito social”)
implementado no país. Resvalar do uso excepcional para o trivial pode revelar-se
a antecâmara de novas tiranias.

Eis então que a gravidade da pandemia está a implicar um largo espectro de


experiências e possibilidades cuja amplitude, combinações, assimilação nas
consciências e desfecho não é possível sequer esboçar. Quais das tendências
elencadas anteriormente se irão agudizar? Que novas combinatórias nascerão
entre aquelas três formas de comunicação? Quais tendências de comunicação,
postas em movimento no enfrentamento da pandemia, se virão a afirmar? Quais
serão interrompidas? Quais irão prosseguir, de uma forma ou de outra? Os jornais
em papel irão tender ainda mais para o declínio? O jornalismo digital sairá
reforçado? Seria possível enfrentar esta situação difícil, será possível encarar as
que se seguirão sem os recursos, a experiência, o profissionalismo e o conteúdo
do jornalismo pautado pelo rigor? Haverá uma tal ênfase nos contactos à
distância que se irá perder um sentido crítico sobre os seus efeitos mais
perniciosos? Outras perguntas são passíveis de serem elaboradas e as respostas só
serão conhecidas depois do desenlace, não apenas desta pandemia, mas do
debate cultural e das lutas políticas que estão já a ocorrer subterraneamente e
irão estalar no mundo pós-coronavírus SARS-CoV-2. Seria um efeito venturoso
desta crise se viermos a perceber a importância substantiva da comunicação, em
especial da comunicação face-a-face e do jornalismo. Tudo isto, podemos
presumir, constitui uma alegoria de uma existência moderna que tem
negligenciado a contingência.

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José Luís Garcia é Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de


Lisboa

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