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CAPÍTULO 13
ECOSYSTEM STEWARDSHIP
MENSAGENS-CHAVE
INTRODUÇÃO
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SEIXAS, C.S., FARINACI, J.S., ISLAS, C.A. (Orgs), em preparação. Gestão de Recursos Naturais de Uso
Comum: Perspectivas Teóricas e Aplicadas. Proibida circulação fora da disciplina.
neste capítulo, reconhece e endereça essa complexidade. Com o objetivo de, em linhas
gerais, manter a função dos sistemas naturais que influenciam o bem-estar humano,
ressalta a importância de ações que priorizem tanto o sistema natural, quanto o sistema
social (e não um em detrimento do outro).
Neste capítulo, temos como objetivo apresentar uma compilação robusta do
conhecimento a respeito de ecosystem stewardship, de forma que você consiga
compreender do que se trata a abordagem, quais suas contribuições e sua aplicabilidade.
Assim, é possível que você possa inclusive aplicá-la em seu próprio trabalho envolvendo
a gestão de recursos naturais. Os principais aspectos que abordaremos no capítulo serão
sua contextualização teórica, definição do conceito, exemplos e considerações
importantes sobre seu uso na literatura.
Definição
Quadro 1. Sistemas humanos são dependentes e intimamente conectados aos sistemas naturais.
Como ocorre em outras abordagens apresentadas nesta seção 5, ecosystem stewardship enfatiza a
dependência que os sistemas humanos têm em relação aos sistemas naturais, ainda que não seja
reconhecida amplamente pela sociedade. Esta abordagem se destaca por ter como objetivo “sustentar a
capacidade de prover serviços ecossistêmicos”. Afinal, é desses serviços que depende nossa
sobrevivência, qualidade de vida e bem-estar (capítulo 3). Em outras palavras, todas as sociedades
humanas precisam da natureza funcionando bem para continuarem existindo e prosperarem.
Os proponentes desta abordagem argumentam a respeito da necessidade de os sistemas humanos
operarem dentro dos limites dos sistemas naturais de suporte à vida (Fig. 1). Para isso, deve-se repensar
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os modelos de desenvolvimento atualmente em vigência. Isto se justifica pelo fato de nossas sociedades
serem diretamente impactadas pelos efeitos de suas próprias ações sobre o meio ambiente, por
mecanismos de retroalimentação
(feedbacks). Estes mecanismos são
como sinalizadores daquilo que vai
Sistema de suporte à vida na Terra bem ou mal num determinado contexto,
e servem de guia para mantermos ou
Sustentabilidade
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Ecosystem stewardship considera que mudanças fazem parte dos sistemas naturais e
sociais de nosso planeta, e não há como prever suas consequências (ou seja, existem
incertezas envolvidas). No entanto, em vez de procurar evitar tais mudanças, seu foco é
em como os sistemas socioecológicos podem se adaptar a elas, de modo que continuem
existindo ao longo do tempo. Em última análise, o ecosystem stewardship visa a
sustentabilidade, seja em nível local, regional ou mundial (Quadro 2).
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alta Ecosystem
stewardship
Uso
Sustentabilidade
exploração
baixa
tempo
Figura 3. Evolução dos paradigmas de gestão de recursos naturais ao longo do tempo e em função
da sustentabilidade, em nações ocidentais. Sociedades podem buscar a transição diretamente
para ecosystem stewardship (traduzido e adaptado de Chapin et al., 2009).
Você poderá notar que esta abordagem possui variados graus de afinidade com outras
que foram apresentadas neste livro. Isto ocorre pois elas compartilham bases teórico-
conceituais. Porém, o primeiro diferencial do ecosystem stewardship é sua natureza
razoavelmente aberta em relação a como atingir os objetivos propostos. A Gestão de Base
Ecossistêmica (capítulo 12) já apresenta uma proposta de metas e objetivos flexível. No
entanto, o ecosystem stewardship vai além, ao estabelecer algumas diretrizes básicas,
porém sem “engessar” o processo. Os objetivos são bem definidos - a flexibilidade se
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encontra nas formas de atingi-los, o que abre a possibilidade para uma gama de arranjos
e inovações. Seu foco não está em manejar um único recurso ou espécie, e sim em manter
a estrutura e propriedades funcionais dos sistemas que são importantes às sociedades
humanas, mesmo em condições de mudança e incerteza.
Estudo de caso 1. O caso de Kristianstads Vattenrike, Suécia (Fonte: Olsson, Folke e Hahn, 2004).
Kristianstads Vattenrike é uma região de áreas alagáveis na bacia hidrográfica do rio Helga, sul da Suécia
(Fig. 4). Essa área é englobada pelo perímetro da cidade de Kristianstad e atualmente reconhecida pela
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UNESCO como Reserva da Biosfera e sítio Ramsar (Zona Úmida de Importância Internacional) devido
a seu valor ecológico e social reconhecidos nacionalmente. Lá ocorrem espécies únicas da flora e fauna
descritas por Carl von Linné, e beleza natural inspiradora para vários autores suecos. Suas planícies são
utilizadas para agricultura; seus lagos, para recreação e seus aquíferos, para abastecimento e irrigação.
Desde o estabelecimento da cidade, em 1614, houve crescente aumento de pressão antrópica sobre as
áreas naturais e seus serviços ecossistêmicos. Observações e inventários indicavam um processo de perda
de bens naturais e culturais, e mudanças nesta trajetória de degradação foram disparadas pela percepção
da ameaça aos valores sociais e ecológicos locais, por parte de associações de proteção (steward
associations) e pelo governo local.
Um processo de auto-organização, junto à agência (isto é, ação) de um indivíduo-chave (indivíduo este
chamado, pelos autores, de steward dos ecossistemas locais), levou então à criação do Ecomuseum
Kristianstads Vattenrike (EKV). O EKV possibilitou o estabelecimento de um arranjo de cogestão
adaptativa (capítulo 11) dos ecossistemas locais, possibilitando a criação de alças de retroalimentação
(ou mecanismos de feedback) e a construção da resiliência no sistema socioecológico, transformando a
gestão da área. Isto foi possível devido à inclusão dos seres humanos como parte do ecossistema,
tornando inclusive a região mais acessível ao público. Fundamental também foi o papel de facilitador e
coordenador exercido tanto pelo indivíduo-chave, quanto pelo próprio EKV, nos processos de
colaboração local entre um grande número e diversidade de atores (autoridades locais, regionais,
nacionais, pesquisadores, proprietários de terras) para manter e restaurar os valores naturais e culturais
da área.
Mesmo não tendo sido enquadrado sob o nome de ecosystem stewardship (afinal, sua publicação foi
anterior à proposta da abordagem), este estudo é muito ilustrativo, pois apresenta seus principais
elementos.
Província de
Kronoberg
Suécia
Província
de Skåne Reserva da
Biosfera de
Kristianstad
Vattenrike
Na busca de um termo em português que abarque o que o ecosystem stewardship preconiza (não apenas
dos seus métodos, mas também as noções de gerenciamento de algo, cuidado, pertencimento, e também
a ética da terra de Aldo Leopold), algumas considerações devem ser feitas.
Stewardship pode ser traduzido para o português simplesmente como “administração”, “gestão”,
“gerenciamento”, “intendência”, “zeladoria”, com maior ou menor grau de fidelidade a seu significado
original. Porém, há alguns pormenores que dificultam a definição de um termo adequado no contexto de
gestão de recursos naturais. Por exemplo, os termos “gestão ambiental” ou “gerenciamento ambiental”
já são utilizados há mais tempo e estão consolidados na literatura. Frequentemente, ambos estão
associados a abordagens mais “clássicas”, que não assumem as mudanças e incertezas como condição
normal dos sistemas naturais e humanos. Pelo contrário, são abordagens que pressupõem a estabilidade
como algo desejável (por exemplo, modelo de gestão comando-e-controle, ou gestão de recursos de
estado estável – steady-state resource management).
“Administração”, por sua vez, é um termo muito próximo de “gestão”; “intendência” pode evocar uma
ideia de controle excessivo, assim como “guarda”, ambas associadas ao conceito de vigilância.
“Zeladoria” também não soa adequado ao contexto ambiental, talvez porque zeladores (de edifícios)
geralmente exerçam suas atividades mediante remuneração.
Assim, propomos CURADORIA DE ECOSSISTEMAS como tradução de ecosystem stewardship para
o português. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, temos que:
Portanto, concluímos que curador é “aquele que administra”, “aquele que tem cuidado e apreço”. O ato
de curar está relacionado com zelo, cuidado, atenção a algo. O termo engloba tanto a dimensão de se
administrar ou gerir algo, como também o zelo e apreço daquele que cuida em relação ao seu objeto de
curadoria, consoante com a proposta original.
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Neste contexto, faz sentido pensar que um curador ou guardião de ecossistemas pode
ser qualquer indivíduo cujas atitudes, sentimentos e valores em relação ao seu “sistema”
estejam alinhados com:
● cuidado e pertencimento;
● foco em aumento de resiliência ecossistêmica e bem-estar humano (ainda que o
indivíduo desconheça o que os conceitos acadêmicos signifiquem; muitos
indivíduos conhecem o conceito empiricamente);
● ações que moldam o futuro para lidar com mudanças e incertezas, e para manter
as características funcionais do sistema no qual se insere.
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gestão?
Sim. Até onde sabemos, a resposta não é fornecida explicitamente, porém pode ser
inferida consultando-se os principais trabalhos que discutem sobre o tema. Como já
apresentado, a curadoria de ecossistemas como abordagem para a gestão de recursos
naturais é uma forma de organizar o pensamento (um quadro analítico ou framework)
para delinear estratégias de gestão que visem a conservação dos recursos e a
sustentabilidade.
Por outro lado, é possível considerar, ao menos teoricamente, que, por sua
flexibilidade de caminhos para se atingir seus objetivos, a curadoria de ecossistemas pode
ser atingida com a implementação de outros arranjos de gestão de recursos naturais. Por
exemplo, pela co-gestão ou co-gestão adaptativa, como apresentado no Estudo de caso
1. Ou ainda, por ações mais práticas e empíricas, não pautadas no conceito acadêmico,
porém alinhadas com seus objetivos. Neste sentido, destacamos o interessante cenário de
ações em prol do meio ambiente e da comunidade ocorrendo após o ano de 2010 na cidade
de São Luiz do Paraitinga, no Alto Vale do Paraíba paulista (Estudo de caso 2).
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Estudo de caso 2. Ações de curadoria de ecossistemas no Vale do Paraíba Paulista (Fonte: Moraes,
2019; Moraes et al., in prep.)
A curadoria de ecossistemas para
transformações socioecológicas
desejáveis: o caso de São Luiz do
Paraitinga, SP. São Luiz do Paraitinga
é um município com pouco mais de 10
mil habitantes, no Alto Vale do Paraíba
paulista. Possui patrimônio cultural
riquíssimo: seu conjunto arquitetônico é
tombado estadual e nacionalmente, e
ainda retém diversas manifestações da
cultura popular, como danças e comidas
típicas (Fig. 5). Também possui
patrimônio natural significativo:
inserido no bioma da Mata Atlântica,
Figura 5. A Festa do Divino de 2016 na praça central de
tem aproximadamente 10% de sua área
São Luiz do Paraitinga, SP (Foto: A. R. Moraes).
coberta pelo Núcleo Santa Virgínia do
Parque Estadual da Serra do Mar. Os indicadores socioeconômicos, porém, colocam o município entre
os menos favorecidos do estado.
Após a grande inundação de 2010, em que o rio Paraitinga subiu 11 metros acima de seu nível normal,
danificando vários imóveis, porém sem qualquer perda humana, diversas iniciativas de curadoria de
ecossistemas foram iniciadas no município. Compreendeu-se que o histórico de uso e manejo da terra
na zona rural (Fig. 6) foi decisivo para este evento, pois causou compactação e erosão do solo, além de
assoreamento dos cursos d’água. Desta forma, o grande volume de chuvas encheu rapidamente os rios.
Portanto, muitas das iniciativas de curadoria da natureza observadas atualmente estão relacionadas à
melhoria das condições ambientais e também sociais do meio rural.
Podemos citar como exemplos os projetos desenvolvidos por uma rede de pessoas da sociedade civil, e
de agências dos governos estadual e municipal, em prol da conservação do meio rural e geração de renda
aos pequenos produtores. As ações realizadas englobam restauração ecológica, conversão de modos de
produção agropecuária convencionais em sistemas agroflorestais e silvipastoris, incentivo à produção
local agroecológica e fortalecimento de cadeias produtivas baseadas em produtos regionais, como o fruto
do palmito juçara (Euterpe edulis). Há também iniciativas desenvolvidas por membros da comunidade
local, como um projeto de educação ambiental construído conjuntamente entre uma OSCIP1 local,
professores da rede municipal de ensino e a secretaria municipal de educação: diagnósticos
socioambientais participativos da
zona rural; fomento a feiras de
produtos agrícolas e artesanatos
locais. Todas elas alinham-se aos
elementos de curadoria de
ecossistemas, contribuindo para a
provisão de serviços ecossistêmicos e
bem-estar das populações locais,
integrando processos sociais e
ecológicos em diferentes escalas e
visando o futuro.
O profundo conhecimento do
contexto local, a diversidade de
perspectivas e conhecimentos
individuais, indivíduos com forte Figura 6. Zona rural de São Luiz do Paraitinga atualmente:
mosaico de usos da terra (Foto: A.R. Moraes).
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Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
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Tabela 1. Tendência atual de serviços ecossistêmicos na bacia do Rio do Chapéu, município de São
Luiz do Paraitinga, SP, os mecanismos de feedback envolvidos e ações de curadoria de
ecossistemas observadas.
Serviço Tendência Exemplos de mecanismos de Ações de curadoria de
ecossistêmico atual feedback envolvidos ecossistemas
Solo Degradação Pecuária extensiva e pastos Uma rede colaborativa
(fertilidade) (perda de solo) degradados acentuam a perda de de técnicos e moradores
solo, causando seu empobrecimento incentiva pequenos
e baixa fertilidade, reforçando a produtores a adotarem
adoção de práticas de pecuária formas de manejo mais
extensiva e pastos degradados sustentáveis e que
(“precisa de mais área para levem a um incremento
continuar produzindo”). na produção.
Água Degradação O mecanismo de feedback descrito Ações descritas acima,
(diminuição da acima altera a qualidade e somadas a restauração
qualidade e disponibilidade de água, devido ao florestal e proteção de
disponibilidade) assoreamento de rios e nascentes. nascentes nos pastos.
Alimento Degradação Pouca mão de obra implica em baixa Iniciativa de um grupo
(agricultura) (baixa produção agrícola, baixa geração de de moradores do distrito
produção) renda que, por sua vez estimula a de Catuçaba, a Feirinha
saída do campo (abandono de da Vila estimula a
terras), reforçando a situação de produção agrícola local
pouca mão de obra disponível de pequena escala.
localmente.
Alimento Entre O mecanismo de feedback descrito As ações descritas para
(pecuária) manutenção para o solo implica em baixa o solo também afetam
(tradição produtividade da pecuária local; positivamente a
mantida por A baixa geração de renda através da produção pecuária;
proprietários pecuária local contribui para a estímulos à
rurais) e sensação de desvalorização do modo diversificação da
degradação de vida rural, desencorajando o produção com vistas ao
(baixa trabalho na pecuária e reforçando a aumento da renda
produtividade) baixa geração de renda. gerada e valorização do
modo de vida rural.
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NOVIDADES E AVANÇOS
Segundo seus proponentes, ecosystem stewardship não indica novas formas de atingir
objetivos antigos, mas sim uma mudança de paradigma na gestão de recursos naturais
(Tabela 2). Não é, portanto, “apenas” uma estratégia de gestão, mas também uma nova
maneira – ou mesmo uma ressignificação – da interação de nossa sociedade com a
natureza.
Sua flexibilidade, já mencionada, também se mostra como um avanço. Por sua
natureza abrangente, que ultrapassa os limites estabelecidos na gestão de recursos naturais
clássica, pode-se ter a impressão de que ecosystem stewardship é um conceito vago, difícil
ou inviável de ser colocado em prática. Tal impressão pode ser reforçada tanto pelo ainda
baixo número de estudos de caso disponíveis sob este conceito, quanto pelo delineamento
teórico enxuto, composto por poucas diretrizes (o que não é sinônimo de falta de
coerência ou robustez). Contudo, nos cabe perguntar: uma abordagem que advoga pela
flexibilidade de opções e oportunidades para a conservação e, em última instância, a
sustentabilidade, poderia ser diferente? Uma abordagem pautada por regras
demasiadamente minuciosas ou rígidas, algo como uma “receita de bolo”, poderia de fato
englobar em seus métodos a flexibilidade de opções? Com os elementos ou ingredientes
básicos do ecosystem stewardship, podemos ter como resultado não necessariamente um
bolo, mas sim, algo comestível e saboroso: um pão, uma massa, um sonho, uma torta, ou
mesmo um bolo, por que não?
Outro ponto que deve ser destacado é a postura proativa e não reativa normalmente
praticada nos modelos de gestão. Em vez de “correr atrás do prejuízo”, o ecosystem
stewardship propõe a preparação intencional e planejada para mudanças (inclusive
prevenindo aquela consideradas indesejáveis), incertezas e transformação. Além da
proatividade, esta abordagem tem também um caráter responsivo, isto é, atento aos
“sinais” que o sistema envia sobre o seu estado, para que se façam os ajustes necessários
nas ações de gestão. Estes “sinais” são os mecanismos de retroalimentação, nos quais o
ecosystem stewardship se propõe focar.
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Tabela 2. Diferenças entre dois paradigmas de gestão de recursos naturais, gestão de estado estável
e ecosystem stewardship (traduzido e adaptado de Chapin et al., 2009; Chapin et al. 2015).
DESAFIOS
Em nosso entender, a curadoria de ecossistemas pode ser vista como um caminho
pelo qual as sociedades que veem a si próprias como algo à parte, desconectadas dos
ecossistemas dos quais dependem, possam ressignificar seus valores em relação à
natureza e seu próprio relacionamento com ela. Este argumento fica mais palpável nos
exemplos de iniciativas desenvolvidas em ambientes urbanos, mas é preciso deixar claro
que não se trata apenas destes casos. A abordagem tem uma clara proposta de conexão
entre diferentes níveis e escalas, transcendendo assim os limites entre urbano e rural; entre
os municípios, estados e países; entre ambientes “naturais”/ecossistemas e ambientes
antropizados; entre fatores ecológicos e sociais. Porém, como reconectar nossas
sociedades à natureza, quando os estímulos para esse afastamento são intensos e estão por
toda parte? Exemplos na literatura indicam a percepção da degradação da qualidade
ambiental ou mesmo desastres ambientais como vetores para o início de iniciativas de
curadoria de ecossistemas. Quantos desastres ainda serão necessários, no entanto?
De qualquer forma, a curadoria de ecossistemas possibilita esta reconexão com a
biosfera em diversos níveis, desde percepções e valores individuais, até instituições e
arranjos de governança, como podemos ver em alguns exemplos citados. O maior desafio
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talvez seja sua implantação efetiva através das escalas em sociedades ainda permeadas
por interesses conflitantes (por exemplo, individual x coletivo; curto-prazo x longo-
prazo) e tensões as mais diversas, desde o nível micro até o macro.
A transformação rumo a uma nova ética em relação à biosfera requer tanto um
despertamento individual, quanto a criação e existência de mecanismos de regulação
formais e informais que de fato inibam, cada vez mais, práticas insustentáveis e fomentem
um respeito à natureza, considerando-se o contexto atual de mudança e incertezas. É
possível aprender com grupos que possuem uma postura de curadoria de ecossistemas
culturalmente arraigada e, em grupos onde esta ética pela natureza é ignorada ou
encontra-se enfraquecida, as regulações formais (como, por exemplo, sanções), são
fundamentais.
RECAPITULANDO
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MATERIAL COMPLEMENTAR
REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO
1. Ashley, C., & Carney, D. (1999). Sustainable livelihoods: Lessons from early
experience (Vol. 7, No. 1). London: Department for International Development.
2. Chapin, F. S., Folke, C., & Kofinas, G. P. (2009). Principles of ecosystem
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