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SEIXAS, C.S., FARINACI, J.S., ISLAS, C.A. (Orgs), em preparação.

Gestão de Recursos Naturais de Uso


Comum: Perspectivas Teóricas e Aplicadas. Proibida circulação fora da disciplina.

CAPÍTULO 13

ECOSYSTEM STEWARDSHIP

Alice Ramos de Moraes

MENSAGENS-CHAVE

● Ecosystem stewardship é uma proposta na vanguarda da gestão de recursos


naturais, que ressalta a necessidade de (i) se promover tanto a resiliência dos
ecossistemas quanto o bem-estar humano; (ii) integrar processos ecológicos e
sociais através de diferentes escalas e níveis, e (iii) focar em ações que moldem o
futuro, em vez de se procurar restabelecer condições do passado.
● Esta abordagem traz em si noções de cuidado e pertencimento por parte dos
indivíduos que compõem um sistema socioecológico, colocadas em prática
através de uma postura responsiva, proativa e protagonista.
● Para além de uma abordagem de gestão de recursos per se, o ecosystem
stewardship fornece oportunidades para reflexões mais profundas acerca de
valores e motivações, para a reconexão de nossas sociedades com a natureza.

INTRODUÇÃO

A natureza complexa e diversificada dos problemas ambientais da atualidade nos


indica a necessidade de novas perspectivas em termos de gestão de recursos naturais, e
de nosso próprio relacionamento com a natureza. Já vimos anteriormente (capítulos 6)
que abordagens “clássicas” de gestão de recursos, como as que buscam a estabilidade e
comando-e-controle, são insuficientes para lidar com tais desafios socioambientais.
Também vimos que, devido à natureza complexa dos sistemas socioecológicos (capítulos
4 e 5), dificilmente teremos sucesso ao procurar soluções individuais para cada problema,
de forma desconectada do todo no qual estão inseridos. Isto não significa que é preciso
abraçar toda a complexidade a todo o momento - o que seria paralisante! Porém, deve-se
manter em mente que o objeto a ser manejado (um ou mais recursos, habitat, ecossistema)
não se encontra isolado. Qualquer elemento do sistema socioecológico é conectado a
diversos outros e é afetado por múltiplos fatores, em diferentes níveis e escalas.
O ecosystem stewardship, abordagem de gestão de recursos naturais apresentada

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neste capítulo, reconhece e endereça essa complexidade. Com o objetivo de, em linhas
gerais, manter a função dos sistemas naturais que influenciam o bem-estar humano,
ressalta a importância de ações que priorizem tanto o sistema natural, quanto o sistema
social (e não um em detrimento do outro).
Neste capítulo, temos como objetivo apresentar uma compilação robusta do
conhecimento a respeito de ecosystem stewardship, de forma que você consiga
compreender do que se trata a abordagem, quais suas contribuições e sua aplicabilidade.
Assim, é possível que você possa inclusive aplicá-la em seu próprio trabalho envolvendo
a gestão de recursos naturais. Os principais aspectos que abordaremos no capítulo serão
sua contextualização teórica, definição do conceito, exemplos e considerações
importantes sobre seu uso na literatura.

ECOSYSTEM STEWARDSHIP: CONCEITO E CONTEXTUALIZAÇÃO


TEÓRICA

Definição

Ecosystem stewardship é uma abordagem para a gestão de recursos naturais de


uso comum ou não, que surgiu com a publicação do livro “Principles of Ecosystem
Stewardship: resilience-based natural resource management in a changing world”,
editado por F. Stuart Chapin III, Carl Folke e Gary P. Kofinas em 2009. Esses autores
definem como objetivo central desta abordagem “sustentar a capacidade de prover
serviços ecossistêmicos dos quais depende o bem-estar humano sob condições de
incerteza e mudanças”. Ou seja, o ecosystem stewardship promove a conservação - da
biodiversidade, dos recursos naturais, dos serviços ecossistêmicos, dos sistemas naturais
- sem perder de vista que estes são fundamentais para a sobrevivência e prosperidade das
sociedades humanas (Quadro 1).

Quadro 1. Sistemas humanos são dependentes e intimamente conectados aos sistemas naturais.
Como ocorre em outras abordagens apresentadas nesta seção 5, ecosystem stewardship enfatiza a
dependência que os sistemas humanos têm em relação aos sistemas naturais, ainda que não seja
reconhecida amplamente pela sociedade. Esta abordagem se destaca por ter como objetivo “sustentar a
capacidade de prover serviços ecossistêmicos”. Afinal, é desses serviços que depende nossa
sobrevivência, qualidade de vida e bem-estar (capítulo 3). Em outras palavras, todas as sociedades
humanas precisam da natureza funcionando bem para continuarem existindo e prosperarem.
Os proponentes desta abordagem argumentam a respeito da necessidade de os sistemas humanos
operarem dentro dos limites dos sistemas naturais de suporte à vida (Fig. 1). Para isso, deve-se repensar

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os modelos de desenvolvimento atualmente em vigência. Isto se justifica pelo fato de nossas sociedades
serem diretamente impactadas pelos efeitos de suas próprias ações sobre o meio ambiente, por
mecanismos de retroalimentação
(feedbacks). Estes mecanismos são
como sinalizadores daquilo que vai
Sistema de suporte à vida na Terra bem ou mal num determinado contexto,
e servem de guia para mantermos ou
Sustentabilidade

modificarmos as ações que os estão


Sociedades humanas
causando.
Em sistemas socioecológicos, ações
Sistemas
geradas no sistema social resultam em
econômicos efeitos no sistema ecológico, que
incidem novamente sobre o próprio
sistema social. Em um exemplo
simples, a agricultura de corte-e-
queima praticada em diversas regiões
Figura 1. Sociedades humanas e seus respectivos sistemas do Brasil pressupõe a derrubada e
econômicos estão constrangidos pela capacidade da Terra em queima da floresta para o plantio.
fornecer condições de suporte à vida. A sustentabilidade Decorrido certo período de tempo, de
socioecológica é alcançada quando se opera dentro destes
acordo com a intensidade e técnicas de
limites (traduzido e adaptado de Chapin, Folke & Kofinas,
2009). cultivo, a fertilidade do solo diminui e
o agricultor, quando atento a este sinal
(Fig. 2), responde a este feedback de alguma forma. Ele pode: deixar aquela área “descansar” e mover
sua cultura para outro local, como fazem muitas populações tradicionais; adotar técnicas de manejo que
favoreçam a fertilidade do solo (e.g. rotação de culturas); aumentar a área de produção para compensar
(o que implicará em uma área maior estando sujeita à perda de fertilidade do solo); ou ainda, ele poderá
optar pelo uso de fertilizantes
químicos, sem os quais não será
mais possível manter sua
produção. Porém, muitas vezes,
esses mecanismos de [E] [A]
retroalimentação são
ignorados, levando a um
agravamento de problemas
ambientais. Mas como assim, Figura 2. Exemplo de mecanismos de retroalimentação em
ignorados? Ainda no mesmo sistemas socioecológicos. O feedback é estabilizador [E] se os
exemplo, o agricultor alheio à efeitos de uma variável sobre a outra são contrários. Quando as
diminuição da fertilidade do solo variáveis reforçam-se mutuamente, há um feedback amplificador
ou incapaz de tomar alguma [A].
medida por falta de recursos, provavelmente continuará a cultivar naquela área, do mesmo modo como
vinha fazendo até então, apesar de perceber que sua produção está diminuindo. Isto ocorrerá até o ponto
em que será inviável prosseguir da mesma forma, e o agricultor se verá constrangido a tomar atitudes
drásticas e/ou onerosas para recuperar o seu solo e sua produção.
Ecosystem stewardship propõe justamente focar nos mecanismos de retroalimentação, ampliando o
universo da gestão de recursos naturais para englobar dimensões humanas mais profundas, como valores
éticos, morais, relações de poder. Segundo Chapin e colaboradores (2015), “não é possível atingir a
resiliência ecológica sem mudanças sociais, e não é possível atingir bem-estar humano sem resiliência
ecológica”. Ou seja, soluções eficazes de gestão de recursos naturais devem ser boas não apenas para a
natureza, mas também para as pessoas, e vice-versa.

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Elementos centrais e conceitos relacionados


Como esperado de uma abordagem de gestão de recursos naturais, o ecosystem
stewardship se propõe a fornecer uma estrutura conceitual para o delineamento de ações
concretas. Estas ações, por sua vez, devem levar em consideração os seguintes elementos:
(a) o objetivo duplo desta abordagem, que visa atingir resiliência ecossistêmica e
bem-estar humano: estratégias usuais de conservação geralmente têm como foco
uma ou mais espécies ou ainda seu habitat, independentemente do bem-estar das
comunidades associadas (bem-estar humano é entendido aqui em termos mais
abrangentes, conforme discutido no capítulo 3).
(b) a integração de processos ecológicos e sociais através das diferentes escalas:
desde o nível local até o nível planetário, estratégias de ecosystem stewardship
devem estar atentas à integração das ações nas escalas espacial, temporal,
institucional, e de governança.
(c) ações que moldam o futuro, em vez de focar os esforços em retornar a condições
do passado.
Neste contexto, é interessante ressaltar os principais conceitos que fundamentam a
abordagem de ecosystem stewardship:
● Sistema socioecológico: este conceito surge da compreensão de que sociedades
humanas e ecossistemas encontram-se intimamente ligados (capítulo 5). Enquanto
as sociedades dependem dos recursos e serviços dos ecossistemas, estes, por sua
vez, são influenciados pelas atividades humanas, em variados graus. Os sistemas
ecológico e social são indissociáveis, já que mudanças em um acarretam
alterações no outro;
● Resiliência: é uma propriedade dos sistemas complexos (capítulo 4), entendida
aqui como sua capacidade de responder a mudanças (sejam sociais, ambientais ou
econômicas) mantendo sua forma e função, ou seja, mantendo sua estrutura,
identidade e mecanismos de retroalimentação;
● Ecossistema: o conjunto formado pela comunidade biológica (produtores
primários, consumidores, decompositores, detritívoros) e o ambiente abiótico
onde está inserida (que fornece as condições para a vida, capturando e liberando
energia e matéria). Os ecossistemas fornecem uma gama de funções e serviços
que impactam diretamente as sociedades humanas e seu bem-estar (capítulo 3).
● Serviços ecossistêmicos: são os benefícios da natureza (ou dos ecossistemas) para
as pessoas, que influenciam seu bem-estar (capítulo 3). Vale ressaltar que se pode

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entender os serviços ecossistêmicos não apenas como um “produto” dos


ecossistemas stricto sensu, mas como produtos da interação entre as pessoas e os
ecossistemas (sistema socioecológico), como no caso da produção agrícola, por
exemplo;
● Stewardship: termo em inglês que pressupõe um senso de responsabilidade das
pessoas pelo sistema do qual fazem parte.

Ecosystem stewardship considera que mudanças fazem parte dos sistemas naturais e
sociais de nosso planeta, e não há como prever suas consequências (ou seja, existem
incertezas envolvidas). No entanto, em vez de procurar evitar tais mudanças, seu foco é
em como os sistemas socioecológicos podem se adaptar a elas, de modo que continuem
existindo ao longo do tempo. Em última análise, o ecosystem stewardship visa a
sustentabilidade, seja em nível local, regional ou mundial (Quadro 2).

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Quadro 2. Ecosystem stewardship e sustentabilidade.

Construído sobre um corpo de conhecimento até então na vanguarda da ciência da conservação e


sustentabilidade (Fig. 3), o ecosystem stewardship representa o estado-da-arte em termos de gestão de
recursos naturais. Esta abordagem visa atingir a sustentabilidade através de ações em três eixos
complementares:
(i) redução da vulnerabilidade dos sistemas socioecológicos às mudanças esperadas: ações neste
sentido podem ocorrer pela redução da exposição dos sistemas a riscos e situações de estresse,
reconhecendo as ameaças atuais e os mecanismos existentes para atenuá-las. Para tal, é importante o
conhecimento tanto da dinâmica do ecossistema em questão, quanto das interações socioecológicas.
Adicionalmente, neste eixo estão contempladas também ações para diminuir a susceptibilidade do
sistema socioecológico a impactos negativos, por exemplo através da sustentação do capital social e
natural e incentivo a alternativas viáveis de modos de vida;
(ii) fomento da resiliência e capacidade adaptativa, para sustentar condições desejáveis frente a
perturbações e mudanças: ações neste sentido podem estimular a diversidade em diversos sentidos
(biológica, cultural, social); o aprendizado e a inovação no contexto da gestão de recursos; ajustes do
sistema socioecológico frente a mudanças, que mantenham o capital natural e social; arranjos de
governança flexíveis (capítulos 14);
(iii) transformação de trajetórias indesejáveis frente a oportunidades: ações neste eixo vão desde a
preparação para a transformação (identificando problemas, alternativas, barreiras, oportunidades),
passando pela transição em si e construindo a resiliência do novo estado do sistema. É fundamental
entender quais os fatores que podem aumentar ou diminuir a chance de a transformação ocorrer.

alta Ecosystem
stewardship

Uso
Sustentabilidade

pré- Gestão ecossistêmica


indus-
trial
Gestão de recursos
de estado estável

exploração

baixa
tempo

Figura 3. Evolução dos paradigmas de gestão de recursos naturais ao longo do tempo e em função
da sustentabilidade, em nações ocidentais. Sociedades podem buscar a transição diretamente
para ecosystem stewardship (traduzido e adaptado de Chapin et al., 2009).

Você poderá notar que esta abordagem possui variados graus de afinidade com outras
que foram apresentadas neste livro. Isto ocorre pois elas compartilham bases teórico-
conceituais. Porém, o primeiro diferencial do ecosystem stewardship é sua natureza
razoavelmente aberta em relação a como atingir os objetivos propostos. A Gestão de Base
Ecossistêmica (capítulo 12) já apresenta uma proposta de metas e objetivos flexível. No
entanto, o ecosystem stewardship vai além, ao estabelecer algumas diretrizes básicas,
porém sem “engessar” o processo. Os objetivos são bem definidos - a flexibilidade se

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encontra nas formas de atingi-los, o que abre a possibilidade para uma gama de arranjos
e inovações. Seu foco não está em manejar um único recurso ou espécie, e sim em manter
a estrutura e propriedades funcionais dos sistemas que são importantes às sociedades
humanas, mesmo em condições de mudança e incerteza.

STEWARDSHIP: SIGNIFICADO, ORIGEM E CONSIDERAÇÕES


NECESSÁRIAS

Examinando o significado de stewardship


Simplificadamente, esta palavra, em inglês, carrega o conceito de alguém como
responsável por um lugar – uma casa, um espaço. Algo como um guardião, zelador,
administrador ou um gestor. Ela traz a noção de cuidado de alguém por algum lugar, e
também, o pertencimento deste alguém em relação ao espaço sob sua responsabilidade.
Isto é altamente significativo em uma abordagem que visa a gestão de recursos naturais,

Figura SEQ Figura \* ARABIC 2. (extraída de


pois abre caminho para outros aspectos da dimensão humana para além da gestão em si:
Chapin et al 2009a)
aspectos culturais de conexão com a terra ou com os ecossistemas podem fornecer
reflexões e considerações interessantes sobre os comportamentos ou até mesmo os
valores que orientam ou impedem ações de ecosystem stewardship. Por exemplo, o senso
de pertencimento pode motivar ações de ecosystem stewardship em nível local, quando
um conjunto de pessoas valoriza um lugar por razões similares, e as condições do lugar
estão deteriorando (Estudo de caso 1). Modos de vida e os conhecimentos ecológicos
locais ou tradicionais associados (capítulo 10) também podem contribuir para ações de
ecosystem stewardship, na medida em que promovem a integração de processos
ecológicos e sociais entre escalas, e são responsáveis pela diversidade nos sistemas
socioecológicos. Para que isto ocorra, porém, é necessário haver compartilhamento de
poder e engajamento com tais comunidades (capítulo 8).

Estudo de caso 1. O caso de Kristianstads Vattenrike, Suécia (Fonte: Olsson, Folke e Hahn, 2004).

Para além do co-manejo adaptativo: Kristianstads Vattenrike sob a lente do ecosystem


stewardship

Kristianstads Vattenrike é uma região de áreas alagáveis na bacia hidrográfica do rio Helga, sul da Suécia
(Fig. 4). Essa área é englobada pelo perímetro da cidade de Kristianstad e atualmente reconhecida pela

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UNESCO como Reserva da Biosfera e sítio Ramsar (Zona Úmida de Importância Internacional) devido
a seu valor ecológico e social reconhecidos nacionalmente. Lá ocorrem espécies únicas da flora e fauna
descritas por Carl von Linné, e beleza natural inspiradora para vários autores suecos. Suas planícies são
utilizadas para agricultura; seus lagos, para recreação e seus aquíferos, para abastecimento e irrigação.
Desde o estabelecimento da cidade, em 1614, houve crescente aumento de pressão antrópica sobre as
áreas naturais e seus serviços ecossistêmicos. Observações e inventários indicavam um processo de perda
de bens naturais e culturais, e mudanças nesta trajetória de degradação foram disparadas pela percepção
da ameaça aos valores sociais e ecológicos locais, por parte de associações de proteção (steward
associations) e pelo governo local.
Um processo de auto-organização, junto à agência (isto é, ação) de um indivíduo-chave (indivíduo este
chamado, pelos autores, de steward dos ecossistemas locais), levou então à criação do Ecomuseum
Kristianstads Vattenrike (EKV). O EKV possibilitou o estabelecimento de um arranjo de cogestão
adaptativa (capítulo 11) dos ecossistemas locais, possibilitando a criação de alças de retroalimentação
(ou mecanismos de feedback) e a construção da resiliência no sistema socioecológico, transformando a
gestão da área. Isto foi possível devido à inclusão dos seres humanos como parte do ecossistema,
tornando inclusive a região mais acessível ao público. Fundamental também foi o papel de facilitador e
coordenador exercido tanto pelo indivíduo-chave, quanto pelo próprio EKV, nos processos de
colaboração local entre um grande número e diversidade de atores (autoridades locais, regionais,
nacionais, pesquisadores, proprietários de terras) para manter e restaurar os valores naturais e culturais
da área.
Mesmo não tendo sido enquadrado sob o nome de ecosystem stewardship (afinal, sua publicação foi
anterior à proposta da abordagem), este estudo é muito ilustrativo, pois apresenta seus principais
elementos.

Província de
Kronoberg

Suécia

Província
de Skåne Reserva da
Biosfera de
Kristianstad
Vattenrike

Figura 4. Localização da reserva da Biosfera de Kristianstad Vattenrike, sul da Suécia – área em


vermelho-claro no mapa (traduzido e adaptado de Tuvendal & Elmqvist, 2011).

Ainda sobre as noções de responsabilidade e pertencimento ao sistema de recursos a


ser gerido (Quadro 3), implícitas no significado de stewardship, este conceito se relaciona
com/se inspira em a ética da terra de Aldo Leopold (1887 - 1948). Tido como figura
central no movimento conservacionista norte-americano, Leopold considera a terra como
um organismo que requer cuidado e respeito. Argumenta que ela engloba inúmeros seres,
pois é construída com a contribuição das espécies que ali vivem, e afirma que

“quando virmos a terra como uma comunidade à qual pertencemos,


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talvez comecemos a usá-la com amor e respeito (...). Que a terra é


uma comunidade é o conceito de básico da Ecologia, mas que a
terra deve ser amada e respeitada, é uma extensão da ética”.
E ainda,
“Uma ética da terra, portanto, reflete a existência de uma
consciência ecológica, e isto, por sua vez, reflete a convicção de
uma responsabilidade individual pela saúde da terra. Saúde é a
capacidade da terra em se auto-renovar. Conservação é o esforço
para se entender e preservar esta capacidade”.

Quadro 3. E em português? Istuardi... quê??

Na busca de um termo em português que abarque o que o ecosystem stewardship preconiza (não apenas
dos seus métodos, mas também as noções de gerenciamento de algo, cuidado, pertencimento, e também
a ética da terra de Aldo Leopold), algumas considerações devem ser feitas.
Stewardship pode ser traduzido para o português simplesmente como “administração”, “gestão”,
“gerenciamento”, “intendência”, “zeladoria”, com maior ou menor grau de fidelidade a seu significado
original. Porém, há alguns pormenores que dificultam a definição de um termo adequado no contexto de
gestão de recursos naturais. Por exemplo, os termos “gestão ambiental” ou “gerenciamento ambiental”
já são utilizados há mais tempo e estão consolidados na literatura. Frequentemente, ambos estão
associados a abordagens mais “clássicas”, que não assumem as mudanças e incertezas como condição
normal dos sistemas naturais e humanos. Pelo contrário, são abordagens que pressupõem a estabilidade
como algo desejável (por exemplo, modelo de gestão comando-e-controle, ou gestão de recursos de
estado estável – steady-state resource management).
“Administração”, por sua vez, é um termo muito próximo de “gestão”; “intendência” pode evocar uma
ideia de controle excessivo, assim como “guarda”, ambas associadas ao conceito de vigilância.
“Zeladoria” também não soa adequado ao contexto ambiental, talvez porque zeladores (de edifícios)
geralmente exerçam suas atividades mediante remuneração.
Assim, propomos CURADORIA DE ECOSSISTEMAS como tradução de ecosystem stewardship para
o português. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, temos que:

Curadoria, do latim curatoria: ato, processo, efeito de curar; cuidado.


Curar, do latim curo, as, avi, atum, are: cuidar, tratar, zelar, limpar. Ver cur-.
Cur- (elemento de composição antepositivo) do latim cura,ae: cuidado, preocupação, direção,
administração, guarda, vigia, intendente, superintendente, donde curator,oris é o que está encarregado
de alguma coisa, inspetor, curador, caseiro.

Portanto, concluímos que curador é “aquele que administra”, “aquele que tem cuidado e apreço”. O ato
de curar está relacionado com zelo, cuidado, atenção a algo. O termo engloba tanto a dimensão de se
administrar ou gerir algo, como também o zelo e apreço daquele que cuida em relação ao seu objeto de
curadoria, consoante com a proposta original.

Quem são os curadores ou guardiões (stewards) de ecossistemas?


Entendemos que “natureza” é sinônimo coloquial de sistema socioecológico (que, por
sua vez, engloba o conceito de ecossistema). Fazendo referência ao termo proposto em

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português, um curador de ecossistemas, portanto, desenvolve ações alinhadas aos


princípios de curadoria de ecossistemas explicitados anteriormente, seja em relação a
ecossistemas, paisagens, territórios, sistemas socioecológicos, biomas.
Outra elucidação importante é que não nos referimos a posse - ou seja, não é
necessário ser um proprietário de terras para agir como um curador de ecossistemas.
“Nossa relação com a terra é de cuidado com nosso território, e não de posse do Alasca”
- esta fala foi pronunciada por um nativo do Alasca durante uma reunião do Projeto
Community Partnerships for Self-Reliance, em 2017, no qual membros da Universidade
do Alasca em Fairbanks (UAF), EUA, trabalham lado a lado com algumas comunidades
nativas daquele estado para lidar com desafios relativos às mudanças ambientais globais.

Neste contexto, faz sentido pensar que um curador ou guardião de ecossistemas pode
ser qualquer indivíduo cujas atitudes, sentimentos e valores em relação ao seu “sistema”
estejam alinhados com:
● cuidado e pertencimento;
● foco em aumento de resiliência ecossistêmica e bem-estar humano (ainda que o
indivíduo desconheça o que os conceitos acadêmicos signifiquem; muitos
indivíduos conhecem o conceito empiricamente);
● ações que moldam o futuro para lidar com mudanças e incertezas, e para manter
as características funcionais do sistema no qual se insere.

Como no exemplo apresentado nos Estudos de caso 1 e 2 (a seguir), ações de


curadoria de ecossistemas podem ocorrer em decorrência da auto-organização de
determinada comunidade (neste exemplo existe a figura de um curador, porém é possível
que apenas através de suas ações, sem os elementos de auto-organização, os resultados
alcançados ficariam aquém do que realmente ocorreu). Isto não significa, porém, que não
é necessária a figura de um gestor. Neste caso, o gestor formalmente designado (por
exemplo, o gestor de uma área protegida) seguiria princípios alinhados à curadoria de
ecossistemas.
Esta abordagem de gestão de recursos naturais empodera os indivíduos que compõem
o sistema, permitindo que os mesmos sejam protagonistas e não apenas espectadores das
decisões sobre a gestão ambiental do território.

A curadoria de ecossistemas pode também ser alcançada por outras estratégias de

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gestão?
Sim. Até onde sabemos, a resposta não é fornecida explicitamente, porém pode ser
inferida consultando-se os principais trabalhos que discutem sobre o tema. Como já
apresentado, a curadoria de ecossistemas como abordagem para a gestão de recursos
naturais é uma forma de organizar o pensamento (um quadro analítico ou framework)
para delinear estratégias de gestão que visem a conservação dos recursos e a
sustentabilidade.
Por outro lado, é possível considerar, ao menos teoricamente, que, por sua
flexibilidade de caminhos para se atingir seus objetivos, a curadoria de ecossistemas pode
ser atingida com a implementação de outros arranjos de gestão de recursos naturais. Por
exemplo, pela co-gestão ou co-gestão adaptativa, como apresentado no Estudo de caso
1. Ou ainda, por ações mais práticas e empíricas, não pautadas no conceito acadêmico,
porém alinhadas com seus objetivos. Neste sentido, destacamos o interessante cenário de
ações em prol do meio ambiente e da comunidade ocorrendo após o ano de 2010 na cidade
de São Luiz do Paraitinga, no Alto Vale do Paraíba paulista (Estudo de caso 2).

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Estudo de caso 2. Ações de curadoria de ecossistemas no Vale do Paraíba Paulista (Fonte: Moraes,
2019; Moraes et al., in prep.)
A curadoria de ecossistemas para
transformações socioecológicas
desejáveis: o caso de São Luiz do
Paraitinga, SP. São Luiz do Paraitinga
é um município com pouco mais de 10
mil habitantes, no Alto Vale do Paraíba
paulista. Possui patrimônio cultural
riquíssimo: seu conjunto arquitetônico é
tombado estadual e nacionalmente, e
ainda retém diversas manifestações da
cultura popular, como danças e comidas
típicas (Fig. 5). Também possui
patrimônio natural significativo:
inserido no bioma da Mata Atlântica,
Figura 5. A Festa do Divino de 2016 na praça central de
tem aproximadamente 10% de sua área
São Luiz do Paraitinga, SP (Foto: A. R. Moraes).
coberta pelo Núcleo Santa Virgínia do
Parque Estadual da Serra do Mar. Os indicadores socioeconômicos, porém, colocam o município entre
os menos favorecidos do estado.
Após a grande inundação de 2010, em que o rio Paraitinga subiu 11 metros acima de seu nível normal,
danificando vários imóveis, porém sem qualquer perda humana, diversas iniciativas de curadoria de
ecossistemas foram iniciadas no município. Compreendeu-se que o histórico de uso e manejo da terra
na zona rural (Fig. 6) foi decisivo para este evento, pois causou compactação e erosão do solo, além de
assoreamento dos cursos d’água. Desta forma, o grande volume de chuvas encheu rapidamente os rios.
Portanto, muitas das iniciativas de curadoria da natureza observadas atualmente estão relacionadas à
melhoria das condições ambientais e também sociais do meio rural.
Podemos citar como exemplos os projetos desenvolvidos por uma rede de pessoas da sociedade civil, e
de agências dos governos estadual e municipal, em prol da conservação do meio rural e geração de renda
aos pequenos produtores. As ações realizadas englobam restauração ecológica, conversão de modos de
produção agropecuária convencionais em sistemas agroflorestais e silvipastoris, incentivo à produção
local agroecológica e fortalecimento de cadeias produtivas baseadas em produtos regionais, como o fruto
do palmito juçara (Euterpe edulis). Há também iniciativas desenvolvidas por membros da comunidade
local, como um projeto de educação ambiental construído conjuntamente entre uma OSCIP1 local,
professores da rede municipal de ensino e a secretaria municipal de educação: diagnósticos
socioambientais participativos da
zona rural; fomento a feiras de
produtos agrícolas e artesanatos
locais. Todas elas alinham-se aos
elementos de curadoria de
ecossistemas, contribuindo para a
provisão de serviços ecossistêmicos e
bem-estar das populações locais,
integrando processos sociais e
ecológicos em diferentes escalas e
visando o futuro.
O profundo conhecimento do
contexto local, a diversidade de
perspectivas e conhecimentos
individuais, indivíduos com forte Figura 6. Zona rural de São Luiz do Paraitinga atualmente:
mosaico de usos da terra (Foto: A.R. Moraes).

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Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.

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senso de pertencimento e agência no território são ingredientes que favorecem a articulação e


implantação de tais iniciativas.
Na tabela 1 apresentamos a tendência atual de alguns dos serviços ecossistêmicos considerados críticos
em uma porção da zona rural do município (a Bacia do Rio do Chapéu), os mecanismos de feedback
afetando esses serviços localmente, e as iniciativas de curadoria de ecossistemas que endereçam esses
mecanismos.

Tabela 1. Tendência atual de serviços ecossistêmicos na bacia do Rio do Chapéu, município de São
Luiz do Paraitinga, SP, os mecanismos de feedback envolvidos e ações de curadoria de
ecossistemas observadas.
Serviço Tendência Exemplos de mecanismos de Ações de curadoria de
ecossistêmico atual feedback envolvidos ecossistemas
Solo Degradação Pecuária extensiva e pastos Uma rede colaborativa
(fertilidade) (perda de solo) degradados acentuam a perda de de técnicos e moradores
solo, causando seu empobrecimento incentiva pequenos
e baixa fertilidade, reforçando a produtores a adotarem
adoção de práticas de pecuária formas de manejo mais
extensiva e pastos degradados sustentáveis e que
(“precisa de mais área para levem a um incremento
continuar produzindo”). na produção.
Água Degradação O mecanismo de feedback descrito Ações descritas acima,
(diminuição da acima altera a qualidade e somadas a restauração
qualidade e disponibilidade de água, devido ao florestal e proteção de
disponibilidade) assoreamento de rios e nascentes. nascentes nos pastos.
Alimento Degradação Pouca mão de obra implica em baixa Iniciativa de um grupo
(agricultura) (baixa produção agrícola, baixa geração de de moradores do distrito
produção) renda que, por sua vez estimula a de Catuçaba, a Feirinha
saída do campo (abandono de da Vila estimula a
terras), reforçando a situação de produção agrícola local
pouca mão de obra disponível de pequena escala.
localmente.
Alimento Entre O mecanismo de feedback descrito As ações descritas para
(pecuária) manutenção para o solo implica em baixa o solo também afetam
(tradição produtividade da pecuária local; positivamente a
mantida por A baixa geração de renda através da produção pecuária;
proprietários pecuária local contribui para a estímulos à
rurais) e sensação de desvalorização do modo diversificação da
degradação de vida rural, desencorajando o produção com vistas ao
(baixa trabalho na pecuária e reforçando a aumento da renda
produtividade) baixa geração de renda. gerada e valorização do
modo de vida rural.

As diversas faces de stewardship na literatura científica


Na literatura científica, stewardship aparece em diversos trabalhos da área ambiental,
porém nem sempre como uma abordagem de gestão de recursos, tampouco relacionado
de maneira consistente com a proposta apresentada neste capítulo. Frequentemente o
termo é utilizado de forma mais “solta”, possivelmente por conta do próprio significado

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da palavra. Alguns trabalhos apresentam o termo environmental stewardship como


sinônimo de esquemas agroambientais (agri-environmental schemes, ideia
aparentemente análoga ao pagamento por serviços ambientais – capítulo 3) na Inglaterra,
ou como sinônimo de práticas ecológicas cívicas em centros urbanos; land stewardship
como o uso ou gestão sustentável da terra na Austrália.
Em termos de abordagens científicas de gestão, existe na literatura recente o conceito
landscape stewardship, relativo ao planejamento de paisagens. Neste caso, stewardship
é tratado de forma holística, fazendo referência a um conjunto de ações de gestão que
sustentam espécies, sua paisagem circundante e sua estrutura. Com outro enfoque,
planetary stewardship é proposto como um chamado ao engajamento profundo entre as
ciências, humanidades e engenharias, com vistas à rápida redução do impacto antrópico
à biosfera. Já Earth stewardship diz respeito a uma nova agenda de pesquisa adotada pela
Ecological Society of America (ESA) construída sobre planetary stewardship e ecosystem
stewardship. Por fim, este mesmo conceito de Earth stewardship evoluiu no sentido de
tornar-se uma ciência transdisciplinar baseada na ação social e cultural para a solução de
problemas, segundo Rozzi et al. (2015).

Também é importante esclarecer que curadoria de ecossistemas ou ecosystem


stewardship não se restringe a ações voltadas estritamente aos ecossistemas (esta
observação se faz necessária pois ainda há muitos pesquisadores na área de Ecologia que
ainda não consideram os seres humanos como parte dos ecossistemas). Como ecosystem
stewardship opera sob a lente de sistemas socioecológicos, suas respectivas ações
também se desenvolvem dentro desta esfera. Portanto, iniciativas de ecosystem
stewardship podem acontecer em qualquer lugar, inclusive em ambientes urbanos, como:
cultivo de jardins comunitários em Nova Iorque (EUA); plantio de árvores nativas,
restauração de áreas alagadas e conversão do local de uma antiga fábrica de tijolos em
um espaço de convivência comunitária em Toronto (Canadá); remoção de espécies
vegetais invasoras em Seattle (EUA). Muitas destas iniciativas integram um conjunto de
práticas ecológicas cívicas que, por seus efeitos benéficos sobre os serviços
ecossistêmicos, biodiversidade, bem-estar e resiliência das comunidades, são
completamente possíveis de serem denominadas como ecosystem stewardship.

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NOVIDADES E AVANÇOS
Segundo seus proponentes, ecosystem stewardship não indica novas formas de atingir
objetivos antigos, mas sim uma mudança de paradigma na gestão de recursos naturais
(Tabela 2). Não é, portanto, “apenas” uma estratégia de gestão, mas também uma nova
maneira – ou mesmo uma ressignificação – da interação de nossa sociedade com a
natureza.
Sua flexibilidade, já mencionada, também se mostra como um avanço. Por sua
natureza abrangente, que ultrapassa os limites estabelecidos na gestão de recursos naturais
clássica, pode-se ter a impressão de que ecosystem stewardship é um conceito vago, difícil
ou inviável de ser colocado em prática. Tal impressão pode ser reforçada tanto pelo ainda
baixo número de estudos de caso disponíveis sob este conceito, quanto pelo delineamento
teórico enxuto, composto por poucas diretrizes (o que não é sinônimo de falta de
coerência ou robustez). Contudo, nos cabe perguntar: uma abordagem que advoga pela
flexibilidade de opções e oportunidades para a conservação e, em última instância, a
sustentabilidade, poderia ser diferente? Uma abordagem pautada por regras
demasiadamente minuciosas ou rígidas, algo como uma “receita de bolo”, poderia de fato
englobar em seus métodos a flexibilidade de opções? Com os elementos ou ingredientes
básicos do ecosystem stewardship, podemos ter como resultado não necessariamente um
bolo, mas sim, algo comestível e saboroso: um pão, uma massa, um sonho, uma torta, ou
mesmo um bolo, por que não?
Outro ponto que deve ser destacado é a postura proativa e não reativa normalmente
praticada nos modelos de gestão. Em vez de “correr atrás do prejuízo”, o ecosystem
stewardship propõe a preparação intencional e planejada para mudanças (inclusive
prevenindo aquela consideradas indesejáveis), incertezas e transformação. Além da
proatividade, esta abordagem tem também um caráter responsivo, isto é, atento aos
“sinais” que o sistema envia sobre o seu estado, para que se façam os ajustes necessários
nas ações de gestão. Estes “sinais” são os mecanismos de retroalimentação, nos quais o
ecosystem stewardship se propõe focar.

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Tabela 2. Diferenças entre dois paradigmas de gestão de recursos naturais, gestão de estado estável
e ecosystem stewardship (traduzido e adaptado de Chapin et al., 2009; Chapin et al. 2015).

Gestão de estado estável Ecosystem stewardship


Referência Condição histórica Trajetória de mudança (“futuro desejado”)
Objetivo central Integridade ecológica (homem Benefícios de sustentabilidade
não faz parte do sistema) socioecológica; sustentar sistemas
socioecológicos e resiliência de serviços
ecossistêmicos através do fomento de
diversidade.
Abordagem Gestão de estoques e condição Gestão de feedbacks amplificadores e
predominante dos recursos estabilizadores
Papel da incerteza Pressupõe que a pesquisa reduz Abraça a incerteza: maximizar flexibilidade
incerteza antes da ação para adaptação a futuro incerto
Papel do gestor de Tomador de decisão que orienta Facilitador que envolve grupos de
recursos ações rumo a uma gestão stakeholders para responder a e moldar
sustentável do recurso mudanças socioecológicas e nutrir
resiliência
Resposta a distúrbios Minimizar probabilidade de Adaptação a mudanças e manutenção de
distúrbios e seus impactos opções; distúrbios como janelas de
oportunidades
Recursos-foco da Composição de espécies e Biodiversidade, bem-estar humano e
gestão estrutura do ecossistema capacidade adaptativa

DESAFIOS
Em nosso entender, a curadoria de ecossistemas pode ser vista como um caminho
pelo qual as sociedades que veem a si próprias como algo à parte, desconectadas dos
ecossistemas dos quais dependem, possam ressignificar seus valores em relação à
natureza e seu próprio relacionamento com ela. Este argumento fica mais palpável nos
exemplos de iniciativas desenvolvidas em ambientes urbanos, mas é preciso deixar claro
que não se trata apenas destes casos. A abordagem tem uma clara proposta de conexão
entre diferentes níveis e escalas, transcendendo assim os limites entre urbano e rural; entre
os municípios, estados e países; entre ambientes “naturais”/ecossistemas e ambientes
antropizados; entre fatores ecológicos e sociais. Porém, como reconectar nossas
sociedades à natureza, quando os estímulos para esse afastamento são intensos e estão por
toda parte? Exemplos na literatura indicam a percepção da degradação da qualidade
ambiental ou mesmo desastres ambientais como vetores para o início de iniciativas de
curadoria de ecossistemas. Quantos desastres ainda serão necessários, no entanto?
De qualquer forma, a curadoria de ecossistemas possibilita esta reconexão com a
biosfera em diversos níveis, desde percepções e valores individuais, até instituições e
arranjos de governança, como podemos ver em alguns exemplos citados. O maior desafio

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talvez seja sua implantação efetiva através das escalas em sociedades ainda permeadas
por interesses conflitantes (por exemplo, individual x coletivo; curto-prazo x longo-
prazo) e tensões as mais diversas, desde o nível micro até o macro.
A transformação rumo a uma nova ética em relação à biosfera requer tanto um
despertamento individual, quanto a criação e existência de mecanismos de regulação
formais e informais que de fato inibam, cada vez mais, práticas insustentáveis e fomentem
um respeito à natureza, considerando-se o contexto atual de mudança e incertezas. É
possível aprender com grupos que possuem uma postura de curadoria de ecossistemas
culturalmente arraigada e, em grupos onde esta ética pela natureza é ignorada ou
encontra-se enfraquecida, as regulações formais (como, por exemplo, sanções), são
fundamentais.

RECAPITULANDO

Ecosystem stewardship é uma proposta na vanguarda da gestão de recursos naturais,


que tem como objetivo sustentar a provisão de serviços ecossistêmicos dos quais depende
o bem-estar humano em tempos de mudanças e incertezas. Esta abordagem se
desenvolveu na escola conceitual de sistemas socioecológicos, resiliência de
ecossistemas/socioecológica, serviços ecossistêmicos, e enfatiza que ações de
conservação que sejam boas para a natureza devem também ser boas para as pessoas.
Inspirado na ética da terra de Aldo Leopold, ecosystem stewardship reflete também o
significado da própria palavra stewardship, que traz em si noções de cuidado e
pertencimento. A proposta de termo em português que traduz tais conceitos é curadoria
de ecossistemas.
As contribuições desta abordagem para a gestão de recursos naturais de uso comum
são várias: a flexibilidade de ações para se atingir seus objetivos, que permite sua
aplicação nos mais variados contextos; a integração de processos ecológicos e sociais em
diferentes escalas, possibilitando parcerias inéditas entre segmentos da sociedade rumo a
um objetivo comum; a adoção de uma postura proativa (moldando o futuro desejado) e
responsiva aos sinais que indicam o que vai bem ou mal no sistema (permitindo ajustes
fundamentais em tempos de mudanças e incerteza); e, a oportunidade de ressignificação
dos valores que nossas sociedades atribuem à natureza.

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EXERCÍCIOS E ATIVIDADES COMPLEMENTARES

1. Você conhece alguma iniciativa de conservação ambiental que poderia ser


enquadrada como ecosystem stewardship (mesmo que não use este nome)?
Descreva-a a seus colegas, ressaltando os aspectos que se alinham a esta
abordagem, e justificando seus apontamentos com base nos aportes teóricos que
você teve até agora.
2. Para reflexão e discussão em grupo: selecione um estudo de caso de gestão de
recursos naturais descrito na literatura científica, cuja abordagem utilizada não é
ecosystem stewardship, e que apresente uma contextualização da problemática
(isto é, que descreva qual a questão ou problema que levou à gestão daquele
recurso, quem depende daquele recurso, etc). Utilizando, portanto, o mesmo
recurso-foco descrito no trabalho escolhido, delineie um plano de ação para gerir
o recurso sob o paradigma do ecosystem stewardship. Atente-se para o objetivo
desta abordagem e seus elementos considerados centrais. Descreva quais as ações
a serem executadas e quais os objetivos a serem alcançados através das mesmas.

SUGESTÕES DE LEITURA COMPLEMENTAR

• Chapin III, F. S., Kofinas, G. P. & Folke, C. (2009). Principles of Ecosystem


Stewardship: Resilience-Based Natural Resource Management in a Changing
World. Springer Science+Business Media, LLC.
• Walker, B., & Salt, D. (2012). Resilience practice: building capacity to absorb
disturbance and maintain function. Island Press.

MATERIAL COMPLEMENTAR

• Filme sobre a Ética da Terra de Aldo Leopold:


https://www.aldoleopold.org/teach-learn/green-fire-film/

REFERÊNCIAS DO CAPÍTULO

1. Ashley, C., & Carney, D. (1999). Sustainable livelihoods: Lessons from early
experience (Vol. 7, No. 1). London: Department for International Development.
2. Chapin, F. S., Folke, C., & Kofinas, G. P. (2009). Principles of ecosystem

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stewardship: Resilience-Based Natural Resource Management in a Changing World.


Springer, New York, NY.
3. Chapin III, F. S., Carpenter, S. R., Kofinas, G. P., Folke, C., Abel, N., Clark, W. C.,
... & Berkes, F. (2010). Ecosystem stewardship: sustainability strategies for a rapidly
changing planet. Trends in Ecology & Evolution, 25(4), 241-249.
4. Chapin, F. S., & Knapp, C. N. (2015). Sense of place: A process for identifying and
negotiating potentially contested visions of sustainability. Environmental Science &
Policy, 53, 38-46.
5. Chapin III, F. S., Sommerkorn, M., Robards, M. D., & Hillmer-Pegram, K. (2015).
Ecosystem stewardship: a resilience framework for arctic conservation. Global
Environmental Change, 34, 207-217.
6. Houaiss, A., Villar, M., & de Mello Franco, F. M. (2001). Dicionário Houaiss da
língua portuguesa.
7. Leopold, A. (1949; 1987). A Sand County Almanac and Sketches Here and There,
Illustrated by Charles W. Schwartz, Introduction by Robert Finch.
8. Moraes, A. R. (2019). Serviços Ecossistêmicos em uma Paisagem Rural Serrana:
contribuições para a gestão com base na resiliência socioecológica. Tese (Doutorado
em Ecologia), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.
9. Moraes, A. R., Chapin, F. S., Seixas, C. S. in prep. Managing feedbacks to improve
ecosystem services in rural areas: a case of ecosystem stewardship.
10. Olsson, P., Folke, C., & Hahn, T. (2004). Social-ecological transformation for
ecosystem management: the development of adaptive co-management of a wetland
landscape in southern Sweden. Ecology and Society, 9(4).
11. Rozzi, R., Chapin, F. S., Callicott, J. B., Pickett, S. T. A., Power, M. E., Armesto, J.
J., & May, R. H. (2015). Introduction: Linking ecology and ethics for an interregional
and intercultural Earth stewardship. In Earth stewardship (pp. 1-14). Springer, Cham.
12. Tuvendal, M., & Elmqvist, T. (2011). Ecosystem services linking social and
ecological systems: river brownification and the response of downstream
stakeholders. Ecology and Society, 16(4).

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