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10/06/2019 Núcleo de Estudos Junguianos

Corrupção: sintoma de um complexo?


Profª.Dra. Denise Gimenez Ramos

CORRUPÇÃO COMO FENÔMENO COMPORTAMENTAL


Corrupção pode se analisada de diferentes ângulos, pois é um fenômeno complexo e que exige para sua compreensão
certamente um estudo multidisciplinar.
Sabemos que a corrupção, como parte da rotina do brasileiro, é uma sombra endêmica e enraizada na cultura.

Corrupção pode aqui ser definida como “mau uso do poder para auto benefício ou vantagem para si mesmo. Um poder que
pode, mas não necessariamente, residir no domínio público. Além do dinheiro, o benefício pode tomar a forma de proteção.
Tratamento especial, recomendação, promoção ou favores de mulheres ou homens”. (Leisinger, 1996)

Considerando, portanto, dentro desse enfoque, poderíamos perguntar quais os fatores psicológicos que poderiam propiciar ou
favorecer esse tipo de comportamento numa cultura. Se for verdade que a corrupção é universal, porque ela é mais freqüente
em determinados países? Quais seriam os fatores propiciatórios desse comportamento?

Diariamente lemos nos jornais notícias sobre novos assuntos públicos envolvendo corrupção e muito freqüentemente novas
informações sobre milhões de dólares desviados para contas privadas em paraísos fiscais. No dia-a-dia, o comportamento
transgressor ou de pequeno suborno atormentam o brasileiro. Alguns, para não parecerem “bobo”, assumem o papel de
“esperto” e corrompem ou aceitam a corrupção como meio de sobrevivência. Os indignados são considerados “babacas” e
raramente sentem-se recompensados por sua honestidade. Esse comportamento destrutivo parece tão enfronhado na cultura
que já se perdeu a data de sua origem.

Em 2002, numa pesquisa realizada pela Goettingen University and Transparency Internacional, Brasil foi colocado em 45º
lugar numa escala mundial de corrupção internacional.(2002-Perception Index–Goettingen University and Transparency
International) e em 2005 passou para 62º lugar.
A questão é: por que o Brasil sofre tenaz e recorrentemente da praga da corrupção e da impunidade por parte das figuras
públicas de autoridade?

Considerando a corrupção como fenômeno universal com múltiplas soluções, podemos aqui refletir sobre a dificuldade de se
chegar ao “miolo do problema” e perguntar quais são raízes desse problema não só moral e ético mas também de
comportamento.

Realmente, a maioria das pesquisas sobre corrupção centra-se em variáveis relacionadas a modelos sistêmicos dinâmicos de
corrupção, efeitos da corrupção na política, bem estar, projetos de desenvolvimentos, etc. As causas geralmente se baseiam
em tipos de sistemas legais, na ética, no nível sócio econômico e educacional e nas formas de contenção e repressão. Quando
a questão psicológica é abordada, geralmente ela refere-se a problemas sociais e educacionais. Na sua maior parte, os
discursos e artigos escritos sobre o assunto, têm um tom moralista e apontam a ganância econômica e a falta de ética, como
as grandes motivadoras desse mal. É surpreendente a falta de pesquisas em psicologia que analisem profundamente os
determinantes inconscientes dessa patologia. Os poucos trabalhos encontrados centram-se no estudo da criminologia, da
delinqüência, das questões de poder e nos mecanismos sócio-patológicos.

Portanto, uma das tarefas principais deste ensaio é descobrir o fio condutor de como a corrupção foi estabelecida no solo
brasileiro.

Como veremos, a corrupção, não é somente uma questão de ética ou ganância, mas também um sintoma patológico na
identidade coletiva e no Brasil origina-se provavelmente num complexo de inferioridade.

A. DESCOBRINDO O CONFLITO ORIGINAL

Na ocasião da comemoração dos 500 anos de fundação do Brasil (ano 2000) inúmeros debates, artigos e livros vieram à tona,
na tentativa de explicar o que é a identidade brasileira. Num país de vasta extensão territorial e formado por três raças
distintas (indígena, branca e negra), com correntes imigratórias inclusive japonesas e coreanas, falar de identidade é um
assunto bastante complicado. Ao rever a literatura mais significativa, um tema ressalta e abre caminho para nossa
investigação: o sentimento implícito de inferioridade ou o que alguns chamam de “complexo de cucaracha” ou de “latino
americano subdesenvolvido”.

Embora nem sempre explicitamente verbalizado, podemos facilmente observar no cotidiano, na literatura, nos mitos, filmes e
programas de TV, exemplos desse sentimento de inferioridade, principalmente quando o brasileiro classe média se compara
com o estrangeiro.

Seria então a corrupção um comportamento compensatório a esse sentimento de inferioridade marcante?

Seria a corrupção uma forma de burlar a lei e autoridade por parte daquele que se sente infantil, fraco ou impotente para
contestá-la abertamente?

Com essas questões em mente e com base em estudos psicológicos, sociológicos e textos jornalísticos, três vertentes foram
tomadas:

1) observações de campo;
2) pesquisa junto a colegas de profissão,(queria me assegurar se minhas
percepções e observações coincidiam ou não com ao do meu grupo de

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referência);
3) pesquisa bibliográfica, (que poderia ou não confirmar a intuição).

I. Primeiras observações

Os brasileiros de acordo consigo mesmo:

É corrente entre a classe média paulistana, e talvez pudesse generalizar – entre a classe média brasileira - a constante
referência a adjetivos desairosos em relação à própria nacionalidade. Anedotas e casos são contados na televisão brasileira e
no dia-a dia denegrindo a imagem do brasileiro. As comparações com os povos do “primeiro mundo” são constantes,
retratando o brasileiro como incompetente, ignorante, malandro e corrupto.

Dois fatos recentes corroboraram para minhas afirmações, ambos acontecidos no aeroporto ao chegar de uma cidade
européia:

- Só no Brasil mesmo! Temos que dar toda a volta em vez de seguirmos reto! Hei terrinha de gente burra... Grita de modo
estridente uma jovem brasileira saindo do avião. A passageira em questão reclamava de ter que andar não mais do que 100
metros até as escadas rolantes que a levaria para o saguão do aeroporto. Outros acenavam com a cabeça, aparentemente
concordando com a jovem irritada.

Nota: a passageira acima, sem reclamar, tinha andado cerca de 1500 metros até o portão de embarque pelos longos
corredores de um aeroporto europeu, onde as esteiras estavam paradas.
- Puxa, mas que fila! É um absurdo termos que fazer fila, nem sequer esses caras (policiais) sabem organizar uma fila para
ver os passaportes! O passageiro reclama de ter que mostrar seu passaporte para os agentes federais, embora a fila fosse
rápida. Passávamos direto pelo agente federal, que mal olhava a fotografia. Em menos de 15 minutos estávamos livres.

Nota: é altamente provável que esse mesmo senhor ao chegar na Europa, após uma longa e cansativa viagem noturna, tenha
ficado no mínimo (como fiquei) umas duas horas na fila de checagem de passaporte. Nenhuma cadeira ou qualquer conforto
era oferecido, enquanto passavam direto, sem fila, os passageiros sorridentes da comunidade européia.

Duas cenas rápidas e ao mesmo tempo bastante reveladoras.

O brasileiro recém-chegado do “primeiro mundo” rejeita sua pátria, ressentido inconscientemente das diferenças e por vezes
do tratamento discriminador a que fora sujeito. Sem se dar conta, imita o “superior”, repetindo a discriminação, agora tendo
a si mesmo como agente. As duas observações escolhidas são corriqueiras e fazem parte da experiência de um bom número
de brasileiros.
Piada corrente presente na internet e contada com freqüência (uma colega norte-americana contou-me que numa visita ao
país ouviu a mesma de dois guias durante sua estadia).

“Dizem que, quando Deus criou o mundo ouviu uma série de reclamações. Habitantes de outros países disseram que Ele tinha
sido injusto criando o Brasil como uma terra rica, dotada de extraordinária beleza. Um país banhado eternamente pelo sol,
que ademais não tinha furacões, nem tempestades, neve, terremotos, desertos ou animais ferozes. ‘Isto não é justo’,
disseram em coro para Deus. Mas, Ele calou a inveja dos reclamantes, replicando: ‘É! Mas esperem para ver o tipo de gente
que eu vou colocar lá”.

Essa anedota supõe uma relação inversa entre cultura e natureza. Isto é, quanto mais pródiga a natureza, menor o esforço
de trabalho e daí a degeneração humana.
“O Brasil não tem jeito” ou o “Brasil não é um país sério” (frase originalmente atribuída ao General francês De Gaulle) ditas
em momentos de crise revelam que há até uma certa uma vergonha de ser brasileiro.

Outra frase famosa é a do escritor Nelson Rodrigues: “O brasileiro continua sendo aquele Narciso às avessas, que cospe na
própria imagem. A nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima”.

Segundo Kujawski (2001), há uma certa obsessividade no Brasil quanto a uma própria incompetência coletiva, com um misto
de auto desprezo e falta de informação.“Esse sentimento nacional de inferioridade resulta, de imediato, da nossa comparação
com as nações desenvolvidas, ressaltando nossos reiterados fracassos econômicos, nossa instabilidade políticas, atraso
tecnológico e desigualdades sociais. No entanto, as verdadeiras raízes dessa auto-abjeção coletiva, dessa vergonha
generalizada de ser brasileiro remontam às nossas origens históricas”.

Os brasileiros de acordo com os estrangeiros:


Embora não caiba aqui um estudo sobre a imagem do brasileiro no exterior, algumas observações são pertinentes à medida
que foram incorporadas mais ou menos conscientemente pela cultura. F. Pike (2001), no seu artigo sobre mitos e estereótipos
norte-americanos sobre a América Latina mostra que enquanto os Estados Unidos são geralmente relacionados à cultura, a
América Latina liga-se à natureza. Na América do Norte temos o símbolo do Tio Sam, homem branco, lutador inveterado que
subjuga a selvageria e a natureza. Do outro lado, temos as figuras de negros, índios, crianças, mulheres e pobres, seres,
portanto, incapazes de dominar a natureza representando a América Latina. A fixação desses estereótipos presentes até hoje,
provavelmente alcançou o seu auge durante a política da Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt entre os anos de 1933 e 1945.
Na época, os cartunistas norte-americanos costumavam fazer caricaturas de seus vizinhos do sul como um povo sonhador e
despreocupado com o trabalho, sugerindo claramente uma inferioridade latino-americana.
Nessa trilha, os estúdios da Walt Disney criaram um personagem chamado Joe Carioca (durante a Segunda Guerra Mundial)
que contracenaria com o Pato Donald representando os brasileiros. Ele é personificado como um papagaio (sem fala própria)
frágil e desajeitado, preguiçoso e covarde, que compensa seus fracassos com fantasias megalomaníacas.

Mais recentemente (2002), o canal de televisão americano Fox, retratou num desenho animado, uma família americana, os
Simpsons, que vem para o Brasil procurar um garoto da favela carioca com quem a filha mais velha se correspondia pela
internet. Ao chegarem, ficam sabendo que o garoto está desaparecido, então a família decide iniciar uma busca para
encontrar o pobre menino brasileiro abandonado que precisa ser salvo pela família americana.

Temos assim, um Brasil retratado como o país da malandragem ou da bandidagem, um país que apesar de suas inúmeras
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riquezas naturais tem uma sociedade corrompida e dominada pela criminalidade, fragilizada pela pobreza e pela carência
econômica. Mais uma vez, as projeções dos estrangeiros sobre o Brasil fixam-se em um recorte depreciador, e também
distorcido culturalmente, pois o Rio de Janeiro é aí representado como a terra do mambo, da rumba e da conga.

Destaco aqui duas afirmações de estrangeiros, que sintetizam inúmeras outras recolhidas:
“Os brasileiros são muito bons, muito criativos. O problema é que sofrem de falta de auto-estima”. Martin Sorrel. (famoso
empresário inglês, dono inúmeras agências de publicidade e empresas de marketing e pesquisa multinacionais). (Revista
Veja, 8 de Maio, 2002)

“O Brasil quase perdeu a identidade....Acha que só o estrangeiro tem a solução. O Brasil tem muitos recursos...É preciso
recuperar a auto - estima. Passei 40 anos estudando o Brasil, especialmente essa coisa de pessimismo e otimismo. ....Aquela
coisa de dizer que o Brasil não dá.” T. Skidmore. (sociólogo americano e autor de vários livros sobre o Brasil) (Jornal: O
Estado de São Paulo, 6 de outubro, 2002).

II. Pesquisa sociológica e antropológica

Uma pesquisa (SEBRAE, 2002) realizada por 25 especialistas de diferentes áreas das ciências humanas com o objetivo de
definir um “perfil” da brasilidade compreendida como o conjunto dos traços peculiares ao estilo cultural, estético e
comunicativo dos brasileiros vem reforçar essas observações. Embora o estudo tivesse sido encomendado por empresas de
exportação, e, portanto tinha por objetivo relacionar particularmente as características que poderiam oferecer, a uma
empresa que as levasse em consideração, uma vantagem competitiva tanto no plano de marketing, como na penetração dos
mercados internacionais. Nesse estudo, interessantes qualidades psicológicas foram ressaltadas. Sintetizando os resultados,
encontrou-se que atualmente os principais pontos fortes do Brasil, em ordem decrescente de importância, são os seguintes:

1. pluralismo racial e cultural;


2. os elementos culturais provenientes de tradições e experiências de vida autenticamente populares;
3. a alegria e o otimismo;
4. as características pluralistas e sincréticas da cultura;
5. a ênfase nos relacionamentos pessoais;
6. a hospitalidade e a cordialidade; e
7. a criatividade.

Os principais pontos fracos do Brasil são, em ordem decrescente de importância:

1. a falta de auto-estima, a valorização apenas do que vem de fora.


2. a falta de confiança nas autoridades e no governo, que se reflete na desconfiança geral em relação às
empresas públicas;
3. um certo desprezo em relação a questões técnicas;
4. a idéia de malandragem como necessidade de tirar partido de tudo, sobretudo dos mais humildes;
5. a escassa divulgação do trabalho cultural brasileiro em todos os setores;
6. personalismo arrogante que se coloca acima da lei;
7. a convicção de que todo mundo engana só para ganhar mais dinheiro;
8. a ignorância como “profissão de fé” (“se eu consegui ganhar dinheiro sem ler único um livro, então...”);
9. a desonestidade em nome da família e dos amigos; e
10. a falta de compromisso em relação a acordos firmados.

Uma das conclusões mais significativas foi que o contato com as chamadas culturas desenvolvidas muitas vezes incrementa o
sentimento de inferioridade. Nesse sentido, existe no Brasil uma forte e infundada crença de que aquilo que vem do exterior é
sempre melhor. Os autores consideram ainda que a falta de informações continuará a reforçar essa tendência ao desprezo
pelo que é brasileiro e à valorização do que está fora. Eles concluem que os brasileiros são, também, vítimas de um latente
complexo de inferioridade. A criatividade é vista como “malandragem” ou “jeitinho”.

Com efeito, podemos observar que o fato do brasileiro não perceber a dimensão de seus próprios valores culturais tem levado
ao aprofundamento de uma marcante falta de confiança em si próprio, com o risco de se percorrer um caminho inverso que
seria o da supervalorização. Isto é, poderia haver uma rápida enantiodromia, onde o nacionalismo desmedido levaria a uma
perigosa inflação do ego coletivo.

A pesquisa é concluída com uma ênfase na necessidade de se realizar um trabalho de sensibilização que tenha por objetivo
reforçar o valor da criatividade e a consciência das qualidades específicas a respeito da própria cultura. Entretanto, sabemos
que o ponto de equilíbrio quanto à própria imagem não pode ser obtido somente pelo reforço dos valores positivos. Sem um
trabalho de consciência da sombra coletiva, isto é, sem a análise do complexo de inferioridade mais uma vez observado,
qualquer trabalho que se apóie somente no nível educacional será pouco eficaz.

III. Pesquisa com os analistas

Com a finalidade de identificar as percepções relativas ao complexo cultural brasileiro, foi realizada uma pesquisa entre os
analistas e estudantes (n=144) junguianos membros das duas sociedades de analistas filiadas à International Association for
Analytical Psychology, a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e a Associação Junguiana do Brasil.

A pesquisa compreendeu o envio de uma questionário com questões referentes a comportamentos sintomáticos presentes no
cotidiano sócio - cultural brasileiro e a forma como esses comportamentos se manifestam na sociedade e na cultura (mitos,
contos, ditos populares, arte etc.).
Uma das questões solicitava aos respondentes que vendo o Brasil como um paciente, procurassem identificar quais seriam
o(s) complexo(s) que estariam por trás desses sintomas. E por fim, foi perguntado se o analista teria identificado em si
mesmo, quando em viagem ao exterior, a emergência de algum sentimento peculiar em razão do contraste experimentado e
no caso afirmativo qual a cultura e os sentimentos percebidos.

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Foram obtidos 33 questionários (32 analistas e 1 estudante) de volta. O baixo número de respostas deveu-se,segundo os
colegas, à dificuldade das questões. Alguns consideraram que cada questão deveria ser respondida com uma tese ,outros
disseram que precisariam de muito tempo ou de uma pesquisa de campo e, portanto se abstiveram de responder. Um analista
disse que a primeira reação foi a de que : “não entendi nada , sentia-me muito estúpido, entretanto voltando para o título me
dei conta que essa inferioridade ou resistência diante de coisas muito abstratas poderia ser o complexo falando em primeira
instância (interpretação de minha própria contra transferência)”.

Como veremos, essa confissão inicial revelará o principal sintoma da sociedade brasileira aqui detectado. E, o resultado do
questionário, apesar da resistência, mostra dados interessantes que corroborarão com as observações de campo e com
material bibliográfico levantado.

As respostas foram divididas em 6 grandes categorias:

1. Sentimento de inferioridade.
2. Transgressão de leis e corrupção
3. Ausência de heróis
4. Narcisismo, exibicionismo, permissividade excessiva.
5. Puer aeternus
6. Tipologia

Categoria 1 – Sentimento de Inferioridade


Nessa categoria houve uma unanimidade: 100% dos respondentes descreveram comportamentos típicos e
freqüentes que se referem à : baixa auto estima do brasileiro; dependência; insegurança ; desvalorização do
folclore e de sua expressão mítica; piadas contra si mesmo (contra brasileiro); falar mal do próprio país - Brasil
(freqüentemente comparando-o negativamente a outro país do hemisfério norte); desconsideração ou
desvalorização com a língua (no que se refere a vocábulos de origem indígena) e supervalorização da língua
estrangeira; vergonha de sua origem quando não-européia; busca e super - valorização da ancestralidade
européia; vergonha de ser brasileiro; sentimento de impotência e de incapacidade; sentimento de ser
eternamente “colônia” não tendo desenvolvido uma cultura de elite; desvalorização dos governantes e dos
sistemas operacionais “na Europa tudo funciona”, “só no Brasil acontecem essas coisas”, sensação que no
Brasil ainda tudo está por ser feito, inveja do nacionalismo do estrangeiro (um grupo de negociadores norte-
americanos uma vez afirmou que era fácil negociar com os brasileiros porque eles não disputavam seus direitos
nem defendiam sua terra); aceitação da classificação de país do terceiro mundo, terceira classe, ainda
(eternamente) em desenvolvimento.

Outro aspecto dessa categoria que aparece em grande número de resposta (90%) é a super valorização do
estrangeiro e de produtos do exterior. Ao achar tudo que tem e faz inferior, o brasileiro típico tende: a imitar o
estrangeiro, a super valorizar qualquer produto exterior e a ter grande abertura para qualquer produto material
ou cultural do exterior.

Categoria 2 - Transgressão de leis e corrupção


Oitenta por cento dos respondentes descreveram comportamentos referentes ao que é chamado no Brasil de
“lei de Gerson”. Gerson foi um famoso jogador de futebol que nos anos setenta fez uma propaganda de
cigarros associando a marca que fumava ao comportamento de esperteza, dizendo que ser esperto é “tirar
vantagem de tudo”. Foi surpreendente o efeito dessa propaganda na ocasião e mais surpreendente ainda que
passados vários anos a “lei de Gerson” ficou sendo conhecida como o comportamento do malandro- vencedor.
Demorou um certo tempo para que essa propaganda fosse considerada anti–ética, mas até hoje fala- se do
indivíduo de caráter duvidoso , como seguidor da lei de Gerson, por vezes havendo uma certa ambigüidade
entre a admiração pelo malandro - esperto e a crítica moral. Nessa categoria entraram também o
comportamento de burlar leis (há leis que pegam e leis que não pegam) e impostos (porque são injustos ou
porque o dinheiro vai para o bolso dos políticos). Dar propina, não obedecer à hierarquia, corromper e ser
corrompido passam a ser então uma conseqüência . Em várias respostas, os analistas consideram o
comportamento corrupto associado ao sentimento de impotência. Ao sentir que não tem poder para mudar seu
status ou para mudar os estado de direito, o único mecanismo percebido para se sair do estado de vitimização
é aliar-se aos corruptos. Tornar-se um deles diminui a impotência e a frustração.

Categoria 3 - Puer aeternus


Setenta por cento dos respondentes consideraram que a falta de limite, o prazer de desrespeitar os sinais de
transito, a falta de compromisso e a impontualidade legendária seriam um tipo de protesto infantil contra o
excesso de autoritarismo. O desrespeito às leis estaria aqui vinculado à fraqueza frente ao poder patriarcal,
exercido negativamente, isto é, as leis vistas como “babacas” ou injustas e a desobediência vista como
“esperteza” ou a superação da autoridade.

Categoria 4 – Ausência de heróis


Sessenta por cento dos respondentes fizeram referencia à ausência de heróis míticos e históricos na cultura
brasileira. Alguns consideraram essa ausência como um fator que dificulta o desenvolvimento da identidade
nacional e colabora com o sentimento de inferioridade

Categoria 5 - Narcisismo, exibicionismo, permissividade excessiva


Houve, nessa categoria, menor unanimidade, com cerca de 30% das respostas referindo-se a comportamentos
que talvez pudessem ser considerados como mecanismos compensatórios aos sintomas acima descritos. A
grandiosidade das festas folclóricas (Boi-bumbá, no nordeste) e do Carnaval (em todo país) poderia apontar
um desejo de superação dessa inferioridade.

Categoria 6 – Tipologia
Vinte por cento dos analistas apontaram para a questão tipológica como geradora de conflitos. Os brasileiros

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com a tipologia sentimento extrovertido sentiriam - se inferiorizados quando julgados por membros de cultura
de tipologia pensamento introvertido.

Esses resultados coincidem com as observações do teólogo Frei L.Boff (2002) que fala que o brasileiro sofre de
um “complexo de coitadinho” e de Dias & Gambini (1999), que ao analisar a formação da identidade brasileira,
dizem que o brasileiro sofre de um complexo de inferioridade decorrente da falta de consciência sobre si
mesmo.

Poderíamos, portanto, afirmar que os analistas identificaram por unanimidade um complexo de inferioridade
que apresenta vários sintomas, predominantemente: baixa auto - estima e vergonha da identidade cultural. Os
comportamentos patológicos de corrupção, malandragem e desobediência a leis poderiam ser conseqüência
desse complexo de inferioridade.

Tendo em vista essas observações e o resultado da pesquisa algumas reflexões são necessárias na tentativa de
explicar a origem desse sentimento e procurar o conflito original, subjacente e formador dos sintomas acima
descritos.

B. POSSÍVEIS CAUSAS DO COMPLEXO DE INFERIORIDADE

Na busca do conflito básico que possa dar origem a esse complexo, a história da construção da nação brasileira é bastante
reveladora, pois podemos considerá-la decorrente de uma situação traumática com duas vertentes principais: a colonização e
a escravidão. Entretanto, no próprio mito de origem do Brasil, uma das bases em que se estrutura a identidade coletiva,
percebemos a presença de uma pesada projeção a qual sociedade brasileira até hoje “esforça-se” para manter, quando se
torna, por exemplo, “o país do carnaval”. Seria o Brasil um paraíso tropical?

- Mito de origem: o Brasil e o paraíso: projeções medievais sobre a terra desconhecida.

Segundo a analista junguiana, os mitos de criação são os mais importantes em várias sociedades. Eles são o ensinamento
essencial nos rituais de iniciação.

Se a pergunta “de onde eu vim?” pode gerar ansiedade, o mito que a responde dá significado e eixo à existência. Repetido
em momentos de crise, o mito de criação restaura a identidade e recupera a auto-estima. Se transpormos a questão mítica
ao mito histórico fundante do Brasil, várias características saltam à vista revelando desde o início uma problemática até hoje
não resolvida.

- O nome

A princípio, os portugueses batizaram a terra recém-descoberta de Terra de Santa Cruz, ato, que segundo alguns estudiosos,
já constelava no inconsciente coletivo o desejo de domínio e depois a quase extinção das populações nativas, submetidas à
força ao credo cristão (Gambini, 2000). “Os descobridores transportaram a cruz através do oceano e a fincaram em terra
fresca, mas nunca foram capazes de carregá-la sobre os próprios ombros... Os europeus deixaram que os índios carregassem
a cruz, enquanto se entregavam”... “à plenitude de sua ganância na zona franca ao sul do Equador” (Gambini, 2000, p. 42).

Entretanto, com o passar dos anos, o nome Brasil passou a predominar e até hoje sua origem, tem sido assunto de inúmeras
discussões. As grafias mais antigas, como “Ho Brasile” e “O’Brasil”, demonstram tratar-se de um nome celta, cujo sentido
seria “Terra dos bem-afortunados”, “Ilha da Felicidade” ou “Terra Prometida”, já que a raiz bres, em irlandês, significa "nobre,
sortudo, feliz, encantado". Esse nome aparece em mapas anteriores ao descobrimento do nosso país e certamente conviria
bem a uma ilha imaginária a oeste do mundo conhecido, na mentalidade medieval (Funari, 2002). Outros defendem que a
palavra brasileiro designava a pessoa que morava na terra da árvore cor de brasa (vermelha), madeira que na época era
bastante exportada para a Europa.

- O Brasil no imaginário medieval.

O fato é que a referência ao espaço do Brasil como Jardim do Éden, como “possessões maravilhosas” povoa na época o
imaginário europeu. Podemos inclusive encontrar imagens fantasticamente positivas ou terrivelmente ameaçadoras sobre os
novos espaços na literatura que procurava atribuir uma identidade característica ao país (Oliveira, 2000).

Em geral, as novas terras são apresentadas como o abrigo de uma natureza ainda intocada, a terra-virgem, e são descritas
pelos portugueses como um universo perigoso, luxuriante, soberbo, avassalador e misterioso. Um lugar para ser explorado e
desfrutado (Oliveira, 2000; Gambini, 2000).
A cartografia e os textos dos séculos XV e XVI revelam o encontro de duas civilizações e marcam diferenças que irão se
confirmar ao longo dos séculos. Mesmo o uso do termo “descoberta” para uma terra habitada por milhões de pessoas
(calcula-se entre 6 a 12 milhões) e mais de mil etnias, já é bastante controvertido. (Brito,2001)

Mais ainda, a construção do mapa mundial a partir da lógica do colonizador que cria o conceito de dois mundos, o velho e o
novo, o explorador e o explorado. Na época, a legalidade da exploração baseava-se no conceito que o que estava no novo
mundo era inferior.

Ventura (1991) aponta para a ambivalência do discurso europeu que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural, a
inocência dos habitantes da terra americana e a condenação dos seus costumes bárbaros. Esse autor ressalta ainda a
presença de um discurso negativo sobre o homem e a natureza da América, o que permite a legitimação da expansão
européia de uma forma tão invasiva e desprovida de qualquer consideração quanto ao estado das coisas nas terras recém
descobertas. A tese da degeneração dos animais, das plantas e do homem latino-americano, assim como a tese da juventude

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do continente abrem espaço para a ação civilizatória do homem branco. Uma ação que visava exclusivamente à exploração e
se fazia cega às riquezas culturais das populações nativas.

II. Primeiros habitantes

Discutia-se até mesmo no início da conquista, se os nativos tinham ou não “alma”. E, apesar do decreto papal que afirmava
que os índios eram humanos, nas práticas sociais de poder afirmava-se que os nativos além de ter uma estrutura biológica
diferente dos europeus, pertenciam a um nível inferior . Essas imagens configuraram profundamente um complexo
cultural,uma matriz de idéias e um conjunto de imagens, de valores,de símbolos, de atitudes, de práticas sociais, que
continuam presente no nosso inconsciente coletivo.

Ainda, o fato de que não se pode remeter o nascimento do Brasil a civilizações pré-colombianas de enorme qualidade e
longevidade, como é caso do México e no Peru, vem a favorecer ainda mais a negação da existência das diversas culturas
indígenas de milhões de nativos que habitavam o Brasil no século XVI, levando a formação de uma identidade brasileira que
nega sua origem.
Desse modo, a cultura indígena brasileira nunca foi integrada à origem mítica ou histórica da nação. Pelo contrário,
permanece isolada e protegida em territórios longínquos. Não há registro de mitos e de heróis indígenas que tenham sido
assimilados no processo de formação da cultura brasileira.

III. A implantação da colonização

Primeiros colonos

À medida que Portugal nunca teve a intenção de estabelecer uma nova nação, mas somente apossou-se das novas terras
movido pelo desejo de enriquecimento, a atitude dos colonizadores foi basicamente a de um extrativismo imediatista e
predatório ao que o país foi sujeito durante séculos (Oliviera, 2000).

Segundo DaMatta (1993), a história econômica do Brasil trás uma representação da natureza que fundamenta a aventura
pessoal caracterizada por extrema individualidade e pelo anarquismo pecaminoso. E é no ciclo do extrativismo predador que
se reproduz o modelo da sociedade de origem.
Enquanto que nos EUA os primeiros colonizadores tinham como objetivo constituir uma nova nação guiada por princípios
éticos e religiosos, no Brasil os primeiros colonizadores vieram com a única intenção de buscar riquezas e levá-las para o rei
que delas necessitava para saldar a dívida de Portugal com a Inglaterra. Nesse sentido, a intenção de se produzir nas novas
terras um espaço habitável, cujas riquezas e maravilhas naturais pudessem ser integradas à vida civilizada do europeu, e na
quais estes poderiam estabelecer uma nova nação nunca foi verificada ao longo da história da dominação do território
brasileiro. Pelo contrário, conta-se que os primeiros imigrantes foram dois degredados, abandonados na costa brasileira
quando as embarcações de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, regressavam a Portugal para levar notícias da Terra
de Santa Cruz.
Os primeiros colonizadores das terras brasileiras- vassalos do rei de Portugal, vieram sozinhos, deixando para trás a família e
os amigos. Queriam somente explorar as novas terras e voltar ricos para seu país. Eram desprovidos de virtudes econômicas,
de espírito público e autodeterminação política. Não se fixaram nos territórios percorridos e despovoaram mais do que
povoaram. Enquanto os primeiros povoadores norte-americanos juraram constituir-se em um corpo civil e político, adotando
formas de trabalho estáveis, realizando a conquista da terra e estabelecendo vilas e cidades, os europeus deslocaram-se para
o Brasil na qualidade de conquistadores e mais tarde tornaram-se contrabandistas de ouro e pedras preciosas.

Portanto, a diferença básica entre os dois processos de ocupação territorial é que o imigrante que foi para os Estados Unidos
teve a intenção de se tornar americano, de pertencer a uma nova religião, a uma nova pátria. Já o filho do português nascido
no Brasil (o mazombo) reivindicava o nascimento no reino. Era um bastardo, abandonado pelo pai europeu e rejeitado pela
tribo da mãe. Para se fazer português era preciso que ele fosse estudar em Coimbra. Seus olhos estavam voltados para
Portugal e mais tarde para Paris. Era um europeu extraviado. Este português nascido no Brasil, este brasileiro sem
sentimento de “pertencimento”, era um ser contraditório, um ressentido que não tinha a capacidade de ter dignidade,
patriotismo, compostura, decência, vida limpa, honestidade, grandes propósitos, altas e nobres intenções.

Escravidão

A outra vertente do trauma na formação da identidade brasileira, como já foi dito, é a escravidão que junto com a colonização
leva a “uma dominação quase absoluta, em que todo poder de decisão é abolido e as pessoas são até reduzidas ao estado de
coisa – marcando mais um trauma na formação da identidade brasileira”.

O negro é trazido ao Brasil para realizar o exaustivo trabalho braçal necessário ao funcionamento das plantações de cana-de-
açúcar. Ao chegarem na colônia, as famílias de escravos eram separadas e distribuídas de forma a se desagregar as
populações que falavam um mesmo dialeto. Deste modo, a ação do colonizador sobre o escravo impunha, inclusive, uma
ruptura dos laços culturais atados pela língua nativa.

Sem guerras – Sem heróis

O nacionalismo brasileiro não foi marcado por episódios de luta e empreendimentos grandiosos que mobilizassem
emocionalmente seus habitantes, como foi o caso em diversas nações européias. O nacionalismo brasileiro é fruto da
ocupação territorial e da nostalgia das origens dos diferentes povos que compõem o Brasil. “No fundo ainda perdura no
inconsciente coletivo brasileiro um sentimento resmungão, produto do poderoso genocídio contra índios e negros que os
portugueses e a classe dominante do Brasil perpetraram ao longo dos tempos”.
Assim, não se forma no Brasil o mito do herói ou da heroína. Embora a mitologia brasileira seja rica em simbolismo indígena,
caboclo e africano, não há uma personalidade que represente um herói nacional.

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(É importante também aqui lembrar que principalmente a partir do século 19, houve grandes correntes migratórias para o
Brasil, sobretudo de espanhóis, italianos, judeus, alemães, árabes e japoneses. Esses povos se estabeleceram trazendo seus
costumes, princípios e valores e marcaram fortemente a cultura brasileira. Praticaram no Brasil seus mitos, tradições e uma
ética há milênios desenvolvidos. Vemos inclusive com freqüência o recurso da busca da identidade no avô europeu sendo
usado como motivo de orgulho e de diferenciação. Entretanto, como esses valores são multifacetados pelas inúmeras
características desses diferentes povos que compõe o país, eles não formaram uma identidade coletiva harmônica. Os valores
positivos e morais trazidos por esses imigrantes são vividos mais no plano individual e familiar e não no coletivo nacional.)

CONCLUSÃO

A hipótese da existência de um complexo de inferioridade na cultura brasileira foi confirmada pelas três abordagens aqui
utilizadas. Tanto as observações de campo quanto à pesquisa social e a opinião dos analistas foram homogêneas na descrição
de comportamentos mais ou menos conscientes, que invariavelmente revelam um sentimento profundo de menosprezo e
abjeção em relação a si mesmo.
As conseqüências deletérias desse auto - desprezo refletem-se em várias áreas, dentre elas na produção intelectual e
econômica, assim como na perpetuação de desigualdades sociais, no caráter excludente da estratificação social (em relação
ao índio, ao negro e à população pobre em geral) e nas questões éticas.

Na busca do conflito original, que estaria no cerne desse complexo de inferioridade, destacamos alguns fatores principais
presentes na formação do país: mito de origem, projeções estrangeiras, escravidão e colonização. Vimos também como o
trauma do nascimento repete-se compulsivamente em vários tipos de comportamento, destacando-se aqui o da corrupção.

O mito das terras parasidíacas é reproduzido pelos corruptos na permissividade generalizada, no menosprezo da legalidade e
no gosto pela desobediência civil. Meira Penna,ao descrever os países tipologicamente, coloca o Brasil na categoria onde
“tudo é permitido, mesmo o proibido”, comparando-o, por exemplo, com a Inglaterra onde “tudo é permitido, menos o
proibido”.

Dessa forma, o mito fundante edênico colabora para o estabelecimento de um sentimento de inferioridade desde os
primórdios da formação da cultura brasileira, uma vez que o único valor atribuído às novas terras e seus habitantes paira em
torno da sensualidade, da atratividade carnal e das riquezas da natureza. E como, segundo padrões civilizatórios vigentes, o
que é da natureza é inferior ao que é produzido, pois os recursos da natureza estão aí para serem colhidos e independem de
trabalho ou de esforço criativo, aparentemente não há saída para a inferioridade. Como vimos, inúmeras projeções dos
estrangeiros, desde o século XVI até a presente data, confirmam essa imagem. E o pior é que o brasileiro, na busca de uma
identificação positiva, assimila a projeção, incorpora-a como sua e a reproduz em sua própria terra. Repete-se, assim, um
mecanismo neurótico na tentativa de se achar uma solução para esse dilema.

Alguns autores chegam mesmo a propor que o sentimento de inferioridade possa ser sobrepujado com a valorização
crescente da ecologia e dos recursos naturais, onde o Brasil seria pródigo. No entanto, esta aparente nova atitude estaria
apenas reproduzindo mais uma vez o mito do paraíso tropical: Brasil, o exuberante e cordial país do carnaval. As qualidades
intelectuais, o avanço da tecnologia brasileira, ou mesmo a capacidade do brasileiro de encontrar soluções racionais para seus
problemas, por exemplo, não são reconhecidos como marcas nacionais.

Assim, parece haver uma certa cegueira quanto ao reconhecimento da produção cultural e científica coletiva. (Ou então seria
o outro pólo, o da superioridade, que não permitiria aceitar uma produção normal, condizente com as características
específicas do país? É provável, aqui, que um mecanismo compensatório leve a ponderar apenas “o melhor” ou “o nada”,
desconsiderando as infinitas realidades intermediárias.).

A esse fator, acrescesse a estruturação dos arquétipos parentais, onde temos a imagem de um pai europeu, recém saído da
idade média, que tem como únicos objetivos à exploração e o rápido enriquecimento. Fascinado pela nudez e pela liberdade
das indígenas, o europeu reprimido abusa da ingenuidade da população. A mãe índia dá a luz a uma criança bastarda que é
abandonada pelo pai e rejeitada pela tribo materna. O mesmo problema se repete na formação do mestiço, que corresponde
a 38% da população brasileira segundo o censo de 2000 (IBGE). Em sua origem na história, o mestiço é fruto da lascívia e da
violência do senhor do engenho contra a mulher escrava. A imagem do mestiço como filho de um pai abusivo tem seus
reflexos mais evidentes no preconceito e na contundente estratificação social vigente no Brasil.

Portanto, a incapacidade de se basear nas figuras parentais, para se criar um ideal de desenvolvimento ou uma identidade
condizente com a realidade produtiva brasileira, gera vergonha e mantém engessadas as articulações de um nacionalismo
saudável. Tanto a vergonha quanto ao desamparo indica aqui um outro sintoma do mesmo complexo de inferioridade.

Alguns fogem da vergonha incorporando e reproduzindo o pai-bandido, assumindo uma persona bravata e arbitrária do tipo
“comigo ninguém pode”, nem mesmo a lei. Reproduzindo inconscientemente o comportamento exploratório, imediatista e
mercantilista paterno, o corrupto usa a terra e seu ambiente de modo predatório. Nada é para ser fixado ou produzido. Ele
não respeita nem a história, menos ainda, suas construções. O objetivo é “tirar vantagem”, “ser esperto” – criar uma falsa
superioridade.

Os discursos moralistas são engolidos pelo complexo paterno negativo e, portanto, são ineficientes. Não há nenhuma estima
verdadeira pelo pai, tampouco há auto-estima suficiente para assimilar qualquer proposta meramente educativa ou
moralizadora.

A busca de uma saída para esse impasse também é dificultada pela ausência do mito do herói, como precursor do
desenvolvimento egóico e modelo no processo de individuação. Como sabemos, o herói tem como tarefa contestar a ordem
vigente e promover a assimilação de novas forças arquetípicas na consciência coletiva. Numa cultura patriarcal, ele contesta o
pai e impõe novos valores, os quais foram conquistados pelo herói em resultado de seu próprio esforço.

Mas, como contestar um pai abandonador que não reconhece o filho? Um pai desconhecido, que nem sequer pôde um dia ter
sido admirado. Diferentemente do colonizador inglês, louvado e respeitado pelos norte-americanos, o pai português é motivo
de escárnio. São abundantes no país as piadas que, num claro mecanismo compensatório, retratam o português como um ser
inferior, estúpido e incompetente. Ao ridicularizá-lo, o brasileiro sente-se superior e ao mesmo tempo nega qualquer
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possibilidade de tomá-lo como modelo de figura paterna.

O afeto ausente no pai é procurado na repreensão em figuras de líderes políticos autoritários e corruptos, mas que através de
seu “protecionismo afetuoso” inibem a queixa ou o comportamento de um possível denunciante.

Como reclamar daquele que abusa do poder, mas estende a mão e protege? A história é plena de exemplos de como regimes
ditatoriais preencheram a lacuna do pai ausente. Nesse sentido, o poder político imposto pela força, pelo pulso firme e
repressor pode ser mais “afetivo” do que certos regimes democráticos, onde o afeto tem de ser deslocado dos complexos
parentais para um comportamento de alteridade. “Na democracia o afeto é baixo, pois não há um pai todo poderoso que vai
cuidar das carências do povo”. (Janine)

A opção pela democracia e pela igualdade engendrada pela razão é difícil de ser mantida num povo carente de identidade
parental. A criança abandonada tem irmãos abandonados, que se aliam na sombra contra o pai ausente - recorrendo à
malandragem e ao clientelismo na ausência de poder para enfrentar o pai.

Busca-se tirar vantagem em todas as situações possíveis, ao invés de se obedecer a imparcialidade da lei, cuja missão, ao
menos na doutrina, é assegurar valores civis e morais com eqüidade. Enredar conluios que lesam o pai (projetado no governo
ou na Lei) é uma das únicas saídas encontradas por aqueles que se sentem impotentes. (A outra seria, uma união saudável
entre os irmãos, vivendo numa sociedade de alteridade).

O complexo de inferioridade aqui ativa também a polaridade negativa do puer aeternus e cria a imagem de um país
eternamente jovem, cheio de riquezas e belezas tropicais. A ilusão do puer é de que amanhã certamente será magicamente
melhor que hoje. Essa ilusão foi fortemente impressa na cultura brasileira da década de 70 no bordão nacionalista “o Brasil é
o país do futuro”. A crença implícita neste lema revela uma promessa enganosa dissolvida em uma profissão de fé.

A falsa impossibilidade de realização no presente e a falta de conhecimento daquilo que constitui a força do brasileiro neste
exato momento são sintomas do complexo de inferioridade, compensados por fantasias de grandiosidade e comportamentos
espúrios. O filho bastardo, ilegítimo, reproduz a ilegitimidade pela oscilação entre baixa auto-estima e fantasias maníacas,
expressas na grandiosidade de projetos governamentais e em gigantescas festas carnavalescas, por exemplo. Assim, cria-se
um círculo vicioso, onde a impossibilidade de realização das fantasias megalomaníacas faz crescer o sentimento de
inferioridade, favorecendo a baixa auto-estima.

Cabe aqui lembrar que a corrupção como sintoma de um complexo cultural, nesse caso de inferioridade, embora afete a todos
os brasileiros, não é um comportamento expresso ou aceito pela maioria. Ela é um sintoma de uma patologia da cultura, um
distúrbio e um sofrimento para os brasileiros, à medida que todos são mais ou menos atingidos por ela, mas, de modo algum,
é um comportamento aceito pela maioria. Pelo contrário, grupos em diferentes instâncias, desde grandes instituições
educacionais às organizações não governamentais têm discutido o assunto, principalmente procurando medidas educadoras e
coibitivas.

Como vimos, entretanto, sem a consciência dos fatores inconscientes que geram essa patologia, os esforços públicos e
privados terão um efeito somente repressor, e, portanto, serão temporários. Pois, como vimos mecanismos históricos
repressivos causaram uma “amnésia sistemática” das qualidades positivas, criando uma identidade fictícia de difícil
superação.

Portanto, uma verdadeira mudança só ocorrerá com o enfrentamento doloroso do conflito inicial e com o suportar consciente
da tensão entre as polaridades inferioridade - superioridade. E, a opção pela integridade dependerá, em boa parte, da força
do ego coletivo e de sua coesividade frente à ansiedade que a consciência do conflito central pode provocar, num estado de
vigia constante.
Dessa forma, a assimilação consciente do conflito original, não é somente um sofrimento, mas é o caminho da cura, à medida
que pode permitir a liberação de grande energia e a constelação de novas forças na Consciência coletiva brasileira..

Com a auto-estima resgatada, não haverá lugar para a corrupção como sintoma patológico de um complexo cultural. Ela
ficará restrita somente ao conflito consciente entre o bem e o mal. Mas, isso já é outra história.

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