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“Genocídio não é a palavra correta”


O Estado sempre praticará genocídio quando operar ativamente para a criação de
condições nas quais as pessoas são deixadas para morrer

Indígenas protestam por demarcação de terras e contra Bolsonaro em Brasília, no dia 19 de abril.
JOÉDSON ALVES (EFE)

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VLADIMIR SAFATLE
25 OCT 2021 - 19:17 BRT

Esta foi, de fato, uma frase ouvida várias vezes nesses últimos dias no calor da aprovação do
relatório da CPI sobre as ações do Governo na pandemia: “‘Genocídio’ não é a palavra correta”.
Houve até mesmo editoriais de grandes jornais que estamparam ser um “abuso” acusar o
Governo brasileiro de genocídio. Não faltaram explicações aparentemente neutras e técnicas a
respeito da inadequação do uso do termo no caso brasileiro, mesmo que tenha sido por
“genocídio” que o sr. Bolsonaro foi denunciado junto ao Tribunal Penal Internacional, pela
Articulação dos povos indígenas do Brasil, em 9 de agosto de 2021. As opiniões contrárias
alegaram que não seria o caso de “banalizar” o termo.

Há de se lembrar que tal estratégia não é nova. Em relação ao mesmo Governo, algo semelhante
ocorreu quando foi questão de criticar quem usa o termo “fascista” para a ele se referir. No
entanto, quando escreveu sua “Declaração à nação”, no dia 9 de setembro, depois das
manifestações e falas golpistas no dia da Independência, Bolsonaro não deixou de assinar: “Deus,
pátria, família”. Diria que a parte mais importante de toda declaração era exatamente essa
assinatura. Pois, pela primeira vez na história, alguém ocupando a presidência do Brasil fazia
uma declaração à nação assinando-a com o lema da Ação Integralista Nacional. Ou seja,
“tecnicamente” o sr. Bolsonaro falou à nação como um integralista, como um fascista. Seria algo
equivalente à sra. Merkel assinar sua última declaração à nação como um : “Deutschland über
alles”. Não, nem por isso pareceu digno de nota perguntar-se sobre o sentido dessa associação
voluntária.

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Poderíamos mesmo continuar nosso espanto falando de livros de grande circulação que há até
bem pouco tempo enchiam as livrarias de nossos aeroportos como títulos como “Não somos
racistas”. Afinal, mais uma vez, mesmo que as práticas cotidianas e a realidade social teimassem
em gritar o contrário, o que acontecia conosco era “outra coisa” que exigiria uma finesse
analítica maior, uma capacidade de individualização de grande monta não acessível aos que
fazem associações indevidas e movidas por interesses políticos comezinhos.

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Governo
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Essa singular maneira de não dizer o nome das coisas é um traço constituinte de nossa história e
diz muito a respeito de como ela se perpetua. Pode parecer descuido, mas tem método. Ao não
nomeá-las, as ações e políticas permanecem, sua lógica interna não é explicitada, tudo acaba por
parecer uma mistura de “descaso”, “improvisação”, “desespero”. Ou seja, mobiliza-se uma série de
anticonceitos que visam a dizer que não há lógica implacável alguma por trás, há apenas agentes
procurando desastradamente preservar seus poderes e agir a partir de interesses individuais. Os
desastres são resultado da confusão geral.

Mas e se, sim, e se levantássemos a mera hipótese de haver de fato uma lógica genocidária em
marcha no interior do Estado brasileiro? Poderíamos fazer esse exercício de pensamento e se
perguntar sobre o que aconteceria nesse caso. Afinal, não seria a primeira vez na história que o
Estado brasileiro opera como gestor de genocídio. Dentre outros casos, a maneira com que
populações indígenas foram dizimadas é um exemplo perfeito de tais práticas. Ocupação,
escravização, destruição social e psíquica, extermínio populacional. As estimativas do IBGE
afirmam que a população indígena antes de 1500 era em torno de 3 milhões. Há estudos que
calculam algo em torno de 5 a 7 milhões. O último censo, de 2010, afirma existirem atualmente
817.923 indígenas. Em 1991, esse número era apenas de 294.131. Números dessa natureza não
mentem.

Quando foi cunhado, ao final da Segunda Guerra Mundial, o termo “genocídio” procurava limitar
a soberania dos estados nacionais, lembrando que há práticas de extermínio de populações que
não podem ser “prerrogativas” do exercício do poder de Estado, seja de suas políticas de
“segurança interna” ou de “pacificação”. Na verdade, a invenção pode ter sido ineficaz do ponto
jurídico, mas ela foi extremamente eficaz do ponto de vista político. Mesmo que ela tenha se
demonstrado de difícil utilização nos tribunais, ela se tornou uma importante peça política de
fortalecimento das dinâmicas de autodefesa contra a violência de Estado. A mobilização da
acusação de genocídio permite definir uma esfera fora da política, ou seja, situações nas quais o
Estado sai de um confronto que pode ser mediado de forma política. Pois suas ações não são
mais pensáveis como ações possíveis no interior de um campo de divergências políticas. Um
estado que age dessa natureza não pode mais exigir nenhuma forma de obediência e deve ter a
população contra ele.

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Essa lógica de genocídio não diz respeito à quantidade de pessoas que morrem, mas a forma
como morrem, a maneira com que o Estado funciona para setores da população não exatamente
como um “Estado protetor”, mas como um “Estado predador”. O Estado sempre praticará
genocídio quando operar ativamente para a criação de condições nas quais as pessoas são
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deixadas para morrer, nas quais ele mobiliza comportamentos que quebram noções
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elementares de prudência em relação às duas situações típicas nas quais se espera dele proteção,
a saber, em guerras e em pandemias. E sob essa perspectiva o Estado brasileiro agiu durante a
pandemia no interior de uma lógica de genocídio, sem nunca recuar, mesmo depois da
consolidação de 600.000 mortos.

Mas sendo assim, poderíamos nos perguntar: por que tanta resistência em chamar de gato um
gato? Seria por amor à enunciação cristalina do direito? Ou seria por medo das consequências?
Pois, afinal, ninguém faz um genocídio sozinho. Essa figura paradoxal do Estado que ativamente
deixa morrer tem uma razão de existência. Ele serve muito bem ao interesse da elite rentista
nacional e seus negócios. Há uma engenharia social por trás. Uma sociedade cujo afeto central é
a indiferença, uma sociedade que não para sob nenhuma circunstância para fazer o luto de seus
mortos é o sonho de todo gestor “técnico” que agora se indigna porque o Governo (por um
cálculo eleitoral, mas isso efetivamente pouco importa) resolveu furar o teto de gastos e deslocar
30 bilhões para transferência direta de renda. Porque onde reina a indiferença social não há
nenhuma obrigação de solidariedade, não há indignação alguma. Sem indignação alguma, o
rentismo pode viajar para Miami a fim de ser vacinado enquanto a população morre exatamente
por ausência de vacina.

Esses gestores são o verdadeiro fundamento do genocídio. Seu discurso técnico esconde uma
escolha política de resultados catastróficos. Na verdade, eles são a versão contemporânea de um
comportamento colonial que constituiu essas terras e não mudou em nada, a não ser no corte
das camisas. Ou seja, a acusação de genocídio não é apenas contra o sr. Bolsonaro, mas contra
toda a política que ele representa tão bem, contra todos os interesses que ele defendeu tão bem
nesses anos. Essa política econômica, que vários procuram dissociar do Governo, se realiza
necessariamente no genocídio.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.

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