Você está na página 1de 131

O MELHOR DE

J. R. GUZZO
TEMAS

IDEIAS – Pg. 08

COVID – Pg. 45

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA


NO BRASIL – Pg. 65

ELEIÇÕES – Pg. 98
APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO
A
o final de 2020 a Revista Oeste
completa nove meses de existência.
No tempo de uma gestação, a vida
pulsou frenética nas análises, denúncias
e provocações trazidas por um time de
primeira linha do jornalismo brasileiro. A
ousadia de nascer em meio à pandemia da
covid-19 foi capitaneada editorialmente
por J. R. Guzzo, um dos raros jornalistas
da história da imprensa nacional capaz de
estabelecer um pacto honesto de valores
morais com o leitor.
Para além da transparência no posiciona-
mento da publicação, Guzzo se destaca por
abordar de frente temas incômodos, que
minam sorrateiramente a vida de milhões
de cidadãos. Foi assim que tratou o auto-
ritarismo do STF em vários episódios des-
te ano, a epidemia de disfunção cerebral
provocada pelo novo coronavírus em go-
vernadores e prefeitos, a perseguição cega

Apresentação 04
e diária da imprensa a qualquer coisa que
diga respeito ao presidente Bolsonaro.
Guzzo traduz com clareza singular os ab-
surdos da agenda progressista. Usa de ironia
fina ao dizer que “a branquitude em si é um
delito” ou que a humanidade estaria pres-
tes a criar leis que tornem ilegal a existên-
cia da família, uma vez que “ela seria a base
dos preconceitos, da discriminação, das di-
ferenças de classe, do sexismo, do autorita-
rismo e do capitalismo selvagem”.
Como diz o Diretor de Redação de Oes-
te, Kaíke Nanne, Guzzo não faz concessões
nem busca aplausos. Ele entende o jornalis-
mo como um serviço à sociedade e se põe
integralmente à disposição de um único Se-
nhor: o leitor. Em nome dos interesses des-
te leitor, Guzzo professa a intervenção mí-
nima de um Estado que inferniza pagadores
de impostos, expõe as feridas de uma de-
mocracia natimorta e alerta para as falhas

Apresentação 05
de um sistema eleitoral tão viciado quanto
conveniente aos altos servidores do Estado,
a sindicalistas e políticos. Estes, aliás, se re-
vezam entre si como em um jogo de cartas
marcadas de quem escreve as leis que nós, ci-
dadãos, apenas cumprimos — e pelas quais,
obviamente, pagamos.
Engana-se, porém, quem pensa que J. R.
Guzzo pertence ao grupo daqueles que se
limitam a apontar problemas. Cidadão, an-
tes e acima de toda a sua excepcionalidade
editorial, Guzzo também mostra caminhos,
soluções. Da defesa do voto distrital — que
“implodiria a farra das despesas bilionárias
das campanhas eleitorais” — à exploração
do legado de figuras-chave do liberalismo
mundial, Guzzo sabe para onde a humani-
dade deve caminhar. E compartilha conos-
co esses caminhos.
São essas e outras reflexões marcantes de
autoria de J. R. Guzzo que o leitor encontrará

Apresentação 06
neste e-book. Todos os artigos a seguir foram
publicados originalmente na Revista Oeste,
ao longo de 2020. Como excertos de uma
publicação jornalística vinculada à atualida-
de dos fatos, os textos foram mantidos com
a redação da data de publicação, que consta
junto aos títulos. É importante que o leitor
considere, portanto, o momento em que ca-
da material foi escrito.
A graça de ler artigos de Guzzo também
está na atemporalidade de seus argumentos,
mesmo diante de episódios tão factuais, co-
mo a Lei das Fake News, as eleições norte-
-americanas e os números da covid-19.
Este é um presente da Revista Oeste para
você. Fique à vontade para compartilhá-lo
com seus amigos também. Esperamos que
sua leitura seja proveitosa. Esperamos você
na Oeste.

Os editores

Apresentação 07
IDEIAS

IDEIAS
OS PROGRESSISTAS E A
MARCHA DA INSENSATEZ
O Novo Testamento da Virtude Política é
um assombro. Mas o bom senso recomenda
que se considere a realidade antes de
chamar o padre para dar a extrema-unção
ao mundo como ele é hoje.

7 AGO 2020
J. R. GUZZO

B
oa parte daquilo que lhe dizem hoje
em dia nos meios de comunicação,
ou nas conversas do seu círculo
social, indica que o mundo está ficando cada
vez mais sem noção. A sua lógica recebe
tiros por todos os lados. Pela mais recente
tábua de mandamentos do feminismo
realmente avançado, por exemplo, não
se pode mais mencionar a existência de
mulheres que menstruam; agora é preciso
dizer “pessoas que menstruam”, sob pena de
machismo, fascismo e discriminação “contra
os transgêneros”. Mas biologicamente só
mulheres podem menstruar; não há nenhuma
outra possibilidade, desde que o ser humano
surgiu, há cerca de 2 milhões de anos. O
que poderia haver de errado em dizer isso?
Não interessa. É preconceito, pois nega a
um homem que se sente “no corpo errado”,
e gostaria de ser mulher, o direito de ficar
menstruado. Em suma: a menstruação deve

Ideias 10
J. R. GUZZO

ser tratada como um fenômeno fisiológico


que pode ser acessado por todas as “pessoas”.
Todo indivíduo de pele branca, seja lá qual
for o seu comportamento, é racista; segundo
os generais da atual guerra pela canonização
imediata e mundial da etnia negra, o equi-
pamento genético dos brancos, ou algo as-
sim, os condena à prática do racismo, ou do
crime de “branquitude”. Não se menciona
como isso poderia funcionar com as etnias
orientais, por exemplo, ou com os esquimós;
também não há lugar, na cabeça dos defenso-
res mais agressivos da nova consciência ra-
cial, para as pessoas que são fruto de séculos
de cruzamento entre brancos e negros. No
Brasil, por exemplo, estamos diante de um
problema sem solução. Dezenas de milhões
de pessoas, na verdade a maioria da popu-
lação brasileira, não são brancas nem pre-
tas — o que se vai fazer com essa gente to-
da? Pelo que deu para entender das últimas

Ideias 11
J. R. GUZZO

liminares baixadas na vanguarda intelectual


do antirracismo como ele é praticado ho-
je, o tipo chamado “brasileiro”, ou “more-
no”, também é racista — talvez até mais que
os brancos. Em suma: ou o cidadão tem o
seu tom de pele negra aprovado pelo “cam-
po progressista”, ou não tem salvação pos-
sível. A “branquitude”, em si, é um delito. O
sujeito não precisa ser da Ku Klux Klan, ou
a favor do apartheid, para ser racista; basta
ter nascido branco.
É obrigatório, para todo cidadão que quei-
ra ter uma ficha politicamente limpa neste
mundo, ir à rua, protestar ou manifestar-se
em público contra “o fascismo”. Não está
disponível a opção de pensar em outra coi-
sa, ou simplesmente de não pensar no as-
sunto; pelo novo catecismo hoje em vigor,
o “silêncio” equivale à prática dos delitos
de racismo, machismo, exclusão social, ne-
gação da “diversidade”, injustiça, promoção

Ideias 12
J. R. GUZZO

da desigualdade e sabe-se lá quantas outras


calamidades mais. Também é compulsória
a militância ativa por um “planeta susten-
tável”. Seria muita sorte, para todos, se es-
se dever se limitasse à preservação da natu-
reza, do ar puro e das geleiras; mas hoje em
dia tudo isso está longe de ser suficiente. É
indispensável, também, denunciar o excesso
de bois, frangos e porcos na população ani-
mal. Sua alimentação (e a dos animais) tem
de ser orgânica. É proibido aceitar a meca-
nização da agricultura, o uso de fertilizan-
tes, a aplicação de defensivos químicos con-
tra pragas, as “grandes propriedades” e, em
geral, a presença do capitalismo na ativida-
de rural. O uso de hormônios para apressar
o crescimento de frangos, por exemplo, está
terminantemente proibido. (Tem de ser per-
mitido, e até pago pelos serviços sociais do
Estado, quando se trata de dar hormônios
para bloquear o desenvolvimento natural

Ideias 13
J. R. GUZZO

trazido pela adolescência a crianças “con-


fusas” quanto ao seu sexo, como se diz; mas
para frango de granja não pode.) A indús-
tria, como um todo, é ruim. A produção de
energia, hidroelétrica ou de qualquer natu-
reza, é pior ainda. E o capital, então? Melhor
nem falar.

PELAS NOVAS REGRAS, HOMENS E


BICHOS DEVEM TER DIREITOS IGUAIS

Há dois meses a cidade americana de


Portland, com uma população de quase 3 mi-
lhões de habitantes na sua área metropolita-
na, vem sendo destruída, incendiada e vio-
lentada por gangues que se descrevem como
“antifascistas” — teoricamente, ainda em si-
nal de protesto contra a morte de um negro
por um policial branco. O atual pensamento
progressista sustenta que destruir proprie-
dade pública e privada, agredir policiais e

Ideias 14
J. R. GUZZO

impedir o direito de ir e vir dos cidadãos


de Portland é um direito dos militantes.
O governo local do Estado e do municí-
pio, controlado pela esquerda do Partido
Democrata, acha muito justo. Mais que is-
so: reivindica-se que a cidade ganhe uma
espécie de extraterritorialidade, como se
fosse uma embaixada estrangeira ou re-
serva indígena, onde a autoridade pública
não poderia ser aplicada e as leis norte-a-
mericanas não teriam valor. A mesma coi-
sa é exigida pelo movimento antirracista
em Seattle, com cerca de 4 milhões de ha-
bitantes e não distante de Portland. Os lí-
deres querem que a polícia seja legalmente
proibida de entrar em determinadas áreas
dessas cidades, que o orçamento da segu-
rança seja reduzido pela metade, que mais
verbas públicas sejam entregues a “proje-
tos de interesse da comunidade negra” e
por aí se vai.

Ideias 15
J. R. GUZZO

Levam-se intensamente a sério, no Primei-


ro Mundo e nos seus subúrbios, propostas
para abolir as fronteiras entre os países, aca-
bar com os passaportes e estabelecer como
“direito fundamental do homem” a possi-
bilidade legal de imigrar para qualquer país
da Terra, sem pedir licença a ninguém. Imi-
grantes, além disso, deveriam ter o direito
de não falar a língua dos países para os quais
imigraram — e ser entendidos em tudo o
que dizem no seu próprio idioma, a começar
pelas autoridades. É comum que se pregue
a criação de leis tornando ilegal a existência
da família; ela seria a base dos preconceitos,
da discriminação, das diferenças de classe,
do sexismo, do autoritarismo e do capitalis-
mo selvagem. Não deveria haver mais dis-
tinções legais entre adultos e crianças. To-
dos os hospícios teriam de ser fechados; a
psiquiatria é uma “ciência autoritária”, e seu
exercício deveria ser colocado fora da lei. A

Ideias 16
J. R. GUZZO

criação de animais para a alimentação huma-


na precisa ser proibida, por equivaler à prá-
tica da escravidão. Na verdade, pelas novas
regras, homens e bichos devem ter direitos
iguais. Há, nessas mesmas esferas e na dire-
ção oposta da abolição de fronteiras, todo
um movimento para criar áreas fechadas na
cultura: só negros teriam direito de escrever
sobre negros, ou de usar os seus penteados,
ou de representar o papel de Otelo no teatro.

“JULGAR AS PESSOAS É
VISTO COMO UMA CONDUTA
DISCRIMINATÓRIA”

O que mais? Mais tudo o que você quiser;


a lista completa daria para encher uma En-
ciclopédia Britânica, e não é preciso chegar
a tanto. Já deu para entender, não é mes-
mo? “Todos os limites que deram significa-
do à experiência humana, por centenas de

Ideias 17
J. R. GUZZO

anos, estão sendo questionados e postos à


prova”, disse em entrevista publicada pela
Revista Oeste em sua última edição o soció-
logo Frank Furedi. Isso é resultado, em sua
visão, de uma crise moral — que por sua vez
tem origem na crença, muito em voga ho-
je em dia, de que é errado fazer distinções e
julgamentos. “Julgar as pessoas é visto co-
mo uma conduta discriminatória”, diz Fure-
di. “É o que se ensina nas escolas: ‘não jul-
gue o colega’, ‘não existe bom ou ruim’, ‘não
há certo ou errado’. Mas, se você começa a
destruir os limites morais, cria-se uma men-
talidade em que as pessoas se tornam into-
lerantes com os limites em geral.” Isso, na
sua opinião, é estúpido. É mesmo.
A questão, a partir daí, é tentar enxergar
para onde essa marcha da insensatez es-
tá nos levando. Ou, mais precisamente: o
pensamento descrito acima, com todos os
seus similares, será ou não será capaz de

Ideias 18
J. R. GUZZO

interromper o progresso das sociedades hu-


manas, tal como ele é entendido hoje? A vida
vai realmente mudar? Na prática, são essas
as questões que interessam no curto prazo
— que, como ensina a experiência, é sempre
bem mais interessante que o longo. À pri-
meira vista, a coisa toda está com a pior cara
possível. Em sua comemoração do “Dia dos
Pais”, a Natura, empresa do ramo de cosmé-
ticos, acaba de dar o título de “Pai do Ano”
a uma mulher; há pouco tempo, o prêmio de
“Miss Espanha” foi dado a um homem. Es-
tátuas de Cristóvão Colombo são destruídas
nos Estados Unidos, e murais em sua home-
nagem, fechados na Universidade de Notre
Dame, para que ele pague, 500 anos depois,
o crime de ter descoberto a América e, com
isso, levado ao “genocídio dos povos indíge-
nas”. Multinacionais bilionárias, que até an-
teontem se achavam exemplos superiores de
tudo o que pode haver de bom na liberdade

Ideias 19
J. R. GUZZO

em geral (e econômica em particular), exi-


gem que o Facebook e o Twitter formem co-
mitês de censura para proibir a circulação de
mensagens de “de direita/de ódio/extremis-
tas” — algo como obrigar os Correios a exa-
minar o conteúdo das cartas que recebem do
público, e só entregar as que forem previa-
mente aprovadas pela sua direção. Jornalis-
tas são postos para fora (do The New York
Times, digamos) por não se encaixar no mo-
delo exigido pelo “coletivo” das redações.
O filme …E o Vento Levou, rodado em 1939,
foi recentemente tirado de circulação por “ra-
cismo” — só voltou ao ar com uma introdu-
ção “histórica”, equivalente a um pedido de
desculpas, em que uma “ativista” negra faz a
denúncia da “injustiça social” e do “desres-
peito aos negros” que teriam sido praticados
81 anos atrás pelos produtores, diretor, ato-
res e técnicos responsáveis por essa “narra-
tiva”. Já mudaram o título que John Lennon

Ideias 20
J. R. GUZZO

deu em 1972 a uma de suas canções (Wo-


man Is the Nigger of the World) pela mes-
ma acusação — “racismo”. Fala-se em cotas
na distribuição do Oscar; “minorias” deve-
riam ter um número prefixado de estatue-
tas. Universidades norte-americanas estão
criando cerimônias de formatura separadas
para brancos e negros — por exigência de
“lideranças” negras. Professores considera-
dos de “direita” são cada vez mais proibidos
de dar cursos, ou mesmo fazer uma palestra,
no ensino superior. Uma confederação de
empresas internacionais ameaça fazer boi-
cote econômico contra os produtos agríco-
las e a indústria de alimentos do Brasil caso
continue o que descreve como “destruição
da Amazônia”. O presidente da França não
gosta do agronegócio brasileiro — nem o rei
da Noruega, o papa Francisco, o Comitê de
Diversidade do Conselho da Europa e nove
entre dez intelectuais atualmente vivos.

Ideias 21
J. R. GUZZO

Tudo bem — mas o futuro vai ser mesmo


como essa gente está querendo, ou dizendo
que quer? Isso aqui não é uma aula de socio-
logia; é só um artigo de revista. Em todo ca-
so, a prudência e o bom senso recomendam
que se pense um pouco mais nas realidades
antes de chamar o padre para dar a extrema-
-unção ao mundo como ele é hoje. É provável
que a resposta mais aproximada a essa per-
gunta seja a seguinte: depende. O Novo Tes-
tamento da Virtude Política deve gerar mais
efeitos concretos nos setores da sociedade
mais sensíveis à crença de que a vida possa
realmente ficar melhor desse jeito; onde es-
sa fé não existir, ou for apenas morna, o es-
sencial não muda. Os efeitos vão variar, mui-
to possivelmente, de acordo com as classes
sociais — quanto mais pobre, ou menos rica,
for a classe, menos importância vai se dar à
ideia de que um pai pode ser mulher, ou que
se deva derrubar as estátuas de Cristóvão

Ideias 22
J. R. GUZZO

Colombo, mesmo porque a maioria nem sa-


be quem foi Cristóvão Colombo. Da mesma
forma, tendem a dar mais atenção às ideias
“corretas” os que menos precisam trabalhar
para viver; os que mais trabalham, sobretu-
do nas ocupações mais modestas, pesadas e
mal pagas, devem ser os que menos tempo
vão dedicar à igualdade de direitos entre ani-
mais e seres humanos, ao desarmamento da
polícia ou ao aquecimento da calota polar.

TENDEM A DAR MAIS ATENÇÃO ÀS


IDEIAS “CORRETAS” OS QUE MENOS
PRECISAM TRABALHAR PARA VIVER

Interesses econômicos de ordem prática,


ligados ao próximo balanço a ser apresenta-
do aos acionistas, também precisam ser le-
vados em consideração. Empresas de origem
francesa como a Renault, a Saint-Gobain ou a

Ideias 23
J. R. GUZZO

Danone, por exemplo, devem continuar em-


penhadas na defesa de suas posições no mer-
cado brasileiro de automóveis, de vidros e de
laticínios; não está claro quanto estão dis-
postas a concordar com o presidente Emma-
nuel Macron nos seus discursos de boicote
ao Brasil. Ainda quanto ao Brasil, sempre é
bom lembrar que nunca houve tanta pres-
são contra o agronegócio — e nunca o agro-
negócio brasileiro foi tão forte como é hoje.
Pelo barulho que se faz, o Brasil deveria es-
tar de volta à “pequena propriedade” rural,
ao carro de boi e à importação de alimen-
tos. Pela realidade que se pode observar, o
país tornou-se o maior ou um dos maiores
produtores de alimentos do mundo; mais de
metade da safra do ano que vem já está ven-
dida, antes mesmo de ser plantada. Da mes-
ma forma, é melhor esperar um pouco antes
de marcar uma data para o fim do capitalis-
mo nos Estados Unidos — ou no Japão, na

Ideias 24
J. R. GUZZO

Europa e no resto do mundo. Alguém se lem-


bra do movimento Occupy Wall Street, que
ia acabar com a bolsa de valores e os bancos
norte-americanos dez anos atrás? Pois é.
Há valores diferentes, e muito, conforme
o lugar do mundo onde você está. É duvido-
so que a China, por exemplo, com o seu 1,4
bilhão de habitantes, esteja interessada nas
queixas, exigências e necessidades da etnia
negra, ou de qualquer outra. E a Índia? Se-
ria um país negro? Ou sofreria de “branqui-
tude”? Não dá para dizer — e lá se vai mais
1,3 bilhão de cidadãos. As “causas” defendi-
das nas ruas norte-americanas, europeias ou
brasileiras seriam as mesmas dos países da
Ásia, ou das sociedades muçulmanas? Quan-
ta importância se dá aos direitos das mulhe-
res no Paquistão ou na Arábia Saudita? Mais
de 3 bilhões de pessoas, incluindo China e
Índia (onde não passa pela cabeça de nin-
guém abolir o sistema de castas, que exige

Ideias 25
J. R. GUZZO

direitos diferentes conforme a definição so-


cial do indivíduo), vivem em regimes onde
se aceita sem maiores problemas a ausência
da liberdade, da igualdade ou da democra-
cia. É gente que não acaba mais; devem sa-
ber o que estão fazendo. Os valores defendi-
dos em Seattle não são os que se levam em
conta em Xangai. O que as pessoas têm em
comum, no mundo de hoje, é muito menos
do que aquilo que as separa.
Em suma: quem acredita que não pode
mais haver limites para nada neste mundo
precisaria combinar isso com os chineses.
Além dos russos, é claro.

Leia o artigo original na revista

Ideias 26
J. R. GUZZO

A VERTIGEM DA ELITE
INTELECTUAL
A moral do bioma que vive na
universidade, na “burguesia liberal”
e na imprensa é fruto de preguiça,
oportunismo e incapacidade de aceitar a
decisão da maioria.

10 JUL 2020
J. R. GUZZO

A
elite intelectual brasileira, ou a
nebulosa de indivíduos que imaginam
representar o papel de intelectuais
brasileiros na cena pública, criou ao longo
dos dois últimos anos uma nova moral. Ela
não enxerga mais a existência humana como
algo que deve ser comandado pelas escolhas
entre o bem e o mal, tais como um e o outro
são definidos por princípios que toda pessoa
decente sabe muito bem quais são. Não são
ensinados em aulas de ciência política nem
em editoriais da imprensa; fazem parte,
simplesmente, do “universo moral” a que se
refere Martin Luther King, em que vigoram
leis de conduta que funcionam com a mesma
exatidão das leis físicas. Essa nova moral
esqueceu as opções universais que separam o
certo do errado: a medida de todas as coisas
passou a ser uma pessoa determinada, com
CPF, identidade e ocupação conhecidos. Seu
nome é Jair Bolsonaro.

Ideias 28
J. R. GUZZO

Pelas novas leis morais em vigor, tudo o


que se faça, diga ou pense em relação ao pre-
sidente da República é um ato de virtude se
for contra ele; se for a favor, ou mesmo se
for apenas neutro, é o mal. A partir daí, es-
tá encerrada qualquer possibilidade de de-
bate político no Brasil. Quem é íntegro, pa-
triota e comprometido com o bem comum
e as boas causas, segundo a moral ora em vi-
gor na sociedade que se considera civiliza-
da neste país, tem de ser contra Bolsonaro,
pouco interessando o que ele realmente faz
ou não faz na vida real. Não vale mais o prin-
cípio, um dos pilares do “universo moral” de
King, segundo o qual todo homem deve ser
julgado por seus atos, e não por seus pen-
samentos; no caso, o homem é condenado
apenas por ser quem é. Entregue à própria
vertigem, a elite intelectual chegou ao pon-
to que todos podem ver agora: está negan-
do ao presidente o direito à vida.

Ideias 29
J. R. GUZZO

Não é possível haver nenhum tipo de mora-


lidade sem compaixão — nem mesmo a que
foi inventada pela elite brasileira para con-
viver com os seus rancores e canalizar frus-
trações mal resolvidas. Quando pessoas que
se apresentam como porta-vozes de ideias,
de cultura e de civilização dizem que “enten-
dem”, ou aplaudem, um manifesto em que
se deseja diretamente a morte de um ser hu-
mano, é inútil perder tempo tentando en-
tender os argumentos que apresentam. Isso
é sinal de que o seu aparelho mental deixou
de operar de acordo com valores morais; já
não é capaz de reagir aos estímulos mais ele-
mentares emitidos pelas noções do bem e do
mal. O respeito à própria integridade, como
se costuma dizer, é uma exigência da moral;
o respeito ao próximo é um requisito da boa
educação. No Brasil que transformou o an-
tibolsonarismo em religião, não sobrou ne-
nhuma das duas coisas.

Ideias 30
J. R. GUZZO

A moral desse bioma que vive na univer-


sidade, na “burguesia liberal” (que não gos-
ta de ser chamada de “burguesia”, mas faz
questão do “liberal”), nas redações de jornal
e nos estúdios de televisão, entre outros ha-
bitats desse tipo, não é, naturalmente, mo-
ral nenhuma. É fruto, antes de mais nada,
da preguiça para pensar; ter ódio sempre dá
muito menos trabalho do que ter ideias. Lo-
go depois vem o oportunismo — se no am-
biente ao seu redor, sobretudo no trabalho,
a fé da maioria exige que o presidente seja
detestado, é bem mais seguro achar a mes-
ma coisa. Pode até dar lucro, dependendo
do seu empenho em concordar com o chefe.
Juntam-se a incapacidade de sugerir alterna-
tivas coerentes para “esse governo que está
aí”, a frouxidão de caráter e a irritação co-
mum que tanta gente tem diante de pensa-
mentos independentes. Enfim, há um combo
perverso que une a incapacidade de aceitar

Ideias 31
J. R. GUZZO

decisões da maioria, quando o sujeito não es-


tá de acordo com elas, e o recalque de ter de
dividir o Brasil com o povo brasileiro — não
o povo dos cursos de sociologia, mas o po-
vo como ele realmente é: evangélico, defen-
sor da propriedade privada, contra o aborto,
a favor da família, contra o bandido, a favor
da polícia, admirador dos militares, bolso-
narista e por aí vamos.

UMA CRIANÇA DE 10 ANOS SERIA


CAPAZ DE BATER NESSE GOVERNO.
ONDE ESTÁ A VALENTIA?

Pessoas que não precisam mais de trin-


ta segundos para encontrar argumentos que
justifiquem o ódio, a vingança e uma ora-
ção à morte como essa que acaba de ser fei-
ta gostam de ver a si próprias como espíritos
livres de “convenções”. Apenas escondem,

Ideias 32
J. R. GUZZO

com isso, a sua incapacidade de sentir — ou


de gostar sinceramente de outras pessoas
de carne e osso. No fundo, não se importam
com ninguém. Só dão valor aos próprios de-
sejos — e só se sentem seguras cuidando de-
les. Acham mais importante definir-se como
“de esquerda” antes de se definirem como se-
res humanos. Têm, enfim, a falsa coragem de
bater num governo que cumpre a lei nos seus
detalhes mais extremados e vive paralisado
pelo medo de parecer autoritário. Não há ris-
co nenhum em bater num governo como o
de Bolsonaro, que tem mostrado a energia de
uma minhoca para se defender; uma criança
de 10 anos de idade seria capaz de bater nes-
se governo. Onde está a valentia?
O efeito mais destrutivo da nova moral é
ter criado um país legalmente incompreen-
sível. Como tudo o que se pode fazer contra
o presidente da República e o seu governo
passa hoje por um serviço ao bem comum, à

Ideias 33
J. R. GUZZO

pátria e à própria humanidade, o STF viola


todos os dias a Constituição na cara de to-
do mundo — e a elite elogia. Faz há quinze
meses um inquérito ilegal contra bolsona-
ristas radicais, no qual nega aos advogados
dos cidadãos que está perseguindo o acesso
a uma parte dos autos. Prende pessoas sem
apontar a elas os crimes que teriam come-
tido. Toma decisões secretas. Executa uma
investigação penal que só o Ministério Pú-
blico está autorizado pela lei a fazer. O que
vale para uns não vale para outros.

O STF VIOLA TODOS OS DIAS A


CONSTITUIÇÃO NA CARA DE TODO
MUNDO — E A ELITE ELOGIA

Querer que o presidente morra não é crime;


é um desejo, que pode ser pervertido do pon-
to de vista humano e insultuoso para os 58 mi-
lhões de brasileiros que exerceram seu direito

Ideias 34
J. R. GUZZO

legal de votar em Bolsonaro em 2018, mas é


apenas isso, um desejo. Não há punição legal
para desejos; só há as sanções que podem vir
de quem os escuta. Quando Pedro odeia Pau-
lo, fica-se sabendo mais sobre Pedro do que
sobre Paulo — é o caso, precisamente. O pro-
blema é que os jornalistas que fazem militân-
cia em favor do presidente (“blogueiros”, co-
mo diz a mídia) deveriam ter tratamento igual.
Por que um, o que escreve no jornal que está
querendo que o presidente morra, é o autor
de uma opinião, e os outros são autores de cri-
mes? Dos dois lados, o que se tem é a manifes-
tação de vontades, e não a execução de atos. Só
que, no Brasil democrático de 2020, o primei-
ro ganha honra ao mérito como usuário do di-
reito constitucional de livre expressão. Os de-
mais, que nem desejaram em público a morte
de ninguém, vão para a cadeia do STF.

Leia o artigo original na revista

Ideias 35
J. R. GUZZO

DE CHURCHILL AO
MADUREIRA
3 ABR 2020
J. R. GUZZO

O
jornalista Marcus Gee teve há pouco
uma excelente ideia, e a partir dela
escreveu uma matéria notável para
o jornal canadense The Globe and Mail, de
Toronto. Em tempos de crise mundial como
os que vivemos agora, assustadores, incertos
e com um milhão de autoridades, grandes,
mínimas e ineptas, tomando decisões que
vão afetar diretamente as nossas vidas,
talvez nada esteja fazendo tanta falta para
a humanidade quanto uma liderança maior,
muito maior, que os problemas. Gee teve
a ideia do artigo ao receber de um amigo,
nestes dias de coronavírus e de pânico, uma
foto de Winston Churchill, com a seguinte
legenda: “O que Winston diria?”
É uma excelente pergunta, observa Gee.
“As pessoas, por toda a parte, estão procu-
rando uma liderança forte” , escreve ele.
“A maioria não está encontrando.” Que li-
derança poderia ser esta, idealmente? “A

Ideias 37
J. R. GUZZO

lendária presença de Churchill como pri-


meiro-ministro do Reino Unido durante a
guerra oferece um exemplo precioso de co-
mo liderar em tempos de perigo e de pavor”,
diz o autor. É uma tragédia ainda pior que
a epidemia, realmente, verificar as lideran-
ças paupérrimas que o mundo encontra ho-
je dentro dos governos, em todos os níveis.
Não têm a capacidade intelectual que o mo-
mento exige. Não têm a autoridade moral.
Não têm a coragem. Churchill tinha. Faz
uma imensa diferença.
Sempre se pode dizer, é claro, que Chur-
chill é Churchill, e não se fazem dois como
ele. Mas também é um tremendo azar, da
nossa parte, que tenha cabido a nós viver
esse momento de nossas vidas sob um co-
mando geral tão miserável quanto o que te-
mos. Não precisava ser um Churchill; tudo
bem. Mas também não precisava ser o que
é. Não temos líderes. Temos, de um modo

Ideias 38
J. R. GUZZO

geral, um bando de coelhos assustados que


têm medo de perder pontos nas “pesquisas
de opinião”, copiam-se uns aos outros e pu-
nem as populações que governam com o pe-
so de sua ignorância sem limites em ques-
tões elementares de ciência. É melhor nem
falar, aqui, no Brasil. Em vez de Churchill,
temos Doria, Witzel e Caiado. É a morte.
“Quando ele se tornou primeiro-ministro
em maio de 1940, a posição da Grã-Breta-
nha parecia sem nenhuma esperança”, es-
creve Gee. “Todos nós sabemos o que acon-
teceu em seguida. Churchill uniu o povo
britânico, e convenceu as pessoas que, por
mais grave que fosse a sua posição, a so-
brevivência e mesmo a vitória eram possí-
veis. As lições para os líderes de hoje são
claras.” A primeira delas é ser honesto e di-
zer a verdade – algo que muito pouca gente
consegue fazer neste momento de aflição
para todos. Gee lembra a tirada imortal de

Ideias 39
J. R. GUZZO

Churchill logo no seu primeiro discurso no


Parlamento – palavras que ficarão gravadas
para sempre como um dos momentos mais
sublimes do espírito humano. “Eu não te-
nho nada a oferecer senão sangue, trabalho
duro, suor e lágrimas”. Foi a mesma hones-
tidade, brutal e maravilhosa, que utilizaria
pouco depois: “Não se ganham guerras com
retiradas”.
Churchill jamais deixou de chamar de
“derrotas” o que foram realmente derrotas
militares – o que diria desse tipo de cora-
gem, hoje, a coleção de idiotas que cerca as
nossas autoridades com um crachá de “De-
partamento de Marketing” pendurado no
pescoço? Com as bombas caindo sobre Lon-
dres, jamais deixou de sair às ruas. Jamais
pensou em confinamento, horizontal ou
vertical. O que fez foi liderar. Foi enfrentar
o perigo, em vez de se esconder. Foi trans-
mitir esperança, com base nas realidades

Ideias 40
J. R. GUZZO

ao seu dispor, e conduzir o povo britânico


– e a democracia mundial – ao maior triun-
fo de suas histórias.
“Conseguiriam os líderes de hoje apren-
der com esse esplêndido precedente?”, per-
gunta Gee. A pergunta fica em aberto. O
que dá para dizer, com os anões que temos
aí – e cujos gestos de maior coragem são
prender cidadãos na rua e invadir fábricas
de máscaras hospitalares, para aparecer nos
jornais de televisão – é que estamos muito
mal. É disputar a Liga dos Campeões com
o time do Madureira.

Leia o artigo original na revista

Ideias 41
J. R. GUZZO

GLOBALISMO, UMA
IDEIA CRETINA
20 MAR 2020
J. R. GUZZO

E
ste ano de 2020 está sendo realmente
uma desgraça para o globalismo –
a tentativa de construir um mundo
sem fronteiras, sem governos e mais ou
menos sem países, livre do capitalismo e
dirigido sabiamente por um condomínio
de burocratas bem pagos de organizações
internacionais (com estabilidade plena
no emprego e aposentadoria integral),
celebridades de esquerda como a ex-presidente
chilena Michelle Bachelet e financistas
bilionários. Primeiro foi a saída da Inglaterra
da União Europeia, já em fevereiro – somos
britânicos, decidiu a maioria do eleitorado,
e não europeus, nem “cidadãos do mundo”.
Agora vem esse coronavírus.
Na Itália, as autoridades locais da Tosca-
na e do Lazio, num acesso de globalismo em
modo extremo, lançaram o lema: “Abrace
um chinês”. Hoje, com 3.000 mortos desde
o início da epidemia, não se ouve mais um

Ideias 43
J. R. GUZZO

pio sobre essas fantasias de paz e amor en-


tre os povos. Num dia só, ontem, morreram
475 pessoas na Itália, coisa que não aconte-
ceu nem na China. Ideias cretinas são um
perigo real. Podem matar pessoas.

Leia o artigo original na revista

Ideias 44
COVID

COVID
J. R. GUZZO

A NEUROSE DO VÍRUS —
OU O VÍRUS DA NEUROSE
A doença real não vai ser encontrada
na infecção dos pulmões, e sim no
equipamento cerebral de cada um.

23 OUT 2020
J. R. GUZZO

O
ito meses seguidos de covid estão
deixando claro, cada vez mais, que
um dos piores efeitos colaterais da
epidemia foi um assalto maciço à saúde mental
de pessoas que nunca tiveram um único
sintoma real da infecção, nem precisaram
de qualquer tipo de cuidado médico por
causa dela. Essa patologia, mal percebida
no começo da onda, e progressivamente
instalada no comportamento cotidiano
das vítimas, se manifesta através de uma
anomalia básica: a aceitação passiva, e
em seguida muito ativa, de convicções
irracionais no seu sistema cerebral, emotivo
e psicológico. É como se tivessem desligado,
em algum lugar, a chave-geral que assegura o
funcionamento normal — ou aquilo que era
considerado normal até algum tempo atrás
— dos circuitos nos quais se movimenta o
pensamento humano.
Faz algum sentido o cidadão entrar num

Covid 47
J. R. GUZZO

restaurante, sentar-se à mesa e só tirar a


máscara na hora de comer — ou, pior ain-
da, ficar pondo e tirando a cada garfada?
Claro que não, mas quem se comporta des-
se jeito está convencido de que está certo
e os demais estão arriscando a própria vi-
da — e a vida dele, nas ocorrências mais
radicais de militância antivírus. Não é nor-
mal, da mesma maneira, que muita gen-
te considere essencial, além da “bike”, do
capacete e do uniforme importados, usar
máscara para rodar ao ar livre de bicicleta.
Fazem como se fazia no ano 1300, ou por
aí, quando os barões, os médicos e os pa-
dres convenceram as pessoas que a peste
negra vinha pelo “ar”. (Seu conselho capi-
tal, 700 anos atrás: “Fique em casa”.) Já se
viram mães que colocam minimáscaras em
seus bebês quando vão passear com o car-
rinho; é óbvio que a única doença presen-
te no caso está na cabeça delas mesmas.

Covid 48
J. R. GUZZO

Na França, berço da civilização ocidental-


-cristã-progressista, farol da sabedoria, da
inteligência, da lógica e do humanismo, as
autoridades acabam de tomar uma medida
realmente extraordinária: os quase 70 mi-
lhões de habitantes do país estão proibidos
de sair de casa entre as 9 horas da noite e as
6 da manhã. Nada de restaurante, bar, café,
concerto, teatro, balada; só no dia seguinte.
Ficamos assim, então: segundo o governo
francês, o vírus só pega de noite; durante o
dia o cidadão pode circular à vontade, pois o
bicho vai embora e só volta quando escure-
ce. Naturalmente, eles dizem que a sua pro-
vidência vai reduzir “a aglomeração” de pes-
soas (estar próximo dos seus semelhantes,
nestes dias de perturbação mental, é quase
um crime de lesa-pátria), mas na verdade não
é nada disso. Por que a “aglomeração” à noi-
te seria pior que a “aglomeração” ao meio-
-dia? Trata-se de puro pânico de manada por

Covid 49
J. R. GUZZO

parte de governantes que continuam não ten-


do ideia do que fazer e se valem, para dar as
suas ordens, da aceitação religiosa do “dis-
tanciamento social”.

“MACRON REPRESENTA, APENAS,


A MÉDIA DE QUALIDADE DOS
GOVERNOS QUE VIGORA NOS
PAÍSES DA EUROPA AVANÇADA”

É a tal coisa; a mesma França que nos deu


Descartes, Voltaire e Balzac hoje nos dá
Emmanuel Macron. Fazer o quê? C’est la vie,
diriam os próprios franceses — isso é tu-
do o que temos a oferecer no momento. O
problema do presidente francês, e dos agen-
tes do seu governo, não é propriamente ter
ideias erradas. O problema é que não são ca-
pazes de ter ideia nenhuma — não uma ideia
original, ou mesmo simplesmente aprovei-
tável, ou com algum propósito útil. Apenas

Covid 50
J. R. GUZZO

repetem ideias mortas; não há o menor ris-


co de criarem alguma coisa. Não se trata só
de Macron, obviamente, ou só da França. Ele
representa, apenas, a média de qualidade dos
governos que vigora hoje em dia nos países
da Europa avançada. Mais ainda: Macron é
uma das megavítimas, também ele e mais
muita gente boa, do progressivo colapso psi-
cológico que a epidemia trouxe para todos.
No Brasil, possivelmente porque há por
aqui pelo menos uns 150 milhões de pessoas
que são pobres demais para ter esse tipo
de neurastenia, coisa privativa das classes
médias para cima, a pegada do vírus é mais
inofensiva. Está muito mais na mídia, nas
altas castas do funcionalismo e nos meios
onde, em geral, as pessoas não têm real-
mente que trabalhar para ganhar a vida do
que na maioria da população. O que envol-
ve o Brasil na grande anomalia mental tra-
zida pela covid é, de um lado, a superstição

Covid 51
J. R. GUZZO

médica ou científica que se tornou curio-


samente comum hoje em dia. Esse tipo de
superstição anda muito popular por aqui
e pelo mundo afora. Os médicos, no fun-
do, sabem sobre a covid não muito mais do
que sabiam em fevereiro; como não sabem,
inventaram a “quarentena”. A maioria dos
homens de ciência, é claro, sabe perfeita-
mente bem que as condutas aberrantes que
foram descritas acima estão muito próxi-
mas da insanidade. Mas não querem falar
disso; ficam com medo de ser acusados de
genocídio, ou algo assim, se abrirem a boca
para dizer que dois mais dois são quatro. Se
nem o presidente da República escapou da
acusação de ter matado 160 mil pessoas, in-
clusive por parte do Supremo Tribunal Fe-
deral, por que um simples médico que tem
de ganhar o seu sustento iria se meter na
contramão das psicoses que comandam o
pensamento atual?

Covid 52
J. R. GUZZO

Isso por um lado — por outro lado, e aí é


pior ainda, há o comportamento voluntário
das pessoas. Um número muito grande de
gente decidiu levar a extremos o Evange-
lho do “distanciamento social”; querem vi-
ver isolados, na crença de que podem adiar
a hora da morte se ficarem “em casa”, co-
mo mandam os “formadores de opinião”
do YouTube e os charlatães (modelo light,
mas charlatães assim mesmo) da nova cren-
dice científica. Foram convencidos, por al-
gum tipo de desequilíbrio no aparelho on-
de se formam seus raciocínios, que ficando
livres da covid ficam também livres, mis-
teriosamente, do câncer de fígado, do der-
rame cerebral e do enfarte do miocárdio.
Nessa grande neurose, romperam ao má-
ximo com o mundo exterior e reduziram
ao mínimo seu contato físico com os de-
mais seres humanos. Afastaram-se de vizi-
nhos, de amigos e até mesmo dos próprios

Covid 53
J. R. GUZZO

familiares — consideram que a pior coisa


que pode lhes acontecer é ver outra pessoa.
Começaram por medo, apenas; depois fo-
ram tomando gosto pela coisa e hoje acham
que é melhor viver assim.
Há muita gente pensando numa “troca de
vida”: sai a vida atual, cheia de egoísmo, desi-
gualdade etc. etc. e entra a vida do novo mi-
lênio, cada vez mais virtual e cada vez mais
virtuosa, onde a comunicação digital pelo
WhatsApp, Zoom e outros truques está vi-
rando a forma ideal — ou, pior ainda, a úni-
ca — de manter contato com outros seres
de carne, osso, alma e coração. Querem vi-
ver assim pelo maior tempo possível e, nos
casos mais extremados, para sempre. Aí não
é culpa do precário governador Wilson Wit-
zel, campeão nacional da demência pró-con-
finamento e hoje afastado do cargo, segundo
as denúncias oficiais, por ser ladrão — la-
drão de dinheiro destinado ao combate da

Covid 54
J. R. GUZZO

epidemia, por sinal. É culpa de quem está


escolhendo viver assim. O problema, nesses
casos, não está na covid, nem nos governos
nem no presidente Macron; está na cabeça
deles. A doença real não vai ser encontrada
na infecção dos pulmões, e sim no equipa-
mento cerebral de cada um. A cura, nesse ca-
so, depende unicamente do doente.

Leia o artigo original na revista

Covid 55
J. R. GUZZO

O TABU DAS ESTATÍSTICAS


DA COVID-19
Recusar-se a olhar para os números do
vírus é negar as evidências que eles estão
mostrando.

25 SET 2020
J. R. GUZZO

T
alvez nunca tenha havido na história
da humanidade um momento de tanta
intolerância com os números quanto
nesta época de epidemia em que vivemos
hoje. Números não sentem, não pensam e
não têm opiniões — apenas não mentem,
nunca, desde que exista alguma disposição
de examinar com honestidade o que eles
estão tentando dizer. Até o momento, pelo
que informam as estatísticas oficiais, cerca
de 30 milhões de pessoas em todo o mundo
foram contaminadas pelo coronavírus desde
março, quando começaram as tentativas
regulares de fazer essas contas. É menos de
0,4% da população mundial, hoje estimada em
quase 8 bilhões de pessoas. Foram atribuídas
à epidemia, desde então, cerca de 950 mil
mortes — cujas causas reais, por sinal,
ninguém jamais saberá ao certo quais terão
realmente sido. (No Brasil, por exemplo,
a causa mortis pode ser determinada por

Covid 57
J. R. GUZZO

decreto do governador do Estado.) Ou


seja: morreram por volta de 3% do total
de infectados, que, como visto, representa
menos de 0,5% da população do planeta.
Esses números não são bons nem ruins
— são apenas o que são, não mais e não me-
nos. Mas dizer que eles são o que são tor-
nou-se num ato tido como imoral, politica-
mente perverso e contrário ao interesse da
humanidade pelas forças que decidem so-
bre o bem e o mal nas sociedades de hoje.
Não se trata, nem mesmo, de discutir se tais
cifras justificam o fechamento do mundo
por seis meses; o crime social está simples-
mente em falar delas. A denúncia-padrão,
quando se observam as realidades aritmé-
ticas da epidemia, é: “negacionismo”, ou a
atitude de negar uma verdade que pode ser
verificada pelos fatos ou pela ciência. Nun-
ca se diz, entre os militantes do “distancia-
mento social” por tempo indeterminado,

Covid 58
J. R. GUZZO

que recusar-se a olhar para os números da


covid-19 é negar, aí sim, as evidências que
eles estão mostrando.

CONSIDERA-SE COMO ATO DE


SABOTAGEM À “LUTA PELA VIDA”
A MENÇÃO A OUTRAS DOENÇAS
QUE MATAM

O livre debate sobre a epidemia está inter-


ditado. É como se o mundo estivesse de volta
à Idade Média, quando os padres proibiam as
pessoas de pensar com algum realismo sobre
a peste. A culpa era do diabo, dizia a Igreja,
e todo mundo tinha de ficar satisfeito com a
explicação; quem quisesse saber mais do que
isso, ou algo diferente disso, era acusado de
desafiar os planos de Deus para os homens.
Com a covid-19, na verdade, não está haven-
do apenas a eliminação da verdade numérica

Covid 59
J. R. GUZZO

— desde o começo da epidemia há uma guer-


ra declarada contra os números reais. No Bra-
sil, permanece até hoje sem contestação por
parte das “agências de verificação de notícias
falsas” — e como um fato levado perfeita-
mente a sério pelas classes intelectuais — a
previsão de que haveria “1 milhão de mortos”
se não fossem tomadas medidas extremas de
repressão para deter o vírus. Não foram to-
madas essas medidas; o total de mortes no
Brasil está abaixo de 140.000. Nem somando
as mortes atribuídas à covid-19 no mundo in-
teiro chegou-se a esse 1 milhão, mas e daí? O
candidato que se opõe a Donald Trump nas
próximas eleições norte-americanas acaba de
dizer que os mortos nos Estados Unidos che-
gam a “200 milhões”, ou quase dois terços de
toda a população do país. Contanto que se-
ja para anunciar algum horror da epidemia,
qualquer um pode dizer qualquer coisa. Nin-
guém vai reclamar de nada.

Covid 60
J. R. GUZZO

O fato é que a covid-19 deixou rapidamen-


te de ser uma questão da ciência — seja da
matemática, da medicina ou da biologia —
para se transformar numa causa que está
sendo usada desde o começo deste ano pa-
ra promover ideologias de “transformação
do mundo”. As mortes por câncer, doenças
cardíacas ou complicações respiratórias, por
exemplo, não são melhores ou menos sérias,
obviamente, do que as mortes cuja causa é
listada como “covid” nas estatísticas; nem os
médicos especialistas em dar entrevistas pa-
ra a televisão, todos eles generais na campa-
nha para fechar o mundo, chegam a dizer is-
so. Mas é evidente que não causam nenhuma
reação entre o partido do “fique em casa”; na
verdade, considera-se como ato de sabota-
gem à “luta pela vida” a mera menção de que
essas e outras doenças matam gente todos os
dias. O motivo é que ninguém até hoje teve a
ideia de aproveitar politicamente nenhuma

Covid 61
J. R. GUZZO

delas para promover as suas “agendas”, co-


mo se diz. Com a covid, porém, está sendo
diferente: os interessados descobriram em
15 minutos que dava para tirar proveito po-
lítico do vírus — proveito de primeira gran-
deza, uma oportunidade que aparece uma
vez na vida e não poderia ser desperdiçada.
Desde então, apostam tudo na covid. Ne-
nhuma greve geral, quebra-quebra de black
bloc ou discurseira tida como “revolucioná-
ria” chegou perto, até hoje, da eficácia que
o pânico construído em torno da epidemia
teve na agressão ao sistema produtivo — ou
na usinagem de oposição política. Em países
como o Brasil ou os Estados Unidos, apro-
veitaram para jogar a culpa nos governos. As
mortes, por essa visão das coisas, não foram
causadas pelo vírus. Ao mesmo tempo, as
“autoridades locais” que cuidaram dos doen-
tes não têm nenhuma responsabilidade em
nada do que está acontecendo. Quem matou

Covid 62
J. R. GUZZO

foram os presidentes Bolsonaro e Trump.


No mundo desenvolvido, foi uma oportuni-
dade caída do céu para combater o sistema
econômico, social e político que “está aí” —
injusto, causador de desigualdade, opressor
de mulheres, racista, inimigo da diversida-
de, capitalista selvagem, aquecedor da calo-
ta polar e culpado pela derrubada da flores-
ta amazônica.
No Brasil, como de costume, há um plus
a mais. Enquanto se reproduzem as gran-
diosas ideias para melhorar a humanidade
e criar “um novo estilo de vida”, há os in-
teresses materiais de todos esses governa-
dorzinhos a caminho do anonimato, fiscais
de prefeitura e a turma inteira dos ladrões
de respiradores, “hospitais de campanha” e
aventais descartáveis. É o Covidão em mar-
cha triunfal. Não é o Petrolão de Lula-Dilma,
porque nada jamais será parecido, mas já é
alguma coisa. Pense um pouco, portanto, da

Covid 63
J. R. GUZZO

próxima vez que lhe jogarem algum núme-


ro em cima. A aritmética do “fique em casa”
não é a mesma da tabuada.

Leia o artigo original na revista

Covid 64
STF, DEMOCRACIA E
POLÍTICA NO BRASIL

STF, DEMOCRACIA E
POLÍTICA NO BRASIL
J. R. GUZZO

SEM DEMOCRACIA, SEM


LIBERDADE E SEM MORAL
É impossível, também, pensar em “estado
de direito” quando a Justiça funciona como
cúmplice integral em atos de delinquência
do submundo político.

10 ABR 2020
J. R. GUZZO

A
democracia morreu no Brasil – se é
que chegou a viver algum dia, pois
qualquer exame clínico um pouco mais
atento mostra que ela já nasceu morta em 22
de setembro de 1988, dia em que começou
a valer a Constituição Federal que está em
vigor e que é, em geral, considerado como
seu marco zero. Nasceu morta porque quem a
escreveu pensou numa coisa só, com obsessão
exemplar, desde a redação de sua primeira
sílaba: como montar no Brasil um sistema
de governo em que um grupo limitado de
pessoas fica com 100% do direito legal de
tomar decisões — sem ter de pagar jamais
pelas consequências do que decide, é claro
— e o resto da população fica sem influência
prática nenhuma. É exatamente o que vem
acontecendo há quase 32 anos.
No papel, e nos tratados de ciência polí-
tica, é o governo comandado pela vontade
da maioria — e os votos da maioria podem

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 67


J. R. GUZZO

perfeitamente colocar no governo, ou seja lá


onde as decisões são tomadas, gente que não
tem interesse algum em saber quanto você é
livre ou não é. Seu papel é unicamente obe-
decer às leis e regras que os donos do poder
escrevem em benefício próprio, ou dos gru-
pos a quem servem. No Brasil de hoje não
há uma coisa nem outra. Não há democra-
cia porque quem manda em tudo, faz mais
de trinta anos, é uma minoria — a popula-
ção só é chamada, de dois em dois anos, para
votar em eleições nas quais um sistema vi-
ciado elege sempre os mesmos, com uma ou
outra exceção que não muda nada. Fechadas
as urnas às 5 horas da tarde, todos são man-
dados de volta para casa e só voltam a abrir
a boca dali a dois anos, para fazer a mesma
coisa. No meio-tempo, não mandam em ab-
solutamente nada — sem crachá e autori-
zação dos seguranças, não podem nem en-
trar nos lugares onde estão os que resolvem

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 68


J. R. GUZZO

tudo. Não há liberdade porque o cidadão só


tem a opção de obedecer, esteja ou não de
acordo com o que lhe mandam fazer.

DEMOCRACIA, COMO SE SABE, NÃO


É A MESMA COISA QUE LIBERDADE.

O momento que o Brasil atravessa agora,


com grande parte da população apavorada
pelo medo de morrer por causa da covid-19,
é exemplar dessa democracia que não vale
nada. Vamos aos testes práticos. Passa pela
cabeça de alguém, por exemplo, que as pes-
soas estejam de acordo que o Senado alugue
por 350 mil reais por mês, sem concorrência,
uma “sala VIP” no aeroporto de Brasília, pa-
ra os senadores não correrem nenhum risco
de ficar perto dos cidadãos? É claro que nin-
guém está de acordo. É claro, também, que
ninguém pode fazer nada a respeito. É tudo
legal, porque eles escreveram leis dizendo

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 69


J. R. GUZZO

que é legal — inclusive essa falta tão conve-


niente de concorrência pública, pois esta-
mos num momento de “emergência” na saú-
de pública.
O que a maioria tem a dizer da recusa do
Congresso em abrir mão de um centavo se-
quer dos bilhões que tem estocados nos fun-
dos “Partidário e Eleitoral”, que roubaram
legalmente dos impostos — através de leis
que eles mesmos aprovaram? E a liberdade,
aí, como é que fica: alguém é livre, de ver-
dade, para defender seu direito de opor-se a
essa aberração? Não se trata apenas de de-
putados e senadores. Como pode haver de-
mocracia numa sociedade em que uma co-
munidade de talvez 25.000 indivíduos, os
membros do Poder Judiciário em suas diver-
sas camadas, tem direitos que os demais 200
milhões de brasileiros não têm — e se man-
tém, na vida real, acima das leis e da obriga-
ção de cumpri-las? É impossível, também,

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 70


J. R. GUZZO

pensar em “estado de direito” quando a Jus-


tiça funciona como cúmplice integral em
atos de delinquência do submundo políti-
co. No caso dos “fundos”, é óbvio, deu ra-
zão ao Congresso — e proibiu seu uso em
favor do combate à epidemia.
O país inteiro tem assistido, todos os dias,
a demonstrações brutais de tirania por par-
te de 27 governadores, 5.500 prefeitos, suas
polícias e seus fiscais. Com o súbito poder
que lhes foi conferido pela epidemia, e com
a cumplicidade quase absoluta de juízes e
integrantes do Ministério Público, puseram
para fora todas as suas neuras ditatoriais. É a
lei que lhes permite isso — a lei que eles pró-
prios, ou a classe política em geral, escreve-
ram. Os exemplos não acabam mais. Todas
as edições de Oeste, até o fim dos tempos,
não serão suficientes para mostrar a soma
de desastres que está acontecendo com as
liberdades neste país.

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 71


J. R. GUZZO

Todo o poder de decisão foi dado a grupos


muito bem definidos, pela malícia e esper-
teza de uma Constituição na qual há um nú-
mero ilimitado de boas intenções e nenhum
meio de realizá-las na prática. Ali o cidadão
tem direito a tudo — menos o de influir na
própria vida e controlar, mesmo por alguns
minutos, os que mandam nele. Todos sabem
quem são esses grupos. Os altos servidores
do Estado, as corporações, os grupos de in-
teresse privado, os sindicatos, os criminosos
ricos, os saqueadores do Erário, os que des-
frutam de direitos que os demais não têm,
os políticos — e por aí afora. As leis são es-
critas para eles. Você só paga.
“Eu prefiro um ladrão a um deputado”, diz
Walter E. Williams, o economista conserva-
dor americano que há décadas devasta a hi-
pocrisia da vida política mundial. “O ladrão,
em geral, o rouba uma vez só e vai embora.”
Os políticos, porém, estão aí para sempre. É

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 72


J. R. GUZZO

esse, justamente, nosso problema: enquan-


to quem mandar no Brasil for o condomínio
descrito acima, não haverá nem liberdade
real nem democracia efetiva. O que vale é a
manipulação periódica da multidão em elei-
ções que já estão decididas, pelos vícios deli-
berados do sistema eleitoral, antes de o pri-
meiro voto ser colocado na primeira urna.

NÃO PODE HAVER DEMOCRACIA


NEM LIBERDADE NUMA SOCIEDADE
EM QUE VEMOS ACONTECER, TODO
DIA, AS COISAS QUE ACONTECEM.

O resultado concreto disso tudo apare-


ce nas decisões alucinadas que são tomadas
aqui como resultado do “funcionamento nor-
mal” das chamadas instituições democráti-
cas. “Como alguma coisa que é imoral, quan-
do feita em particular, se torna moral quando
feita coletivamente?”, pergunta Williams.

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 73


J. R. GUZZO

“Por acaso a legalidade confere moralida-


de a alguma coisa? A escravidão era legal. O
apartheid era legal. Os massacres feitos por
Hitler, Stalin e Mao foram legais.” No Brasil
o Congresso é legal. O STF é legal. O apare-
lho do Estado é legal. O que foi para o diabo
é o senso moral — junto com a liberdade e
a verdadeira democracia.

Leia o artigo original na revista

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 74


J. R. GUZZO

STF, UM PARTIDO
POLÍTICO
Na vida real, o Supremo atua como
agremiação partidária. Persegue os amigos
do governo e protege os seus inimigos.

21 AGO 2020
J. R. GUZZO

O
Supremo Tribunal Federal do Brasil é
hoje um partido político. Abandonou,
já há um bom tempo, as aparências de
uma corte de Justiça, e no momento funciona
praticamente em tempo integral como um
escritório de despachantes que se dedica
a servir os interesses ideológicos, pessoais
e partidários dos seus onze ministros. O
ministro Edson Fachin acha que as eleições de
2018 para presidente não foram “legítimas”,
e que as de 2022 também não vão ser, porque
o seu candidato não ganhou a primeira e, a
menos que seja dado um golpe jurídico, não
vai ganhar a segunda. O ministro Gilmar
Mendes sustenta que é preciso reduzir
os poderes que a lei dá ao presidente da
República, como se o país estivesse num regime
parlamentarista — e que é possível fazer isso
sem um plebiscito ou qualquer outro tipo de
aprovação popular. O ministro Luís Roberto
Barroso quer escolher o sistema econômico

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 76


J. R. GUZZO

que o Brasil deve seguir; o “liberalismo”,


segundo ele, tem de ser eliminado.
Não importa saber, realmente, se as elei-
ções de 2018 vão ser mesmo anuladas e se o
STF vai declarar vago o cargo de presiden-
te da República. Também não vem ao caso
perder tempo tentando adivinhar se o Bra-
sil vai acabar com o regime presidencialis-
ta no tapetão — ou se os ministros baixarão
uma liminar mandando adotar o socialismo
na economia nacional. Nada disso está no
mundo das coisas que são possíveis na prá-
tica e neste momento. O que é preciso re-
gistrar é a interferência aberta, abusiva e in-
constitucional do STF na política brasileira,
e o uso das suas funções legais como tribu-
nal de Justiça para favorecer os propósitos
das forças que hoje se colocam contra o go-
verno federal. Essa conduta não sai de gra-
ça. Agride diretamente o Estado de Direito,
o império da lei e a democracia no Brasil.

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 77


J. R. GUZZO

Como resultado, a principal corte de Justi-


ça brasileira é hoje, pela deformação pato-
lógica que lhe está sendo imposta por seus
ministros, o principal fator de instabilidade
política, econômica e social deste país.
“O STF está sendo utilizado pelos partidos
de oposição para fustigar o governo”, disse
dias atrás o ministro Marco Aurélio Mello.
“Isso não é sadio. Não sei qual será o limi-
te.” Quem está falando isso não é nenhum
“blogueiro de direita” ou militante “contra
a democracia”, desses que o ministro Ale-
xandre de Moraes persegue com batidas po-
liciais, apreensão de celulares e censura do
que dizem nas redes sociais. É um minis-
tro; supõe-se que o presidente Dias Toffoli
e seus outros colegas não vão abrir uma in-
vestigação secreta contra o homem. Se ele,
Marco Aurélio, não sabe qual é o limite, ima-
gine-se então nós outros. Onde vai parar es-
se negócio? Não há precedentes, na história

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 78


J. R. GUZZO

brasileira, de um tribunal supremo que te-


nha se comportado de forma tão abertamen-
te ilegal quanto esse, nem abusado tanto dos
poderes que a lei lhe confere, nem agido co-
mo uma organização política. Nunca tendo
acontecido isso antes, também não dá para
saber o que vai acontecer agora.

FACHIN, COMO A MAIORIA DOS


OUTROS DEZ MINISTROS, NÃO
ACEITA O BRASIL COMO ELE É

O que se tem de concreto são os fatos. O


mais recente deles é o surto de manifestos
do ministro Fachin a respeito de como o Bra-
sil deveria ser governado, e por quem — e as
suas sentenças de condenação contra o po-
vo brasileiro, que ele considera uma gente
insatisfatória, desprovida de virtudes cívi-
cas e incapaz de votar direito para presiden-
te da República. De acordo com o ministro,

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 79


J. R. GUZZO

a eleição de 2018, que escolheu o atual go-


verno, está com problemas. O ex-presidente
Lula, segundo Fachin, tinha de ter sido can-
didato; o sujeito oculto da frase é que ele não
participou porque foi uma vítima de “perse-
guição política”. A candidatura de Lula, que
na ocasião estava preso num xadrez da Polí-
cia Federal em Curitiba, cumprindo pena por
corrupção passiva e lavagem de dinheiro, te-
ria “feito bem à democracia” e reforçado “o
império da lei”. Como assim — “império da
lei”? É o contrário: Lula não foi candidato,
justamente, porque naquela ocasião a lei es-
tava valendo. No caso, a Lei da Ficha Limpa,
que proíbe que condenados pela Justiça em
segunda instância como Lula (que, na ver-
dade, acabaria sendo condenado em três) se
candidatem a cargos públicos.
O que o ministro Fachin faz é mais do que
uma falsificação da realidade. Ele está dizen-
do, simplesmente, que a eleição presidencial

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 80


J. R. GUZZO

de 2018 não foi legítima. Se um candidato,


de acordo com a sua opinião, foi “impedido”
de concorrer, então a eleição não vale. Fa-
chin não apresentou nenhuma sugestão prá-
tica sobre o que fazer a respeito desse pro-
blema. Tira o presidente do palácio? Deixa,
uma vez que ele está lá mesmo? Não se sa-
be. Mas o ministro já avisa que a eleição de
2022 também pode estar “comprometida”.
Pelo que se pode deduzir do que falou, Jair
Bolsonaro teria laços “com milícias”, não
condenou “atos de violência cometidos no
passado” e faz a democracia viver “riscos”.
Na sua opinião, o governo estaria fazendo
nas intenções o que o STF faz todos os dias
na prática: valer-se da legalidade para des-
truir o Estado de Direito. Para completar, o
ministro diz que o povo brasileiro é culpa-
do de “alienação eleitoral”. Nas últimas pes-
quisas de opinião, o presidente teve índices
de aprovação muito altos — e Fachin acha

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 81


J. R. GUZZO

que ser a favor de Bolsonaro é ser alienado.


O eleitorado, em suma, não tem qualifica-
ção para eleger o presidente da República e
se Bolsonaro ganhar em 2022 a eleição não
pode valer.

EM MATÉRIA DE DESRESPEITO POR


PARTE DA POPULAÇÃO, O STF NÃO
PODE PIORAR

É um espetáculo simultâneo de autorita-


rismo, pregação a favor de um golpe de Es-
tado e desprezo explícito pelo povo brasi-
leiro — a quem Fachin acusou de apatia e
de contribuir para o que considera ser uma
“bárbara progressão de desconfiança no re-
gime democrático”. Não ocorre ao ministro
perguntar por que, afinal, existe essa des-
confiança em relação à democracia — e, es-
pecialmente, se a sua conduta, e a conduta
dos seus colegas de STF, não tem nada a ver

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 82


J. R. GUZZO

com isso. Como poderia ser diferente? Fa-


chin, como a maioria dos outros dez minis-
tros, não aceita o Brasil como ele é; quer, na
condição de “editor” que lhe foi dada pelo
colega Dias Toffoli, criar um modelo de país
e encaixar nele o Brasil que existe; quer es-
colher o que o povo deve pensar, e em quem
ele deve votar. Gente assim é capaz das coi-
sas mais esquisitas. As presentes lamenta-
ções de Fachin têm como fato gerador a de-
cisão de um comitê da ONU, que não tem
autoridade para mandar num carrinho de pi-
poca, decretando que a Lei da Ficha Limpa
não valia e que Lula tinha de ser candidato
em 2018. O ministro ficou a favor desse dis-
parate — e perdeu por 6 a 1 na reunião que
manteve a validade da lei brasileira no Brasil
e o veto a uma candidatura ilegal. Pior que
isso, num plenário de sete votos, só mesmo
perdendo de 7 a 0; mas Fachin acha que todos
os outros estão errados e só ele está certo.

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 83


J. R. GUZZO

Não adianta nada ficar dizendo que “res-


peita” a decisão; se ele de fato respeitasse
não estaria dizendo por aí as coisas que diz.
Mas o Supremo de hoje é isso mesmo. O que
esperar de uma corte de Justiça presidida por
um cidadão que foi reprovado duas vezes se-
guidas no concurso público para juiz de di-
reito e, portanto, considerado oficialmente
incapaz de ocupar um cargo de magistrado?
Esse mesmo tribunal parece envolvido em
atingir a meta de 100% de aproveitamento
nas sentenças que dá para tirar bandidos ri-
cos da cadeia. O ministro Moraes conduz há
quase um ano e meio um inquérito inteira-
mente ilegal contra militantes políticos e jor-
nalistas de direita; mas a ministra Cármen
Lúcia não quer que o Ministério da Justiça
investigue suspeitos de praticar banditismo
político de “esquerda”. Quer dizer: o STF,
na vida real, persegue os amigos do governo
e protege os seus inimigos. É o modelo de

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 84


J. R. GUZZO

imparcialidade da Justiça em vigor no Bra-


sil contemporâneo.
O Supremo Tribunal Federal é hoje a en-
tidade pública mais desprezada do país. Em
matéria de desrespeito por parte da popula-
ção, não pode piorar, da mesma forma que o
morto não pode morrer mais do que já mor-
reu. Como diria o ministro Marco Aurélio:
“Não é sadio”.

Leia o artigo original na revista

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 85


J. R. GUZZO

A LEI DA MORDAÇA
Os senadores aprovaram a mais agressiva
legislação de censura que o Brasil já viu.
Nem o AI-5 permitia a prática da censura
em qualquer um de seus 12 artigos.

3 JUL 2020
J. R. GUZZO

É
uma realidade baseada na lógica,
comprovada pela prática de séculos e
que há muito tempo dispensa qualquer
comprovação através da experiência; não está
mais em discussão, ou talvez nunca tenha
realmente estado. Ela ensina uma verdade
simples e potente. Todas as vezes em que
algum governo, em qualquer época, regime
político ou lugar deste mundo, quis regular
a liberdade de expressão, o resultado foi o
mesmo, sem nenhuma exceção: essa liberdade
foi reduzida, falsificada ou simplesmente
extinta. Não é uma questão de ponto de vista.
É a consequência inevitável da pretensão
de melhorar algo que é um direito evidente,
por natureza, do ser humano. Esse direito
não pode, objetivamente, ser melhorado
por leis — da mesma forma como não é
possível melhorar, por alguma espécie de
ato administrativo, o direito do homem a
pensar ou a existir. Conclusão: em vez de

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 87


J. R. GUZZO

melhorar, ele só piora, todas as vezes em


que se mexe com ele.
É o que acaba de acontecer, nesta corrida
cada vez mais descontrolada do Brasil rumo
à escuridão, com a aprovação do “Projeto de
Lei das Fake News” no Senado Federal — sem
debate público, sem sessão plenária, por “vo-
to eletrônico”, num momento em que o país
está arrasado por uma epidemia a caminho de
matar 60 mil pessoas e por apenas 44 votos,
de um total de 81 senadores. Se não há acor-
do nem entre os próprios senadores sobre o
tema, que respeito se pode esperar de uma lei
dessas? A verdade, pela evidência dos fatos,
é que o Senado Federal do Brasil tratou um
direito fundamental do homem, incluído co-
mo “sagrado” nessa bendita Constituição que
não sai da boca de políticos, juristas e pensa-
dores brasileiros em geral, com o pouco-caso
de quem está trocando um nome de rua em
algum fundão perdido do interior.

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 88


J. R. GUZZO

Naturalmente, como fazem todas as dita-


duras nos momentos em que tentam dar um
cheiro de legalidade a ações de banditismo
contra os direitos democráticos, os autores
da lei disseram que seu objetivo era “apri-
morar”, ou até mesmo “proteger”, a liberda-
de de expressão. É mentira, como se pode
verificar pela leitura do que está escrito no
texto aprovado pelos 44 senadores. A auto-
ridade pública — também podem chamar de
“polícia” — tem a partir de agora o direito
de “rastrear” todas as comunicações feitas
pelos cidadãos através dos meios eletrôni-
cos. É, para começar, uma violação grossei-
ra do direito à privacidade na comunicação
entre as pessoas: pela nova lei, mesmo a sua
conversinha num simples grupo de WhatsA-
pp entre os familiares, os amigos ou os vizi-
nhos do prédio pode ser gravada por quem
manda nos governos, sem licença da Justiça
ou de quem quer que seja. Para continuar, é

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 89


J. R. GUZZO

uma agressão direta à liberdade de manifes-


tação do seu pensamento, pois tudo o que
você disser poderá ser utilizado contra você
— ou contra as plataformas por intermédio
das quais as suas conversas são feitas.

COMO É POSSÍVEL UMA SOCIEDADE


LIVRE ENTREGAR AO ESTADO
A FUNÇÃO DE DECIDIR O QUE É
VERDADE E O QUE É MENTIRA?

Como uma lei que pretende combater a


mentira nas comunicações públicas, punin-
do a transmissão de “notícias falsas”, pode
ser construída, ela mesma, em cima de uma
mentira? O fato é que toda essa lei se baseia
na falsificação da verdade. Ela pretende casti-
gar o mau uso da liberdade de manifestação,
segundo os autores asseguram piedosamen-
te nos seus propósitos — mas isso já é feito,
desde 1940, pelo Código Penal Brasileiro. A

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 90


J. R. GUZZO

calúnia, a difamação e a injúria são os úni-


cos três crimes que alguém pode cometer
utilizando-se do seu direito à livre expres-
são; até hoje, ninguém foi capaz de descre-
ver alguma outra possibilidade. Muito bem:
esses três delitos estão previstos nos artigos
139, 140 e 141 do Código Penal, e caso o réu
seja condenado está sujeito a penas de mul-
ta, prisão ou reclusão. Pode ser punido, até
mesmo, o crime de calúnia contra um mor-
to. Será que já não está bom assim? É a regra
que vem valendo há 80 anos, sem nenhuma
observação em contrário, para as mentiras
ditas pela imprensa, ou por outros meios de
comunicação. Por que, agora, estão achando
que é preciso fazer mais?
No que talvez seja o seu pior momento, a
lei manda que se forme um “conselho” pa-
ra julgar o que há de errado e quem errou
em tudo o que se diz na internet — um sur-
to de mania de grandeza que, além do mais,

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 91


J. R. GUZZO

pretende “certificar” (ou não) as virtudes dos


serviços a ser criados pelos “provedores de re-
des sociais” e “serviços privados de mensage-
ria” para controlar o que os brasileiros dizem
na internet. “Conselho”? Que raio quer dizer
isso? Então a Justiça brasileira, com seus 18
mil juízes, desembargadores, ministros, tri-
bunais inferiores, superiores e supremos, não
é o lugar certo para julgar as questões que en-
volvem uma das garantias essenciais da Cons-
tituição? É uma aberração: ao entregar a uma
montoeira indefinida de deputados, senado-
res, burocratas, diretores de “agências regu-
ladoras”, comunicadores e gente da “socieda-
de civil” o direito de definir o certo e o errado
em tudo aquilo que se diz num celular no ter-
ritório nacional, a nova lei está privatizando
a Justiça. Como é possível uma sociedade li-
vre entregar a um “conselho” — entregar ao
Estado, na verdade — a função de decidir o
que é verdade e o que é mentira?

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 92


J. R. GUZZO

A degeneração moral, lógica e política que


os autores da lei criaram autoriza a coleta
em massa de informações sobre o cidadão
e sobre o que ele vai dizer daqui para dian-
te em seus aparelhos de comunicação — se
quiser exercer o direito legal de falar o que
pensa, terá de se esconder num canto qual-
quer onde as autoridades não possam ouvi-
-lo. Você, por acaso, confia na honestidade
de quem vai estar na escuta das suas palavras
— um senador, por exemplo? Está seguro de
que ele não vai usar em proveito próprio o
que ouviu? A lei das fake news, em mais uma
das suas deformações tóxicas, também exi-
ge que qualquer empresa que queira operar
no país através de redes sociais terá de ter
“sede no Brasil” — uma patriotada primiti-
va, ignorante e destrutiva que significa atra-
so tecnológico direto na veia. Acima de tu-
do, enfim, os senadores aprovaram a mais
agressiva legislação de censura que o Brasil

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 93


J. R. GUZZO

já viu. Nem o AI-5 de 1968, tido como a pior


agressão à liberdade que alguém jamais es-
creveu num pedaço de papel em toda a his-
tória nacional, permitia a prática da censura
em qualquer um dos seus 12 artigos. Permi-
tia fechamento do Congresso, confisco de
bens e negação de habeas corpus para cri-
mes políticos. Mas não permitia censura.

O QUE OS POLÍTICOS QUEREM É


COMBATER TUDO O QUE SE POSSA
DIZER CONTRA ELES E COMPRAR A
TOLERÂNCIA DO STF

Não adianta, como dizem os autores da lei,


garantir que não há censura no texto apro-
vado, no sentido de proibir alguém de dizer
alguma coisa. Não há a palavra “censura”,
mas há a censura — sempre há, todas as ve-
zes em que a autoridade tem a vontade, ou
a pretensão, de julgar o bem e o mal naquilo

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 94


J. R. GUZZO

que as pessoas pensam. O fato é que até ho-


je nenhum país civilizado, onde há o máxi-
mo possível de liberdades — e tantas notí-
cias falsas circulando nas redes sociais como
no Brasil —, fez nada de parecido com o que
está se tentando fazer aqui. Não ocorreu a
ninguém, até agora, banir a mentira da vida
pública de uma nação. Alguém acredita que
os senadores que aprovaram essa lei sejam
os únicos a ver o que mais ninguém viu?
O que condena a “lei das fake news”, acima
tudo, é a sua hipocrisia de nascença. Nunca
foi objetivo de seus patrocinadores comba-
ter notícia falsa nenhuma. O que os políticos
querem é combater tudo o que se possa di-
zer contra eles (e o que eles fazem) nas re-
des sociais — e, mais até do que isso, com-
prar a tolerância, o apoio e a cumplicidade
do Supremo Tribunal Federal no julgamento
dos seus atos. O STF é o verdadeiro inven-
tor dessa deformação agora usinada como

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 95


J. R. GUZZO

lei pelo Senado — e que teve por origem real


o medo dos próprios ministros de respon-
der penalmente pelos atos de que são acusa-
dos ou suspeitos. Todo o resto é conversa-
-fiada. “Protejam a gente; em compensação,
vamos proteger vocês quando forem julga-
dos aqui” — essa é a mensagem. Não po-
deriam encontrar parceiros tão dispostos a
cooperar. O Senado, como todo mundo sa-
be, é a casa de gigantes da honestidade co-
mo Renan Calheiros, Jader Barbalho, Ciro
Nogueira e tantos outros heróis da política
nacional — esse último, aliás, acaba de ver
o próprio STF, por 3 a 2, autorizar seu pro-
cesso penal por corrupção e lavagem de di-
nheiro, na condição de chefe do “quadrilhão
do PP”. Você acha que ele votou a favor ou
contra a “lei das fake news”?
“A lei não é contra as notícias falsas, é con-
tra as liberdades individuais. Não é contra
a mentira; é a favor da censura. Não é para

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 96


J. R. GUZZO

defender o cidadão; é para defender quem


tem poder de quem não tem poder”, afirmou
o deputado gaúcho Marcel van Hattem, do
Partido Novo — que, junto com seus colegas
de bancada Paulo Ganime, do Rio de Janeiro,
e Vinicius Poit, de São Paulo, tem sido uma
das vozes mais ativas na denúncia do projeto
que passou pelo Senado. Eles vão lutar, ago-
ra, pela sua rejeição na Câmara dos Deputa-
dos. É um perfeito sinal dos tempos que as
suas vozes não apareçam na mídia que cha-
ma a si própria de “grande”. Estão confina-
das às redes sociais — essas mesmas que os
donos do Brasil velho querem calar.

Leia o artigo original na revista

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO Brasil 97


ELEIÇÕES

ELEIÇÕES
J. R. GUZZO

AS PIORES ELEIÇÕES
DO MUNDO
A cura para a desgraça que são as eleições
brasileiras é um conjunto de meia dúzia de
providências simples como a tabuada.

30 OUT 2020
J. R. GUZZO

N
um dos melhores momentos de sua
viagem (viagem mesmo, em todos
os sentidos) ao País das Maravilhas,
Alice pergunta à Tartaruga Falsa quantas
horas de aula por dia ela tinha tido ao longo
do seu processo educacional. Dez horas no
primeiro dia, responde a Tartaruga. Nove no
dia seguinte. Oito no outro dia — e assim por
diante, até o zero. Em suma: era um sistema
por meio do qual todos aprendiam cada vez
menos quanto mais o tempo passava. Nada
mais natural no mundo incompreensível e,
ao mesmo tempo, perfeitamente lógico no
qual Alice havia entrado — mas só lá. Ou
melhor: lá e no Brasil. Eis aí, na verdade,
o retrato pronto e acabado do eleitorado
brasileiro de hoje.
Já são 32 anos seguidos, desde que a
Constituição Cidadã de 1988 desabou so-
bre a sociedade brasileira, que a popula-
ção é obrigada de dois em dois anos, com

eleições 100
J. R. GUZZO

a regularidade das fases da Lua, a votar nas


eleições destinadas a escolher de vereador
a presidente da República. Deveria ter sido
tempo mais do que suficiente para os elei-
tores aprenderem a votar direito — expul-
sando da política a multidão de candida-
tos-bandidos que frequenta as campanhas,
senadores que escondem dinheiro na cue-
ca e mais do mesmo. Era o que estava pre-
visto na melhor teoria. Quanto mais votas-
sem, mais as pessoas aprenderiam a votar
bem; começariam, então, a dar seus vo-
tos a candidatos mais comprometidos com
o interesse público, e não a essa manada
de vigaristas que anda por aí. Com o tem-
po, e de um modo geral, iriam sobrar ape-
nas os bons elementos. Mas, obviamente,
o aprendizado que os nossos doutores em
ciência política imaginaram para o Brasil
deu errado. Não é uma estimativa. É o que
demonstram os fatos.

eleições 101
J. R. GUZZO

Quanto mais tempo passa — 32 anos, ago-


ra — menos se aprende. Em vez de melho-
rarem, os candidatos pioram a cada eleição.
Em vez de escolher políticos menos ruins,
o eleitorado manda para o governo os que
são mais absurdos. Basta ver os que estão
aí, em todos os níveis — alguém acredita,
sinceramente, que a maioria desses gover-
nadores, deputados, senadores etc. etc. se-
ja gente boa? Ou, ao contrário, que sejam
uma das piores coleções de delinquentes já
reunidas na vida pública brasileira? A prova
mais chocante do colapso geral do sistema
é a lista atual de candidatos para os 5.500
cargos de prefeito e quase 60.000 vereado-
res que têm de ser preenchidos nas eleições
municipais deste mês de novembro. É um
trem fantasma.
O que temos mais uma vez, nesse curioso
processo de aprendizado ao contrário, é a
costumeira aglomeração de casos perdidos.

eleições 102
J. R. GUZZO

Qual “agência de checagem de fatos”, des-


tas que estão terrivelmente em moda hoje
em dia entre os veículos de comunicação,
daria o seu selo de qualidade aos candida-
tos que concorrem, por exemplo, à prefeitu-
ra de São Paulo? É uma das maiores cidades
do mundo; seu prefeito e vereadores teriam
de ser as pessoas mais qualificadas do país
para existir alguma chance, apenas isso, de
lidar de maneira razoável com os problemas
monumentais do município e as opções que
há diante deles. Mas o que acontece é o exa-
to contrário. Os candidatos impostos pelos
partidos para a eleição de 2020 são os piores
que temos desde o padre Anchieta, 466 anos
atrás. Não conseguiriam governar um clube
de pingue-pongue; querem mandar nos 12
milhões de moradores de São Paulo.
Você sabe muito bem quem são eles. São
políticos fracassados, que já tiveram todas as
chances para errar e não perderam nenhuma.

eleições 103
J. R. GUZZO

É gente que já governou e não fez nada que


prestasse. São os perdedores de sempre, que
disputam a eleição unicamente porque têm
à disposição o dinheiro do “fundo eleitoral”
que arrancam dos impostos pagos pelo pú-
blico em geral. São os aventureiros de sem-
pre — que, vendo o baixíssimo nível dos seus
concorrentes, acham que vale a pena entrar
nessa loteria. São as nulidades sem cura, os
marginais mais ambiciosos e, em certos ca-
sos, os representantes do crime organizado
— esses mesmos que o ministro Marco Au-
rélio manda soltar e o ministro Fachin pro-
tege; já proibiu os voos de helicóptero da po-
lícia sobre as favelas, e agora quer proibir a
revista dos visitantes que recebem quando
estão na cadeia.
Votar direito como, se os candidatos são
esses aí, abençoados pela Justiça Eleitoral
depois de passarem, rindo, pelos seus fil-
tros? O Brasil, aliás, deveria ter os melhores

eleições 104
J. R. GUZZO

políticos do mundo — é a única democracia


no planeta Terra que tem uma “Justiça Elei-
toral”, com um tribunal supremo, 27 “tribu-
nais regionais” (cada um com o próprio pa-
lácio), altos funcionários e um custo, para o
cidadão, de R$ 9,2 bilhões por ano, ou R$ 25
milhões por dia. (A “Justiça Eleitoral”, como
se sabe, é capaz de gastar mais em anos em
que não há eleições.) Em resumo: é um fenô-
meno. Só que os governantes que saem des-
sa paçoca pioram, em vez de melhorar; está
na cara que o papel didático da burocracia
eleitoral está sendo um completo fracasso.

O VOTO DISTRITAL IMPLODE O


SISTEMA EM VIGOR E ELIMINA
QUASE TODOS OS SEUS VÍCIOS

É uma penitência, realmente, ouvir várias


vezes por dia no rádio e na televisão o minis-
tro Barroso, que no momento é quem preside

eleições 105
J. R. GUZZO

esse TSE, usar o dinheiro dos seus impostos


para pôr no ar, mais uma vez, as eternas cam-
panhas destinadas a ensinar como você deve
votar. Como descrito acima, o resultado de
tudo isso, em termos de qualidade dos po-
líticos eleitos, é igual a três vezes zero. Mas
é claro que as aulas de moral, de cívica e de
responsabilidade social que o ministro gosta
tanto de socar em cima do público vão con-
tinuar. Como justificar de outro jeito aque-
les R$ 25 milhões que eles conseguem gas-
tar por dia? Além disso, o TSE etc. etc. faz o
ministro (Barroso hoje, um colega amanhã)
representar diante do público mais um pa-
pel de homem “importante”. No mundinho
deles, é algo que não tem preço.
A única cura realmente eficaz, e provavel-
mente definitiva, para a desgraça que são as
eleições brasileiras, é um conjunto de meia
dúzia de providências simples como a tabua-
da — e que não têm nada a ver com a “Justiça

eleições 106
J. R. GUZZO

Eleitoral”, ou com a palhaçada geral dos dis-


cursos em defesa das “instituições”. A maio-
ria dos brasileiros capaz de entender que dois
mais dois são quatro, e não vinte e dois, sa-
be muito bem quais são elas. O pacote bási-
co inclui, logo de saída, o fim do voto obriga-
tório. Junto com a eliminação dessa trapaça
— vendida como “dever cívico”, mas criada
unicamente para garantir a compra dos vo-
tos dos semianalfabetos e dos que não ligam
a mínima para política —, teria de vir o voto
distrital. Podem se gastar horas na discussão
dos detalhes, mas no fundo isso significa o se-
guinte: o Brasil é dividido em 513 distritos, o
número atual de cadeiras na Câmara dos De-
putados; cada distrito terá exatamente o mes-
mo número de eleitores, e os candidatos só
podem concorrer em um dos distritos.
O voto distrital simplesmente implode o
sistema eleitoral em vigor e elimina quase to-
dos os seus vícios. Acaba a farra dos Estados

eleições 107
J. R. GUZZO

que não têm eleitores, mas têm pencas de


deputados eleitos com meia dúzia de votos.
Acabam os candidatos que têm 2 milhões de
votos no Estado inteiro e elegem junto com
eles picaretas nos quais quase ninguém vo-
tou. Acabam as despesas bilionárias das cam-
panhas, pois os candidatos só podem ter vo-
tos num único distrito; não vão precisar de
jatinho, comerciais de televisão etc. etc. Aca-
ba a irresponsabilidade do candidato peran-
te o eleitor: ao concorrer num distrito deter-
minado, ele terá de assumir compromissos
concretos para ser eleito — e o cumprimen-
to das promessas que fez será cobrado na
eleição seguinte.
Talvez mais do que tudo, o voto do bra-
sileiro que tem título eleitoral em São Pau-
lo ou em Minas Gerais passa a valer a mes-
ma coisa que o voto do brasileiro que vive
no Amapá ou em Roraima. São Paulo, por
exemplo, tem hoje 70 deputados federais

eleições 108
J. R. GUZZO

para uma população superior aos 45 milhões


de habitantes — um representante para cada
650.000 moradores; o Amapá, com 750.000
habitantes, tem 8 deputados — um para ca-
da quase 94.000. O voto do eleitor com títu-
lo eleitoral de São Paulo vale sete vezes me-
nos que o do eleitor do Amapá. Como pode
funcionar um negócio desses? Para comple-
tar o novo sistema, a eliminação de quatro
aberrações: o foro privilegiado, a propagan-
da eleitoral obrigatória no rádio e na televi-
são, o “suplente” de senadores e deputados
e os “fundos” partidário e eleitoral — tra-
moias que só servem para encher a vida pú-
blica com gente safada.
O efeito desse conjunto de mudanças se-
ria instantâneo — daria resultados logo na
primeira eleição. Resolve o problema de go-
vernadores, prefeitos e senadores — ou do
presidente da República? Não, não resol-
ve. Mas resolve a Câmara dos Deputados,

eleições 109
J. R. GUZZO

as Assembleias Legislativas e as Câmaras de


Vereadores — e isso aí já é um mundo. De
mais a mais, não existe Executivo ruim com
Legislativo bom — e nem Judiciário, quan-
do se pensa um pouco. É por isso mesmo
que os mais intransigentes defensores orais
da democracia, das “instituições”, do “Esta-
do de direito” etc. etc. etc. preferem pegar
uma covid tripla a mexer no sistema eleito-
ral brasileiro. É com ele que ganham a vida.
Não querem largar o osso.

Leia o artigo original na revista

eleições 110
J. R. GUZZO

A RETÓRICA INÚTIL
DA OPOSIÇÃO
Os adversários do governo parecem felizes
em fazer tudo o que não é importante num
trabalho político que pretenda dar certo.

2 OUT 2020
J. R. GUZZO

A
um mês e meio das eleições municipais
que vêm aí, o candidato do PT à
prefeitura de São Paulo tem 1% das
intenções de voto. Para sentir um pouco o
espírito da coisa: é metade do que tem, por
exemplo, um concorrente que se apresenta
como Mamãe Falei. Como é possível que
esteja acontecendo uma coisa dessas com o
partido que há 40 anos serve como a mais
sagrada estrela-guia que a esquerda brasileira
já teve em toda a sua história? Justo em São
Paulo, onde vive e vota a maior concentração
de trabalhadores do Brasil, é isso que o
Partido dos Trabalhadores tem a apresentar?
Em São Paulo, onde estão a alma, o coração
e os músculos políticos do seu marechal de
campo vitalício, o ex-presidente Lula? É isso
mesmo: 1%.
Fica difícil perceber como o PT e Lula pre-
tendem exercer um papel decisivo no futu-
ro do Brasil se em São Paulo, a maior, a mais

eleições 112
J. R. GUZZO

popular e a mais brasileira de todas as cida-


des do país, 99% da população não quer sa-
ber deles. Não adianta nada dizer, como es-
tão dizendo, que o verdadeiro candidato da
esquerda é outro — um político que nunca
foi eleito para nada, tem como única reali-
zação estimular a invasão de imóveis com
documentação enrolada e é apresentado co-
mo o “preferido” de Lula. E daí? Se o dono
do partido não quer o candidato do partido
na cidade-chave para qualquer eleição brasi-
leira, não dá para concluir que ambos este-
jam fortes; não se inventou ainda a divisão
que seja capaz de somar. Além disso, só fa-
ria sentido agir desse jeito se fosse para ga-
nhar a eleição. Não é perdendo em São Pau-
lo que se vai a algum lugar na política deste
país; só concorrer, e ler depois na imprensa
que o seu candidato teve uma belíssima vo-
tação, mas foi derrotado, é o tipo da coisa
que não resolve a vida de ninguém.

eleições 113
J. R. GUZZO

Deveria estar acontecendo justo o contrá-


rio disso aí — a esquerda, pelo que se diz to-
dos os dias ao público, é quem teria de estar
ocupando neste momento os cinco primei-
ros lugares de qualquer disputa política no
Brasil. O governo federal, com quem vive em
guerra desde a última eleição presidencial,
é tido e havido como morto a cada 24 horas.
O Judiciário, nos seus galhos mais altos, pa-
rece se preparar para conceder indulgência
plenária, em matéria de corrupção e quais-
quer outros crimes, ao ex-presidente. Há um
combate diário pela “quarentena”, esforços
extremos para dificultar a produção e uma
lavagem cerebral permanente com a inten-
ção de culpar “o governo” pelas 140 mil mor-
tes e todas as demais desgraças da covid-19.
São anunciadas o tempo todo “sanções eco-
nômicas” e “represálias políticas” contra o
Brasil por parte dos países do Primeiro Mun-
do por conta dos incêndios no Pantanal e do

eleições 114
J. R. GUZZO

desmatamento na Amazônia. As classes in-


telectuais apoiam a necessidade de “algum
tipo” de intervenção internacional para sal-
var a parte do território brasileiro que con-
sideram “patrimônio da humanidade”.
De acordo com o diagnóstico da esquer-
da, e de seus parceiros naquilo que se des-
creve como áreas “liberais” e “civilizadas”
da “sociedade”, há problemas sem solução
com o teto de gastos públicos, as propostas
de renda mínima, o desemprego, a queda no
investimento estrangeiro, os danos da pro-
dução rural ao meio ambiente, a “violência
policial”, as transações financeiras da famí-
lia presidencial, a falta de apoio aos quilom-
bolas, à demarcação das terras indígenas e às
causas que são descritas como “identitárias”,
“inclusivas” ou “sociais”. Metade dos minis-
tros está permanentemente na porta da rua.
O Congresso está contra o governo. O Judi-
ciário está contra o governo. Os artistas de

eleições 115
J. R. GUZZO

novela estão contra o governo. A mídia ba-


te recordes diários de exasperação indigna-
da contra um presidente da República que
considera o pior de toda a história do Brasil
— e contra o seu governo, tido como quase
tão ruim quanto ele.

O GOVERNO ESTÁ DISPUTANDO UMA


PARTIDA SEM QUE HAJA OUTRO
TIME EM CAMPO

Diante dessa desgraceira sem fim, o PT, no


seu papel oficial de Nossa Senhora da Opo-
sição, já deveria estar nomeando o ministé-
rio do próximo governo; em vez disso, seu
candidato à prefeitura de São Paulo tem 1%
dos votos. Nem o governo federal nem os
problemas reais do país melhoram um mili-
grama com isso. Mas é justamente aí que es-
tá um dos piores bodes da política brasilei-
ra de hoje. A elite nacional, da universidade

eleições 116
J. R. GUZZO

ao Magazine Luiza, da mídia que se chama-


va grande aos banqueiros de investimento
de esquerda, detesta o presente governo co-
mo nenhum outro governo brasileiro foi de-
testado — mas simplesmente não consegue,
não para efeitos práticos, organizar uma opo-
sição capaz de agir com um mínimo de coe-
rência, eficácia e força moral para oferecer
alguma alternativa séria às coisas como elas
são hoje. O mesmo estado de coma deixa co-
mo mortos-vivos o Congresso, os 33 parti-
dos que hoje têm alvará de funcionamento
e o resto do mundo político. O resultado é
que o governo está disputando uma partida
sem que haja outro time em campo.
Há muito barulho de arquibancada — mas
torcida brava não muda placar de jogo, e nem
xingar a mãe do juiz é fazer oposição. Opo-
sição é trabalhar com possibilidades reais de
sucesso para trocar de lugar com quem está
mandando; o resto é dinheiro falso. O que se

eleições 117
J. R. GUZZO

tem hoje é isso — muita nota de R$ 300. Os


adversários do governo, na verdade, parecem
felizes em fazer tudo o que não é importan-
te num trabalho político que pretenda dar
certo. Enchem o noticiário, dia e noite, com
bulas de excomunhão contra o presidente da
República. Paralisam, no Congresso, no Mi-
nistério Público e nos tribunais, o trabalho
de governar — a cada vez que perdem uma
votação, ou a cada vez que o governo deci-
de alguma coisa, vão correndo pedir à Jus-
tiça que anule o que foi decidido. Mostram
plaquinhas de protesto no festival de cine-
ma de Cannes. Fazem desfile de índio em
Frankfurt. Criam grupos de vigilantes para
combater a “direita” no Twitter. Queimam a
bandeira nacional. Estão em guerra perma-
nente contra o racismo, o machismo, a ho-
mofobia, a degradação da atmosfera, os fer-
tilizantes, os “agrotóxicos”, a desigualdade,
a presença da polícia nas favelas. Acusam

eleições 118
J. R. GUZZO

o governo dos delitos de desemprego, re-


cessão econômica, alta do dólar, excesso
de religião, não uso de máscara, genocídio,
morte das onças-pintadas e só Deus sabe
mais o quê.
Nada disso rende um único voto na hora
da eleição, mas é muito mais fácil do que fa-
zer trabalho político de verdade. É bem cô-
modo, no fundo, desligar a televisão depois
de ver a sova que o governo leva diariamen-
te no Jornal Nacional e dizer para si mesmo:
“Mais um dia de vitórias na luta contra o fas-
cismo bolsonarista”. Sai de graça, dá cartaz e
não tem nenhum risco. Também é muito fá-
cil viver na política quando existe uma aluci-
nação chamada “Fundo Partidário”, negocia-
ta legal que transfere dinheiro dos impostos
diretamente para o bolso dos políticos. Nos
anos em que há eleições, eles ganham mais;
neste 2020, por exemplo, o contribuinte es-
tá sendo extorquido em R$ 2 bilhões. Eis aí

eleições 119
J. R. GUZZO

um ponto, talvez o único, em que o PT e o


partido turbinado por Bolsonaro na última
eleição estão 100% de acordo — são eles os
que ficaram com as maiores verbas, cerca de
R$ 200 milhões cada um. O fato é que o su-
jeito não precisa mais ganhar uma eleição
para ganhar dinheiro; o fundo garante. Po-
de ser menos, é claro, mas não tem erro. En-
tende-se, aí, onde foram parar o espírito de
combate do PT, a “militância”, as “lutas” etc.
Para que esse perrengue todo? O que inte-
ressa é sair candidato. Se você, além disso,
já ganhou de presente um emprego público
no “aparelhamento” em massa da era Lula-
-Dilma, sua vida está resolvida.
O que fica faltando, no fim dessa histó-
ria, é um candidato capaz de fazer sentido.
Não adianta olhar para o outro lado à pro-
cura de uma alternativa para Lula. Vão achar
quem? Fernando Henrique? Gilmar Mendes?
Eymael, um democrata-cristão?

eleições 120
J. R. GUZZO

Faltam dois anos para a eleição presiden-


cial de 2022. Se continuarem achando que
Bolsonaro vai desaparecer por encanto na
esfera celestial, só porque “não é mais possí-
vel continuar assim”, vamos continuar nes-
sa balada até 1º de janeiro de 2027.

Leia o artigo original na revista

eleições 121
J. R. GUZZO

AVANÇO PARA O PASSADO


Quem muda nos Estados Unidos de hoje
é Donald Trump, que a sabedoria dos
cientistas políticos considera conservador,
ou de “extrema direita”. Quem exerce a
função de reacionário é Biden.

7 NOV 2020
J. R. GUZZO

J
oseph Biden e todas as forças políticas,
econômicas e sociais que o apoiaram
nas eleições presidenciais norte-
americanas representam, acima de qualquer
outra coisa, o retrocesso. É curioso que
seja assim, pois em condições normais de
temperatura e pressão o candidato de oposição
ao governo é o mocinho que está lutando pela
mudança, contra o bandido que quer deixar
tudo do jeito que está. Mas nos Estados Unidos
de hoje nada apresenta condições normais
de temperatura e pressão. O resultado é que
Biden, o Partido Democrata e quase tudo o
que existe em volta deles significam o mais
decidido avanço em direção ao passado
que a sociedade norte-americana já fez nos
últimos 50 anos — ou sabe-se lá quantos.
O candidato de oposição a Donald Trump,
logo de cara, antes e acima de qualquer ou-
tra coisa, é o símbolo por excelência do sis-
tema eleitoral em que os Estados Unidos se

eleições 123
J. R. GUZZO

encontram hoje — ou em que acabaram cain-


do, no imutável esforço de tantos políticos
de remar sempre contra o progresso e a fa-
vor da piora. Essas eleições em que se vota
de todas as maneiras, mas em que o resulta-
do é um ectoplasma que vai tomando forma
de acordo com a vontade das 50 máquinas
de apuração diferentes que operam em ca-
da Estado norte-americano, não foram um
momento heroico de transformação, nem
uma nova lição de democracia para o resto
do planeta. Foram uma piada mundial — a
primeira vez, possivelmente, em que os Esta-
dos Unidos se viram comparados com algu-
ma Banana Republic da América Central ou
com uma ditadura de grotão africano, onde
a discussão não é quem ganhou, mas quem
roubou a eleição.
É difícil querer alguma coisa diferente num
sistema em que a votação não tem hora cer-
ta para começar, nem para acabar, em que

eleições 124
J. R. GUZZO

vale voto pelo correio, por e-mail e de gen-


te que já morreu (até candidato morto aca-
bou sendo eleito para o Congresso), ou em
que a apuração leva dias inteiros para ter-
minar. Aqui no Brasil, país de “governo fas-
cista”, que massacra índios, negros e girafas,
e que deixa as almas democráticas norte-a-
mericanas em estado permanente de pavor,
o resultado sai poucas horas depois de en-
cerrada a votação. Podemos eleger políticos
piores que os deles — embora haja contro-
vérsias a respeito. Mas sem dúvida elegemos
mais depressa.

ELES BUSCAM O CONFORTO DE UMA


SITUAÇÃO EM QUE SE METEM NO
DISFARCE DE ESPECIALISTAS

Biden é o retrato e a consequência desse sis-


tema — e, no momento, exerce o papel de de-
positário fiel da reação do Partido Democrata,

eleições 125
J. R. GUZZO

da máquina intelectual e daquilo que nos Es-


tados Unidos se chama de “liberais” contra
a transformação do país. É isso: quem muda,
nos Estados Unidos de hoje, é Donald Trump,
que a sabedoria dos cientistas políticos con-
sidera conservador, ou de “extrema direita”;
quem exerce a função de reacionário é Biden,
mais os grupos que estão com ele. Sua resis-
tência (ou impaciência, ou irritação, ou fran-
ca hostilidade) não é apenas em relação aos
valores tradicionais da sociedade norte-ame-
ricana, ou, pensando um pouco melhor, de
qualquer sociedade livre — família, trabalho,
patriotismo, religião, direito à propriedade,
direito a ganhar dinheiro, livre escolha, mé-
rito individual, igualdade de oportunidades,
mas não de resultados, e por aí afora. A resis-
tência, na verdade, é contra o novo. É a cren-
ça de que a principal necessidade dos Estados
Unidos de hoje é uma dose maciça de mono-
tonia na vida pública do país.

eleições 126
J. R. GUZZO

Mais do que uma crença, trata-se do gran-


de objeto de desejo do velho sistema políti-
co, da classe social em que a mídia de hoje
se transformou e do celebrity set de qua-
se sempre. O que as elites culturais e polí-
ticas querem, acima de tudo, é que Biden
torne a política norte-americana aborreci-
da outra vez. Esperam que ele traga de vol-
ta para Washington e vizinhanças a calma,
o silêncio, a normalidade e a ordem dos ve-
lhos tempos. “Mais especificamente”, escre-
ve Brendan O’Neill, da revista inglesa Spiked,
parceira de primeira hora de Oeste, conta-se
com Biden para “restaurar a ordem, a velha
ordem, a ordem pré-Trump na qual a políti-
ca era algo fundamentalmente chato, técni-
co, gerencial, coisa para as elites educadas e
não para populistas ruidosos e os enxames
de gente excitada que se junta a fim de ouvir
o que dizem e bater palmas para eles”. (Ge-
rencial? Lembra Dilma.)

eleições 127
J. R. GUZZO

Pois então: há método, e propósito, no an-


seio “liberal” pela chatice que vem junto com
Biden. “Não se enganem”, diz O’Neill. “A cele-
bração do tédio trazido por Biden representa
um desejo elitista de drenar a fagulha popu-
lar e democrática da vida política, e devolver
as questões públicas à clausura distante e bu-
rocrática na qual estavam fechadas antes da
chegada de Trump.” Como observa O’Neill,
o que esteve em jogo durante esse tempo to-
do nos Estados Unidos não foi uma eleição
— foi uma restauração. “Biden não é um po-
lítico”, diz ele. “É uma mascote. É uma ban-
deira. É, no fundo, uma figura simbólica, re-
presentando acima de tudo o anti-Trump, o
antipopulismo.” Sua presença na Casa Bran-
ca vai, segundo espera o velho establishment,
dar musculatura a seus esforços para rebalan-
cear a política norte-americana — “para vol-
tar, segundo um redator do Los Angeles Ti-
mes, à expertise da era anterior a Trump.”

eleições 128
J. R. GUZZO

Que expertise teria sido essa? Nada que a


população em geral pudesse identificar co-
mo positivo. Mas o que importam esses de-
talhes? O que vale não são as realidades — e
sim, para os políticos que não querem lar-
gar o osso, o conforto de uma situação em
que eles se metem no disfarce de especialis-
tas em questões públicas e resolvem o que
é bom para o povo norte-americano. Por al-
gum motivo, o que é bom para todos é sem-
pre bom para eles em primeiro lugar. “Vi-
rada” no Arizona do Leste, na Geórgia do
Norte ou em Cochabamba? Biden e seus ami-
gos estão pedindo que você não acredite ne-
les. Então não acredite.

Leia o artigo original na revista

eleições 129
LINKS

IDEIAS
Os progressistas e a marcha da insensatez
A vertigem da elite intelectual
De Churchill ao Madureira
Globalismo, uma ideia cretina

COVID
A neurose do vírus, ou o vírus da neurose
O tabu das estatísticas da covid-19

STF, DEMOCRACIA E POLÍTICA NO BRASIL


Sem democracia, sem liberdade e sem moral
STF, um partido político
A lei da mordaça

ELEIÇÕES
As piores eleições do mundo
A retórica inútil da oposição
Avanço para o passado
LE IA M A I S E M

D I R E TO AO P O N TO

R E V I S TA O E S T E . C O M

Você também pode gostar