Você está na página 1de 2

A cultura da banheira

Alexandre Ramos da Silva

A última novela a que assisti, na base de um capítulo por semana e olhe lá, foi Ti-ti-ti, se não
me engano em 1980, 80 e poucos, em que Reginaldo Farias e Luiz Gustavo faziam dois impagáveis
costureiros rivais. Agora pretendo dar uns palpites sobre uma pseudopolêmica surgida em torno das
novelas Uga Uga e Laços de Família, e já vou adiantando que nunca vi um único capítulo de
ambas, o que, para o objetivo que me proponho, não me parece indispensável.
A questão é que o abuso de cenas de sexo ou violência provocaram a intervenção da Justiça na
forma de mudança de horários ou proibição de atores menores de idade nos elencos. Na mesma
ocasião, o cardeal D. Eugênio Salles proibiu a utilização de igrejas da Arquidiocese do Rio de
Janeiro como cenário para um casamento de uma das tramas, alegando que a novela contraria os
valores cristãos.
Como era de se esperar, artistas e intelectuais na mesma hora subiram nos tamancos contra a
“censura”, inquisitorial, no caso da Igreja; ditatorial, no caso do Estado. De passagem, creio que
nunca foi tão rasteiro o conceito de artista e intelectual neste país. Me parece que duas sentadas no
sofá da sra. Hebe Camargo dão direito ao título de artista; e três, ao de intelectual. Como dizia o
falecido José Guilherme Merquior, a respeito de Caetano Veloso, é grave a situação de um país que
confunde cantor popular com intelectual.
É óbvio que não houve nada que se pudesse, mesmo remotamente, chamar de censura. A
censura é prévia, é um ato de força do poder Executivo, como aconteceu durante a ditadura. No
caso presente, tudo ocorreu no âmbito da Justiça, com iniciativas tomadas por promotores e dentro
dos conformes da lei. Toda a parafernália jurídica de recursos, apelações, níveis de julgamento e
tudo o mais foi rigorosamente obedecida. Se isso não for o mais pleno Estado de Direito, então não
sei o que possa ser.
Quanto às igrejas-locações, deu-se o de sempre: todo mundo reivindica o direito de viver e agir
conforme suas “opções”, de ter liberdade “artística” ou “jornalística” para dar palpite em tudo. Mas
quando a Igreja pretende participar do debate público, ou simplesmente agir coerente com seus
princípios, só se ouve essa gente gritando “Inquisição! Inquisição!”, enquanto vai amontoando
lenha para a fogueira.
O chororô da emissora e dos artistas fala em restrição ao direito de liberdade de expressão, mas,
e o nosso direito a uma televisão (que é concessão pública, lembremos) sadia, como é que fica?
Esse negócio de tirar as crianças da sala, mudar de canal ou desligar a tv, isso sim é que constitui
ato de força, a televisão é que tem que se adequar ao público, e não o contrário. O ministro Antônio
de Pádua Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, colocou a questão de maneira cristalina: “(...) a
liberdade de expressão e de criação artística não são um valor absoluto. Esse direito está no mesmo
plano de outros, constitucionalmente assegurados, (...) como o respeito a valores éticos e sociais da
pessoa e da família”. O ministro afirma ainda que “eventuais restrições à liberdade de imprensa e de
criação artística não podem ser confundidas com censura, por nada terem de autoritário ou
arbitrário, e respeitarem o direito alheio”.
Esse “direito alheio” a que se refere o ministro inclui o de vermos nossos costumes e tradições,
e de modo especial nossas crenças religiosas1, a salvo da ação desses invertidos morais, que agem

1
A Igreja Católica, por ser o adversário maior e mais difícil, é o principal alvo desse pessoal; mas o que eles
fazem com o protestantismo, colocando conscientemente no mesmo saco gente séria e vigaristas, e mesmo com as
religiões de origem africana, freqüentemente apresentadas de forma caricatural — não é brincadeira.
protegidos uma deliberadamente mal compreendida “liberdade de criação”, que na maior parte dos
casos nada tem de livre, já que brota do servilismo a instintos irracionais e ideologias idem.
Para justificar o combate sistemático aos valores que sempre estruturaram nossa sociedade,
muitos novelistas dizem que estão “discutindo temas importantes”, ou “tabus sociais”, ou ainda,
num raciocínio puramente mercadológico, que “estão dando ao público o que o público quer”. É
verdade que não é pequeno o número de pessoas que se interessam por pornografia, assim como é
também verdade que doses maciças de baixaria despejada dentro de casa diariamente só vai fazer
com que esse público cresça, sem o menor benefício para quem quer que seja além dos próprios
produtores da dita baixaria.
Mas na verdade, esse pessoal não está pensando nem na sociedade, nem em eventuais lucros.
Vamos nos lembrar que grande parte dos autores e artistas da Globo é gente de esquerda, pouco
interessada, teoricamente, nos lucros do sr. Roberto Marinho. Assim como os defensores do aborto
estão pouco se lixando para as mulheres pobres que morrem em abortos improvisados — o que eles
querem é não estar fora da lei —, o pequeno grupo de autores, artistas e jornalistas da área só vive e
pensa para o seu próprio e depravado mundinho, é o aplauso dos coleguinhas que eles buscam, não
o do público. Boas novelas sempre deram altos índices de audiência, e a pornografia não é, de modo
algum, uma exigência do público, ou “mercado” se preferirem, mas dos próprios autores, atores e
jornalistas, que ainda se consideram “transgressores”, “vanguardistas”, “libertários”, são quase
todos, repito — na verdade o repetem, insistentemente, eles mesmos —, de esquerda e fazem
campanha para o PT, mas, na verdade, constituem o que há de mais decadente na burguesia.
Falando nisso, a ditadura foi responsabilizada, entre outras coisas, pela inibição da criatividade
intelectual e artística neste país, mas, quinze anos depois, o que temos? No governo federal, em
vários governos estaduais e municipais, no Congresso, nas assembléias legislativas e câmaras, nas
universidades, nas redações e editoras, no comando das televisões — estão justamente os políticos,
intelectuais e artistas “reprimidos”, e em que pé está a cultura brasileira, no que depende dessa
gente? A televisão, para ficar somente no caso que estamos comentando, está em um nível tão baixo
que o braço governamental dessa casta que hoje domina de modo acachapante a produção e —
especialmente — a divulgação cultural teve que segurar a onda do seu próprio pessoal.
Muitas das grandes obras-primas do pensamento universal foram produzidas em condições de
graves restrições, ou mesmo de completa falta de liberdade. Cervantes começou a escrever D.
Quixote na prisão; Dante, a Divina Comédia no exílio; e por aí vai. No Brasil a mesma coisa se
repetiu durante todo o período getulista, e aí estão as obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado,
Rachel de Queiroz e outros. Mas não tivemos a mesma sorte depois de 1985. A não ser que o
cinema “uma idéia na cabeça-uma câmera na mão-e uma bobagem na tela” novo, feito por seis para
meia-dúzia, o teatro besteirol e a banheira do Gugu — além das tais novelas — sejam algo que um
país, numa situação um pouquinho melhor que a da Zâmbia, possa apresentar ao mundo como
sendo a sua cultura.

Você também pode gostar