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No dia 6 de novembro de 2021, em Houston, Texas, nos Estados Unidos, aconteceu

uma tragédia em um show do rapper Travis Scott, no qual oito pessoas morreram pisoteadas
por uma multidão enlouquecida. Durante o Festival Astroworld, uma densa onda de pessoas,
num ato de invasão, derrubou as cercas das premissas do show, já lotado em sua capacidade,
causando que as pessoas do público fossem esmagadas umas contra as outras. Além das oito
mortes, centenas de pessoas foram feridas. Nem o cantor Travis, ou sua equipe de produção, e
nem a equipe da segurança conseguiram fazer algo a tempo. Dada tal tragédia, na qual um
grupo de pessoas viola a lei em nome da vontade própria de entrar em um show, enquanto
aqueles que compraram seu ingresso acabam por sofrer as consequências dessas ações,
podemos refletir sobre o que as noções de liberdade e a de igualdade em Hobbes e
Tocqueville tem a nos dizer sobre o assunto.
Para Hobbes, o estado de natureza - um mundo sem lei, sem moral, sem normas para
regrar o comportamento humano - acarreta uma abundância de liberdade, todavia, nenhuma
segurança. Isso pois, em um cenário onde um indivíduo faz o seu bem querer, todos os outros
se comportam igual, gerando uma constante guerra de todos contra todos. Logo, num ato
irreversível de extrema liberdade, a razão humana nos leva a abdicar de alguns direitos da
natureza para formar um Estado e, dessa forma, garantir nossa segurança, o que ele chama de
contrato. Portanto, para Hobbes, o ser humano era completamente igual e livre antes da
constituição do Estado, porém, ele vê isso como algo deplorável, pois todos seriam
igualmente vulneráveis, famintos, violentos e livres para viver pelas próprias regras. Assim, é
desejável a desigualdade formada pelo Estado, porque é ela que regula o desejo humano e
estabelece a paz. Ademais, para Hobbes, a liberdade é uma qualidade que reside na ação, e
não na vontade. Segundo ele, o soberano é quem tem poder para decidir e julgar, portanto, ele
pode legitimar e limitar a liberdade natural do homem pelas leis.
No concerto musical de Travis Scott, é escancarada a falha no contrato. De forma a
prejudicar mais ou menos gravemente a plateia presente, a liberdade natural dos invasores
deixa de ser limitada por um poder regulador, seja público - a polícia - ou privado - uma
equipe de segurança. Dessa forma, independentemente de terem comprado um ingresso, que
serve como contrato explícito para o acesso ao show, todos tornam-se iguais frente à situação,
sendo impossível e inútil distinguir, no momento da coisa, quem estava lá legitimamente ou
não. Assim sendo, uma assustadora aproximação ao estado de natureza hobbesiano
demonstra que os pontos feitos por Hobbes não são absurdos frente à realidade.
Por outro lado, Tocqueville tenciona a relação de liberdade e de igualdade ao se
questionar o que pode-se fazer para que o desenvolvimento da igualdade irrefreável não seja
inibidor da liberdade e, eventualmente, destruí-la. Para ele, a tendência da igualdade nas
novas sociedades democráticas é natural, entretanto, a igualdade em excesso pode trazer
prejuízos e, por isso, deve-se dosá-la com liberdade individual. Um perigo da igualdade em
excesso é, por exemplo, dar fruto a governos autoritários, como as monarquias. Tocqueville
entende a liberdade como livre arbítrio nas escolhas individuais. Na sua opinião, pela paixão
à igualdade ser tão grande nos homens, ela é preferível à liberdade. Porém, a liberdade pode
ser ameaçada pela tirania da maioria. Isso acontece quando, num contexto de igualdade
política e de liberdade, o indivíduo busca suas necessidades individuais, esquecendo-se de
pensar no coletivo e delegando tal tarefa para aqueles que governam, ou seja, o excesso de
individualismo vem de sociedades igualitárias.
Relacionando esse pensamento ao ocorrido do show de Travis, pode-se colocar a
igualdade e a liberdade certamente foram mencionadas nessa vez. Sob um olhar
tocquevilliano, coloca-se que invasão conjunta de milhares de indivíduos em uma situação
igual, que é a de estar nas margens do festival com vontade de entrar, fez com que todos
colocassem seu interesse próprio em primeiro plano, criando assim uma situação de
prevalecimento da tirania da maioria. Dessa forma, a liberdade individual de cada um da
plateia é colocada em cheque, dado que eles não são fisicamente capazes de escapar da
situação.

REFERÊNCIAS

CHEVALLIER, Jean-Jacques. 1999. Grandes Obras Políticas: de Maquiavel a nossos dias. 8a


. Rio de Janeiro: AGIR. Terceira Parte: Capítulo III (Tocqueville).

ANELISE VAZ. A igualdade pensada e a igualdade possível: reflexões sobre o conceito de


igualdade em Hobbes, Locke e Rousseau e considerações sobre sua aplicabilidade. Revista
Iluminart, [s. l.], v. 1, n. 4, 2021. Disponível em:
http://revistailuminart.ti.srt.ifsp.edu.br/index.php/iluminart/article/view/83. Acesso at: 9 Nov.
2021.

DOMINGUEZ, Claudia. Pelo menos oito pessoas morrem pisoteadas em show do rapper
Travis Scott nos EUA. [S. l.], 2021. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/pelo-menos-8-pessoas-morreram-pisoteadas-dura
nte-show-do-rapper-travis-scott-nos-eua/. Acesso at: 9 Nov. 2021.

MARUYAMA, Natalia. Liberdade, lei natural e direito natural em Hobbes: limiar do direito e
da política na modernidade. Trans/Form/Ação, [s. l.], v. 32, n. 2, p. 45–62, 2009. Disponível
em: https://doi.org/10.1590/s0101-31732009000200002. Acesso at: 9 Nov. 2021

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