Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Doutor em filosofia (Unisinos), foi professor no Instituto Berthier (IFIBE), até final de 2019, militante de direitos
humanos no Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), do qual é um dos membros da coordenação
nacional, membro da Associação Filosofia e Libertação (AFyL Brasil).
Paulo César Carbonari | 147
por destruição massiva das condições para que sua vida possa se manter,
se desenvolver e se reproduzir, num deliberado movimento de produção
da morte como estratégica e como prática política; num deliberado
movimento que alimenta o ódio e a tristeza, de sofrimento e dor como
medidas de punição pelos “pecados” impagáveis. Uma era de crescimento
do “brutalismo”2 como a mais “refinada” expressão do antropoceno.
O tempo é cada vez menos de reconhecimento de vítimas. Pelo
contrário, é de sua produção cada vez mais massiva3 e de franca inversão
dos direitos na vigência do majoritarismo. Os direitos humanos se
tornaram incômodos para os algozes e os vitimários. Quanto mais
borrados estiverem os direitos humanos, mais difícil de afirmar que há
violações, que há vítimas. E ainda mais difícil de exigir responsabilização,
reparação. A responsabilidade parece escorrer por entre os diagramas do
poder e escapa da possibilidade de efetivação por quem por ela é instituído,
vira patranha. Se não há vítimas, não há violação e se não há violação é
porque já não há direitos violados. Os direitos humanos teriam se tornado
desnecessários.
O momento é de desmonte da proposta de direitos como garantias a
serem realizadas, ainda que na progressividade. O progresso alimentou
também a ideia de que seria possível caminhar na direção de mais direitos.
O que se tem visto é o contrário, o progresso se tornou uma promessa falsa
e não há porque realizar progressivamente direitos, pode-se regredir, sem
problemas. Aliás parece que sequer se trata de regresso, visto que abrir
mão de direitos é uma necessidade para que as desigualdades persistam.
Um teto para gastos sociais é uma necessidade fiscal. Mas isso é um
2
Expressão cunhada por Achille Mbembe que dá título a novo livro de sua autoria (Brutalisme, La Découverte, 2020).
Ver entrevista publicada por Pragmatismos, em 09/08/2020. Tradução Alexandre Mendes. Publicada por IHU On
Line em 16/08/2020. Disponível em www.ihu.unisinos.br/601883-brutalismo-do-antropoceno. Acesso em
19/08/2020.
3
Como sustenta Dussel em Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão (2000, p. 11).
Paulo César Carbonari | 149
4
Como mostra de modo bastante enfático Franz Hinkelammert em El Sujeto y la Lei (2003, p. 114-115).
150 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
5
Ver relatório da Global Footprint Network (www.footprintnetwork.org/).
6
Conceito trabalhado pela filósofa Shoshana Zuboff, cuja principal obra é The Age of Surveillance Capitalism (New
York: Public Affairs, 2019). Para uma apresentação inicial ver o artigo “Tua escova de dentes te espiona: um
capitalismo de vigilância”. Le Monde Diplomatique Brasil, edição nº 138, 03/01/2019. Disponível em
https://diplomatique.org.br/um-capitalismo-de-vigilancia/
Paulo César Carbonari | 151
7
O professor Rafael Yuste, da Universidade de Columbia, defende o que se chama de “neurodireitos”. Ver entrevista
na Folha de São Paulo em 26/08/2020. Disponível em www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/08/os-neurodireitos-
sao-os-novos-direitos-humanos.shtml?pwgt=kvjzm8fw51qtjtwzaor6cl466iyhoyac1it8j88eipdoakg2&utm_source=
whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift. Acesso em 20/09/2020.
8
Ver o relatório informe “Racial discrimination and emerging digital technologies: a human rights analysis”
(A/HRC/44/57), da relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo de discriminação racial, xenofobia e
formas conexas de intolerância. Apresentado em 18 de junho de 2020 ao Conselho de Direitos Humanos das Nações
Unidas. Versão em espanhol disponível em https://undocs.org/es/A/HRC/44/57. Acesso em 28/09/2020. A Agência
da União Européia para os Direitos Humanos (FRA) alertou em maio de 2020 sobre este tema. Ver
https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/fra-2018-focus-big-data_en.pdf
9
Assunto trabalhado pelo filósofo Yuk Hui em Fragmentar el futuro (2020).
152 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
10
Nota de Prensa do Secretário-Geral ONU em 20/09/2017 em www.ohchr.org/SP/NewsEvents/
Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=22114&LangID=E com base no Documento A/HRC/36/31, disponível em
https://undocs.org/es/A/HRC/36/31. Acesso para ambos os casos em 26/09/2020.
11
Terminologia usada pelo assistente do Secretário-Geral da ONU, Andrew Gilmour, em palestra realizada na
University of California, Sacramento (USA), em março de 2018. Disponível em www.ohchr.org/EN/NewsEvents/
Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=23202&LangID=E%20The%20global%20backlash%20against%20human%2
0rights. Acesso em 25/09/2020.
12
Trabalhamos estes elementos entre outros no artigo “Democracia e Autoritarismo: para uma reflexão filosófica
sobre o Extermínio Legítimo”, no prelo, aprovado para ser publicado na Revista Veritas, da PUCRS (ISSN 1984-
6746).
Paulo César Carbonari | 153
13
Faremos a tradução dos textos desta obra em todos os casos nos quais será citada.
154 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
14
Tratamos em nossa Tese A potencialidade da vítima para ser sujeito ético: construção de uma proposta de ética a
partir da condição da vítima (2015)
15
Ver nossa Tese (2015) e o artigo “A idolatria da liberdade dos proprietários - um ensaio a respeito de John Locke”,
publicado em obra coletiva (2020).
16
Ver artigo de Grosfoguel (2013, p. 31-58).
Paulo César Carbonari | 155
17
Hinkelammert apresenta esse tipo de cálculo que, segundo ele, é defendido por Lester Thurow, do MIT. Ver a
exposição sobre este tema e também a crítica (2003, p. 342-354).
156 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
for proprietário privado de uma mercadoria e, como tal, sujeito com poder
de contrato. Hinkelammert entende, a partir de Marx, que nas sociedades
capitalistas mercantis o reconhecimento do humano se dá através de
relações mútuas entre proprietários que estabelecem contratos (expressão
jurídica), espelhos das relações concretas entre as pessoas como
proprietárias (privados, individuais), sendo que se movem pelo interesse
(não como sujeitos necessitados e por valores), nada mais. No dizer de
Hinkelammert: “A única força que os une e os põe em relação é a força de
seu egoísmo, do próprio proveito pessoal, seu interesse privado” (2008).
Ora, cada um pode somente cuidar de si “graças a uma harmonia pré-
estabelecida das coisas ou sob uma providência omniastuta, para realizar
a obra do proveito mútuo, da conveniência coletiva, do interesse geral”, de
modo que, rigorosamente, as relações ente as pessoas não são entre
pessoas e sim “relações sociais entre coisas” (2008, grifos no original).
Hinkelammert agrega que esta situação se sustenta numa redução à
lógica meio-fim e que os direitos humanos não podem ser compreendidos
nesta lógica que é imposta pela inversão moderna dos direitos humanos,
já que leva à inviabilização dos direitos humanos dos seres humanos
concretos. Segundo ele, “a inversão dos direitos humanos é feita
transformando-os em resultado de uma ação meio-fim na qual se buscam
os meios calculáveis para realizar o fim”. Para o cumprimento desta
exigência de que sejam um fim “é preciso objetivá-los”. O problema é que
“como fins objetivados, transformam-se em instituições” que podem se
impor e serem realizadas por “meios calculáveis adequados”. Os direitos
humanos são identificados às instituições (democracia, mercado,
competição, eficiência), ao que está institucionalizado. O caminho que
resta para fazer vigentes os direitos humanos é fazer valer e realizar as
instituições. Ocorre que, para isso, “é necessário violar os direitos
humanos em nome dos quais precisamente atua”. Ou seja, em nome de
Paulo César Carbonari | 157
18
Segundo Hinkelammert, “[...] a teoria da ação racional [de tipo weberiano], que reduz a racionalidade da ação à
relação meio-fim, é totalizada no campo epistemológico e da metodologia das ciências” (1995, p. 278).
158 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
externa ao ser humano” (2003, p.341). Isto porque, segundo ele: “Se a
sociedade não dá lugar a todos, não terá lugar para ninguém. Se quisermos
dar ao conjunto dos direitos humanos enquanto direitos da vida humana
uma expressão sintética, esta será: um mundo onde caibam todos, a
natureza inteira incluída” (2003, p. 354). Afinal, “Que não se pode viver
sem que todos vivam é, por um lado, um postulado da razão prática e, por
outro, determina uma práxis. É a práxis correspondente aos direitos
humanos da vida humana” (2003, p. 355). Essa co-responsabilidade é base
da solidariedade como práxis humana fundamental, dado que “ao
reivindicar-se como sujeito a pessoa se reivindica em conjunto com os
outros. O outro está em mim; eu estou no outro [...]. Não é possível a
validade de qualquer valor e, portanto, também dos direitos humanos, se
não voltamos a descobrir a referência a este “aquele” [o que torna possível
a vida humana]” (2003, p. 359).
19
Seguimos a tradução publicada pela Revista InSURgência (2015).
20
Achille Mbembe fala de “necropolítica” (2016).
Paulo César Carbonari | 163
21
No parágrafo final [28] da Política da Libertação, volume II, Dussel esclarece que: “Ninguém pode em concreto
decidir, a partir de uma deliberação perfeita, nem tampouco pode pretender possuir uma predição certa, também
perfeita, da consequência de seus atos [...]” (2009, p. 514-515, tradução nossa). Mais adiante completa: “Do fato de
que os atos incluem um momento de indecidibilidade por falta de evidência prática absoluta e de imprevisibilidade
perfeita, quer dizer, de que seja impossível ter certeza absoluta de seus efeitos, não segue que a ética, ou a política,
perca seu sentido” (2009, p. 515, tradução nossa). Na Ética, o assunto é tratado no § 6.3, de modo particular em
[367] (2000, p. 535-536).
164 | Direitos humanos desde a América Latina: Práxis, Insurgência e Libertação - Vol. 2
22
Desenvolvemos amplamente esta ideia de racionalidade vitimária e sua contraposta, a racionalidade ética a partir
da vítima, em nossa Tese (2015).
Paulo César Carbonari | 165
23
As relações entre os diversos campos práticos são analisadas por Dussel em “La ética como teoria moral de los
campos prácticos”, em 14 Tesis de Ética (2016, p. 15-28). No segundo volume da Política da Libertação, Dussel,
localiza o sistema do direito como parte da esfera formal da política (2009, p. § 23, [352]), que é completada pela
esfera material (2009, § 21) e pela esfera da factibilidade (2009, § 22). No caso da esfera material, há que se
considerar as sub-esferas ecológica, econômica e cultural (2009, § 21, [319; 320ss; 324ss]).
24
Sua função específica é “[...] constituir a referência formal ou a institucionalização dos deveres e direitos que devem
cumprir todos os membros da comunidade política enquanto soberana. Trata-se da constituição de um “estado de
direito” (Rechtsstaat). Como um corpo diferenciado onde os direitos fundamentais institucionalizados permitem
promulgar uma “Constituição (em cumprimento do Princípio Democrático) como referência próxima do direito
positivo em todos seus ramos” (2015, p. 127-128).
Paulo César Carbonari | 167
a partir das vítimas, dos sujeitos de direitos, que são sempre pluriversais,
pluridimensionais. Os direitos humanos não são listas de direitos
formuladas abstrata e anistoricamnte. Eles são históricos e vão sendo
demandados, afirmados, reconhecidos e realizados (ou não)
historicamente (2015, p. 129), sempre mais como luta dos/as “sem-
direitos” do que como “direito vigente”.25 Aqui está o maior desafio para a
superação das inversões, desmontes e desqualificações dos direitos
humanos, mas também para afirmar uma compreensão libertadora dos
direitos humanos com raízes nutridas por outros subsídios, muito
distintos daqueles que alimentaram as versões modernas, modernizadoras
e no máximo reformistas de direitos humanos e que poderiam ensejar a
libertação dos direitos humanos das garras do sistema vigente,
inaugurando a radicação de sua potência nas subjetividades em luta.
25
“Não caímos assim no dogmatismo do direito natural (solução fundacionalista metafísica e inaceitável), nem
tampouco no relativismo (todo direito vale por ter-se imposto pela força numa época), ou no mero contingencialismo
(não há princípios universais), e sim na conciliação de um universalismo não-fundacionalista, que mostra que os
‘novos’ direitos são aqueles exigidos universalmente (seja em uma cultura, seja para toda a humanidade, segundo o
grau de consciência histórica correspondente) para a comunidade política no estado de sua evolução e crescimento
histórico” (2015, p. 130).
Paulo César Carbonari | 169
Referências
CARBONARI, Paulo César. A potencialidade da vítima para ser sujeito ético: construção de
uma proposta de ética a partir da condição da vítima. Tese de Doutoramento. PPG
Filosofia Unisinos, São Leopoldo, 2015. Disponível em www.repositorio.
jesuita.org.br/handle/UNISINOS/4517. Acesso em: 22/07/2020.
DUSSEL, Enrique. 14 Tesis de Ética: hacia la esencia del pensamiento crítico. Madrid:
Trotta, 2016.
DUSSEL, Enrique. 20 Teses de Política. Trad. Rodrigo Rodrigues. Buenos Aires: Clacso; São
Paulo: Expressão Popular, 2007.
DUSSEL, Enrique. Filosofia Política. Arquitetônica. Madrid: Trotta, 2009. Vol. II [no prelo
tradução pela Editora IFIBE, Passo Fundo, RS].
DUSSEL, Enrique. Filosofia Política. História Mundial e Crítica. Trad. Paulo César
Carbonari (Coord.). Passo Fundo: IFIBE, 2014. Vol. I.
DUSSEL, Enrique. La “vida humana” como “critério de verdad”. In: VVAA. Itinerários de la
razón crítica. Homenaje a Franz J. Hinkelammert. San José, Costa Rica: DEI, 2001, p.
241-250.
HERRERA FLORES, Joaquin. A (re)invenção dos direitos humanos. Trad. C.R.D. Garcia et
al. Florianópolis: Fundação Boiteux; IDHID, 2009.
HINKELAMMERT, Franz. El sujeto y la ley: el retorno del sujeto reprimido. Heredia, Costa
Rica: EUNA, 2003.
HINKELAMMERT, Franz. Crítica de la razón utópica. San José, Costa Rica: DEI, 1984.
HINKELAMMERT, Franz. Cultura de la esperanza y sociedad sin exclusión. San José, Costa
Rica: DEI, 1995.
HINKELAMMERT, Franz. El mapa del emperador. San José, Costa Rica: DEI, 1996.
HINKELAMMERT, Franz. El giro del sujeto. San José, Costa Rica: DEI, 1998.
HUI, Yuk. Fragmentar el futuro. Ensayos sobre tecnodiversidad. Buenos Aires: Caja Negra,
2020.
RUBIO, David Sánchez. Filosofía, Derecho y Liberación en América Latina. Bilbao: Desclée,
1999 (Col. Palimpsesto, 3).
WEBER, Max. O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais e econômicas. In:
Metodologia das Ciências Sociais 2. Trad. Augustin Wernet. Campinas: Unicamp;
São Paulo: Cortez, 1995.
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Arte de Capa: "La Lucha por la Emancipación de la America Latina" por David Alfaro Siqueiros
Direitos humanos desde a América Latina, vol. 2: Práxis, Insurgência e Libertação [recurso eletrônico] / César Augusto Costa;
Lucas Machado Fagundes; Jackson da Silva Leal (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2022.
439 p.
ISBN - 978-65-5917-422-5
DOI - 10.22350/9786559174225
CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900