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UMA NOVA “TEORIA DA VERDADE”

Paulo César Carbonari

Há um ministro, o da Cidadania, Osmar Terra, que tem se especializado em produzir uma


“teoria da verdade” que dá sustentação à ação política do governo do qual é parte. Ele formula
seus posicionamentos orientado por um conceito de evidência bem peculiar (e conveniente): se
vi (do verbo ver, não do verbo enxergar),1 então existe e, se existe, é verdadeiro; se não vi, não
existe, não é verdadeiro. Uma pérola da epistemologia, que não é nova, remonta ao Barão de
Münchausen.
O ministro fez esta formulação em duas ocasiões. Na primeira, foi quando recusou os
resultados do trabalho da Fundação Oswaldo Cruz no 3º Levantamento Nacional sobre o Uso
de Drogas pela População Brasileira. Disse à reportagem de O Globo: “Se tu falares para as
mães desses meninos drogados pelo Brasil que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia
de drogas, elas vão dar risada. É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas
ruas. Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de
violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que nos basear em
evidências” – grifo nosso2. Esta semana, segundo a jornalista Rosane de Oliveira3, do grupo
RBS, teria dito que “em matéria de fome, Brasil está nos níveis de Japão, Suécia, Noruega e
Dinamarca. Ministro da Cidadania afirmou ainda que, ‘neste momento’, não conhece ninguém
que passe fome no país”.
É o comportamento típico daquele do barão famoso, sem com isso dizer que o ministro
também seja um contumaz repetidor de suas práticas epistemológicas, apenas que parece pôr
mais força em suas convicções do que nos fatos; mais força na sua versão, melhor, na sua visão,
que confunde com “evidência”.
O famoso livro “As aventuras do Barão de Münchhausen”,4 escrito por Rudolf Erich
Raspe e publicado em Londres, em 1785, conta a história da “experiência de um explorador
disposto a defender seus ideais a qualquer custo”. Sua fama é a de ser o maior mentiroso do
mundo. O incrível “barão” acreditava em suas próprias invencionices e as queria fazer passar
por “verdades”: “Muito bem, cavalheiros, todos me conhecem e não podem pôr em dúvida
minha veracidade” (2014, [59]). O barão conta suas “histórias”, dá a “prova” da sua “verdade”
e fornece os critérios para que tal se estabeleça. Por exemplo, depois de relatar sua segunda ida
à lua diz: “Sei bem que tudo isso deve parecer muito estranho. Porém, se a sombra de uma
dúvida restar no espírito de alguém, a solução é simples: que ele próprio faça essa viagem, pois
vai então constatar o quão fiel à verdade sou como viajante” (2014, [72]). Ora, se restar dúvida
que aquele que a tem tire por si a prova, “faça essa viagem”.
Este tipo de posição sugere uma suposta “teoria da verdade”, uma suposta “teoria do
conhecimento”. Na verdade, trata-se de uma “anti-teoria” ou da impossibilidade da verdade.
Em termos práticos, não há porque fazer teoria, de qualquer tipo, não há porque fazer ciência,
de qualquer tipo, nem mesmo porque buscar a verdade, basta “ver”. O que vale é a “crença”,


Doutor em filosofia (Unisinos), professor de filosofia (IFIBE), militante de direitos humanos (CDHPF/MNDH)
e assessor institucional Cresol Central SC/RS. Escrito em 24/07/2019.
1
A raposa ao Pequeno Príncipe: “o essencial é invisível aos olhos” (SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno
príncipe. 48. ed. Trad. Dom Marcos Barbosa. Rio de Janeiro: Agir, 2009).
2
https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-ataca-fiocruz-diz-que-nao-confia-em-estudo-sobre-drogas-
engavetado-pelo-governo-23696922?. O Globo, em 28/05/2019.
3
https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/rosane-de-oliveira/noticia/2019/07/osmar-terra-diz-que-em-materia-
de-fome-brasil-esta-nos-niveis-de-japao-suecia-noruega-e-dinamarca-cjyh7wkic01xz01pby5j917di.html.
Gaúcha ZH, em 24/07/2019.
4
RASPE, Rudolf Erich. As surpreendentes aventuras do Barão de Münchhausen. Trad. Claudio Alves Marcondes.
Ilustr. Rafael Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2014 [edição eletrônica]. Os números entre colchetes depois do
ano indicam a “página” eletrônica.
no mais reles dos sentidos, aquele que não tem sentido algum. Centrada no “puro mistério”, na
ausência completa de qualquer possibilidade de algum tipo de necessidade de ser evidenciada,
nem objetiva e nem subjetivamente, simplesmente qualquer coisa, qualquer dito, contanto que
dito por quem pode dizer, quem tem poder para tal, pode ser elevada à certeza absoluta,
indiscutível e incontestável, natural, eterna e perene: foi o “barão” que disse.
Não há possibilidade de crítica, porque simplesmente não é necessário debate, nem
mesmo doutrinação – quem faz doutrinação é que sustenta verdades e as usa para “convencer
forçosamente” aos outros. O que faz é dizer e dizer é mais do que “fazer coisas com palavras”
(Austin), dado que não há sequer a necessidade de algum vínculo entre o que se diz (palavras)
com qualquer coisa que seja ou simplesmente com qualquer coisa (mas não em sentido
pragmático), menos ainda com o que se faz. Está-se diante de tanto “nonsense” que, de tão dito
e repetido, vira “bom senso” e está “muito bem distribuído”. Nem Susan Haack, uma das mais
renomadas estudiosas das teorias da verdade, poderia imaginar alguma possibilidade tão
inaudita. Até o “paradoxo do mentiroso” por ela analisado5 ficaria ultrapassado com tanta
criatividade epistemológica, gnosiológica, lógica e ontológica.
Enfim, talvez o Pequeno Príncipe possa nos dar algum alento para seguirmos acreditando
que possamos voltar a enxergar e, quiçá, poder dizer a verdade, sem virar barão, ou ministro...

5
Haack diz que tal paradoxo “[...] vem em diversas variantes; a versão clássica diz respeito à sentença: (S) Esta
sentença é falsa. Suponhamos que S é verdadeira; então o que ela diz é o caso; logo ela é falsa. Suponhamos,
agora, que S é falsa; então o que ela diz não é o caso, logo ela é verdadeira. Assim, S é verdadeira sse S é falsa”
(HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Trad. Cezar A. Mortari e Luiz H. de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP,
2002, p. 185-186).

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