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COLEÇÃO DINÂMICA JURÍDICA:

Mecanismo de Resolução Adequada


de Conflitos
De acordo com a Lei no 9.610, de 19/2/1998, nenhuma parte deste livro pode
ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de
recuperação de informações ou transmitida sob qualquer forma ou por
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detentor dos direitos autorais.

Organizadores: Alexandre Bento Bernardes de Albuquerque e Luis Cineas de


Castro Nogueira
Capa: José Renato Ferraz Ponce
Bibliotecária: Irla Maria Castelo Branco

FICHA CATALOGRÁFICA

Coleção dinâmica jurídica: mecanismo de resolução adequada de con-


C691 flitos / Alexandre Bento Bernardes de Albuquerque, Luís Cineas de Cas-
tro Nogueira. – Teresina: Dinâmica Jurídica, 2017.
225 p.

ISBN 978-85-68268-23-0

1. Mediação de conflitos. 2. Mecanismo de resolução adequada de con-


flitos. I. Albuquerque, Alexandre Bento Bernardes de. II. Nogueira, Luís
Cineas de Castro. III. Título.

CDD 347.09

CONSELHO EDITORIAL

Dra. Adriana Borges Ferro Moura.


Dr. André Vasconcelos Roque
Dra. Eliana Freire do Nascimento
Dr.. Leandro Cardoso Lages
Dra. Naiara de Moraes e Silva
Dr. Nelson Juliano Cardoso Matos
Dra. Joana Moraes Souza
Msc. Francisco Robert Bandeira Gomes da Silva
Msc. Jarbas Gomes Machado Avelino
Msc. José Octávio de Castro Melo
Msc. Nestor Alcebíades Mendes Ximenes

2017, EDITORA DINÂMICA JURÍDICA


Rua Visconde da Parnaíba, 1439, Horto Florestal.
CEP – 64049-570 / e-mail: comercial@dinamicalaboral.com.br
SUMÁRIO

A COMPLEXIDADE E AS TRANSFORMAÇÕES DAS


RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS: CONTRIBUIÇÕES
DA MEDIAÇÃO INTERDISCIPLINAR

Eliana Freire do Nascimento ................................................ 5


A MEDIAÇÃO E SEU OLHAR DIFERENCIADO
SOBRE OS CONFLITOS

Alessander Mendes ............................................................. 19


BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO NA
LEGISLAÇÃO PÁTRIA E NO DIREITO COMPARADO.

Macela Nunes Leal ............................................................. 49


DO TRADICIONAL AO DESAFIADOR: ASPECTOS
PSICOEMOCIONAIS DA JURISDIÇÃO E MEDIAÇÃO
NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS JURÍDICOS

Maria do Socorro Carvalho de Sales Sousa .........................67


JUSTIÇA RESTAURATIVA PENAL NO BRASIL

Luis Cineas De Castro Nogueira......................................... 85


SÍSIFO, O ACESSO À JUSTIÇA E OS MECANISMOS
ALTERNATIVOS:POR UM NOVO MODELO DE
PACIFICAÇÃO SOCIAL A PARTIR DO CONSENSO

Fernando Fortes Said Filho ................................................99


Coleção Dinâmica Jurídica

SOLUÇÕES ALTERNATIVAS DE CONFLITOS E O


NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – MEDIAÇÃO
E CONCILIAÇÃO

Felipe de Albuquerque Rodrigues Pereira .........................129


TÉCNICAS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Danyelle Bandeira de Melo ...............................................147


MEDIAÇÃO ESCOLAR – UM CONVITE À CULTURA
DE PAZ NO AMBIENTE EDUCACIONAL
Dayse Cristina Soares Feitosa Rodrigues
Juliana Sales e Mendes
Luanna Cecília Costa Sousa ..............................................163
A NULIDADE DE CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE
FORO E DE CLÁUSULA ARBITRAL EM CONTRATOS
DE FRANQUIA: O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO
CONTRATANTE DEPENDENTE EM COLISÃO COM
O PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AOS CONTRATOS

Leandro Cardoso Lages ....................................................189

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Coleção Dinâmica Jurídica

A COMPLEXIDADE E AS TRANSFORMAÇÕES
DAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS:
CONTRIBUIÇÕES DA MEDIAÇÃO
INTERDISCIPLINAR

ELIANA FREIRE DO NASCIMENTO1

Resumo

O Poder Judiciário brasileiro ao longo dos anos vem


implementando medidas para minimizar a sua morosidade
para solução dos conflitos sociais, reconhecendo a
negociação, a conciliação e a mediação como subsistemas
do sistema auto compositivo de solução de conflitos.
Neste sentido, o objetivo deste artigo é compreender
como a mediação interdisciplinar pode contribuir para a
composição das relações sociais em uma sociedade
complexa. Concluímos que o caráter interdisciplinar da
mediação tem grande potencial de minimizar os conflitos
desde que o mediador tenha acesso a uma formação
continuada, ampla e de qualidade envolvendo a psicologia,
a sociologia, a antropologia, o direito ou qualquer outro
conhecimento que venha a facilitar a comunicação e
interação entre as partes envolvidas no conflito.

Palavras-chave: Auto composição. Solução de Conflitos.


Mediação. Interdisciplinaridade

11Profa. Dra. na Faculdade Estácio de Teresina, especializanda em gestão de


conflitos. E-mail elianafreirenascimento@gmail.com
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Coleção Dinâmica Jurídica

Abstract

The Brazilian Judiciary over the years has been


implementing measures to minimize its slowness in solving
social conflicts, recognizing negotiation, conciliation and
mediation as subsystems of the self-composed system of
conflict resolution. In this sense, the objective of this
article is to understand how interdisciplinary mediation can
contribute to the composition of social relations in a
complex society. We conclude that the interdisciplinary
character of mediation has a great potential to minimize
conflicts as long as the mediator has access to a
continuous, broad and quality education involving
psychology, sociology, anthropology, law or any other
knowledge that will facilitate the communication and
interaction between the parties involved in the conflict.

Keywords: Autocomposition. Conflict Resolution.


Mediation. Interdisciplinarity

1 A auto composição na solução dos conflitos: a


mediação interdisciplinar

O sistema jurídico no Brasil confronta-se com


uma realidade social na qual os componentes psicológicos,
econômicos, sociológicos e filosóficos fazem parte da
percepção dos indivíduos em meio às suas relações sociais.
O intervencionismo do Estado ao tomar suas decisões
visando pacificar os conflitos impõe o restabelecimento da
ordem social conduzindo as partes à lógica do ganhador e

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do perdedor do conflito2 definido pela imposição do


Estado-juiz.

A interface entre a percepção da complexidade da


sociedade, da necessidade de pacificação social e do caráter
interdisciplinar da mediação apresenta-se como elemento
relevante para a construção de uma sociedade menos
conflituosa na qual os espaços não adversariais, voluntários
e com comunicação não-violenta deixam de ser vistos
como exceção e passam a ser como algo possível em nome
de uma sociedade mais fraterna e menos litigiosa.
A mediação tem se mostrado como uma
alternativa adequada para a solução dos conflitos tendo em
vista a sua capacidade real de atender às demandas das
partes, sendo um espaço voluntário de solução das
disputas entre os indivíduos na sociedade, que de modo
célere, resolvem plenamente seus conflitos a partir de suas
próprias percepções sobre o fato que causou o
desequilíbrio das relações.
O conflito, via de regra, é concebido como algo a
ser eliminado da vida social e que o ideal é a ausência do
conflito. Para Vasconcelos (2008, p. 10) o conflito é
inerente à condição humana, e que a “paz é um bem
precariamente conquistada por pessoas ou sociedades que
aprendem a lidar com o conflito”. Neste sentido,
entendemos a mediação como um método, com
fundamento teórico e técnico, em que uma terceira pessoa
treinada e neutra conduz os mediandos a resolverem seus
conflitos de forma auto responsável, a partir das

2 Para este estudo conflito é entendido como um “conjunto de condições


psicológicas, culturais e sociais que determinam um choque de atitudes e interesses
no relacionamento das pessoas envolvidas.”.

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Coleção Dinâmica Jurídica

ferramentas pessoais que os conduzam à transformação do


conflito em oportunidade de construção de novas
percepções acerca do fenômeno que gerou ruptura das
relações. Ou seja, o objeto de análise da mediação é o
conflito cujo objetivo é a sua transformação
compreendendo as percepções de cada uma das partes
acerca da mesma relação que gerou o conflito.
A partir desde conceito, podemos inferir o caráter
interdisciplinar da mediação que exige do mediador
conhecimento de outras áreas que o permita, ao
instrumentalizar as técnicas de mediação, transferir o
enfoque negativo para o potencial transformador que
contemple a complexidade dos conflitos e suas
subjetividades.
O conflito social é visto como algo negativo,
conduzindo os indivíduos a ter uma conduta de negação
outorgando ao Estado, de forma impositiva, a solução da
querela que assola as partes envolvidas. Por outro lado, já
se consolida a perspectiva em que não se fala mais em
extinção do conflito, mas em transformação do conflito
com o resgate das relações sociais, quando possível.
Segundo Warat (2001, p. 80) “a mediação seria
uma proposta transformadora do conflito porque não
busca a sua decisão por um terceiro, mas sim a sua
resolução pelas próprias partes, que recebem auxílio do
mediador para administrá-lo.” A transformação do conflito
por meio da mediação ajuda as partes envolvidas a
redimensiona-lo e reconstruí-lo de modo a equaciona-lo de
forma autônoma, sendo este aspecto o mais importante,
ou seja, devolve às partes a qualidade de vida, advinda da
transformação pessoal e social criativa oportunizada pela
mediação.

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Coleção Dinâmica Jurídica

A sociedade, ao comunicar-se, cria um sistema


comunicativo interdisciplinar, complexo no qual cada
sujeito é auto-referencial particular e próprio que muda a
forma de observar a sociedade e a si mesmo. Para
Schwartz (2005, p.36) :
[...] a sociedade é comunicação. E tudo o
que se comunica faz parte da sociedade ou
é sociedade. A sociedade é uma realidade
com cláusula auto-referencial ordenada de
forma auto-substitutiva , uma vez que tudo
que deve ser substituído ou mudado, em
seu interior, deve ser mudando e/ou
substituído a partir do outro.

A retomada do equilíbrio das partes em conflito


resulta da consciência que os indivíduos devem ter acerca
dos fatos que vivenciam e que lhe retira a paz social. Com
a consciência acerca do que foi vivido pelas partes e sobre
o momento que gerou o conflito, ao mediador cabe o
papel de contribuir para que haja a transformação acerca
da percepção que os sujeitos envolvidos têm sobre o
fenômeno vivido.
Neste sentido, Morin (1973) compreende que a
percepção dos indivíduos sobre determinado fenômeno
depende de quem observa e como tal não se pode
compreender a realidade a partir de uma única percepção,
mas reduzindo-a, oportunizando ao outro a compreensão
de suas demandas, necessidades a partir do seu próprio
olhar.
Entendemos a mediação como um mecanismo
capaz de atingir a justiça. A justiça a que nos referimos é
aquela na qual as partes, percebendo os fatos ao seu modo,
podem ponderar e resolver suas demandas sem a

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Coleção Dinâmica Jurídica

interferência do Poder Judiciário, auxiliadas por mediador


em sessões de mediação visando a compatibilização dos
interesses e, principalmente, a restauração das relações, e o
cumprimento voluntário do contrato firmado.
Para Barbosa (2007, p. 145) “a mediação é um
princípio que permite a prática do princípio da igualdade
da pessoa humana, representando a reunião simbólica de
todos os homens naquilo que eles tem em comum – a
igualdade de qualidade de ser humano”. Essa igualdade de
qualidade de ser humano, dentro da perspectiva do
princípio da dignidade da pessoa humana representa a
garantia de direitos consagrados na Constituição Federal
que nos impõe a assegurar condições necessárias a uma
sociedade pacífica e solidária.
Contudo, o Poder Judiciário ainda não está
preparado para a mediação diante da visão ainda
tradicional sobre esse instituto, o que requer novos
paradigmas tanto para a vivência profissional como
também pessoal. Há que se afirmar ainda que a ciência
jurídica é um modelo que nos permite compreender
direitos e deveres, mas é com a mediação que que a
sociedade tem a possiblidade real de abrir-se,
autopoieticamente, a outro sistema não jurisdicional, não
impositivo de resolução dos conflitos sociais. A autopoiese
neste texto está sendo considerada como aquela em que
a autonomia e a constância de uma
determinada organização das relações e os
elementos constitutivos desse mesmo
sistema, é auto-referencial no sentido de
que a sua ordem interna é gerada a partir
da interação dos seus próprios elementos e
auto-reprodutivo no sentido de que tais
elementos são produzidos a partir dessa

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Coleção Dinâmica Jurídica

mesma rede de interação circular e


recursiva. (TRINDADE, 2008, p.71-72).

Essa compreensão sobre a autopoiese nos faz


inferir que a sociedade é comunicação cuja linguagem
contribui para o desenvolvimento ampliando as trocas
comunicativas e aumentando os processos auto
referenciais de construção de realidades dependendo de
quem observa e é observado no sistema, podendo ou não
gerar conflitos sociais.
Segundo Rocha (2009) “a sociedade criou,
autoproduziu, comunicações; poder-se-ia dizer, em outra
perspectiva, linguagens e modelos, mas prefere-se dizer
que surgiram sistemas.”. Estes sistemas ordenam essa
complexidade a partir de certo tipo de perspectiva que é
singular na qual os indivíduos enfrentam o relativismo do
mundo, no qual o ser humano observa a realidade a partir
das suas próprias perspectivas, construindo seus limites
que vão definir o que é felicidade, bem-estar e a sua
própria auto referencialidade. Neste sentido, Rocha (2009)
afirma:
Se os sistemas sociais são sistemas de
significado, as pessoas “existem” dentro
dos sistemas somente de acordo com o
significado que cada um lhe confere [...].
Como sistemas psíquicos, suas
comunicações internas (sejam elas
conscientes ou inconscientes) constroem
significados tanto a partir de seu meio
ambiente como a partir de seu ambiente
fisiológico interno. Esses sistemas
psíquicos, deve-se enfatizar, são separados
e distintos de outros sistemas. Quando o
indivíduo expressa seus pensamentos a

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Coleção Dinâmica Jurídica

outro, as comunicações entram no


domínio social.

A expressão do pensamento a outro, por meio das


comunicações verbais e não verbais, viabilizadas por meio
das técnicas de mediação permitem que dois sistemas ou
mais reconstruam significados psíquicos trazendo à tona a
possibilidade de retomar a paz social dentro dos sistemas
de interações sociais.
Segundo Morin (1973) sistema é “unidade global
organizada de inter-relações entre elementos, ações e
indivíduos.”, sendo este um sistema entrópico e
antientrópico que produz formas de compreender o
mundo, em que as relações constroem-se organizando-se e
desorganizando-se para se chegar aos resultados esperados
de consenso entre as partes. Neste sentido, as inclinações
pessoais reformulam-se possibilitando aos indivíduos a
reconstrução psíquica das diferentes relações estabelecidas
nos diferentes sistemas sociais.
Neste aspecto concordamos com Rocha (2009)
quando afirma que “cada indivíduo é [...] um sistema
psíquico, que reconstrói como comunicações psíquicas (e
não sociais), através de seu pensamento ou das
representações internas dentro de seu próprio hiperciclo
psíquico autopoiético de sentido, aqueles sistemas sociais
com que se confronta no mundo.”. Assim, com a
capacidade de se auto organizar e reconstruir-se diante dos
conflitos podemos considerar que a mediação traz à
sociedade um novo paradigma, considerando a abordagem
sistêmica, interdisciplinar sobre a realidade que envolve as
partes.
Considerando que as comunicações entre os
sistemas e seus elementos é relevante para os indivíduos,
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Coleção Dinâmica Jurídica

são essas mesmas comunicações que os sujeitos


aprimoram suas expectativas no meio social. Com isso, a
mediação tem o papel de contribuir para que sejam feitos
acordos, mas sobretudo, articulando as contradições,
chegando-se ao consenso entre as partes, ou seja, além das
questões materiais eventualmente reivindicadas,
resolvendo-se também os conflitos que geraram o
desequilíbrio das relações.
As relações complexas provocam fenômenos
sociais complexos. Isso parece óbvio, mas a considerar que
a simplicidade das relações micros está dentro da
complexidade das relações macro sociais é que
percebemos a interdisciplinaridade que envolve as
abordagens sociais como algo não linear envolvendo as
partes, passando a ser emancipatória da condição dos
sujeitos envolvidos no conflito, assim como também
transformadora das relações intersubjetivas.
Segundo Habermas (1987) a intersubjetividade
não é algo construído apenas com a reflexão, mas por
meio das interações dialógicas entre os sujeitos,
integrando-os visando a compreensão do homem no meio
social e seus conflitos, sendo que estes conflitos são
ocasionados em decorrência das disformidade entre o
pensar, agir e sentir dos indivíduos a partir de sua própria
racionalidade.
A racionalidade que permite o diálogo coloca o
homem como sujeito de sua própria história e a sua
comunicação interage com a comunicação do outro, por
meio da linguagem que permite a organização social e o
consenso, prestigiando a liberdade ao expressar-se para o
outro ou para os outros. Neste aspecto, a subjetividade que
permeia todas as relações humanas está envolta às

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Coleção Dinâmica Jurídica

questões psicológicas por meio das quais o ser humano,


imerso nas suas crenças, família e demais contextos sociais,
constrói-se e relaciona-se podendo ser de forma
harmônica ou de forma conflituosa considerando as
estruturas objetiva e a intersubjetivas que permeiam estas
relações.
As intersubjetividades permitiram que a sociedade
criasse a mediação como um instrumento legítimo de
busca pela paz social, constituindo-se o que os autores
chamam de terceira onda do acesso à justiça, ou seja, as
alternativas ao sistema judiciário representam
possibilidades complementares colocadas à sociedade
como mecanismo real e possível de resolução de conflitos
e pacificação social.
Contudo, para que se possa entender a mediação
como uma ferramenta interdisciplinar contributiva para a
pacificação social e minimize o impacto da realidade social
litigiosa impõe-se ao sistema jurídico no Brasil a
articulação de conhecimentos acadêmicos que permitam
estabelecer o diálogo entre as partes de forma assertiva,
reconhecendo a relevância da interdisciplinaridade para
compreender as entrelinhas do conflito existente.
Para este estudo, entendemos interdisciplinadade a
partir do conceito de Jupiassu (1976, p. 75), que a define
“como axiomática comum a um grupo de disciplinas
conexas definidas no nível hierárquico imediatamente
superior, introduzindo-se a noção de finalidade.”. Assim, a
interdisciplinaridade preenche vazios deixados pela ciência
específica de quem tem sua expertise.
A mediação interdisciplinar, segundo Groeninga
(2011, p.2) é uma “uma forma de abordar a complexidade,
demandando um profissional generalista.”. Dentro desta
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Coleção Dinâmica Jurídica

perspectiva, afastando-se a verticalização das relações,


prestigiando a horizontalidade dos sujeitos envolvidos no
processo, com a devida imparcialidade do mediador que na
sua relação com o jurisdicionado deve estar qualificado
para a escuta ativa e, munido de conhecimentos
interdisciplinares, possa compreender a complexidade que
envolve as relações em conflito.
Deste modo é com a interdisciplinaridade, no
procedimento de mediação, que são preenchidos os vazios
deixados pela ciência, propondo-se uma reorganização no
entorno daqueles que sofrem com seus conflitos, o que
depende da atitude corajosa de quem vai despojar-se dos
seus preconceitos e pré-conceitos, permitindo agregar
conhecimentos e adotar posturas que nem sempre
resolvem os conflitos de imediato, mas oportunizar a
resolução dos conflitos. Para isso o mediador precisa estar
preparado para lidar com situações em que a comunicação
foi rompida e precisa ser restabelecida.
O processo de formação do mediador requer a
expertise de analisar em vários níveis de conhecimento a
linguagem, a comunicação estabelecida entre os indivíduos
para que compreenda para além do modo binário que
alimenta os conflitos sociais entre bons/ruins,
culpados/inocentes, dentre outras dicotomias sociais e
pessoais nas suas interações sociais. Segundo Groeninga
(2007, p. 163) o mediador precisa conhecer a si próprio
sendo fundamental:
na forma do mediador a ampliação do
conhecimento de si próprio do
conhecimento da existência dos
fenômenos inconscientes, dos fenômenos
da transferência e cotransferência, de
modo a que possa manter uma postura o

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Coleção Dinâmica Jurídica

mais equidistante possível em relação ao


conflito que se apresenta.

Neste sentido, conhecer-se é um elemento


importante para quem almeja exercer a função de
mediador que precisa ser imparcial, equidistante,
instrumentalizado com técnicas necessárias à mediação, as
quais operacionalizadas de forma interdisciplinar, traz para
si, potencialmente, o olhar confiante das partes envolvidas
no processo de mediação, propiciando um ambiente de
confiança e respeito mútuos, com o fito de propiciar às
partes a reflexão para que voltem à consciência sobre si
mesmo, sobre o passado e o futuro das partes envolvidas
no conflito.
Portanto, a mediação, dentro desta perspectiva
interdisciplinar, que exige do mediador a expertise para lidar
com as complexidade das relações, pode contribuir para
que, de forma reflexiva, proporcione aos indivíduos em
conflito a possibilidade de pacificar suas demandas sem a
necessidade do Poder Judiciário e consequentemente
minimizar os efeitos da morosidade processual por excesso
de lides perfeitamente passíveis de serem mediadas.

CONCLUSÃO

Diante dos estudos realizados e da questão


norteadora deste texto, concluímos que a mediação, como
meio adequado para resolução de conflitos, contribui para
a pacificação social, especialmente considerando o seu
caráter interdisciplinar, o que requer do mediador a expertise
de estar preparado para mediar todo e qualquer tipo de
conflito, sabendo que precisa também se auto conhecer.
Concluímos que o caráter interdisciplinar da mediação tem
grande potencial de minimizar os conflitos desde que o
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Coleção Dinâmica Jurídica

mediador seja formado para compreender as dimensões


que envolvem o litígio.

REFERÊNCIAS

GROENINGA. Giselle Câmara. Mediação Interdisciplinar -


Um novo Paradigma. Revista Brasileira de Direito de Família
(Sintese), v.8, n 152-170, fev/mar 2007.
HABERMAS, Jurgen. Teoria da Ação Comunicativa I –
Racionalidade da ação e racionalização. Madrid: Taurus, 1987
JUPIASSU. Hilton. Interdisciplinaridade e a Patologia do saber.
Rio de Janeiro. Imago Editora, 1976.
MORIN, Edgar. O paradigma perdido: a natureza humana.
Lisboa: Europa-América, 1973.
ROCHA, Leonel Sevelam, SCHWARTZ Germano, CHAM,
Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005
TRINDADE, André. Para entender Luhmann e o Direito
como sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e
práticas restaurativas. São Paulo:Método, 2008.
WARAT, Luis Alberto. Em nome do acordo. A mediação no
Direito. Buenos Aires: Angra Impresiones, 1998.

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Coleção Dinâmica Jurídica

A MEDIAÇÃO E SEU OLHAR


DIFERENCIADO SOBRE OS CONFLITOS

ALESSANDER MENDES3

O instrumento de investigação do mediador é o


conflito, e quando este não sofre uma intervenção
imediata, pode provocar sentimentos e produzir questões
cada vez mais difíceis de solucionar ou permitir que as
pessoas o façam através de um acordo.
Em todas as relações sócio-culturais-ambientais
há sempre a possibilidade de haver interesses, posições ou
questões diversas, e, quando essas não se relacionam bem,
o conflito torna-se real. As inquietações nascem,
naturalmente, nos indivíduos, nas suas relações
interpessoais ou na relação dos indivíduos com o Estado.
Diariamente, as pessoas se deparam com várias
formas de conflitos: interpessoais, sociais, profissionais,
relacionais, enfim, tantos, que enumerá-los seria provocar
inquietações infinitas. Contudo, independentemente de
onde venha o conflito, haverá duas ou mais formas de
caminhar, construir olhares diversos e produzir opiniões
que nem sempre serão convergentes.
A partir do exposto, entender o conceito de
conflito tornou-se relevante para este trabalho. Porém,
apesar da escolha conceitual de alguns autores
apresentados, em momento algum acredita-se no
esgotamento da matéria.

3Mestre em mediação de Conflitos, Mediador Judicial pelo Estado do Piauí,


Mediador Extrajudicial do Centro de Mediação da Faculdade Estácio Teresina,
Diretor do Escritório de Mediação.

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Coleção Dinâmica Jurídica

1.1. Do conceito de Conflito

Inicialmente, fez-se a escolha conceitual de


Vasconcelos (2015, p.21), o qual definiu conflito como:
Decorrente de expectativas, valores e
interesses contrariados. Embora seja
contingência da condição humana, e,
portanto, algo natural, numa disputa
conflituosa costuma-se tratar a outra parte
como adversária, infiel ou inimiga. Cada
uma das partes da disputa tende a
concentrar todo o raciocínio e elementos
de prova na busca de novos fundamentos
para reforçar a sua posição unilateral, na
tentativa de enfraquecer ou destruir os
argumentos da outra parte. Esse estado
emocional estimula as polaridades e
dificulta a percepção do interesse comum.

Como forma de melhor entendimento, pode-se


dividir a parte conceitual de conflito discorrida por
Vasconcelos em várias ponderações. Em primeiro lugar, é
importante ater-se ao termo expectativas o qual, segundo
o Dicionário Aurélio (ano, p.), liga-se a um estado ou
qualidade de esperar algo ou alguma coisa que seja viável
ou provável que aconteça, um grande desejo ou ânsia por
receber uma notícia ou presenciar um acontecimento.
Nesta esteira, expectativa nada mais é do que a construção
de um bem querer; em regra, de forma positiva, é esperar
algo que anteriormente havia construído em seu imaginário
e que a realização trará um sentimento de prazer. Quando
essa expectativa não vem de forma satisfatória poderá
produzir variáveis capazes de produzir sentimentos
negativos e instalar o conflito.

20
Coleção Dinâmica Jurídica

Em segundo lugar, é salutar considerar os


interesses contrariados. Significa que o querer imaginado
esbarra em uma oposição, que divergirá ou impedirá que o
querer seja saciado. Esses interesses contrariados podem
delimitar o tamanho do conflito. Afinal, por que o conflito
dos outros, para nós, é menor do que é apresentado?
Muitas vezes aqueles que se encontram no conflito os têm
como algo infindável e de difícil resolução. Mas, aquele
que tem conhecimento do conflito e o vê como
telespectador e não como parte, percebe-o de forma
mitigada, ao tempo em que constrói várias possibilidades
de resolução.
Em terceiro, faz-se útil considerar que as partes
constroem uma posição unilateral e tentam legitimá-las
como se fossem verdade absoluta. Essa verdade nem
sempre tem o olhar de aceitação da outra parte, o que
provocará o distanciamento e os muros entre ambas as
partes. As posições são arguidas não como uma forma de
resolver o conflito, mas de vencer através da força ou
persuasão. É a necessidade do sentimento de vitória.
Quando as posições são levantadas, produzem
uma infinidade de espirais que, muitas vezes, se afastam
totalmente da expectativa inicial. A espiral, se não
interrompida, provocará o distanciamento entre as partes,
o que, geralmente, não impede o consenso, mas dificulta
seus entendimentos.
Morin (2010) discorre que a compreensão humana
nos chega quando percebemos as pessoas como sujeitos,
desenvolvendo uma capacidade de entender e respeitar
opiniões divergentes. Contudo, no conflito, a cada
momento, as partes tentam captar falas, gestos, erros da
outra parte para desconstruir discursos e legitimar o que,
para eles, são as verdades absolutas.

21
Coleção Dinâmica Jurídica

Percebe-se que ocorre uma inversão do querer, pois


este, uma vez saciado, deveria acalentar alegrias a quem
recebeu, mas quando se valoriza as posições, nasce um
condão que afasta a expectativa adquirida e valoriza o gozo
na derrota da outra parte.
As relações humanas inegavelmente produzirão
atração e repulsão entre as pessoas, dependendo do lugar,
das inquietações políticas, culturais, econômicas ou
emocionais, contudo, entende-se que para todo e qualquer
ponto de divergência deve-se buscar sempre, de acordo
com Vasconcelos (2015), o interesse em comum.
Em regra, os conflitos são entre partes e, como
sugere Vasconcelos (2015), é preciso encontrar o interesse
comum para, a partir dele, tentar construir um
procedimento através de uma Mediação capaz de,
respeitando as divergências, colocar as partes do mesmo
lado e não em lados opostos, como se estabelece no
conflito.
Para este mister, a preparação do mediador se faz
necessária, pois requer habilidades múltiplas quanto às
partes cognitiva, social e vivencial, o que distancia o
mediador do achismo, ao tempo em que se valoriza uma
boa formação capaz de motivar as partes a resolutividades
de suas questões por meio do consenso.
O interesse comum, por sua vez, será encontrado
quando as partes perceberem a possibilidade de partilhar o
objeto ou sentimento em questão, de forma que os dois
lados saiam satisfeitos, em virtude do bem em comum ser
maior do que as querelas individuais. Neste caso, não
existe ganha-perde, mas ganha-ganha.
Prospectando outro conceito de conflito,
encontra-se em Rosenstock (2002, p.90) os seguintes
dizeres:

22
Coleção Dinâmica Jurídica

O conflito entre a forma e o senso comum


leva às doenças da linguagem. As doenças
da linguagem transformam homens em
mentirosos. Um mentiroso é um homem a
quem a sociedade dá um nome mau. Ele
não acredita no que se espera que acredite.
Isso pode decorrer de uma falha da
sociedade ou dele mesmo. Mas tais
discrepâncias convidam ao desastre, e
surgiram em tempos imemoriais. Os
verdadeiros milagres da linguagem, como
todos os milagres, são ameaçados por suas
contrafações.

O conceito de conflito, supracitado, relaciona as


suas origens, apresentando-o aqui como a linguagem, visto
que, quando esta se deteriora, a tendência é produzir
homens mentirosos. Para o autor, a mentira não se
relaciona a fatos falsamente apresentados, mas no
desacreditar daquele que propaga, tendo como
consequência a produção de um desastre nas relações o
que, consequentemente, culminará em conflito.
As contrafações apresentadas referem-se à
falsificação, que neste caso, faz referência aos falsos
valores. Quando o conflito transcende suas questões
materiais e atinge seus valores e crenças estar-se-á diante
de um grande conflito. A linguagem produz milagres,
quando se chega a um ponto de consenso, e essa
linguagem provocará o retorno da comunicação, e esta,
desaguará na pacificação entre as partes.
Rosenstock (2002), que definiu o conflito como
uma relação direta da crise da linguagem, legitima que o
milagre acontece quando, dessa situação, se chega a um
ponto em comum, o qual denominou de consenso. Este
existirá quando a comunicação estiver estabelecida de

23
Coleção Dinâmica Jurídica

forma a respeitar o diálogo e a possibilidade de


compreender o outro e seus sentimentos, de construir a
possibilidade de que o objeto em questão possa ser
compartilhado, ou que o sentimento possa ser
convergente.
Existe uma relação entre a linguagem e os
discursos, e estes não são simplesmente de dominação,
mas aquilo por que ou pelo que se luta, o poder do qual se
quer apoderar-se, como discorre Foucault (1971, p.10):

Chegou um dia em que a verdade se


deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo,
de enunciação, para o próprio enunciado:
para seu sentido, sua forma, seu objeto,
sua relação a sua referência. Entre Hesíodo
e Platão uma certa divisão se estabeleceu,
separando o discurso verdadeiro e o
discurso falso; separação nova visto que,
doravante, o discurso verdadeiro não é
mais o discurso precioso e desejável, visto
que não é mais o discurso ligado ao
exercício do poder .

Foucault (1970) afirma que as relações podem


tomar formas múltiplas e divergentes e pontua que os
discursos se adequam aos interesses e necessidades.
Legitima, ainda, que a mediação universal é uma maneira
de elidir a realidade dos discursos e é capaz de propiciar
suas convergências.
A crise na linguagem entre as partes pode ser
maior ou menor, conforme o grau de valoração dos
sentimentos e o alcance de seus valores, sendo o discurso a
forma utilizada para legitimar verdades ou mentiras, e a
mediação o caminho convergente para sua resolutividade.

24
Coleção Dinâmica Jurídica

Rosenstock (2002) e Foucault (1970) aceitam a


mediação como um caminho capaz de produzir entre as
partes o retorno da comunicação e, consequentemente, do
consenso. Estabelecida essa relação, o próximo passo é
perceber por que se briga, ou com quem se briga. Se um
empregado briga com o patrão, o ponto em comum é a
continuidade da prestação do serviço, a qual para ambos é
necessária.
Esse consenso apresentado será possível, quando
o procedimento de mediação em uma situação de abertura,
permite que as partes expliquem suas questões e interesses.
Realizado o resumo pelo terceiro imparcial, todo os demais
atos devem se encaminhar para o ponto de convergência,
sendo capaz de mitigar o conflito e fazer perceberem, que
apesar da situação fática, ambos estão do mesmo lado e
não em lados contrários.
Qualquer que seja o mediador, compreender a
origem do conflito, extraindo as variáveis como forma de
resolutividade, garante o ponto de partida para a feitura de
um acordo e, como consequência, atinge-se um resultado
satisfatório.
Com relação aos objetivos que embalam a
Mediação, estes são vários, ou seja: prevenção dos
conflitos, inclusão social, solução dos conflitos. Não há
dúvidas de que este último se tornou o maior objetivo da
Mediação. Solucionar o conflito significa dirimir as
questões apresentadas ao tempo em que as partes se
sintam à vontade na apresentação de suas questões e
sentimentos. A solução acontece quando ambos se
mostram vitoriosos na conclusão do conflito. Encontrar
mecanismos, técnicas ou procedimentos capazes de
motivar e orientar os interessados e fazê-lo de forma
satisfatória e consensual passou a ser a convergência dessa

25
Coleção Dinâmica Jurídica

inquietação, como forma de resolutividade do conflito e


necessária para a formação de qualquer mediador. Em se
tratando da compreensão humana, tão importante para a
percepção da origem do conflito, entende-se com Morin
(2010, p. 51) que:
A compreensão humana nos chega quando
sentimos e concebemos os humanos como
sujeitos; ela nos torna abertos a seus
sofrimentos e suas alegrias. Permite-nos
reconhecer no outro os mecanismos
egocêntricos de auto justificação, que estão
em nós, bem como as retroações positivas
(no sentido cibernético do termo) que
fazem degenerar em conflitos inexplicáveis
as menores querelas. É a partir da
compreensão que se pode lutar contra o
ódio e a exclusão.

Morin (2010) desconstruiu objetos e coisas e


construiu como ponto principal da humanidade, os
próprios homens e mulheres. Estes como protagonistas e
não coadjuvantes, independentemente de quais sejam as
relações. Para este sociólogo, nenhuma forma de consenso
existirá se não se compreender primeiramente o homem e
sua relação com a humanidade, quer dizer, só se é capaz de
resolver conflitos externos se antes forem resolvidas as
querelas pessoais, internas.
Entender o sofrimento e alegria do próximo é um
exercício em que uma das partes se coloca na situação do
outro a ponto de poder compreender determinadas ações e
atitudes. É permitir a desconstrução de valores pessoais e
tentar entender os sentimentos da outra parte; é perceber
que determinados atos e gestos são realizados a partir de
suas inquietudes, e que qualquer que seja o indivíduo,

26
Coleção Dinâmica Jurídica

produzirá condutas externas partindo da premissa de que


estas já se encontravam internamente em cada ser.
A inversão de papéis pode provocar uma
sensibilidade nas partes e permitir que as mesmas possam
entender o outro a partir de seus interesses e sentimentos.
Essa técnica é aplicada em procedimentos de Mediação, o
que será melhor detalhado adiante.
O consenso é o fim, a transformação, o caminho.
Não existirá o fim se antes não se produzir caminhos
transformativos do conflito como discorre Lederach
(2012, p. 27),
A forma de visualizar e reagir às enchentes
e vazamentos do conflito social como
oportunidades vivificantes de criar
processos de mudanças construtivos que
reduzam a violência e aumentem a justiça
nas interações diretas e nas estruturas
sociais, e que respondam aos problemas da
vida real dos relacionamentos humanos.

Para os adeptos da Escola transformativa4, o


conflito passou a ser analisado de forma positiva, quando
o olhar é voltado não para as questões apresentadas, mas
para as alternativas construídas após as inquietações
provocadas pelo conflito. Lederach (2012) vê o conflito
como forma de enriquecimento e transformação pessoal,
uma vez que saber lidar com a situação conflitante é algo
engrandecedor e enriquecedor.
Para Lederach (2012), a crise, ou o caos (como se
prefere definir), produzirá tristezas, inquietações,

4 A Mediação Transformativa, é um método-processo coevolutivo de afirmação e


transformação, com a colaboração de um mediador e tem como foco a capacitação,
autoafirmação, empoderamento dos mediandos, para que diante do conflito, possam
recuperar sua capacidade restaurativa.

27
Coleção Dinâmica Jurídica

animosidades, conflitos. Retira as partes envolvidas de suas


zonas de conforto obrigando-as a construírem
possibilidades e formas de resolutividade para o mesmo. O
conflito pode ser visto como forma de mudanças positivas
entre as partes e entre aqueles que circulam de forma
periférica a situação.
Cabe a qualquer ciclo de formação de
mediadores, a percepção e valorização desse estudo como
alternativa satisfativa ao conflito apresentado pelas partes.
Ainda nessa esteira, podemos analisar essas mudanças em
quatro categorias: pessoal, relacional, estrutural e cultural.
Neste ponto, as ideias de Rosenstock (2002) e
Lederach (2012) convergirão ao asseverarem que a
transformação representa uma intervenção para mitigar as
comunicações disfuncionais e valorizar a compreensão
mútua. Afinal, nenhuma transformação se fará sem que
antes atinja as categorias mencionadas.
A categoria pessoal permite a formação da
satisfação ou insatisfação das partes. Estar bem é
necessário para que as formas alternativas possam
transformar o conflito de forma satisfatória e chegar-se ao
consenso. A categoria relacional sugere a compreensão
citada por Morin (2010), quando conceituou a
compreensão humana. As demais categorias terão
relevância a partir dos conflitos em espécie. Lederach
(2012, p. 53) explica que:
A transformação nos compele a refletir
sobre vários níveis e tipos de processo de
mudanças, ao invés de nos dedicarmos
unicamente a uma solução operacional. Os
processos de mudanças envolvem tanto o
conteúdo episódico do conflito, quanto
seus padrões subjacentes e contexto, ou
epicentro. É preciso conceber múltiplos

28
Coleção Dinâmica Jurídica

processos de mudança que tratem das


soluções para os problemas imediatos e, ao
mesmo tempo, processos que criem uma
plataforma capaz de promover mudanças
de longo prazo nos padrões relacionais e
estruturais.

Isto nos leva à percepção de que o conflito em si


não pode ser visto como o fim, mas o ponto de reflexão
capaz de construir alternativas e soluções, ao tempo em
que as mudanças provocarão transformações internas e
externas e essas mudanças se conduzirão pelo consenso,
dando-se, assim, o fim do conflito ou sua mitigação.
O imperativo é, pois, transformar a complexidade
em uma aliada, ao invés de uma inimiga, e construir
alternativas resolutivas para se chegar a um ponto
consensual, afastando-se das posições unilaterais, capazes
de influir em discursos com a finalidade de persuasão ou
convencimento, que levam alguém a sair derrotado para
que o outro sinta o gosto da vitória.
A transformação do conflito acontece quando as
mesmas partes, diante da situação fática, conseguem
construir novas formas de olhar e resolver suas questões,
podendo ser ou não orientadas por um terceiro imparcial.
Por isso, definir conflito tornou-se tão importante quanto
resolvê-lo, além de extremamente necessário na formação
de mediadores. Tartuce (2015, p. 03), na esteira desta
discussão, conceituou conflito como:
Sinônimo de embate, posição, pendência,
pleito, no vocabulário jurídico, prevalece o
sentido de entrechoque de ideias ou de
interesses em razão do qual se instala uma
divergência entre fatos, coisas ou pessoas.
(...) é muitas vezes usada como sinônimo
de controvérsia, disputa, lide e litígio.
29
Coleção Dinâmica Jurídica

Esta autora não difere dos abordados


anteriormente, contudo, deixa claro que as partes possuem
lados opostos em uma disputa na qual o objeto desejado
terá um vitorioso. Deixa claro, ainda, que a disputa não
bem administrada provocará variáveis que poderão
impedir a continuidade das relações.
Tartuce (2015) e Vasconcelos (2015) aproximam-se
conceitualmente quando definem o conflito como uma
controvérsia. De acordo com o conceito de ambos, os
lados se fazem opostos, e assim como uma guerra, é
preciso definir aliados, espaço territorial e os instrumentos
que devem ser utilizados como garantia da satisfação
almejada. O planejamento da guerra produz posições em
vez de questões, dificultando um olhar coletivo para o
objeto a ser discutido. Contudo, mas adiante, Tartuce
(2015, p. 14) complementa o conceito atribuindo uma
análise interdisciplinar, ao expor que:
Tem-se que o conflito é salutar para o
crescimento e o desenvolvimento da
personalidade por gerar vivências e
experiências valiosas para o indivíduo em
seu ciclo de vida. Revela-se importante a
noção de transformação do conflito: sendo
o conflito constituído pela percepção da
relação vivida, alterar o modo de visualizar
os fatos reputados controvertidos pode
gerar uma mudança de comportamento, e
com isso, repercutir no andamento da
controvérsia, transformando-a em uma
nova experiência.

Encontra-se um ponto convergente também


entre Tartuce (2015) e Lederach (2012), quanto à
positividade do conflito como forma de propiciar
30
Coleção Dinâmica Jurídica

transformações vantajosas às partes envolvidas, permitindo


que estas olhem para outras janelas além das que estão
vivenciando no ciclo das questões. O conflito pode ser um
momento impulsionador para modificações e situações
antes não desejadas, ao tempo em que possibilita soluções
e alternativas.
O conflito, além de construir as reflexões
interpessoais sobre o agir certo ou errado, faz-se
importante em muitas variáveis. Imaginar-se um ser
humano chegar aos quarenta anos sem nunca se deparar
com pontos divergentes ao seu, seria humanamente
impossível. Entender o conflito e suas questões,
interesses e sentimentos faz-se necessário para uma boa
convivência em sociedade de forma a propiciar, nas
pessoas, tranquilidade, segurança e resiliência em suas
ações.

1.2 Espécies de conflito

Conforme pode-se ver, compreender o conflito


em seus aspectos conceituais é extremamente importante,
todavia, também bastante significativo é entender a sua
divisão. De acordo com Vasconcelos (2015), o conflito
pode ser dividido em quatro espécies que, "de regra,
incidem cumulativamente, a saber: conflito de valores,
informação, estruturais, interesses” (VASCONCELOS,
2015, p. 25).
O conflito de valores está ligado aos pontos
divergentes da moral, ideologia e religião. Contudo, faz-se
importante alguns conceitos para melhor compreender a
discussão apresentada. Etimologicamente, moral vem do
latim Morales, que se liga a costumes. Moral é o conjunto
de regras adquiridas através da cultura, educação, tradição,

31
Coleção Dinâmica Jurídica

cotidiano e norteia o comportamento do homem e sua


relação com a sociedade.
A moral é construída da sociedade para o
indivíduo, através de valores socioculturais que envolvem
tradição e história sustentada em princípios lato sensu, como
honestidade, bondade, respeito, virtude. Moral trata-se de
um conjunto de valores sobre o certo ou errado, proibido
e permitido.
Partindo desse princípio, o conflito de valores
relaciona-se, em algumas situações, a religião, pois,
conforme Silva (2004, p. 14) assegura em seu artigo sobre
religião, diversidade e valores culturais:
Religião originou-se do latim religio, cujo
sentido primeiro indicava um conjunto de
regras, observâncias, advertências e
interdições, sem fazer diferenças a
divindades, rituais, mitos ou quaisquer
outros tipos de manifestação que,
contemporaneamente, entendemos como
religiosos. (...) religião é um sistema
comum de crenças e práticas relativas a
seres sobre-humanos dentro de universos
históricos e culturais específicos.

Nessa vertente, fica complexo por demais separar


a conceituação de religião e moral, uma vez que aquela
liga-se ao conjunto de crenças ou dogmas relacionados a
divindades, com normas morais apresentadas a uma
sociedade com forte influência histórica.
Uma outra espécie de conflito liga-se às
informações, conforme já discutido anteriormente, pois
relaciona-se à linguagem e suas formas deturpadas de
entendimento. Uma informação distorcida ou aplicada de
forma negativa pode ser suficientemente capaz de inverter

32
Coleção Dinâmica Jurídica

o entendimento e provocar a construção de um conflito de


proporções inimagináveis. A informação vincula-se à
comunicação que, por sua vez, desaguará na linguagem.
Como definiu Rosenstock (2002, p. 54):
Uma guerra termina quando as pessoas
voltam a falar umas com as outras, quando
tal não se dá, é que a guerra ainda está
latente, e termina afirmando que a vida
prefere o sofrimento à indiferença. A
guerra, para o autor, acontece quando as
partes já não são capazes de resolver suas
questões pelo diálogo, ou este fica
inatendível para as partes
(ROSENSTOCK, 2002, p. 54).

Em muitas situações, o falar pode provocar o


conflito, porém o não falar pode permitir que a outra parte
entenda da melhor forma possível ou simplesmente não
entenda nada, possibilitando a criação de intermináveis
interpretações divergentes. O falar e o não falar de forma
coerente são importantes para que as questões sejam
tratadas de forma clara e objetiva. A isso chamamos de
linguagem, comunicação efetiva.
Vale lembrar, quantas não foram as situações em
que frases e colocações mal interpretadas tornaram-se
ponto de ruptura e insatisfação entre as partes,
provocando a ruína de empresas, guerras entre nações,
casamentos desfeitos, amizades dissolvidas.
Na mediação familiar, utilizada em muitos
procedimentos de Mediação, percebeu-se como a
comunicação era intrincada entre as partes ou
simplesmente não existia. Os interessados não tinham a
menor paciência em ouvir o que o outro tinha a dizer ou,
quando uma parte dizia, não era ouvida.

33
Coleção Dinâmica Jurídica

Assim, depreende-se que a força das palavras


pode construir ou destruir as relações e Deutsch (2004,
p.21) descreve sobre o meio de resolver o conflito por
meio da interação social, explicando que:
O modo de lidar com o conflito, o meio de
resolver o conflito, pode ser construtivo
ou destrutivo. Os processos destrutivos
caracterizam-se pelo enfraquecimento ou
rompimento da relação social preexistente
à disputa, em virtude da feição competitiva
de como é conduzida. Nesses processos
destrutivos, o conflito tende a expandir-se
em espiral, frequentemente tornando-se
independente de suas causas inicias. Já os
processos construtivos, são aqueles em que
as partes vão fortalecendo a relação social
preexistente à disputa, consoante valor,
técnicas e habilidades.

A construção e destruição das relações, então,


podem ser afetadas pela comunicação não construtiva, a
qual valoriza as pessoas e seus posicionamentos, os quais,
necessariamente, não precisam ser seguidos, mas
respeitados em um grau de civilidade por quem vive em
sociedade.
Os conflitos estruturais atingem não só as partes,
mas um raio periférico maior. São conflitos macros com
consequência na política, economia, comunidade. Esse
conflito, ainda que não tenha sido produzido por uma ou
outra pessoa, reflete em toda a comunidade, porque suas
consequências são coletivas, a exemplo da guerra, em
quando, apesar de alguns discordarem, a decisão política
imputa aos demais a responsabilidade de aceitá-la; ou ainda
decisões econômicas que geram conflito, atingindo uma
grande parcela da sociedade.
34
Coleção Dinâmica Jurídica

Por fim, existe o Conflito de Interesses. Em uma


análise primeira, pode-se identificar os interesses como
algo relevante, vantajoso, útil. O interesse move pessoas e
constrói projetos com a finalidade de serem saciados. Vale
ressaltar, os interesses nem sempre se encontram explícitos
em uma mediação, cabendo ao mediador o uso de toda
técnica com a finalidade de extraí-los como melhor forma
de alcançar a resolutividade do conflito.
Utilizando-se de uma situação-exemplo, Bastos
(2016, p.67) apresenta o conceito entre posições e
interesses de forma simples e acessível, ao narrar que:
Dois irmãos brigam por uma única laranja.
Ambos declaram que querem para si a
laranja (posições). Não chegando a
nenhum entendimento. Assim que
descobrem que um dos irmãos quer beber
o suco da laranja, enquanto o outro deseja
fazer um bolo utilizando a casca da laranja
(interesses), chegaram facilmente a um
acordo sobre o que fazer da fruta.

Para Bastos (2016) é bastante esclarecedora a


aplicação dos conceitos. Perceba-se que o objeto desejado
era a laranja. Enquanto se trabalha as posições, limita-se o
campo da possibilidade de negociação, acordo, isto é,
restringe-se quando se diz é "minha" ou é "sua". Contudo,
quando se afasta das posições e valoriza-se os interesses,
abre-se caminhos para que o objeto em questão possa ser
partilhado ou utilizado em momentos divergentes.
Afinal, como existia somente uma laranja, qualquer
um que a levasse construiria a relação de ganha-perde.
Contudo, a partir do momento em que os interesses foram
levantados, percebeu-se que o mesmo objeto poderia
contemplar os dois. Um ficaria com a casca para fazer o

35
Coleção Dinâmica Jurídica

bolo, o outro ficaria com o gume para fazer o suco. O


interesse apresentado em face do mesmo objeto pode ser
compartilhado, quando ambos afastam suas posições e
valorizam os interesses.
A exemplificação deixou acessível a possibilidade de
se chegar a um ponto de consenso, pois se o foco se
concentrasse nas posições, uma só laranja não seria
possível para dividir entre aqueles que mostraram
interesse. Se fosse buscado o ponto em comum, aqui
apresentado, seria a laranja, e sua destruição não seria
interessante a nenhuma daqueles que litigavam sua posse.
Poderia a laranja ficar com uma das partes, mas o ponto de
consenso é permitir que o objeto em questão possa ser
utilizado por todos que o pleiteiam. Nesta situação
apresentada, percebe-se a possibilidade de desconstruir
lados opostos e colocar ambos em um campo sem
adversidade, entretanto isso só é possível se houver a
comunicação entre os interessados de forma que fiquem
claros os seus interesses.
Cabe ao mediador entender, após o resumo, o
ponto convergente entre as partes e, a partir deste ponto,
valorizá-lo e construir todo o processo de mediação
sempre voltado para a linha de consenso, em vez de
discutir as posições apresentadas. Nessa linha de
pensamento, é importante separar interesses, como afirma
Azevedo (2013, p. 136), uma vez que eles são:
Os aspectos da controvérsia que mais
importam para uma ou para ambas as
partes. Juridicamente, os interesses são
qualificados como a razão que existe entre
o homem e os bens da vida. Muitas vezes,
os interesses não são demonstrados de
forma absolutamente clara, mas são
trazidos à mediação por meio de posições.

36
Coleção Dinâmica Jurídica

Um exemplo de posição seria: “Se ele me


interromper novamente, eu vou embora”.
Os interesses por trás desse
posicionamento poderiam destacar a
vontade de ser respeitado, o de ser
escutado ou o de ter sua história aceita e
reconhecida, por exemplo. Nessa situação,
o mediador poderia dizer: “Pelo que
entendi, esta questão é muito importante
para ambos e provoca uma certa
inquietação. Isso é muito bom, mas eu
pediria que todos ouvíssemos com atenção
o que cada um que está à mesa tem a dizer,
pois estou certo de que todos têm muito a
acrescentar no sentido de resolver as
questões que estão sendo apresentadas, e
prometo que terão a oportunidade de fazê-
lo no momento adequado. Por gentileza,
posso pedir para que você continue? ” Ou
simplesmente: “Parece que concordamos
que é muito importante que todos se
escutem mutuamente sem interrupções,
então, poderíamos continuar dessa forma?
”.

Desconstruir as posições e valorizar os interesses


e sentimentos talvez seja um dos caminhos mais árduos a
ser perseguido pelo mediador. No caso apresentado, as
posições foram trazidas de forma pessoal e frontal,
enquanto os interesses, uma vez identificados, podem vir a
ser reexplicados. Seguindo essa mesma linha de raciocínio,
Azevedo (2013, p. 137) conceitua sentimentos, explicando
que estes, a todo momento são expostos na mediação:

Os sentimentos revelam-se a todo instante


na mediação, seja por meio de algo que foi
dito ou ainda por gestos, posturas,
comportamentos, expressões faciais ou

37
Coleção Dinâmica Jurídica

tom de voz. Como já explicamos


anteriormente, ao identificar e reforçar
positivamente os sentimentos, o mediador
cria um elo com a parte, o que facilita o
estabelecimento de uma relação de
confiança. Um exemplo de algo que a
parte poderia dizer que expressa o que ela
está sentindo é: “Eu não sei o que está
errado. Não consigo entender isso. Talvez
eu deva parar de tentar”. Desse trecho
podemos extrair alguns sentimentos como
frustração, hesitação, perplexidade,
confusão ou insegurança. Uma intervenção
produtiva seria: “Parece-me que você está
se sentindo frustrado com esta questão
específica – porque você tem se esforçado
para se entender bem com o Tiago. Talvez
possamos entendê-la melhor se
começarmos analisando um aspecto da
controvérsia por vez, pois tenho certeza de
que não há ninguém melhor do que você
para nos ajudar a entender e a solucionar
esta questão. Poderíamos conversar sobre
a questão do carro? [...]

Percebeu-se a clareza na conceituação, quando


cita o entendimento acerca dos sentimentos que vão além
das palavras ditas ou escritas, e até mesmo de gestos ou
expressões faciais. Não adianta tentar fazer com que as
partes resolvam suas questões se os interesses e
sentimentos estão latentes e doloridos, é preciso não ter
medo de fazer a interferência, ao tempo em que se perceba
a necessidade de desconstruí-los ou ao menos transformá-
los. Cabe ao mediador, logo nos primeiros momentos da
mediação, a intervenção do procedimento de consenso
através daquilo que liga as partes.

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Coleção Dinâmica Jurídica

1.3. Visão positiva do conflito e a construção do


consenso

Talvez pareça redundante afirmar que a Mediação


deve sempre buscar o ponto de consenso entre as partes,
contudo, o procedimento de consenso através do ponto
que une os interessados pode encurtar e facilitar a feitura
de um acordo. Se observadas algumas teorias que
norteiam as formas de resolutividade dos conflitos, talvez
se tenha que enveredar por vários mares e oceanos
carregados de tempestades e incertezas. Em momento
algum, percebe-se o conflito como um fim em si mesmo,
mas como a capacidade de conviver com sua existência a
ponto de transformá-lo. É o que diz a escola americana de
Mediação Transformativa, por quem este trabalho foi
influenciado.

1.3.1 Teoria da Transformação do Conflito

Em situações anteriores, essa teoria já foi


abordada, quando mostrou-se as ideias de John Paul
Lederach. Sua teoria baseia-se na possibilidade da
transformação do conflito. Tendo a complexidade como
algo natural inerente ao conflito e sua forma adequada de
interpretá-la poderá ser vista como algo positivo,
produzindo mudanças que nas suas situações temporais
podem ser refletidas e vistas de forma diferente.
Para Lederach (2012), a transformação do
conflito não se resume às técnicas de mediação, contudo
deve-se apresentar uma proposta diversa dos fatos a partir
de vários olhares. Não se busca uma solução rápida na
feitura dos acordos, mas a Lente deverá ser usada para
encontrar o ponto convergente.

39
Coleção Dinâmica Jurídica

Faz-se importante entender o conflito estrutural


para encontrar a complexidade do mesmo e criar formas
alternativas para solucioná-lo. Lederach (2012, p. 50):
Episódio é a parte mais superficial, visível
do problema, enquanto o epicentro se
constitui na parte que não se vê de
imediato, embora seja nela que resida a
complexidade do conflito. (...) o episódio
resolve o conflito, enquanto o epicentro
transforma. Nessa perspectiva, o episódio
é aplicado para a resolução de conflitos –
resolve a parte visível, mais imediata e
urgente – o epicentro se volta para a
transformação do conflito - análise de
complexidade dos conflitos, com o
propósito de se avaliar o que está
submerso à parte visível. Por essa
premissa, o verbo “resolver” não seria
suficiente, e sim o verbo “Transformar”.

Embora este autor discorra sobre algo já


apresentado neste trabalho, é importante reafirmar que é
preciso separar as questões, sentimentos e interesses. Em
regra, as partes apresentam as questões de forma mais
acessível, prática e direta, cabendo ao mediador utilizar-se
de técnicas que sejam suficientemente capazes para extrair
os sentimentos e interesses. A análise entre episódio e
epicentro nortearia as questões, tais como: separação,
guarda, pensão, visitação como episódio, enquanto os
sentimentos e interesses seriam o epicentro.
Corroborando com esse entendimento, o
epicentro guarda a gênese do conflito, a motivação que
desencadeou a lide, podendo reverberar em situações
espirais grandiosas. Não adianta realizar a feitura de um
divórcio com filhos, se antes não se mitigar os sentimentos

40
Coleção Dinâmica Jurídica

de ódio, desprezo, abandono, decepção, pois estes


sentimentos levam à disputa por longos anos. Em caso
contrário, os mesmos impedirão a feitura do acordo e a
resolutividade das questões, e ainda que ocorram
constantemente, ela será viola pelos interessados. Lederach
(2012, p. 27) assevera que transformação de conflito:

É visualizar e reagir às enchentes e


vazantes do conflito social como
oportunidades vivificantes de criar
processos de mudanças construtivos, que
reduzam a violência e aumentem a justiça
nas interações diretas e nas estruturas
sociais, e que respondam aos problemas da
vida real dos relacionamentos humanos.

Lederach aduz a possibilidade de se ver o conflito


como algo positivo e abre caminhos para que as partes
possam criar mudanças internas e externas em suas vidas,
utilizando a capacidade de visualizar o conflito
positivamente, como um fenômeno natural que cria um
potencial para o crescimento de forma positiva. E conclui,
na perspectiva da transformação, que “ao invés de olhar
apenas para um único pico ou vale, deve-se ver toda a
cordilheira” (LEDERACH, 2012, p.53 ).
O grande cerne da transformação de conflitos é
encontrar uma maneira de fazer com que a complexidade
seja aliada ao invés de adversária. É preciso, no entanto,
diminuir o nível de reatividade e culpa e aumentar a
capacidade de demonstrar um sentido de individualidade e
respeitabilidade aos próprios espaços. Afinal, nenhuma
transformação nascerá se não se conseguir produzir
soluções para o conflito. Essas soluções se dão em
decorrência da satisfação das partes por terem saído do
problema, e encontrarem-se realizadas com os resultados.
41
Coleção Dinâmica Jurídica

Imagine-se uma casa de dois pavimentos ardendo


em chamas, e o fogo alastrando-se até à porta de saída.
Estar-se-ia diante de um conflito com complexidades
variadas, pois, além do risco da vida, perde-se o
patrimônio, a história, a memória da residência.
Entretanto, apesar de a porta estar isolada pelo fogo, é
preciso criar alternativas para a sobrevivência dos
envolvidos nos fatos, e a consequente reconstrução de
tudo o que foi perdido. Por isso, deve-se olhar para as
várias outras portas ou janelas dentro da casa e perceber
qual, dentre elas, pode levar ao caminho da sobrevivência.
Da mesma forma que uma casa em chamas, assim
ocorre com o conflito. Quando incendeia, parece destruir
tudo e todas as possibilidades de continuidade nas
relações. Se a porta estiver fechada, impedindo a passagem,
é preciso ver as janelas, uma vez que elas sempre serão
possibilidades para solucionar os conflitos.

1.3.2 Teoria da crise da Linguagem como causador dos


conflitos

Rosenstock, em sua obra A origem da linguagem,


influenciado por várias ciências, tais como: filosofia,
história, sociologia, hermenêutica, teologia e educação, é
um dos primeiros pensadores sociais da pós-modernidade
a discutir realidade e linguagem. Sua base teórica sobre a
temática foi escrita durante a Segunda Guerra Mundial.
Este teórico aborda a linguagem como uma
forma “de mostrar a alguém em que direção fica, na
estrada, a próxima fazenda. É o poder de unir pessoas para
cantar em coro, encenar uma tragédia, permitir a
comunicação de forma inteligível entre as partes”

42
Coleção Dinâmica Jurídica

(ROSENSTOCK, 2002, p. 38). E vai além, ao conceituar


conflito como algo que:

dá-se entre a linguagem superarticulada,


mas morta e uma vida nova inarticulada. A
guerra é o conflito entre o aqui e o lá, entre
a linguagem dos amigos e a dos inimigos; a
revolução é o conflito entre o velho e o
novo, entre a linguagem de ontem e a de
amanhã, com os grupos da linguagem do
amanhã no ataque (ROSENSTOCK, 2002,
p. 56).

O que nos leva à compreensão de que, para ele, a


guerra também pode ser sinônimo de paz, ruptura de
estruturas que já não eram suportadas pelas partes e em
que a linguagem ou a comunicação se perdeu ao longo do
processo, permitindo o uso da violência física. Afinal, ao
finalizar a guerra, sempre existirá o recomeço.
Em muitos conflitos entre as partes a expressão
guerra é usada corriqueiramente, ilustrando o sentido de
fim, extermínio, aniquilamento. A linguagem seria o
caminho construtor das duas situações, manutenção das
relações e entendimento ou a produção da guerra como
necessidade da paz que, em regra, terá um lado vitorioso.
A linguagem seria um ponto convergente para as
partes se comunicarem e compreenderem a complexidade
que envolve os vários interesses e sentimentos. Afinal, a
guerra termina com o tratado de paz, uma revolução acaba
numa nova ordem da sociedade. O conflito só deixará de
existir quando as questões, interesses e sentimentos
estiverem devidamente alinhados como resultado da
linguagem, da comunicação adequada.

43
Coleção Dinâmica Jurídica

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Coleção Dinâmica Jurídica

BREVE ESCORÇO HISTÓRICO DA MEDIAÇÃO


NA LEGISLAÇÃO PÁTRIA E NO
DIREITO COMPARADO

MACELA NUNES LEAL5

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar o instituto da


mediação, método não adversarial de resolução de
conflitos, abordando a evolução histórica do instituto no
Brasil e na legislação comparada. Para tanto, foi realizado
levantamento bibliográfico do tema com vistas a definir o
margo legal do instituto no Brasil, bem como sua
implementação pela Resolução nº 125 do Conselho
Nacional de Justiça e suas disposições a partir do Novo
Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº 13.105/2015) e
da Lei da Mediação (Lei 13.140 /2015), além de discorrer
sobre a Mediação no Direito Comparado.

Palavras-chave: Mediação; Evolução histórica; Marco


Legal;

ABSTRACT

The present work aims to analyze the mediation institute, a


non adversarial method of conflict resolution, addressing

5 Macela Nunes Leal, Juíza Leiga do Tribunal de Justiça do Piauí, Advogada


Orientadora da Faculdade Maurício de Nassau Unidade Teresina, Mestranda em
Resolução de Conflitos e Mediação Universidad Europea del Atlántico
(UNEATLANTICO), Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela
Universidade Anhanguera – Uniderp, mnunesleal@hotmail.com,
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8012449E5.

49
Coleção Dinâmica Jurídica

the historical evolution of the institute in Brazil and


comparative legislation. For this, a bibliographic survey of
the subject was carried out with a view to defining the legal
In Brazil, as well as its implementation by Resolution 125
of the National Council of Justice and its provisions, based
on the New Brazilian Civil Procedure Code (Law 13.105 /
2015) and the Mediation Law (Law 13.140 / 2015). Talk
about Mediation in Comparative Law.

Keywords: Mediation; Historic evolution; Legal


Framework;

INTRODUÇÃO
O artigo que ora se apresenta tem por objetivo
fazer uma breve explanação acerca da mediação, enquanto
método não adversarial de resolução de conflitos, fazendo
um breve escorço histórico da mediação no Brasil e no
Direito comparado.
A mediação compõe os denominados ADRs
(Alternative Dispute Resolutions) ou Métodos Alternativos
de Solução de Controvérsias (Mascs). Trata-se de um
procedimento voluntário em que uma terceira pessoa
imparcial, no caso, o mediador, auxilia as partes a
restabelecerem o diálogo, ajudando-as a resolverem seus
próprios conflitos. Na mediação, o mediador apenas
conduz o procedimento, de forma que a solução é dada
pelas partes.
Cuida-se de um procedimento não confrontativo,
alternativo à jurisdição estatal, permitindo que os
envolvidos no conflito sejam os protagonistas de sua
história, de forma que sua principal diferença em relação

50
Coleção Dinâmica Jurídica

aos demais métodos é a preservação do relacionamento


entre as partes.
O processo de mediação parte da premissa de que o
conflito é algo natural, intrínseco às relações entre as
pessoas, adotando-se, dessa maneira, um enfoque
construtivo na resolução do conflito. Nesse particular, é de
extrema importância que os envolvidos compreendam o
processo de mediação, vigorando o princípio da decisão
informada, em outras palavras, as partes devem estar
cientes de cada etapa do procedimento, podendo,
inclusive, serem orientadas por especialistas.
É de salutar importância destacar, ainda, que a
mediação afigura-se como instrumento do acesso à ordem
jurídica justa, na medida em que se apresenta como mais
uma “porta” para o cidadão submeter suas demandas a um
tratamento adequado dos conflitos, de forma eficiente e
em um período razoável.

1.1 A MEDIAÇÃO NO BRASIL

Mister se faz ressaltar que, atualmente, parece-nos


mais apropriado falar-se em método adequado de solução
de controvérsias, na medida em que a referida expressão
reforça a ideia de que a mediação não é um instituto
subalterno à jurisdição estatal, ao contrário, é mais um
instrumento a serviço da justiça e da paz social.
Trata-se de uma mudança de paradigma em que a
jurisdição, tida como monopólio estatal, dá lugar a uma
variedade de maneiras de solucionar os conflitos, em
especial, a mediação, que tem como características
primordiais o restabelecimento do diálogo e a preservação
da relação das partes.
51
Coleção Dinâmica Jurídica

Nesse diapasão, o Novo Código de Processo Civil


contempla a Política Judiciária Nacional de tratamento
adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder
Judiciário, implementada pela Resolução nº 125/ 2010 do
Conselho Nacional de Justiça.
A institucionalização da mediação no Brasil, leia-se
regulamentação, se deu com a Lei nº 13.140/2015, a qual
dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de
solução de controvérsias e sobre a autocomposição de
conflitos no âmbito da administração pública.
Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Trícia
Navarro Xaviel Cabral, ao tratarem da evolução histórica
da mediação no Brasil indicam o Projeto de Lei nº 4.827/
1998, de autoria da Deputada Zulaiê Cobra, como a
primeira iniciativa legislativa acerca da mediação. Em 2002,
na Câmara dos Deputados, o projeto foi aprovado pela
Comissão de Constituição e Justiça e enviado ao Senado
Federal, ocasião em que recebeu o nº PLC 94, de 2002.
Ainda segundo os autores:
O governo Federal, no entanto, como
parte do Pacote Republicano, que se
seguiu à emenda Constitucional nº 45, de 8
de dezembro de 2004 (conhecida como
“Reforma do Judiciário”), apresentou
diversos Projetos de Lei modificando o
Código de Processo Civil, o que levou a
um novo relatório do PLC nº 94. Foi
aprovado o Substitutivo ( Emenda n] 1-
CCJ), ficando prejudicado o projeto inicial,
tendo sido aquele enviado à Câmara dos
Deputados no dia 11 de julho de 2006. Em
1º de agosto, o projeto foi encaminhado à
CCJC, que recebeu em 7 de agosto. Sem
movimentos ulteriores, foi arquivado,
frustrando, à época, a expectativa de um

52
Coleção Dinâmica Jurídica

marco legal para a mediação em nosso


país.6

Merece destaque, ainda, a Emenda Constitucional


nº 45, a qual foi responsável por significativas mudanças
no Poder Judiciário, entre as quais podemos destacar a
criação do Conselho Nacional do Ministério Público e do
Conselho Nacional de Justiça, aproximando o Judiciário da
população e assegurando, a todos, no âmbito
administrativo e judicial, a razoável duração do processo.
Sob esse enfoque, Humberto Dalla Bernardina de
Pinho e Michele Pedrosa Paumgartten destacam que com a
reforma do Judiciário

Ganhou vulto a evolução de instrumentos


ávidos a atender a lógica da celeridade
processual e as exigências resultantes do
elo anímico formado entre a necessidade
de efetivação da garantia de acesso à
justiça e o direito fundamental a uma
tutela jurisdicional célere, adequada e
efetiva.7

Em 2010 o CNJ publicou a Resolução nº 125, a


qual levou em consideração ser da competência do Poder
Judiciário

Estabelecer política pública de tratamento


adequado dos problemas jurídicos e dos
conflitos de interesses, que ocorrem em
larga e crescente escala na sociedade, de

6 HALE, Durval. PINHO, Humberto Dalla Bernardino de. O marco legal da


mediação no Brasil: comentários à Lei nº 11.340, de 26 de junho de 2015. São Paulo,
Atlas, 2016.
7 ALMEIDA, D. A. R.; PANTOJA, F. M; PELAJO, S (Org.). A mediação no novo

código de processo civil. 1. ed. [S.l.]: FORENSE, 2015. 320 p.

53
Coleção Dinâmica Jurídica

forma a organizar, em âmbito nacional,


não somente os serviços prestados nos
processos judiciais, como também os que
possam sê-lo mediante outros mecanismos
de solução de conflitos, em especial dos
consensuais, como a mediação e a
conciliação.8

A referida Resolução considerou, ainda, “a


necessidade de se consolidar uma política pública
permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos
mecanismos consensuais de solução de litígios”.9 Para
tanto, prevê, em seu art. 7º que os Tribunais deverão criar
os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de
Solução de Conflitos e instalar Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania.
Ana Carolina Suaqdri Santanna pontua, ainda, que
com a criação do CNJ iniciaram-se, entre 2006 e 2008, o
Movimento nacional pela Conciliação e o Projeto Justiça
Virtual. A autora cita, ainda, a edição da Lei nº 9099/1995
que dispõe sobre os Juizados Especiais cíveis e criminais, a
qual teve o propósito de conferir maior celeridade
processual.10
A Lei nº 9099/1995 é um microssistema dentro do
ordenamento jurídico, o qual orienta-se pelos critérios da
oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a
conciliação ou a transação, conforme preceitua o art. 2º da
referida lei.11

8 Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justiça.


9 Ibidem.
10 SANTANNA, A. C. S.. O princípio da inafastabilidade de jurisdição e a resolução

de conflitos. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015. 256p
11 Lei nº 9.099/95.

54
Coleção Dinâmica Jurídica

Nesse diapasão, a Lei nº 9.099/95 valorizou um dos


métodos não adversariais de solução de controvérsias, qual
seja, a conciliação, em que as partes, auxiliadas por um
terceiro, o conciliador, chegam a um resultado satisfativo,
em consenso, compondo o litígio. Na oportunidade, o
conciliador assume uma postura ativa, vez que pode
sugerir ou propor soluções paras as partes.
O fato é que, com a dinâmica das mudanças sociais,
é cada vez mais imperiosa a adoção de meios de solução de
conflitos. Porém, há que se ponderar que a mediação não
se reduz a desafogar o Poder Judiciário, isso porque,
conforme brilhante explanação de Nancy Andrighi, citada
por Fernanda Koeler Galvão e Maurício Vasconcelos
Galvão Filho,

As premissas e a metodologia de uma são


opostas à ortodoxia do outro. O papel
educativo da mediação, além de
conscientizar a parte de sua própria
situação, conduz à compreensão da outra
pessoa, dos seus valores, desejos e
necessidades, na busca de soluções que
envolvam respeito e aceitação mútua,
compatibilizando interesses e gerando
afinidades. Ao contrário do que ocorre no
Judiciário, porque o exercício da atividade
judicial, depois de algum tempo, permite-
nos aprender que: o processo sempre
separa, enquanto a busca da solução
consensual do conflito aproxima, preserva
e até fortalece as relações havidas antes
do conflito, propiciando a sua
continuidade futura. Apresenta-se, ainda,
que a opção pela mediação redundará
sempre em uma solução justa, porquanto

55
Coleção Dinâmica Jurídica

é fruto do respeito pela diversidade no


lugar da adversidade.12

No mesmo sentido Ana Carolina Suaqdri Santanna


ressalta que “o NCPC, ao prever regras de mediação,
pretende institui rum meio integrado de solução de
conflito, e não meramente acessório ou alternativo”. 13
Nessa esteira, é de salutar importância a
promulgação da Lei nº 11.105/2015 (Novo Código de
Processo Civil), a qual contribui para a sistematização dos
métodos adequados de solução de conflitos, notadamente
a mediação. Este Código prevê a mediação no âmbito do
Poder Judiciário, sem prejuízo da aplicação do instituto em
Câmara privadas.
Ana Carolina Suaqdri Santanna pondera que

A institucionalização da mediação não


pode significar o monopólio pelo
Judiciário desse mecanismo de solução de
conflito. Cabe ao Estado igualmente
encorajar a mediação privada, em que a
autonomia da vontade realiza-se
plenamente, em vez de oferecer em
primeira via esse serviço judicial.
Considerando seu papel subsidiário na
solução dos conflitos, no futuro o
Judiciário deveria oferecer a mediação
judicial como cláusula de reserva em
relação aos meios privados, sob pena de
assoberbar os tribunais anexos e

12 ANDRIGHI, Fátima Nancy. Novas perspectivas para mediação no Brasil. Revista


de Arbitragem e Mediação, São Paulo, RT, V.43,P.289 e ss., jul.2012.
13 SANTANNA, A. C. S.. O princípio da inafastabilidade de jurisdição e a resolução

de conflitos. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015. 256p

56
Coleção Dinâmica Jurídica

impossibilitar a oferta de um serviço de


qualidade. 14

Assim sendo, é clara a preocupação dos estudiosos


da franca aproximação do instituto da mediação aos
mecanismos judiciais, o que pode causar o distanciamento
da essência da mediação, sobretudo no que se refere à
autonomia da vontade e à confidencialidade, princípios tão
caros à mediação.
Para uma melhor compreensão da mediação à luz
do Novo Código de Processo Civil transcreveremos alguns
artigos importantes deste diploma:

Art. 165. Os tribunais criarão centros


judiciários de solução consensual de
conflitos, responsáveis pela realização de
sessões e audiências de conciliação e
mediação e pelo desenvolvimento de
programas destinados a auxiliar, orientar e
estimular a autocomposição.
§ 1o A composição e a organização dos
centros serão definidas pelo respectivo
tribunal, observadas as normas do
Conselho Nacional de Justiça.
§ 2o O conciliador, que atuará
preferencialmente nos casos em que não
houver vínculo anterior entre as partes,
poderá sugerir soluções para o litígio,
sendo vedada a utilização de qualquer tipo
de constrangimento ou intimidação para
que as partes conciliem.
§ 3o O mediador, que atuará
preferencialmente nos casos em que
houver vínculo anterior entre as partes,
auxiliará aos interessados a compreender as

14 Ibidem.

57
Coleção Dinâmica Jurídica

questões e os interesses em conflito, de


modo que eles possam, pelo
restabelecimento da comunicação,
identificar, por si próprios, soluções
consensuais que gerem benefícios mútuos.
Art. 166. A conciliação e a mediação são
informadas pelos princípios da
independência, da imparcialidade, da
autonomia da vontade, da
confidencialidade, da oralidade, da
informalidade e da decisão informada.
§ 1o A confidencialidade estende-se a todas
as informações produzidas no curso do
procedimento, cujo teor não poderá ser
utilizado para fim diverso daquele previsto
por expressa deliberação das partes.
§ 2o Em razão do dever de sigilo, inerente
às suas funções, o conciliador e o
mediador, assim como os membros de
suas equipes, não poderão divulgar ou
depor acerca de fatos ou elementos
oriundos da conciliação ou da mediação.
§ 3o Admite-se a aplicação de técnicas
negociais, com o objetivo de proporcionar
ambiente favorável à autocomposição.
§ 4o A mediação e a conciliação serão
regidas conforme a livre autonomia dos
interessados, inclusive no que diz respeito
à definição das regras procedimentais.

Nesse particular, o próprio diploma processual civil


se encarrega de fazer a distinção entre mediação e
conciliação, de sorte que o traço distintivo está na figura
do terceiro, sendo que na conciliação, o conciliador, auxilia
as partes na composição do litígio podendo, inclusive,
propor soluções.
Interessante fazer menção aos esclarecimentos
feitos por Adolfo Braga Neto, citado por Fernanda Koeler
58
Coleção Dinâmica Jurídica

Galvão e Maurício Vasconcelos Galvão Filho, em que


evidencia as diferenças entre os referidos institutos:

A mediação difere da conciliação em


diversos aspectos. Nela o que está em jogo
constitui-se meses, anos ou décadas de
relacionamento. Ela demanda um
conhecimento mais aprofundado do
terceiro no que tange a inter-relação
existente entre as partes. O mediador, para
que possa melhor auxiliá-las nas questões
controversas, deve ter mais tempo para
investigar e conhecer toda a complexidade
daquela inter-relação. Cabe ressaltar, por
isso, que a mediação não visa pura e
simplesmente o acordo; visa, sim, atingir a
satisfação dos interesses e necessidades das
pessoas envolvidas no conflito.15

1.2 MEDIAÇÃO NO DIREITO COMPARADO

No estudo do Direito Comparado não se pode


deixar de fazer menção aos Estados Unidos, o qual foi o
país pioneiro no desenvolvimento da mediação,
inicialmente com o intuito de minimizar os conflitos na
seara trabalhista, com especial destaque para a criação do
Serviço Federal de Mediação e Conciliação (FMCS), em
1947, conforme notícia Letícia García Villaluenga
(GARCÍA VILLALUENGA,2016, p.40). Posteriormente,
a mediação ganhou força adentrando em outras áreas tais

15 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. PANTOJA, Fernanda Medina.


PELAJO, Samantha. A mediação no novo Código de Processo Civil. 2 ed.- Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

59
Coleção Dinâmica Jurídica

como a escolar, comunitária e familiar, sendo esta última a


de maior expansão.
A implantação da mediação nos Estados Unidos se
deu na década de 1970 como forma de buscar alternativas
ao engessamento dos tribunais que não estavam mais
dando conta da crescente demanda de litígios. Nesse
período, ainda segundo a autora, foram criados os Centros
de Justiça Vicinal, conhecidos como “programas de
mediação comunitária”, os quais eram baseados na
vizinhança, sendo que os membros da comunidade eram
treinados para resolver os conflitos.
Insta observar que o instituto da mediação, a
princípio, não foi regulado de forma uniforme nos
Estados, o que causou uma série de entraves. Nesse
diapasão, García Villaluenga pondera que com o decurso
do tempo sentiu-se a necessidade de estabelecer critérios
homogêneos sobre a mediação, fazendo com que
associações como a American Bar Association,
universidades, membros da magistratura, juristas, entre
outros, elaborassem o “Uniform Mediaton Act”, como
uma recomendação para unificar critérios legislativos,
levando-se em consideração a experiência existente nesse
âmbito e o tempo transcorrido desde que esse sistema
começou a desenvolver-se.
No mesmo sentido, Fernanda Koeler Galvão e
Maurício Vasconcelos Galvão Filho prelecionam

Nos Estados Unidos da América do norte


(EUA), destaca-se a Pound Conference
realizada em 1973, por meio da reunião de
advogados, juízes e professores de Direito
para examinar os problemas do sistema
legal norte-americano. Dessa conferência,
quanto à mediação, resultaram duas ideias:
A primeira consistia no estabelecimento de
60
Coleção Dinâmica Jurídica

três Centros de Justiça Comunitária


(Neighborhood Justice Centers)
experimentais, que se expadiram e hoje são
utilizados em diversos países. Em segundo
lugar, concluiu-se pela implementação do
uso dos Masc (ADR) no sistema judicial,
denominado por Frank E. A. Sander de
multidoorcourthouse, ou seja, locais nos
quais as pessoas podem ter outras
alternativas à solução dos conflitos além da
deflagração do processo judicial clássico
(litigations).16

Dessa feita, infere-se que nos Estados Unidos


foram criados vários programas, especialmente o
denominado “Multi-door Dispute Resolution Division”.
Trata-se de um centro onde os conflitos são analisados e é
feito uma espécie de triagem com o intuito de detectar qual
o procedimento mais adequado ao caso, em outros termos,
verifica-se qual alternativa é a mais viável: mediação,
conciliação, arbitragem, negociação.
Depreende-se, portanto, que através desse Tribunal
Mutiportas os cidadãos passaram a participar ativamente
do processo de tomada de decisões, ampliando o acesso à
justiça, na medida em que não estão restritos à jurisdição
estatal, podendo valer-se de outros métodos alternativos,
inclusive, a mediação.
Os referidos autores, citando Kimberlee K Kovach,
destacam que no Direito norte-americano contemporâneo
desponta o denominado Modern Mediation Movement:
Post Pound, em outras linhas, trata-se de uma releitura dos

16 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. PANTOJA, Fernanda Medina.


PELAJO, Samantha. A mediação no novo Código de Processo Civil. 2 ed.- Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

61
Coleção Dinâmica Jurídica

programas e ideias após a realização da Pound Conference,


suscitando questionamentos acerca da eficiência dos Masc.
Ana Carolina Suaqdri Santanna, ao analisar o
desenvolvimento dos Masc nos Estados Unidos, ressalta
que

O Poder Legislativo também contribuiu


para o fortalecimento das ADRs,
encorajando, financiando e, algumas vezes,
obrigando os meios alternativos nos
tribunais e nas agências. Como exemplo, o
Congresso editou não menos do que cinco
leis favoráveis às ADRs entre 1980 e1998.
Isso encorajou governos, governantes
locais e organizações não governamentais a
desenvolver mecanismos de resolução de
conflito efetivos e baratos, além de
fornecer assistência financeira a essa
entidade que desenvolveram ou
estabeleceram as ADRs.17

Nesse particular, García Villaluenga destaca que


foram estabelecidos programas diversos para tornar efetiva
a colaboração entre tribunais e ADR, uns dirigidos pelos
tribunais, outros em parcerias com órgãos públicos, com
ou sem fins lucrativos. A autora arremata concluindo que a
maior razão de ser desses programas é melhorar a
qualidade da justiça, não se reduzindo a desafogar o
Judiciário, ainda que este último seja um fator importante.
Humberto Dalla Bernardina de Pinho e Trícia
Navarro Xaviel Cabral consideram que “ a mediação tem
se desenvolvido com êxito em diversos países, como

17SANTANNA, Ana Carolina Suaqdri . O princípio da inafastabilidade da jurisdição


e a resolução de conflitos[recurso eletrônico]. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo,
2015. 169 p.

62
Coleção Dinâmica Jurídica

Estados Unidos, Itália e Espanha, especialmente após o


advento da Diretiva nº 52/2008 emitida pelo Conselho da
União Europeia, que fez com que seus Estados membros
se empenhassem na implementação do instituto”.18
Ana Carolina Suaqdri Santanna ressalta, ainda, que
A Diretiva nº 52/2008 estabeleceu uma
política pública de valorização da mediação
como forma de garantia do acesso à justiça
mediante a instituição pelos Estados-
membros de institutos processuais
extrajudiciais e alternativos de solução de
litígio, como, também, de uma política de
cooperação judiciária, visando à segurança
do mercado regional, sem prejuízo dos
sistemas nacionais de mediação.

De forma análoga se deu a adoção dos métodos


alternativos de resolução de controvérsias na Espanha.
Vale ressaltar que a escolha de tais métodos não significa a
supressão da via estatal, nem poderia dado disposição
expressa da Constituição Espanhola, em seu art. 24, que
dispõe: “Todas as pessoas têm direito a obter a tutela
efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e
interesses legítimos, sem que, em nenhum caso, possa
produzir-se indefensão”.
GARCÍA VILLALUENGA elucida que

O desenvolvimento da mediação e demais


ADRs responde à necessidade de melhorar
o acesso à justiça como aposta política da
União Europeia. Não obstante, a mediação
se perfila também como um significado

18HALE, D. et al.. O marco legal da mediação no Brasil. São Paulo: comentários à


Lei nº 11.340, de 26 de junho de 2015. São Paulo, Atlas, 2016.

63
Coleção Dinâmica Jurídica

específico, tal como se contempla na


Exposição de Motivos da referida
Proposta de Diretriz de 2004, recolhendo-
se a necessidade de os Estados, além de
impulsionarem esses métodos, garantirem,
em todo caso, um sistema jurídico eficaz e
justo que cumpra os requisitos do
Convênio Europeu de Direitos Humanos.

Na Argentina, a mediação vem se desenvolvendo


nas mais variadas áreas e também surgiu diante de um
contexto de crise do Judiciário. Em 1992, o Decreto nº
1480 institucionalizou a mediação como método
alternativo de resolução de controvérsias, caracterizado
pela informalidade, voluntariedade e confidencialidade.
A Lei nº 24.573 de 1995 instituiu a mediação como
obrigatória antes da via judicial e elencou os princípios que
regem a mediação, tais como os princípios da
confidencialidade e imparcialidade do mediador.
Conforme as lições de Villaluenga, a mediação é bastante
amadurecida na Argentina nos mais variado âmbitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do exposto, depreende-se que o instituto da


Mediação foi regulamentado recentemente no Brasil, com
especial destaque para a Resolução nº 125 do Conselho
Nacional de Justiça, a Lei da Mediação (Lei 13.140 /2015)
e o Novo Código de Processo Civil brasileiro (Lei nº
13.105/2015), isso porque, não se pode dizer que foi
institucionalizada, porquanto não é criação legal.
Inicialmente, a mediação no Brasil, a exemplo de
outros países, entre os quais os Estados Unidos, surgiu
como uma forma de buscar alternativas ao Poder

64
Coleção Dinâmica Jurídica

Judiciário face a crescente demanda de litígios, porém, há


de ressaltar que atualmente a mediação passou a ter um
novo sentido face a política pública de tratamento
adequado de solução de conflitos.
Assim sendo, parece-nos mais apropriado falar-se
em método adequado de solução de controvérsias,
corroborando a ideia de que a mediação não é um instituto
subalterno à jurisdição estatal, ao contrário, afigura-se
como instrumento do acesso à ordem jurídica justa, na
medida em que se apresenta como mais uma “porta” para
o cidadão submeter suas demandas.

65
Coleção Dinâmica Jurídica

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, T. Mediação de conflitos para iniciantes,


praticantes e docentes. 1. ed. [S.l.]: Juspodivm, 2016. 976 p.
ALMEIDA, D. A. R.; PANTOJA, F. M; PELAJO, S (Org.). A
mediação no novo código de processo civil. 1. ed. [S.l.]:
FORENSE, 2015. 320 p.
ANDRIGHI, N; FOLEY, G. F. Sistemas multiportas o
Judiciário e o consenso: Tendências e debates. Folha de São
Paulo, São Paulo, 24 ago. 2008. Opinião, p. 2.
BACELLAR, R. P. Mediação e Arbitragem. São Paulo:
Saraiva, 2012. 168 p. v. 53. (Coleção Saberes do Direito; 53).
CAPPELLETTI, M. GARTH, B. Acesso à Justiça, tradução
de Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris Editor,
Porto Alegre – RS, 1988 p. 58
HALE, D. et al.. O marco legal da mediação no Brasil. São
Paulo: Editora Atlas, 2015. 328 p.
GARCÍA VILLALUENGA, L. Material da Disciplina
Legislação Nacional e Internacional sobre Mediação e
outros procedimentos de Resolução de Conflitos do
Mestrado em Resolução de Conflitos e Mediação.
FUNIBER, 2016.
GORETTI, R. Mediação e Acesso à Justiça. 1. ed. [S.l.]:
Juspodivm, 2017. 333 p.
SANTANNA, A. C. S.. O princípio da inafastabilidade de
jurisdição e a resolução de conflitos. 1. ed. Santa Cruz do
Sul: Essere nel Mondo, 2015. 256p

66
Coleção Dinâmica Jurídica

DO TRADICIONAL AO DESAFIADOR:
ASPECTOS PSICOEMOCIONAIS
DA JURISDIÇÃO E MEDIAÇÃO NA
SOLUÇÃO DE CONFLITOS JURÍDICOS.

MARIA DO SOCORRO CARVALHO DE SALES SOUSA19

Resumo
A jurisdição, como método tradicional, por sua própria
natureza e entraves inerentes ao seu exercício, vem abrindo
espaço gradativamente a mecanismos que solucionem o
conflito em toda a sua profundidade, tais como a
mediação, que se apresenta no Cenário jurídico como uma
práxis transformadora, onde o confronto é substituído pela
harmonia e consenso, construídos a partir dos elementos
psicoemocionais das partes envolvidas, que elaboram o
conflito de forma a atender não somente seus direitos, mas
suas reais necessidades.
Palavras-chave: Jurisdição. Mediação. Conflito.
Sentimentos.
Abstract
The jurisdiction, as a traditional method, by its very nature
and inherent obstacles to its exercise, has gradually opened
space for mechanisms that resolve the conflict in all its
depth, such as mediation, which is presented in the legal
scenario as a transformative praxis, where the

19 Advogada, psicóloga, professora universitária, mediadora judicial e extrajudicial,


especialista em Saúde Mental e com pós graduação em andamento em Direito
Previenciário, e-mail: socorrosales1@hotmail.com. Currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/9616258123574092.

67
Coleção Dinâmica Jurídica

confrontation is replaced by harmony and consensus, built


on the psycho-emotional elements of the parties involved,
who elaborate the conflict in order to meet not only their
rights but their real needs.
Keywords: Jurisdiction. Mediation. Conflict. Feelings.

1 INTRODUÇÃO:
O Monopólio de jurisdição, com a solução estatal
unilateral, consolidada desde o Estado Liberal, passou a ser
repensado a partir do Século XIX com a passagem para o
Estado Social. Essa forma tradicional de enfrentamento
de conflitos, passa a ser colocada em cheque pela
Constituição Federal de 1988, em que o consagrado
princípio do acesso à justiça trouxe novos
questionamentos e inquietações.
O princípio insculpido na Magna Carta, ao
contrário da interpretação engessada ao longo dos anos,
traz em si uma dimensão muito mais complexa, de que o
conflito jurídico, é antes de tudo um conflito de relações
sociais, que possui além de matizes objetivas, liames
subjetivos que merecem ser profundamente desvendados
para que o equilíbrio social violado pela disputa volte a ser
reestabelecido.
Nesse cenário de complexidade de conflitos, tão
presente na polifacética sociedade atual, a mediação se
apresenta como meio alternativo de solução das questões,
com uma proposta desafiadora: servir como instrumento
de concretização da paz social, a partir do sentimento de
justiça experimentado pelas partes individual e
coletivamente.

68
Coleção Dinâmica Jurídica

O objetivo desse trabalho é demonstrar como a


mediação pode auxiliar o cidadão na solução pacífica de
disputas jurídicas, a partir do aprofundamento do conflito
não somente em seu aspecto jurídico, da forma como é
visto pelo método da jurisdição, mas a partir do aspecto
psicológico, buscando as verdadeiras causas da insatisfação
que está no âmago da contenda. Além disso, busca-se
demonstrar que os sentimentos e emoções das partes são
trabalhados no processo mediacional, sendo esses
elementos contemplados no desenho do acordo.
Nesse sentido, a mediação não se apresenta como o
“pretenso remédio para todos os males”, mas como o
substitutivo de uma justiça adversarial e impositiva, que
pouco tem de justa no esquema de percepção da maioria
dos jurisdicionados.
Esse sentimento de verdadeira justiça, essência da
resolutividade genuína dos conflitos, somente pode ser
alcançado através de métodos que se aprofundem na
dinâmica psicológica das relações e de cada um em
particular, posto que o ser humano, logradouro de onde
nasce a “conflituosidade”, é um ser psicossocial.

2 ANÁLISE COMPARATIVA DOS ASPECTOS


PSICOLÓGICOS E JURÍDICOS DA JURISDIÇÃO
E MEDIAÇÃO:

O surgimento de conflitos remonta à própria


história da Humanidade. Ao longo da existência humana,
várias foram as manifestações de conflitos com seus
aspectos peculiares, sendo que na visão de Vasconcelos
(2008), desde os grupamentos nômades às sociedades
69
Coleção Dinâmica Jurídica

hodiernas, apenas houve uma variância na forma de


apresentação das disputas e dos mecanismos subjacentes
de solução das mesmas.

Gonçalves (2010, p. 02) pondera que:

Nos primórdios os conflitos de interesses


entre as partes eram resolvidos pelas
próprias partes, em uma espécie de lei da
natureza, uma forma de resolução
imprópria dos conflitos, já que na sua
maioria vencia aquele que tinha a maior
força e não quem estava munido da razão,
gerando desequilíbrio e insegurança social.

Com o surgimento do Estado e o monopólio da


jurisdição, a resolução dos conflitos que antes se atrelava
as próprias partes passa a ser de competência estatal. Nesse
cenário, a jurisdição passou a se consagrar como método
tradicional de solução de conflitos, pautada na errônea
crença coletiva de que a “solução trazida pelas próprias
partes”, poderia se revestir de uma roupagem repressiva
típica de mecanismos de autotutela, então danosos ao
Estado Democrático de Direito.
Em outro quadrante, a crise do Poder Judiciário,
capitaneada por vários fatores, dentre eles o excesso de
demanda e de formalismo em sua práxis, vem mostrando
que na sociedade marcada por uma complexidade
crescente de conflitos, em uma “inusitada metamorfose
social”, na visão de Vasconcelos (2008), urge a necessidade
da criação e efetivação de mecanismos tendentes à
propagação da paz social entre os cidadãos, através da
manutenção da dignidade da pessoa humana que esteja
70
Coleção Dinâmica Jurídica

envolvida em uma relação conflituosa, finalidade essa que


se distancia quando se utiliza de forma exacerbada a
jurisdicização das relações sociais, em que somente o
“Judiciário soluciona”.
Nesse sentido, o desgaste da ideia de exclusividade
estatal na solução das contendas é reforçada a cada dia por
diversos fatores, dentre eles, um dos argumentos que mais
se sobressai é o fato de que, conforme acentua Fiorelli e
Mangini (2012, p. 388), “ao Judiciário é dado conhecer, via
de regra o conflito manifesto”, isto é, a questão trazida
pelas partes nos exatos termos do processo, tendendo a
solução judicial a resolver somente o aspecto jurídico do
conflito, deixando sem solução as reais causas do dissenso,
as quais por não terem sido efetivamente dirimidas tendem
a permanecer presentes na relação das partes,
emoldurando a perpetuação da ânimo adversarial,
podendo gerar uma litigiosidade, em que a solução jurídica,
por si só, não pacifica os contendores.
Isso se explica, em tese, pelo fato de que ao juiz,
pelos próprios contornos das normas processualísticas,
não é dado conhecer de aspectos do conflito que não
integraram os autos do processo e que não constituem
objeto do pedido.
A partir de uma análise perfunctória, se chega a
ideia de que no modelo tradicional da jurisdição, o
resultado final do processo está condicionado a observar
os aspectos causais e jurídicos de determinado conflito,
delimitado pela lógica da argumentação e contra-
argumentação, a qual é talhada pelos contornos da petição
inicial e sua descrição fático-jurídica do conflito, bem
71
Coleção Dinâmica Jurídica

como refutado nos termos da peça defensiva, as quais


levam o magistrado a formar sua percepção do conflito
com base exclusivamente nos elementos restritivos dos
autos, na máxima de que “o que não está nos autos não
está no mundo”.
Tal análise dos autos contrasta com a dinâmica
psicológica da própria percepção do magistrado, enquanto
leitura subjetiva do mundo objetivo, no qual o juiz se vê
em um duplo dilema: adequar sua visão de mundo ao
princípio da imparcialidade, e ao ideal utópico da
neutralidade para decidir de forma “equidistante das
partes” e decidir com base em elementos objetivos,
quando sua própria percepção contém elementos
reforçadores de que o conflito possui muito mais
elementos subjetivos e emocionais.
Na perspectiva de solução judicial do conflito, a
óptica do magistrado operacionaliza-se por um mecanismo
psicológico de “visão em túnel” (FADIMAN; FRAGER,
1986, p. 208), na qual apenas os aspectos legais do conflito
são observados como fator desagregador da relação social,
deixando de fora as verdadeiras causas da insatisfação que
são alimentadoras dos sentimentos negativos das partes,
corroborando a sensação coletiva dos jurisdicionados de
que o Poder Judiciário está mais interessado na solução de
conflitos de direito do que na solução de conflitos de
interesses.
John Paul lederach (2003) apud Sales (2010),
contrariando a práxis do Judiciário, afirma que o conflito é
muito mais do que aparenta ser e ensina que para se
desvendar os múltiplos aspectos do conflito é necessário
72
Coleção Dinâmica Jurídica

entender o que chama de “Episódio e Epicentro do


conflito” (LEDERACH apud SALES, 2010, p.12), que
são as dimensões aparentes e reais da lide trazida pelas
partes à solução jurídica.
A falha na identificação dessa díade real x aparente
faz com que a solução internalizada pelas partes seja
apenas superficial, gerando uma sensação de que
efetivamente o conflito não foi solucionado, o que
facilmente pode alavancar a engrenagem de outros
métodos de solução dessa disputa através da força e da
violência.
Apesar do método tradicional da jurisdição
comportar vários entraves para a solução psicológica de
apaziguamento de conflituosidade trazida pelas partes, no
Cenário Brasileiro, tal método heterecompositivo vem
sendo utilizado de forma sistemática pela população, na
contramão do que deveria ser a “última ratio”. Qual a
explicação para isso?
Um escritor famoso, Ortega y Gasset, (1967, p. 75)
afirmou que: “o homem é ele e suas circunstâncias”. Tal
afirmação nos mostra a complexidade do desafio de ser
humano e dos modos de produção de ser-sentir-agir de
cada um.
De acordo com Bock, Teixeira e Furtado (2012, p.
3):
Nosso contato com o mundo material e
social não é espontâneo e desorganizado,
mas ao contrário, aprendemos a organizá-
lo e categorizá-lo por meio de um esquema
de pensamento. Formulamos conceitos e
73
Coleção Dinâmica Jurídica

terias para poder atribuir-lhes sentido/


significado e olhá-lo de modo simplificado.

A predileção pelo Poder Judiciário como método


solucionador de conflitos, poderia ser explicado, dentre
outros fatores, por uma dinâmica psicológica de percepção
daqueles que procuram a jurisdição, para quem, na visão
de Fiorelli e Mangini (2012, p. 390) “O juiz representa o
poder, e como tal, os envolvidos encontram alguém, a
autoridade suprema, para quem delegar a responsabilidade
pelos resultados”.
Nesse diapasão, a visão do Juiz é simbolicamente
identificada como a visão do pai na perspectiva
psicanalítica, de alguém que cuida e que decide por eles, e
o ganho secundário trazido por essa “proteção e cuidado
paternal” não elide a castração sofrida pela imposição de
normas e regras muitas vezes contrárias aos seus próprios
interesse, pois segundo Fiorelli e Mangini (2012, p. 48), “a
justiça pode apresentar-se como um superego externo, ao
atuar exigindo o cumprimento de normas éticas e morais
da sociedade.”
Em outro quadrante, o modelo autocompositivo,
com seus métodos que privilegiam a autodeterminação das
partes, se compatibiliza com os anseios da sociedade pela
paz social, se concretizando como um desafio para que o
indivíduo possa (co) existir com dignidade e respeito.
Segundo Elias (1994 p. 17)
Na vida social de hoje, somos
incessantemente confrontados pela
questão de se e como é possível criar uma
ordem social que permita uma melhor
74
Coleção Dinâmica Jurídica

harmonização entre as necessidades e


inclinações pessoais dos indivíduos, de um
lado e de outro, as exigências feitas a cada
indivíduo pelo trabalho cooperativo de
muitos, pela manutenção e eficiência do
todo social.

Assim, de acordo com Almeida, Pantoja e Pelajo (


2015 p. 1):
A medição chega em nosso ordenamento
jurídico e em nossa prática profissional
como uma mudança de paradigma, isto é,
se distanciando de um sistema que há anos
estimula a judicialização dos conflitos
como única saída possível de alcançar a
pacificação de interesses, para uma nova
forma cuja essência é o estímulo à solução
consensual, negociada e alcançada pelos
próprios contendores a partir da ajuda do
mediador.

Ao procurar pela mediação, as partes demonstram a


necessidade de que a negociação de suas questões seja
assistida por um terceiro, na figura de quem depositam
suas expectativas e projetam a solução satisfatória da
contenda.
Nessa dinâmica, o mediador assume o desafio de
desenvolver, através de uma abordagem técnica, a ideia de
que é possível a compatibilização de interesses
aparentemente contrapostos, já que a polarização tende a
dificultar a própria resolutividade da disputa, pela
agressividade emanada das partes, eis que de acordo com
Teles (2005, p. 59):

75
Coleção Dinâmica Jurídica

O stress é a tensão do organismo obrigado


a mobilizar as força para enfrentar
situações perigosas. O estímulo estressante
desencadeia no organismo uma reação de
natureza emocional que determina
respostas perturbadoras de natureza
orgânica e psíquica.

Depreende-se daí que a negociação triangular via


mediação passa a ser mais indicada justamente por
minimizar o stress trazido pelas partes, seus sentimentos
negativos, bem como reduzir a reação desvalorizadora tão
presente nos conflitos, na qual as mesmas se vêem em
polos opostos.
Isso porque há uma tendência quase que natural de
as partes “desconfiarem” das propostas que advém do
outro, sendo essa tendência equilibrada pela figura do
mediador, que através de técnicas comunicativas, como a
escuta ativa e paráfrase, acaba por dar um novo contorno
ao discurso, sendo visto pelas partes nesse particular como
o “sujeito suposto saber de Lacan.
Não é sem razão que a mediação, por suas
características intrínsecas, desperta a atmosfera da
responsabilidade social de cada um por seu próprio
conflito, pois as partes se apropriam de seus próprios
dilemas, em um empoderamento não somente de suas
questões, mas de seus sentimentos.
Marshall Rosenberg (2006), em sua estimulante
obra comunicação não-violenta, esclarece sobre a perigo
da negação da responsabilidade na vida das pessoas,
afirmando que “a comunicação alienante de vida turva
nossa consciência de que cada um de nós é responsável
76
Coleção Dinâmica Jurídica

por seus próprios pensamentos, sentimentos e atos”


(ROSENBERG, 2006, p. 42).
Na mediação, são abordadas além das questões
juridicamente tuteladas, todas e quaisquer questões que
estejam influenciando a relação social das partes. Como
não poderia deixar de ser, a mediação contempla aspectos
emocionais do conflito, os quais possam auxiliar a
desvendar o conflito real, inclusive a linguagem corporal
dos mediandos, que deverá ser identificada pelo mediador
no decorrer do processo.
Conforme Pease e Pease (2005 p. 19), “a linguagem
do corpo é o reflexo do estado emocional da pessoa. Cada
gesto ou movimento pode ser uma valiosa fonte de
informação sobre a emoção que ela está sentindo em um
dado momento.”
Além disso, em nível inconsciente, na dinâmica do
conflito, alguns mecanismos de defesas psicanalíticos são
utilizados pelas partes, dentre eles, a Racionalização, que
segundo Fadiman e Frager (1986, p. 20) “é o processo de
achar motivos aceitáveis para pensamentos e ações
inaceitáveis.”
Na racionalização, as pessoas criam explicações
lógicas para tornar aceitáveis comportamentos não
aceitáveis socialmente, sendo uma estratégia que nossa
psiquê utiliza para nos colocar em uma situação de
pertencimento social (FADIMAN; FRAGER, 1986).
No conflito, é comum encontrarmos explicações
racionais para nossa raiva dirigida ao outro quando na
verdade nosso comportamento agressivo tem origem em
77
Coleção Dinâmica Jurídica

outras motivações não reveladas, as quais o mediador


precisa estar suficientemente capacitado para trazer a tona
essas motivações, na medida em que tal fato tem grande
relevância para a descoberta de sentimentos e interesses
ocultos das partes, que se discutidos podem trazer a
essência do conflito e sua consequente resolutividade.
As emoções na mediação, tanto as externadas de
forma verbal como não-verbal, conscientes ou
inconscientes, são um desafio potencial para o mediador,
que deverá ter em mente sua importância como um dado
revelador do nível do conflito, mas principalmente levar
em conta o poderoso processo de contágio emocional,
que na visão de Jubete (s.d), caracteriza-se como um
mecanismo de troca afetiva e emocional em que as pessoas
influenciam-se reciprocamente quanto às suas emoções
presentes em um dado instante.
Semelhante ao mecanismo do bocejo, os seres
humanos estão a todo instante vivendo um toma-lá-dá-cá
emocional, onde os modelos emocionais são imitados
quase inconscientemente.
Na mediação, esse mecanismo se torna muito
evidente na medida em que na maioria das vezes, as partes,
emocionalmente impregnadas de sentimentos negativos
como medo, raiva, rancor, ressentimento e frustração
podem contaminar o mediador menos habilidoso,
passando este a conduzir a sessão de mediação com os
sentimentos equivalentes aos dos mediandos.
Para Vigostsy apud Arantes (2003, p.15) “o medo
seria como uma fuga inibida, isto é, uma forma
consolidada de comportamento que surge do instinto de
78
Coleção Dinâmica Jurídica

autoconservação; a raiva, por sua vez, seria uma briga


inibida, o instinto de autoconservação em sua forma
ofensiva”.
Tais sentimentos estão ligados a uma necessidade
de expressão do Id, na visão psicanalítica, de acordo com o
entendimento de Teles (1997 p. 34,) para quem: “Uma das
funções do Id seria por em ação as energias impulsivas ou
instintivas dos mecanismos de agressão inerentes às forças
de sobrevivência e superação.”
Destarte, mesmo que a nível de consciência, as
lembranças e ideias do mediador estejam voltadas para o
controle da sessão com a parcimônia de sentimentos e
expressões, a expressão emocional das partes remonta
àqueles conteúdos reprimidos em seu inconsciente, seus
medos, dúvidas e angústias iniciais do início de seu
treinamento, tanto no que diz respeito aos aspectos
pessoais de suas próprias relações conflituosas quanto de
aspectos técnicos aos quais houveram falhas e dificuldades
alimentadores da sensação de impotência.
Por essas razões, o mediador deve estar
emocionalmente treinado para contagiar as partes com
seus sentimentos positivos diante do conflito no decorrer
da sessão, o que se justifica pelo fato de que na mediação o
condutor do processo deverá ser o norte para onde
convergem as dificuldades emocionais das partes e onde
essas encontram apoio para superação e mudança de
paradigma, com a consequente transformação do conflito
e restauração dos vínculos afetivos relacionais.
Não é ocioso frisar que o potencial da mediação
para restaurar o relacionamento das partes atinge seu ápice
79
Coleção Dinâmica Jurídica

na abordagem da mediação transformativa, que ao


contrário da escola de Havard que prima pela solução do
conflito com a obtenção do acordo, a escola
transformativa leva a cabo a máxima dos valores da
mediação pautados no “empowerment (capacidade das
pessoas de tomarem decisões por si próprias) e
Recognition (consideração das perspectivas do outro), de
acordo com Souza (2009, p. 81), para quem uma de suas
principais características, dentre outras são “a ausência do
ponto de julgamentos dos pontos de vista e das decisões
das partes e a emoção como parte integrante do conflito e
não algo a ser evitado ou redirecionado.”
Segundo Bush e Folger apud Souza (2009), A
mediação transformadora crê haver uma capacidade
inerente a todos os seres humanos de se fortalecer e de se
ligar um ao outro, tornando dispensável o controle externo
ao conflito.
Independente da abordagem utilizada na mediação,
um dos maiores desafios desse novo método é a
concepção de uma nova justiça, onde o monopólio e a
tradição do judiciário cedem lugar a um novo processo que
faz cair por terra a tese amalgamada no imaginário coletivo
de que “quem não litiga não é cidadão”.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A passagem do mecanismo tradicional da jurisdição
a outras formas consideradas alternativas, dentre as quais, a
mediação, se deu de forma gradativa, a partir de entraves
surgidos no próprio seio do judiciário, tais como a
morosidade, a burocracia e o excesso de formalismo.

80
Coleção Dinâmica Jurídica

Esses obstáculos, por assim dizer, fizeram com que


ao longo do tempo houvesse a necessidade de readequação
dos mecanismos de solução de conflitos às demandas da
sociedade em razão da busca pela efetividade da solução
encontrada.
O conflito, de natureza nitidamente psicojurídica,
requer não uma solução impositiva e unilateral por parte
do Estado-Juiz, mas traz a necessidade da utilização de
métodos que contemplem a subjetividade das relações
sociais as quais servem de suporte fático para o surgimento
de contendas.
A utilização ostensiva da jurisdição instiga a cultura
do litígio, que precisa urgentemente ser repensada, haja
vista que na prática, mesmo após a solução judicial, o
litígio ainda permanece arraigado no ânimo das partes,
posto que os sentimentos negativos ao invés de dissipados,
apenas assumem outra roupagem para se camuflar no
superego social.
Com isso, chega-se a conclusão de que a
necessidade de expressão de sentimentos e emoções, é
melhor contemplada no mecanismo da mediação, que
procura pacificar a sociedade por meio da pacificação do
próprio cidadão, com suas dores, dilemas, mecanismos de
defesa, percepções e todo o conjunto de dinâmicas
psicológicas que compõem o acervo do que é humano.
A mediação não ressignifica somente o conflito, ela
inaugura uma abordagem em que diferentemente do Poder
Judiciário, as pessoas são realmente transformadas pelo
conflito.

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Coleção Dinâmica Jurídica

REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Diego Assumpção Rezende de (coord.);
PANTOJA, Fernanda Medina (coord.); PELAJO, Samantha
(coord.). A mediação no novo código de processo civil. Rio
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Coleção Dinâmica Jurídica

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VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos
e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.

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Coleção Dinâmica Jurídica

84
Coleção Dinâmica Jurídica

JUSTIÇA RESTAURATIVA PENAL NO BRASIL

LUIS CINEAS DE CASTRO NOGUEIRA

1 INTRODUÇÃO
O presente texto utiliza como referencial teórico o
artigo “Um novo modelo de justiça penal: justiça
restaurativa e sua aplicação no Brasil” (FREITAS;
BRAGA, 2014) o qual explicita rapidamente o sistema
retributivo de punição adotado no Brasil e traça um
paralelo com o sistema de justiça restaurativa e sua
compatibilidade e aplicação prática.
Antes de falar sobre justiça restaurativa no Brasil é
de bom tom fazer rápida revisão sobre o modelo adotado
até então como regra no sistema brasileiro de justiça penal,
a justiça retributiva.
Na justiça retributiva, “ante o cometimento de um
ilícito penal, surge para o Estado o poder-dever de punir
aquele que viola o ordenamento jurídico e a paz social,
retribuindo o mal causado com a comissão do delito com a
aplicação de medidas extremas” (BRANDÃO, Html).
Ou seja, este sistema punitivo “preocupa-se com a
figura do agressor, qual norma jurídica foi violada, qual
sanção deve ser aplicada, é totalmente centrado no Estado,
que processa e julga, condenando, sendo voltada para o
passado, despreza a história e as relações da vítima”
(FREITAS; BRAGA, 2014, p.147) não causando nenhum
assombro o fato de que se olvide de um ideal
ressocializador levando ao fracasso o sistema de justiça
penal vigente.
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Coleção Dinâmica Jurídica

O Estado assume papel repressivo pouco


importando se o agente do crime foi produto da
ineficiência do próprio Estado sendo, por fim, “fruto de
um processo de dessocialização que o torna propenso ao
cometimento de outros delitos” (BRANDÃO, Html).
Sob este enfoque, garantir a paz social punindo o
agente delinquente com a atrocidade da perda de sua
liberdade e o jogar numa jaula medieval, como se afigura
boa parcela das prisões brasileiras, milita em sentido
contrário à garantia de uma coexistência pacífica entre os
membros da sociedade.
Entrementes, o Estado moderno carece de
legitimidade ao não cumprir o pacto social de promover e
fomentar condições de desenvolvimento de sua população.
No vácuo desta legitimidade e no excesso repressivo, que à
olhos vistos não resolve o problema da criminalidade,
surge uma nova abordagem, a justiça restaurativa.

2 JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Na justiça repressiva, a pena privativa de liberdade,
prática constante no atual sistema de justiça penal, é
imposta praticamente como meio único de resposta à
infração penal e como medida singular para prevenir
futuras condutas sob a máscara da (fajuta) ressocialização
do infrator, a qual não acontece, infelizmente.
A justiça retributiva caracteriza-se por visar à
punição e ao estabelecimento de culpa como forma de
justiça, ou seja, havendo uma lesão jurídica relevante
(tipicidade) causada pelo delito, o objetivo precípuo deste
sistema é retribuir o mal cometido (sistema vingativo-
punitivo). Ainda a respeito das características, explica
Peterle (2015):
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Coleção Dinâmica Jurídica

Tais pressupostos auxiliam na


caracterização do campo do Direito Penal
que se baseia na justiça retributiva. Esta
centra seu apoio na infração cometida e na
noção de justa pena aos infratores. Outra
característica é que tal justiça prima pelo
interesse público – nesse caso, a sociedade
estaria representada pelo Estado que é o
detentor do monopólio da justiça criminal,
por meio do uso de rituais solenes. Além
disso, baseia-se na estigmatização –
culpabilidade individual voltada para o
passado – e na indiferença do Estado
quanto às necessidades do infrator, vítima
e comunidade afetados – neste sistema,
nem nota-se uma conexão entre estes três
supracitados.

Ainda nessa perspectiva, a justiça


retributiva faz uso de linguagem, normas e
procedimentos formais e complexos.
Outro fator consiste nos atores principais,
quais sejam: as autoridades –
representantes do Direito – e profissionais
do Direito, cujo caráter decisório fica a
cargo dessas autoridades.

Tais pressupostos auxiliam na


caracterização do campo do Direito Penal
que se baseia na justiça retributiva. Esta
centra seu apoio na infração cometida e na
noção de justa pena aos infratores. Outra
característica é que tal justiça prima pelo
interesse público – nesse caso, a sociedade
estaria representada pelo Estado que é o
detentor do monopólio da justiça criminal,
por meio do uso de rituais solenes. Além
disso, baseia-se na estigmatização –
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Coleção Dinâmica Jurídica

culpabilidade individual voltada para o


passado – e na indiferença do Estado
quanto às necessidades do infrator, vítima
e comunidade afetados – neste sistema,
nem nota-se uma conexão entre estes três
supracitados.

Ainda nessa perspectiva, a justiça


retributiva faz uso de linguagem, normas e
procedimentos formais e
complexos. Outro fator consiste nos atores
principais, quais sejam: as autoridades –
representantes do Direito – e profissionais
do Direito, cujo caráter decisório fica a
cargo dessas autoridades

Aprofundando sua explicação a autora afirma que o


sistema tradicional, sistema retributivo de justiça penal,
busca intimidar e punir o infrator no que tange ao
resultado, e o faz basicamente por meio e penas privativas
de liberdade, assessoradas por penas restritivas de direito e
pena de multa. Contudo, se olvida de outros bens
juridicamente tutelados tais como o da defesa da dignidade
da pessoa e a subsidiariedade da intervenção punitiva, o
que leva a visível retrocesso forte na tendência do Poder
Público em utilizar instrumentos punitivos como único
estandarte relevante para as respostas aos conflitos sociais.
Nota-se que os efeitos da justiça retributiva para a
vítima é de quase nenhuma importância sedo fadado ao
esquecimento da escuridão do passado. A vítima, muitas
vezes, “é somente figurante e, por conseguinte, o Estado
não proporciona quase nenhuma assistência psicológica,
social, econômica e jurídica” (PETERLE, 2015).

88
Coleção Dinâmica Jurídica

A real consequência é a frustração e o sentimento


de impunição, no sentido de deixar-se impune o ilícito
acometido, escancarando as múltiplas falhas de todo o
sistema penal vigente.
Todavia, segundo FREITAS e BRAGA (2014,
p.148) apesar das mazelas o sistema retributivo é
ferramenta importante no ordenamento jurídico nacional,
notadamente, em relação aos crimes de alta potencialidade
lesiva os quais necessitam de medidas enérgicas, servindo
neste viés de modelo para a contenção e pacificação social,
o que lhe falta, no entanto, é de medidas completares para
implementar seu aperfeiçoamento, tendo em vista que nem
sempre o ato de punir representa o sentimento de justiça
para o agredido ou sua família, de tal forma que mais além
de centrar o foco na ofensor, é a vítima que necessita ser
ampara e ter seu papel de protagonista reconhecido pelo
Estado.

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA
O direito penal é, acima de tudo, uma garantia e a
justiça penal organiza-se a partir de uma exigência: garantir
uma coexistência pacífica entre os membros da sociedade,
entretanto, exercido dentro de limites principiológicos tais
como: os princípios da legalidade ou da reserva legal, o
princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da
culpabilidade, princípio da exclusiva proteção de bens
jurídicos, princípio da intervenção mínima e da
fragmentariedade, princípio da pessoalidade e da
individualização das penas, princípio da proporcionalidade,
princípio da humanidade, princípio da insignificância e
princípio da adequação social (FAVORETTO, 2011).

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Coleção Dinâmica Jurídica

Segundo Greco Filho (2012, p. 34) a lei é a


ferramenta utilizada pelo Estado moderno para limitar a
conduta humana e, com isso, dar harmonia e equilíbrio à
sociedade:
O direito, portanto, não existe somente
para resolver os conflitos de pessoas ou
entre pessoas, mas também para evitar que
ocorram, prevenindo-os. Na verdade, pois,
o conflito é de interesses, e não de pessoas.
Por outro lado, é preciso observar que,
diante da simples hipótese de conflito, o
direito previamente limita ou define o que
cabe a cada um, tratando-se o conflito de
uma divergência entre a atuação dos
sujeitos e a vontade da lei.

Para Mirabete (1994, p. 23) “uma das tarefas


essenciais do Estado é regular a conduta dos cidadãos por
meio de normas objetivas sem as quais a vida em
sociedade seria praticamente impossível”. Ou seja, cabe
ao Estado estabelecer regras para regulamentar a
convivência das pessoas entre si e destas para com o
próprio Estado, sendo descabido, por exemplo, a
autotutela no campo penal, pois, quem detém o poder
punitivo penal é sempre o Estado.
Este poder punitivo do Estado derivou desde da
primeira forma de penalização, com a vingança e o castigo,
atravessando o iluminismo que fez surgir escolas penais a
estudarem a teoria do crime e sua forma de punição, até as
ideias mais recentes surgidas com a junção das teorias do
crime com o fator culpabilidade, periculosidade e os
métodos de recuperação do homem, como as medidas de
segurança, numa clara escalada evolutiva na idealização da

90
Coleção Dinâmica Jurídica

pena, deixando de ser retributiva e repressiva para ser


preventiva e ressocializadora (BITENCOURT, 2012).
A este exemplo, Bitencourt (2012, p. 1553-1628)
lista longamente diversas formas de aplicação substitutiva
ou alternativa das penas restritivas de direitos no Código
de Trânsito Brasileiro e os postulados da Lei 9.099/95 (Lei
dos Juizados Especiais) nas infrações penais de pequeno
potencial e, ainda, o instituto da transação penal na Lei
Ambiental com a possibilidade de composição ou prévia
reparação do dano além de tantas outras penas alternativas
recolhimento domiciliar, a advertência, frequência a curso
e submissão a tratamento ou advertência e
comparecimento à programa ou curso educativo (Lei
11.343/2006).
Esse progressivo movimento em busca da
efetivação dos direitos humanos e da efetividade material
dos direitos e garantias individuais em paulatina
consolidação de um sistema mais democrático em franca
transição, são os artífices da Justiça Restaurativa que ao
final busca ressignificar a expressão “Justiça”.
A Justiça Restaurativa opera no sentido de tentar
restaurar as relações rompidas com a ocorrência do crime
focando a atenção no futuro e não na culpa voltada para o
passado, possibilita que o infrator possa ressarcir a vítima,
sem que as relações sejam terminantemente rompidas, tal
como aponta Luz (2011):

A modificação da unidade entre as normas


de comportamento e de sanção, típica da
racionalidade penal moderna, é o objeto
precípuo da modificação restaurativa, que
visa a criar um modelo de justaposição ao
modelo tradicional de gestão do crime, no
91
Coleção Dinâmica Jurídica

qual a principal responsabilização do


infrator ao preceito primário ocorre por
meio de um diálogo conciliatório no qual
ele, a vítima e a comunidade participam e
podem opinar sobre a melhor solução para
reparar a lesão ocasionada com o crime.

Para Luz (2011) a Justiça Restaurativa consiste no


novo paradigma de resolução dos conflitos penais, que se
funda em duas premissas basilares: a) redefinição do
conceito de crime e, b) mudança de construção da resposta
ao fenômeno delitivo. Ou seja, crime é entendido como
ofensa às pessoas e aos relacionamentos sociais o que pede
respostas consensuais, obtidas mediante um processo de
diálogo entre ofendido, ofensor e, quando interessante,
comunidade.
O que nela se propõe é a inclusão de garantias
positivas ao cidadão e em vez de punição,
responsabilização, restauração da paz jurídica e das
consequências advindas com o crime, cedendo lugar ao
diálogo.
Para Vasconcelos (2015, p.248):

Processos restaurativos seriam aqueles nos


quais vítimas, ofensores e, quando
apropriado, outros indivíduos ou membros
da comunidade, afetados pelo crime,
participam juntos e ativamente na
resolução das questões provocadas pelo
crime, geralmente com a ajuda de um
facilitador (mediador) - urna terceira
pessoa independente e imparcial, cuja
tarefa é facilitar a abertura de uma via de
comunicação entre as partes.

92
Coleção Dinâmica Jurídica

A experiência brasileira no campo da justiça


restaurativa é recente, sendo o Relatório do Instituto
Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do
Delito e Tratamento do Delinquente – ILANUD a fonte
mais autorizada para o conhecimento de Projeto já
implantados como explica Vasconcelos (2015, p.248).
Segundo as Organização das Nações Unida (ONU),
em sua Resolução 2002/12, emitida pelo seu Conselho
Econômico e Social (ECOSOC), os princípios básicos
para o desenvolvimento de programas de Justiça
Restaurativa em matéria criminal são divididos em tópicos:
a) Terminologia, b) Utilização de Programas de Justiça
Restaurativa, c) Operação dos Programas Restaurativos e
Desenvolvimento Contínuo de Programas de Justiça
Restaurativa.
Pode-se entender que do ponto de vista
restaurativo fazer justiça “significa dar resposta às
infrações e a suas consequências, enfatizando a cura das
feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou
reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o
agravo causado pelo malfeito” contando com a
participação voluntária da vítima, do infrator e da
sociedade (FREITAS; BRAGA apud SCURO NETO,
2014, p.148).
Luz (2011) aponta resultados positivos, e dá como
exemplo pesquisas realizadas na Inglaterra, durante um
período de dois anos, onde se monitorou 29.000 ofensores
e diante do uso de práticas restaurativas pode-se observar
queda nos níveis de reincidência o que vai de encontro
com as antigas práticas prisionais as quais demonstram
secularmente causas de aumento da reincidência. Citando
93
Coleção Dinâmica Jurídica

outra pesquisa realizada na Nova Zelândia indica que as


práticas restaurativas contêm um plus de introjetar alto
sentimento de satisfação das partes quando submetidas ao
processo mediativo o que fixa de maneira positiva a
percepção de justiça nas comunidades estudadas.
Distintamente do que habitualmente se propaga, a
legislação penal nacional conta com diversos instrumentos
para pôr em prática a justiça restaurativa. Nesse sentir,
BRASIL (2015, p. 112-113) em artigo publicado por
ocasião do XXIV Encontro Nacional do CONPEDI
vaticina que existem diversos espaços normativos
nacionais que propiciam a prática restaurativa como o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a Lei
dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95 e Lei
10.259/01), o Estatuto do Idoso (art. 94 da Lei
10.741/03); a Lei dos crimes ambientais (Lei 9.605/98);
nos Crimes de Trânsito (art. 291 da Lei 9.503/97), Crime
de uso de substância entorpecente (art. 28 da Lei
11.343/06), na Lei Maria da Penha (arts. 29 e 30, Lei
11.340/06), nos crimes de calúnia e injúria (art. 138 do
Código Penal e arts. 519 - 523 do Código de Processo
Penal) apenas para citar os mais notórios. Registra-se ainda
que a Lei 12.594/2012, que instituiu o Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Sinase).
Assim, quanto compatibilidade jurídica da justiça
restaurativa com o sistema brasileiro e sua aplicação no
Brasil a leitura que se faz (FREITAS; BRAGA, 2014,
p.152; BRASIL, 2015, 113) é que é plenamente possível a
sua aplicação apesar de se fazer necessário lei específica no
direito material com o objetivo de fixar os padrões e
diretrizes legais com o objetivo de adaptar e contextualizar
a aplicação da prática restaurativa, inclusive, sublinhando
94
Coleção Dinâmica Jurídica

que já existe projeto de lei, PL nº 7006/2006 de autoria da


Comissão de Legislação Participativa, nesse sentido.
Como se vê, a Justiça Restaurativa transforma
paradigma da intervenção penal, pois, está preocupada
com a reparação (material ou simbólica) dos danos
causados pelo crime, ao passo que encoraja a vítima e
ofensor a resolverem o conflito por intermédio do
entendimento e da negociação, destinando aos agentes
públicos o papel de facilitadores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi explanado se conclui que o
Direito Penal tradicional se funda nos paradigmas
punitivos de resolução do delito, que tem na pena privativa
de direitos e liberdades instrumento de recuperação social
do delinquente, sendo utilizado de forma verticalizada do
Estado para o infrator, todavia, em franco declínio. Este
modelo, de intenção meramente punitivo, tem se revelado
ineficaz tanto para a sociedade, quanto para a vítima que
carece em desamparo e não vê eficácia prática na punição
imposta pelo Estado.
A Justiça Restaurativa revela-se como um novo
paradigma de resolução dos conflitos penais pautado na
existência de responsabilização do ofensor, restauração do
prejuízo causado à vítima e reintegração das relações
sociais lesionadas com a ocorrência do delito num modelo
forjado por princípios sólidos em conformidade com as
diretrizes da ONU, por meio da Resolução 2002/12,
emitida pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC).
Este novo modelo tende a soluções preocupadas
em diminuir as consequências sociais advindas da
ocorrência do crime, sendo mais prospectivo, voltado ao
95
Coleção Dinâmica Jurídica

futuro e não ao passado, sendo restaurador em sua


essência ao tempo em que se preocupa com a
responsabilização do infrator e reparação dos interesses
lesionados pelo delito. Entrementes, apesar de ainda
incipiente no Brasil a doutrina especializa aponta resultado
positivo no que se refere à satisfação dos envolvidos
(vítima e ofensor), além de conferir mais legitimidade à
resposta penal.
Na contramão do que normalmente se propaga a
legislação penal brasileira já conta com diversos
instrumentos que demonstram a compatibilidade da justiça
restaurativa com o sistema jurídico nacional.
Trata-se de um avanço no sentido de legitimação do
processo, porquanto este passou a ser vislumbrado como
procedimento que introduz valores positivos e atende aos
anseios de vítimas e ofensores com o sistema penal,
diferentemente do que ocorre com o sistema punitivo
tradicional. A contribuição da Justiça Restaurativa é
valorizar os interesses individuais lesionados com o delito
em detrimento da sanção penal.

96
Coleção Dinâmica Jurídica

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Coleção Dinâmica Jurídica

SÍSIFO, O ACESSO À JUSTIÇA E OS


MECANISMOS ALTERNATIVOS:
POR UM NOVO MODELO DE PACIFICAÇÃO
SOCIAL A PARTIR DO CONSENSO

FERNANDO FORTES SAID FILHO20

RESUMO
A jurisdição se torna insuficiente para a crescente
formulação por justiça, o que enseja o reaparecimento de
mecanismos (até então) considerados alternativos de
acesso à ordem jurídica justa. As recentes reformas na
legislação processual propõem um modelo de conjugação
dos diversos instrumentos de apreciação de controvérsias
(multiportas), com ênfase nos meios autocompositivos.
Trata-se de um novo paradigma para a justiça brasileira, no
qual se pretende estimular os mecanismos consensuais de
pacificação social, inclusive com a atuação mais eloquente
da conciliação e da mediação no processo judicial. Porém,
em se tratando de uma transição, para que esse novo
formato produza os resultados esperados, ainda precisará
superar desafios de ordem estrutural, educacional e
cultural.

20 Doutorando em Direito Constitucional pela UNIFOR (CE), Mestre em Direito


Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (RS). Professor de
Direito do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí – IFPI.
Coordenador de Pesquisa e Pós-Graduação da Escola Superior de Advocacia do
Piauí – ESAPI. Advogado. Currículo: http://lattes.cnpq.br/2714540046286643. E-
mail: ffsaidfilho@hotmail.com. Instagram:@fernandosaidfilho.
99
Coleção Dinâmica Jurídica

Palavras-chave: jurisdição; mecanismos alternativos; meios


consensuais; desafios.

ABSTRACT
Jurisdiction becomes insufficient for the growing
formulation of justice, which leads to the reappearance of
mechanisms (hitherto) considered as alternatives to access
to the just legal order. The recent reforms in the
procedural legislation propose a model of conjugation of
the diverse instruments of appreciation of controversies
(multi-door courthouse), with emphasis in the
autocompositives means. This is a new paradigm for
Brazilian justice, in which it aims to stimulate the
consensual mechanisms of social pacification, including
the more eloquent act of conciliation and mediation in the
judicial process. However, in the case of a transition, for
this new format to produce the expected results, it will still
have to overcome structural, educational and cultural
challenges.
Keywords: jurisdiction; alternative mechanisms;
consensual means; challenges.
Sumário
1 Introdução. 2 O acesso à justiça e a(s) crise(s) da
jurisdição. 3 A tentativa de fuga à crise: aposta nos
mecanismos alternativos. 4 Em busca de um novo
paradigma: a justiça consensual e os desafios a serem
enfrentados. 5 Considerações finais. Referências.

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Coleção Dinâmica Jurídica

1 Introdução
Muito se tem discutido acerca da crise na justiça e
as possíveis alternativas para superá-la. As tradicionais
soluções até então apontadas (investimento na estrutura
judiciária, fiscalização da produtividade dos juízes e a
modificação na legislação processual) não foram capazes
de resolver o problema da baixa efetividade da prestação
jurisdicional. O debate toma novo rumo e, de forma quase
universal, passa a incidir sobre outros mecanismos de
resolução de conflitos que também se mostram aptos ao
enfrentamento das questões levadas aos órgãos judiciários,
tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem.
Ocorre que, quase sempre, busca-se promover tais
instrumentos como meras saídas a um sistema de justiça
que não mais se mostra apto a corresponder aos anseios
sociais, um modelo que pressupõe a conotação de acesso à
justiça enquanto sinônimo de atuação dos tribunais e que
implica a resolução das demandas pela atuação do Estado-
juiz. Assim, a aposta nesses mecanismos alternativos parte
da equivocada premissa de que sua utilidade estaria
relacionada à noção de (in)eficiência de um suposto meio
primário de apreciação de controvérsias: a jurisdição.
De qualquer forma, o fato é que há uma tendência
de aposta num novo modelo de pacificação social,
fundamentado na atuação harmoniosa dos diversos
mecanismos de resolução de conflitos de acordo com a
adequação de cada instrumento às peculiaridades da
relação jurídica apreciada. Mais especificamente, as
recentes reformas na legislação brasileira apontam para
uma prevalência na utilização dos meios autocompositivos
101
Coleção Dinâmica Jurídica

(sobretudo a conciliação e a mediação) como forma de pôr


em prática a justiça a partir do consenso.
Partindo desta premissa, o presente artigo se
propõe a analisar a importância que os mecanismos
alternativos passam a ter em mais uma tentativa de
contornar os problemas que afligem a questão do acesso à
justiça, fazendo um paralelo com o mito de Sísifo e o seu
esforço para alcançar a meta desejada. Para tanto, serão
traçadas algumas considerações mais detidas acerca dos
meios autocompositivos incorporados ao processo judicial
e os desafios à sua implementação, tendo em vista que se
trata de um novo paradigma para a justiça brasileira: a
pacificação social a partir do consenso.

2 O acesso à justiça e a(s) crise(s) da jurisdição

Na mitologia grega, Sísifo foi condenado pelos


deuses a empurrar incessantemente uma grande pedra até
o topo de uma montanha, sendo que, sempre que chegava
próximo ao cimo, o seu cansaço e o próprio peso faziam o
rochedo rolar novamente até o ponto de partida, tornando
improfícuo o empenho destinado à realização da tarefa.
Trata-se, segundo Albert Camus (2012, p. 121), do mais
terrível castigo a ser suportado pelo indivíduo, o esforço
eterno na persecução de um trabalho inútil e sem
esperança. Essa, infelizmente, é uma analogia que vem
sendo feita ao direito processual.
De fato, é a partir do mito acima narrado que
Ramos Mendez (1986, p. 2) ressalta as vicissitudes da
102
Coleção Dinâmica Jurídica

ciência processual, comparando o esforço de Sísifo à


atuação dos estudiosos para a emancipação deste ramo
jurídico, sobretudo no que concerne à eficácia do
processo, assim definida pelo autor através de três
parâmetros: a duração, o custo e o cumprimento das
decisões judiciais. Em outros termos, muito embora nas
últimas décadas tenhamos acompanhado todo o empenho
dos juristas na reformulação do direito processual, parece
que sempre retornamos ao início da jornada: o processo
não cumpre a sua função enquanto instrumento de acesso
à justiça e mecanismo de pacificação social.
Pois bem, mais uma vez nos encontramos na parte
baixa da montanha, cientes de que alcançar o topo será
uma tarefa extremamente árdua, mas que jamais deve ser
encarada com desânimo ou pessimismo. Para tanto, é
necessário ter em mente que o debate exige analisarmos o
problema de uma forma holística, através de um olhar
crítico e apurado acerca do contexto atual para além dos
contornos do direito processual, posto que a questão
envolve discutirmos o tema sob o enfoque da atuação do
Estado e da participação da própria sociedade na
administração da justiça.
Comecemos por perceber que, com a sua criação, o
Estado – responsável pela organização da vida em
sociedade - passou a exercer o monopólio da criação e da
aplicação do direito, fazendo da jurisdição o meio
tradicional de apreciação de controvérsias e de acesso à
justiça, função que desempenha através do Poder
Judiciário. Uma vez surgida a divergência de interesses, os

103
Coleção Dinâmica Jurídica

envolvidos passam a pleitear nos tribunais21 a solução para


o caso, provocando a concentração de demandas nos
órgãos judiciais, onde a sociedade é impulsionada a buscar
a solução para a pacificação dos litígios.
Por tais razões, a expressão acesso à justiça pode ser
entendida, num primeiro momento, como sinônimo de
ingresso ao Poder Judiciário, visto que aos órgãos judiciais foi
conferida a função de resolução de conflitos. No entanto, é
necessário se reconhecer que ao acesso à justiça deve ser
dada uma conotação mais ampla, tal qual proposta na clássica
obra de Cappelletti e Garth (1988, p. 15) no sentido de
compreendê-la sob a perspectiva da efetividade,
consubstanciada na incumbência do Estado proporcionar
a facilitação das vias de ingresso aos tribunais e, sobretudo,
responder as demandas de forma adequada e em tempo
oportuno.
Evidentemente, o direito de acesso à justiça
pressupõe a garantia de que os indivíduos possam
submeter uma pretensão aos órgãos judiciários, o que
representa a primeira etapa de um procedimento cuja
finalidade é alcançar o “acesso à ordem jurídica justa, de
forma efetiva, tempestiva e adequada” (WATANABE,
2011, p. 386). Assim, o que se percebe é que esse direito se
apresenta hoje com uma concepção atrelada à noção de
eficiência da atuação do Poder Judiciário, consoante leciona

21 Sem a pretensão de desconsiderar que tribunal, em sua mais técnica acepção,


representa os órgãos judiciários de segunda instância (tais como os Tribunais de
Justiça estaduais ou Tribunais Regionais Federais), importa destacar que, para efeitos
do presente artigo, o referido termo será utilizado de uma forma mais genérica,
fazendo menção ao local onde se exerce a função jurisdicional ou se administra
justiça.
104
Coleção Dinâmica Jurídica

Ribeiro (2009, p. 103), já que só estará realizado em sua


completude com uma resposta oportuna às demandas que
se apresentam.
Ocorre que a realidade brasileira demonstra a
prevalência de uma “convicção generalizada de que o
Judiciário em geral, e os tribunais em particular, não estão
em condições de atender a demanda de justiça existente na
sociedade” (ROCHA, 1995, p. 37). Na verdade, ainda que
realizada de uma forma simplista, como meio de se iludir o
problema, conforme alerta Zaffaroni (1995, p. 21), é
remansosa na doutrina a constatação de apontamentos
acerca de (pelo menos) três circunstâncias perniciosas à
efetividade do acesso à justiça: carência estrutural do Poder
Judiciário, eventuais inadequações na atuação dos
magistrados e, principalmente, a obsolescência das leis
processuais, fatores estes que desencadearam a(s) “crise(s)
da jurisdição” (BOLZAN DE MORAIS, 2003, p. 76)22.
Nesse sentido, o que se tem observado é que, nos
últimos anos, vários projetos de modernização da estrutura
judiciária foram e continuam sendo implantados com o
escopo de se superar (ou pelo menos amenizar) a carência
estrutural do Poder Judiciário, evidenciada no alto índice
de congestionamento de processos nos tribunais e a
consequente morosidade na sua tramitação. Ocorre que

22 Trata-se de uma crise que, com base nas lições do autor (2003, p. 76), pode ser
entendida por diversos enfoques: crise estrutural, que corresponde à insuficiência no
financiamento de instalações, pessoal e de equipamentos; crise objetiva ou
pragmática, relacionada à burocratização e lentidão dos ritos judiciais; crise subjetiva
ou tecnológica, vinculada à incapacidade dos operadores jurídicos em lidarem com
novas realidades fáticas, em especial os conflitos de interesses transindividuais; e crise
paradigmática, acerca da inadequação do modelo jurisdicional tradicional (e do
próprio direito) para o trato das demandas contemporâneas.
105
Coleção Dinâmica Jurídica

tais projetos esbarram nas limitações financeiras


vivenciadas pelo Estado e que inviabilizam o investimento
necessário para a melhoria dos órgãos judiciários, não
apenas em relação à ampliação da capacidade de absorção
das demandas que vão surgindo, mas, também, em relação
à contratação de novos servidores e à promoção de cursos
de aperfeiçoamento dos profissionais responsáveis pela
condução e julgamento dos processos.
Com o fito de exigir uma postura mais ativa do juiz
na condução do processo, foram criados órgãos (o
principal deles o CNJ - Conselho Nacional de Justiça) e
instrumentos de fiscalização da produtividade judicial
(como Metas do CNJ e Justiça em números), o que acabou
introduzindo um perfil de gestão econômica ao Poder
Judiciário, voltado à estimulação da produção em larga
escala do objeto trabalhado pelos tribunais: a decisão
judicial. Os magistrados não apenas assumem a obrigação
de decidir o maior números de demandas no menor tempo
possível, mas igualmente são estimulados a tanto, já que a
EC 45/2004 elevou a produtividade a requisito para
projeção funcional na carreira.
Mas nenhuma outra circunstância foi tão
constantemente criticada quanto a lei processual, por
muitos considerada motivo mais do que suficiente para
justificar a morosidade na prestação jurisdicional.
Contudo, ainda que os mais românticos possam afirmar
que as recentes reformas na legislação tiveram sua
importância no contexto histórico do direito processual
brasileiro (o que realmente não se pode negar), as
sucessivas alterações legislativas não foram capazes de
expurgar o estigma da inefetividade do acesso à justiça,
106
Coleção Dinâmica Jurídica

pelo contrário, fica cada vez mais evidente a sua


insuficiência.
Por mais persuasivos que se apresentem os
argumentos da comunidade jurídica, a confiança de que a
situação claudicante em que se encontra o Poder Judiciário
é decorrente dos defeitos existentes na legislação
representa um mito (o da onipotência da norma), conforme já
esposado por Barbosa Moreira (2001, p. 232), ao traçar
algumas considerações acerca do futuro da justiça. Não se
quer dizer com isso, convém frisar, que se pretendemos
enfrentar a situação atual seja prescindível a evolução da
legislação processual, mas apenas que “não serão, como é
intuitivo, as simples reformas das leis de procedimento que
irão tornar realidade, entre nós, as garantias cívicas
fundamentais de acesso à justiça e de efetividade do
processo” (THEORODO JÚNIOR, 2005, p. 69).
O fato é que a debilidade do Poder Judiciário faz
transcender indagações acerca da viabilidade em se manter
a via jurisdicional enquanto meio tradicional de pacificação
social, motivo pelo qual surgem no cenário brasileiro
novas investidas para contornar a aclamada crise da
jurisdição (e do acesso à justiça), sobretudo a aposta em
outros instrumentos de resolução de conflitos, tais como a
conciliação, mediação e arbitragem, que passam a ser
vistos como mecanismos alternativos em razão da atuação
dos tribunais. É justamente sobre esses mecanismos e a
necessidade de compreender sua relevância para a
revolução da justiça que se passa a traçar as considerações
que seguem.

107
Coleção Dinâmica Jurídica

3 A tentativa de fuga à crise: aposta nos mecanismos


alternativos

Encontramo-nos em determinado ponto da jornada


em que muito empenho já foi lançado na tentativa de
superação da(s) crise(s) da jurisdição. Porém, as
tradicionais soluções até então apontadas (investimento na
estrutura judiciária, fiscalização da produtividade dos juízes
e a modificação na legislação processual) não tem sido
capazes de resolver a questão que envolve o acesso à
justiça. Nesse momento, é imprescindível, pois, reconhecer
que continuar insistindo em tais investidas é agravar a
possibilidade de sucumbirmos diante do peso do rochedo,
correndo o risco de retornar à parte baixa da montanha e
verificar que todo o esforço foi em vão.
O velho problema do acesso à justiça reclama o
debate acerca de novas possibilidades ao seu
enfrentamento, fazendo surgir algumas ideias que, com
mais eloquência, também passam a ser analisadas sob o
prisma da solução para a crise. Nesse sentido, verificando
que o Poder Judiciário se tornou incapaz para o trato da
universalidade de demandas jurídicas, observa-se uma
tendência na doutrina brasileira em incentivar a utilização
de outras formas de apreciação de controvérsias,
revitalizando-se métodos que haviam sido relegados ao
segundo plano com a criação do Estado e da jurisdição.
Importa destacar que esses mecanismos não são
novos e tampouco foram criados como possibilidade de
fuga à crise. São instrumentos que tiveram sua atuação
mitigada pela emergência do Poder Judiciário que, durante
108
Coleção Dinâmica Jurídica

muito tempo, representou o tradicional lócus de


pacificação social. Ocorre que o regresso a tais fórmulas se
justifica em decorrência da perda da credibilidade23 que a
sociedade depositou nos tribunais enquanto meio de
acesso à justiça, já que o tempo do processo se tornou um
critério aferidor da qualidade dos órgãos judiciários,
conforme relata Gozaíni (1995, p. 4)
Además, se hace evidente cierta
desconfianza a los hombres de la
justicia que perjudica la imagen y
desacredita la instancia trascendente
que la jurisdicción propone. Hasta se
podría afirmar que el regreso a la
mesa de deliberación de fórmulas
otrora aplicadas son efecto de la
desconfianza mencionada.

Entretanto, a crise da justiça estatal não deve ser


vista como fundamento essencial para que sejam avaliadas
outras formas de resolução de conflitos. Aliás, a própria
denominação meios alternativos já nos remete à falsa ideia
de que tais mecanismos seriam opções meramente
secundárias, convenientes apenas diante da verificação da
inoperância de um suposto meio primário (no caso, a

23 De acordo com a pesquisa realizada pela Escola de Direito de São Paulo da


Fundação Getúlio Vargas (FGV), apenas 29% da população brasileira confia no
Poder Judiciário. Em uma escala de 0 a 10, a nota recebida por este Poder na última
pesquisa divulgada (1º semestre de 2016) foi 4,9 pontos. O relatório Índice de
Confiança na Justiça (ICJBrasil) avalia a confiança da população por meio da
percepção acerca do funcionamento dos tribunais através de critérios como
confiança, rapidez, custo de acesso, facilidade de acesso, independência política,
honestidade, capacidade de solução de conflitos e panorama dos últimos 5 anos.
(Relatório ICJBrasil – 1º semestre / 2016, disponível em
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/17204/Relatorio-
ICJBrasil_1_sem_2016.pdf?sequence=1&isAllowed=y).
109
Coleção Dinâmica Jurídica

jurisdição). Essa é uma ressalva que precisa, desde já, ser


salientada: presumir que a conciliação, mediação e
arbitragem somente são válidas em caso de insuficiência da
justiça estatal é partir da errônea constatação de que tais
mecanismos devem servir como instrumentos de deflação,
ou seja, seriam promovidos como forma de evitar ou
reduzir a quantidade de processos nos órgãos judiciários, o
que até poderia ser um dos efeitos decorrentes de sua
utilização, mas não o fundamento.
De fato, não se detectou, ainda, que o problema
não reside apenas em relação à precariedade da estrutura
judiciária, à atuação dos juízes ou à inadequação da
legislação processual. Na verdade, com a proliferação das
relações sociais “geram-se conflitos de várias naturezas,
exigindo-se, para a sua adequada administração, enfoques
diferentes diante de sua diversidade e especificidade”
(SALES; CHAVES, 2014, p. 393), ou seja, não se pode
olvidar que estamos diante da própria defasagem da
concentração da pacificação social por meio da jurisdição,
como se fosse a melhor ou mesmo a única via possível.
Precisamos atentar para o fato de que a diversidade
das demandas submetidas ao crivo dos tribunais exige dos
órgãos judiciários técnicas distintas para o seu trato, já que
a tradicional fórmula de concentração da resolução de
conflitos pela atuação do Estado-juiz se mostra inadequada
ou, no mínimo, insuficiente no cenário atual. Por isso, com
base nas lições de Calmon (2015, p. 43), é inequívoca a
conclusão de que a relação entre os meios alternativos e a
jurisdição deve ser de complementariedade, “devendo-se
valer do critério da adequação entre a natureza do conflito
e o meio de solução que entenda mais apropriado”,
110
Coleção Dinâmica Jurídica

levando-se em consideração que que as peculiaridades de


cada instrumento fazem com que ele se torne mais apropriado
(ou não) para o trato de determinado caso.
Esses mecanismos (re)aparecem, assim, como
possibilidade para solução dos conflitos sociais, só que por
meio de métodos próprios, distintos do rito previsto para
o desempenho da atuação jurisdicional. São fórmulas de se
chegar à composição da lide que tem em comum o fato de
que “en ellas la decisión del conflicto se obtiene sin la
participación del juez nacional público, o bien con su
presencia, pero sin que intervenga concretamente como
funcionario jurisdicente” (CASTILLO, 2000, p. 73), ou
seja, são meios tipicamente extrajudiciais, mas nada impede
que tenham sua ocorrência dentro do próprio processo
judicial.
Por tais razões, diversas modificações foram
introduzidas na legislação brasileira24 com o nítido escopo
de fomentar a utilização de outros meios de apreciação de
controvérsias que também se mostram aptos - e até
mesmo mais apropriados - ao enfrentamento das questões
levadas aos órgãos judiciários. Mais recentemente, o
Código de Processo Civil trouxe consigo um novo modelo
(multiportas) de pacificação social, consubstanciado na

24 Mais especificamente, foram editadas a Lei nº 13.105/2015, que instituiu o Novo


Código de Processo Civil e, como ele, reforçou a conjugação dos mecanismos
autocompositivos e da arbitragem com o processo judicial; a Lei nº 13.129/2015, que
trouxe algumas inovações à lei de arbitragem já existente, ampliando o seu âmbito de
aplicação; a Lei nº 13.140/2015, que regulamenta a mediação como meio de solução
de controvérsias; sem olvidar da já conhecida Res. nº 125/2010 do CNJ que dispõe
sobre a política judiciária nacional de tratamento adequado de conflitos, com ênfase
na mediação e conciliação.
111
Coleção Dinâmica Jurídica

conjugação de diversos mecanismos, incorporando-os ao


processo judicial.
A ideia fundamental da proposta trazida pelo CPC,
consoante Lessa Neto (2015, p. 428), reside na “superação
da percepção de que existe o julgamento judicial
impositivo e tudo mais são meros meios alternativos, para
a noção de que há um conjunto de meios possíveis para
resolver uma disputa, em igualdade de importância com o
processo civil tradicional”. Assim, ao coadunar esforços
para a resolução de conflitos de acordo com o mecanismo
mais apropriado, a Lei nº 13.105/2015 prestigia os meios
(até então) considerados alternativos de acesso à justiça,
trazendo a discussão a respeito da própria ruptura com o
paradigma hodierno (e equivocado) da jurisdição como a
melhor ou única via possível.
Parte-se, pois, da premissa “de que há vantagens e
desvantagens em cada caso específico ao usar um ou outro
processo de resolução de disputas, sendo que a existência
de várias possibilidades é a situação ideal” (SALES;
SOUSA, 2011, p. 207), devendo o Estado promover tais
mecanismos e colocá-los à disposição da sociedade. No
entanto, mesmo com a previsão de conjugação de diversos
mecanismos como instrumentos de pacificação social não
é preciso muito esforço para perceber que houve nítida
predileção do legislador pelas fórmulas consensuais.
Busca-se, com isso, uma nova realidade, na qual
deverá o Estado promover a solução dos conflitos
valorizando os meios autocompositivos de resolução de
controvérsias (em especial a conciliação e a mediação), em
que o cidadão será o responsável pela construção da
112
Coleção Dinâmica Jurídica

decisão mais oportuna à lide na qual se encontra


envolvido, medida “sem a qual não poderia haver uma
verdadeira reforma do sistema de prestação de justiça”
(CÂMARA, 2005, p.18). Tais métodos passarão a fazer
parte da rotina dos tribunais e deverão ser estimulados por
todos aqueles sujeitos que participam do processo, criando
um sistema de simbiose com a jurisdição em prol da
pacificação social. É, a partir daqui, que se iniciam os
passos para mais uma tentativa de alcançar o topo da
montanha.

4 Em busca de um novo paradigma: a justiça consensual e


os desafios a serem enfrentados

O Código de Processo Civil traz consigo a clara


proposta de introdução de um modelo diverso de
realização da justiça: a ruptura da tradicional concentração
da resolução dos conflitos pela decisão impositiva do
Estado-juiz por um sistema de atuação conjunta dos
diversos mecanismos de apreciação de controvérsias
através da incorporação (e sobretudo o estímulo) dos
meios autocompositivos de pacificação social ao processo
judicial. Trata-se, de acordo com Bolzan de Morais e
Spengler (2012, p. 120), da própria (re)construção da
jurisdição pelo prisma da influência dos mecanismos
consensuais, a “jurisconstrução”.
É cediço que a aposta na justiça consensual é
decorrência, de certa maneira, da perda da credibilidade
que a sociedade tem no sistema de justiça atual,
113
Coleção Dinâmica Jurídica

principalmente em relação à inacessibilidade, morosidade e


custo. Não se deve, contudo, pelas razões já ressaltadas,
pretender a promoção das vias conciliativas apenas como
saída à crise e, muito menos, no intuito de substituição da
jurisdição. Na verdade, “somente se forem entendidas
boas em si – e não como boas por referência a um sistema
que não dá resposta atempada aos problemas dos cidadãos
– é que tais formas de resolução de conflitos poderão
granjear confiança e aceitação” (COSTA E SILVA, 2009,
p. 36). Frise-se, é preciso compreender a adequabilidade de
cada mecanismo a partir da diversidade dos conflitos que
surgem na sociedade contemporânea, exigindo que haja
uma relação de complementariedade entre eles.
É a partir dessa convicção que Ada Pellegrini (2008,
p. 2-4) aponta alguns fundamentos à adoção das vias
conciliativas: fundamento funcional, consubstanciado na
racionalização da distribuição da justiça com a consequente
desobstrução dos tribunais; fundamento social, que
corresponde à aptidão dos mecanismos consensuais para
resolução da lide sociológica, o que nem sempre é
alcançado pela sentença judicial; e o fundamento político,
haja vista o empoderamento dos indivíduos na gestão dos
seus conflitos, realçando a participação popular na
administração da justiça.
O fato é que, mais uma vez, nos encontramos
diante de uma situação em que é depositada na reforma
legislativa a esperança na transformação da realidade,
como se a mudança da lei fosse a panaceia para as
vicissitudes da justiça brasileira. Dito de outra forma, ainda
que se proponha um modelo de pacificação social
fundamentado na atuação harmoniosa dos diversos
114
Coleção Dinâmica Jurídica

mecanismos de resolução (com ênfase nos


autocompositivos) de acordo com a adequação de cada
instrumento às peculiaridades da relação jurídica apreciada,
o advento do Código de Processo Civil e de quaisquer
outras leis não pode ser considerado medida suficiente
para a implementação exitosa dessa nova concepção de
justiça baseada no estímulo à solução consensual dos
conflitos.
É preciso reconhecer que, quanto mais intrincada se
mostra uma questão, maior será o esforço para que uma
alternativa válida e real seja alcançada. No caso brasileiro,
especificamente, no intuito de se evitar - outra vez - tentar
resolver o problema atacando apenas os seus efeitos (os
elevados índices de processos nos tribunais e a
morosidade), é imprescindível se ter em mente que a
proposta de realização de uma nova face para a justiça
enfrenta alguns desafios que, para efeitos do presente
artigo, serão analisados em três vertentes: de ordem
estrutural, educacional e cultural.
Com a proposta de estimular a solução consentida,
a reforma na legislação processual implicou na criação de
uma audiência de conciliação ou mediação já no início do
processo judicial, levando-se em consideração que “a
conciliação é a ferramenta mais adequada para os conflitos
puramente patrimoniais, ao passo que a mediação é
indicada nas hipóteses em que se deseje preservar ou
restaurar vínculos” (PINHO, 2015, p. 72). Ocorre que a
realização dessas audiências não deverá ocorrer nas varas
judiciárias, pois não contemplam o ambiente mais
oportuno para que as partes se sintam confortáveis e

115
Coleção Dinâmica Jurídica

estimuladas a construir uma decisão amigável, estrutura da


qual não dispõem os tribunais brasileiros.
Por isso, será indispensável a criação de centros
judiciários de solução consensual de conflitos25 em espaço
próprio e com o devido aparelhamento, a contratação de
servidores para atuar nesse segmento e, principalmente, a
formação de novos profissionais para conduzir as sessões
(conciliador e mediador). Trata-se de uma questão que vai
além da mera reforma legislativa e da nobre intenção em
mudar, o caso pede enfrentar o problema pela perspectiva
da crise financeira que afeta o Estado e dificulta a
destinação de investimentos ao Poder Judiciário (desafio
estrutural).
Entretanto, a carência da estrutura judiciária não
pode ser considerada o único obstáculo a ser superado
para que esse novo paradigma produza os efeitos
esperados. A principal justificativa para a falta de utilização
mais intensa dos mecanismos alternativos, de acordo com
Watanabe (2008, p. 6), “está na formação acadêmica dos
nossos operadores de Direito, que é voltada,
fundamentalmente, para a solução contenciosa e
adjudicada dos conflitos de interesses”, como se esta fosse
a melhor ou até mesmo a forma exclusiva de alcançar a
pacificação social.

25A Res. 125 do CNJ estabelece que os tribunais deverão criar Núcleos Permanentes
de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (art. 7º). O Novo CPC prevê que
os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos,
responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo
desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a
autocomposição (art. 165), regra também prevista na Lei de Mediação (art. 24).
116
Coleção Dinâmica Jurídica

Realmente, consoante ressaltado por Andrighi


(2012, p. 83), a prática nos mostra que “no Brasil, as
Faculdades de Direito, durante cinco anos, ensinam aos
seus alunos exclusivamente o processo adversarial”. Os
jovens acadêmicos são inebriados com conceitos e ideias
que, equivocadamente, restringem o Direito processual
civil ao tradicional estudo das normas que regem o
processo jurisdicional pela condução impositiva do
Estado-juiz, cultivando a falsa ideia de que somente a
solução judicial seria legítima e oportuna.
Essa concepção somente é contrastada quando se
coloca para os discentes que a solução para o conflito
também pode ser alcançada através da conciliação,
mediação ou arbitragem, disciplina que, geralmente, não
toma mais do que poucas horas do curso de Direito, lapso
temporal exíguo para que se possa aprender as
características e relevância de tais instrumentos. Ademais,
ainda é muito comum que os próprios professores
perseverem no ensino desses mecanismos como sendo
meras alternativas ao Poder Judiciário, criando nos alunos
a convicção deturpada de que sua utilização seria apenas
em caso de constatada a crise jurisdicional, reforçando a
ideia de um meio principal e as opções secundárias.
Ora, mas não se pode criticar o ensino jurídico sem
que, pelo menos, façamos uma análise mais delineada
acerca do seu objeto de estudo: o próprio direito. É
perceptível que há uma inconsistência no modo de criação
do direito que, ainda apegado a valores da dogmática
jurídica tradicional, não consegue desempenhar o seu papel
de instrumento transformador da realidade social, pois
insiste em trabalhar com perspectivas negadoras da
117
Coleção Dinâmica Jurídica

complexidade das relações intersubjetivas. As leis e os


códigos brasileiros ainda estão adaptados para disciplinar
conflitos de uma época passada, fazendo com que boa
parte do ordenamento jurídico pátrio esteja desconexo da
realidade das demandas atuais, cada vez mais genéricas e
intrincadas.
Predomina, ainda, a errônea concepção de que a
diversidade dos fatos pode ser enclausurada na norma,
como se a ordem jurídica pudesse responder a todos os
eventos e conflitos que venham a irromper, o que,
logicamente, aponta para a insuficiência da lei na disciplina
da realidade social atual. Precisamos de um direito
cosmopolita, que dialogue e agregue valores e
conhecimentos de outras áreas (antropologia, sociologia,
filosofia, psicologia, dentre outros), capazes de libertar o
aluno (e por que não os professores?) das amarras que
impossibilitam contemplar os diversos enfoques de
apreciação dos mais complexos e diversificados conflitos
surgidos na sociedade contemporânea.
Nesse sentido, vê-se um desafio educacional que se
estende até mesmo à própria formação jurídica no Brasil
(XIMENES, 2015, p. 65), e isso pressupõe a reformulação
dos sistemas de ensino com o fito de aperfeiçoar os
profissionais para as técnicas autocompositivas de
apreciação de conflitos. Portanto, coadunamos da visão de
Boaventura Santos (2011, p. 93) no sentido de que “a
revolução democrática da justiça deve passar pela
construção de um novo campo de trabalho e estudos
sobre a crise e a reforma do ensino do direito”, ou seja, diz
respeito a reconhecer os novos contornos e tendências do

118
Coleção Dinâmica Jurídica

processo civil brasileiro em dar mais eloquência aos


mecanismos consensuais de resolução de conflitos.
Ainda assim, de todas as barreiras a serem
enfrentadas para a implementação efetiva dos meios
consensuais no Brasil, está a que reclama a ruptura de um
modelo: a de que a jurisdição é o meio principal de
resolução de conflitos e as demais modalidades
(conciliação, mediação e arbitragem) são meras alternativas
de pacificação social. Trata-se de uma concepção um tanto
quanto maniqueísta e que ainda se encontra arraigada no
imaginário dos jurisdicionados e dos profissionais jurídicos
em razão da cultura de intervenção do Estado no conflito
erigida na modernidade, atribuindo-se ao ente estatal o
monopólio da administração da justiça através dos órgãos
judiciários.
Essa visão provocou não apenas a concentração das
demandas jurídicas no Poder Judiciário – e hoje representa
um dos principais motivos da defasagem estrutural –
como, lastimavelmente, contribui(u) para uma verdadeira
postura de “apatia social na resolução de conflitos”
(SALES; CHAVES, 2014, p. 396), já que o cidadão
acomodou-se a transferir ao Estado-juiz a responsabilidade
na condução e solução dos problemas que surgem, na
expectativa de que seu direito seja reconhecido através da
sentença judicial.
Por isso, a mudança de paradigma depende da
superação, por parte da sociedade, da equivocada premissa
de que somente o juiz pode resolver o litígio, ainda mais
sob a perspectiva de que a decisão judicial pode até
resolver a relação jurídica, mas nem sempre é capaz de
119
Coleção Dinâmica Jurídica

solucionar a questão social subjacente. É o caso, pois, de


ser construída uma nova visão da justiça consubstanciada
na “formação de uma cultura de pacificação, em oposição
à cultura hoje existente em torno da necessidade de uma
decisão judicial para que a lide possa ser resolvida”
(PINHO, 2011, p. 289).
Além do mais, promover a utilização de
mecanismos consensuais de apreciação de controvérsias
subentende uma mudança de postura do próprio indivíduo
no sentido de que passe a ver na autocomposição a
possibilidade de protagonismo na gestão dos seus
conflitos. Assim, a solução que antes era adjudicada por
terceiro (quase sempre o Estado-juiz), passa a ser
construída pelos envolvidos a partir do diálogo, através do
qual os litigantes alcançam a solução convergente aos seus
interesses, já que “pode-se inserir no acordo um elemento
de ‘sucesso’ para ambas as partes” (ANDREWS, 2012, p.
352), afastando a resolução traumática da lide por meio da
imposição da decisão de alguém alheio à relação.
Entretanto, a implementação exitosa desse novo
modelo de justiça pressupõe, dentre outros fatores, a
conscientização da população acerca das vantagens
propiciadas pela solução consensual, o que, para Watanabe
(2011, p. 385), exige uma política de estímulo à superação
da cultura da sentença
Em suma, para que os meios
alternativos de resolução de
controvérsias, em especial dos
meios consensuais - mediação e
conciliação - sejam corretamente
utilizados e constituam efetivamente
120
Coleção Dinâmica Jurídica

um modo de assegurar aos


jurisdicionados um verdadeiro e
adequado acesso à justiça e à ordem
jurídica justa, há a necessidade de
estabelecimento de uma política
pública de tratamento adequado dos
conflitos de interesses, que dê um
mínimo de organicidade, qualidade e
controle à sua prática.

Dessa forma, não basta que a lei preveja a


realização de audiências de conciliação e/ou mediação já
no início do processo judicial, como justificativa de
estimular uma possível solução dialogada pelas partes. A
imposição de tais sessões destituída de políticas públicas de
tratamento adequado dos conflitos somente contribuirá
para que os índices de êxito nesses casos sejam
insatisfatórios, frustrando a expectativa que se deposita
nos meios consensuais de pacificação social. A medida
impõe cultivar a ideia a partir da conscientização da
própria sociedade na gestão dos seus conflitos.

5 Considerações finais

Sem a presunção de que as considerações aqui tidas


como derradeiras sejam alçadas ao patamar de respostas
à(s) crise(s) da jurisdição - até porque tal desiderato
demanda uma análise bem mais aprofundada do que as
breves reflexões acerca da temática propostas no vertente
trabalho - é preciso ter em mente que estamos diante de
121
Coleção Dinâmica Jurídica

uma transição de paradigmas da justiça brasileira, na qual


se propõe o estímulo à utilização dos meios consensuais,
até então vistos apenas como meras alternativas. Relevar
tal premissa é incorrer no erro de formular ilações
precipitadas, tornando mais árdua a caminhada até o topo
da montanha.
Se a história nos mostra algo (e, de fato, ela mostra),
é que por se tratar de um (re)pensar do acesso à justiça no
Brasil, essa ideia requer mais do que a reforma na
legislação processual, ela pressupõe que alguns dogmas
sejam superados, dentre os quais a simplória crença de que
a jurisdição é o meio tradicional para pacificação social,
cabendo aos demais mecanismos uma atuação apenas em
segundo plano, não por serem bons em si, mas apenas em
razão da insuficiência do Estado-juiz no trato das
demandas que são propostas ao Poder Judiciário.
Essa nova face da justiça depende do entendimento
prévio de que conciliação, mediação e arbitragem deixem
de ser mecanismos alternativos e passem a ser vistos – ao
lado da jurisdição - como instrumentos necessários e
adequados à resolução dos conflitos que se apresentam,
cada vez mais complexos e diversificados. Para tanto,
algumas questões precisam ser enfrentadas, obstáculos que
envolvem a necessidade de criação de espaços e
profissionais próprios (desafio estrutural), a reformulação
do ensino jurídico (desafio educacional) e, principalmente,
políticas públicas de conscientização e estímulo à utilização
dos mecanismos consensuais de pacificação social (desafio
cultural).

122
Coleção Dinâmica Jurídica

Nos propusemos a escalar - mais uma vez - a


mesma montanha, cientes de que enfrentaremos desafios
já conhecidos durante o longo percurso. Encarar essa
árdua caminhada até o topo pressupõe estarmos convictos
de que a rocha representa o conceito prévio (ou
preconceito?) que contemos em relação à atuação dos
mecanismos alternativos, tornando-se tão mais pesada
quanto é nossa insistência em considerar a jurisdição o
único ou o principal meio de acesso à justiça e de
pacificação social. É somente a partir destas constatações
que poderemos, então, enfrentar nossa jornada morro
acima na esperança de alcançar um patamar mais
ensolarado para a justiça brasileira. Sísifo não precisa mais
ser considerado o herói do absurdo.

123
Coleção Dinâmica Jurídica

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Coleção Dinâmica Jurídica

128
Coleção Dinâmica Jurídica

SOLUÇÕES ALTERNATIVAS DE CONFLITOS E


O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL –
MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO

FELIPE DE ALBUQUERQUE RODRIGUES PEREIRA26

RESUMO
O estudo realizado parte do pressuposto de que sendo o
ser humano gregário por natureza, torna-se inerente a sua
existência o surgimento de conflitos que necessitam ser
solucionados ou ao menos controlados a fim de permitir
sua convivência. Nesse desiderato, busca-se demonstrar
que o surgimento do Estado como responsável pelo
equilíbrio social, em especial por meio da Jurisdição, não
tem demonstrado plena eficácia, o que enseja a busca de
meios alternativos para solução dos conflitos. Desta forma,
destaca-se que tal mudança de paradigma que possui
origem remota, se consolida com o advento do Código de
Processo Civil vigente que estabelece como um de seus
princípios a busca pela solução consensual dos conflitos,
rompendo com o pensamento contencioso então
prevalente no Código de Processo Civil revogado.
Destaca-se, ainda, o tratamento aos meios alternativos de
solução de conflitos, em especial a mediação e conciliação,
sendo expostos seus conceitos e principais características
para melhor compreensão.

26 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte


(UFRN). Pós-graduado em especialização pela Universidade Potiguar (Unp).
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
farpereira@yahoo.com.br.
129
Coleção Dinâmica Jurídica

PALAVRAS-CHAVE. Acesso à Justiça. Processo Civil.


Mediação. Conciliação.

ABSTRACT
The study made part of the assumption that being the
gregarious human being by nature, it becomes inherent in
their existence the emergence of conflicts that need to be
solved or at least controlled in order to allow the
coexistence in society. In this desideratum, it is sought to
demonstrate that the emergence of the State as responsible
for social balance, especially through the Jurisdiction, has
not demonstrated full effectiveness, which leads to the
search for alternative means to solve conflicts. In this way,
it is emphasized that such a paradigm shift that has a
remote origin, is consolidated with the advent of the Code
of Civil Procedure in force, which in addition to
establishing as one of its principles the search for a
consensual solution of conflicts, breaking with contentious
thinking Then prevalent in the revoked Code of Civil
Procedure. Special attention is also given to alternative
means of conflict resolution, with emphasis on mediation
and conciliation, and its concepts and main characteristics
are exposed for a better understanding.

KEY WORDS: Access to justice. Civil lawsuit. Mediation.


Conciliation.

INTRODUÇÃO

O aumento populacional e o incremento das


relações sociais, associado a um consumo de massa, vem
causando um estrangulamento na capacidade do Estado-
130
Coleção Dinâmica Jurídica

juiz em solucionar em tempo todos os conflitos a ele


levados, mesmo diante do esforço na apresentação de
meios para célere prestação da tutela jurisdicional buscada.
Associado a tal situação, também se constata um
incremento nos investimentos financeiros, os quais não se
mostram suficientes à solução do problema. Assim, tem-se
buscado meios alternativos para solução dos conflitos
sociais, cujos efeitos alcancem não só os processos em si,
mas também promova um dialogo entre as partes a fim de
garantir uma maior estabilidade na relação social.
Corroborando tal entendimento, o Código de Processo
Civil vigente não apenas aponta a solução consensual com
um de seus fundamentos, mas trata especificamente de
dois mecanismos de autocomposição – conciliação e
mediação, dedicando-lhes especial atenção, estabelecendo
seus princípios básicos e procedimentos gerais para sua
implementação, que pode se dar judicial ou extrajudicial.

DA COMPLEXIDADE DAS RELAÇÕES


INTERPESSOAIS

Ainda que inegável a individualidade do ser


humano, também não parece ser menos verdade que ele é
um ser que tende a viver em sociedade, um ser sociável, o
que muitas vezes já ocorre desde sua origem (família,
grupos sociais, nação etc), seja comungando anseios,
objetivos, dúvidas ou questionamentos dentro de uma
coletividade, seja buscando em conjunto o que sozinho
dificilmente alcançaria, desde necessidades básicas para sua
sobrevivência ou na busca de novos patamares da
evolução decorrentes da união de esforços.

131
Coleção Dinâmica Jurídica

Sobre referido fenômeno da sociabilidade, é


possível extrair duas características particulares, quais
sejam, que o ser humano é social e político. Social na
medida em que há uma natural busca da vida em
comunidade; político quando a manutenção da
convivência está condicionada a observância de certas
condutas, decorrente da relação entre os participantes.
Desta forma, sendo o ser humano social e político,
vez que há uma tendência natural à convivência com seu
semelhante, passa então a buscar estabilidade nessa relação
por meio da aquisição de direitos e assunção de
obrigações, formando-se a polis (BETIOLI, 2013, p. 40).
Assim, considerando que a vida em comunidade
não prescinde do estabelecimento de normas de
coexistência, é possível afirmar que o “fundamento das
normas está na exigência da natureza humana de viver em sociedade”
(DINIZ, 2014, p. 361).
Ora, se num aspecto individual é possível afirmar
que o ser humano vive para si, no aspecto social deve-se
buscar uma relação para o outro (VASCONCELOS, 2006,
p. 12), na medida em que a vida em sociedade estabelece
limites mútuos necessários à convivência.
Nesse desiderato, é o direito27 imprescindível para o
estabelecimento de regras para convivência e estabilização
das relações, assim como para a própria sociedade, motivo
pelo qual não haver sociedade sem direito (Ubi societas, ibi
jus).
Contudo, é possível afirmar que o direito ao
codificar as relações existentes não tem a capacidade de

27Deve ser compreendido sob um aspecto histórico, sendo detentor de um caráter


de regulador das relações humanas.
132
Coleção Dinâmica Jurídica

inovar a realidade, uma vez que está tem a possibilidade de


revitaliza-lo, levando-o a um novo patamar a fim de rever
as relações existentes a medida que tenta regulamentá-las
de forma a evitar uma conflituosidade excessiva nas
relações em sociedade.

NOÇOES SOBRE A TEORIA DO CONFLITO

Sendo o homem gregário por natureza, uma das


características marcantes do convívio social está na
constatação de posições diferentes28, muitas vezes
decorrentes da limitação de recursos para satisfação da
necessidade de todos ou em função da necessidade de
prevalência de interesses próprios em detrimento de
posições alheias, que em razão da ausência de meios
eficientes a permitir a coexistência pode levar a um
desequilíbrio capaz de ruir a própria sociedade, ainda mais
quando é possível afirmar que os conflitos ultrapassam os
interesses individuais, passando a alcançar interesses
coletivos de determinadas pessoas ou de forma a alcançar
tamanha quantidade de pessoas que não permite mais a sua
determinação.
Desta forma, é possível indicar que os elementos
necessários para caracterização do conflito consistem
numa relação interpessoal, na identificação do problema
objetivo e no processo formado pelos interesses e
necessidades contrariadas.
Ademais, os conflitos podem se dar sob a ótica de
valores (morais, ideológicos, religiosos etc), de informação

28 Parece existir razão àqueles que afirmam ser impossível uma relação interpessoal
plenamente consensual (VASCONCELOS, 2015, p. 21).
133
Coleção Dinâmica Jurídica

(distorcidas, incompletas etc), estruturais (circunstâncias


sociais, polítias etc) e de interesses (bens e direitos)
(VASCONCELOS, 2015, p. 25).
Em razão da amplitude dos objetos em conflito,
ainda mais diante do caráter genérico de tal terminologia,
costuma-se apontar algumas diferenças entre conflitos,
disputas e lide.
A primeira expressão está relacionada com
situações de controvérsia de natureza ampla, onde não é
possível individualizar uma situação de conflito específica,
característica esta ínsita ao termo disputa. Por sua vez, a
lide, na clássica lição de Fancesco Carnelutti, verifica-se na
identificação de um conflito de interesses qualificado por
uma pretensão resistida (TARTUCE, 2016, p. 4).
Assim, partindo de tal premissa faz-se necessário o
estabelecimento de mecanismos capazes de permitir a
coexistência de pensamentos e ideias diferentes,
impedindo que posicionamentos diversos levem a
confrontos e violências.

DA NECESSIDADE DE MECANISMOS PARA


OLUÇÃO DOS CONFLITOS

Desde os primórdios foi constatada a


imprescindibilidade de um órgão superior aos interessados
e, ainda, imparcial, sendo possível dizer que a partir de
então surgem as primeiras noções de Estado que, por sua
vez, pela jurisdição, buscam a pacificação social por meio
do estabelecimento de normas que vão guiar os
interessados por meio de um técnica de solução imperativa
de conflitos.

134
Coleção Dinâmica Jurídica

Neste ponto, é válido esclarecer que não se busca


apresentar o desenvolvimento das primeiras noções de
Estado até o modelo vigente, em especial sob o aspecto da
jurisdição, até porque se tornaria imprescindível uma longa
digressão histórica, cujo conteúdo não é objeto do
presente artigo, ainda mais porque tal esforço por si só já é
merecedor de atenção especial, motivo pelo qual razoável
dispensar tal apanhado histórico.
Assim, volvendo-se a um período moderno,
constata-se que o Estado procura solucionar os conflitos
existentes por meio da jurisdição, todavia ao longo dos
tempos parece que tal solução não vem alcançando a
contento os objetivos almejados.
Sem dúvida, a partir da superação do absolutismo e
surgimento do Estado como meio de garantir e assegurar
as liberdades individuais, bem como, modernamente, a sua
consolidação e o estabelecimento de um ordenamento
apto a gerir as relações sociais, busca-se a estabilidade
social.
Em que pese tenha o Estado, por meio da
jurisdição, assumido o papel de meio pelo qual é possível
alcançar as soluções necessárias, observa-se que com o
incremento das relações sociais e, consequentemente, o
aumento dos conflitos interpessoais cujas partes não foram
capazes de solucionar, seja pela real incapacidade ou
ausência de interesse na busca de soluções, verificou-se um
considerável incremento na busca do Estado-juiz, muitas
vezes apontado como único meio a solução do conflito
existente, ainda mais quando se observou o intencional
afastamentos dos meios extrajudiciais de solução, muitas
vezes decorrente da sua descrença e, por outro lado, numa

135
Coleção Dinâmica Jurídica

mensagem equivocada de que o Judiciário seria o único


meio a garantir uma decisão justa.
Em que pese tal compreensão tenha sido entendida
como acertada, constatou-se ao longo do tempo que a
mesma carecia de fundamento para sustentar tal axioma
até então prevalente, verificando, por conseguinte, a
necessidade de aprimoramento de mecanismos para a
rápida solução almejada do conflito.
Desta forma, verifica-se uma crescente preocupação
dos meios de acesso à justiça, que inicialmente um
movimento de garantia de acesso aos vulneráveis
economicamente, partindo-se para a adoção de
representação de interesses difusos e, em terceiro lugar, o
estabelecimento de mecanismos aptos a prevenir e
solucionar as disputas em sociedade.
Válido destacar que a compreensão outrora
prevalente de um modelo contencioso, fundamento na
oposição de interesses em que os envolvidos são de
imediato postos em lados diversos, sendo designados de
partes e participantes de um sistema cuja solução final se
dá na ideia de vencido e vencedor, situação que não leva a
composição do litígio como outrora defendido, vez que
muitas vezes persiste uma “litigiosidade” remanescente.
Nesse sentido, é possível aferir uma crescente
judicialização das relações sociais, onde se confundindo
com o direito ao acesso à Justiça tem levado a uma
exacerbação nos conflitos que muitas vezes podiam ser
solucionados entre os próprios interessados, levando a
compreensão de que “partes” do processo nada mais são
do que adversários ferrenhos, cuja solução final se dará por
meio de uma decisão judicial que indicará aquele que está
certo e, por outro lado, aquele que está errado.
136
Coleção Dinâmica Jurídica

Ademais, um número crescentes de demandas tem


levado ao esgotamento da capacidade do Estado-juiz em
atender os anseios sociais, levando-a a descrença em razão
da ineficiência em apresentar solução à demanda posta,
mesmo vindo ao longo do tempo na busca e
materialização de meios de soluções em massa, com
decisões em bloco, massificadas, cuja aplicação as
peculiaridades do caso muitas vezes se dão de forma
tímida, causando questionamentos quanto à sua qualidade
e, com certeza, dúvida quanto à ideia de justiça junto aos
jurisdicionados.
Igualmente, a multiplicação exacerbada de
demandas associada a reduzida capacidade de solução de
conflitos, levou a tornar-se mera abstração a noção do que
se consubstancia em razoável duração do processo, ainda
que não se possa negar o esforço crescente do Poder
Judiciário em otimizar a prestação jurisdicional, o que de
fato não vem ocorrendo.
Constata-se, ainda, o elevado custo para
manutenção de estrutura cujo crescimento por si só não se
vem mostrando suficiente para apresentar solução
definitiva as situações postas para apreciação.
Diante de tal situação e na busca de meios
alternativos à judicialização, constatou-se um incremento
na busca de soluções, podendo-se dar destaque ao
desenvolvimento da tutela antecipada, da tutela inibitória e
da tutela específica, ocorridas ainda durante a vigência do
Código de Processo Civil revogado.
Igualmente, não se pode olvidar de destacar a
Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça
que, embora tenha nível de norma administrativa, instituiu
e ainda rege a política nacional dos meios adequados de
137
Coleção Dinâmica Jurídica

solução de conflitos, bem como a Lei de Mediação


(13.140/2015).
Ressalte-se, todavia, que a busca por mecanismos
de soluções alternativas ao tradicional meio judicial não
constitui total novidade com o Código de Processo Civil
vigente, vez que a adoção por mecanismos de solução em
substituição a intervenção judicial remonta há muito
tempo, contudo como marco limite é possível destacar
reformas do ano 2000, em que pese muitas vezes
influenciado de mudanças surgidas na década dos anos 70
nos Estados Unidos por meio da previsão das Alternative
Dispute Resolution (ADR’s).
Destaque que a busca por soluções alternativas à
formação da demanda processual não se restringiu aos
Estados Unidos, uma vez que também n década nos anos
de 1970, mais precisamente através do Decreto 38, de 20 de
março, a França estruturou seus sistema de conciliação
(TASSINARI, 2016, p. 311).

O SURGIMENTO DO ESTADO
CONSTITUCIONAL E SUA INFLUÊNCIA NO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Com a passagem do Estado legislativo para o Estado


Constitucional (MITIDIERO, 2016, p. 251) e o
reconhecimento da força normativa das normas
constitucionais, sejam elas regras, princípios ou postulados,
cuja observância deve ocorrer desde a fase de elaboração
até a aplicação de todo o sistema normativo, seja nacional

138
Coleção Dinâmica Jurídica

ou estrangeiro29, passou-se a reconhecer a


constitucionalização do direito processual como uma das
características da nova fase metodológica processual.
O próprio Código de Processo Civil de 2015 deixa
expressa a postura teórica do denominado direito
processual constitucional, estabelecendo já em seu art. 1º:
O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os
valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição da
República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste
Código.
De fato, inova referido Código ao estabelecer já
eu seus artigos balizas que entende serem fundamentais
para compreensão do processo civil, estabelecendo já em
seu art. 1º que a jurisdição não pode mais ser colocada como centro
da teoria do processo civil. Insistir nessa postura revela uma visão um
tanto quanto unilateral do fenômeno processual, sobre ignorar a
dimensão essencialmente participativa que a democracia logrou
alcançar na teoria do direito constitucional hodierno.
(MITIDIERO, 2015, p. 45).
Por sua vez, o art. 3º30 do Código de Processo
Civil assegura o acesso à justiça na perspectivas das três
“ondas”31 preconizadas por Mauro Cappelletti e Brian

29 A Constituição Federal de 1988 não estabeleceu um sistema fechado, uma vez que
a própria constituição possui um conceito materialmente aberto de direitos
fundamentais ao permitir o reconhecimento de tais direitos decorrentes de tratados
internacionais.
30 Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§ 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei.


§ 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de
conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e
membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
31 Complementada pelo trabalho de um dos integrantes da coordenação do Projeto

de Acesso à Justiça de Florença, juntamente com Mauro Cappelletti, Kim


139
Coleção Dinâmica Jurídica

Garth, ao estabelecer novos meios de solução de conflitos,


denominado de sistema multiportas de resolução de
conflitos, com o estabelecimento de meios alternativos –
arbitragem, mediação e conciliação – de solução de
conflitos judiciais e extrajudiciais sem comprometer a
inafastabilidade da jurisdição.
Corroborando tal mudança de paradigma,
observa-se que referida norma vai além da previsão de
meios alternativos de solução de conflitos, vez que
também regulamenta a mediação e a conciliação (arts. 165
a 175), impõe a autocomposição antes mesmo do
oferecimento de defesa (arts. 334 e 695), permite a
homologação de acordo extrajudicial, inclusive com a
possibilidade de homologação de acordo judicial de
matéria estranha ao processo (art. 515).
Nesse desiderato, a mudança de paradigma de
processo civil, que abandona a ideia outrora prevalente de
que para todo ofensa a direito existiria uma ação
respectiva, passando a apoiar a forma consensual de
solução de conflitos, buscando, assim, uma maior
pacificação social na medida em que se afasta da
litigiosidade outrora prevalente.

Economides propõe ainda uma quarta “onda”, quais sejam, prestação de serviços
jurídicos aos necessitados, a existência de direitos difusos a serem albergados pelo
processo, a criação de novas formas de acesso aos mecanismos jurídicos e, sob uma
ótica dos aplicadores do direito, uma formação no sentido de apresentar-lhes
também a necessidade de garantir àqueles que pleiteiam causas mais simples a devida
atenção.
140
Coleção Dinâmica Jurídica

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO COMO MEIOS


ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

Em regra, a solução dos conflitos pode se dar por


heterocomposição, que ocorrerá por meio de uma decisão
apresentada por pessoa diversa dos interessados, ou por
autocomposição, na qual não haverá necessariamente um
decisão como ato isolado, vez que a solução dos conflitos
se dará pelas próprias partes, cujo diálogo restara facilitado
por um terceiro, de modo que as partes cheguem a um
acordo.
Como espécies de heterocomposição, temos a
arbitragem e o Poder Judiciário. Por sua vez, em relação a
autocomposição destaca-se para fins do presente artigo a
conciliação e a mediação.
A conciliação como método de solução de conflito
se dá por intermédio de terceiro facilitador que busca, após
a apresentação das propostas dos participantes, a
celebração de um acordo, sugerindo, inclusive, opções para
solução do conflito. Neste ponto, ainda que presente um
terceiro, é válido destacar que o mesmo não apresenta a
solução do problema, como acontece com a mediação,
uma vez que o objetivo principal é a busca de uma solução
negocial do conflito pelas partes.
Destaque-se que o terceiro conciliador tem uma
maior atuação no procedimento de autocomposição uma
vez que pode sugerir uma solução, situação que não se
confunde com imposição.
Por sua vez, a mediação também objetiva a solução
do conflito por meio da intervenção de um terceiro
facilitador, que tem por escopo promover um diálogo

141
Coleção Dinâmica Jurídica

entre as partes a fim de que estas alcancem uma solução


final, não propondo uma solução aos interessados.
Desta forma, observa-se que o escopo principal
do mediador não é necessariamente o alcance de uma
solução, mas sim a restauração do diálogo entre as partes,
o que denota a sua prevalência quando os interessados
tenham um relacionamento anterior, o que não obsta,
ressalte-se, que a mediação também possa ocorrer a fim de
promover um diálogo independentemente de sua prévia
existência.
Assim, apesar de suas diferenças, é possível
indicar como pontos comuns à mediação e à conciliação a
participação de terceiro imparcial, a promoção do diálogo
entre os interessados, a busca de uma solução consensual e
a autonomia dos mesmos na elaboração das soluções.
Ressalte-se, que a diferenciação entre mediação e
conciliação está prevista no Código de Processo Civil,
separando-as inclusive quanto ao tipo de conflito indicado,
bem com seus princípios regedores:
Art. 165. Os tribunais criarão centros
judiciários de solução consensual de
conflitos, responsáveis pela realização de
sessões e audiências de conciliação e
mediação e pelo desenvolvimento de
programas destinados a auxiliar, orientar e
estimular a autocomposição.
§ 1o A composição e a organização dos
centros serão definidas pelo respectivo
tribunal, observadas as normas do
Conselho Nacional de Justiça.
§ 2o O conciliador, que atuará
preferencialmente nos casos em que não
houver vínculo anterior entre as partes,
poderá sugerir soluções para o litígio,

142
Coleção Dinâmica Jurídica

sendo vedada a utilização de qualquer tipo


de constrangimento ou intimidação para
que as partes conciliem.
§ 3o O mediador, que atuará
preferencialmente nos casos em que
houver vínculo anterior entre as partes,
auxiliará aos interessados a compreender as
questões e os interesses em conflito, de
modo que eles possam, pelo
restabelecimento da comunicação,
identificar, por si próprios, soluções
consensuais que gerem benefícios mútuos.
Art. 166. A conciliação e a mediação são
informadas pelos princípios da
independência, da imparcialidade, da
autonomia da vontade, da
confidencialidade, da oralidade, da
informalidade e da decisão informada.
§ 1o A confidencialidade estende-se a todas
as informações produzidas no curso do
procedimento, cujo teor não poderá ser
utilizado para fim diverso daquele previsto
por expressa deliberação das partes.
§ 2o Em razão do dever de sigilo, inerente
às suas funções, o conciliador e o
mediador, assim como os membros de
suas equipes, não poderão divulgar ou
depor acerca de fatos ou elementos
oriundos da conciliação ou da mediação.
§ 3o Admite-se a aplicação de técnicas
negociais, com o objetivo de proporcionar
ambiente favorável à autocomposição.
§ 4o A mediação e a conciliação serão
regidas conforme a livre autonomia dos
interessados, inclusive no que diz respeito
à definição das regras procedimentais.

143
Coleção Dinâmica Jurídica

Em que pese tal distinção, não se pode olvidar que


em outros Países não se observa a divergência entre tais
institutos, na medida em que a distinção acima nasceu da
doutrina e da prática tipicamente brasileiras. Nos Estados Unidos
da América, a conciliação, como técnica de solução de conflitos, vem
absorvida pela mediação. Em outros países, como a França e a
Itália, o termo conciliação é utilizado mais amplamente, englobando a
mediação (GRINOVER, 2015, p. 5).

CONSIDERAÇOES FINAIS

Verificando-se que se encontra arraigado na


sociedade uma cultura de judicialização dos conflitos
sociais que naturalmente surgem em razão da natureza
gregária do ser humano, torna-se imprescindível a
inovação dos meios disponíveis para solução de tais
conflitos, não se podendo deixar ao Estado, no exercício
da Jurisdição, como único meio para tal intento, vez que
este vem se demonstrando ineficaz a atender toda a
demanda a ele levada, bem como incapaz de gerar um
relacionamento entre as partes após a solução do litígio,
tendo o novo Código de Processo Civil estabelecido como
um de seus fundamentos a busca da solução consensual
dos conflitos, que não se dará apenas judicialmente, mas
também extrajudicialmente a fim de permitir um maior
alcance do fim almejado, buscando para tanto a
formatação de um diálogo entre as partes para permitir
uma solução consensual e não imposta, o que implicará
numa maior possibilidade de estabilidade das relações
sociais que não irão se dar de forma unilateral e impositiva,
mas sim a partir de um diálogo entre os interessados, o que
denota a busca de uma justiça coexistencial.
144
Coleção Dinâmica Jurídica

REFERÊNCIAS

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atual. São Paulo: Saraiva, 2013.
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145
Coleção Dinâmica Jurídica

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VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da norma jurídica. 6 ed. São
Paulo: Malheiros, 2006.
VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e
práticas restaurativas. 4 ed. São Paulo: Metodo, 2015.

146
Coleção Dinâmica Jurídica

TÉCNICAS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS


CONFLICT MEDIATION TECHNIQUES

DANYELLE BANDEIRA DE MELO

RESUMO

A mediação, forma de solução de conflitos que vem


se expandindo no Brasil, principalmente após a Resolução
125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em
momento posterior valorizada pela reforma do Código de
Processo Civil, ganhou força com a promulgação da Lei de
Mediação nº 13.140/2015. O presente artigo tem o
objetivo de demonstrar as técnicas de mediação de
conflitos que o mediador pode aplicar para ajudar as partes
a alcançar um acordo.

Palavras-chave: Conflitos, mediação, técnicas, processo.

ABSTRACT
The mediation, a form of conflict resolution that
has been expanding in Brazil, especially after Resolution
125/2010 of the National Council of Justice (CNJ), later
valued by the reform of the Code of Civil Procedure,
gained strength with the promulgation of the Law of
Mediation nº 13.140 / 2015. This article aims to
demonstrate the techniques of conflict mediation that the
mediator can apply to help the parties reach an agreement.

147
Coleção Dinâmica Jurídica

Keywords: Conflicts, mediation, techniques, process.

1. Introdução

Com a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional


de Justiça (CNJ), o poder judiciário vem estimulando a
utilização da mediação como forma de solução de conflitos,
e instruindo àqueles que se utilizam dos seus serviços, a
melhor resolver conflitos por meio de ações colaborativas.
(AZEVEDO, 2013)
O direito de acesso à justiça consubstanciado no art.
5º, XXXV, da Constituição Federal significa que além da
possibilidade de resolver conflitos perante órgãos
judiciários, que impõem a decisão às partes, compromete-se
em oferecer uma ordem jurídica justa por meio de
mecanismos consensuais como a mediação, possibilitando
às partes a tomada de decisão sobre o seu próprio destino.
O acesso à justiça deixa de ser o simples direito à
petição e passa a significar o direito de resolver conflitos
antes que o processo chegue às mãos do juiz, passando o
cidadão a ter o direito de decidir, pois é ele mesmo que irá
pensar, informar, fazer e decidir sobre o seu conflito.
A Lei 13.140 sancionada em junho de 2015,
incorpora, e por isso é um marco, definitivamente os novos
paradigmas do direito processual brasileiro, pois assegura a
todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados
à sua natureza e peculiaridade, e preocupados com a
necessária eficiência operacional, o Judiciário incentiva-nos

148
Coleção Dinâmica Jurídica

a utilizar a mediação a fim de evitar o prolongamento dos


processos e até mesmo uma prevenção dos mesmos.
Verificamos, portanto, que os órgãos do Estado,
Legislativo, Executivo e Judiciário, estão todos engajados a
estimular, apoiar e difundir a sistematização e o
aprimoramento da prática e utilização dos meios
consensuais como a mediação, objetivando estabelecer
uma política pública mais adequada para a solução efetiva
de conflitos, sejam por meio da atuação do juiz ou do
árbitro, sejam por meio da atuação do mediador e do
conciliador. (AZEVEDO, 2013)
Atualmente, temos, então, várias formas de solução
de conflitos, processos distintos e com características
próprias que poderão ser escolhidos e utilizados pelos
cidadãos tais como, a negociação direta, a mediação, a
conciliação, a arbitragem, e o processo judicial.
Essa é a nova política do Estado brasileiro, cultivar
uma cultura de paz, e em razão dela, o acesso à justiça passa
a significar à satisfação do jurisdicionado com o resultado
final do processo de resolução de conflitos, seja por meio
da atuação do juiz, árbitro, conciliador, mediador, ou pelas
próprias partes em uma negociação direta. (SILVA, 2013)
Neste artigo vamos abordar as principais técnicas de
mediação como ferramentas aplicadas pelo mediador no
processo de mediação a fim de ajudar as partes a
transformar o conflito em acordo.

2. Técnicas de Mediação para a transformação do


conflito
149
Coleção Dinâmica Jurídica

A primeira técnica de mediação é o acolhimento,


em que o mediador dar às boas-vindas às partes e aos seus
advogados, se as partes estiverem acompanhadas por eles.
Demonstra a satisfação de estar ajudando, desenvolve a
habilidade de estar presente e da consideração.
Tom de voz suave e tranquilo, abrir um sorriso, dar
um aperto de mão seguro demonstra a atenção, a
segurança e a confiança que o processo exige. Essa atitude
de acolhimento significa que o mediador vai ao encontro
das partes na sala de espera, e as chama pelo nome, e as
encaminha até a sala de mediação.
Nesse caminho deve demonstrar preocupação com
as mesmas perguntando-as, por exemplo, se elas tiveram
dificuldade para chegar, se estão aguardando muito tempo,
inclusive pedir desculpas por um eventual atraso do início
da audiência.
Na sala de mediação mostrará o lugar onde as
partes devem se sentar, fará a sua apresentação, confirmará
o nome delas e como gostariam de ser chamadas. A partir
desse momento o mediador irá se dirigir às partes durante
todo o processo de mediação pelo nome que elas
indicaram, dando, desta forma, um tom mais informal ao
processo e aproximando os laços com as mesmas.
O lugar onde sentar pode ser considerado uma
técnica, haja vista que uma deve sentar-se do lado da outra,
de forma a permitir o resgate do diálogo muitas vezes
perdido. A comunicação é uma ferramenta do processo de
mediação, pois o processo de transmissão e recepção de
informações entre as partes envolvidas na controvérsia e o

150
Coleção Dinâmica Jurídica

mediador devem ser trabalhados com cuidado e


ponderação.
Para as partes se sentirem compreendidas o
mediador precisa escutá-las, e para que as mesmas se
compreendam deve o mediador fazer com que elas se
escutem mutuamente, o que é facilitado pelo fato de
estarem sentados uma do lado da outra.
Na mediação uma comunicação construtiva é
fundamental para as partes identificarem seus reais
interesses e evitar a culpa e o ressentimento. Ao expressar
seus sentimentos, sejam por palavras, gestos e postura
corporais, o mediador identificará emoções e sentimentos
que precisam ser trabalhados, compreendidos e
transformados. (VASCONCELOS, 2014)
Para a compreensão das razões das partes e a
compreensão mútua, o mediador utiliza a técnica da escuta
ativa. A escuta ativa, significa mais do que escutar, deverá
o mediador ouvir atentamente, escutar, entender e
compreender, especialmente a escuta e compreensão das
emoções e sentimentos.
O que diferencia o processo de mediação dos
outros processos de solução de conflitos, é que as
emoções serão levadas em consideração pelo mediador
para a solução dos conflitos. O mediador observa as
palavras, os gestos, as emoções e os sentimentos,
demonstrando atenção e tempo disponível para a escuta.
Para escutar ativamente o mediador deve manter sintonia
com as partes e seus advogados por meio do olhar
acolhedor, sincero, e sem julgamentos.

151
Coleção Dinâmica Jurídica

Por sua natureza, o conflito é um processo


emocional, e isso quer dizer que por trás da discussão
material, como por exemplo, o pedido de divórcio ou de
separação, de pensão alimentícia, pedido de distrato de um
contrato, pedido de pagamento de indenização, existem
mágoas e ressentimentos que influenciaram no
comportamento das partes, impedindo-a muitas vezes de
buscar seus próprios interesses e necessidades.
Havendo sentimentos, o que é essencial para a
nossa vida, estes devem ser bem compreendidos, pois caso
contrário podem desencadear processos desordenados e
nocivos para o ser humano, chamamos de processos
destrutivos, tais como uma agressão, um xingamento, ou
qualquer atitude de vingança. (VASCONCELOS, 2104).
Os sentimentos devem ser comunicados,
compartilhados, e sobretudo compreendidos e embora a
princípio muitos conflitos surjam das diferenças de cultura,
valores, educação, na verdade a maioria deles surgem pela
falta de comunicação ou compreensão mútua. É comum a
sessão de mediação ser a primeira oportunidade para as
partes se sentarem para conversar.
A escuta ativa é uma técnica que possibilita o
mediador a fazer uma leitura dos sentimentos e verificar
não só o que está sendo expressado em palavras, a
linguagem verbal, mas também a mensagem que está
sendo dita pelos gestos e comportamentos, a linguagem
não-verbal.
O mediador demonstra para as partes que tem
tempo para elas, que se importa com elas e que pretende
ajudá-las. Substitui a prática dos conselhos e sermões pela
152
Coleção Dinâmica Jurídica

escuta e compreensão, assim como também verifica as


verdadeiras necessidades das partes.
Ao fazer a escuta ativa o mediador imprime um
modelo a ser seguido pelas partes que também se
comprometem diante do mediador que irão escutar a
perspectiva da outra. Parte-se do pressuposto que se o
mediador está escutando a parte atentamente, esta deve ter
o mesmo comportamento diante das razões da outra.
Administra o mediador os ânimos das mesmas lembrado
durante todo o processo sobre o compromisso de respeito
mútuo.
Enquanto o mediador pratica a escuta ativa ele
aplica outras técnicas, tais como, o registro das
informações, a recontextualização, a conotação positiva, o
elogio, o silêncio, e a validação de sentimentos.
O registro consiste na técnica em que o mediador
tomará nota das informações trazidas pelas partes, em
papel simples sem formalidades, que o auxilia a consignar
as informações necessárias para a condução do diálogo,
momento em que ele capta e registra o verdadeiro
interesse, muitas vezes não identificado pelos interessados.
De posse das informações, o mediador irá
recontextualizar. A recontextualização é a técnica que
permite a parte escutar o que ela falou, agora por meio da
escuta do mediador que narrará a história com outra
entonação e com linguagem apreciativa. É natural no início
do processo que as partes cheguem com toda a carga
negativa do conflito, que tenham comportamento de
defesa e muitas vezes até mesmo de vingança.

153
Coleção Dinâmica Jurídica

A recontextualização objetiva que a parte escute o


que acabara de falar sem as mensagens negativas, que
porventura foi ressaltado. A parte escutará a mesma
mensagem por ela dita com conotação positiva. É o que
Vasconcelos (2014) chama de reformulação de mensagens
ofensivas.
Ressalta Vasconcelos que
O mediador é preparado para a prática da
reformulação, que costuma ser adotada
quando ele percebe que adjetivos e outras
construções linguísticas de algum dos
mediandos podem haver e constrangido
ou ofendido o outro. E o mediador
reformula sem invalidar o sentimento de
quem supostamente ofendeu. (2014, pag.
148)

A recontextualização dar mais certeza e veracidade


às informações, proporciona a correção, a lembrança, a
confirmação e esclarecimento. Dá-se de duas formas, com
a reafirmação, quando utilizam-se as mesmas palavras das
partes, retirando somente as aquelas inadequadas e
negativas, e com a paráfrase, quando o mediador reconta a
história e os fatos com outras palavras, igualmente sem a
mensagem negativa.
Com a recontextualização o mediador também
verifica se a mensagem falada pela parte é aquilo que
realmente ela quer comunicar, pois a parte quando escuta
sua história contada pelo mediador poderá ter outra
percepção, além de dar a oportunidade para o mediador
verificar se realmente entendeu a história e as razões que
cada uma delas está trazendo para a sessão. A parte terá
154
Coleção Dinâmica Jurídica

oportunidade de corrigir, lembrar e esclarecer sua história


para o mediador.
A técnica da recontextualização se utiliza da técnica
da conotação positiva. O mediador trará ao diálogo das
partes um sentido positivo, que está subentendido,
transformando as palavras e expressões negativas em
positivas. Enfatiza Azevedo que

Sempre que retransmitir às partes uma


informação que foi trazida por elas ao
processo, o mediador deve se preocupar
em apresentar estes dados em uma
perspectiva nova, mais clara e
compreensível, com enfoque prospectivo,
voltado às soluções, filtrando os
componentes negativos que eventualmente
possam conter, com o objetivo de encaixar
essa informação no processo de modo
construtivo. (2013, p. 168)

Como o mediador deve sempre utilizar uma


linguagem apreciativa, destaca-se a técnica do elogio. O
elogio consiste em um encorajamento que o mediador faz
pela participação das partes no processo de mediação,
como por exemplo, dando ênfase ao esforço que ambas
estão fazendo para o alcance do acordo; por elas terem
entendido e aplicado o princípio do respeito mútuo, e
também por elas estarem trazendo para o diálogo os
pontos importantes para o alcance do acordo.

155
Coleção Dinâmica Jurídica

O objetivo da mediação é dar ênfase às questões


voltadas para a solução. O mediador não pretende apontar
culpas e os erros cometidos, ao contrário, modifica o tom
da conversa, sempre com conotação positiva, fazendo com
que a partes passem a escutar mensagens positivas, e se
sintam bem, e quando elas compreendem, aprendem e
executam as regras e princípios da mediação devem ser
elogiadas pelo esforço, pois de fato assim participam
ativamente da solução de seus conflitos.
O processo de mediação evita a atribuição de culpa,
validamos sentimentos positivos e negativos, escutamos e
acolhemos os erros cometidos, e utilizamos os erros como
uma oportunidade para aprendizagem e transformação do
conflito em diálogo.
Outra técnica empregada é a técnica do silêncio
(AZEVEDO, 2013). O silêncio é utilizado quando o
mediador percebe que as partes estão conseguindo dialogar
sozinhas, quando elas estão estabelecendo as cláusulas do
acordo, quando ele percebe que elas já resgataram de fato
o diálogo e conseguem conversar sem agressões. O
mediador deixará as partes livres para conversar e resolver
sozinhas, permanecendo ali somente para garantir a
continuação do processo e anotar ainda algumas questões
necessárias ao acordo.
Destaca-se, ainda, como técnica a validação de
sentimentos, que consiste na compreensão e na
identificação de que a parte tem determinado sentimento.
Diante deste sentimento, o mediador deve ter uma postura
neutra, deve colocar-se no lugar da parte, e demonstrar à
parte que aquele sentimento é natural ou normal diante
156
Coleção Dinâmica Jurídica

dos fatos que aconteceram, e sem um tom julgador


compreende o que a parte está sentindo.
Identificar, reconhecer, aceitar e respeitar que cada
um tem seus motivos para agir, pensar e sentir. Reconhece
que o cada um é, o que está sentindo, e o que fez é um
reflexo de suas crenças, vivências e experiências. Validar
sentimentos melhorar o ambiente emocional do processo
de mediação.
O mediador observa e vai além, compreendendo as
razões das partes, que cada uma delas tem os seus motivos
para pensar e agir de uma determinada forma. Validar é
identificar, aceitar e respeitar a pessoa como ela é, aceitar o
que ela está sentindo, entender que o que ela está fazendo
é um reflexo de sua compreensão de mundo.
(AZEVEDO, 2013)
O mediador identifica sentimentos, ainda que as
partes não os revelem explicitamente por meio de palavras,
mas também verificando gestos e o comportamento.
Identificar e validar sentimentos faz com que a parte se
sinta adequadamente ouvida e compreendida.
Igualmente importante é a técnica das perguntas
sem julgamento. Conforme comentado anteriormente, o
mediador é um terceiro que não poderá julgar as partes. O
mediador não julga, não dar opinião, bem como não dar
sugestões para a solução do conflito.
As perguntas têm várias funções, como a de
recolher informações, tornar compreensível a história,
suscitar uma reflexão, ajuda a testar a realidade, a
identificar interesses, responsabilidades, e outras opções de
157
Coleção Dinâmica Jurídica

acordo. O mediador não pode aconselhar, deverá conduzir


a partes a fazer uma reflexão sobre seus verdadeiros
interesses e responsabilidades. (VASCONCELOS, 2014)
As perguntas servem para informar, tornar
compreensível, para instigar a parte a fazer uma análise
sobre si mesmo, para a parte observar e ponderar
comportamentos, serve para a parte narrar uma nova
versão de suas razões, e para contextualizar, serve para
identificar necessidades, pensar sobre suas
responsabilidades, quem sabe, até mudar de ideia.
As perguntas provocam uma maior narrativa das
partes e devem ser prospectivas, voltadas para o futuro,
protegem a imparcialidade do mediador, pois devem ser
sem julgamentos, objetivando a reflexão e o
esclarecimento, e são circulares, elaboradas com base na
narrativa anterior das partes com o objetivo de identificar
o ponto de vista do outro. (URY, 2015)
Destaca-se ainda, como uma técnica a sessão
privada que consiste em realizar uma reunião individual.
Cada parte deverá ser ouvida em separado com a presença
de seu advogado, se for o caso. Podemos utilizar a sessão
privada para dar uma pausa nos ânimos acirrados da sessão
conjunta, eliminando a comunicação improdutiva e até
mesmo atos de violência.
Utilizamos a sessão privada para permitir a
expressão de fortes sentimentos e validar os mesmos,
provocar outras reflexões tendo em vista o
reconhecimento e mudança de comportamento, para
realizar afagos e elogiar, para realizar a inversão de papéis

158
Coleção Dinâmica Jurídica

colocando a parte no lugar da outra, e aplicar um teste de


realidade.
Com a inversão de papéis o mediador consegue
fazer a parte verificar a ótica, o sentimento e o
comportamento da outra. O objetivo da mediação é
despolarizar o conflito fazendo com que uma parte se
coloque no lugar da outra, e entender o que é necessário
sob o ponto de vista do outro.
O teste de realidade consiste em elaborar perguntas
que façam as partes refletir sobre o que elas estão
contando, a até mesmo o que estão propondo, e se será
possível o cumprimento do acordo. Propõe uma análise de
alternativas e outras opções do acordo. Compara a
realidade com a própria sugestão de acordo das partes.

159
Coleção Dinâmica Jurídica

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Judicial. 2013. Brasília/DF: Ministério da Justiça e Programa
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URY, WILLIAM. Como chegar ao sim com você mesmo. Rio
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160
Coleção Dinâmica Jurídica

VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e


práticas restaurativas. 3ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Método, 2014.

161
Coleção Dinâmica Jurídica

162
Coleção Dinâmica Jurídica

MEDIAÇÃO ESCOLAR – UM CONVITE


À CULTURA DE PAZ NO AMBIENTE
EDUCACIONAL

DAYSE CRISTINA SOARES FEITOSA RODRIGUES32


JULIANA SALES E MENDES33
LUANNA CECÍLIA COSTA SOUSA34

RESUMO
O presente artigo tem por fim apresentar a Mediação de
Conflitos e suas técnicas como estratégias positivas no
enfrentamento da violência nas escolas, a fim de
implementar uma Cultura de Paz nas vivências escolares.
Primeiro abordaremos a moderna teoria do conflito, a qual
analisa as divergências humanas com enfoque positivo, ao
mesmo tempo em que discorreremos acerca do conceito e
objetivos da Mediação de Conflitos. Em seguida, falaremos
sobre a Mediação Escolar, que é um seguimento da
Mediação de Conflitos que promove o entendimento
consensual entre os atores do universo educacional,
fomentando o diálogo, o respeito às diferenças, a
comunicação eficaz e não violenta, a passo em que

32Advogada, Integrante da Comissão de Mediação, Conciliação e Arbitragem da


OAB/PI, Mediadora Extrajudicial, Pós-graduanda em Mediação de Conflitos pela
Estácio/CEUT. E-mail: daysefeitosa@hotmail.com; Instagram: @daysecfrodrigues.
33 Comissária de Justiça da Infância e Juventude do TJMA, Conciliadora e Mediadora

Judicial do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania-CEJUSC/MA,


Pós-graduanda em Mediação de Conflitos pela Estácio/CEUT. E-mail:
jsmendes@tjma.jus.br; Instagram: @julianasmendes_.
34 Advogada, Integrante da Comissão de Mediação, Conciliação e Arbitragem da

OAB/PI, Mediadora Extrajudicial, Conciliadora Judicial do TRF 1ª Região, pós-


graduanda em Mediação de Conflitos pela Estácio/CEUT. E-mail:
luaceci@hotmail.com; Instagram: @luaceci.
163
Coleção Dinâmica Jurídica

apresentaremos projetos de gestão de conflitos através da


Mediação Escolar em colégios do Rio de Janeiro, Paraná e
São Paulo, cujos resultados tem se demonstrado positivos.
Ao final, analisaremos a Cultura de Paz e seus pilares como
substrato essencial na construção do diálogo, resolução e
prevenção de conflitos no universo escolar.

Palavras-chave: Mediação de Conflitos, Mediação Escolar


e Cultura de Paz.

ABSTRACT
The purpose of this article is to present Conflict
Mediation and its techniques as positive strategies in the
fight against violence in schools, in order to implement a
Culture of Peace in school experiences. We will first
address the modern conflict theory, which analyzes human
divergences with a positive focus, while discussing the
concept and objectives of Conflict Mediation. Next, we
will talk about School Mediation, which is a follow-up of
Conflict Mediation that promotes consensual
understanding among actors in the educational universe,
fostering dialogue, respect for differences, effective and
non-violent communication, while presenting Projects of
conflict management through School Mediation in schools
in Rio de Janeiro, Paraná and São Paulo, whose results have
been shown to be positive. In the end, we will analyze the
Culture of Peace and its pillars as an essential substrate in
the construction of dialogue, resolution and conflict
prevention in the school universe.

Keywords: Conflict Mediation, School Mediation and


Culture of Peace.
164
Coleção Dinâmica Jurídica

INTRODUÇÃO

A crescente onda de violência permeia muitos


ambientes sociais, para que se constate isso, basta assistir
aos noticiários, que, dia após dia, mostram uma realidade
angustiante. A escola, local de permanente troca de
conhecimentos, desenvolvimento da personalidade e
apropriação de valores não é diferente, pois, em vez de ser
um lugar para práticas transformadoras, visando à
formação de indivíduos conscientes de si e de sua
importância na sociedade, mostra-se como um espaço
onde a intolerância e a inflexibilidade vêm se
intensificando, sendo cada vez mais constantes cenas que
envolvem agressões verbais, físicas e psicológicas.35
Tal fato chamou atenção de muitas autoridades,
despertando o interesse em criar projetos que refletissem o
vínculo entre a escola e a promoção da paz, como:
Educação para Paz, promovido pelo MEC, no ano de 1999;
Abrindo Espaços: educação e cultura para a paz, advogado pela
UNESCO, no mesmo ano; Manifesto 2000 por uma Cultura
de Paz e Não Violência, também organizado pela
UNESCO.36

35Vide http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1912793-jovem-que-
agrediu-professora-em-sc-afirma-a-policia-que-agiu-por-impulso.shtml;
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/briga-entre-estudantes-chama-
atencao-para-violencia-nas-escolas-1qg2khh49qsfmubk884sig2mm;
http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/09/brigas-entre-alunos-de-escolas-
particulares-viram-rotina-em-belem.html.
36 Em setembro de 1999, a Assembleia Nacional das Nações Unidas proclamou o

ano 2000 como o ano internacional da cultura de paz. No mês de novembro do


mesmo ano, declarou que 2001-2010 seria o decênio da massificação por uma cultura
de paz. Esses foram anos marcantes no implemento institucional cujo objetivo é
165
Coleção Dinâmica Jurídica

O presente estudo intenta juntar-se a essas


iniciativas, refletindo sobre as técnicas atinentes à
Mediação de Conflitos aplicadas no ambiente educacional,
como meio através do qual os atores da escola comunicar-
se-ão de modo a resolver suas divergências ou prevenir
conflitos, trazendo como pano de fundo os pilares da
Cultura de Paz. Através da colaboração de um terceiro
imparcial, que recebe treinamento adequado para conduzir
diálogos, às partes conflitantes é garantida participação
ativa na construção do consenso.
A aplicação dessas técnicas de comunicação e
negociação no âmbito estudantil faz nascer um ramo
específico: a Mediação Escolar, a qual possibilitará que o
corpo técnico da escola, juntamente com alunos, família e
comunidade promovam debates construtivos, modificando
o entendimento acerca do conflito, que poderá ser visto
como natural à condição humana, portanto passíveis de
soluções que transformem culpa em responsabilidades,
antagonismo em respeito, decisões imperativas em
decisões conjuntas, desencadeando um processo de
inclusão social e pacificação das relações.

MEDIAR CONFLITOS É DIALOGAR COM AS


DIFERENÇAS

A sociedade atual é caracterizada por uma imensa


variedade de fatores subjetivos e coletivos que determinam
a formação de cada indivíduo. Desse modo, não seria
surpreendente afirmar que, em um mesmo espaço e entre

pacificação das relações humanas. Fonte: UNESCO: Manifesto 2000 por una cultura
de paz y no violência, p. 02
166
Coleção Dinâmica Jurídica

espaços distintos, coexistem diferenças nem sempre


administradas de forma harmônica, uma vez que a
satisfação dos anseios individuais veio relegando,
progressivamente, a relação com o outro e a manutenção
de valores fundamentais, que constituem pilares da boa
convivência e de uma sociedade equilibrada.
Um dos valores que viabilizam a harmonia social é
o respeito, pois é a partir da tolerância às diferenças e da
consciência de que o outro também tem direitos que o
homem poderá pensar em meios de aprimorar o bem-estar
generalizado. William Ury reflete sobre isso definindo que

Respeitar significa dar atenção positiva e


tratar o outro com a dignidade com que
você gostaria de ser tratado (...). Para
respeitar os outros não é preciso aprovar o
comportamento da outra parte, nem
mesmo gostar das pessoas. Apenas
precisamos fazer a escolha consciente de
tratar todo mundo com a dignidade que é
direito inato de todos os seres humanos (
URY, 2015, pag. 90-91).

Contudo as diferenças comportamentais e de


opinião, em vez de oportunidades de reflexão e diálogo
construtivos, podem gerar conflitos marcados pela
hostilidade. Com base nesse panorama, a Mediação de
Conflitos, tendo o respeito como condicionante essencial,
objetiva encontrar alternativas que equilibrem uma situação
de tensão instalada, ou que possa se instalar, no intuito de
estabelecer a satisfação dos discordantes.
A Mediação de Conflitos, portanto, promove a
retomada da comunicação, trabalhando o respeito às

167
Coleção Dinâmica Jurídica

diferenças entre os envolvidos. É um procedimento


colaborativo que visa à identificação dos interesses
comuns, no qual as partes têm participação ativa na
resolução dos conflitos. De natureza democrática, a
Mediação de Conflitos concede autonomia às pessoas
envolvidas, mas intervém no logro do acordo entre elas
por meio de uma terceira pessoa: o mediador, cujo
posicionamento deve ser imparcial e cujas habilidades na
condução do diálogo são fundamentais para facilitar a
comunicação e o entendimento entre as partes.
Apesar da complexidade em delimitar os objetivos
da Mediação, podem ser elencados em quatro principais
vetores: solução dos problemas, prevenção dos conflitos,
inclusão social e paz social. (SALES, 2004)
A solução dos problemas é o objetivo mais
imediato da Mediação de Conflitos, o qual se efetiva por
meio do diálogo e da construção de um consenso,
direcionado pelas partes e facilitado pelo mediador. Já
como meio de prevenção, a Medição mostra sua utilidade
ao gerar, a partir de soluções alcançadas, modelos
comportamentais que possam servir em situações
análogas, evitando animosidades futuras. No que se refere
à inclusão social, os efeitos da Mediação de Conflitos são
percebidos na medida em que as pessoas exercitam a
autodeterminação, ou seja, o direito de escolha e decisão
acerca do desfecho da Mediação.37 Finalmente, a paz
social, dentre os objetivos da Mediação, talvez seja o farol
condutor, aquele fim mais almejado a longo prazo, uma

37A Mediação Comunitária é um exemplo pertinente acerca do atributo função social,


uma vez que “incentiva a participação dos indivíduos socioeconomicamente
marginalizados na gerência de seus conflitos, estimulando-os a solucioná-los,
possibilita a conscientização de direitos e deveres” (SALES, 2004, p. 33).
168
Coleção Dinâmica Jurídica

vez que resolver e prevenir conflitos, somados à inclusão


social, desencadeiam a pacificação das relações através de
uma comunicação e condutas não violentas.
Para que se alcance os objetivos acima, estudo e
prática da Mediação de Conflitos envolvem um arcabouço
de técnicas de negociação e comunicação construtivas, a
exemplo do acolhimento, escuta qualificada, validação de
sentimento, as quais serão utilizadas pelo terceiro
facilitador a fim de aproximar os lados polarizados,
ressignificando o conflito e transformando positivamente
uma situação problemática.
No que concerne ao conflito ressignificado, a
noção moderna analisa-o sob uma ótica positiva, isto é, o
conflito é compreendido como algo inerente à natureza
humana, consequência das diferentes percepções,
interesses, valores. Vasconcelos auxilia na compreensão:

O conflito não é algo que deva ser


encarado negativamente. É impossível uma
relação interpessoal plenamente
consensual. Cada pessoa é dotada de uma
originalidade única, com experiências e
circunstancias existenciais personalíssimas
(...). A consciência do conflito como
fenômeno inerente à condição humana é
muito importante. Sem essa consciência
tendemos a demonizá-lo ou a fazer de
conta que não existe. Quando
compreendemos a inevitabilidade do
conflito, somos capazes de desenvolver
soluções autocompositivas. Quando o
demonizamos ou não o encaramos
com responsabilidade, a tendência é
que ele se converta em confronto ou

169
Coleção Dinâmica Jurídica

violência (VASCONCELOS, 2017, p. 21,


grifo nosso).

Depreende-se que as relações interpessoais, seja de


caráter contínuo ou não, ensejam o surgimento de
constantes e variadas divergências, independentemente do
cenário em que se desenvolvem, ante a pluralidade de
sentimentos, crenças, valores e interesses. No palco
chamado escola, os atores desse espetáculo reúnem uma
rede complexa de interações, abrigando conflitos
provenientes da gestão escolar, das famílias, das crianças,
dos jovens e da comunidade em geral. Tais conflitos,
quando mal administrados, podem gerar diferentes
situações de violência. (CHRISPINO et al, 2016).
Destarte, a Mediação de Conflitos é aliada na
construção de uma Cultura de Paz nas escolas, uma vez
que capacita seus agentes a gerirem os conflitos de forma
cooperada e consensual, objetivando tornar o clima escolar
mais acolhedor e atrativo. Assim, a Mediação auxilia na
transformação dos conflitos inerentes à natureza humana
encarando-os sob um enfoque prospectivo e não somente
os vendo como obstáculos intransponíveis.

MEDIAÇÃO NO CONTEXTO ESCOLAR COMO


FORMA DE INCLUSÃO SOCIAL

Conforme estudo inédito promovido por Miriam


Abramovay e Maria das Graças Rua, em 13 capitais
brasileiras e no Distrito Federal, sobre violência nas
escolas, dois tipos de violência foram analisados: violência
interna ou institucional, que se verifica no cotidiano da
escola (exs.: ameaças verbais, agressões físicas, problemas
170
Coleção Dinâmica Jurídica

estruturais na escola) e violência externa, a qual se refere


ao entorno da escola (ex.: tráfico de drogas, gangues).
(ABRAMOVAY; RUA, 2004)
O estudo demonstrou que os tais contextos de
violência geram repercussões negativas na aprendizagem e
qualidade do ensino. Em relação aos alunos, as
consequências gravitam em torno da falta de concentração,
perda de vontade de ir à escola e não comparecimento às
aulas. No que concerne ao corpo técnico-pedagógico,
ocorrem a perda de estímulo, sentimento de revolta e
dificuldade de concentração na condução das aulas.
Dentre as sugestões para o enfrentamento desse
cenário de violência, os protagonistas da escola
reconheceram a importância do diálogo: 66% dos alunos e
65% do corpo técnico- pedagógico apontaram o diálogo
entre alunos, professores e diretoria como medida mais
eficaz no enfrentamento contra a violência nas escolas. Os
referidos dados revelam que “ouvir e ser ouvido” é
mecanismo fundamental para manutenção do
relacionamento escolar, prevenção e solução de conflitos
existentes no espaço colegial.
Assim, a Mediação Escolar é antes de tudo
comunicacional, fator propulsor do debate qualificado. Ela
se apresenta como um segmento da mediação tradicional
voltado para a prevenção e gestão dos conflitos existentes
nas instituições de ensino e o seu grande diferencial está na
transformação das atitudes e comportamentos
conflituosos por meio de uma comunicação efetiva e
inclusiva, através de mecanismos como a escuta ativa, o
respeito mútuo e a cooperação.
No contexto escolar, a mediação tem como aporte
fundamental a construção de um consenso baseado num
171
Coleção Dinâmica Jurídica

modelo ganha-ganha de resolução de controvérsias. Nesse


ínterim, contribui para formação de um novo paradigma
de convivência pacífica e colaborativa no meio escolar. Nas
palavras de Maria do Céu Lamarão Battaglia:

A mediação escolar se coloca como um


convite à aprendizagem e ao
aperfeiçoamento da habilidade de cada um
na negociação e resolução de conflitos,
baseada no modelo “ganha-ganha”, onde
todas as partes envolvidas na questão saem
vitoriosas e são contempladas nas
resoluções tomadas (BATTAGLIA, 2017,
p.1)

Desse modo, é imprescindível que seja iniciado nas


escolas um processo criativo de prevenir, administrar e
solucionar problemas de forma educativa, lúdica e
harmoniosa, implementando habilidades em
gerenciamento de conflitos, através do auxílio de um
mediador capacitado, que irá facilitar e encorajar o diálogo
entre os atores do cenário escolar, de modo que o conflito
seja tratado adequadamente. Tudo isso é fundamental para
o desenvolvimento eficaz do processo de ensino-
aprendizagem.
Sobre esse processo, vemos que nas abordagens
pedagógicas mais modernas, chamadas de inovadoras
(BEHRENS, 2005, p. 56), todos os integrantes da escola
são vistos como atores importantes para uma educação
que vise a transformações humanas, ultrapassando a ideia
de que a escola é um espaço exclusivamente para a
aquisição de conhecimentos livrescos. Assim, alunos,
professores, gestores e comunidade são interligados por
172
Coleção Dinâmica Jurídica

meio de relações horizontais, em que nenhum é mais


importante que o outro, apenas assumem funções que se
complementam, cada qual situado em um âmbito
específico, mas que estão em constante diálogo.
(TEIXEIRA, 2003)
É papel da escola formar cidadãos conscientes do
outro e do espaço em que estão inseridos, fatores
imprescindíveis para um trabalho efetivamente
transformador. No que tange ao professor, por exemplo, o
mesmo deve cultivar o dialogismo na resolução de
problemas, fazendo com que seus alunos relembrem
valores poderosos, todavia por muitos esquecidos, para a
boa convivência, como o respeito e a solidariedade. Para
isso, o professor deve assumir uma postura dialógica a fim
de ajudar o aluno a se desenvolver como sujeito, ou seja,
como "um indivíduo ativo que se posiciona dentro dos
diferentes espaços sociais de que faz parte e que assume,
como própria, a tarefa em que está envolvido"
(TEIXEIRA et al, 2003, p.39).
Diante disso, nota-se a sintonina dos saberes, uma
vez que os postulados de uma pedagogia moderna e as
características da Mediação de Conflitos possuem
elementos que se comunicam, especialmente quanto ao
aspecto colaborativo no relacionamento entre os sujeitos
pertencentes à escola. Portanto, os pressupostos da
Mediação de Conflitos podem ser empregados no
contexto escolar, porque seu cerne é investigar
possibilidades de atenuação das dissonâncias a fim de
promover ou manter o equilíbrio entre partes conflitantes.
O mediador, na função de terceiro imparcial e
facilitador do consenso, fará uso de técnicas de
comunicação verbal e não verbal adaptadas ao ambiente
173
Coleção Dinâmica Jurídica

escolar, que serão aplicadas em encontros com as crianças


e adolescentes em formação e também com os adultos que
fazem parte da instituição, propiciando momentos de
discussão e troca de informações em grupo, buscando
incentivar o diálogo aberto, a empatia, a tolerância, a
solidariedade, o respeito às diferenças, a escuta atenta ao
outro e oferecendo uma compreensão teórica das
ferramentas utilizadas na solução de conflitos, atrelada à
experiência prática dessas pessoas, que lhes oportuniza
resolver seus próprios problemas de forma responsável e
consciente.
Como já explicitado, é fundamental o
conhecimento teórico e prático das técnicas que habilitam
o mediador a conduzir os diálogos, dentre elas, temos: (i) a
empatia, isto é, colocar-se no lugar do outro; (ii) a escuta
ativa , que significa escutar e compreender a mensagem
verbal, simbólica e não verbal; (iii) a comunicação
participativa em rodas de discussão através de perguntas
abertas, que se configura como um estímulo à reflexão, ao
autoconhecimento e ao direito de voz aos excluídos; (iv) o
uso do método ganha-ganha de solução de conflitos ou
elaboração de opções de ganhos múltiplos, a fim de
aumentar a autoestima e a capacidade de cooperação; (v) o
desenvolvimento da autorresponsabilidade, que é sentir-se
responsável pela própria atitude; (vi) a composição das
diferenças, ou seja, saber conviver com o diferente; e (vi) a
reformulação, entendida como a redefinição de uma
situação em uma perspectiva positiva).
Nesse contexto, verifica-se que a aplicabilidade da
mediação de conflitos no contexto escolar tem valorosa
contribuição, inclusive com experiências bem sucedidas no

174
Coleção Dinâmica Jurídica

Brasil, em estados como Rio de Janeiro, Paraná e São


Paulo, analisados adiante. (CHRISPINO et al, 2016)
No Rio de Janeiro, se destaca o projeto Escola de
Mediadores, desenvolvido em 2000, em parceria com o
Instituto NOOS, Viva Rio – Balcão de Direitos, Mediare e
Secretaria Municipal de Educação, aplicado em duas
escolas públicas no município do Rio de Janeiro, em que
alunos de 6ª e 7ª série foram capacitados mediadores para
atuarem na resolução de conflitos entre colegas. A
metodologia utilizada por esse projeto fundamenta-se na
construção do conhecimento e da coautoria. Ele foi dividido em
três fases: a primeira etapa de Sensibilização, a segunda foi
a Diagnóstica, e a terceira, de Capacitação. O
acompanhamento feito com os alunos demonstrou que
eles incorporaram o diálogo, se estendendo as suas casas e
à comunidade.
A experiência da mediação estudantil no Paraná foi
proposta pelo Instituto de Mediação e Arbitragem do
Brasil – IMAB em Curitiba, a pedido da Secretaria de
Estado da Educação, em 1998, através de um projeto
encabeçado pelo psicólogo e mediador Juan Carlos
Vezzulla, com o apoio técnico da psicóloga e mediadora
Lidercy Prestes Aldenucci e da pedagoga e mediadora
Márcia Macionk. Adotaram uma metodologia participativa,
por meio de discussões, vivências, jogos e simulações,
aliada ao uso das técnicas de mediação e dos treinamentos
com educadores, pais e alunos.
Após a realização de uma avaliação nessas escolas,
houve muito relatos de experiências bem sucedidas na
solução dos conflitos de forma pacífica e colaborativa,
com a melhora da comunicação, da cooperação e do
respeito mútuo, contribuindo significativamente para a
175
Coleção Dinâmica Jurídica

melhora da convivência escolar, a prevenção da violência e


a aceitação das diferenças. Devido aos resultados
satisfatórios, o projeto foi levado, posteriormente, a outros
estados, como São Paulo e Santa Catarina.
Já em São Paulo, o Projeto de Mediação
Educacional, desenvolvido, em 2005, pelo Grupo de
Mediação Educacional do MEDIATIVA – Instituto de
Mediação Transformativa, era composto por Célia
Bernardes, Cristina Meirelles e outras mediadoras do
Instituto Familiae. A metodologia aplicada foi
desenvolvida por Dora Schnitman, chamada de “Sistemas
de Mediação”, que incorpora os princípios, ferramentas e
práticas comunicacionais da mediação, sem a intervenção
de terceiros, buscando desenvolver habilidades e recursos
próprios na maneira de solucionar os conflitos pelos
membros da comunidade escolar. O foco principal estava
na transformação das relações.
Adotaram uma metodologia própria para cada
segmento do contexto escolar, através de atividades de
capacitação, vivências e uma linguagem apropriada a cada
faixa etária, buscando promover uma cultura pacífica por
meio de uma mudança de postura diante de situações
problemáticas. O resultado foi a diminuição da violência e
a ampliação da utilização do diálogo como forma de
resolução de problemas.
Diante das reflexões e experiências apresentadas,
percebe-se que a Mediação Escolar se revela como um
tema instigante e necessário ao ambiente educacional, cujo
conhecimento merece ser trabalhado de forma teórica e
prática, tendo em vista que privilegia a formação
participativa dos estudantes, incluindo-os nas decisões
escolares, enfatiza a disposição para o diálogo aberto,
176
Coleção Dinâmica Jurídica

melhora o clima escolar, promove a convivencialidade


pacífica e capacita os atores institucionais na prevenção e
resolução dos seus próprios conflitos.
O projeto de Mediação Escolar executado em
instituições de ensino que congreguem personalidades
diferentes objetiva educar para a paz, educar para o
respeito, educar para a solidariedade, portanto contribui
sobremaneira na construção de uma Cultura de Paz nas
Escolas.

SEMEANDO A CULTURA DA PAZ NAS ESCOLAS

Uma vez identificadas as características


fundamentais da Mediação de Conflitos, bem como a
aplicabilidade das técnicas que a compõem no contexto
escolar, verifica-se que a construção de uma Cultura de Paz
tenciona a prevenção e a erradicação da violência nas
escolas. As experiências vanguardistas mencionadas acima
obtiveram resultados positivos no ambiente escolar, os
quais foram responsáveis por lançar a semente da paz
naquelas escolas.
Desse modo, por ser a escola um espaço
fundamental para combater à violência, por consequência,
é um local basilar para a construção de uma Cultura de
Paz. Através do bom diálogo, do debate livre e respeitoso e
da participação ativa dos integrantes da comunidade
escolar, bem como de seus familiares e todos os outros
afetados pela ação da escola, a cultura do confronto tende
a ceder espaço para cultura da pacificação das relações.
A escuta ativa, na Mediação Escolar, implica um
processo de diálogo proveitoso, em que o ouvinte
interpreta e compreende a mensagem que recebe. É
177
Coleção Dinâmica Jurídica

fundamental para fomentar o bom relacionamento, pois


facilita o entendimento mútuo entre diferentes partes e
reduz os conflitos. Sobre a importância da escuta ativa e
qualificada dos atores escolares, Marcelo Rezende
Guimarães destaca:

A violência, tanto na educação como no


conjunto da sociedade, constitui-se como
uma forma de expressão dos que não tem
acesso à palavra [...]. Quando a palavra não
é possível, a violência se afirma e a
condição humana é negada. Neste sentido,
a reversão e a alternativa à violência
passam pelo resgate e devolução do direito
à palavra, pela oportunidade de expressão
das necessidades e reivindicações dos
sujeitos, pela criação de espaços coletivos
de discussão, pela sadia busca do dissenso
e da diferença, enfim, pela mudança das
relações educacionais, ainda estruturadas
no mandar e obedecer, para uma forma
mais democrática e dialógica.
(GUIMARÃES, 2004, p. 4, grifo nosso)

A não violência, que é um termo utilizado para se


referir a um conjunto de teorias que acreditam na rejeição
da violência para alcançar conquistas sociais e políticas na
sociedade, foi idealizada pelo grande líder pacifista indiano
Mahatma Gandhi, um grande defensor do princípio da não
agressão, que enfrentou o tão poderoso império britânico,
liderando o movimento de não violência. Gandhi afirmava:
“Não existe caminho para a paz. A paz é o caminho”.
Caminho este que deveria ser percorrido em todos os
ambientes cujas relações humanas são formadas: casa,

178
Coleção Dinâmica Jurídica

trabalho, escola. Então, como promover, criar uma Cultura


de Paz no país? Para se criar uma cultura de paz e
educação para a paz, precisa-se primeiro estar ciente de
que isso não ocorre de uma hora pra outra. Feizi M.
Milani, argumenta que: "construir uma cultura de paz é
promover as transformações necessárias e indispensáveis
para que a paz seja o princípio governante de todas as
relações humanas e sociais" (MILANI, 2003, p.31)
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)
que é um órgão criado em 1945, com o intuito de manter a
paz entre os países após a II Guerra Mundial, a cultura de
paz se concretiza através de valores, atitudes,
comportamentos e estilos de vida que conduzem à
promoção da paz entre os indivíduos. Entre seus
princípios estão manter a paz e a segurança internacional.

Todos deverão resolver suas controvérsias


internacionais por meios pacíficos, de
modo que não sejam ameaçadas a paz, a
segurança e a justiça internacionais; Cabe
às Nações Unidas fazer com que os
Estados que não são membros da
Organização ajam de acordo com esses
princípios em tudo quanto for necessário à
manutenção da paz e da segurança
internacionais. (UNICRIO)

A paz é um conceito amplo, que, na Declaração da


ONU, inclui o respeito à vida, aos princípios de soberania
e independência política das Nações, a solução pacífica dos
conflitos, a igualdade de direitos de homens e mulheres e a
proteção do meio ambiente. Além disso, significa também
adesão aos princípios de liberdade, justiça, tolerância,

179
Coleção Dinâmica Jurídica

solidariedade, cooperação, diversidade cultural, diálogo e


entendimento em todos os níveis da sociedade.
Mas essas concepções não parecem estar sendo
efetivadas, pois a violência continua mito presente na
sociedade. Já em março de 1999, a violência aparece de
forma alarmante, a ponto de a Assembleia Nacional das
Nações Unidas achar necessário criar um programa para
implantar uma cultura de paz em nosso planeta,
declarando o período de 2001 – 2010 como a “Década
internacional por uma cultura de paz e não violência para
as crianças do mundo”.
O documento gerado chama-se “Manifesto 2000” e
foi escrito por um grupo de premiados do Nobel da Paz
com o objetivo de promover e conscientizar as pessoas e
autoridades que é de responsabilidade de cada um
fomentar os valores, atitudes e padrões de comportamento
relevantes para o planeta. Von (2003, p.14-15) traz na
íntegra o que diz o texto:

Eu me comprometo em minha vida


cotidiana, na minha família, no meu
trabalho, na minha comunidade, no meu
país e na minha região a: 1-RESPEITAR
A VIDA: respeitar a vida e a dignidade de
cada pessoa, sem discriminar, nem
prejudicar; 2-REJEITAR A
VIOLÊNCIA: praticar a não-violência
ativa, repelindo a violência em todas as
suas formas: física, sexual, psicológico ,
econômica e social, em particular ante os
mais fracos e vulneráveis, como as crianças
e os adolescentes; 3-SER
GENEROSO: compartilhar o meu tempo
e meus recursos materiais, cultivando a

180
Coleção Dinâmica Jurídica

generosidade, a fim de terminar com a


exclusão, a injustiça e a opressão política e
econômica; 4-OUVIR PARA
COMPREENDER: defender a liberdade
de expressão e a diversidade cultural,
privilegiando sempre a escuta e o diálogo,
sem ceder ao fanatismo, nem à
maledicência e ao rechaço ao próximo; 5-
PRESERVAR O PLANETA: promover
um consumo responsável e um modelo de
desenvolvimento que considere a
importância de todas as formas de vida e o
equilíbrio dos recursos naturais do planeta;
6-REDESCOBRIR A
SOLIDADRIEDADE: contribuir para o
desenvolvimento de minha comunidade,
propiciando a plena participação das
mulheres e o respeito aos princípios
democráticos, com o fim de criar novas
formas de solidariedade.

A Cultura de Paz é, em síntese, o respeito à


diversidade e à solidariedade, o fortalecimento dos direitos
humanos e da democracia, a busca do diálogo e a rejeição
à violência.
A escola tem especial importância na condução do
seu alunado não somente para o desenvolvimento
cognitivo-intelectual, ela deve oferecer um ambiente alegre,
convidativo, receptivo e aberto. Portanto, é fundamental o
papel da escola no combate a violência, seja institucional,
seja externa, edificando os pilares da formação cidadã dos
integrantes desse espaço.
Os conflitos são naturais e fazem parte da natureza
humana. Isso significa que não se deve almejar uma cultura
na qual não existam conflitos, mas sim uma em que estes
181
Coleção Dinâmica Jurídica

possam ser resolvidos de forma pacífica e justa,


considerando todos os aspectos inerentes a cada situação.
O ambiente escolar não foge à regra, os conflitos surgem a
partir de um contexto muito específico, motivo que
justifica a necessidade de serem tratados segundo as
orientações de um projeto de Mediação Escolar, pautado
no alinhamento com a Cultura de Paz.
Para que haja um enfrentamento no que tange à
violência escolar, segundo os princípios da Cultura de paz,
a escola precisa ter alguns destaques em suas características
como: encontro da diversidade cultural e liberdade criativa;
estratégias para fortalecer relações com a comunidade,
especialmente a família; experimentar medidas de
prevenção contra a violência; fomentar valores e
transmissão de conhecimentos horizontalmente, entre
professores, entre professores e alunos, entre alunos e
alunos (ABRAMOVAY e RUA, 2004)
No estudo pormenorizado de Miriam Abramovay e
Maria das Graças Rua, é destacada, entre suas
recomendações, a importância da implementação de
políticas públicas que patrocinem o combate à violência
nas escolas e que estabeleçam a tônica da Cultura de Paz
no ambiente escolar. São eles:

Cuidados estruturais com a vizinhança


ou entorno da escola; abertura do
espaço escolar para envolvimento da
comunidade; interação escola – família
– comunidade; realização de atividades
de cunho transdisciplinar; criação de
ambientes agradáveis na escola;
estabelecimento de normas com padrão
disciplinar a ser seguido para todos os

182
Coleção Dinâmica Jurídica

atores da escola, com regas e


expectativas; sensibilização do corpo
docente e estudantil através de
programas com temas elucidativos;
policiamento organizado no entorno;
divulgação na mídia dos casos bem
sucedidos de valorização da Cultura de
Paz nas escolas; incentivo à organização
juvenil através da criação de grêmios,
por exemplo. (ABRAMOVAY, RUA,
2004).

Esses são apenas exemplos de ações que podem ser


desenvolvidas a partir de projetos engajados, políticas
públicas e principalmente por meio da participação ativa
da escola, comunidade e família. A Mediação Escolar vai
ao encontro das medidas a serem adotadas para
pacificação do espaço estudantil, a fim de que este se torne
um ambiente de socialização, onde os cidadãos
pertencentes a ele alcancem o consenso ante uma
divergência. Ademais, espera-se que esses mesmos atores
passem a ser propagadores da comunicação e de ações
pacíficas e que, acima de tudo, alcancem a dignidade
humana ao se sentirem parte do processo e se sintam
formadores das próprias decisões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo contemporâneo é caracterizado pela


diversidade e, à medida que as coisas se transformam,
novas diferenças vão surgindo para ampliar o mosaico de
tipos humanos. Essa realidade não é necessariamente ruim,
aliás, pode ser vista como necessária para a evolução e a
prosperidade, desde que os aspectos dessa conjuntura
183
Coleção Dinâmica Jurídica

multifacetada sejam tomados como matéria para


discussões construtivas e desencadeadoras de efeitos
progressistas.
Para que isso ocorra, é mister que um indivíduo
perceba o outro, entenda que ele tem direito de pensar e
agir diferentemente e tenha lucidez para enxergar que não
por isso a convivência com o mesmo torna-se inviável,
porém, o que se vê de fato é a manifestação cada vez mais
nociva de práticas marcadas pela intolerância e de
perspectivas inflexíveis, uma vez que valores antes caros a
um comportamento humanizado foram sendo substituídos
por condutas individualistas e violentas. Esse cenário
aterrador gera consequências muito prejudiciais para a
harmonia entre os homens e deverá se ampliar, a menos
que se resgate e, principalmente, se pratique o significado
de coisas simples, mas poderosas, como o respeito, a
solidariedade e a comunhão.
É com essa finalidade que a Mediação de Conflitos
tem atuado e procurado se aperfeiçoar, visto que se
constitui por um conjunto de técnicas e estratégias
empregadas no intuito de solucionar e prevenir
desentendimentos. Sua forma de agir aposta na
participação ativa dos conflitantes, que, mediados por um
terceiro imparcial, são instigados a dialogar
produtivamente, tencionando um consenso em que todos
acabam ganhando. Trata-se de um recurso para a resolução
de problemas aplicável em diferentes contextos, que, além
da solução de uma divergência imediata e específica, almeja
um resultado mais ambicioso: a Cultura de Paz exercida na
prática, não limitada a um desejo utópico, ou a um
discurso demagógico.

184
Coleção Dinâmica Jurídica

Entre os espaços onde a Mediação de Conflitos


pode ser aplicada, a escola emerge como um que necessita
de atenção urgente. Por ser um lugar em que confluem
sujeitos variados, cada qual permeado por influxos
igualmente diferentes e ainda hierarquizados quanto à
distribuição dos papéis, apesar das propostas para o
processo ensino-aprendizagem que preconizam a
horizontalidade relacional entre gestores, professores e
alunos na condução das práticas pedagógicas; a escola é
profícua para o surgimento de animosidades, que
frequentemente são dissolvidas apenas de forma aparente
ou por um curto espaço de tempo. Por isso, a Mediação
Escolar, conceito usado para se referir à aplicação das
técnicas da Mediação de Conflitos na escola, considerando
seus atores e suas especificidades estruturais e ambientais,
surge como aliada eficiente na investigação por meios de
transformação do local e da comunidade em que está
inserida.
Este estudo, consubstanciando-se às diversas
iniciativas, pontuadas anteriormente, que visaram a refletir
a importância de promover a paz na escola, buscou
defender a inclusão da Mediação Escolar no dia a dia das
instituições educacionais e constatou ser isso perfeitamente
possível ao observar os dados estatísticos coletados, no
Distrito Federal, por Abramovay & Rua (2004) sobre a
satisfação acerca da prática do diálogo, um dos pilares da
intervenção, e ao analisar as experiências ocorridas nas
escolas do Rio de Janeiro, do Paraná e de São Paulo, que
executaram projetos de Mediação Escolar e obtiveram
resultados positivos.
Sem dúvida, muitos outros aspectos podem ser
explorados no tocante à prática da Mediação Escolar e aos
185
Coleção Dinâmica Jurídica

desdobramentos possíveis de serem ocasionados. A


propósito, espera-se que este trabalho tenha despertado a
curiosidade acerca do tema e, tendo em mente que as
crianças e os jovens são o futuro da nação, que açode mais
pessoas interessadas em descobrir formas que pavimentem
o caminho que leva a uma sociedade mais pacífica,
próspera e feliz.

186
Coleção Dinâmica Jurídica

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188
Coleção Dinâmica Jurídica

A NULIDADE DE CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE


FORO E DE CLÁUSULA ARBITRAL EM
CONTRATOS DE FRANQUIA:
O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO
CONTRATANTE DEPENDENTE EM COLISÃO
COM O PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AOS
CONTRATOS38

THE NULLITY OF FORUM SELECTION CLAUSE AND


ARBITRATION CLAUSE IN FRANCHISE CONTRACTS:
THE DEPENDENT CONTRACTING PARTY PROTECTION
PRINCIPLE IN COLLISION WITH THE CONTRACTS
BINDING PRINCIPLE

LEANDRO CARDOSO LAGES39

RESUMO:
O presente artigo se propõe a analisar uma possível colisão
entre o princípio da proteção ao contratante dependente e
o princípio da vinculação aos contratos. Justifica-se o
debate em virtude de julgados recentes do STJ
reconhecendo a nulidade de cláusulas de eleição de foro e
compromissória de arbitragem em contratos de franquia,
sob o argumento de terem sida inseridas abusivamente em
contratos de adesão estabelecidos entre partes que estariam
em posições assimétricas.

38 Artigo apresentado como requisito à conclusão da disciplina “Os Princípios do


Direito Comercial”, ministrada pelo prof. Dr. Fábio Ulhoa Coelho, no curso de
doutorado em Direito da PUC-SP.
39 Advogado e professor em cursos de graduação e pós-graduação. Doutor em

Direito (PUC-SP). Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.


Especialista em Direito Processual pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Estadual do Ceará. Autor
de livros e artigos. E-mail: leandrolages@uol.com.br
189
Coleção Dinâmica Jurídica

Palavras-chave: Direito Comercial. Princípios. Nulidade.


Foro. Arbitragem.

ABSTRACT:
The present article proposes to analyze a possible collision
between the dependent contracting party protection
principle in collision with the contracts binding principle.
The debate is justified by recent STJ decisions recognizing
the nullity of forum selection clause and arbitration clause
in franchise contracts, based on the argument that these
clauses have been abusively imposed in standard form
contracts established between parties that would be in
asymmetrical positions.
Key-words: Comercial Law. Principles. Nullity. Forum.
Arbitration.

SUMÁRIO:
1. Introdução; 2. O contrato de franquia e a aparente
autonomia do franqueado; 3. As obrigações empresariais e
o princípio da vinculação dos contratantes ao contrato; 4.
Assimetrias em contratos empresariais e o princípio da
proteção ao contratante dependente; 5. As assimetrias
contratuais na visão do STJ; 6. Conclusão

1. INTRODUÇÃO

Em julgados recentes, o STJ vem manifestando


uma tendência no sentido de declarar a nulidade de

190
Coleção Dinâmica Jurídica

cláusula de eleição de foro40 e de cláusula compromissória


de arbitragem41 em contratos de franquia.
Em ambos os casos houve o reconhecimento
de assimetria na relação estabelecida entre as partes
contratantes, motivo que levou órgão julgador a
posicionar-se a favor do franqueado e contrariamente à
parte que redigira o contrato de adesão, no caso, o
franqueador.
A constatação de assimetrias contratuais e a
consequente nulidade das mencionadas cláusulas
contratuais decorre da prevalência do “princípio da
proteção ao contratante dependente” o qual, em
determinados casos, pode colidir com o “princípio da
vinculação do contratante ao contrato”, decorrência direta
do “princípio da autonomia da vontade”.
A importância dos princípios em nosso
ordenamento jurídico pode ser identificada a partir da
Constituição Federal de 1988, cujo texto revestiu-se de um
caráter principiológico. Desde então, a argumentação por
princípios seguiu um padrão de argumentação nos diversos
campos do conhecimento jurídico, momento em que a
interpretação e compreensão de regras jurídicas não mais
se originavam de dispositivos legais, mas transitavam em
torno de normas principiológicas (COELHO, 2013, p. 14).
Grau (2016, p. 115) caracteriza os princípios
como uma espécie de regras de direito em razão do seu
caráter mais amplo e largo de generalidade, bem como da
proximidade aos valores tidos como inspiradores do
direito positivo.

40 STJ – AgRg no AREsp 563.993-GO – Rel. Min. Isabel Gallotti – DJe 23.03.2015.
41 STJ – REsp 1.602.076-SP – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJe 30.09.2016.
191
Coleção Dinâmica Jurídica

Para Alexy (2015, p. 87-90), os “princípios são


normas que ordenam que algo seja realizado na maior
medida possível dentro das possibilidades jurídicas e
fáticas existentes”, diferenciando-se das regras pelo fato de
que “os princípios são normas com um grau de
generalidade relativamente alto, enquanto o grau de
generalidade das regras é baixo”.
A importância dos princípios para a atividade
empresarial é destacada por Coelho (2012, p. 20) haja vista
a necessidade de formação de um novo direito comercial
em virtude de um inadiável recoser dos escarçados valores
da disciplina.
Com base em tais assertivas, o presente artigo
analisará uma possível colisão entre os princípios da
proteção ao contratante dependente e da vinculação dos
contratantes ao contrato, tendo por base as recentes
decisões do STJ que reconheceram a nulidade de cláusulas
de eleição de foro e compromissória de arbitragem em
contratos de franquia.

2. O CONTRATO DE FRANQUIA E A
APARENTE AUTOMIA DO FRANQUEADO

A franquia corresponde a uma figura contratual


que envolve uma técnica negocial no campo da
distribuição e venda de bens e serviços. Não consiste
apenas em uma técnica de venda, mas também uma forma
de domínio de mercado e controle de distribuição.
O termo franquia advém do inglês, “francher”,
que significa outorga de um privilégio. E dessa noção é
possível defini-la como um instituto pelo qual uma das
192
Coleção Dinâmica Jurídica

partes, o franqueador, concede à outra, o franqueado, o


direito de usar marca associada a produtos ou serviços
comercializados pelo franqueado, com suporte
mercadológico do franqueador, o qual recebe, em troca,
uma remuneração denominada de royalties.
De forma mais detalhada, Diniz (2013, p. 71)
especifica que a franquia (ou franchising) é o contrato pelo
qual o franqueador concede, por certo tempo
(determinado ou indeterminado), ao franqueado, o direito
de comercializar com exclusividade, em determinada área
geográfica, serviços, nome comercial, título de
estabelecimento, marca de indústria ou produto que lhe
pertence, com assistência técnica permanente, recebendo,
em troca, certa remuneração. Envolve a conjugação da
licença de uso de marca ou patente, associado ao direito de
distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou
serviços, não havendo vínculo empregatício.
Ressaltando alguns aspectos da franquia, Sztajn
(1989, p. 133), demonstra que “o franqueador fornece
técnica(s) e/ou marca de comercialização de produtos ou
serviços e transfere, juntamente com seu conhecimento e
marca, a reputação a eles ligada”.
Segundo Orlando Gomes (1977, p. 571), a
franquia guarda semelhanças com a concessão exclusiva, a
distribuição e o fornecimento de prestação de serviços,
mas não é locação e nem mandato, mas uma figura
autônoma, embora híbrida.
Ambas as partes obtêm vantagens com o
contrato: o franqueador com a expansão de seus negócios
e ao franqueado pela oportunidade de conduzir o seu
193
Coleção Dinâmica Jurídica

próprio empreendimento, com riscos menores do que os


enfrentados por aqueles que desenvolvem atividade por
conta própria sem contar com o auxílio de alguém com
experiência e titular de uma grande marca (DINIZ, 2013,
p. 73).
Sobre essa vantagem para o franqueado
Andrade (1998, p. 12) alerta para o fato de não ser razoável
considerar que “o empresário interessado em franquia seja
alguém sem imaginação para iniciar um negócio seu, mas
considera-lo, alguém que, vendo a prosperidade de uma
atividade negocial vitoriosa, opta por ela, pois os percalços
iniciais já foram superados.”
Até o advento da Lei n. 8.955/94, o contrato
de franquia era de livre negociação entre as partes. A
legislação passou a disciplinar a atividade, resguardando
com mais abrangência o franqueado através de algumas
restrições ao franqueador, como por exemplo, a
necessidade de entrega ao franqueado de um documento
escrito intitulado Circular de Oferta de Franquia (COF).
A COF deve conter obrigatoriamente as
informações constantes no art. 3º da Lei n. 8.955/94,
dentre as quais se destacam: histórico resumido da
franquia, balanços e demonstrações financeiras, pendências
judiciais, perfil do franqueado ideal, minuta do contrato,
total estimado para investimento, valores a serem
despendido pelo franqueado a título de taxas e royalties,
relação de todos os franqueados e regras quanto à
exclusividade territorial.
Deve ser entregue ao candidato a franqueado
em até 10 dias antes da assinatura do contrato, sob pena de
anulabilidade do contrato e devolução de quantias pagas,

194
Coleção Dinâmica Jurídica

conforme disposto no art. 4º da Lei n. 8.955/94. Esta


sanção aplica-se, também, nos casos de veiculação de
informações falsas na COF, conforme previsto no art. 7º.
A exigência da COF representa um
reconhecimento por parte da legislação de que a relação
entre o franqueador e o franqueado é assimétrica, estando
este em situação de dependência em relação àquele,
merecendo, portanto, uma proteção contra abusos e
situações constatadas somente após a assinatura do
contrato.
Ribeiro (2015, p. 62) ressalta que a existência de
uma norma obrigando a entrega da COF e indicando quais
sejam as informações obrigatórias que nela devem constar
“reduz os custos de informação de parte do candidato a
franqueador, assim como pressupõe que, ao ter acesso aos
dados, possa escolher pela contratação de forma mais
fundamentada, buscando-se reduzir situações de fracasso
empresarial”.
Uma das principais características do contrato
de franquia é a independência do franqueado ante o
franqueador, pois, de acordo com Diniz (2013, p. 74-77),
“não há vínculo de subordinação ou empregatício entre ele
e o franqueador, não sendo a empresa franqueada uma
sucursal do franqueador”, no entanto a autora ressalta que
o franqueador pode impor certas obrigações ao
franqueado, tolhendo sua ação.
Fran Martins (2016, p. 442), também
demonstra a independência do franqueado, a sua
autonomia como empresário e a ausência de vínculo
empregatício com o franqueador, mas ressalta que essa
autonomia é relativa. Há autonomia no sentido de
franqueador e franqueado serem pessoas distintas, cada
195
Coleção Dinâmica Jurídica

uma respondendo pelos atos que pratica, no entanto


muitas regras são impostas pelo franqueador, restringindo
o campo de ação do franqueado. O autor demonstra que
existem contratos de franquia em que o franqueado
somente pode praticar certos atos com autorização do
franqueador, havendo várias obrigações que tolhem a ação
do franqueado, apesar de ser ele uma empresa
independente da franqueadora.
E estas situações de restrição de ações do
franqueado pelo franqueador decorrem do fato de ser o
contrato de franquia um contrato de adesão. Para Andrade
(1998, p. 28), as cláusulas previamente apresentadas por
uma das partes no contrato de franquia não podem ser
negociadas pela outra, circunstância que, para Bulgarelli
(1991, p. 97) não abala a autonomia da vontade pois o
franqueado pode inteirar-se do conteúdo do contrato antes
da sua adesão”.
Fran Martins (2016, p. 445) também demonstra
que a franquia formaliza-se por meio de um “contrato de
adesão, com cláusulas fixas, impressas, sendo muito pouco
aquilo que o franqueado pode aduzir ao previamente
imposto pelo franqueador”.
Deste modo, sendo um contrato de adesão, o
franqueador somente o formaliza com quem aceitar os
seus termos. Muitas vezes o franqueado anui porque
acredita no sucesso da operação como um todo, apenas
conseguindo discutir, em alguns casos, a porcentagem
sobre o faturamento e a extensão territorial da franquia”
(ANDRADE, 1998, p. 28).
Entendendo-se a franquia como um contrato
com relativa autonomia do franqueado, nos próximos
tópicos deste trabalho serão analisadas as peculiaridades do
196
Coleção Dinâmica Jurídica

contrato empresarial e a possibilidade da ocorrência de


assimetrias nas relações empresariais.

3. AS OBRIGAÇÕES EMPRESARIAIS E O
PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO DOS
CONTRATANTES OS CONTRATO

As obrigações empresariais obedecem a uma


lógica diversa daquelas de ordem civil, razão pela qual
merecem interpretações distintas. A lógica empresarial
decorre dos usos e costumes e de um padrão de
normalidade e previsibilidade do mercado que leva o
empresário a pautar o seu comportamento e as suas
decisões, calculando a jogada do outro contratante a fim de
aumentar a eficiência de sua atuação, reduzindo os riscos e
aumentando os lucros.
Forgioni (2015, p. 95) exemplifica
demonstrando que não se pode interpretar um contrato
entre o fornecedor e um distribuidor da mesma forma que
se interpreta a doação entre pais e filhos, e também que o
método de exegese de um testamento diverge daquele
utilizado para analisar uma grande fusão, ou ainda que os
negócios mercantis não merecem o mesmo tratamento
conferido aos contratos de consumo. Sintetizando, para
Ribeiro (2015, p. 66) os “contratos negociados entre
empresários não devem estar sujeitos às mesmas
normativas gerais de interpretação de um contrato entre
um empresário e um consumidor eventual”.
Na relação empresarial vige o princípio da
vinculação ao contrato, decorrente da autonomia da
vontade, segundo o qual os empresários estão vinculados
197
Coleção Dinâmica Jurídica

aos contratos que celebram entre si em grau maior do que


os trabalhadores e consumidores. Ainda segundo o
princípio, a revisão judicial de contratos somente deve
ocorrer em situações excepcionais em virtude de fatos
supervenientes e totalmente imprevisíveis às partes, sob
pena de se neutralizar a regra básica da competição,
afastando os lucros ou os prejuízos decorrentes de
decisões empresariais (COELHO, 2012).
A obrigação empresarial envolve algumas
especificidades, havendo a necessidade da identificação de
pressupostos subjetivos e objetivos para a sua
caracterização. Quanto ao pressuposto subjetivo, exige-se
que todas as partes envolvidas na obrigação sejam
empresárias. Já o pressuposto objetivo diz respeito à
natureza da obrigação, que deve decorrer do exercício da
atividade empresarial das partes envolvidas (COELHO,
2015, p. 13).
Sem a ocorrência de ambos os pressupostos,
não há obrigação empresarial. Um contrato entre
empresários não induz necessariamente à conclusão de que
se trata de um contrato empresarial. É possível que haja
uma relação de consumo, pois o art. 2º do Código de
Defesa do Consumidor42 admite que o consumidor seja
pessoa física ou jurídica, e em assim sendo, um empresário,
na relação com outro empresário, pode ser considerado
consumidor.
Portanto, afora o fato de se identificarem
empresários como sujeitos na obrigação, necessário que o

42Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor


Art. 2º. Consumidor é pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou
serviço como destinatário final.
198
Coleção Dinâmica Jurídica

objeto do contrato envolva a atividade empresarial dos


contratantes. Este aspecto é destacado por Márcia Carla
Pereira Ribeiro (2015, p. 56) ao mencionar serem os
contratos empresariais aqueles “cujos contratantes são
empresários, no exercício da atividade profissional”,
ressaltando ainda que, em tais contratos há uma presunção
de que os contratantes apresentam “condições similares de
acesso à informação e análise dos riscos que permeiam
toda a negociação empresarial”.
Uma outra característica da obrigação
empresarial diz respeito ao intuito lucrativo ressaltado por
Forgioni (2010, p. 29) no contrato empresarial como um
aspecto que o diferencia dos contratos civil e de consumo,
pois nestes nem sempre o lucro consiste no objetivo das
partes envolvidas, ao contrário do contrato empresarial,
em que as partes sempre almejam o lucro.
Essas especificidades do contrato empresarial
decorrem da livre concorrência, erigida a princípio da
ordem econômica no art. 170, V, da Constituição Federal.
Ao comentar o referido princípio, Coelho (2015, p. 16),
explica que um dos aspectos da liberdade de concorrência
“consiste em garantir uma estrutura econômica na qual
todos os agentes são devidamente estimulados e
devidamente desestimulados, segundo a lógica do livre
mercado” e conclui pela inconstitucionalidade de qualquer
lei que subverta esta lógica do livre mercado.
A consequência natural dessa lógica do livre
mercado consiste em premiar com lucro o empresário que
toma decisões acertadas e penalizar com prejuízos aquele
empresário que incorre em medidas equivocadas
(COELHO, 2015, p. 16).

199
Coleção Dinâmica Jurídica

Todo empresário sabe, ou deveria saber, que


ganhar ou perder faz parte das regras do jogo de mercado,
consequência direta do risco inerente a qualquer atividade
empresarial, erigido a princípio de Direito Comercial.
Coelho (2012) explica este princípio
demonstrando que em qualquer atividade empresarial, a
crise pode sobrevir à empresa mesmo nos casos em que o
empresário e o administrador agiram em cumprimento à
lei e aos seus deveres, e não tomaram nenhuma decisão
precipitada, equivocada ou irregular.
A lei não pode poupar os empresários dos
erros em que incorre na exploração da empresa, e que por
isso a revisão de contratos comerciais deve ocorrer apenas
em situações excepcionais, mas ressalta que o Judiciário
nem sempre tem clareza ao diferenciar “imprevisibilidade”
e “riscos empresariais”. O risco empresarial não autoriza a
revisão contratual, todavia algumas decisões judiciais e
reflexões doutrinárias têm distorcido o instituto da teoria
da imprevisão, aplicando a hipóteses que configuram
inerência do risco empresarial (COELHO, 2016).
Forgioni (2015, p. 84) reforça o argumento ao
defender que o contrato empresarial não pode ser
interpretado no sentido de neutralizar os prejuízos de
empresários que erram em suas estratégias, ressaltando que
“o sistema jurídico não pode obrigar alguém a não ter
lucro (ou prejuízo)”, mas apenas a agir com boa-fé e
segundo o princípios e regras de mercado.
Ciente das regras do jogo de mercado, qualquer
empresário estuda e adota suas estratégias confiando na
imutabilidade e respeito às regras do jogo. A alteração
dessas regras após o jogo em andamento, ou até mesmo
após encerrada alguma operação previamente estudada,
200
Coleção Dinâmica Jurídica

pode repercutir no resultado programado,


comprometendo os lucros pretendidos.
Forgioni (2015, p. 79; 84) explica o mercado
como uma ordem com regularidade e previsibilidade de
agir, onde “quem entra no mercado sabe que o seu agir (e
também o agir do outro) é governado por regras e, nessa
medida, os comportamentos são previsíveis”. E, confiando
nessa ordem, nas regras de mercado, os empresários
adotam comportamentos calculados, cujos resultados
possuem margens de previsibilidade. Um sistema que
possibilite um contratante liberar-se de seus compromissos
porque a operação não trouxe o lucro pretendido subverte
a ordem e a lógica do mercado, comprometendo o nível de
segurança e previsibilidade.
Dessa forma, nem a lei, nem o Poder Judiciário
devem interferir nessa lógica do mercado, sob pena de, em
se alterando as regras desse jogo, criar um ambiente de
insegurança jurídica que iniba investimentos e até mesmo
afaste aqueles já programados.
A lógica do mercado pressupõe um equilíbrio
entre os contratantes empresários, o que, segundo Ribeiro
(2015, p. 57, 66) “por estarem as partes em posições
equivalentes, estariam também aptas a exercer com
liberdade sua autonomia privada”, e quanto “maior a
liberdade, menor deve ser a possibilidade de interferência
da lei e do Poder Judiciário na avaliação de seus efeitos”,
daí não sendo recomendável uma intervenção que
comprometa a vinculação das partes ao contrato, salvo
situação excepcionais.
No entanto, ainda de acordo com Ribeiro
(2015, p. 57), essa presunção de equilíbrio entre os
empresários “depende da existência de uma estrutura de
201
Coleção Dinâmica Jurídica

mercado que permita o poder de escolha e de negociação a


todos os envolvidos”, caso contrário estar-se-á diante de
uma situação de dependência de uma parte em relação à
outra em virtude de limitadas opções decisórias, estando
caracterizada uma relação jurídica assimétrica.
A situação também é explicada por Forgioni
(2015, p. 76), segundo a qual “há empresários que
desfrutam de situação econômica vantajosa em relação ao
outro e são capazes de impor sua vontade, o contrato e as
respectivas condições, dominando o jogo da contratação e
utilizando-o a seu exclusivo favor” e, para a autora, nestas
condições há a necessidade da construção de um sistema
de tutela eficiente para esse contratante mais fraco. A
autora ressalta, ainda, que a situação explanada não se
refere a contratações coativas ou necessárias e nem mesmo
a relações consumeristas, mas a contratações tipicamente
empresariais.
As assimetrias empresariais originaram o
princípio da proteção ao contratante dependente, assunto
objeto de análise de agora em diante.

4. ASSIMETRIAS EM CONTRATOS
EMPRESARIAIS E O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO
A CONTRATANTE DEPENDENTE

Apesar de haver uma presunção de equilíbrio


nas relações jurídicas interempresariais, excepcionalmente
é possível o reconhecimento de assimetrias em alguns
contratos empresariais.
A assimetria nos contratos empresariais não
guarda proximidade com outras relações assimétricas
202
Coleção Dinâmica Jurídica

existentes no ordenamento jurídico, como aquelas


decorrentes do contrato de trabalho e da relação de
consumo.
Ribeiro (2015, p. 56) ressalta que nestes
contratos destaca-se uma disparidade intelectual,
econômica ou de acesso à informação do trabalhador ou
do consumidor, justificando “uma ação interventiva da lei,
na tentativa de reequilibrar os interesses, desequilibrados
em razão da disparidade, com francas limitações à
autonomia privadas”.
A assimetria no contrato de trabalho decorre na
hipossuficiência do trabalhador, presunção absoluta na
relação empregatícia e que justifica a existência de uma
proteção específica e ampla.
De acordo com Delgado (2008, p. 198), a
proteção ao empregado constitui um princípio cardeal do
Direito do Trabalho, favorável ao trabalhador, em virtude
do qual surge uma presunção que objetiva alcançar uma
“vantagem jurídica retificadora da diferenciação social
prática”.
Para Coelho (2015, p. 17), nos contratos de
trabalho “a assimetria está relacionada à necessidade do
trabalhador”, pois “a maioria das pessoas precisa trabalhar
para ganhar dinheiro para se sustentar e à família”.
Já na relação de consumo, a assimetria está ligada
à vulnerabilidade do consumidor, conforme reconhecido
no art. 4º, I, da Lei n. 8.078/90, o Código de Defesa do
Consumidor43.

43Art. 4º ...: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de


consumo;

203
Coleção Dinâmica Jurídica

O reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo representa o
princípio basilar do direito do consumidor. O consumidor
é a parte mais frágil na relação de consumo, por isso
merece uma proteção especial. Trata-se de uma presunção
absoluta, não se admitindo prova em contrário.
A vulnerabilidade do consumidor constitui
atributo que lhe é inerente e decorre do fato de ser o
destinatário final dos produtos e serviços disponibilizados
pelo fornecedor no mercado de consumo. Assim, a
vulnerabilidade independe da condição social, cultural ou
econômica do consumidor, caracteriza-se pelo fato de o
consumidor desconhecer as técnicas de produção. Adquire
produtos e serviços no mercado de consumo porque não
tem condições de exercer a atividade produtiva que é
dominada pelo fornecedor. Daí a sua vulnerabilidade
frente ao fornecedor (LAGES, 2016, p. 62).
O reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor possibilita que lhe seja assegurada uma série
de direitos e garantias, permitindo, dessa forma, um
tratamento diferenciado em relação ao fornecedor, a fim
de neutralizar a sua reconhecida superioridade frente ao
consumidor.
Segundo Nery Júnior (2007, p. 182), o princípio
da vulnerabilidade decorre do princípio constitucional da
isonomia, que confere tratamento desigual aos desiguais.
Como o consumidor é inferior ao fornecedor em virtude
da sua reconhecida vulnerabilidade, é possível dispensar
um tratamento desigual em favor do consumidor com o
objetivo de equilibrar a relação jurídica de consumo.
A doutrina reconhece quatro tipos de
vulnerabilidade: a técnica, a jurídica, a fática e a
204
Coleção Dinâmica Jurídica

informacional. Na primeira, o consumidor, por não deter


conhecimentos sobre o objeto adquirido, é mais facilmente
enganado quanto às características e a utilidade do produto
ou serviço, presumindo-se a sua existência para o
consumidor não profissional. A segunda decorre da
inexperiência do consumidor quanto ao mercado, pois não
tem conhecimento jurídico, contábil ou econômico e
dificilmente tem como recorrer a um especialista. Já a
terceira representa a fragilidade do consumidor nos
aspectos financeiro, social e cultural, está diretamente
ligada à ideia de hipossuficiência. E a vulnerabilidade
informacional vem a ser aquela decorrente de dados
insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de
influenciar no processo decisório de compra (MARQUES,
2013, p. 239).
Em síntese, enquanto na relação empregatícia a
assimetria decorre da hipossuficiência do trabalhador em
virtude de sua premente necessidade, na relação de
consumo a assimetria caracteriza-se pela vulnerabilidade
do consumidor manifestada pelo déficit informacional
frente ao fornecedor.
Se na relação de consumo e empregatícia as
assimetrias gozam de presunção absoluta, o mesmo não
ocorre nas relações empresariais. O contrato empresarial
pode ou não ser assimétrico.
Na relação empresarial, a assimetria não decorre
de necessidade e nem de déficit informacional. Não há que
se falar em hipossuficiência ou vulnerabilidade do
empresário. Segundo Coelho (2015, p. 18) “quanto alguém
decide empresariar, não o faz por não dispor de outra
opção para sustentar-se e à família. Não está sem outra
alternativa, como estão os trabalhadores. Empresaria
205
Coleção Dinâmica Jurídica

porque quer”. Ainda segundo o autor, também não há


déficit informacional, como nas relações de consumo, pois
o empresário conhece a atividade que desenvolve, possui
ampla noção sobre os produtos ou serviços que decorrem
do seu negócio.
A assimetria em alguns contratos empresariais
decorre da situação de dependência do empresário, o qual
precisará organizar a sua empresa segundo as orientações
emanadas de outro empresário, de acordo com o contrato
firmado. O empresário torna-se dependente por livre
opção, por entender ser uma decisão adequada a seus
interesses após sopesar custos e benefícios, vantagens e
desvantagens, como ocorre nos contratos de franquia,
distribuição e representação comercial. Trata-se de uma
decisão empresarial, com risco inerente a ser suportado
pelo empresário, pois quanto maior a dependência, maior
o risco agregado (COELHO, 2015).
Mesmo nas situações de dependência ocasionada
por livre decisão do empresário, com o risco inerente à
atividade desenvolvida que não pode servir de escusa
quanto a prejuízos ou revés empresarial, afora a autonomia
da vontade e vinculação plena ao contrato, o princípio da
proteção ao contratante dependente justifica a adoção de
medidas a fim de resguardar o empresário.
Forgioni (2015, p. 85) defende a adoção de tais
medidas protetivas por entender que “é preciso coibir os
abusos propiciados pela dependência econômica e um em
relação ao outro, sob pena de consagrarmos igualdade
meramente formal”.
A influência do princípio da proteção ao
contratante dependente nas decisões judiciais será objeto
de análise na próxima etapa deste trabalho.
206
Coleção Dinâmica Jurídica

5. AS ASSIMETRIAS CONTRATUAIS NA VISÃO


DO STJ

As assimetrias em contratos empresariais têm


justificado a adoção de um comportamento do Poder
Judiciário no sentido de alterar determinadas disposições
contratuais ou até mesmo influenciado algumas
interpretações mais favoráveis à parte que se encontra em
posição de dependência.
Tais decisões evidenciam uma influência do
princípio da proteção ao contratante mais dependente,
muito embora não haja uma menção expressa ao referido
princípio. Para fins de demonstração desta hipótese,
analisar-se-ão quatro decisões judiciais.
A primeira decisão judicial diz respeito a um
contrato de representação comercial omisso quanto à
cláusula de exclusividade. Na visão do representante, essa
omissão fazia presumir a exclusividade, o que fora
refutado pelo representado, fato que gerou uma demanda
judicial a fim de dirimir a controvérsia.
A ementa do julgado, em resumo, dispôs o
seguinte:

PROCESSUAL CIVIL E COMERCIAL.


RESCISÃO DE
CONTRATO. REPRESENTAÇÃO
COMERCIAL. ZONA DE
ATUAÇÃO. EXCLUSIVIDADE.
OMISSÃO CONTRATUAL.
POSSIBILIDADE
DE COMPROVAÇÃO. PAGAMENTO
DE COMISSÕES.
RESOLUÇÃO CONTRATUAL. (...) 2. É
possível presumir a existência de
207
Coleção Dinâmica Jurídica

exclusividade em zona de atuação


de representante comercial quando: (i) não
for expressa em sentido contrário; e
(ii) houver demonstração por outros meios
da existência da exclusividade. 3. A
resolução contratual é cabível nos casos de
inexecução do contrato, que pode ocorrer
de modo voluntário ou
involuntário, gerando efeitos
retroativamente (ex tunc). (...) 6. Recurso
especial parcialmente provido. STJ – Resp
1.634.077-SC – Rel. Min. Nancy
Andrighi – Dje. 21.03.2017

Da leitura da ementa do julgado percebe-se


apenas que houve entendimento no sentido de que a
exclusividade de zona de atuação do representando
comercial pode ser presumida quando não houver
disposição expressa em sentido contrário e quanto outros
elementos de prova atestem a existência de exclusividade.
Mesmo sendo a representação comercial um
contrato assimétrico, com relação de dependência do
representante, não há na ementa qualquer referência a esta
situação.
No entanto, na fl. 03 do voto da relatora,
extrai-se a afirmação no sentido de que uma das
características do contrato de representação comercial é “a
vulnerabilidade do representante em relação ao
representado”, circunstância que justifica a existência de
uma legislação estabelece algumas “regras protetivas nos
casos de rescisão contratual”.
Ou seja, mesmo sem fazer uma referência
expressa ao princípio da proteção ao contratante
208
Coleção Dinâmica Jurídica

dependente, a relatora aplicou implicitamente o


mencionado princípio em sua fundamentação ao
reconhecer a situação de assimetria na relação contratual.
Apesar da atecnia no uso do vocábulo
“vulnerabilidade” ao se referir à situação do representado,
em nenhum momento a relatora utilizou a expressão com
o sentido que lhe empresta o Direito do Consumidor. A
argumentação jurídica fez referência explícita à lei que rege
a matéria – Lei n. 4.886/65 –, sem jamais mencionar o
Código de Defesa do Consumidor, o que demonstra o
intuito da relatora em aplicar o princípio da proteção ao
contratante dependente.
Em um outro caso envolvendo contratos
assimétricos, o STJ também teve a oportunidade de aplicar
veladamente o referido princípio em demanda envolvendo
shopping center. Eis a ementa do julgado:

DIREITO CIVIL. SHOPPING


CENTER. INSTALAÇÃO DE
LOJA. PROPAGANDA DO
EMPREENDIMENTO QUE
INDICAVA A PRESENÇA DE TRÊS
LOJAS-ÂNCORAS.
DESCUMPRIMENTO DESSE
COMPROMISSO. PEDIDO DE
RESCISÃO DO CONTRATO. 1.
Conquanto a relação entre lojistas e
administradores de Shopping Center não
seja regulada pelo CDC, é possível ao
Poder Judiciário reconhecer a abusividade
em cláusula inserida no contrato de adesão
que regula a locação de espaço no
estabelecimento, especialmente na hipótese
de cláusula que isente a administradora de
responsabilidade pela indenização de
209
Coleção Dinâmica Jurídica

danos causados ao lojista. 2. A promessa,


feita durante a construção do Shopping
Center a potenciais lojistas, de que algumas
lojas-âncoras de grande renome seriam
instaladas no estabelecimento para
incrementar a frequência de público,
consubstancia promessa de fato de terceiro
cujo inadimplemento pode justificar a
rescisão do contrato de locação,
notadamente se tal promessa assumir a
condição de causa determinante do
contrato e se não estiver comprovada a
plena comunicação aos lojistas sobre a
desistência de referidas lojas, durante
a construção do estabelecimento. 3.
Recurso especial conhecido e improvido.
STJ – REsp 1.259.210-RJ – Min.
Massami Uyeda – DJe. 07.08.2012

Neste julgado, a celeuma girou em torno de


uma cláusula de isenção de responsabilidade relativa à
ausência de lojas âncoras prometidas pelo empreendedor
no shopping center. O empreendedor veiculou publicidade
a respeito da existência de lojas âncoras, as quais não
foram inauguradas.
O lojista tentou responsabilizar o shopping
alegando que as lojas âncoras asseguram um fluxo maior
ao shopping, fato levado em consideração pelos
contratantes ao decidirem firmar o contrato. Em sua
defesa o shopping apegou-se à cláusula de isenção de
responsabilidade e ao art. 54 da Lei n. 8.245/91 (Lei do
Inquilinato), o qual dispõe que “nas relações entre lojistas
e empreendedores de shopping center, prevalecerão as
condições livremente pactuadas nos contratos de locação
respectivos”, pugnando pelo respeito à autonomia privada.
210
Coleção Dinâmica Jurídica

O caso aportou no STJ, decidindo-se pela


responsabilização do shopping ao reconhecer a
abusividade da cláusula limitativa de responsabilidade. Não
houve incidência do Código de Defesa do Consumidor,
apesar de invocado pelo lojista.
Entendeu-se pela responsabilização do
shopping, com amparo ao lojista na qualidade de
contratante que estaria em uma situação de dependência.
Mesmo não havendo menção expressa ao princípio da
proteção ao contratante dependente na ementa transcrita,
entendeu-se que, em determinadas situações concretas,
mesmo em relações interempresariais, há limites à
autonomia da vontade. E ressaltou-se no voto que o
shopping center estaria em uma “posição dominante na
relação jurídica” e que, por este motivo, a inserção da
cláusula de isenção de responsabilidade representava um
abuso.
Mais uma vez o princípio da proteção ao
contratante dependente inspirou a fundamentação do
julgado, apesar de não haver menção expressa ao mesmo.
Em outro julgado do STJ, mais uma vez
percebeu-se a utilização velada do referido princípio. Segue
a ementa:

AGRAVO REGIMENTAL NO
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO
ESTABELECIDA CONTRATO DE
FRANQUIA.
VALIDADE. RECONHECIMENTO
DE HIPOSSUFICIÊNCIA POR ESTA
CORTE. APLICAÇÃO DA SÚMULA
7⁄STJ. 1. A jurisprudência deste Superior

211
Coleção Dinâmica Jurídica

Tribunal de Justiça entende que é válida


a cláusula de eleição de foro estabelecida
em contrato de franquia, exceto
quando reconhecida a hipossuficiência da
parte ou a dificuldade de acesso à justiça. 2.
A alteração dos fundamentos do acórdão
recorrido acerca da hipossuficiência
dos recorrentes demandaria o reexame do
acervo fático-probatório dos autos, o que
é inviável em recurso especial, nos termos
do enunciado n. 7 da Súmula do STJ. 3.
Agravo regimental a que se nega
provimento. STJ – AgRg no AREsp
563.993-GO – Rel. Min. Isabel Gallotti
– DJe 23.03.2015.

O caso diz respeito à nulidade de cláusula de


eleição de foro, sob o argumento de que a mesma fora
imposta abusivamente, dificultando o acesso à justiça.
Contrapondo o argumento, o franqueador invocou a
autonomia da vontade e a plena vinculação inerente aos
contratos empresariais.
Neste julgado, já na ementa é possível perceber
a presença da expressão “hipossuficiência da parte”
associada equivocadamente à dependência nos contratos
empresariais para ressaltar a assimetria na relação.
Também no voto, a expressão fora repetida algumas vezes.
Conforme já mencionado, o termo
“hipossuficiência” relaciona-se ao contrato de trabalho e
decorre da situação de necessidade do empregado, motivo
que justifica a existência de uma legislação protetiva. Na
relação empresarial não existe a hipossuficiência de um
empresário em relação ao outro, mas sim a dependência,
circunstância que pode limitar o campo de ação de uma
212
Coleção Dinâmica Jurídica

das partes em relação à outra. Daí a idealização do


princípio da proteção ao contratante dependente.
No julgado sob análise, o reconhecimento da
nulidade da cláusula de eleição de foro perpassou pelo
reconhecimento da assimetria na relação empresarial,
ensejadora de proteção à parte dependente em virtude da
dificuldade de acesso à justiça. Mais uma vez não houve
referência expressa ao princípio da proteção ao contratante
dependente, mas a utilização equivocada de uma expressão
– hipossuficiência da parte – com o intuito de conferir a
proteção resguardada pelo princípio àquele contratante
(franqueado) que se encontra em reconhecida posição de
dependência.
Além disso, cabe frisar que a decisão segue uma
linha de precedentes do STJ, o qual em outras decisões44,
envolvendo relatores diversos, tem reconhecido a nulidade
da cláusula de eleição de foro em contratos de franquia
quando inseridas em contratos de adesão com relações
assimétricas entre as partes.
E, por fim, um último julgado do STJ para
confirmar a hipótese de que o Poder Judiciário desconhece
alguns princípios de Direito Comercial, apesar de aplica-los
veladamente. Mais um caso envolvendo cláusulas
contratuais em franquias:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL


E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO
DE FRANQUIA. CONTRATO DE

44AgRg no REsp 1230286/SC, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe


29/05/2014;
AI 1.345.264/MS, rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 30/11/2010;
CC 32.877/SP, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 07/04/2003.
213
Coleção Dinâmica Jurídica

ADESÃO. ARBITRAGEM. REQUISITO


DE VALIDADE DO ART. 4º, § 2º,
DA LEI 9.307⁄96. DESCUMPRIMENTO.
RECONHECIMENTO PRIMA FACIE D
E CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
“PATOLÓGICA”. ATUAÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE.
NULIDADE RECONHECIDA.
RECURSO PROVIDO. (...) 2. O contrato
de franquia, por sua natureza, não está
sujeito às regras protetivas previstas no
CDC, pois não há relação de consumo, mas
de fomento econômico. 3. Todos os
contratos de adesão, mesmo aqueles que não
consubstanciam relações de consumo, como
os contratos de franquia, devem observar
o disposto no art. 4º, § 2º, da Lei 9.307⁄96. 4.
O Poder Judiciário pode, nos casos em
que prima facie é identificado um
compromisso arbitral “patológico”, i.e.,
claramente ilegal, declarar a nulidade dessa
cláusula, independentemente do estado em
que se encontre o procedimento arbitral. 5.
Recurso especial conhecido e provido. STJ
– REsp 1.602.076-SP – Rel. Min. Nancy
Andrighi – DJe 30.09.2016.

A exemplo do caso anterior, neste julgado


também se reconheceu a nulidade de cláusula contratual,
desta vez, um compromisso arbitral.
Sem adentrar no mérito da demanda, ou seja,
natureza e validade do compromisso arbitral, objetiva-se
analisar apenas uma possível influência do princípio da
proteção ao contratante dependente. Inegável que há
assimetria em alguns contratos de franquia e, portanto,
relação de dependência do franqueado, situação destacada
214
Coleção Dinâmica Jurídica

por Coelho (2012, p. 54) ao comentar o princípio da


proteção ao contratante dependente e exemplificar a
franquia como um contrato de relações assimétricas entre
as partes envolvidas.
Em determinado trecho do seu voto, a relatora
utiliza a expressão “contratante mais fraco” para se referir
ao franqueado e, por este motivo, sustentar a nulidade da
cláusula arbitral inserida no contrato de adesão. Também
deixou bem claro que o reconhecimento da nulidade não
decorria da incidência do Código de Defesa do
Consumidor, evidenciando que o contrato de franquia não
configura relação de consumo entre o franqueado e o
franqueador.
Ou seja, o reconhecimento da nulidade da
cláusula arbitral deu-se em virtude da compreensão de que,
em contratos empresariais assimétricos, deve-se conferir
um tratamento protetivo ao contratante dependente,
erroneamente denominado no voto de “contratante mais
fraco”.
Em todos os quatro julgados comentados neste
tópico percebeu-se a influência do princípio da proteção
ao contratante dependente. Muito embora não houvesse
menção expressa ao princípio, mas referência a termos e
vocábulos correlatos a assimetrias em outras relações
jurídicas não empresariais, ainda assim a intenção do
julgador consistia em amparar o contratante dependente
nos moldes pretendido pelo princípio.
Tal constatação demonstra o desconhecimento
do Poder Judiciário com relação aos princípios que são
próprios e afetos ao Direito Comercial, fato que
inegavelmente repercute na cultura jurídica disseminada
entre seus integrantes e influencia negativamente na
215
Coleção Dinâmica Jurídica

tomada de decisões em demandas que envolvem interesses


puramente empresariais.
Não raro, acarretam a aplicação, em demandas
empresariais, de princípios e regras de outras áreas do
direito, notadamente do direito civil e do direito do
consumidor, fragilizando a segurança jurídica e a
previsibilidade tão valorizadas no ambiente empresarial.

6. CONCLUSÃO

O presente artigo objetiva analisar a validade


das cláusulas de eleição de foro e cláusulas compromissória
de arbitragem em contratos de franquia.
Para tanto, abordou-se o seguinte: (1) a
franquia como uma modalidade de contrato empresarial
no qual há uma dependência do franqueado, (2) a natureza
das obrigações empresariais com a devida valorização da
autonomia privada e vinculação aos contratos, (3) a
possibilidade proteção ao contratante dependente nas
relações empresariais e (4) a forma como o Poder
Judiciário, em especial o STJ, tem enfrentado essas
questões envolvendo contratantes dependentes.
O problema arguido suscita uma colisão entre
dois princípios de Direito Comercial: vinculação dos
contratantes ao contrato e proteção ao contratante
dependente.
Havendo colisão entre princípios, ou seja,
quanto algo é proibido de acordo com um princípio e
permitido por outro, um dos princípios terá que ceder.
Mas isso não implica no reconhecimento da invalidade de
um dos princípios, apenas que um dos princípios tem
precedência em face do outro em determinadas condições,
216
Coleção Dinâmica Jurídica

ou seja, nos casos concretos os princípios têm pesos


diferentes e aquele com maior peso tem precedência.
Vários exemplos de soluções de colisões entre princípios
podem ser encontrados nos numerosos sopesamentos de
interesses realizados pelos tribunais superiores (ALEXI,
2015, p. 93-94).
Logo, havendo colisão entre os princípios da
vinculação dos contratantes ao contrato e da proteção ao
contratante dependente, a situação há de ser superada pela
ponderação do caso concreto, o que, no presente trabalho,
corresponde à validade (ou não) das cláusulas de eleição de
foro e cláusula compromissória de arbitragem nos
contratos de franquia.
Ambas as cláusulas foram objeto de análise
recente pelo STJ em demandas envolvendo franqueados e
franqueadores, reconhecendo-se a nulidade das mesmas,
em clara demonstração de preponderância do princípio da
proteção ao contratante dependente. Relembrando,
conforme explanado no tópico anterior deste trabalho, que
em nenhum dos casos houve a incidência do Código de
Defesa do Consumidor, apesar dos pleitos nesse sentido
formulados pelos franqueados.
Quanto à CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE
FORO, entende-se que a sua nulidade não compromete a
autonomia da vontade e nem a vinculação do contratante
ao contrato, principalmente quando a sua inserção ocorre
em contratos de adesão e enseje dificuldade de acesso à
justiça pelo franqueado.
Reconhecer a nulidade da cláusula de eleição de
foro e manter a demanda no domicílio do franqueado,
local onde a atividade de franquia fora desenvolvida, não
se mostra uma medida que subverte as regras do jogo de
217
Coleção Dinâmica Jurídica

mercado ou compromete a previsibilidade dos


comportamentos empresariais, ou seja, não traz
insegurança jurídica.
Além disso, não se trata de uma cláusula
referente ao núcleo do contrato de franquia. A sua
ausência não interfere na rotina empresarial ajustada entre
franqueador e franqueado no que diz respeito à
remuneração, zona de atuação, fiscalização, padronização,
exclusividade, obrigações das partes, sanções, dentre outras
tantas cláusulas comuns e até mesmo obrigatórias no
contrato de franquia.
Simão Filho (2000, p. 33-34) destaca os
seguintes elementos como essenciais à franquia:
distribuição, colaboração recíproca, preço, concessões de
autorizações e licenças, independência, métodos e
assistência técnica permanente, exclusividade e contrato
mercantil, aspectos também ressaltados por Fran Martins
(2016, p. 447) ao se referir às cláusulas que tratam ao prazo
do contrato, a delimitação do território e da localização, as
taxas de franquia, as quotas de vendas, o direito de o
franqueado vender a franquia e o cancelamento ou a
extinção do contrato. Ou seja, a nulidade da cláusula de
eleição de foro não afeta nenhum desses elementos.
Além disso, o Poder Judiciário continuará
competente para apreciar a demanda entabulada entre as
partes, alterando-se apenas a competência territorial.
Por estes motivos, entende-se que deve
prevalecer o princípio da proteção ao contratante
dependente, anulando-se a cláusula de eleição de foro e
deslocando-se a competência para o foro do domicílio do
franqueado, território onde o mesmo desenvolve a sua

218
Coleção Dinâmica Jurídica

atividade, desde que se trate de contrato de adesão e de


uma relação reconhecidamente assimétrica.
Já quanto à CLÁUSULA
COMPROMISSÓRIA DE ARBITRAGEM, entende-se
que o recente posicionamento do STJ em reconhecer a sua
nulidade em contratos de franquia45 compromete as regras
de mercado e pode trazer insegurança jurídica.
Levando-se em consideração a classificação do
Brasil como um país com ambiente pouco favorável à
realização de negócios segundo as últimas análises do
Banco Mundial46, e considerando ainda que a atuação do
Poder Judiciário repercutiu negativamente nesta análise,
óbvio que alguns contraentes têm buscado formas
alternativas de resolução de controvérsias, a exemplo da
arbitragem.
A compreensão de que a inserção de cláusulas
compromissórias de arbitragem em contratos de franquia
podem ser alvo de nulidade pelo Poder Judiciário poderá
repercutir no ambiente de negócios do país. Por óbvio que
muitos franqueadores, tomando conhecimento da
fragilidade das cláusulas contratuais, poderão optar por
não desenvolverem as suas atividades no país por não
desejarem submeter eventuais demandas a Poder Judiciário
local.
A nulidade da cláusula de arbitragem até
poderia ser validamente reconhecida caso a informação
não constasse na Circular de Oferta de Franquia ou
contrariasse alguma disposição da Lei n. 9.307/96, que

45 STJ – REsp 1.602.076-SP – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJe 30.09.2016, julgado
comentado neste artigo.
46 BANCO MUNDIAL. Disponível em:

<http://portugues.doingbusiness.org/rankings> Acesso em: 09 jun. 2017.


219
Coleção Dinâmica Jurídica

dispõe sobre a arbitragem. Mas isso não foi objeto de


discussão no STJ.
Ao comentaram a decisão do STJ, Orenga e
Ferrero (2016) mostraram preocupação afirmando que
caso se mantenha o entendimento quando à nulidade das
cláusulas de arbitragem corre-se o risco de se “alterar a
dinâmica contratual e negocial do mercado, gerando um
desequilíbrio preocupante para o mundo do franchising”.
Sendo uma cláusula contratual determinante da
vontade de uma das partes em firmar o contrato, ou seja,
uma condição essencial sopesada no momento da
contratação por alguma das partes não querer submeter-se
ao Poder Judiciário, regra que o contratante espera que seja
respeitada, mostra-se temerário desconsiderá-la, em franca
alteração das regras do jogo de mercado.
No dizer de Forgioni (2015, p. 86-87), a
autonomia privada constitui uma viga mestra no sistema
do mercado, e compete a direito preservar a fluência das
relações econômicas por meio de um sistema que viabilize
o respeito às regras do jogo de mercado, entre as quais
destaca-se a regra do pacta sunt servanda.
Diferente do entendimento quanto à nulidade
da cláusula de eleição de foro, na qual mantem-se o Poder
Judiciário na análise da demanda, modificando-se apenas a
competência territorial, na nulidade da cláusula de
arbitragem exclui-se por completo a vontade das partes de
submissão da demanda ao procedimento arbitral. Esta
circunstância compromete a segurança jurídica, bem como
a previsibilidade e a calculabilidade das partes quanto às
estratégias comerciais, custos previstos e tempo estimado
de duração de eventuais demandas.

220
Coleção Dinâmica Jurídica

E isso interfere na proteção jurídica do


investimento privada - PJIP, aspecto que, no entendimento
de Coelho (2015, p. 239), representa um importante
instrumento observado pelos empresários ao tomarem
decisões sobre investimentos em determinados países,
sendo mais propícios a investimentos aqueles em que há
uma elevada PJIP. Para análise do grau de PJIP aferem-se
as normas e princípios vigentes e a maneira como são
interpretados e aplicados.
Decisões judiciais que extrapolam a margem
razoável de imprevisibilidade, tais como a que reconhece a
nulidade de uma cláusula compromissória de arbitragem,
causam impactos na atividade empresarial, principalmente
na composição do preço. Na composição do preço o
empresário realiza uma série de cálculos nos quais são
levados em consideração não só a matéria prima e
insumos, mas também a mão de obra e os encargos a ela
inerentes, os tributos, o risco, as ações judiciais, a
inadimplência e o lucro.
Quanto maior o número de intercorrências
agregadas ao custo do produto ou serviço, maior será o
impacto no preço final a ser suportado pela sociedade. E
em um ambiente de imprevisibilidade de decisões judiciais
o empresário tende a alargar suas margens para suprir as
incertezas. Consequentemente, o preço tende a se elevar,
por vezes até mesmo inviabilizando a atividade
empresarial.
Esse fenômeno é explicado por Coase (2016, p.
115) ao afirmar que a concessão de uma ordem judicial (ou
o conhecimento de que seria concedida) pode resultar no
encerramento de uma atividade ou impedir que seja

221
Coleção Dinâmica Jurídica

iniciada, em virtude dos custos que podem gerar para o


empreendedor.
Portanto, quanto à cláusula compromissória de
arbitragem, entende-se que deve prevalecer o princípio da
vinculação dos contratantes ao contrato, decorrência direta
da autonomia da vontade, mantendo-se a arbitragem como
ambiente obrigatório de solução de eventuais demandas
envolvendo o contrato de franquia.

222
Coleção Dinâmica Jurídica

REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed.


São Paulo: Malheiros, 2015.
ANDRADE, Jorge Pereira. Contratos de franquia e leasing.
3ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral dos contratos
típicos e atípicos. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.
BULGARELLI, Waldirio. Contratos Mercantis. 10ª ed. São
Paulo: Atlas, 2008.
COASE, Ronald Harry. A firma, o mercado e o direito. Rio
de Janeiro: Forense, 2016.
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