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Coleção Dinâmica Jurídica.

Volume 1. Contratos: análise


multifacetada
De acordo com a Lei no 9.610, de 19/2/1998, nenhuma parte deste livro pode
ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de
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detentor dos direitos autorais.

Autor: Alexandre Bento Bernardes de Albuquerque, Ana Leticia Anarelli


Rosati Leonel, Igoor Moura Maciel, Luís Cinéas de Castro Nogueira,
Maria Dione Carvalho de Moraes, Natasha Karenina de Sousa Rego,
Patrícia Luz Cavalcante, Paula Maria do Nascimento Masulo, Perpetua
do Socorro Carvalho Neta e Rafael Oliveira Santos.
Organizador: Luís Cinéas de Castro Nogueira
Capa: José Renato Ferraz Ponce
Diagramação: Francisco Carlos Cardoso
Bibliotecária: Irla Maria Castelo Branco

FICHA CATALOGRÁFICA

Patrícia Luz Cavalcante, Natasha Karenina de Sousa Rego, Alexandre Bento


Bernardes de Albuquerque e Luis Cineas de Castro Nogueira
M Coleção Dinâmica Jurídica. – Teresina: Dinâmica Jurídica,
2016.
315 p.
Bibliografia
ISBN:

1.
CDD

CONSELHO EDITORIAL

Dra. Adriana Borges Ferro Moura.


Dr. André Vasconcelos Roque
Dra. Naiara de Moraes e Silva
Dr. Nelson Juliano Cardoso Matos
Dra. Joana Moraes Souza
Msc. Eliana Freire do Nascimento
Msc. Francisco Robert Bandeira Gomes da Silva
Msc. Jarbas Gomes Machado Avelino
Msc. José Octávio de Castro Melo
MSc. Lenadro Cardoso Lages
Msc. Nestor Alcebíades Mendes Ximenes

2016, EDITORA DINÂMICA JURÍDICA


Rua Visconde da Parnaíba, 1439, Horto Florestal.
CEP – 64049-570 / e-mail: comercial@dinamicalaboral.com.brr
SUMÁRIO

A ILICITUDE DA COBRANÇA LEGAL ........................ 7


Alexandre Bento Bernardes de Albuquerque
1. A relação obrigacional.................................................... 8
2. A exigibilidade da relação obrigacional ..................... 13
3. O surgimento de ilegalidade ........................................ 17
4. Formação da relação e boa-fé objetiva ...................... 23
5. A dignidade da pessoa humana .................................. 26
6. O dano moral ................................................................ 31
7. O dano moral decorrente da cobrança legal ............. 34
REFERÊNCIAS ........................................................................ 40

FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS:


CONSTITUCIONALIZANDO O CONTRATO
NA SOCIALIZAÇÃO DO DIREITO............................... 42
Ana Leticia Anarelli Rosati Leonel
1. Introdução ..................................................................... 44
2. Direitos fundamentais nas relações entre particulares:
o contrato no estado constitucional ......................... 47
1.1 A constitucionalização do direito:
constitucionalizando o contrato ................................. 59
3. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas: a não incidência, a doutrina da state
action, suas atenuantes e as teorias sobre a
aplicação dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares........................................................... 66
2.1 Aplicação indireta ou mediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas: os efeitos
indiretos ......................................................................... 72
2.1.2 Principais críticas a respeito da teoria da aplicação
indireta dos direitos fundamentais nas relações
privadas .......................................................................... 77
2.2 Aplicação direta ou imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas: os efeitos
diretos ............................................................................ 80
4. Considerações finais .................................................... 99
REFERÊNCIAS ..................................................................... 101

A CONFIGURAÇÃO DO VÍNCULO DE
EMPREGO NOS CONTRATOS DE
MOTORISTAS AUTÔNOMOS COM A UBER. ...... 105
Igor Moura Maciel
1. Introdução................................................................... 106
2. Dos requisitos configuradores da relação
de emprego ................................................................. 112
3. Da mitigação da subordinação jurídica em casos
de teletrabalho e a configuração deste requisito
nos contratos entre motorista e uber ...................... 115
4. Da análise dos demais requisitos do vínculo
empregatício no contrato entre motorista
e uber ........................................................................... 119
5. Conclusão .................................................................... 124
REFERÊNCIAS ..................................................................... 126

A NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DO


ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO ........................ 128
Luis Cineas de Castro Nogueira
1 Introdução................................................................... 129
2 Desenvolvimento ....................................................... 131
3. Considerações finais .................................................. 138
BIBLIOGRAFIA .................................................................... 139
ANEXO I................................................................................. 140
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
AUTÔNOMO ......................................................................... 140
EFICÁCIA DOS DIREITOS ............................................145
NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO: UM
NOVO CAMPO DE DISPUTAS, A PARTIR DOS
ANOS 1990, NO AGRONEGÓCIO NO PIAUÍ ........145
Paula Maria do Nascimento Masulo
Maria Dione Carvalho de Moraes
1. Introdução ...................................................................147
2. Negociação coletiva de trabalho no Brasil:
marcos legais ...............................................................154
3. Negociações coletivas no Agronegócio no Piauí:
grãos, cana-de-açúcar e carnaúba ...........................163
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................178
REFERÊNCIAS ......................................................................179

O CONTRATO SOCIAL E VARIAÇÕES DO


CONCEITO DE SOBERANIA NO CONTEXTO
DOS DIREITOS HUMANOS. .........................................184
Natasha Karenina de Sousa Rego
1. Introdução ...................................................................186
2. O contrato social e o conceito clássico de soberania ..
.......................................................................................188
3. Novos delineamentos do conceito de soberania ...201
4. Considerações finais ...................................................214
REFERÊNCIAS ......................................................................215

ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA DO CONTRATO


ATUAL......................................................................................218
Patrícia Luz Cavalcante
1. Introdução ...................................................................222
2. Desenvolvimento........................................................230
3. Considerações finais ...................................................247
REFERÊNCIAS ......................................................................250
DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA NA IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA ........................................................... 251
Perpetua do Socorro Carvalho Neta
1. INTRODUÇÃO ........................................................ 253
2. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ........................ 256
3. PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE DO
INTERESSE PÚBLICO .......................................... 265
4. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE ..... 266
5. UM COMPARATIVO COM DIREITO
PENAL........................................................................ 269
6. A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL ......... 271
7. CONCLUSAO ........................................................... 282
REFERÊNCIAS ..................................................................... 284

O CONTRATO DE TERCEIRIZAÇÃO À LUZ DO


ORDENAMENTO JURIDICO BRASILEIRO ......... 286
Rafael Oliveira Santos
1. INTRODUÇÃO ........................................................ 287
2. LINHAS HISTÓRICAS DO CONTRATO
DE TERCEIRIZAÇÃO .......................................... 290
3. ASPECTOS GERAIS DO CONTRATO DE
TERCEIRIZAÇÃO .................................................. 294
4. PROJETO DE LEI 4330/2004 .............................. 302
5. TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO
PUBLICA ................................................................... 306
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................. 310
REFERÊNCIAS ..................................................................... 313
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A ILICITUDE DA COBRANÇA LEGAL


Alexandre Bento Bernardes de Albuquerque1

RESUMO:
A relação obrigacional trata da ligação em que o
credor pode impor seu direito de exigir e receber a
prestação devida. Tem-se como natural e mero
exercício de direito a atuação do credor a fim de
impor o cumprimento da citada prestação. Ocorre
que por algumas vezes o mero exercício de direito
pode ultrapassar os limites da licitude. A ação do
credor deve ser pautada na legalidade, mesmo que
seja permitida não pode o credor impor sua vontade
de forma que afete a esfera jurídica do devedor,
gerando dissabores e abalo no íntimo do pólo
passivo da relação obrigacional. O artigo busca
mostrar que mesmo obedecido o limite imposto
pela lei para realizar a cobrança de valores devidos,
o credor pode submeter o devedor a situações
vexatórias, que podem acarretar danos, devendo
estes serem indenizados e não mais praticados.
PALAVRAS CHAVES: OBRIGAÇÕES.
DANOS. COBRANÇA AMIGÁVEL.

1 Graduado pela UFPI, em 1996. Especialista em Processo pela


UFSC/ESAPI, em 2000. Advogado e Professor de Direito Civil II
(Obrigações) e Prática Civil na Faculdade Estácio/CEUT. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9512250896732070. E-mail:
alexalbuquerque@hotmail.com

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ABSTRACT
The obligatory relationship is the connection that
the lender may enforce its right to demand and
receive the benefit payable. It has been a natural and
mere exercise of the right to the creditor's action to
impose the implementation of that provision. It
happens that sometimes by the mere exercise of
rights may exceed the limits of legality. The
creditor's action must be based on legality, even if it
is permitted can not impose its will the lender in
order to affect the legal position of the debtor,
generating unpleasantness and upheaval in the
depths of the defendant obligatory relationship. The
article seeks to demonstrate that even obeyed the
limit imposed by law to perform the collection of
amounts due, the creditor may refer the debtor to
embarrassing situations, which can cause damage,
which must be indemnified and no longer practiced.

KEY WORDS: OBLIGATIONS. DAMAGE.


BILLING FRIENDLY.

A relação obrigacional

Os indivíduos, a fim de obter os bens capazes


de satisfazer seus interesses e necessidades, realizam
ligações com outros indivíduos, de forma que

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

surgem relações capazes de proporcionar os itens


almejados. O interesse se apresenta como o
combustível que movimenta estas relações,
Carnelutti (2004, p. 55) assim explica:

Interesse não significa um juízo,


mas uma posição do homem, ou
mais exatamente: a posição
favorável à satisfação de uma
necessidade. A posse do alimento
ou do dinheiro é, antes de tudo, um
interesse, porque quem possui um
ou outro está em condições de
satisfazer a sua fome.
Os meios para a satisfação das
necessidades humanas são os bens.
E se acabamos de dizer que
interesse é a situação de um homem,
favorável à satisfação de uma
necessidade, essa situação se
verifica, pois, com respeito a um
bem: homem e bem são os dois
termos da relação que
denominamos interesse. Sujeito do
interesse é o homem e objeto
daquele é o bem.

No âmbito civil surge a relação obrigacional,


esta coloca as pessoas em uma ligação capaz de
satisfazer o interesse de uma das partes por

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

determinado bem. Afaste-se do pensamento de uma


situação estática, como se o indivíduo que apresenta
interesse por determinado bem ficasse em berço
esplêndido aguardando a finalização da obrigação,
apesar desta visão padronizada, a relação
obrigacional é um conjunto de atos destinados a
esta satisfação, Silva (2006, p. 10) melhor expõe esta
dinâmica da relação:

A compreensão da relação
obrigacional como totalidade ou
como sistema de processos permite
uma melhor e mais adequada
intelecção dos elementos que a
compõe, unindo-os todos por um
laço de racionalidade. O número
desses elementos foi
expressivamente ampliado, no
século XIX, especialmente pela
doutrina alemã, ao nos legar “o
exame minucioso dos componentes
estruturais da eficácia jurídica,
colocando, ao lado do direito
propriamente dito, a pretensão, a
ação em sentido material, assim
como os direitos formativos e as
posições jurídicas, correspondendo
aos primeiros o dever, a obrigação e
a exceção do direito material”. A
esse elenco o princípio da boa-fé
agregou ainda os deveres anexos

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

(Nebenpflichte), secundários ou
instrumentais, que podem surgir
“durante o curso e o
desenvolvimento da relação jurídica
e, em certos casos, posteriormente
ao adimplemento da obrigação
principal. Consistem em indicações,
atos de proteção, como o dever de
afastar danos, atos de vigilância, de
guarda, de cooperação, de
assistência”

Exemplificando a situação: um determinado


indivíduo tem interesse na aquisição de um carro,
em decorrência desta vontade ele encaminha-se a
uma concessionária de veículos, neste momento, em
contato com representante, ou vendedor, o
indivíduo busca aquele item que melhor suprirá seu
interesse. Apresentadas as propostas, o comprador
escolhe o veículo que deseja e são ofertadas as
formas de pagamento, o indivíduo fecha negócio.
Resta a entrega do carro e a realização do
pagamento.
O disposto no exemplo tratou justamente do
processo obrigacional, interesse, tratativas iniciais,
pré-contrato, contrato, pagamento. Esta é a
condução da obrigação, a mesma se desenvolve de
forma ativa, sendo movida pelo fim maior que é a

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

entrega do bem pactuado e satisfação do interesse


do Credor da relação.
Afirma Noronha (2010, p. 55): “Toda
obrigação tem por finalidade a satisfação de um
interesse do credor [1.3].Ora, é através da prestação
debitória que tal interesse é satisfeito”. Este
interesse do credor demonstra o ponto culminante
da relação obrigacional, qual seja o pagamento.
Resume este momento da relação obrigacional
Gomes (apud ALBUQUERQUE, 2013, p. 173):
“Nascem as obrigações para ser cumpridas, mas, no
exato momento em que se cumprem, extinguem-se.
O adimplemento é, com efeito, o modo natural de
extinção de toda relação obrigacional”.
Havendo o pagamento do pactuado, não
surgem grandes questões ou problemas
excepcionais, a relação jurídica foi cumprida e deve
ser extinta2. A problemática pode surgir em razão
do inadimplemento da relação obrigacional.
Quando o devedor não cumpre o seu papel, surge o
direito do credor exigir o patrimônio do daquele e
impor o cumprimento da relação obrigacional.
Miranda (2003, p.43) assim afirma:

O credor tem pretensão contra o

2 Excetuado, logicamente, os direitos laterais provenientes da boa-fé objetiva


e eventuais vícios da prestação.

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

devedor, isto é, pode reclamar a


prestação que lhe é devida e a que o
devedor está na obrigação. Nessa
relação, são sujeitos ativo e passivo
ele e o devedor. A ação nasce do
inadimplemento. O exercício da
ação era entregue ao próprio credor,
mas, tendo o Estado proibido, em
princípio, a justiça de mão própria,
monopolizou a justiça. O credor
expõe o seu direito, aponta a
pretensão e ação, que tem, e pede
que o Estado cumpra a sua
promessa de fazer ser respeitado o
direito. Essa pretensão contra o
Estado é inconfundível com a
pretensão contra o devedor, res in
iudicium deducta.

É direito do credor exigir a prestação da


relação obrigacional, no entanto o mesmo não pode
impor o cumprimento da relação obrigacional com
base em imposição personalíssima da obrigação, ele
pode exigir, por meio do poder jurisdicional do
Estado, através de uma das ações judiciais para esta
situação.

A exigibilidade da relação obrigacional

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Como falado alhures, uma vez não entregue a


prestação nasce ao credor o direito de exigi-la do
devedor. Esta exigibilidade obedece a
procedimentos próprios e individuais, segundo os
quais, e obedecidas as formalidades, poderá o
credor receber a prestação por meio da
apresentação do patrimônio do devedor, tais
procedimentos, são:
A Ação Monitória, segundo a lei n.º 13.105/15
(novo Código de Processo Civil):

Art. 700. A ação monitória pode ser


proposta por aquele que afirmar,
com base em prova escrita sem
eficácia de título executivo, ter
direito de exigir do devedor capaz:

O Processo Executivo, segundo a lei n.º


13.105/15 (novo Código de Processo Civil):

Art. 771. Este Livro regula o


procedimento da execução fundada
em título extrajudicial, e suas
disposições aplicam-se, também, no
que couber, aos procedimentos
especiais de execução, aos atos
executivos realizados no
procedimento de cumprimento de
sentença, bem como aos efeitos de

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

atos ou fatos processuais a que a lei


atribuir força executiva.

E a Ação de Cobrança, que tem por base a


combinação do art. 318, da lei n.º 13.105/15 (novo
Código de Processo Civil) com o art. 389, do
Código Civil, veja-os:

Art. 318. Aplica-se a todas as causas


o procedimento comum, salvo
disposição em contrário deste
Código ou de lei.
Parágrafo único. O procedimento
comum aplica-se subsidiariamente
aos demais procedimentos especiais
e ao processo de execução.
Art. 389. Não cumprida a obrigação,
responde o devedor por perdas e
danos, mais juros e atualização
monetária segundo índices oficiais
regularmente estabelecidos, e
honorários de advogado.

Estes são os remédios processuais para o


credor ter seu interesse satisfeito, no entanto,
algumas vezes o sujeito ativo realiza atos
particulares e sem a participação do Estado, a fim
de conseguir o recebimento de sua prestação. As
razões para isto podem ser a economia financeira,

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

dinâmica da obrigação, fé na composição amigável


ou esperança que houve mero esquecimento do
devedor, ou mesmo questões de foro íntimo.
Esta forma de exigir o cumprimento da
obrigação é chamada de cobrança extrajudicial ou
amigável. O credor utiliza este tipo de cobrança
como forma de evitar a judicialização do
inadimplemento. Assim, ocorre a cobrança do
débito diretamente ao devedor, sem imposição de
ordens judiciais, com a expectativa que ocorrerá
uma composição amigável e o cumprimento da
obrigação.
Estas cobranças amigáveis normalmente são
feitas por carta (inclusive via e-mail) ou contato
telefônico (desde mensagens por sms ou por
aplicativos de conversação, tais como o whatsapp),
podendo, inclusive, acontecer a visitação no
domicílio do devedor.
Estas cobranças amigáveis têm o intuito de
proporcionar ao devedor a rápida solução do
inadimplemento, podendo fornecer o desconto de
partes do débito ou de seus acessórios, sempre
visando o cumprimento da prestação, e, em algumas
vezes, a própria extinção da relação obrigacional.
Importante lembrar que estas cobranças
extrajudiciais podem ser realizadas pelo próprio
credor ou por representantes (escritório de
advocacia e firmas de cobrança). Em todas as

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

situações narradas a cobrança deve obedecer a


parâmetros legais para exigência de débitos, tais
como limites legais dos juros e da correção
monetária, bem como não podem submeter o
devedor a qualquer tipo de situação vexatória.

O surgimento de ilegalidade

Não há ilegalidade na cobrança extrajudicial, o


credor ou seus representantes podem utilizar este
remédio para receber a prestação sem a participação
do Estado. A lei n.º 13.105/15 (novo Código de
Processo Civil) incentiva as formas alternativas de
solução de conflito de interesse, veja o parágrafo 3º,
do art. 3º, deste diploma: “A conciliação, a
mediação e outros métodos de solução
consensual de conflitos deverão ser estimulados
por juízes, advogados, defensores públicos e
membros do Ministério Público, inclusive no curso
do processo judicial.”
A tentativa de resolver amigavelmente o
inadimplemento pode e deve ser realizada.
Inegavelmente tal ato possibilita a rápida solução do
conflito, bem como a redução de custos da
cobrança. Este tipo de cobrança é legal, podendo
ser realizada e pactuada entre credor e devedor.
Os problemas surgem quando o ímpeto do

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

credor em receber seu crédito não respeita os


direitos do devedor. Isto acarreta excesso na
cobrança, exposição do devedor ou, até mesmo,
ameaças à incolumidade física do sujeito passivo da
relação. Não há dúvidas que estes atos são ilegais,
gerando o direito ao devedor de ser reparado pela
conduta do credor ou seus representantes, apenas
para exemplificar este tipo de conduta veja (DVD
Magister, ed.63, Agos/Set 2015):

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
NO AGRAVO INTERNO NA
APELAÇÃO CÍVEL.
COBRANÇA VEXATÓRIA EM
AMBIENTE DE TRABALHO.
DEVER DE INDENIZAR
ATRIBUÍDO AO
EMBARGANTE. OMISSÃO E
CONTRADIÇÃO AUSENTES.
PRETENSÃO DE REDISCUTIR
A MATÉRIA.
PREQUESTIOAMENTO. 1. O
dever de indenizar atribuído ao
embargante decorre da cobrança
vexatória por ele efetuada em
ambiente de trabalho da embargada,
o que configura constrangimento
passível de reparação (danos
morais). 2. Não merecem acolhida
os embargos opostos de acórdão
insuscetível de complementação,

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

cujos pontos relevantes ao deslinde


do conflito foram devidamente
abordados e decididos. Assim,
afiguram-se incabíveis os embargos
declaratórios se inexistente qualquer
dos vícios enumerados no art. 535
do CPC, notadamente a
contradição, pois esta apenas se
verifica quando ocorre
incompatibilidade entre as razões de
convencimento adotadas pelo órgão
judicante ou incongruência entre a
fundamentação e o dispositivo do
acórdão embargado, o que não é o
caso. 3. Não há falar em violação ao
art. 535 do código de processo civil
quando o aresto recorrido adota
fundamentação suficiente para
dirimir a controvérsia, sendo
desnecessária a manifestação
expressa sobre todos os argumentos
apresentados pelas partes.
Embargos de declaração rejeitados.
(TJ-GO; AC-EDcl 0117988-
09.2013.8.09.0051; Goiânia;
Segunda Câmara Cível; Rel. Des.
Maurício Porfirio Rosa; DJGO
28/08/2015; Pág. 119)

O caso transcrito deixa patente a existência de


ilegalidade praticada pelo Credor, sendo cediço que
o ordenamento jurídico não permite qualquer tipo

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

de conduta capaz de constranger ou submeter o


devedor ao ridículo.
Todavia existem situações em que o credor
utiliza em seu benefício a lei, solicita licitamente
(forma amigável) o pagamento da dívida, contudo,
gerando instabilidade na esfera jurídica do devedor,
causando danos à sua pessoalidade e a seu íntimo.
Veja dois casos que melhor exemplificam esta
situação:
a) Comunicado por e-mail ou carta
O devedor pode receber comunicados de seu
débito, mas o teor destas correspondências, por
vezes, impõe terror ao devedor, veja que o mesmo,
muitas vezes, não paga por problemas tais como a
perda do emprego ou dificuldades financeiras por
questão de saúde ou familiar.
Neste contexto de sua vida, ele recebe o
seguinte texto3:

Após inúmeras tentativas de acordo


sem sucesso e na qualidade de
Representante do (...), tendo em
vista que o financiamento não está
sendo pago, desta forma estamos
providenciando o bloqueio judicial

3 Alguns trechos foram suprimidos, a fim de resguardar a empresa de


cobrança

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

do bem através de ação jurídica.


Por esta razão, solicitamos o seu
contato através deste e-mail ou
através dos telefones:
0800 (...) ou (11) (...) no prazo
máximo de 12 horas a contar do
recebimento desta.
O não atendimento da presente no
prazo assinalado implicará no
desinteresse por parte de V. Senhor
(a) a todo e qualquer entendimento
amigável, restando descartada
outra oportunidade de
negociação e ensejando o
imediato ajuizamento das
medidas competentes para
cobrança do debito ou retomada
do bem.
Art. 652 − "O executado será citado
para no prazo de 3 (três) dias efetuar
o pagamento da dívida."
Art. 659 − "A penhora deverá
incidir em tantos bens quantos
bastem para o pagamento do
principal atualizado, juros, custas e
honorários advocatícios."
TRABALHAMOS TAMBÉM
COM ENTREGA AMIGAVEL
QUITATIVA.
Obs.: Caso o débito já tenha sido
regularizado, por gentileza,

21
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

desconsiderar esta mensagem.

Os grifos e afirmações são originais do texto.


Este, apesar de legal, pode gerar não apenas
desconforto, mais afligir mais ainda a parte fraca da
relação contratual, aquele que não dispõe da
prestação. Pode ser ilícita esta situação?
b) Insistência e repetição via telefone (ligação ou
mensagem de texto)
Outra situação que é permitida seria a busca
do contato pessoal com o devedor por telefone, seja
por fala oral ou escrita. Esta tentativa de cobrança
amigável é lícita, vez que faz parte da possibilidade
de abrir as tratativas para recebimento da prestação
por parte do credor.
Novamente insira-se no contexto: uma pessoa
que deixou de pagar uma determinada parcela de
um débito (por exemplo: uma cota de um
empréstimo). O credor tem o direito de ligar e,
amigavelmente, propor solução para o pagamento
da prestação, até mesmo conceder novos prazos ou
descontos sobre o débito.
Veja a seguinte agenda:
01º Ligação - 8:00 h - discadora automática
com voz digital;
02ª Ligação - 9:00 h - Atendente que solicita

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

seus dados para realizar o contato e informar do


que se trata;
03ª a 10ª Ligação - entre as 10:00 h e 20:00 h.
Concomitantemente várias mensagens de SMS ou
aplicativos de conversação expondo a necessidade
de negociação, última chance para pagamento ou
impondo o ajuizamento de ações.
Em tese, todas estas situações são normais e
não são vexatórias, mas fica a pergunta, como
poderá o devedor dispor de seu dia para realizar
suas atividades, muitas delas necessárias para
angariar recursos e pagar a prestação devida, sem a
estabilidade mental e íntima necessária para tanto?

Formação da relação e boa-fé objetiva

A relação obrigacional depende do laço


existente entre as partes, segundo o qual essas
apresentam seus interesses em obter determinada
satisfação. Esta satisfação é necessária à obtenção
da quitação da prestação.
As partes envolvidas em um contrato (relação
obrigacional) sabem o conjunto de deveres e
direitos provenientes do vínculo, inclusive os efeitos
do não cumprimento da prestação (o credor poderá
cobrar, exigir acréscimos e dispor o nome do
devedor em cadastro de inadimplentes). As partes

23
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

têm estas regras estipuladas pelas cláusulas


contratuais, sejam verbais ou escritas, elas impõe
como o contrato deve ser cumprido.
O contrato não esgota por si só os deveres
existentes entre credor e devedor. Estes são
obrigados, também, a guardar o respeito e lealdade
para efetivação do negócio jurídico, assim expõe
Martins-Costa (1999, p. 393/394):

Quer-se com isto afirmar que pode


a relação de obrigação, no
transcorrer de sua existência, muitas
vezes em razão das vicissitudes que
sofre, gerar outros direitos e deveres
que não os expressados na relação
de subsunção entre a situação fática
e a hipótese legal, ou não indicados
no título, ou ainda poderes
formativos geradores, modificativos
ou extintivos, e os correlatos
estados de sujeição; pode, por igual,
importar na criação de ônus
jurídicos e deveres laterais, anexos
ou secundários ao dever principal,
ao qual corresponderão, por sua
vez, outros direitos subjetivos,
mesmo que não expressamente
previstos nem na lei, nem no título.

Esta situação apresenta a cláusula geral da boa-

24
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

fé objetiva, capaz de transpor as barreiras da lei ou


do contrato e possibilitar o devido respeito ao
mesmo e às partes da relação. A boa-fé objetiva
surge como importante forma de manter o
equilíbrio contratual e evitar os excessos, de
quaisquer das partes, assim expõe Aguiar Júnior
(Apud SOARES, 2008, p. 83):

Um princípio geral de Direito,


segundo o qual todos devem
comportar-se de acordo com um
padrão ético de confiança e lealdade.
Gera deveres secundários de
conduta, que impõe às partes
comportamentos necessários, ainda
que não previstos expressamente
nos contratos, que devem ser
obedecidos a fim de permitir a
realização das justas expectativas
surgidas em razão da celebração e
da execução da avença.

E completa De Antonio (apud FIUZA(org),


2012, p. 437):

O conceito de boa-fé objetiva é


fruto do direito teutônico e escapa à
noção de consciência. Falta a boa-fé
subjetiva a quem age com o

25
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

propósito de infligir um dano ao


contratante, mas é possível que
alguém, embora despido desse
propósito, ainda assim se paute por
uma conduta que, por não ser a
ideal ou esperada, culmine na
provocação de uma lesão ao alter.

Esta é a aplicação da boa-fé objetiva nos


contratos. É indispensável que o trato entre
devedor e credor seja repleto de lealdade e respeito,
mesmo quando surgir a possibilidade da exigência
da prestação não satisfeita. Não pode o sujeito ativo
impor-se ou utilizar de subterfúgios legais, capazes
de gerar desconforto e abalos emocionais à pessoa
que não pode, naquele momento, cumprir a
prestação.

A dignidade da pessoa humana

A apresentação da boa-fé, disposta no Código


Civil e CDC4, serve de suporte para o respeito ao

4 No Código Civil:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
No Código de Defesa do Consumidor:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas
ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...)

26
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

devedor, envolvido no inadimplemento contratual.


Não suficiente este embasamento, veja o processo
de constitucionalização da aplicação das regras de
direito privado, Lobo (Apud TEIXEIRA E
RIBEIRO. 2013, p. 57) ensina:
De tudo resulta que o direito civil
brasileiro atual integra sistema
hipercomplexo, em constante
interação com a mutabilidade social,
tendo no ápice a Constituição, que
inspira a interpretação do Código
Civil e a sua interlocução com a
legislação especial e os
microssistemas jurídicos.

Apresentada a Constituição Federal ao Brasil,


o Direito Civil passou por uma mudança de
paradigmas. Surgiu a necessidade da legislação civil
ser aplicada com base em regras e princípios gerais
impostos pela magna carta. O melhor exemplo
desta situação é o efeito sofrido da
constitucionalização nos contratos, expõe Ruzyk
(Apud RAMOS (coord), 2002, p. 25):

Tudo isso reflete na nova disciplina

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o


consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a
boa-fé ou a equidade;

27
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

dos contratos. Eles continuam


tendo sua função econômica, sendo
instrumentos de trânsito jurídico de
bens e interesses. Todavia, a partir
dos princípios da dignidade da
pessoa humana, da solidariedade e
da justiça social, essa função
econômica, que se refere a uma
racionalidade instrumental, que liga
linearmente os meios aos fins –
alheia a qualquer outro valor
jurídico -, passa a ter um novo
fundamento, a ela subjacente e que
acaba por informá-la: uma
“racionalidade reprodutiva do
sujeito”.

A dignidade da pessoa humana retrata o


bastião da defesa do cidadão, pois quando não mais
se verifica a proteção por outros meios, a pessoa
que teve direitos violados exige que seu íntimo e
personalidade sejam respeitadas. Tal proteção não
poderia deixar de amparar o lado psíquico do
indivíduo. A Constituição ampara o íntimo por
meio deste princípio, inclusive, este não pode ser
disponibilizado, assim fala Pietro (2002, p. 160):

A integridade psíquica é um aspecto


do mais amplo valor que é a pessoa;
como autônomo “bem”,

28
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

analogamente à integridade física,


não é suscetível de válida disposição
se não for em razão de sérios e
ponderados motivos de saúde. Do
mesmo modo que a intervenção no
corpo do sujeito, aquela destinada a
modificar em modo considerável e
permanente a psique se justifica,
como ato em si, exclusivamente
com base numa avaliação global do
estado de saúde feita por pessoa
legitimada.

Este é o maior amparo fornecido ao indivíduo,


capaz de proteger a intimidade e se sobrepor a
quaisquer permissões fornecidas pela legislação
civil, vez que entrariam em choque com a proteção
à pessoa. Sarlet (Apud Revista de Direito
Constitucional. 2007, p. 383) aperfeiçoa a ideia desta
proteção:

Assim sendo, tem-se por dignidade


da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida
em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, neste
sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra

29
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

todo e qualquer ato de cunho


degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida
saudável74, além de propiciar e
promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da
própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres
humanos.

Não bastasse este conceito, a nota de rodapé,


disposta no texto original, complementa a essência
da proteção ao bem-estar físico e MENTAL do
indivíduo:

Como critério aferidor do que seja


uma vida saudável, parece-nos
apropriado utilizar os parâmetros
estabelecidos pela Organização
Mundial da Saúde, quando se refere
a um completo bem-estar físico,
mental e social, parâmetro este que,
pelo seu reconhecimento amplo no
âmbito da comunidade
internacional, poderia igualmente
servir como diretriz mínima a ser
assegurada pelos Estados.

A dignidade da pessoa humana vai ser este

30
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

conjunto complexo de direitos que impõe e faz o


indivíduo merecedor do respeito tanto do Estado
quando da comunidade e nesta insere-se os credores
das relações obrigacionais, que não poderão infligir
qualquer tipo de dano ao bem estar físico e mental
do devedor.

O dano moral

O Código Civil afirma no art. 186, que “aquele


que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Não há dúvidas que o dano moral deve ser
reparado, não se precisa demonstrar a materialidade
do dano, pode o mesmo ser apenas no íntimo da
pessoa agravada, Assim expõe Rizzardo (2006, p.
246):

Em suma, o dano moral é aquele


que atinge valores eminentemente
espirituais ou morais, como a honra,
a paz, a liberdade física, a
tranquilidade de espírito, a
reputação etc. É o puro dano moral,
sem qualquer repercussão no
patrimônio, atingindo aqueles

31
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

valores que têm um valor precípuo


na vida, e que são a paz, a
tranquilidade de espírito, a liberdade
individual, a integridade física, a
honra e os demais sagrados afetos.

As situações que afligirem o íntimo do


indivíduo propiciam a desestabilidade deste, vez que
inundam seu íntimo de intranquilidades e
impossibilitam a própria vivência do mesmo no seio
da comunidade em que vive.
A doutrina e a jurisprudência são pacíficas ao
afirmar que meros desconfortos são incapazes de
gerar danos. O que, sem dúvidas, tem sido o freio
para diversos pedidos de danos, em razão de se
entender que não houve um abalo tão forte capaz
de impossibilitar o convívio da vítima com seus
pares, ou mesmo em razão da honra deste não ter
sido atingida. Esta jurisprudência bem resumo este
entendimento:

PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO


DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO
C/C DANOS MORAIS E
MATERIAIS - FALHA NO
MEDIDOR DE ENERGIA
ELÉTRICA QUE CALCULAVA
VALORES A MAIS DO QUE O
REALMENTE CONSUMIDO -

32
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

DEVER DE DEVOLUÇÃO EM
DOBRO DOS VALORES
COBRADOS A MAIOR -
POSSIBILIDADE - DANOS
MORAIS E MATERIAIS NÃO
CARACTERIZADOS -
SENTENÇA MANTIDA. 1-
Aplicável a repetição de indébito em
dobro, quando existe comprovação
acerca do desembolso das quantias
pagas indevidamente. Tal fato foi
reconhecido pela própria ré, que
efetuou a mudança do medidor de
energia elétrica da autora e
disponibilizou os valores pagos a
maior. 2- Não há que se falar em
indenização por danos morais
quando não comprovado o dano
alegado, tampouco a prática de
ato ilícito. O mero incômodo,
enfado, aborrecimento, tédio ou
desconforto, não é passível de
indenização por danos morais,
sob pena de, ao revés,
banalizar-se e vulgarizar-se esse
tão importante capítulo do
direito moderno. 3- Recurso
conhecido e não provido. Sentença
mantida. (TJ-CE; APL
0402309-35.2010.8.06.0001; Sétima
Câmara Cível; Rel. Des. Francisco
Bezerra Cavalcante; DJCE
28/08/2015; Pág. 40)

33
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

E aqui, com certeza o maior questionamento,


o que seria capaz de abalar o indivíduo ao ponto de
realmente configurar dano moral. O íntimo de uma
pessoa não tem como ser medido, não possui
parâmetros ou modelo de aferição. Os sentimentos
de uma pessoa em decorrência de determinada ação
não são iguais em nenhum ser humano.
Um exemplo simples para exercitar o
entendimento. O fato de um cheque ser devolvido
pelo Banco, mesmo havendo recursos financeiros
na conta corrente, atinge de formas bem diferentes
ao estelionatário contumaz, acostumado a emitir
cheques sem fundos e ao empresário que depende
de seu nome sempre limpo para exercer suas linhas
de crédito.
Esta é a questão, como as pessoas seriam
atingidas pelas condutas nas relações contratuais.

O dano moral decorrente da cobrança legal

O credor de uma relação obrigacional possui o


direito de realizar a cobrança extrajudicial
(amigável). Nesta, o credor faz as vezes do estado,
exige a satisfação da obrigação, no entanto ele não
pode agir como o Estado, vez que o agente ativo da
relação não possui Poder Jurisdicional.
O entendimento pacífico é que este direito

34
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

subjetivo do credor será o de informar a situação do


devedor e os efeitos de sua mora. O papel da
cobrança amigável é o de oferecer a oportunidade
ao devedor de apresentar-se e realizar o pagamento
da prestação, até mesmo sem os ônus impostos pelo
inadimplemento, tais como juros, correção
monetária, multa e algumas nefastas “taxas de
cobrança” impostas pelo contrato.
Não se discute a legalidade desta cobrança, o
que se questiona no presente trabalho é o alcance e
forma da mesma, vez que mesmo sendo permitida
ela pode ser realizada de forma que afronta o
devedor, impossibilitando-o psicologicamente de
maneira que o mesmo sofra danos morais.
A apresentação da existência de uma conta em
aberto (prestação inadimplida) deve ser feita com
caráter informativo, o devedor pode e deve tomar
ciência de sua situação e todas as consequências de
sua omissão em apresentar a prestação. O problema
surge quando o credor, ou seus representantes,
utilizam a comunicação amigável com o claro
intuito de impor o terror ao íntimo do devedor.
A mais inocente carta de cobrança pode
claramente preencher este papel e possibilitar à
esfera jurídica do devedor um padrão de terror e
instabilidade pessoal que, muitas vezes, ele não
consegue externar. A imposição em uma
correspondência de diversos atos aleatórios, que

35
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

estão na lei, mas não seriam executados da forma


como anunciada pode justamente impor isto ao
íntimo do devedor.
No exemplo exposto alhures, apresentou-se
uma carta de cobrança em que se fala: tentativa de
contatos, bloqueio judicial, retomada do bem e
dispõe-se do texto legal que trata da execução. Esta
correspondência é um claro exemplo de tentativa de
impor terror ao íntimo do devedor. Ao tratar sobre
este tema Braga Netto (2008, p. 26) apresenta
excelente voto do ministro do STJ Sálvio de
Figueiredo Teixeira:

Enxergando no dano moral a lesão


à personalidade, temos o acórdão
seguinte: “O dano moral, tido como
lesão à personalidade, à honra da
pessoa, mostra-se às vezes de difícil
constatação, por atingir os seus
reflexos parte muito íntima do
indivíduo – o seu interior. Foi
visando, então, a uma ampla
reparação que o sistema jurídico
chegou à conclusão de não se
cogitar de prova do prejuízo para
demonstrar a violação do moral
humano” (STJ, REsp 121.757, Rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,
4ª T., 26/10/99, DJ 08/03/00)
O dano na cobrança amigável, mesmo que

36
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

lícita, pode surgir em razão justamente destes


reflexos ao íntimo do indivíduo, que pode
interpretar a comunicação como uma agressão ou
até mesmo deslealdade ante o pactuado, o que
atingiria inclusive a boa-fé objetiva que todos
aguardam e guardam no cumprimento do contrato.
Percebe-se a dificuldade de enfrentar este
tema, pois sempre há o argumento de que o credor
estaria exercendo seu direito, mas mesmo amparado
por esta ideia, não pode o cobrador transpor a
dignidade da pessoa humana, este princípio é basilar
ao exercício de qualquer direito, nunca uma pessoa
pode sobrepor aos direitos de outra, principalmente
quando um direito de ordem econômica tenta
suplantar o bem estar mental e íntimo de um
indivíduo.
Surge, então, como escudo do devedor a
necessidade da observância da dignidade da pessoa
humana, que tem força para suplantar uma
cobrança que atinge o íntimo do indivíduo,
transtornando-o e humilhando-o de tal forma que
impossibilite o exercício de suas atividades, o
indivíduo tem o direito a manutenção das condições
mínimas a sua existência, uma cobrança amigável
que gere terror suplanta este direito a dignidade.
Respeitando a sistematização em nossa
legislação e com base nos princípios transcritos é
possível interpretar a aplicação do art. 187, do

37
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Código Civil em favor do devedor inserido na


condição de abalado por uma cobrança amigável, o
citado artigo afirma que “(...) comete ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes.”. O indivíduo que sob o manto do
exercício regular de um direito, exige o pagamento
de um débito por meio de carta que faz afirmações,
capazes de gerar instabilidade ao íntimo do devedor
pode ser chamada a reparar o dano causado.
O credor ou seus emissários não podem
utilizar o conhecimento da lei de forma a causar
distúrbios ao devedor. É fato que estes atos não
atingem a todos da mesma forma. Algumas pessoas,
ao receber uma carta como a citada não se
importarão, mas não é aceitável a generalização. A
indústria da impessoalidade e a civilização da
cibernética não podem sobrepor a humanidade.
Não bastasse esta situação lembre, também, do
caso dos contatos telefônicos e mensagens. O
devedor submetido a esta busca constante, sente-se
uma caça sendo perseguida implacavelmente. O
mero toque do telefone pode assustá-lo a ponto de
gerar perturbações em seu íntimo. O indivíduo tem
direito a manter sua sanidade, mesmo como forma
de exercer seu ofício, a fim de conseguir recursos
para adimplir suas obrigações.

38
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Em todas estas situações nota-se o grande


abalo a que se submete o devedor. No ensinamento
de Cahali (1998, p. 463):

Na realidade, conforme assinala


Viney, toda forma de
responsabilidade, qualquer que seja
a causa ou a natureza, induz, a cargo
do responsável, o desgosto, os
sofrimentos e frustrações
provocados pelo seu autor: sob esse
aspecto, impõe-se constatar que a
distinção, se ainda posta em
confronto, entre responsabilidade
contratual e responsabilidade
delitual, não tem hoje senão uma
importância mínima; a obrigação de
reparar os danos extrapatrimoniais,
tende, quase toda, a assumir o
domínio contratual, com a mesma
importância que em matéria
intelectual.

O devedor submetido a este tratamento terá


abalo pessoal que o impossibilitará de conseguir os
recursos para o seu sustento e o próprio
adimplemento da prestação cobrada. Ligações
durante o dia, ou mensagens, que afirmam que ele
não tem capacidade de obter e cumprir com sua
palavra, com certeza podem afetar a honra do

39
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

homem médio, novamente faz-se a ressalva que


algumas pessoas podem não ser afetadas por esta
situação, tais como estelionatários, claro que em um
caso destes não haveria que se falar em danos
morais.

REFERÊNCIAS

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sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora
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objetiva e o inadimplemento do contrato: doutrina e
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civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
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Lucia Silveira (coordenadora). Direito civil constitucional:
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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil:


introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria
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RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: lei nº
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BRAGA NETTO, Felipe P..Responsabilidade civil. São
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DE ANTONIO, Sergio Roberto. FIÚZA, César.(org)
Elementos de teoria geral das obrigações e dos contratos:
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CAHALI, Yussef Said. Dano moral. São Paulo: Editora
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CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito
processual civil. Traduzido por Hiltomar Martins Oliveira. 2ª Ed:
São Paulo, Lemos e Cruz, 2004. Volume I.
DVD Magister, ed.63, Agos/Set 2015
Ingo Wolfgang Sarlet pag 383 Virtual. Revista Brasileira de
Direito Constitucional RBDC n. 09 jan./jun. 2007.

41
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES


PRIVADAS: CONSTITUCIONALIZANDO O
CONTRATO NA SOCIALIZAÇÃO DO
DIREITO

Ana Leticia Anarelli Rosati Leonel*

RESUMO

O contrato no Estado Constitucional,


especialmente no âmbito brasileiro, não sustenta,
atualmente, tratamento materialmente desigual entre
as partes. Depois do Estado Liberal, ficou ainda
mais evidente que o maior violador de direitos
fundamentais nas relações privadas, especialmente
contratuais, é o próprio particular, ganhando
destaque aquele que detém maior poder econômico
ou social diante do outro contratante. Para que se
chegue a essa afirmação, o processo de
constitucionalização do direito e do contrato e a
consequente irradiação dos direitos fundamentais
no ordenamento jurídico mostra-se imprescindível.
E tendo em vista que a Constituição se aplica a todo
o ordenamento jurídico, mostra-se imprescindível a
análise da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas, especialmente qual a forma que
tal eficácia se dá e em que medida.

42
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Eficácia;


Particulares.

EFFECTIVENES OF FUNDAMENTAL
RIGTHS IN PRIVATE RELATIONS: THE
CONSTITUTIONALIZATION OF
CONTRACT IN THE SOCIALIZATION OF
LAW

ABSTRACT

The contract in the Constitutional State, especially


in the Brazilian context, not currently maintains
materially unequal treatment between the parties.
After the Liberal State, became even more evident
that the greatest violator of fundamental rights in,
especially contractual, private relationships is the
individual himself, highlighting one who holds the
greatest economic or social power before the other
contractor. To attain this statement, the process of
constitutionalization of the law and of the contract
and subsequent irradiation of fundamental rights in
the legal system appears to be essential. And
considering that the Constitution applies to all law,
seems essential to analyzing the effectiveness of
fundamental rights in private relations, especially

43
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

what form such effectiveness occurs and to what


extent.
Keywords: Fundamental Rights. Effectiveness.
Individuals.

* Mestranda em Direito pela UNISINOS/RS. Professora de Direito no


CEUT e FACID/DeVry – Teresina.

1. Introdução

Diante do Estado Constitucional, não se pode


mais vislumbrar que os direitos fundamentais
tratam-se apenas de normas programáticas e
principiológicas, a terem eficácia vinculada a
programas de governo. Os direitos que outrora
eram limitados apenas a projeto de concretização do
bem comum, passam a ser comandos normativos
na garantia da dignidade da pessoa humana. Neste
sentido, as normas constitucionais irradiam-se por
todo o ordenamento jurídico, através de uma
eficácia ampla.
Não basta, ainda, a invocação de tais direitos
somente contra o ente estatal. As relações
cotidianas entre os indivíduos, por vezes,
demonstram maiores violações aos direitos
fundamentais do que a própria relação indivíduo-
Estado.

44
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Neste sentido, há um reconhecimento, de


forma quase que unânime, pelo menos em âmbito
nacional, que os direitos fundamentais devem ser
aplicados em relações firmadas entre os
indivíduos.No entanto, a própria autonomia privada
também é direito fundamental que deve ser
respeitado, porque os direitos fundamentais
supõem, também, a realização dos interesses
privados. Surge, assim, uma questão de difícil
definição objetiva.
A consequência é que se torna necessário
delimitar, ainda que em linhas gerais, como se daria
a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas, especialmente nas contratuais, e de que
forma e em qual medida tal incidência se daria, sem
que haja completa desconsideração à própria
liberdade da pessoa, que também é direito
fundamental garantidor da dignidade de pessoa
humana.
No que pertine à forma da eficácia, ela pode se
dar de forma direta, quando os direitos
fundamentais incidem na relação privada,
independentemente da existência de lei ou qualquer
intermediador. Outra hipótese, seria a aplicação
indireta dos direitos constitucionais fundamentais
nas relações entre particulares: para que o direito
seja invocado na relação privada, deve existir um
intermediador, dando-se ênfase à atuação legislativa

45
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

infraconstitucional.
Se dentro do Estado Democrático de Direito,
desvinculado das ideias individualistas do Estado
liberal deve prevalecer a aplicação direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas, não é menos
verdade que tal eficácia demanda um estudo
aprofundado para que, no caso concreto, fique
evidente o respeito efetivo aos direitos
fundamentais. Aliás, hoje, em demandas judiciais,
dificilmente se vê a não invocação a direitos
fundamentais por ambas as partes, seja qual relação
for. No que diz respeito à medida, somente o caso
concreto poderia determinar, de acordo com uma
ponderação de valores envolvidos.
Assim, o presente estudo inicia-se com a
concepção do contrato no Estado Constitucional,
especialmente no âmbito brasileiro, que não
sustenta, atualmente, tratamento materialmente
desigual entre as partes. Depois do Estado Liberal,
ficou ainda mais evidente que o maior violador de
direitos fundamentais nas relações privadas,
especialmente contratuais, é o próprio particular,
ganhando destaque aquele que detém maior poder
econômico ou social diante do outro contratante.
Passa-se, então, à análise, de forma sintética, de
como tem ocorrido a constitucionalização do
direito e do contrato e a consequente irradiação dos
direitos fundamentais no ordenamento jurídico.

46
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Analisada a questão da aplicação da


Constituição em todo o ordenamento jurídico,
analisa-se a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas, discorrendo sobre as teorias de
ineficácia, com ênfase à aplicação da teoria da state
action, a teoria da eficácia indireta, com a aplicação,
também da teoria dos deveres de proteção e suas
críticas, a teoria da eficácia direta e suas objeções,
propondo-se o reconhecimento da impossibilidade
de solução uniforme para a questão.
Metodologicamente, através de pesquisa
bibliográfica e consulta jurisprudencial sobre a
vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais na esfera do Direito brasileiro e
comparado, foi utilizado o método de abordagem
hermenêutico-fenomenológico, sem vinculação às
ideias de certeza e segurança próprias da
modernidade, o que tornaria o trabalho acabado e
definitivo, comprometendo a segurança do
resultado pretendido.

2. Direitos fundamentais nas relações entre


particulares: o contrato no estado
constitucional

De início, justificando a escolha do tema,


toma-se as palavras de Virgílio Afonso da Silva

47
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

(2011, p. 17): “Muito daquilo que, para os


operadores de uma disciplina jurídica é tido como
ponto pacífico pode ser, para os operadores de
outras disciplinas, um completo despropósito”.
Assim é a concepção da aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas. Não é rara a
compreensão, dentro da doutrina pátria, que todo o
sistema está vinculado à Constituição Federal e,
portanto, todo o Direito Civil, ou todos os
contratos, subordinam-se às normas fundamentais,
sem maiores problemas.
Mas convém relembrar que nem sempre foi
assim. Tradicionalmente, o Direito Civil era o ramo
do Direito que mais se distanciava do Direito
Constitucional, pois seu âmbito de atuação estava
reservado à autonomia privada. Por mais que hoje
tal submissão seja pacífica – em que pese sua não
precisão – no início da década de 1950, na
Alemanha, sua fundamentação era difícil e seus
efeitos incertos. Neste particular, importante marco
concernente à vinculação de particulares aos direitos
fundamentais foi o julgamento do caso Luth, em
1958, por parte da Corte Constitucional Alemã, um
dos casos mais importantes do constitucionalismo
alemão no pós-guerra.
Nos anos 50, o alemão Veit Harlan, produtor
de cinema, produziu um filme romântico, chamado
“Amada Imortal”. No entanto, antes desse trabalho,

48
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Veit Harlan havia sido o principal responsável pelos


filmes de divulgação das ideias nazistas. Era dele o
filme Jud Suß, de 1941, considerado como uma das
mais horrendas representações dos judeus no
cinema. Sob a liderança de Eric Luth, judeu que
presidia o Clube de Imprensa, vários judeus de
prestígio e de influência na mídia alemã resolveram
boicotar o filme romântico. O boicote deu certo e o
filme foi um fracasso de público. Diante do enorme
prejuízo, Veit Harlan, e os empresários que estavam
investindo no filme, ingressaram com ação judicial
alegando que a atividade de Eric Luth violava o
Código Civil alemão, que previa que todo aquele
que causasse prejuízo deveria cessar o ato danoso e
reparar os danos causados. Nas instâncias
ordinárias, a tese prevaleceu. Porém, Eric Luth não
se conformou, argumentando que a Lei
Fundamental alemã garantia a liberdade de
expressão, recorrendo para a Corte Constitucional
alemã. Liberdade de expressão ou dever de
reparação pela expressão? A partir dele, a própria
Corte desenvolveu alguns conceitos muito
importantes na teoria dos direitos fundamentais,
como por exemplo: a dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais e a necessidade de
ponderação, em caso de colisão de direitos (LIMA,
2008).

49
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Paralelamente, surgiu também, nos Estados


Unidos, a teoria do state action, sobre a eficácia dos
direitos fundamentais nas relações privadas. Entre
as teorias alemã e norte-americana, a semelhança
está apenas em relação ao período de surgimento,
porquanto se mostram integralmente antagônicas
entre si (PEREIRA, 2006, p. 133). Enquanto a
jurisprudência americana adotou uma posição
negativa, no sentindo de que os direitos
fundamentais não vinculam os particulares,
reafirmando a premissa legal do direito liberal, a
Corte Alemã explorou o tema, tendo avançado e
adotado posições mais radicais.
Nos Estados Unidos, um dos casos
precursores de grande repercussão foi o Shelley v.
Kraemer. Um loteamento foi formado com o
objetivo de se evitar a presença de negros em seu
território, na cidade de Saint Louis. Assim, por
contrato, foi exigido aos compradores dos lotes que
não poderiam alienar as suas propriedades em favor
de indivíduos não brancos. Porém, um dos
proprietários resolveu vender o seu imóvel a um
casal de negros, sendo tal contrato contestado
judicialmente em razão do descumprimento da
cláusula restritiva. No Tribunal Estadual de
Missouri, a demanda foi julgada procedente. A
Suprema Corte, apesar de decidir que tal cláusula
feria o direito de igualdade previsto na Emenda

50
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

XIV da Constituição americana, partiu do


pressuposto de que isoladamente, cláusulas
contratuais decididas dentro da autonomia privada
dos particulares, não violam tal emenda. O
entendimento era de que as ações inibidas pela
emenda seriam apenas as estatais, não havendo
proteção contra condutas meramente privadas,
ainda que discriminatórias. A questão de mérito foi
contra a cláusula restritiva, porém seus
fundamentos deixaram claro que o direito a um
tratamento igual só vale nas relações entre os
cidadãos e o Estado, não nas relações particulares
entre os cidadãos (SILVA, 2011, p. 19-20).
Ratifique-se que, apesar da decisão contrariar a
cláusula restritiva, não houve reconhecimento, pela
Corte Americana, de que os direitos fundamentais
podem ser invocados nas relações privadas.
De fato, nos dias atuais, dificilmente se veria,
no caso brasileiro, um contrato deste questionado
judicialmente e com o mesmo entendimento da
Corte americana. Mesmo porque, de forma enfática,
nossa Constituição resguarda a igualdade de
tratamento a todos e proíbe qualquer tipo de
discriminação. Um contrato com nítido tratamento
desigual e discriminatório entre as partes, tende a
ruir diante do direito brasileiro. No entanto, pode-
se imaginar determinadas cláusulas contratuais com
conteúdo semelhante, que não geraria uma

51
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

unanimidade de resposta. Determinada fábrica de


refrigerantes poderia exigir de seus prestadores de
serviço que não bebessem, em público, refrigerante
da marca concorrente? Aplica-se o direito
constitucional da inviolabilidade de domicílio à
cláusula contratual – existente em praticamente
todo contrato de locação – que confere ao
proprietário/locador o direito de visitar o imóvel?
Dentro de seu círculo de amizades, uma pessoa
pode deixar de convidar somente uma pessoa de
seu grupo de amigos para o seu aniversário?5
Seria possível elencar mais, pelo menos, uma
centena de exemplos. Mas como prova de que,no
senso comum, e até mesmo dentro da cátedra, tal
ideia absoluta de aplicação de direitos fundamentais
nas relações privadas não está bem clara, pode-se
citar uma situação cotidiana pouco questionada: o
fato de não se cumprir um contrato, faz com que
valores como a honra sejam facilmente
desconsiderados, apesar de pacificamente admitir-se
que o direito à honra deva ser respeitado na relação
privada. O costumeiro bom pagador que,
excepcionalmente, deixou de cumprir uma
obrigação, tem o seu nome lançado no rol de maus
pagadores, através de “serviços de proteção ao
crédito”, sem qualquer questionamento sobre a

5 Tais exemplos são meramente ilustrativos sobre a irradiação dos direitos


fundamentais em relações privadas, sejam elas contratuais ou não.

52
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ofensa direta e evidente ao direito fundamental à


proteção de sua honra e imagem. Nessa relação
privada, qual seja do credor e devedor, o direito
constitucional e fundamental à honra (como até
mesmo o direito ao contraditório e ampla defesa)
não tem incidido, em função de, provavelmente,
uma justificativa com base na economia do
mercado.
Não se ignora que a gênese dos Direitos
Fundamentais está relacionada na sua defesa contra
o Estado. No entanto, essa concepção mostrou-se
falha, mesmo porque, especialmente na concepção
do liberalismo, ficou evidente que o maior violador
de direitos fundamentais nas relações privadas,
especialmente contratuais, é o próprio particular,
ganhando destaque aquele que detém maior poder
econômico ou social diante do outro contratante.
Empresas do meio de comunicação, além de outras
forças sociais, alcançam altas posições de poder,
com clara dominação, especialmente em razão do
poder econômico. Os chamados poderes
econômicos-sociais privados, em alguns casos,
violam de forma mais enfática os direitos
fundamentais do que o próprio Estado (PÉREZ
LUÑO, 1995, p. 314).“Basta com mirar alrededor y
observar atentamente la realidad que nos rodea. Es um hecho
fácilmente constatable la progressiva multiplicación de centros
de poder privados y la enorme magnitud que han adquirido

53
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

algunos de ellos” (BILBAO UBILLOS, 2010, p. 264).


Qualquer relação jurídica existente entre essas
“dominações de poder econômico” e o particular6,
mesmo que, aparentemente, esteja fundada na
autonomia privada, “é, na verdade, uma relação de
dominação, que ameaça, tanto quanto a atividade
estatal, os direitos fundamentais dos particulares”
(SILVA, 2011, p. 53). Porém, esse paralelo entre
grandes corporações e o Estado, é somente um
primeiro passo para o reconhecimento da violação
de direitos fundamentais por outros que não o
Estado. A questão de aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas deve ocorrer
entre quaisquer particulares, independentemente da
verificação ou não da igualdade das partes da
relação travada7. Passa-se de uma dimensão
subjetiva da tradição liberal, a uma dimensão
objetivados direitos fundamentais (VALE, 2004, p.
72).

6 Há crítica ao termo “horizontalização” dos direitos fundamentais


exatamente em razão de se entender que, quando o indivíduo trava relação
com esses detentores de considerável poder econômico, não haveria uma
relação horizontal, mesmo porque tais “poderosos” estariam em patamar
acima dos indivíduos.
7 Nipperdey (2012, p. 62), explicando que os direitos fundamentais devem
ser aplicados diretamente nas relações entre particulares e não somente
contra o Estado, cita exemplo interessante contido na constituição
diretorial francesa, resultada da revolução, de 22 de agosto de 1795, “na
qual se encontra a bela proposição: ‘Ninguém é um bom cidadão, se ele
não é um bom filho, um bom pai, um bom irmão, um bom amigo e um
bom marido’”. Complementa o autor: “pode juntar-se: ‘e uma boa parte
contratante’”.

54
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Assim, a simples proteção contra o Estado


como violador dos direitos fundamentais, não é
suficiente. Mas não é menos verdade que é ele
quem deve garantir a proteção e defesa de tais
direitos, independentemente do lado pelo qual
provenha tal agressão (DUQUE, 2013, p. 62). A
realização e a segurança dos direitos fundamentais
dependem em ampla medida, portanto, do próprio
Estado.
Neste aspecto, não é demais lembrar que, nos
dizeres de Novais (2006, p. 34), inspirando-se em
Ronald Dworkin, ter um direito fundamental é ter
um trunfo contra o Estado ou contra a maioria8. O
Estado pode não ser o violador do direito
fundamental no contrato, mas, ainda assim, é dele a
obrigação de evitar que isso ocorra9.
Se por um lado, há evidência da necessária
aplicação dos direitos fundamentais mesmo nas
relações privadas, para que tais direitos sejam
realmente efetivados no âmbito das relações
extraestatais, especialmente no contrato, clama-se
estudo do tema, já que, a relação entre indivíduo e

8 Em relação ao Estado, o “trunfo” é de que o indivíduo tem uma posição


juridicamente garantida contra o poder político. No que diz respeito aos
particulares, é ter um direito que o Estado está obrigado a proteger contra
ameaças ou lesões de terceiros.
9 Neste sentido que se fala em dirigismo contratual: o Estado impõe normas
de ordem pública na relação privada para proteger a parte hipossuficiente
na relação contratual.

55
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Estado, não pode ser tratada como a relação entre


indivíduo e indivíduo: “no primeiro caso, apenas
uma das partes envolvidas é titular de direitos
fundamentais, enquanto que, no segundo caso,
ambas o são” (SILVA, 2011, p. 18). Nenhum titular
de direito fundamental tem autorização para violar
bem jurídico fundamental de outro, mas a
convivência, com interesses distintos, é inevitável.
E neste ponto, a discussão no Brasil, apesar de
crescente, não ganhou acentuada importância como
em outros países, especialmente a Alemanha e, de
forma assistemática, Estados Unidos.
Vê-se que, de fato, a ênfase da matéria, dá-se
em países com ausência de normas de direitos
fundamentais que não aquelas de cunho liberal. Por
isso que, no Brasil, por exemplo, a discussão a
respeito de tal tema no âmbito social-trabalhista
aparenta ser pouco relevante10. O artigo 7º da
Constituição Federal traz várias disposições sobre
normas garantidoras dos direitos sociais. Mas isso

10 Daniel Sarmento e Carlos Rodrigues Gomes elaboram um estudo que


dispõe sobre a aplicação dos direitos fundamentais não trabalhistas nas
relações de trabalho, discorrendo sobre a eficácia dos direitos fundamentais
nas relações privadas. Explicam: “Note-se que o que aqui se discute não é a
aplicação de direitos trabalhistas (arts. 7º a 11 da CF/88), na qual, via de
regra, a restrição dos direitos dos trabalhadores se legitima apenas com a
participação sindical (art. 7º, VI e XIV, da CF/88). O que se pretende
analisar é a possibilidade de o empregador limitar diretamente – durante a
vigência do contrato e em razão das características que o circundam – o
exercício de direitos fundamentais individuais dos empregados.” (SARMENTO
e GOMES, 2011, p. 91).

56
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

não significa, no entanto, que no âmbito da


contratação privada stricto sensu, a tensão entre
direitos fundamentais e autonomia privada não
mereça maior atenção. Ou então, que direitos
fundamentais não previstos no artigo 7º, não sejam
aplicados nas relações trabalhistas, por exemplo.
Acontece que, outrora, sob o fundamento de
preservação da autonomia privada, como já
mencionado, o direito contratual foi deixado fora da
influência dos direitos fundamentais no
ordenamento jurídico. Com o Estado de direito, no
entanto, percebe-se que os direitos fundamentais
geram uma proteção multidirecional, porque as
concepções de seus valores são indivisíveis
(DUQUE, 2013, p. 57). O constitucionalismo
enfatizou a reconquista dos valores da pessoa, já
que a sua dignidade é o seu valor supremo.A
verdade é que “não há negócio jurídico ou espaço
de liberdade privada que não tenha o seu conteúdo
redesenhado pelo texto constitucional”
(TEPEDINO, 2002, p. 364)
Assim, atualmente, pouco se controverte
quanto ao fato de que o direito civil e o contrato
não podem, mesmo, ser imunes à incidência da
proteção dos direitos fundamentais. Se não fosse
dessa forma, não haveria sentido em se falar na
supremacia da Constituição. A norma de direito
fundamental deve ser interpretada da forma que lhe

57
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

garanta a maior efetividade possível, mesmo


porque, segundo Duque (2013, p. 58), os princípios
constitucionais, como elementares para a vida
social, “não podem ser pensados apenas como
direito público ou como privado, visto que se
afirmam como uma espécie de ‘telhado’ de direito
constitucional”, na concepção alemã dos
“uberdachendes” Verfassungsrecht, “que, com a sua força
normativa, penetram em todos os âmbitos do
ordenamento jurídico”.
Não só nesse aspecto fica evidente a aplicação
dos direitos fundamentais nas relações privadas,
mas também no seu caráter pré-estatal. Na verdade,
a eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas seria “o corolário de uma exigência lógica
de coerência interna do ordenamento jurídico”
(DUQUE, 2013, p. 60).
O que ocorre é que essa incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas, necessita de
maiores bases objetivas.E nesse ponto, merece
destaque a controversa extensão e forma pela qual
deve se dar a aplicação da Constituição na relação
entre particulares, onde se destaca o contrato. A
questão é saber, como explica Canotilho (2001, p.
109), “sob que pressupostos um comportamento
lesivo da esfera jurídica de uma pessoa pode ser
apreciado segundo os padrões normativos dos
direitos fundamentais constitucionalmente

58
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

positivados”. Longe de uma resposta incontestável,


o presente estudo objetiva apontar considerações
sobre o tema, que envolve a premissa da
constitucionalização do direito e a irradiação da
Constituição.

1.1 A constitucionalização do direito:


constitucionalizando o contrato

A ideia mestra que fundamenta a eficácia dos


direitos fundamentais nas relações entre particulares
tem como base a constitucionalização do direito, no
sentido de que as normas ou valores constitucionais
incidem nos outros ramos do ordenamento jurídico
como um todo.Como um fenômeno multifacetado,
a constitucionalização do Direito constitui-se em
“um marco inicial daquilo que será a pauta de
conduta político-jurídica que todos – seja o Estado
ou os indivíduos – deverão se guiar: o Estado de
Direito” (TEIXEIRA, 2008, p. 47).
Neste ponto, algumas análises doutrinárias
ganham destaque, como é o caso do trabalho
desenvolvido pelos alemães Gunnar Folke
Schuppert e Christian Bumke. Os autores
identificam cinco formas principais do processo de
constitucionalização do direito, mas nem todas
podem ser importadas para o caso brasileiro, que

59
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

não tem um sistema de jurisdição unicamente


concentrado. Essas cinco formas, conforme
sintetiza Silva (2011, p. 39) seriam a reforma
legislativa; o desenvolvimento jurídico por meio da
criação de novos direitos individuais e de minorias;
a mudança de paradigma nos demais ramos do
direito; a irradiação do direito constitucional –
efeitos nas relações privadas e deveres de proteção e
a irradiação do direito constitucional –
constitucionalização do direito, por meio da
jurisdição ordinária.
“A mais efetiva e, ao menos em tese, a menos
problemática forma de constitucionalização do
direito, é realizada por meio de reformas, pontuais
ou globais, na legislação infraconstitucional”
(SILVA, 2011, p. 39). Apesar de menor
controvérsia, seria a forma com maior delonga,
mesmo porque o próprio legislador demanda tempo
para se adaptar a novos paradigmas – não é só
“falta de vontade política”11. No âmbito contratual,
por exemplo, ainda que exista a possibilidade legal
de abrandamento do pacta sunt servanda com

11 Por que o Congresso, até hoje, não apreciou a questão da descriminalização


do aborto? Não é só excesso de trabalho dos legisladores ou falta de
vontade para não causar exposição política desnecessária. É que a
sociedade ainda não está preparada para esse novo paradigma de
“planejamento familiar”, porque não há um ambiente totalmente favorável
na sociedade conservadora e vinculada à religiosidade. Com a mudança de
mentalidade e quebra de paradigmas, a questão pode ser vencida no plano
da legislação. Mas isso, necessariamente, leva tempo.

60
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

previsões como as existentes nos artigos 31712, 47813


do Código Civil e artigo 51, IV14 do Código de
Defesa do Consumidor, os tribunais,
constantemente, mostram-se bastante resistentes15.
E para a construção da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas, também tem
importância a expansão da aplicação e estudo do
direito constitucional, recorrendo ao conceito de
Constituição como ordenamento não somente
estatal, mas da sociedade como um todo. Nos
dizeres de Hesse (1992, p. 16), a Constituição não
mais se limita a ser a ordem jurídico-fundamental
do Estado, mas também a “ordem jurídico-
fundamental da comunidade”. No entanto, como

12 Código Civil, Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier


desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento
de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que
assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
13 Código Civil, Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida,
se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com
extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do
contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da
citação.
14 Código de Defesa do Consumidor, Art. 51. São nulas de pleno direito,
entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos
e serviços que:
(...)
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a
boa-fé ou a equidade;
15 Como exemplos, tem-se: TJ-DF - APC: 20070111117646 DF; TJPR –
Apelação Civel AC 6124894 PR 0612489-4; TJSP – Apelação APL
9111676532007826 SP, TJSP Apelação APL 9264171532005826 SP; TJ PR
7436426 PR.

61
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

asseveram Schuppert e Bumke (2000, p. 38), quanto


mais significativas e antigas as tradições dogmáticas,
maior será a dificuldade em disponibilidade para
modificação das estruturas dogmáticas já
consolidadas. Por esta razão que, principalmente na
Alemanha, os civilistas são a maior força oposta à
tendência da constitucionalização de todo o
ordenamento jurídico.
Outro trabalho de destaque sobre a forma de
constitucionalização do direito, encontra-se em
Louis Favoreu, que menciona três tipos de
constitucionalização. A primeira seria a
constitucionalização-juridicização, como repositório
de condições para o processo; a segunda é a
constitucionalização-elevação, com repartição de
competências entre a Constituição, a lei e o
regulamento e, a terceira, trata-se da
constitucionalização-transformação, onde o
conteúdo dos outros ramos do direito é modificado
pela Constituição.Um dos efeitos da
constitucionalização seria, então, a unificação da
ordem jurídica, através da comunidade de
fundamentação dos diversos ramos do direito pelas
normas constitucionais, perdendo importância os
princípios gerais de direito em favor de tais normas
e pelarelativização da distinção entre direito público
e privado. Também, haveria uma simplificação da
ordem jurídica, já que a Constituição é a norma de

62
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

referência do ordenamento jurídico (SILVA, 2011,


p. 46-9).
Na verdade, o forte conteúdo principiológico
das normas constitucionais facilita a
constitucionalização de todos os ramos do direito,
inclusive o civil. Não há como se falar em
ordenamentos autônomos, “de forma que o Direito
Privado não se configura mais como matéria alheia
a direitos fundamentais, e sim, como matéria
constitucional” (VALE, 2004, p. 91).
Dessa forma, o contrato, como uma
regulamentação jurídica de uma operação
econômica – ou não, não deixa de sofrer os efeitos
da constitucionalização e, como pilar do direito civil
constitucional, torna-se de caráter civil
constitucional também.
Assim, no consentimento comum entre os
teóricos do tema, a constitucionalização do direito
acaba gerando uma irradiação da Constituição em
todos os ramos jurídicos.
A teoria do efeito de irradiação, apesar da
terminologia controversa, fundamenta, com êxito,
uma dimensão de potencialização da eficácia dos
direitos fundamentais em todos os âmbitos do
ordenamento jurídico. Atinge, também, o direito
privado, mesmo porque a principal contribuição da
teoria é demonstrar que nenhum âmbito do direito
pode ficar imune à incidência dos direitos

63
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

fundamentais.
Depois de constatada a incidência, algumas
premissas se formam. A primeira é que a extensão e
intensidade do efeito de irradiação dos direitos
fundamentais é algo, em si, indeterminado, apesar
de necessitar de fundamentação específica em cada
caso.
Essa irradiação não se limitaria, no entanto,
nem à legislatura e nem à jurisprudência, mas a
todas as funções estatais. Porém, isso não significa
que todos os direitos fundamentais se aplicam nas
relações entre os particulares, pois deve ser
analisada a natureza do direito e a relação privada
em questão. Uma relação privada de amizade,
relação extremamente privada, não implica,
necessariamente, a aplicação de determinados
direitos fundamentais. Assim, o fato de não se
convidar algum amigo para o seu aniversário, não
dá a este o direito de pleitear a aplicação do direito
fundamental à igualdade.
Há de se ressaltar que o simples
reconhecimento do efeito de irradiação dos direitos
fundamentais em todo o ordenamento jurídico, não
responde os problemas práticos advindos da
vigência social de tais direitos no âmbito dos
particulares, à medida que apenas reconhece que os
direitos previstos na Constituição são aplicados,
também, mesmo nas relações de caráter privado, de

64
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

uma forma geral.


Reconhece-se, porém, que a Constituição não
está apta a fornecer, detalhadamente, o conteúdo do
direito civil. Nem todas as particularidades do
ordenamento jurídico como um todo estão
garantidas no texto constitucional: por isso que o
direito civil tem o seu espaço de desenvolvimento
próprio, apesar dos valores fundamentais de um e
de outro coincidirem.
Dentro de tal concepção, a condição da
supremacia das normas constitucionais não pode
desprestigiar o direito civil e assim não o faria, em
absoluto.As normas de direito civil são aplicadas
desde que dentro dos parâmetros constitucionais,
sem maiores problemas. Não se trata, também, de
fetichismo constitucional16, mas de se levar em
consideração a supremacia da Constituição e
prevalência dos direitos fundamentais,
características próprias do Estado de Direito.

16 Em sentido contrário, defendendo a aplicação indireta dos direitos


fundamentais nas relações privadas, anota Duque (2011, p. 87): “A
sobrevalorização cega das normas constitucionais, em uma atitude de total
desvalorização do direito ordinário, não traduz, em si mesma, a supremacia
da constituição; representa, isso sim, um sentimento que já foi retratado na
doutrina como fetichismo constitucional, conduta que, antes de qualquer coisa,
pode levar à prática de um ativismo judicial e a uma indesejada diminuição
da qualidade da produção normativa”.

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

3. A eficácia dos direitos fundamentais nas


relações privadas: a não incidência, a
doutrina da state action, suas atenuantes e
as teorias sobre a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações entre
particulares

A eficácia dos direitos fundamentais perante


os particulares é um dos grandes temas em
discussão no constitucionalismo de conteúdo
democrático e social. O tema vem, com o tempo,
recebendo cada vez mais respaldo jurisprudencial,
especialmente na Europa. Porém, quando a questão
surge no contexto brasileiro, como já mencionado,
apesar de nem todos os doutrinadores civilistas e
constitucionalistas tratarem do tema, as obras
nacionais sobre o assunto são exaustivas e
elucidativas.
Quando se tem por objetivo estruturar as
formas de incidência dos direitos fundamentais nas
relações privadas, alguns caminhos se apresentam
na doutrina.
O primeiro, diz respeito à negativa de eficácia
dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Tal estudo recorre, de forma corrente,
a razões históricas: os direitos fundamentais surgem
nas declarações de direito, com um objetivo bem
definido: defender os indivíduos dos mandos e

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

desmandos do Estado. É a chamada função


clássica17 dos direitos fundamentais, que traz,
contudo, uma visão apenas parcial – e nitidamente
liberal, da evolução dos direitos fundamentais. Para
os autores que defendem tal ideia, “las amenazas
procedentes de los particulares se contemplan em
las leyes civiles y penales y no em la Constitución,
que sólo traza los limites que el poder público no
puede franquear” (UBILLOS, 2010, p. 270). Tal
ideia busca “desmistificar uma posição
hierarquicamente inferior do direito privado em
relação à constituição e, por conseguinte, aos
direitos fundamentais” (SILVA, 2011, p. 71)18. Para

17 Silva (2011, p. 70 e71) justifica a utilização do termo: “Chamar essa


dimensão, correspondente às chamadas liberdades públicas, de clássica, tem
um objetivo que muitas vezes passa despercebido: com essa denominação
se quer muitas vezes não somente ressaltar uma precedência histórica, mas
também, e o que é mais importante, uma precedência no que diz respeito à
importância”.
18 Um dos poucos doutrinadores a defender de forma explícita a ineficácia
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares é Uwe
Diederichsen. A sua argumentação se inicia com a discussão sobre o que é
hierarquia de leis: “Segundo Diederichsen, deferentes sistemas normativos
podem se relacionar segundo três modelos diversos: (1) o sistema
normativo A e o sistema normativo B não guardam nenhuma relação entre
si; (2) entre os sistemas A e B há uma relação de superioridade e
inferioridade; (3) entre os sistemas A e B há uma relação de igualdade ou
neutralidade hierárquica. Segundo o autor, somente nos casos de relação do
tipo 2 é possível falar em hierarquia entre os dois sistemas. Diederichsen
não recorre, contudo, ao frágil argumento de simplesmente negar a posição
hierárquica superior da constituição. Mas ele sustenta que essa hierarquia
normativa não implica uma hierarquia axiológica e que, por isso, o prestígio
dos valores constitucionais e sua supremacia em relação a outros valores do
ordenamento não são uma decorrência lógica da posição formalmente
superior da constituição. Segundo Diederichsen, à supremacia conferida à
lei fundamental não corresponde automaticamente uma supremacia dos

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Rafael Naranjo de La Cruz (2002, p. 170), “el


exercicio de un derecho fundamental no puede
justificar en ningún caso el incumplimiento de um
contrato”.
Na verdade, tais conceituações decorrem de
civilistas que entendem que a Drittwirkung (eficácia
dos direitos fundamentais nas relações privadas) é
inútil porque o mesmo resultado se alcançaria com
os instrumentos tradicionais de Direito Civil, em
nítida intenção de preservação da autonomia desta
disciplina: “la Drittwirkungpuede ser uma espécie
de ‘caballo de Troya’ que destruya el sistema
construido sobre la base de la autonomía privada”
(UBILLOS, 2010, p. 270). Em que pese a existência
de constituições com caráter, assim, mais liberal,

valores fundamentais que ela abriga. Isso porque esses valores não adquirem
superioridade pelo simples fato de serem previstos na constituição, isto é,
esse fato não implica uma imposição automática dos valores constitucionais
ao resto do ordenamento jurídico. Nesse sentido, a despeito da diferença
hierárquica formal, Diederichsen parte de uma outra relação entre valores
constitucionais e valores de direito privado: a igualdade. Em suas próprias
palavras, ‘os artigos de direitos fundamentais e as disposições de direito
privado deve ser aplicados lado a lado’”. O referido autor conclui sua
argumentação com a ideia de busca de uma superioridade argumentativa,
não formal e nem automática. Não é uma questão necessária, mas possível
(SILVA, 2011, p. 71-73). Outra doutrina que também defende a ineficácia
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, é a de Suzette
Sandoz, aduzindo que há uma confusão metodológica entre situação de
direito e situação de fato. Para ela, o direito privado, quando quer corrigir
uma desigualdade de fato, recorre à proteção quanto ao erro, dolo, etc. Já o
direito público, quando quer corrigir uma desigualdade de direito, recorre
aos direitos fundamentais. No direito civil, a desigualdade deve ser provada,
enquanto no direito público, a desigualdade é presumida (SILVA, 2011, p.
74).

68
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

como é o caso da Constituição alemã, no Brasil,


pelo menos desde 1934, tem-se uma série de
direitos fundamentais cuja razão de ser se encontra
muito mais nas relações entre particulares do que na
relação Estado-indivíduo. Como exemplos, temos
os direitos dos trabalhadores, os direitos
econômicos, o direito de resposta, etc. (SILVA,
2011, p. 139). Com a negativa da eficácia dos
direitos fundamentais entre particulares, o legislador
infraconstitucional, especialmente no ramo privado,
é o único garantidor de direitos, independentemente
da influência constitucional.
Defendida pela Suprema Corte norte-
americana, a doutrina da state action, ou teoria da
ação estatal, entende que nenhuma conduta privada,
em princípio, causaria violação a direito
constitucional. Somente haveria violação reflexa a
direito fundamental na medida que o mesmo já
estivesse previsto na legislação civil. Ou então, na
forma mais atenuada de tal doutrina, pode ser
invocado o respeito a direito fundamental se uma
das partes estiver agindo como um longa manus do
Estado.
Neste caso, a doutrina do state action refere-se à
imputação das ações dos particulares ao Estado ou
a equiparação dessas ações a ações

69
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

estatais19.Segundo tal teoria, como exposto acima,


em princípio, os direitos fundamentais somente
protegem os indivíduos contra a ação estatal. No
entanto, através da "public function exception", poderia
se alegar a proteção dos direitos fundamentais numa
relação privada quando uma das partes envolvidas
estiver no exercício de uma função pública20,
especialmente levando em consideração o interesse
da coletividade. Também, através da "entanglement
exception", chama-se a aplicação dos direitos
fundamentais na relação entre particulares (HUHN,
2006, p. 1390). Tal aplicação ocorreria quando o
governo delega uma de suas funções para uma
entidade privadae através dos atos para a sua
prática, de alguma forma autoriza, encoraja ou
facilita a conduta particular apta a violar um direito
constitucional (BORGES NETO, 2008, p.
171)21.Os mais famosos casos que trataram da
utilização da teoria da ação estatal invocaram a
aplicação do direito fundamental à igualdade de

19 Sobre o assunto, nem mesmo no direito americano as fronteiras seriam


bem definidas: “caberá então ao Judiciário analisar o alcance da conduta
praticada pelo agente, se realmente ela se resume à esfera privada ou se
atingiu contornos de ato público.” (BORGES NETO, 2008, P. 169).
20 Para se evitar, por exemplo, que o Estado delegue dada função a um ente
privado para ficar imune às exigências constitucionais.
21 Como por exemplo, “o requerimento de um tribunal e de uma autoridade
policial de cobrar uma dívida de caráter particular, dando força a um
mandado de arresto, sem que fosse garantido o devido processo legal ao
réu”. Se tal mandado fosse cumprido por agente particular em delegação
pública, constituiria state action. ”.(BORGES NETO, 2008, p. 171)

70
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

tratamento, sem discriminação por motivo de cor,


no âmbito privado. Mas convém destacar, mais uma
vez, que o casoShelley v. Kraemer., apesar de ser
contra a cláusula discriminatória, se fosse adotado
como precedente, traria o fim da state action, o que
não aconteceu.
Nessa forma mais atenuada da doutrina, o
intermediador deixa de ser o legislador e passa a ser
o julgador, mas somente em casos bastante
específicos, para que se evidencie a ideia de que
direitos fundamentais somente são oponíveis contra
o Estado. Outro caso que a Corte americana
reconheceu a aplicação da state action na relação
entre particulares se deu em Burton v. Wilmington
Parking Authority: “um restaurante, que ocupava
espaço alugado do Poder Público, estava vinculado
ao princípio da isonomia e não podia discriminar
sua clientela com base em motivos raciais”
(SARMENTO, 2006, p. 203).
Em que pese a importância das concepções
acima mencionadas, o presente estudo foca-se na
premissa de que os direitos fundamentais podem,
sim, ser aplicados às relações entre particulares,
sejam eles representantes do Estado ou não. Mesmo
porque, o Estado Constitucional tem como centro a
dignidade da pessoa humana e a sua liberdade, esta
última no seu conceito mais amplo e completo,
diferente do conceito em que se estruturava o

71
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Estado Liberal.
Parte-se, assim, para a análise de dois modelos
que reconhecem a aplicação dos direitos
fundamentais na relação privada: o modelo indireto
e o direto.

2.1 Aplicação indireta ou mediata dos direitos


fundamentais nas relações privadas: os
efeitos indiretos

Segundo tal teoria, os direitos fundamentais


aplicam-se, sim, às relações privadas. Porém, tal
aplicação se dá através das normas do direito
privado e de sua interpretação, no momento do
julgamento. “Os direitos fundamentais –
precipuamente direitos de defesa contra o Estado –
apenas poderiam ser aplicados no âmbito das
relações entre particulares após um processo de
transmutação” (SARLET, 2012, p. 387). Eles não
incidem como direitos subjetivos constitucionais,
mas como normas objetivas de princípio
(STEINMETZ, 2004, p. 138). Há uma mediação
estatal, através da intervenção dos Poderes
Legislativo e Judiciário, que seriam os mecanismos
de intermediação.
Tal teoria foi formulada, inicialmente, por
Gunther Durig e recebeu grande destaque quando

72
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

aplicada ao já comentado caso Luth. Eis os


precursores no campo doutrinário e jurisprudencial.
No que concebe como um exemplo brasileiro
de eficácia indireta de direito fundamental, Duque
(2013, p. 201) cita o Código de Defesa do
Consumidor, como uma atuação do legislador
dentro do preceito constitucional previsto no artigo
5º, XXXII, da Constituição Federal: “O Estado
promoverá, na forma da lei, a defesa do
consumidor”22.
O legislador cria a norma de direito privado e
o juiz a interpreta, ambos de acordo com os direitos
fundamentais. Nesse ponto, destacam-se, as
cláusulas gerais e conceitos indeterminados,
instrumentos de grande importância para a
aplicação da teoria dos efeitos indiretos.A força
jurídica dos direitos constitucionais somente se
estendem aos particulares através da legislação
privada: “[...] quando muito, os preceitos
constitucionais serviriam como princípio de
interpretação das cláusulas gerais e conceitos
indeterminados suscetíveis de concretização [...]”
(ANDRADE, 2001, p. 276). Ou seja, os defensores
da teoria da eficácia mediata dos direitos
fundamentais sustentam que tais direitos são

22 Conforme se verá, o entendimento do autor não deixa de se alinhar,


também, com a própria eficácia direta dos direitos fundamentais nas
relações privadas.

73
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

protegidos no campo privado não através dos


instrumentos existentes na aplicação do próprio
direito constitucional, mas por mecanismos típicos
do direito civil (SARMENTO e GOMES, 2011, p.
68).
Através da eficácia mediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas, o direito civil
mantém sua absoluta autonomia, com o
fundamento de que ele protege bens e valores tão
relevantes quanto os direitos fundamentais: é
através dele que o indivíduo tem o espaço de
liberdade necessário ao seu desenvolvimento. Se os
direitos fundamentais fossem aplicados de forma
direta nas relações privadas, segundo o aporte
teórico de tal tese, a autonomia privada seria
eliminada e, consequentemente, haveria uma perda
da identidade e independência do direito civil
perante o direito constitucional (STEINMETZ,
2004, p. 142). A aplicação dos direitos fundamentais
através de cláusulas gerais, “salvaguarda, por um
lado, a autonomia do direito privado, [...] e
salvaguarda, por outro, a unidade do direito total,
naturalmente necessária na moral jurídica”
(DURIG, 2012, p. 35).
Ganha ênfase, nesta teoria, o princípio da
segurança jurídica. É o legislador que tem a função
primordial de levar em consideração a aplicação dos
princípios fundamentais na norma privada, a fim de

74
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

se evitar insegurança jurídica.


Apesar de bastante consistente os argumentos
da tese em questão, ela não tem matização única.
Steinmetz (2004, p. 148-51) identifica que a teoria
apresenta-se em diferentes gradações, partindo-se
de uma versão severamente restritiva, a uma menos
restritiva. Numa primeira matização, sujeita a
eficácia das normas de direitos fundamentais aos
particulares exclusivamente à concreção legislativa.
Na segunda variação, num primeiro momento, a
eficácia dependeria da atuação do legislador, mas na
ausência de norma específica, o juiz utiliza cláusulas
gerais preenchidas com conteúdo valorativo do
direito fundamental posto em questão. Se não for
possível através de cláusula geral, o direito
fundamental não vincula o particular. A terceira
matização traz, também, a preferência pelo trabalho
do legislador. Na ausência de atuação específica, o
juiz também utiliza as cláusulas gerais preenchidas
com o valor do direito fundamental em jogo. Não
sendo possível por essa via, excepcionalmente,
diante da desigualdade evidente entre os
particulares, os direitos fundamentais são aplicados
de forma direta. E na quarta variação, diante da
inexistência de lei ou da impossibilidade de se
aplicar as cláusulas gerais, o direito fundamental é
aplicado de forma direta e imediata,
independentemente da desigualdade fática dos

75
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

particulares. Entre as quatro variações, a doutrina,


especialmente alemã, divide-se.
Parte da doutrina alemã defende, ainda, a
construção teórica de um outro caminho para
fundamentar, com mais precisão, a teoria da eficácia
mediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas: a teoria dos deveres de proteção. De
acordo com tal teoria, “o Estado tem a obrigação
não apenas de abster-se de violar os direitos
fundamentais, mas também de protegê-los diante de
lesões e ameaças provenientes de terceiros, inclusive
particulares” (SARMENTO, 2006, p. 236). Os
direitos fundamentais possuem a função de obrigar
o Estado à proteção dos seus cidadãos, como
mandamentos de tutela (CANARIS, 2010, p. 216).
De início, as normas de direitos fundamentais
são dirigidas às relações entre particulares e Estado.
Mas este, além do dever de respeitar tais direitos e
de criar as condições necessárias para a sua
realização, tem, ainda, “o dever de os proteger
contra qualquer ameaças, incluindo as que resultam
da atuação de outros particulares” (ANDRADE,
2010, p. 247). Canaris (2010, p. 216) apresenta-se
como um expoente na defesa de tal teoria que daria,
então, um suporte teórico plausível para a eficácia
mediata dos direitos fundamentais. Justificaria,
portanto, a afirmação de que o único destinatário
dos direitos fundamentais é o Estado e, ao mesmo

76
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

tempo, a questão afeta também os outros cidadãos,


através de via oblíqua: “precisamente porque o
Estado ou o ordenamento jurídico estão, em
princípio, obrigados a proteger um cidadão contra o
outro também nas relações entre si”.

2.1.2 Principais críticas a respeito da teoria da


aplicação indireta dos direitos
fundamentais nas relações privadas

Tem-se visto que os argumentos a favor da


teoria da eficácia indireta ainda guardam resquícios
do liberalismo, com a exagerada preocupação com a
autonomia privada, como um direito intangível.
De fato, através da aplicação mediata dos
direitos fundamentais nas relações privadas, o
direito privado permanece bastante delimitado e
autônomo. Também através dela, alegam seus
defensores, evita-se uma trivialização dos direitos
fundamentais e uma erosão ao princípio da
legalidade. E se a teoria da eficácia indireta ganhou
alguns adeptos na doutrina do direito comparado,
não é menos verdade que deixa uma série de
questões em aberto.
A tese é criticada, principalmente, por não
proporcionar uma tutela integral dos direitos
fundamentais no direito privado, que depende de

77
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

decisões adotadas pelo legislador ordinário.


Ademais, como já exposto, é inegável a
crescente influência do direito constitucional em
todo o ordenamento jurídico. E essa
constitucionalização do direito não implica afirmar
que seriam subtraídas competências do direito civil
e entregues ao direito constitucional, como já
exposto. “A relação entre direito constitucional e
direito privado não é de exclusão, mas de
complementação” (Steinmetz, 2004, p. 154).
Por outro lado, os principais instrumentos de
utilização da teoria, as cláusulas gerais e os
conceitos indeterminados, nem sempre estão às
mãos do intérprete. E quando estão, a diferença
entre a teoria de eficácia direta e a teoria da eficácia
indireta, seria apenas um ponto: na primeira, as
consequências são derivadas dos próprios direitos
fundamentais e, na segunda, essas consequências
são fixadas pelas cláusulas gerais do direito civil
(DUQUE, 2013, p. 293)23.O que não se pode é
deixar apenas ao nível infraconstitucional a garantia
de um direito fundamental.
Daniel Sarmento (2006, p. 214) salienta que a
adoção da teoria da eficácia indireta torna a

23 Que, em tese, não delimitariam, mesmo porque tanto as cláusulas gerais


quanto os conceitos indeterminados, dada a característica de vagueza,
dizem tudo e dizem nada.

78
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

proteção dos direitos fundamentais refém da


vontade incerta do legislador ordinário, fazendo
com que estes direitos não tenham uma proteção
adequada, compatível com o seu status e
fundamentalidade.
Outra crítica é sobre ser a concepção
formulada por Durig baseada em valores jurídicos e
constitucionais, com base na dignidade humana, o
que é por demais vago. “Faltariam, assim,
parâmetros racionais para uma intermediação de
sentido (Sinnermittlung) jurídica entre o direito civil
e os valores da constituição” (DUQUE, 2013, p.
294). “E há ainda quem aponte para o caráter
supérfluo desta construção, pois ela acaba se
reconduzindo inteiramente à noção mais do que
sedimentada de interpretação conforme a
Constituição” (SARMENTO e GOMES, 2011, p.
70).
Ademais, pelo menos dentro da análise
extensiva dos direitos fundamentais, eles não se
limitam à linhas diretivas para a interpretação.
Podem ser utilizados como comandos diretos e
imediatos.
No que concerne à teoria dos deveres de
proteção, também está sujeita a diversas críticas. Ela
pode conferir poderes em demasia ao juiz,
aumentando a insegurança jurídica e também pode
encobrir “o fato de que, no contexto da sociedade

79
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

contemporânea, só por mero preconceito se podem


excluir os particulares, sobretudo os detentores de
posição de poder social, da qualidade de
destinatários dos direitos fundamentais”
(SARMENTO E GOMES, 2011, p. 75).Além disso,
como a teoria da eficácia indireta, torna a proteção
dos direitos fundamentais na relação privada refém
da vontade do legislador ordinário. Isso seria
incompatível com a própria noção de direito
fundamental.
O fato é que a teoria da eficácia indireta não se
amolda às características singulares da nossa ordem
constitucional, que dá destaque à defesa da justiça
mesmo nas relações privadas, diferente do que
ocorre no direito alemão.
2.2 Aplicação direta ou imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas: os
efeitos diretos

Segundo tal teoria, os direitos fundamentais se


aplicam às relações entre particulares
independentemente de quaisquer atravessadores. “A
obrigação dos cidadãos de respeitar os direitos
fundamentais surge e emana diretamente da
Constituição e não somente das normas de
desenvolvimento desta” (QUADRA-SALCEDO,
1981, p. 70).A norma constitucional “se torna parte
integrante da própria normativa destinada a regular

80
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

a concreta relação” (PERLINGIERI, 2008, p. 579).


Ela ganhou repercussão a partir de Nipperdey
(2012, p. 52-60) que dá enfoque ao fato de que o
direito privado não é fundado apenas no código
civil, mas tem como fundamento mais profundo e
eficaz os direitos fundamentais e de liberdade da
cultura antiga e ocidental. Segundo o autor, “o
direito privado é um componente integrante do
ordenamento jurídico total e uniforme, liberal e
social”. Na verdade, dentro de sua concepção, a
constituição “garante o ordenamento jurídico
privado em seus elementos essenciais e concede a
ele proteção, firmeza e liberdade perante o Estado”.
Mas não só isso. Alguns direitos fundamentais
vinculam o Estado e outros, o Estado e os
indivíduos. E ainda assim, uma série deles tem a
função de proposições de ordem ou normas de
princípio, portanto, normas objetivas para o
ordenamento jurídico total. Com isso, vinculam
“também o tráfego do direito privado
imediatamente, isto é, não primeiro com base em
leis que foram [...] promulgadas”. Enfim, Nipperdey
expõe que o direito constitucional da atualidade, no
que se refere a outros ramos jurídicos,
especialmente o privado, não contém somente
“’proposições diretrizes’ ou ‘regras de
interpretação’, mas uma regulação normativa do
ordenamento jurídico total como unidade, da qual

81
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

também emanam imediatamente direitos privados


subjetivos do particular”.A Constituição incide
sobre o todo direito, mesmo porque, na mesma
linha de raciocínio do referido autor, não se pode
aceitar que o direito civil forme uma espécie de
“gueto à margem da ordem constitucional”
(SARLET, 2012, p. 388).
O ponto central da teoria “reside na
constatação de que alguns direitos fundamentais
alicerçam pretensões que não são dirigidas
exclusivamente ao Estado, mas, igualmente, a
sujeitos privados” (DUQUE, 2013, p. 106). Suas
premissas básicas são: as normas de direitos
fundamentais dão garantias aos cidadãos não
somente contra o Estado, mas também contra
outros cidadãos24; os direitos fundamentais são
direitos subjetivos independentemente da relação
ser pública ou privada e, por serem direitos
subjetivos constitucionais, operam eficácia
independentemente de lei regulamentadora ou de
outros recursos como cláusulas gerais, a não ser que
o próprio Poder Constituinte tenha previsto de
forma diversa25 (STEINMETZ, 2004, p. 168-9).
Duque (2013, p. 108-9) sintetiza que os

24 Trata-se do status socialis de Nipperdey, que traz uma posição jurídica


autorizadora de elevação do particular a uma pretensão de respeito contra
todos (Steinmetz, 2004, p. 168).
25 Como é o caso das normas constitucionais de eficácia limitada.

82
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

argumentos que sustentam a teoria da eficácia direta


dos direitos fundamentais nas relações privadas são
cinco: 1) o fundamento de todo o direito é a
dignidade da pessoa humana; 2) os direitos
fundamentais são valores supremos que devem ser
assegurados na vida social; 3) durante o tempo, os
direitos fundamentais modificaram-se,
especialmente no sentido de que não são somente
poderes de defesa contra o Estado, mas também
contra os poderes sociais privados; 4) os direitos
fundamentais são direitos multidirecionais, porque
vigem não só nas relações com o Estado; 5) quando
se considera que os direitos fundamentais tem
vigência imediata perante os poderes públicos,
devem também ser considerados imediatamente
vigentes no âmbito privado.O que não seria
permitido ao Estado, também não seria ao
particular.
Em forma semelhante ao que faz com relação
à teoria da eficácia indireta, Steinmetz (2004, p.
169/170) demonstra que a teoria da eficácia direta
também se apresenta em diferentes matizes, ou
variações. A primeira delas, considerada a matiz
“forte”, os direitos fundamentais teriam eficácia
geral, plena e indiferenciada, ou seja, com uma
eficácia absoluta, nos termos formulados por
Nipperdey. A segunda variação é uma intermediária:
a eficácia das normas de direitos fundamentais é

83
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

imediata, porém não é ilimitada, incondicionada e


indiferenciada. A terceira versão, “fraca”, os direitos
fundamentais se aplicam diretamente nas relações
privadas, sobretudo onde exista desigualdade fática
entre os particulares: há um com superioridade
econômica e ou social e outro em posição de
subordinação ou inferioridade. Quanto à primeira
versão, a sua fragilidade estaria na conclusão de que
ela desconsidera que o problema da eficácia dos
direitos fundamentais nas relações privadas é
questão de colisão de direitos fundamentais e que a
autonomia privada também é bem
constitucionalmente protegido. Em compensação, a
versão fraca revela-se ambígua: “na literatura
constitucional, ora ela aparece como uma versão
autônoma, ora como uma exceção à teoria da
eficácia mediata e ora como uma (sub) variação da
versão ‘intermediária’ da eficácia imediata”. O autor
conclui, então, que os melhores argumentos
acompanham a variação intermediária, porque o
problema da eficácia das normas de direitos
fundamentais nas relações entre particulares é uma
questão de colisão de direitos fundamentais; a
autonomia privada também é um direito
constitucionalmente garantido e, no caso concreto,
o alcance e a medida da eficácia de tais direitos deve
ser o resultado de uma ponderação de direitos,
interesses ou bens em jogo.

84
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Sem dúvidas, no contexto de defesa dos


direitos sociais da Constituição Federal de 1988, é o
modelo que melhor se adapta à realidade brasileira.

2.2.1 Principais críticas a respeito da teoria da


aplicação direta dos direitos fundamentais
nas relações privadas

As objeções em relação à eficácia direta dos


direitos fundamentais nas relações privadas são
feitas, geralmente, pelos defensores da teoria da
eficácia indireta.
Argumenta-se que, se a constituição tivesse
por objetivo que seus direitos fundamentais
incidissem de forma direta nas relações privadas,
assim teria disposto. Na verdade, tal argumento não
tem consistência porque não é o fato de não estar
previsto expressamente na constituição26, que sua
autorização não existe. Aliás, a omissão pode ter
sido proporcional exatamente para garantir a
eficácia dos direitos fundamentais nas relações
públicas e privadas, sem uma inicial distinção.
Ademais, num contexto de interpretação extensiva
de tais direitos, não há como restringir sua aplicação
à relação entre indivíduo e Estado. Essa ausência de

26 Art. 5º, § 1º da Constituição Federal de 1988: “As normas definidoras dos


direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

85
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

citação sobre a eficácia perante os poderes públicos


e particulares, não significa, de forma alguma, que
ambos não estejam vinculados pelos direitos
fundamentais, mas no entendimento de Sarlet
(2012, p. 374), é proposital: “Tal se justifica pelo
fato de que, em nosso direito constitucional, o
postulado da aplicabilidade imediata das normas de
direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF) pode ser
compreendido como um mandado de otimização de
sua eficácia”. Assim, a questão não se trata de
reconhecer se os particulares também devem, nas
relações entre si, sujeitarem-se à eficácia dos direitos
fundamentais. Trata-se de se verificar o alcance e
forma de vinculação.
Outra crítica diz respeito à equiparação da
relação particular com particular e particular com
Estado, que não pode acontecer. O Estado, de fato,
não é titular de direitos fundamentais. Mas essa
crítica também não merece prosperar já que, a
teoria, não deixa de reconhecer que determinados
direitos fundamentais só se aplicam na relação entre
indivíduo e Estado. Ou seja, tais relações não são
equiparadas. Permanece a ideia inicial de que os
direitos fundamentais surgem, em sua concepção,
para proteção dos indivíduos contra o Estado, sim.
Mas com os avanços sociais e jurídicos, não há
como se ignorar determinadas relações que não
envolvem o ente estatal e que uma, ou ambas as

86
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

partes, merecem ter seus direitos fundamentais


resguardados. Não se questiona sobre os direitos
fundamentais que, por sua natureza, têm por
destinatário única e exclusivamente o Estado, como
os remédios constitucionais, os direitos políticos,
etc.
A crítica quanto à desconsideração da
autonomia privada e o fato de que a mesma
também é direito fundamental, não se choca com
tal teoria. Em determinados casos, pela colisão de
direitos, prevalecerá a autonomia privada, como
direito constitucionalmente garantido. Em outros
casos, a autonomia sucumbirá diante de outros
direitos mais importantes a serem resguardados,
sem que implique desconsideração da segurança
jurídica. E ainda há de se observar que não há uma
posição de tudo ou nada: o que se objetiva é a
maximização da eficácia dos direitos fundamentais.
Outro ponto questionado sobre a teoria em
questão diz respeito ao desprezo da autonomia do
direito privado como disciplina, prejudicando o seu
próprio desenvolvimento. No entanto, as relações
privadas continuam sendo regulamentadas pelo
direito civil sem que este perca sua essência: ele
apenas deve se desenvolver, como de fato ocorrerá,
na linha dos ditames constitucionais.
Na verdade, não há qualquer crítica à eficácia
imediata que prospere na realidade do Estado

87
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Democrático de Direito, dotado de uma


Constituição com efeito normativo.

2.4 Eficácia direta e/ou a impossibilidade de


solução uniforme para a questão dos
direitos fundamentais aplicados à relação
entre particulares

A doutrina alemã apresenta a nítida tendência


à eficácia indireta dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares. No entanto, como já
mencionado, tal teoria, no direito brasileiro, não
encontra grandes defensores, mesmo porque, diante
da previsão constitucional de 1988 sobre a aplicação
imediata dos direitos fundamentais,
independentemente de relação pública ou privada,
tal eficácia tem se efetivado sem qualquer
impedimento ou mediador27.
Assim, aqui, a grande maioria dos autores que
se debruçaram sobre o tema sustentam, com acerto,
a vinculação direta e imediata dos particulares aos
direitos fundamentais, especialmente porque levam
em conta as características singulares da nossa
ordem constitucional, muito mais voltada para o

27 Dentre os autores que defendem a aplicação da eficácia direta, na linha de


Nipperdey, destacam-se, assim, em âmbito nacional, Luís Roberto Barroso,
Gustavo Tepedino, Wilson Steinmetz e Jane Reis Gonçalves Pereira.

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

combate à injustiça nas relações privadas do que a


Constituição alemã28.
Como o direito civil pode ser considerado um
prolongamento do direito constitucional, “a
concepção de que os direitos fundamentais incidem
diretamente nas relações privadas é uma
consequência natural e lógica da adoção de um
modelo hermenêutico comprometido com o caráter
normativo da constituição” (PEREIRA, 2006, p.
185).
Quanto à questão do fim da autonomia
privada com a aplicação direta dos direitos
fundamentais nas relações contratuais, também não
há que ser levada como se, de fato, houvesse
superação de tal direito também constitucional.Tal
teoria, não é uma doutrina radical, “pois ela não
prega a desconsideração da liberdade individual no
tráfico jurídico-privado, mas antes impõe que seja
devidamente sopesada na análise de cada situação
concreta” (SARMENTO e GOMES, 2008, p. 72).
A questão, ressalva Pereira (2006, p. 182), é saber se
a autonomia privada “deve prevalecer em face dos

28 Como exceções, temos “Luís Afonso Heck, bem como Dimitri Cimoulis e
Leonardo Martins – todos eles autores fortemente influenciados pelo
pensamento constitucional alemão” (SARMENTO e GOMES, 2011, p.
70). Da mesma forma, pode-se acrescentar Marcelo Schenk Duque. Estes
autores advogam a adoção, no Brasil, da solução germânica para o
problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, através da teoria
da eficácia indireta.

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

demais direitos fundamentais quando tratar-se de


relação jurídica entre particulares”.Como todo
direito fundamental, precisa ser protegida ao
mesmo tempo que não pode viger ilimitadamente,
sendo possível aplicar-se o preceito de
proporcionalidade como forma de se avaliar a
conduta a que se atribui uma lesão a direito
fundamental. Uma das vertentes que dão base a tal
constatação é a de que o indivíduo tem liberdade,
mas não uma liberdade ilimitada e que se leva em
consideração um indivíduo isolado, desprovido de
conexões na vida social. É a liberdade de uma
pessoa vinculada a uma comunidade.
Também é importante mencionar que, nesses
termos de reconhecimento do direito à liberdade
através da autonomia privada, não é menos verdade
que há necessidade de adoção de um modelo que
demonstre a compatibilidade da garantia dos
direitos fundamentais invocados para a sua
restrição.
Nesse ponto, o importante é se levar em conta
que o fundamento é a dignidade da pessoa humana,
estejam os particulares em pé de igualdade ou não,
de forma que deve existir um dever geral de respeito
por parte de todos os integrantes da comunidade
para com os demais. Mesmo porque é isso que tem
acontecido em questões que, especialmente,
envolvam direitos da personalidade, tanto na

90
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

doutrina e na jurisprudência: os direitos são


resguardados com base na constituição,
independentemente de sua previsão na legislação
civil.
Quanto à forma de incidência dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, a
regra, portanto, deve ser a da eficácia direta. Mas se
existem mecanismos dentro do próprio âmbito do
direito civil que garantam, por si só, os direitos
fundamentais, não será preciso invocar a aplicação
direta da Constituição na relação privada contratual.
Ou seja, a Constituição será usada como comando
normativo, de forma direta e imediata. Só não será
quando a lei infraconstitucional estiver regendo
diretamente a relação e tal lei está de plena
conformidade com os preceitos constitucionais.
Tudo isso, sem desconsiderar que aos
indivíduos ainda deve ser resguardada uma esfera
livre de ação estatal. Um âmbito de autonomia
individual inviolável deve ser mantido, para que as
pessoas possam agir de acordo com a sua vontade
segundo sua concepção de busca da felicidade,
desdobramento da própria dignidade da pessoa
humana.
Se cada ser humano deve ter sua dignidade
respeitada, a consequência lógica é que não há
solução idêntica para todos os casos. Coerente,
portanto, é o entendimento de Sarlet (2012, p. 271),

91
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

para quem, apesar de deixar claro que coaduna do


entendimento da eficácia direta nas relações entre
particulares, não há como conceder uma solução
uniforme à questão. Os atores privados são bastante
distintos e os valores da dignidade da pessoa
humana bem como a autonomia privada, devem ser
observados no caso concreto. Em princípio, pode
existir uma norma de direito privado suficiente para
garantia dos direitos constitucionais fundamentais.
Neste caso, poder-se-ia até dizer que se está diante
de uma aplicação indireta dos direitos fundamentais
através do legislador, que editou norma nos termos
da constituição. Também em casos de cláusulas
gerais e conceitos indeterminados, os seus
conteúdos serão preenchidos de acordo com as
normas de direitos fundamentais, o que se daria
também através de uma eficácia indireta. Por fim,
quando a lei for omissa ou mesmo não existir,
quando não houver cláusulas gerais ou conteúdos
indeterminados a serem preenchidos, quando o
campo da norma de direito civil for mais restrito ou
mesmo incompatível com a Constituição, haverá
aplicação direta dos direitos fundamentais. Em
sentido muito próximo, é o entendimento de
Canotilho (1998, p. 1150-60) que, advogando pela
eficácia imediata dos direitos fundamentais nas
relações privadas, aponta para a necessidade de
criação de soluções diferenciadas conforme o caso.
Para ele, em primeiro lugar, o Judiciário deve aplicar

92
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

as regras de Direito Civil em conformidade com os


direitos fundamentais, através da interpretação
conforme à Constituição. Se não for possível tal
interpretação, através do controle incidental de
constitucionalidade, deve negar a aplicação da
referida norma. E se não houver norma
infraconstitucional apropriada, utiliza as cláusulas
gerais, os conceitos indeterminados ou a própria
Constituição, diretamente.
Mais exatamente no caso brasileiro, se o art.
5º, §1º, da Constituição Federal não possui a força
de transformar uma norma incompleta e sem
concretização em direito imediatamente aplicável e
eficaz, o citado preceito pode ser considerado como
inexistente ou, no mínimo, sua formula destituída
de conteúdo, “visto que nada mais se pode fazer do
que extrair da norma o que dela mesma é possível
retirar”.
Por outro lado, nem todos os direitos
fundamentais podem ser considerados normas
diretamente aplicáveis e alcançar sua plena eficácia
independentemente de qualquer ato concretizador.
O Judiciário pode viabilizar a fruição dos direitos
fundamentais mediante o preenchimento das
lacunas, mas tal atividade tem limites, dentro da
própria Constituição. Assim, tal norma tem cunho
inequivocadamente principiológico, sendo um
mandado de otimização, que não pode ser resolvido

93
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

com a lógica do tudo ou nada (SARLET, 2012, p.


269-71). Nesse sentido, Steinmetz (2004, p. 171)
também entende que a resposta estaria em uma
solução intermediária: o problema da eficácia de
direitos fundamentais entre particulares é uma
questão de colisão de direitos fundamentais; a
autonomia privada também é bem
constitucionalmente protegido e, em consequência
dessas duas conclusões, “o alcance, a medida, da
eficácia imediata em cada caso concreto deve
resultar de uma justificada ponderação dos direitos,
interesses ou bens em jogo”.
O processo de ponderação de valores29 é a
principal resposta para a questão da medida da
eficácia dos direitos fundamentais nas relações
privadas. Porém, é preciso que critérios específicos
sejam apresentados para esse tipo de ponderação,
que “se apresentem adequados à peculiaridade
presente nos conflitos de direitos em relações
privadas, que consiste na circunstância de o agente
potencialmente violador destes ser também titular

29 Apesar de não ser possível, dada a proposta sintética do trabalho, adentrar


na discussão sobre a aplicação da teoria de ponderação de valores,
importante se faz mencionar que tal ponderação dar-se-ia nos termos
formulados por Robert Alexy: [...] los princípios son madatos de
optimizacion, que estan caracterizados por el hecho de que puedem ser
cumplidos em diferente grado y medida debida de su cumplimiento no sólo
de de las possibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las
possibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas
opuestos.” (ALEXY, 1993, p. 86). O caso concreto é que vai apontar qual
princípio deve prevalecer e qual deve ceder.

94
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

de direitos fundamentais” (PEREIRA, 2006, p.


186). Entra em destaque a importante noção de
coexistencialidade entre os particulares. Fachin
(2012, p. 43) ressaltando a importância de se
considerar a pessoa e a relação privada em concreto,
explica: “a preservação e a promoção da dignidade
da pessoa humana passam, pois, pela disciplina das
relações concretas de coexistencialidade”.
Por esta razão, há necessidade de se apurar,
diante da aplicação da ponderação de valores, em
que medida a eficácia de direitos fundamentais
incide. Nesse aspecto, Duque (2013, p. 298) propõe
a análise da dosimetria da eficácia, no sentido de se
apurar, na relação concreta, o tamanho da ameaça
aos direitos fundamentais. Pereira (2006, p. 187)
também propõe a aplicação de critérios de gradação,
já “que a presença ou não de certos fatores poderá
implicar uma maior ou menor intensidade da
vinculação das pessoas privadas aos direitos
fundamentais”. Quanto maior o poder social em um
contrato, maior será o mecanismo compensatório,
capaz de restabelecer o equilíbrio na relação
jurídico-negocial.
Dentro do contexto da coexistencialidade, o
poder social imperante em determinados contratos
pode ser uma ameaça mais perigosa aos direitos
fundamentais das partes do que o próprio Estado,
como já demonstrado. Nesses casos, já há um

95
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

consenso na doutrina sobre a necessidade de se


agregar vigência dos direitos fundamentais nas
relações privadas. E seria dessa forma que a própria
liberdade dos contratantes seria assegurada: os mais
fracos terão o mesmo direito à liberdade (material)
dos mais fortes. Pereira (2006, p. 182) enfatiza:
“defender a impossibilidade de os direitos
fundamentais serem invocados em relações privadas
de poder, com fundamento no princípio geral de
liberdade, seria prestigiar uma noção puramente
formal de autonomia da vontade”.
E se há um mais forte e um mais fraco na
relação contratual, somente a análise do caso
concreto é que poderá determinar a medida dessa
desigualdade de poder. Porém, isso não significa
dizer que os direitos fundamentais não se aplicarão
em relações de igualdade material das partes no
contrato.
Apresentando quatro pautas argumentativas,
convém mencionar o entendimento de Pereira
(2006, p. 188-90): 1) Se o violador do direito
fundamental for, de forma direta ou indireta, o
Estado, deve-se aplicar os direitos fundamentais; 2)
Em caso de pessoas privadas com posição de
supremacia, quanto maior o seu poder, mais peso
terá o direito fundamental que porventura venha a
ser violado por seus atos; 3) Quanto mais próxima
da esfera privada for a relação jurídica, menor será a

96
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

possibilidade de um direito fundamental prevalecer


sobre a autonomia privada; 4)Deve ser levada em
conta a necessidade de se preservar a pluralidade no
âmbito social. Ou seja, a incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas não pode
conduzir a uma homogeneização da comunidade.
Cada agente social deve ter preservada a sua
identidade e peculiaridade.
Dentro deste estudo, algumas considerações são
formadas no que pertine à aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas:
1) Em consonância com o Estado
Constitucional e o conteúdo normativo da
Constituição, os direitos fundamentais incidem em
quaisquer relações, públicas ou privadas, de forma
direta e imediata. Os direitos fundamentais devem
ser avalizados em sua forma mais ampla em
qualquer tipo de relação travada, mesmo porque
não basta ao Estado garantir, somente quando
provocado, a dignidade da pessoa humana. O
Estado também tem a obrigação de promovê-la,
incentivando que os próprios particulares também a
respeitem nas relações travadas com seus pares. E
mais, o Estado não pode esquivar-se da promoção
dos direitos fundamentais simplesmente por não
participar diretamente da relação em que eles são
violados. Se assim agisse, estaria abonando a

97
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

conduta violadora de direitos fundamentais,


inconcebível no Estado Democrático de Direito;
A autonomia contratual também é direito
fundamental e, como tal, não pode ter sua
aplicabilidade ilimitada e nem ser, simplesmente,
desconsiderada. Ela deve ser resguardada porque,
além de ter completa relação com o direito de
liberdade previsto no caput ido art. 5º da
Constituição Federal, também é um desdobramento
do próprio desenvolvimento da dignidade da pessoa
humana, quando garante a autodeterminação da
pessoa. Mas, em conflito com outros direitos
fundamentais, poderá não prevalecer no caso
concreto, especialmente pelo caráter social da
constituição brasileira;
2) Consequentemente, quanto mais a
autonomia privada se aproxima de escolhas
privadas, de consciência, de características pessoais
e íntimas do indivíduo e com objetivos não
comerciais, maior será a sua preservação;
3) Quanto maior o poder de uma das
partes na relação contratual, menor garantia terá ao
seu direito à autonomia privada. Com isso, busca-se
preservar a liberdade em seu aspecto material, já que
o ordenamento jurídico, através do dirigismo
contratual, dá a parte vulnerável na relação uma
mais ampla proteção.

98
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Diante da possibilidade de solução


multifacetada, a forma da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas deve ser direta,
atendendo as peculiaridades do caso. No que
concerne à medida, também depende do exame da
hipótese em concreto, do caso a ser analisado, para
que se verifique os poderes sociais envolvidos e os
direitos em conflito, aplicando-se, por fim, uma
ponderação de valores, nos termos propostos por
Robert Alexy.

4. Considerações finais

Não é demais lembrar que, com a Constituição


Federal de 1988, houve uma preocupação com a
busca da justiça social em todas as relações no país,
dando, ainda, um caráter mais humanitário ao
direito. Assim também o foi no direito contratual.
Antes, institutos como da autonomia privada e
força obrigatória dos contratos constituíam-se nos
princípios intangíveis das relações privadas, mas
hoje o contrato mostra-se totalmente condicionado
à constituição, como um dos alvos principais da
influência da constitucionalização do Direito Civil.
Mesmo porque as normas constitucionais, na
garantia da justiça social, incidem, como comandos
normativos, nas relações entre particulares para que,

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ainda que exista na legislação resquícios de


comportamentos individualistas, prevaleça a
concepção do social e humano do Estado
Democrático de Direito.E neste aspecto, a
dignidade da pessoa humana passa a ser o
fundamento dos contratos, que assumem, sem
embargo, sua função social.
Dentro dessa linha de desenvolvimento, a
eficácia dos direitos fundamentais, nas relações
privadas, onde se insere as relações contratuais,
deve ser, em regra, de forma direta e imediata. Não
se deve aguardar por mecanismos que intermediem
a mais ampla garantia de direitos constitucionais,
especialmente os relacionados à dignidade da pessoa
humana. No entanto, o caso concreto pode sugerir
uma solução diferenciada, como própria
manifestação dos direitos constitucionais.
Essa é a concepção que melhor se amolda ao
conceito atual de contrato, dentro da concepção de
proteção não só de valores patrimoniais, mas
também de interesses existenciais.
Não se trata de por um fim à autonomia
privada, mesmo porque ela é direito constitucional
também garantido aos indivíduos, dentro de suas
características pessoais e de sua concepção da busca
à felicidade. O que deve existir é um modelo que
compatibilize a autonomia privada com os direitos
fundamentais, sem que, para isso, seja proposta uma

100
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

resposta uniforme no direito, ou baseada no tudo


ou nada.
Assim, por ser problema de colisão de direitos
fundamentais, a ponderação pode ser aplicada como
a medida da eficácia direta dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, com a
fixação de critérios de dosimetria e gradação de
incidência dos direitos, especialmente quando na
relação travada exista um poder social dominante.
Por fim, é importante considerar que a eficácia
direta dos direitos fundamentais nas relações
privadas, com base na prevalência da dignidade da
pessoa humana pode auxiliar na construção de uma
sociedade igualitária, sobretudo considerando as
diferenças fáticas existentes no Brasil,
representando, ademais, efetividade da justiça no
Estado Constitucional.

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Antonio Fabris Editor, 2004.

A CONFIGURAÇÃO DO VÍNCULO DE
EMPREGO NOS CONTRATOS DE
MOTORISTAS AUTÔNOMOS COM A
UBER.

La Configuración del vinculo laboral en los contratos de


conductores con el UBER.

Igor Moura Maciel30

30 Advogado. Mestrando em Direito pelo UNICEUB/DF. Email:


contato@imaciel.com.br

105
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

RESUMO

A evolução de tecnologia com o desenvolvimento


da internet trouxe consigo uma verdadeira mudança
nos hábitos da população mundial, dentre os quais
destaca-se a tendência dos indivíduos a contratarem
o máximo de serviços com o mínimo de interação
social. Nesta perspectiva, surgiu o UBER, aplicativo
que oferece serviços similares ao táxi, mas com a
comodidade de ser solicitado pelo celular, com
pagamento em cartão de crédito e informação do
destino via sistema de geolocalização. Em que pese
a contratação dos motoristas ser feita sob a natureza
de profissionais autônomos, defende-se, neste
trabalho, a configuração dos requisitos da relação de
emprego havia entre tal profissional e o aplicativo
UBER.

Palavras-chave:UBER – Contrato – Motorista –


Vínculo empregatício – Configuração.

1. Introdução

As transformações ocorridas no mundo em


razão do avanço das comunicações têm trazido
significativa mudança nos hábitos e costumes da

106
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

população mundial. A internet aliada aos aparelhos


multifuncionais tem proporcionado aos
consumidores, sociedades empresárias e demais
agentes do mercado uma verdadeira revolução nos
tradicionais hábitos até então enraizados.
É que a internet fora apropriada pela prática
social, em toda sua diversidade, gerando, inclusive,
um fértil debate acerca dos efeitos sociais causados
nas pessoas: se o uso excessivo levaria a uma menor
interação ou maior isolamento social, através das
comunidades e amigos virtuais (CASTELLS, 2003,
pg. 99).
Nas palavras de Pierre Lévy (2010, pg. 17),
surgiu no mundo uma verdadeira cibercultura, onde
o ciberespaço trata-se do novo meio de
comunicação que surge da interconexão mundial de
computadores, sendo fruto de um verdadeiro
movimento social. Assim, o ciberespaço ou a rede
são tanto a infraestrutura de comunicação como o
universo de informações disponíveis que são por ela
abrigados.
Já em obra publicada originalmente no ano
2000, o escritor polonês Zygmut Bauman (2001)
nos faz refletir sobre algumas características desta
sociedade moderna, dentre as quais destaca o
consumismo exacerbado e o individualismo onde as
pessoas não mais interagem entre si e são levadas a

107
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

cada vez mais preocuparem-se apenas com seus


próprios problemas.
Para Bauman, inclusive, chega a ser curioso
esta nova tendência mundial, eis que, ao mesmo
tempo, as mídias sociais estimulam uma verdadeira
abertura da intimidade das pessoas, sem contudo,
permitir um contato mais real ou sincero (2001, pg.
83).
Neste contexto, os aplicativos de celular que
possibilitam ao usuário a solução imediata de seu
problema, sem a necessidade de qualquer tipo de
interação com outra pessoa têm ganho cada vez
mais adeptos. A ideia é que com apenas poucos
toques no celular seja possível pedir comida,
solicitar um táxi, comprar o ingresso do cinema,
enfim, resolver atividades cotidianas sem a
necessidade de interação com outro indivíduo.
O UBER, aplicativo criado para facilitar o
transporte de passageiros, surge em 2010 nos
Estados Unidos. Trata-se de uma plataforma que
permite o prévio cadastro de motoristas com seus
automóveis e auxilia a interação com os respectivos
passageiros usuários do serviço. Seria, então, o
aplicativo, um sistema autorregulado, composto por
carros que oferecem serviço similar ao táxi.
(QUEIROZ e SANTOS, 2015, pg. 27)
De acordo com parecer exarado pelo Dr.
Daniel Sarmento, publicado em forma de artigo no

108
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ano de 2015 (pgs. 9 e 10), podemos extrair as


seguintes características do aplicativo:

i. Os motoristas recolhem cerca de 20%


(vinte por cento) do seu ganho para a
UBER;
ii. Apenas motoristas profissionais
podem ser cadastrados e aptos a
dirigir;
iii. Avaliações anônimas são feitas ao
término de cada corrida justificando a
pontuação de cada motorista. Em um
máximo de cinco pontos, os
motoristas com pontuação inferior a
4,6 poderão ser descredenciados;
iv. Os automóveis dos condutores devem
obedecer a uma série de requisitos;
v. O valor das viagens é calculado com
base em fatores como distância e
tempo de viagem, sendo possível ao
passageiro ter uma expectativa de
preço antes de contratar a corrida;

Por fim, destaca-se que amplamente divulgado


pelo próprio aplicativo que os níveis de exigência
quanto à segurança higiene e conforto dos carros

109
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

vinculados ao UBER é bem maior que a legislação


para licenciamento de veículos.
É por isso que, em estudo sobre os impactos
das novas tecnologias no direito brasileiro, Rafael
Oliveira e Caio Figueiroa afirmam ser (2016, pg.
158):

A atividade de transporte individual


de passageiros é marcada por uma
política de controle tarifário e ao
condicionamento de acesso à
exploração da atividade por meio de
permissão ou autorização do Poder
Público. O novo arranjo proposto
pela Uber gera um impasse com
estas ferramentas estatais, na medida
em que as supostas falhas de
mercado que antes as justificavam
foram, em tese, suprimidas pela
tecnologia.

Pretende-se com o presente artigo examinar


exatamente qual a natureza do vínculo existente
entre o motorista credenciado e o aplicativo UBER.
É que a legislação trabalhista brasileira prevê o
princípio da primazia da realidade quanto às
relações de trabalho, sendo certo que possível se
identificar diversos requisitos configuradores da
relação de emprego no respectivo contrato.

110
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Ocorre que a contratação entre motorista e


UBER é feita sob o manto de um contrato civil,
onde (SARMENTO, 2015, pg. 09):

esses motoristas são


empreendedores individuais, que
utilizam a plataforma Uber em
sistema de “economia
compartilhada” (sharing economy), que
otimiza o acesso e o contato entre
passageiros e condutores. Eles são
credenciados pela Uber, pagando-
lhe o correspondente a 20% do
valor que percebem de cada
passageiro, como retribuição pela
utilização da plataforma tecnológica.

Exatamente porque o contrato de trabalho


deve ser analisado sob o manto da primazia da
realidade, discutir-se-á incialmente os requisitos da
relação de emprego (2), discutindo-se, inclusive a
aplicação das disposições legais relativas ao
teletrabalho à hipótese (3), para, ao final, concluir-se
pelo enquadramento da relação contratual entre
motorista e UBER como de natureza empregatícia
(4).

111
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

2. Dos requisitos configuradores da relação


de emprego

A configuração do vínculo de emprego passa


pela análise dos artigos 2º e 3º da CLT que definem
respectivamente empregador e empregado, de onde
se consegue extrair os requisitos da relação.
Configurados estes, deve ser aplicado o princípio da
primazia da realidade e reconhecidos todos os
direitos correlatos ao trabalhador.
Isto porque, conforme previsto no artigo 9º,
da CLT, serão nulos de pleno direito os atos
praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou
fraudar a aplicação dos preceitos contidos na
legislação trabalhista. Neste sentido, encontram-se
vários julgados do Tribunal Superior do Trabalho,
dentre os quais se destaca o reconhecimento de
fraude à relação empregatícia através da contratação
do profissional por meio de cooperativas, quando
evidentes os requisitos da relação de emprego31.

31 RECURSO DE REVISTA. VÍNCULO DE EMPREGO. FRAUDE


RECONHECIDA NA CONTRATAÇÃO MEDIANTE
COOPERATIVA. Delimitada a presença dos elementos
configuradores do vínculo de emprego, a reforma pretendida esbarra
no óbice da Súmula 126 do C. TST. Recurso de revista não conhecido.
MULTA CONVENCIONAL. O STF já firmou o entendimento de que,
dado o comando genérico do artigo 5º, II, da Constituição Federal, único
dispositivo indicado como violado, não há como considerá-lo isoladamente
vulnerado. Recurso de revista não conhecido. MULTA DO ART. 477 DA
CLT. Diante da não caracterização de fundada controvérsia a elidir o

112
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Em primeiro lugar, o artigo 3º, da CLT,


estabelece ser empregado toda pessoa física que
presta serviços de natureza não eventual a
empregador, sob a dependência deste e mediante
salário. Destacam-se, assim, quatro elementos, que
serão analisados a seguir.
A um, necessário que o empregado seja
sempre pessoa física, eis que deverá executar as
atividades pessoalmente, sem se fazer substituir, a
não ser em caráter esporádico e com a aquiescência
do empregador. (BARROS, 2011, pg. 207).
Por outro lado, o trabalho deve ser não
eventual, ou seja, há que se verificar uma certa
continuidade na prestação do serviço, não podendo
ser um trabalho meramente esporádico ou eventual.
Conforme lições de Maurício Godinho Delgado,
para que haja relação empregatícia, é necessário que o
trabalho prestado tenha caráter de permanência, ainda que

pagamento da multa do artigo 477 da CLT, não há que se falar em


contrariedade à Orientação Jurisprudencial nº 351 da SDI-1. Recurso de
revista não conhecido. HORAS EXTRAORDINÁRIAS. MOTORISTA.
TRABALHO EXTERNO. A análise da insurgência demandaria o reexame
dos fatos e da prova, o que impede o seguimento do recurso de revista
(aplicação da Súmula 126 do C. TST). Recurso de revista não conhecido.
DIVISOR 220. O apelo encontra-se desfundamentado para os fins do
artigo 896 da CLT, já que não indicado ofensa a preceito de lei nem
apresentada arestos para a demonstração de divergência jurisprudencial.
Recurso de revista não conhecido.(TST - RR: 428 428/2008-064-03-00.0,
Relator: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 18/11/2009, 6ª
Turma,, Data de Publicação: 27/11/2009)

113
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

por um curto período, não se qualificando como trabalho


esporádico (DELGADO, 2011, pg. 283).
Outro requisito é a onerosidade, segundo a
qual para todo trabalho executado, há que ser paga
a respectiva remuneração, eis que a relação
empregatícia possui função essencialmente
econômica.
Por fim, sob o ponto de vista do empregado,
há que se configurar a subordinação jurídica que,
para Amauri Mascaro Nascimento (2010, pg. 291):

é um estado de dependência real,


produzido por um direito, o direito
do empregador de comandar, dar
ordens, donde a obrigação
correspondente para o empregado é
se submeter a tais ordens.

Já o artigo 2º, da CLT conceitua empregador


como a empresa, individual ou coletiva que,
assumindo os riscos da atividade econômica,
admite, assalaria e dirige a prestação pessoal do
serviço.
Deste dispositivo extrai-se mais um requisito
da relação empregatícia: a alteridade. Em verdade,
segundo tal requisito, o empregado presta seus
serviços sem assumir qualquer dos riscos do

114
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

negócio, trabalhando por conta única e exclusiva do


empregador, ao passo que o trabalhador autônomo
trabalha por conta própria.
Assim, pelo princípio da primazia da realidade,
configurados os requisitos da relação de emprego,
esta deve ser reconhecida e as verbas dela oriundas
devidamente pagos.
Quanto ao contrato envolvendo motorista e
UBER, necessário que sejam tecidos alguns
comentários acerca do requisito subordinação, eis
que tal princípio deve ser mitigado em casos de
teletrabalho ou trabalho fora da sede ou do
estabelecimento do empregador (3).

3. Da mitigação da subordinação jurídica em


casos de teletrabalho e a configuração
deste requisito nos contratos entre
motorista e uber

O trabalho desenvolvido fora das


dependências do estabelecimento do empregador é
conceituado por teletrabalho ou trabalho à
distância, cujo controle é feito por meios
telemáticos. A jurisprudência trabalhista já
reconhecia esta modalidade de trabalho quando a
Lei 12.551/2011 alterou a CLT, passando o artigo
6º a ser redigido da seguinte forma:

115
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

CLT. Artigo 6º. Não se distingue


entre o trabalho realizado no
estabelecimento do empregador, o
executado no domicílio do
empregado e o realizado a distância,
desde que estejam caracterizados os
pressupostos da relação de
emprego.
Parágrafo único. Os meios
telemáticos e informatizados de
comando, controle e supervisão se
equiparam, para fins de
subordinação jurídica, aos meios
pessoais e diretos de comando,
controle e supervisão do trabalho
alheio.
Em sua tese de doutorado, a professora Ivani
Contini Bramante define o teletrabalho como
(2003):
o trabalho, a qualquer título,
realizado à distância, não presencial,
com o uso prevalente das
tecnologias telemáticas e jornada
flexível. É um novo modelo de
prestação de trabalho atípico, à
distância, descentrado, externalizado
e flexível, com o uso dos
instrumentos da telemática.

Fato é que o incremento da informática


produtiva no ambiente de trabalho traz diversas

116
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

consequências para o contrato laboral, desde o


comportamento entre subordinante e subordinado,
até a questão da desnecessidade de produção em
um ambiente físico fixo. Assim, no teletrabalho, há
que se flexibilizar a tradicional ideia de configuração
do vínculo empregatício, eis que nem sempre será
possível aplicar-se rigorosamente os conceitos
tradicionais que tipificam a relação (BARROSO,
2012, pg. 93).
Neste caso, para o elemento fundamental
necessário para se comprovar o vínculo
empregatício seria a subordinação jurídica,
caracterizada pelo poder diretivo e fiscalizador do
empregador sobre o trabalhador (ARRUZZO,
2005, pg. 26).
Contudo, analisando especificamente o
contrato firmado entre o motorista e o aplicativo
UBER, percebe-se que o aplicativo contém as
informações atualizadas em tempo real sobre a
localização do condutor, a aceitação de determinada
corrida, o trajeto feito, o tempo de viagem, o valor
da corrida e, ainda, o índice de satisfação do usuário
para com aquele determinado condutor.
Em verdade, acaso o motorista dirija-se ao
endereço do usuário de forma mal vestida, sem uma
boa aparência, com o automóvel sem uma boa
higiene ou acaso conduza a corrida fora dos padrões
pré estabelecidos pelo aplicativo, a informação

117
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

chegará aos controladores da UBER de forma


instantânea.
É que ao final de cada corrida, os usuários
avaliam o motorista e atribuem a ele uma
determinada pontuação que varia de zero a cinco
pontos. E, acaso a média de pontuação do
motorista for inferior a 4,6 (quatro vírgula seis), este
será descredenciado do aplicativo. (SARMENTO,
2015, pg. 09).
Assim, fácil concluir que o poder diretivo do
aplicativo UBER sobre a prestação de serviço do
motorista é ainda mais evidente e eficiente que o
poder de muitos empregadores que controlam seus
empregados fisicamente e não mediante meio
virtual ou telemático.
Esta a tese de Manuel Martin Pino Estrada,
para quem o controle do empregado por meios
telemáticos, através de programas de computador, é
muito maior que aquele controle feito de forma
física. Para o autor, a fiscalização do trabalhador a
distância é muito mais eficiente e poderá ser feita,
inclusive, quando o empregador estiver dormindo,
eis que posteriormente poderá acessar o sistema e
verificar qual teletrabalhador fora mais produtivo
naquele determinado período (2014, pg. 130).

118
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Da análise dos demais requisitos do vínculo


empregatício no contrato entre motorista e
uber

Em que pese diversos motoristas vincularem-


se ao UBER como segundo emprego, certo é que a
exclusividade não se trata de um dos requisitos do
contrato empregatício. Exatamente por isso, o
Tribunal Superior do Trabalho tem reconhecido,
inclusive, o vínculo de emprego entre policial militar
e empresas de segurança, acaso configurados os
requisitos da relação32.
Configurada a subordinação jurídica,
analisemos os demais requisitos do vínculo de
emprego.

a) Da pessoalidade na prestação dos


serviços

Ao aderir ao sistema do aplicativo UBER, o


motorista apresenta, dentre outros documentos, sua

32 Súmula 386, Tribunal Superior do Trabalho. DJ. 25.04.2005.


Preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT, é legítimo o reconhecimento
de relação de emprego entre policial militar e empresa privada,
independentemente do eventual cabimento de penalidade disciplinar
prevista no Estatuto do Policial Militar.

119
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

habilitação, comprovante de endereço, documentos


do veículo utilizado e uma foto pessoal.
Ora, quando da requisição da corrida pelo
usuário, este tem acesso aos dados do veículo (placa
do carro), do motorista (nome e telefone), além de
visualizar, de imediato, a foto para identificação do
condutor. Trata-se de mecanismo que visa a facilitar
a identificação do condutor e dar mais segurança ao
usuário que poderá fiscalizar se o carro solicitado e
o motorista enviado são, de fato, os mesmos
apontados pelo aplicativo.
Tal fato, na realidade, e nesta seara trata-se de
princípio absolutamente forte, demonstra que o
motorista do UBER não poderá enviar para a
corrida um outro em seu lugar. Se a sua foto lhe
identifica para o usuário e o aplicativo atrela seu
nome à placa do carro que dirige, a condução do
veículo por terceira pessoa certamente conduzirá a
uma penalidade contratual.
E não só isso, o usuário do serviço poderá
fazer uma denúncia no próprio aplicativo e atribuir
àquela requisição do serviço uma pontuação nula,
por exemplo. Acaso o motorista possua um índice
de pontuação abaixo de 4,6 (quatro vírgula seis),
poderá ser descredenciado, conforme ressaltado na
introdução deste artigo.

120
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Naturalmente, inexistem dúvidas quanto à


prestação pessoal do serviço por aquele
determinado motorista.

b) Da não eventualidade

O motorista vinculado ao UBER recebe sua


remuneração segundo as corridas que efetua. Por si
só, tal fato já representa a necessidade da prestação
de serviços de forma não eventual. É que quanto
mais tempo a atividade é desenvolvida, para mais
corridas aquele motorista será convocado,
aumentando consideravelmente a sua remuneração
ao fim do mês.
Além disso, em sendo o controle do trabalho
do motorista realizado por meio do aplicativo de
celular dotado de sistema de geolocalização,
possível ao UBER determinar o período em que o
motorista está ou não à disposição para viagens.
Controlando horário, datas, período à
disposição e localização, por certo que o aplicativo
irá beneficiar os motoristas que mais corridas
efetuam e melhor avaliados são pelos passageiros.
Conforme pontuado na introdução deste trabalho,
motoristas mal avaliados serão descredenciados pelo
aplicativo, razão pela qual a eventualidade jamais
será uma característica deste contrato.

121
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A regra, portanto, será sempre a prestação do


trabalho de forma contínua, quase que diária, sendo
este, inclusive, um dos pontos de grande reclamação
dos motoristas: o volume de trabalho que precisam
desenvolver para conseguir cobrir os custos com a
manutenção do veículo, chegando-se a uma
exaustão na carga de trabalho33.

c) Da onerosidade

Segundo artigo do Dr. Daniel Sarmento,


construído a partir de parecer formulado através de
consulta da própria UBER, os motoristas repassam
20% (vinte por cento) do valor das corridas ao
aplicativo (2015, pg. 09). Contudo, a análise da
transação deve ser feita sobre outro ponto de vista.
Em verdade, no sistema de pagamento do
aplicativo (cartão de crédito) as tarifas são pagas
diretamente para a UBER e não para o taxista.
Aqui, este articulista, enquanto usuário do serviço
atesta que todas as informações do cartão de crédito
e a própria cobrança discriminada na fatura são
feitas diretamente pela empresa, jamais pelo
motorista.

33 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/08/associacao-de-
motoristas-denuncia-uber-por-irregularidades-trabalhistas.html. Acesso em,
04.08.2016

122
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Assim, a análise da transação deve ser feita da


seguinte forma: a empresa recebe o valor da corrida
e repassa 80% (oitenta por cento) do valor para o
motorista. É dizer: a onerosidade é característica
flagrante no contrato, eis que periodicamente o
aplicativo irá apurar os valores das corridas
realizadas pelo motorista e repassar-lhe seu
percentual quanto ao montante global.

d) Da alteridade

Por fim, a alteridade configura-se uma vez que


os custos para desenvolvimento, manutenção,
aprimoramento e organização do aplicativo são
todos da UBER, jamais do motorista. E não apenas
isso, devido ao fato de todas as transações bancárias
serem realizadas diretamente com o aplicativo, é
deste o risco de eventual fraude ou inocorrência de
pagamento pelo usuário do serviço.
Ademais, quando o usuário pretende utilizar o
serviço este procura diretamente o aplicativo que
deverá disponibilizar qualquer de seus motoristas. O
risco da atividade desenvolvida (transportar o
usuário) é todo do aplicativo, cabendo a este a
cobrança, o marketing e todas as demais formas de
relacionamento para captação de clientes e recursos.

123
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Ao motorista caberá o desempenho de suas


funções, consoante as regras e requisitos
apresentados pelo aplicativo, obedecendo aos
critérios de higiene, segurança e conforto.
Denota-se, pois, a presença também do
requisito alteridade.

4. Conclusão

A era digital trouxe ao mundo moderno


significativas mudanças no comportamento social e
na forma com que a população adquire produtos e
serviços, causados principalmente pelo uso
massificado da internet aliado aos aparelhos
portáteis multifuncionais.
O aplicativo UBER surgiu exatamente neste
contexto, como uma plataforma que permite o
prévio cadastro de motoristas com seus automóveis
oferecendo serviços similares aos táxis para os
usuários.
A vantagem encontra-se na forma de
solicitação da corrida, mediante alguns toques no
celular e no pagamento mediante carão de crédito
pré cadastrado, trazendo facilidade e rapidez para a
contratação do serviço.

124
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Ocorre que, em que pese tratar os contratos


firmados com seus motoristas como de natureza
estritamente civil, os requisitos da relação de
emprego estão todos configurados na relação entre
motorista e UBER. Assim, pelo princípio da
primazia da realidade, necessário que seja
reconhecido o vínculo e, por conseguinte, todos os
direitos trabalhistas inerentes ao respectivo
contrato.
Isto porque a sistemática do aplicativo permite
o controle em tempo real da prestação do serviço
por cada motorista, através de um sistema de
avaliações instantâneo feito pelos próprios usuários.
Acaso o motorista não se porte tal qual estabelecido
nas regras do serviço oferecido, este será
imediatamente mal avaliado pelo usuário, tendo
uma nota baixa atribuída.
Sendo certo que acaso a média de notas do
motorista seja inferior a um determinado patamar
pré-estabelecido, este será descredenciado pelo
aplicativo.
Assim, presentes a pessoalidade, a alteridade, o
controle do trabalho transmudado em
subordinação, a não eventualidade da prestação do
serviço e a onerosidade, outra conclusão não é
possível salvo reconhecer o vínculo empregatício
existente entre o motorista e o aplicativo UBER.

125
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

REFERÊNCIAS

ARRUZZO, André Vicente Carvalho.Aspectos relevantes


do teletrabalho no ordenamento trabalhista.In: Revista da
Justiça do Trabalho. Porto Alegre, v.22, n. 256, pg. 23/32,
abril/2005.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do
trabalho. 7ª. Edição. São Paulo: LTr, 2011.
BARROSO, Fábio Túlio. O teletrabalho e a subordinação
virtual após a Lei nº 12.551/2011: novos elementos
caracterizadores do Direito Extraordinário do Trabalho. Revista
Fórum Trabalhista –RFT, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p.
83/101,set./out. 2012.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BRAMANTE, Ivani Contini. Teletrabalho: nova forma
de trabalho flexível: aspectos contratuais. 2003. 432 f. Tese
(Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em:
http://tede2.pucsp.br/handle/handle/7903. Acesso em
04.08.2016.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre
internet, negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do
Trabalho. 10ª edição. São Paulo: LTr, 2011.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do
trabalho. 25ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; FIGUEIROA, Caio
Cesar. Desafios das reformas institucionais a partir de novas
tecnologias: uma abordagem pragmática ao Direito Público a

126
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

partir do caso Uber. Revista de Direito Público da Economia – RDPE,


Belo Horizonte, ano 14, n. 54, p. 157-180, abr./jun. 2016.
PINO ESTRADA, Manuel Martín. Teletrabalho –
Conceitos e a sua classificação em face dos avanços
tecnológicos.Revista Fórum Trabalhista – RFT, Belo Horizonte,
ano 3, n. 14, p. 117-133, set./out. 2014.
QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia
Walquiria Batista dos. O Estado mínimo e os serviços de
transporte individual de passageiros: táxi versus Uber –
credenciamento como solução consensual viável. Fórum de
Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 14,
n. 168, p. 27-35, dez. 2015.
SARMENTO, Daniel. Ordem constitucional
econômica, liberdade e transporte individual de passageiros:
O “caso Uber”. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo
Horizonte, ano 13, n. 50, p. 9-39, jul./set. 2015.

127
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO


DO ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO

Luis Cinéas de Castro Nogueira34


RESUMO
A educação inclusiva especial com atendimento
educacional especializado para pessoas com
deficiência e para pessoas com especiais é realidade
em concretização no Brasil que trabalha ao
encontro de um caminho viável para a integração
destas pessoas desde os anos de 1980. Todavia, para
que a educação inclusiva se faça eficiente é
necessária a assistência de acompanhantes
terapêuticos. Mesmo com o advento do Estatuto da
Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146, de 06 de
julho de 2015) a natureza jurídica contrato do
acompanhante terapêutico não é clara.
Palavras Chaves: Natureza Jurídica,
Contrato, Acompanhante Terapêutico

34 Advogado Trabalhista. Professor no Curso de Bacharelado em Direito no


Instituto Camillo Filho (ICF) e Estácio de Sá/Centro de Ensino Unificado
de Teresina (Estácio - CEUT). Professor em cursos de Pós Graduação.
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Candido
Mendes (UCAM). Especialista em Processo Civil pela Universidade Federal
do Piauí (UFPI) e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail:
luis.cineas@gmail.com

128
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ABSTRAT

THE LEGAL NATURE THE


THERAPEUTIC ACCOMPANYING’S
CONTRACT

The special inclusive education with specialized


educational services for people with disabilities and
people with special reality is achieving in Brazil
working to find a viable way for the integration of
these people since the year 1980. However, for
inclusive education is make efficient is necessary to
support therapeutic companions. Even with the
advent of the Statute Person with Disabilities (Law
No. 13,146, of July 6, 2015) the legal nature of the
contract therapeutic companion is not clear.

Key words: Legal Nature, Contract, Companion


Therapeutic

1 Introdução

Para se chegar à inclusão efetiva se faz


necessário não apenas atividade estatal, senão um
grande compromisso firmado entre o colégio onde
a pessoa com deficiência está matriculada (incluída)

129
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

e seus responsáveis.
Desde o Plano de Ação da Coordenadoria
Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, no idos do ano de 1987 o Brasil tem
preocupação com a conscientização, prevenção de
deficiências, atendimento e inserção no mercado de
trabalho destas pessoas especiais, todavia, sem
legislação específica ao que tange aos profissionais
que estes acompanham no seio do colégio.São eles
de responsabilidade do colégio ou dos pais?
Fazendo uma revisão na legislação nacional
encontra-se: a) Constituição Federal de 1988; b) Lei
nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de
Diretrizes de Base da Educação Nacional);c)
Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999
(Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de
1989, dispõe sobre a Política Nacional para a
Integração da Pessoa Portadora de Deficiência,
consolida as normas de proteção, e dá outras
providências); d) Decreto nº 3.321, de 30 de
dezembro de 1999 (Promulga o Protocolo
Adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em Matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, “Protocolo de São Salvador”,
concluído em 17 de novembro de 1988, em São
Salvador, El Salvador); e) Decreto nº 3.298, de 20
de dezembro de 1999 (Política Nacional para a
Integração da Pessoa Portadora de Deficiência); f)

130
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000 (Lei da


Acessibilidade); g) Convenção Internacional dos
Direitos da Pessoa com Deficiência; h) Decreto
Legislativo nº 186, de 2008 (Aprova o texto da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e de seu Protocolo Facultativo,
assinados em Nova York, em 30 de março de
2007);i) Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012
(Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro
Autista); e , j) Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015
(Estatuto da Pessoa com Deficiência) que mais se
aproxima da temática, sem, contudo, apontar um
caminho estreito.

2 Desenvolvimento

Chama-se a atenção para o art. 58 da Lei


nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de
Diretrizes de Base da Educação Nacional) a qual
indica claramente que os “educandos com
deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento” (espetro autista) são sujeitos à
educação especial e, como tal, tem direito a serviços
de apoio especializado para atender às suas
peculiaridades, notadamente, para um autista não é
possível a sua integração nas classes comuns de
ensino regular.

131
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Entretanto, o Art. 61 do mesmo diploma


considera profissionais da educação escolar básica
os que são professores habilitados em nível médio
ou superior para a docência na educação infantil e
nos ensinos fundamental e médio e os trabalhadores
em educação portadores de diploma de pedagogia,
com habilitação em administração, planejamento,
supervisão, inspeção e orientação educacional, bem
como com títulos de mestrado ou doutorado nas
mesmas áreas além dos trabalhadores em educação,
portadores de diploma de curso técnico ou superior
em área pedagógica ou afim. Nada fala a respeito
dos chamados acompanhantes terapêuticos.
Os acompanhantes terapêuticos auxiliam as
crianças que apresentam dificuldades graves no
desenvolvimento e que podem se beneficiar
justamente da inclusão escolar para sua constituição
subjetiva. Assim, o acompanhamento terapêutico
vem aliar-se a inclusão escolar como uma prática
facilitadora na inserção do aluno em uma sala
regular, oferecendo suporte à instituição que o
abriga, ao professor e, principalmente, ao aluno
incluso.
É uma modalidade de tratamento e
atendimento em saúde mental, que se dedica ao
cuidado de pessoas em sofrimento, agudo ou
crônico, oferecendo escuta singular ao sofrimento
psíquico e apostando nos laços sociais.

132
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Vem sendo utilizado no tratamento


psicanalítico com crianças com Transtorno Global
do Desenvolvimento (espectro autista) como um
agente facilitador do processo inclusivo. Através de
seu trabalho, cria-se condições para que a criança
possa frequentar a escola, beneficiando-se do
processo educativo dentro e fora da sala de aula,
procurando integrá-la ao grupo de crianças, assim
como envolvê-la nas atividades propostas pelo
professor.
Entre os acompanhantes terapêuticos e a
criança com deficiência deve existir empatia, que é
conquistada aos poucos e não, simplesmente
imposta.
Por isso, esta atividade é exclusiva dos
responsáveis pela criança com deficiência, jamais da
escola.
Nesse sentir, a Lei nº 12.764, de 27 de
dezembro de 2012(Institui a Política Nacional de
Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno
do Espectro Autista) abreviadamente tenciona que:

Art. 3o São direitos da pessoa com


transtorno do espectro autista:
I - a vida digna, a integridade
física e moral, o livre
desenvolvimento da

133
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

personalidade, a segurança e o
lazer;
(...)
IV - o acesso:
a) à educação e ao ensino
profissionalizante;
b) à moradia, inclusive à residência
protegida;
c) ao mercado de trabalho;
d) à previdência social e à assistência
social.
Parágrafo único. Em casos de
comprovada necessidade, a pessoa
com transtorno do espectro autista
incluída nas classes comuns de
ensino regular, nos termos do inciso
IV do art. 2o, terá direito a
acompanhante especializado.

Ou seja, o parágrafo único do art. 3º


simplesmente reza quer a pessoa com transtorno do
espectro autista terá direito a acompanhante
especializado, porém, não obriga as escolas a
fornecer, mas, apenas a permitir a permanência do
acompanhante terapêutico.
Todavia, cediço que no mister da auditoria
fiscal do trabalho esta concepção não é divulgada, o
que vem prejudicando a inserção destes

134
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

profissionais dentro das escolas, justamente porque


não se entende que tais profissionais são vinculados
à família do aluno com transtorno do espectro
autista e, jamais, ao colégio.
A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015
(Estatuto da Pessoa com Deficiência) indica:
Art. 3o Para fins de aplicação desta
Lei, consideram-se:
XIV - acompanhante: aquele que
acompanha a pessoa com
deficiência, podendo ou não
desempenhar as funções de
atendente pessoal.
Art. 9o A pessoa com deficiência
tem direito a receber atendimento
prioritário, sobretudo com a
finalidade de: (...)
§ 1o Os direitos previstos neste
artigo são extensivos ao
acompanhante da pessoa com
deficiência ou ao seu atendente
pessoal, exceto quanto ao disposto
nos incisos VI e VII deste artigo.
Art. 21. Quando esgotados os meios
de atenção à saúde da pessoa com
deficiência no local de residência,
será prestado atendimento fora de
domicílio, para fins de diagnóstico e
de tratamento, garantidos o
transporte e a acomodação da

135
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

pessoa com deficiência e de seu


acompanhante.
Art. 112. A Lei no 10.098, de 19 de
dezembro de 2000, passa a vigorar
com as seguintes alterações:
“Art.
2o ...........................................................
V - acompanhante: aquele que
acompanha a pessoa com
deficiência, podendo ou não
desempenhar as funções de
atendente pessoal;

Se bem observado, o acompanhante


terapêutico sequer pode ser entendido como
empregado doméstico, pois, aos olhos da Lei
Complementar 150/2015, empregado doméstico é
aquele que trabalha no “âmbito residencial” (art. 1º)
ao passo que o trabalho do acompanhante
terapêutico não se dá voltado às atividades
domiciliares, mas sim, e apenas, ao assistido tendo,
portanto, caráter pessoalíssimo para a pessoa do
assistido e, desta forma, deve ser regido pelo
Código Civil como prestação de serviços (cf. art.
593/609 do Código Civil).
Ora, a expressão “âmbito residencial” encerra
o indicativo de que aquela atividade deve ser
realizada para benefício do funcionamento ‘normal’

136
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

da residência e da vida de seus habitantes, sem o


que seria, pelo menos, dificultosa o convívio
familiar. Vale dizer, que se retirado for o
acompanhante terapêutico do convívio de seu
assistido a vida interna da família segue seu rumo
sem percalços, o único atingido seria o assistido
quanto ao seu fator educacional e não a família
quanto ao seu fator de convívio. Sobre este aspecto
o doméstico é um facilitador do convívio familiar.
De mais a mais, na órbita civilista “toda a
espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou
imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”
(cf. Art. 594 do Código Civil) e por se tratar de
prestação personalíssima “nem aquele a quem os
serviços são prestados, poderá transferir a outrem o
direito aos serviços ajustados, nem o prestador de
serviços, sem aprazimento da outra parte, dar
substituto que os preste” (Art. 605 do Código Civil).
Ou seja, a prestação de serviços de uma pessoa a
outra não configura, necessariamente, vínculo de
emprego. Nem toda relação de trabalho converge
para relação empregatícia, continuando em pleno
vigor a velha regra de que toda espécie de serviço
ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser
contratada mediante retribuição. Pode ser
contratada, obviamente, à deriva da malha legal
trabalhista.
Entrementes, havendo comprovante de que a

137
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

prestação de serviço do Acompanhante


Terapêutico, é assumida pelos pais dos alunos, não
há como admitir-se existência de vínculo
empregatício à conta do estabelecimento de ensino
que permite, no ambiente escolar, o acompanhante
terapêutico que auxilie criança que apresenta
dificuldade grave e que necessita de um profissional
para prestar a ajuda necessária para o seu bem-estar
físico e psíquico, durante o período em que esteja
em seu período de aprendizagem escolar à
disposição da escola.
Com este breve arrazoado, nota-se que a
auditoria fiscal do trabalho deve permitir no
ambiente escolar a existência de acompanhante
terapêutico para pessoas com deficiência sem que
isso implique para o colégio qualquer infração
trabalhista, posto que o mesmo é de
responsabilidade única e exclusiva dos pais do
aluno.

3. Considerações finais

Nesse sentir, a natureza do contrato do


acompanhante terapêutico é personalíssimo com
seu assistido e não com a família deste, de tal forma
que fica afastada a natureza de trabalho doméstico
(a teor da Lei Complementar 150/2015) o que atrai

138
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

uma natureza civilista de prestação de serviços nos


moldes dos artigos 593 à 609 do Código Civil (Lei
10.406/2002).

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deficienciareduzido.pdf> Acesso no dia 24.04.2016
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139
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

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:<http://www.editorarealize.com.br/revistas/fiped/trabalhos/09
3b60fd0557804c8ba0cbf1453da22f.pdf> Acesso no dia
24.04.2016

ANEXO I

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS AUTÔNOMO
DE ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO

140
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

CLÁUSULA PRIMEIRA – Por esse instrumento


particular de Contrato de Prestação de Serviços
Autônomo de Acompanhante Terapêutico, de um
lado a Sra. (...), RG (...), CPF (...) residente e
domiciliado na (...)doravante denominada
CONTRATADA e de outro lado Sr. (...),RG (...),
CPF (...) doravante denominado
CONTRATANTE, mediante as cláusulas e
condições a seguir.
CLÁUSULA SEGUNDA – Constitui objeto do
presente contrato particular de Contrato de
Prestação de Serviços Autônomo de Acompanhante
Terapêutico a prestação de serviços específicos,
pessoal e intransferível de assistência nos termos da
Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012 (Institui a
Política Nacional de Proteção dos Direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista) e Lei
nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da
Pessoa com Deficiência) ao filho do
CONTRATANTE (...) nascido em (...), que é
pessoa com deficiência mental, transtorno autista
(CID 10 F 84.1).
CLÁUSULA TERCEIRA – O serviço será
desempenhando na qualidade de atendente pessoal
em regime escolar no horário das do filho do
CONTRATANTE no COLÉGIO (...) entre 14 e
18 horas de segunda a sexta-feira.

141
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

CLÁUSULA QUARTA – Os serviços prestados


possuem os seguintes objetivos:
a) Proporcionar elementos para uma vida digna,
a integridade física e moral, o livre desenvolvimento
da personalidade, segurança e o lazer do assistido;
b) Análise funcional do assistido incentivando
as chamadas atividades da vida diária e as
habilidades mais básicas, tais como higiene,
autogerenciamento e autocontrole.
c) Realizar atividades e que proporcione ao
assistido uma melhora de seu quadro, seja no
ambiente social seja em sua casa.
d) Intervenções direcionadas para os problemas
específicos que o assistido apresenta, tais como as
relacionadas às incapacidades funcionais, buscando-
se a autonomia e autogerenciamento de sua vida.
e) Incentivo e apoio às atividades cognitivas
globais.
CLÁUSULA QUINTA – Para o cumprimento
deste instrumento, a CONTRATADA poderá nos
uso de sua função pautada pela boa-fé objetiva:
a) conter o paciente;
b) oferecer-se como modelo de identificação;
c) trabalhar em um nível dramático vivencial e
não interpretativo;
d) emprestar o “ego”;

142
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

e) perceber, reforçar e desenvolver a capacidade


criativa do paciente;
f) informar sobre o mundo objetivo do
paciente;
g) representar referencias cognitivas em sala de
aula e no colégio;
h) atuar como agente ressocializador;
i) servir como catalisador das relações
familiares.

CLÁUSULA SEXTA - A parte


CONTRATANTE pagará a parte
CONTRATADA, pelos serviços objeto do
presente contrato, o valor de R$ (...)por mês, todo
dia (...) de cada mês mediante contra recibo.
CLÁUSULA SÉTIMA– Os valores de
remuneração dos serviços prestados pela
CONTRATADA poderão ser reajustados a cada
início de ano letivo.
CLÁUSULA OITAVA - O presente contrato
entrará em vigor na data de sua assinatura e assim
permanecerá pelo prazo de (...) meses.
CLÁUSULA NONA - O presente contrato poderá
ser rescindido por qualquer das partes, a qualquer
tempo, sem qualquer ônus, desde que a parte
interessada comunique a outra, por escrito, com

143
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

antecedência mínima de (...) dias, contados a partir


do recebimento do comunicado.
CLÁUSULA DÉCIMA - O não cumprimento das
cláusulas contratuais constitui justo motivo para
rescisão motivada.
CLÁUSULA DÉCIMA – PRIMEIRA - As partes
elegem o foro da cidade de (...), para dirimir
quaisquer questões oriundas do presente contrato.
E, por estarem justos e de acordo, firmam o
presente contrato em 02 (duas) vias de igual teor e
forma, na presença de 02 (duas) testemunhas abaixo
assinadas.

LOCAL, (...) de (...) de 20....

CONTRATADA

CONTRATANTE

1º Testemunha
________________________________________

2º Testemunha

144
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

EFICÁCIA DOS DIREITOS


NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE
TRABALHO: UM NOVO CAMPO DE
DISPUTAS, A PARTIR DOS ANOS 1990, NO
AGRONEGÓCIO NO PIAUÍ 35
Paula Maria do Nascimento Masulo36
Maria Dione Carvalho de Moraes37

Resumo
Abordamos, sociologicamente, o tema da
negociação coletiva de trabalho, no âmbito de
setores do agronegócio – complexo carnes/grãos;
setor sucro-alcooleiro; SAG Carnaúba -, no Estado
do Piauí, como um novo campo de disputas que se
observa a partir dos anos 1990. Além das bases
conceituais e jurídicas relacionadas ao tema dos
direitos trabalhistas, referimos elementos da
trajetória das negociações coletivas de trabalho,

35 Versão original deste artigo foi apresentada no V REA/XIV ABANNE, de


19 a 22/07, em Maceió-AL. A versão atual sofreu revisões e atualização
para esta publicação.
36 Mestra em Sociologia pela UFPI. Auditora Fiscal do Trabalho. Especialista
em Negociação Coletiva de Trabalho pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. E-mail: paulamazullo@hotmail.com.
37 Cientista Social. Doutora em Ciências Sociais, com Pós-Doutorado em
Sociologia. Professora no Departamento de Ciências Sociais (DCIES) da
Universidade Federal do Piauí (UFPI) e nos Programas de Pós-Graduação
em: Antropologia (PGAnt); em Sociologia (PPGS); e em Políticas Públicas
(PPGP), Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL) da UFPI. E-mail:
mdione@uol.com.br.

145
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

como a condição de assalariado/as, a representação


sindical e estratégias adotadas no âmbito do agir. A
análise aponta para o fato de que sindicatos
laborais de assalariado/as rurais piauienses,
demonstram ação política no novo campo de
disputas, configurado pela negociação coletiva de
trabalho, a partir dos anos 1990, no agronegócio no
Piauí, com significativos resultados.
Palavras-chave: Negociação coletiva de trabalho –
Direitos trabalhistas – Agronegócio/Piauí

Collective labor bargaining: a new field of


disputes, starting from the 1990s, in
agribusiness in Piauí

ABSTRACT
We sociologically address the collective work
bargaining in agribusiness theme-meat/beans
complex; sugar-alcohol sector; Carnauba-SAG in
the State of Piauí, as a new field of disputes that
is observed from the 1990s onwards. In addition
to the conceptual and legal bases related to the
employment rights theme, we refer to elements
from the trajectory of collective labor negotiations,
such as the employee condition, the Union
representation and strategies adopted under the Act.
The analysis points to the fact that Piauí`s rural

146
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

employee labor unions demonstrate political


action in the new field of disputes, set by
collective labor bargaining, starting from the 1990s,
in agribusiness in Piauí, with significant results.

Keywords: Collective labor bargaining – labor


rights – Agribusiness/Piauí

1. Introdução

Processos importantes na esfera do direito


trabalhista, desde os anos 1940, no Brasil,
expressam-se, no âmbito do campo jurídico38, por
categorias como negociação, convenção, e acordos
coletivos, como sistema de relações que se
estabelecem entre capital e trabalho. Tais relações,
definidas juridicamente como prevalência de
vontades coletivas, fundam-se no princípio de que
cabe a atores sociais do capital e do trabalho
estabelecerem limites de avanços e recuos, em um

38 No sentido atribuído por Bourdieu (1989), considerando que no processo


de legitimação e consagração do direito, é necessário apreender as relações
que se estabelecem, inclusive, fora deste campo, o que significa que o
direito depende de outras instâncias que o determinam/condicionam. Suas
transformações relacionam-se a conflitos inter e extra-campo, com disputas
em um mercado de serviços e bens.

147
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

processo dialógico que visa a negociações e


estabelecimento de acordos, sem submissão
necessária à tutela direta do Estado, no processo de
negociação.
O estabelecimento desses acordos no campo
trabalhista extrapola a possibilidade de exacerbação
de conflitos inerentes a este campo de disputas
onde o que está em jogo é o capital político de cada
uma das partes, o qual irá incidir no resultado da
negociação. Nesta, os mediadores privilegiados são
atores coletivos, sindicatos patronais e laborais.
Detemo-nos aqui, na ação destes últimos, no campo
de relações de trabalho rural assalariado no Estado
do Piauí, em três expressões do que se define, no
discurso técnico-político, como agronegócio, no
caso: complexo carnes-grãos; sucro-alcooleiro;
Sistema Agroindustrial (SAG) da Carnaúba. O foco
são negociações coletivas, as quais, na história do
trabalho rural, no Piauí, podem ser vistas como um
“novo” campo de disputas, considerando-se a
consolidação do agronegócio no estado, tida como
tardia, se comparada a outros estados brasileiros, e
a presença de trabalho rural assalariado, sobretudo,
a partir dos anos 1990. As negociações aqui tratadas
resultam das lutas de trabalhadore/as rurais por
melhores condições de trabalho, em especial, no
que tange a convenções e acordos coletivos de
trabalho, com mediação de sindicatos laborais.

148
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Falamos de um contexto econômico que se


consolida, no Piauí, nos anos 1990. Em específico, a
incorporação de áreas de cerrados na região
sudoeste do estado pelo agronegócio do complexo
carnes/grãos; a presença da exploração sucro-
alcooleira, na região norte; o SAG da Carnaúba
concentrado na região norte mas com presença em
outras regiões piauienses. São situações que, em
largos traços, podem ser vistas como transição de
sistemas de trabalho agrícola camponês ou com
base em relações mais de trato que de contrato, no
sentido referido por José de Sousa Martins (2010),
para um sistema agroindustrial em cujo âmbito
trabalhadore/as rurais investem, coletivamente, na
defesa das próprias dignidades, fazendo-se
representar por Sindicatos de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais (STTR´s), deslanchando
processos de transformação de realidades laborais.
Tais lutas podem ser vistas como caudatárias
do movimento do chamado Novo Sindicalismo, no
Brasil, cuja oposição ao padrão sindical tutelado
pelo Estado, herdado da Era Vargas, repercutiu,
país afora. Nesta perspectiva, a partir dos anos
1980, um novo papel assumido pelos STTR´s
implicava contraposições a modelos da ditadura
civil-militar, que vigorou no país entre os anos
1960 aos 1980, e ao modelo econômico vigente,
questionando o sistema e denunciando vícios da

149
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

política salarial, empresários, e militares. Emergia


“[...] um sindicato mais aberto, democrático,
ouvindo as bases, com participação nos locais de
trabalho” (VIANA, 2013, p.74), de modo que o/as
próprio/as trabalhadore/as, pela mediação sindical,
“[...] produziram o Direito que lhes servia”
(VIANA, 2013, p.26).
Curiosamente, é no final dos anos 1970, à
época das derrotas decisivas de movimentos
operários em países centrais, que surge um novo
movimento sindical no Brasil, em meio a intensa
onda de greves inaugurando, a partir de 1978, um
período de ativismo crescente pelos anos 1980,
afora (SILVER, 2005). Sindicatos, criados sob a
tutela do Estado Novo (1937-1945), subordinados
ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
sem autonomia, foram desafiados a reinventarem-se
politicamente, e a romperem com modelos oficiais.
Gradativamente, ampliava-se a consciência da
necessidade de associação como classe assalariada e
de diretorias sindicais firmarem maior compromisso
com o movimento, inclusive, para sustentação
política e financeira mais sólida (GONÇALVES,
1984).
No contexto, transformações das relações de
trabalho no campo, mudanças na configuração das
empresas rurais e seus modos de produção,
desafiavam organizações sindicais laborais a

150
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

retomarem a tradição combativa pré-golpe de 1964,


cujo ícone são as Ligas Camponesas. Um
movimento sindical de massa, como interlocutor
indispensável no âmbito trabalhista, a partir do final
dos anos 1970, mobilizaria trabalhadore/as.
Exemplo da elevada expressão deste novo
sindicalismo é o da rural na Zona da Mata de
Pernambuco onde se atingiu “[...] um nível de
organização e mobilização capaz de desencadear
movimentos grevistas, envolvendo 200 mil
trabalhadores, em três campanhas salariais
sucessivas (1979, 1980 e 1982) (SOARES, 1984, p.
90).
Nesta mirada, trabalhadores/as rurais
protagonizaram mudanças garantidoras de melhores
condições de trabalho, quebrando amarras de
heranças seculares. Assembleias atingiam quórum
legal para autorizar a federação e sindicatos a
decretarem paralisação das atividades, na ocorrência
de impasse nas negociações com o patronato.
Assim, “[...] o reconhecimento de representante
sindical nos engenhos e usinas foi conquistado pelas
grandes mobilizações dos assalariados rurais nos
quatro últimos anos” (SOARES, 1984, p.107-108).
Claro está que o maturar do processo histórico
da luta de trabalhadores/as deve muito à criação da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), em
1919, que espalhou pelo mundo informações sobre

151
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

normas básicas de proteção, contribuindo para o


capital político de trabalhadore/as e suas
organizações. E “[...] o sindicato foi o ator mais
forte, mais decisivo. E sua maior arma foi a
greve39” (VIANA, 2013, p.27). Além do mais, o
novo movimento sindical teve papel ativo na
promoção da ampliação democrática, sobretudo, no
que respeita à cobrança de maior atenção dada a
questões trabalhistas na Assembleia Constituinte,
nos anos 1980. A inclusão de artigos na
Constituição Federal de 1988 reflete o
empoderamento desse movimento, no país
(SILVER, 2005).
Esta trajetória de lutas produz um capital
político que incidiria na realidade de
trabalhadores/as assalariados rurais piauienses, um
pouco mais tarde, nos anos 1990, quando a
conjuntura na qual políticas econômicas neoliberais
(abertura de economia, privatização,
desregulamentação das relações trabalhistas, entre
outros), redundou em desemprego estrutural. No
contexto, registra-se a agressiva ação empresarial de
enquadramento de trabalhadores/as que
conseguiram permanecer em seus empregos, com
estipulação e cobrança de novas metas de
crescimento da produtividade (MATOS, 2003). Nos

39 No Brasil, conforme Silver (2005), a atividade grevista chegou a um pico


de envolvimento de 9 milhões de trabalhadores, em 1987.

152
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

anos 1990, os ecos das mobilizações em outros


estados e regiões do país repercutiram em
movimentos de trabalhadores/as rurais
assalariado/a no Piauí, quando o agronegócio
incorporava novas áreas e promovia inflexões na
economia do estado, com base em transformações
na base técnica da agricultura em curso no país
desde os anos 1970. A agroindústria do complexo
carnes/grão, tendo a soja como carro-chefe,
imprimiria mudanças significativas nas orientações
produtivas. De uma produção primária de produtos
agroalimentares básicos e de pouca transformação
industrial (arroz, feijão, milho) à base de mão-de-
obra familiar, no âmbito de uma região de pecuária
extensiva, passou-se a uma produção agroindustrial
com base em mão-de-obra assalariada (MORAES,
2000; REIS e MORAES, 2011).
Caudatária da reinvenção política do
movimento sindical laboral em todo o país, a luta de
STTR´s no Piauí ganha corpo pela efetivação de
direitos constitucionais básicos, tais como Carteira
de Trabalho e Previdência Social (CTPS) anotadas;
pagamento do salário mínimo; férias; 13º salário;
respeito à legislação de saúde e segurança; e demais
direitos assegurados na Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). No que tange a acordos e
convenções coletivas de trabalho, estes só vieram a
ser firmados a partir de meados da primeira década

153
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

dos anos 1990, a saber: a) setor graneleiro, em 1994;


b) setor canavieiro, em 2003; c) SAG da Carnaúba,
2012 (FETAG, 2015).
Esses pactos coletivos de trabalho apontam
para a capacidade de luta e mobilização dos
sindicatos laborais rurais piauienses. Tais avanços –
vistos como tardios quando se compara o início do
assalariamento no agronegócio, no Piauí, com
outras regiões e estados do Brasil –
emblematicamente, demarcam rompimento de
posturas e práticas autoritárias do patronato rural
piauiense que, historicamente, não dialogava com
representantes de trabalhadores/as. A condição de
assalariado/as, a trajetória de luta, a organização
sindical, e estratégias adotadas no processo negocial,
no enfrentamento ao patronato rural, ampliaram-se
para outras atividades econômicas, nas décadas
seguintes. Trabalhadores/as rurais piauienses
passaram por significativa metamorfose em sua
atuação política no novo campo de disputas das
negociação, acordos, e convenções trabalhistas.

2. Negociação coletiva de trabalho no Brasil:


marcos legais

Nas lutas e disputas trabalhistas, a medida da


capacidade da organização política dos

154
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

protagonistas relaciona-se diretamente à figura do


sindicato como ator coletivo. Sua concepção,
quando do surgimento da organização do trabalho
no Brasil, sob tutela estatal, é a de cuidar de
interesses coletivos, patronais ou laborais, tal como
expresso na CLT que, em seu artigo 511 reconhece
a associação para fins de estudo, defesa e
coordenação de interesses econômicos ou
profissionais de empregadore/as, empregado/as,
agentes ou trabalhadore/as autônomo/as, ou
profissionais liberais, que exerçam, a mesma
atividade ou profissão/atividades, similares ou
conexas (BRASIL, 2015).
O sindicato laboral, como instituição política
primeira no processo de organização de
trabalhadores/as, planifica sua existência através de
diversos instrumentos que lhe são indissociáveis,
dentre os quais a negociação coletiva e a greve. O
tripé sindicato, negociação, e greve, protetor do/a
hipossuficiente – tido pelo Estado Brasileiro, na Era
Vargas, como essencial à “pacificação” nas relações
de trabalho –, põe trabalhadore/as, no processo de
construção de condições de manutenção das suas
dignidades, frente ao capital.
Se nas relações entre capital e trabalho, a
remuneração de trabalhadores/as é primordial,
como condição assecuratória de sustento individual
e familiar, no entanto, não se pode esperar que a

155
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

divisão efetiva da renda entre capital e trabalho


ocorra naturalmente. Ela dependerá, em larga
medida, do poder de negociação de sindicatos, no
enfrentamento da apropriação da mais-valia por
empregadores, dependendo das relações de forças
entre capitalistas e trabalhadores/as. A importância
do papel dos sindicatos remete ao motor da
satisfação primeira de trabalhadores/as, qual seja a
fixação dos salários. O sindicato tem o poder de
defender tais direitos legais, participando da fixação
do nível dos salários e representando, assim,
interesses de grande número de assalariado/as, sem
que um/a assalariado/a isolado/a possa decidir
oferecer seu trabalho a preço inferior (PIKETTY,
2014).
Sindicatos são instituições jurídicas, com
atuação política classista, que possibilitam
transformações nas relações entre capital e trabalho,
as quais exigem de representantes sindicais atuação
constante. Esse fazer alcança patamares de
transformação da realidade do mundo do trabalho,
inclusive, fazendo o próprio Direito do Trabalho.
Historicamente, a legislação social trabalhista
nasce através do Tratado de Versailles, em 1919,
extensiva a países signatários, dentre eles, o Brasil, à
época, atrasado em termos de legislação social –
referente ao proletariado urbano e ao rural – que
necessitava de regulamentação e leis tutelares

156
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

(BESOUCHET, 1957). A OIT, surgida no referido


Tratado de Versailles, fundamenta-se em que “se
uma nação não adotar um regime de trabalho
realmente humano, esta omissão obstaculiza os
esforços das demais nações que desejam melhorar a
condição dos trabalhadores nos seus próprios
países” (OIT, 1998, p.3). À OIT coube expedir as
Convenções nº 11 – Direito de Sindicalização na
Agricultura; 87 – Liberdade Sindical; 98 – Direito de
Sindicalização e Negociação Coletiva; 151 –
Negociação Coletiva no Setor Público; e 154 –
Fomento à Negociação Coletiva, dentre outras, e
estipular regras para que os países-nações
cumprissem a legislação trabalhista, em todas as
atividades laborais.
Esse Direito do Trabalho, ao alcance de ser
criado e transformado pelos sindicatos, materializar-
se-ia em Convenções e Acordos Coletivos de
Trabalho, conforme disposto na Constituição
Federal (BRASIL, 2014):

Art. 7º - São direitos dos


trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de
sua condição social:
I / XXV – omissis
XXVI - reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de

157
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

trabalho (BRASIL, 2015).

Em definição legal, conforme a CLT


(BRASIL, 2015), convenção coletiva de trabalho, e
acordo coletivo de trabalho são, respectivamente:

Art. 611 – Convenção Coletiva de


Trabalho é o acordo de caráter
normativo pelo qual dois ou mais
sindicatos representativos de
categorias econômicas e
profissionais estipulam condições de
trabalho aplicáveis, no âmbito das
respectivas representações, às
relações individuais de trabalho; §1º
- É facultado aos sindicatos
representativos de categorias
profissionais celebrar Acordos
Coletivos com uma ou mais
empresas da correspondente
categoria econômica, que estipulem
condições de trabalho, aplicáveis no
âmbito da empresa ou das empresas
acordantes às respectivas relações de
trabalho.

Na dinâmica das relações de trabalho e nos


significados que lhe foram atribuídos na vontade do
legislador varguista, a Convenção Coletiva de
Trabalho e/ou Acordo Coletivo de Trabalho,

158
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

quando se materializam, trazem significados para


além do capital, representando a prevalência de
vontades coletivas, mesmo que insertas em rituais e
rotinas burocráticas institucionais. Assim, disciplina
todo o Titulo VI da CLT, no sentido de que são os
atores do capital e do trabalho que estabelecem
limites de avanços e recuos, em um processo de
diálogo necessário ao resultado negociado. Como
observa Sá (2002), negociação, no âmbito das
relações trabalhistas, refere uma vontade de
aproximação entre titulares de um interesse e quem
tem interesses opostos, ambos, visando a um
resultado satisfatório. A negociação, em seu
substrato, atua nas brechas e contradições do
capital, pois, “no processo de trabalho, [...], o
capitalista é basicamente dependente do
trabalhador. O trabalhador produz o capital sob a
forma de mercadorias e desse modo reproduz o
capitalismo” (HARVEY, 2010, p.88).
Negociações podem ser vistas como um dos
principais motores das dinâmicas e processos
políticos de empoderamento de trabalhadores/as,
nas relações entre capital e trabalho. Mas não se
pode ignorar, como observa Sussekind (2004), que
se a ação coletiva mediada por sindicatos
possibilitou a discussão das condições individuais de
trabalho, com empresários, a isto teve que se somar
a intervenção do Estado nas relações de trabalho,

159
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

para que as condições apresentassem melhorias, ou


seja, o Estado atuou com “leis imperativas,
reservando aos instrumentos da negociação coletiva
o papel de complementar e suplementar o quadro
dos direitos trabalhistas assegurados em lei”
(SUSSEKIND, 2004, p. 434).
No que tange a convenções coletivas de
trabalho, estas decorrem do passo antecedente que
é a negociação coletiva, a qual resulta na concretude
das transformações sociais imediatas, ou não, nas
vidas individuais e coletivas de trabalhadores/as.
Neste sentido, e ainda no que tange à diferenciação
desses instrumentos de ação política sindical, e
institutos jurídicos estatais predeterminados aos
avanços nas relações de trabalho, Negociação
Coletiva e Convenção Coletiva de Trabalho, não se
confundem. A Convenção define-se como negócio
jurídico pelo qual se estipulam condições de
trabalho. Trata-se de um poder autônomo de
grupos profissionais e econômicos, em diferentes
forma de organização (SÁ, 2002). Convenção
Coletiva de Trabalho, portanto, não deriva de poder
delegado do Estado.
Dos imperativos do texto legal extraem-se
vários olhares para além da normatização estatal,
estando presentes poderes conferidos por lei a
sindicatos patronais e laborais, para fazerem o
Direito do Trabalho e levarem-no para o cotidiano

160
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

das relações entre capital e trabalho. Entretanto,


estando o trabalho na tutela do guarda-chuva
estatal, e assim o é desde épocas varguistas, o
Estado avoca para si, para apreciação do poder
normativo da Justiça do Trabalho, para decisium
próprio, as negociações que não tiveram sucesso
entre as partes, e cuja decisão dar-se-á em sede de
dissídio coletivo40. Portanto, no malogro da
negociação, a criação de novas normas ou
condições de trabalho que vigorarão para a
categoria, e sua interpretação, são discutidas em
dissídios coletivos. Nessa possibilidade de criação
dessas normas, funda-se o poder normativo da
Justiça do Trabalho (SÁ, 2002). Isto significa que a
Justiça do Trabalho faz ou aplica o direito quando

40 O Art. 616 da CLT (BRASIL, 2015), assim define dissídio coletivo: Os


Sindicatos representativos de categorias econômicas ou profissionais e as
empresas, inclusive as que não tenham representação sindical, quando
provocadas, não podem recusar-se à negociação coletiva; § 1º -
Verificando-se recusa à negociação coletiva, cabe aos sindicatos ou
empresas interessadas dar ciência do fato, conforme o caso, ao
Departamento Nacional do Trabalho (atualmente Secretaria de Emprego e
Salário) ou aos órgãos regionais do Ministério do Trabalho, para
convocação compulsória dos Sindicatos ou empresas recalcitrantes; §2º -
No caso de persistir a recusa à negociação coletiva, pelo desatendimento às
convocações feitas pelo Departamento Nacional do Trabalho [...] ou
órgãos regionais do Ministério do Trabalho, ou se malograr a negociação
entabulada, é facultada aos Sindicatos ou empresas interessadas, a
instauração de dissídio coletivo; §3º - Havendo convenção, acordo ou
sentença normativa em vigor, o dissídio coletivo deverá ser instaurado
dentro de sessenta dias anteriores ao respectivo termo final, para que o
novo instrumento possa ter vigência no dia imediato a esse termo; §4º -
Nenhum processo de dissídio coletivo de natureza econômica será
admitido sem antes se esgotarem as medidas relativas à formalização da
Convenção ou Acordo correspondente.

161
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

as partes envolvidas, patrões e empregados, não


conseguem dialogar e avançar no processo negocial,
sendo “[...] necessária a intervenção do Estado para
garantir condições reais de negociação para uma
parcela significativa de trabalhadores brasileiros que
está à margem desse processo...” (NETO, 2001, p.
284).
Daí, a importância da negociação coletiva
como instrumento fundante à Convenção Coletiva
de Trabalho e/ou Acordo Coletivo de Trabalho.
Assim, se nas sociedades contemporâneas, o
trabalho vivifica processos identitários, conferindo
garantia de manutenção das dignidades humanas,
cabe a sujeitos ativos do labor traduzir em realidade
as possibilidades políticas de manutenção desse
status, buscando melhores ganhos salariais, além de
garantias de saúde e segurança no trabalho,
ambiente de trabalho saudável, que restarão na
valorização da mercadoria força de trabalho. De
fato, diz Piketty (2013), não se pode ignorar que há
sempre pessoas reais, em sua materialidade e
subjetividade, em todos os níveis de geração de
renda e de riqueza. Suas características e
importância numérica variam, no entanto, de forma
lenta e progressiva, no âmbito e função da estrutura
da distribuição operada na sociedade, e no ritmo das
lutas por direitos. Nesta perspectiva, focalizamos
alguns avanços nas relações de trabalho rural, no

162
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Piauí, em um campo de disputas onde empresários


e trabalhadores/as buscam proteger interesses e
identidades, a partir do “[...] entendimento que as
pessoas têm sobre quem são e o que é importante
para elas” (GIDDENS, 2005, p.56).

3. NEGOCIAÇÕES COLETIVAS NO
AGRONEGÓCIO NO PIAUÍ: GRÃOS,
CANA-DE-AÇÚCAR E CARNAÚBA

Como lembra Fernandes (2005), agronegócio,


termo dos anos 1990, do inglês agribusiness, pode ser
visto como um novo nome dado ao modelo – que
não é novo – de desenvolvimento econômico da
agropecuária capitalista para exportação, cuja
origem, no Brasil, remete ao sistema colonial da
plantation. A palavra traduz um novo momento para
referir um velho modelo de exploração de homens,
mulheres, e terra; uma ressemantização ideológica
da categoria latifúndio, esta, marcada,
historicamente, pela associação à concentração da
terra, precarização do trabalho; clientelismo,
subserviência, relações de patronagem-dependência,
atraso, e mesmo, trabalho escravo, como registra
Masulo (2014).
Se o termo latifúndio remete a terras passíveis
de desapropriação para fins de reforma agrária, o

163
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

termo agronegócio pretende traduzir significados de


“terra produtiva”, sendo acionado para “(...)
renovar a imagem da agricultura capitalista, para
´modernizá-la´. É uma tentativa de ocultar o caráter
concentrador, predador, expropriatório e excludente
para dar relevância somente ao caráter produtivista,
destacando o aumento da produção, da riqueza e
das novas tecnologias” (FERNANDES, 2005, p.
4863)
No entanto, ao desenvolvimento do
conhecimento que provocou mudanças
tecnológicas, a partir da estrutura do modo de
produção capitalista, não correspondeu o avanço
das relações sociais de produção, com vistas à “(...)
solução dos problemas socioeconômicos e políticos:
o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade,
o agronegócio promove a exclusão pela intensa
produtividade”. (FERNANDES, 2005, p. 4863),
envolvendo desde a produção de insumos, a de
máquinas e implementos agrícolas, passando por
atividades agropecuárias, até agroindústrias e
sistemas finais de distribuição tanto no atacado
quanto no varejo (BRUM e MULLER, 2008).
Nesta perspectiva, focalizamos, no Estado do
Piauí, três setores caracterizados como agronegócio,
em cujo âmbito processaram-se negociação
coletivas de trabalho, a partir dos anos 1990. Um
deles diz respeito à incorporação dos cerrados do

164
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

sudoeste piauiense pelo agronegócio do complexo-


carnes/grãos, com mudanças de vulto no modo de
produção e na ocupação da força de trabalho local,
que até então vivia da agricultura tradicional de
“aprovisionamento", como demonstra Moraes
(2000, p. 2), cuja pesquisa registra a
desproporcionalidade das forças sociais no
processo, opondo povos camponeses locais a novos
atores externos – “projeteiros” e “gaúchos” –
vinculados a corporações do agribusiness do
complexo carne-grãos, com apoio do Estado. No
contexto demarcado pela produção de commodities,
conforme Moraes (2002), Pereira (2004), Reis
(2010), e Silva (2011), o campesinato local viu-se
compelido a conviver com a ação de tradings
empresariais relacionadas a movimento das bolsas
de valores e ao capital transnacional; com novas
rotinas de trabalho, práticas de monocultura, e
diferentes concepções de tempo e espaço; com a
diminuição da autonomia relativa no processo
produtivo e desqualificação de saberes transmitidos
intergeracionalmente. O que faz lembrar
Hobsbawm (2000), sobre trabalhadores no século
XVII, no âmbito das transformações da Revolução
Industrial.
Nos cerrados piauienses, na passagem do
século XX para o XXI, camponeses/as
transformaram-se em trabalhadore/as

165
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

assalariado/as (REIS e MORAES, 2011; REIS


(2010); e PEREIRA (2004), embora o agronegócio
não gere postos diretos de trabalho para habitantes
da região. Este/as constituíam reserva de mão-de-
obra para determinadas tarefas, como “catadores-
de-toco” (MORAES, 2000) e outras tidas como de
menor exigência de qualificação formal. Nos inicios,
a atuação sindical foi grandemente desafiada: ”
[empresários encontraram mão-de-obra barata e
muita terra plana [...] políticos [locais] convencem
os projeteiros a não pagar o salário mínimo e os
direitos trabalhistas, alegando que os fazendeiros
piauienses não têm condição [...]” A.B.S,
representante da FETAG/PI, apud MORAES,
2000, p. 285).
Sindicatos, na região, emergem no processo de
luta por melhores condições de trabalho, como o
STTR, de Uruçuí41, em 1992, em meio ao
enfrentamento de questões vividas por pequeno/as
proprietário/as, posseiro/as, trabalhadores/as
assalariado/as: “[...] o movimento sindical [local] ele
foi nascido da situação, até digamos assim, a
situação de miséria que a gente vivia no nosso meio
aqui, a exploração que vivia no nosso meio[...]” (F.
J. S., ex-presidente do STR/Uruçuí, apud

41 Município piauiense localizado na Microrregião do Alto Parnaíba Piauiense.

166
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

MORAES, 2000, p. 286)42. À época, “[..] ninguém


tinha a carteira assinada, ninguém tinha [nos locais
de trabalho] sequer um tanque pra depositar água de
beber. Tinha que ser numa lona. Num buraco,
assim: passava muito barro molhado, batia e deixava
ele secar e depois botava água [...]. O famoso
barreiro [...].
O enfrentamento da situação resultou em
algumas conquistas: “[...] então, a gente obrigou que
os empresários comprassem pelo menos caixa
d’água, registrassem as pessoas empregadas lá, e que
depositasse o Fundo de Garantia, o PIS, outras
coisas assim. É, o essencial mesmo, é o essencial
que tinha que ter. [...]. Ainda segundo o sindicalista,
em 1993, “[...] a gente forçou tanto pela pressão dos
empregados que estava pressionando o sindicato
[...]”. E refere denúncias, inclusive, de trabalho
escravo43, segundo ele, comprovadas pelo

42 Os trechos seguintes da fala do sindicalista F. J. S., ex-presidente do


STR/Uruçuí, aqui citados, pertencem à mesma fonte: Moraes ( 2000, p.
286)
43 Empresas do agronegócio da soja, conforme os ciclos da cadeia produtiva,
implantaram relações de trabalho análogo ao trabalho escravo, fato
constatado pela Fiscalização do MTE/Superintendência Regional do
Trabalho e Emprego no Estado do Piauí (SRTE/PI), no período de 2004
a 2014. Foram resgatados 212 trabalhadores. 31% dos resgates, no período,
foi no agronegócio da soja. Foram ajuizadas várias ações criminais, pelo
Ministério Público Federal, junto à Justiça Federal – Seção Judiciária do
Piauí. 12 processos em andamento, em diversas fases de seus trâmites. Um
deles devidamente julgado (nº 2004.40.00.005462-0), restando em
condenação ao produtor de soja, e cujo recurso tramita no Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, desde 11/06/2010 (MASULO, 2014).

167
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Ministério do Trabalho e pela Polícia Federal, sendo


realizadas visitas de fiscais destas instituições, junto
com dirigentes sindicais, a empresas de Uruçuí a
Bom Jesus44.
Narra este sindicalista que, a partir daí,
empregadores perceberam que precisavam dialogar
com trabalhadore/as: “[...] até aí, ninguém nunca
tinha visto falar que trabalhador falava com
empregador. Até noventa e três [1993], nunca
ninguém tinha visto falar, aqui, que trabalhador
falava com empregador![...]”. No processo, o
sindicalista destaca o caráter tardio da primeira
convecção: “[...] aí, a gente sentou e até que fez uma
convenção. A gente não fez um acordo [coletivo]45,
né. [...] Pela primeira vez que fomos reconhecidos
como trabalhadores com direitos. Em noventa e
três. É muito recente! [...]
Na fala, acima, observam-se trechos que são
indicativos de enfrentamentos de trabalhadore/as
ao capitalismo agrário/agrícola, no Piauí, os quais
resultaram na celebração, em junho de 1994, da
primeira Convenção Coletiva de Trabalho Rural do
Piauí (DRT-PI, 1994). O pacto foi firmado entre
sindicatos patronal e laborais de seis municípios dos

44 Município piauiense localizado na Microrregião do Alto Médio Gurguéia.


45 A convenção coletiva de trabalho é celebrada entre os sindicatos de
empregados e de empregadores, e o acordo coletivo é firmado pelo
sindicato laboral, envolvendo uma ou várias empresas da correspondente
categoria econômica (SAAD, 2016).

168
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

cerrados: Uruçui, Baixa Grande do Ribeiro,


Bertolínia, Ribeiro Gonçalves, Antônio Almeida,
Sebastião Leal. O processo de negociação foi
iniciado por dirigentes do STTR/Uruçuí, dando
origem à primeira convenção coletiva de trabalho
rural, no Piauí46. As representações patronais,
estrategicamente, não concordavam em estabelecer
a data-base anual para o mês de março, alegando
coincidência com o pico da safra de grãos, e temor
de eventuais greves de trabalhadores/as. Acertou-se
entre as partes a data-base para o mês de outubro, o
que se vem mantendo, inclusive, na última
convenção coletiva celebrada para o biênio
2016/2017.
O marco histórico negocial, iniciado nos anos
1990, atualiza-se na renovação anual do instrumento
coletivo sem a interferência do Poder Judiciário
Trabalhista, não havendo quaisquer ajuizamentos
de dissídios coletivos nesse período. Ao mesmo
tempo, reflete a história do assalariamento de
trabalhadore/as rurais do setor graneleiro. As
cláusulas traduzem a capacidade política da
categoria laboral de avançar, coletivamente, na
conquista de melhorias de condições de trabalho.

46 Como auditora, uma das autoras deste artigo fez parte da comissão de
mediação estatal da referida negociação coletiva de trabalho.

169
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Outro ramo do agribusiness, aqui focalizado, o


sucro-alcooleiro, aponta para o fato de ser o Brasil o
maior exportador mundial de açúcar e etanol (CNA,
2015). Neste setor, o movimento de
trabalhadores/as rurais registra lutas e conquistas
históricas, a exemplo da Greve em Guariba, SP, em
1984. A localização das usinas, no país, apresenta
nítida concentração na região Nordeste, em estados
como Pernambuco e Alagoas; na região Sudeste,
com destaque para o Estado de São Paulo (produz
60% de toda a cana e etanol do país); e na região
Sul, com o Estado do Paraná (produz 8% da cana
moída no Brasil).
No Piauí, esta atividade, em escala industrial, é
explorada na região norte do estado, desde 1979,
em projetos financiados com recursos do Pró-
Alcool e do Fundo de Investimentos do Nordeste
(FINOR) (NOVAES e ALVES, 2003). Apesar de
ser a atividade do agronegócio mais antiga no
estado, o primeiro acordo coletivo de trabalho só
foi celebrado em 2004. No histórico das relações de
trabalho, nessa atividade, registram-se péssimas
condições de trabalho, inclusive, de trabalho
análogo ao escravo, registrado em 1991, na Usina
Companhia Agropecuária do Vale do Parnaíba
(CONVAP), situada no município de União47. No

47 Município piauiense situado na Microrregião de Teresina.

170
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

ajuizamento das ações cabíveis, o processo tramitou


apenas na Justiça do Trabalho (proc. TRT Nº AP -
00249-1994-002-22-00-7), em razão da indefinição
legal sobre qual instituição do Poder Judiciário teria
competência para julgar crimes desta natureza. O
julgamento só ocorreu no final de 2006, em decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) (proc.RE
398.041, Relator Min. Joaquim Barbosa, Sessão de
30.11.2006) (MASULO, 2014).
Embora o STTR do município de União, sede
da Usina, tenha atuado significativamente na
denúncia de péssimas condições de trabalho na
empresa, à época, não conseguiu avançar, por
décadas, no processo de negociação coletiva. Esta
só veio a acontecer com a venda da empresa, em
2002, para outro grupo empresarial, que já tinha
práticas de negociação, no Estado de Pernambuco.
Neste caso, o sindicato laboral negociou Acordo
Coletivo de Trabalho, em razão da não-existência
de sindicato patronal dessa atividade econômica, no
Piauí. A situação original de trabalhadore/as era
semelhante à encontrada nos cerrados. Tratava-se
de camponeses/as que habitavam o entorno da
usina, assalariando-se, nela (FETAG, 2015) em
condições de trabalho precarizado.
Em 2011, na renovação do Acordo Coletivo
de Trabalho 2011/2012, devido a impasses na mesa
de negociação, pela ausência de propostas da

171
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

empresa que atendesse a reinvindicações de


trabalhadore/as, principalmente, de cortadore/as de
cana-de-açúcar, foi aprovado indicativo de greve.
Como a data-base é 1º de junho, a decisão da
categoria laboral ocorreu próxima a essa data, como
estratégia no curso do processo negocial
(CONTAG, 2015). Como diz Silver (2005), o poder
de barganha de trabalhadore/as, em processos
produtivos integrados (como o agronegócio) faz
com que uma paralisação no trabalho, em algum
ponto essencial, perturbe o sistema.
Não se pode ignorar que a cana-de-açúcar é
atividade econômica marcada por heranças coloniais
e que o poder político de trabalhadore/as, nesta
atividade, tem um legado histórico, acionado
discursivamente, com vistas à concretização de
ganhos. Assim, iniciado o processo negocial,
mesmo com avanços e recuos na vontade patronal
(CONTAG, 2015), as categorias têm conseguido
fechar pactos coletivos na negociação, sem
necessidade de recorrerem à Justiça do Trabalho
para avocação de seu imperativo poder normativo
(SRTE/PI, 2015).
O terceiro setor produtivo, focalizado, o SAG
da Carnaúba, faz lembrar que esse extrativismo tem,
no corte de palhas da palmeira, uma das principais
fontes de trabalho precarizado no âmbito deste
SAG, no Piauí. Este corte destina-se à extração de

172
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

pó que dá origem à cera para exportação, atividade


econômica que vem do período colonial. Em anos
recentes, o alto índice de utilização industrial
(farmacêutica, cosmética, eletrônica, etc) da cera
promoveu sua expansão no mercado, com peso
significativo na balança comercial do estado. Nos
primeiros meses de 2016, as exportações de ceras
vegetais (meses de janeiro e fevereiro), perfazem
US$ 5.867.508,00, o que representa 47,99% do
total das exportações do período (SEDET-PI,
2016). Essa é a segunda maior riqueza econômica
de exportação do estado que é o maior produtor de
pó de cera de carnaúba do país (CONAB,2016).
Na etapa que vai até a extração do pó, as
atividades laborais são exercidas através de trabalho
temporário informal agenciado por contratantes e
com remuneração à base de diárias ou empreitadas,
conforme Carvalho e Gomes (2007); Vilela e
Moraes (2008), e Martíns (2012). Boa parte do ciclo
produtivo da cera – no que tange à extração da
folha, passando pela secagem destas, até a extração
do pó – é manual. A cera é produzida
industrialmente. No entanto, mesmo na etapa
industrial, observam-se “[...] condições
desfavoráveis de segurança no trabalho [...] [com
trabalhadore/as] em torno das caldeiras de
altíssimas temperaturas, sem trajes e equipamentos
adequados, como luvas, óculos de proteção,

173
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

máscaras e acabam respirando muita quantidade de


resíduos de pó (MARTINS, 2012, p.27).
Na etapa que vai até à extração do pó, foi
identificada presença de trabalho análogo ao
escravo sendo, em 2014, segundo SRTE/PI (2014),
resgatados 156 trabalhadores. Historicamente, a
mão-de-obra, nessa atividade, era arregimentada
sem formalização contratual. A partir de 2012,
STTR´s dos municípios onde existe esse
extrativismo no âmbito do SAG, têm intensificado
denúncias e firmado Convenções Coletivas de
Trabalho, com vistas a melhorar as condições de
trabalho e a assegurar dignidades humanas. Como
denúncia das condições de trabalho, e em
preparação à Convenção Coletiva de Trabalho, foi
realizada audiência pública na Assembleia
Legislativa (ALEPI), em 05/06/201348, quando
vários parlamentares saíram em defesa da atividade
econômica sem, contudo, demonstrar idêntica
atenção/preocupação com trabalhadores/as, sua
saúde e segurança no trabalho. Ficou evidenciado
que as múltiplas estratégias iam de ameaças veladas
de desemprego, por parte de empregadore/as e
aliado/as a demandas pela realização de audiências
públicas, por parte de organizações de
trabalhadore/as e aliado/as. As fricções nessas

48 Ambas as autoras participamos desta Audiência

174
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

disputas envolvendo ambas as partes, em


negociação, mereceria uma etnografia do conflito.
Foram realizadas duas Convenções Coletivas
de Trabalho na luta pelo reconhecimento desse/as
trabalhadores/as, sobretudo, do/as que atuam nas
atividades do corte da palha e da extração do pó.
Esta já foi categoria eclipsada no próprio
movimento sindical que, na atualidade, acompanha
mais de perto as condições de trabalho, cobrando o
cumprimento da legislação protetiva ao trabalho
assalariado. Segundo FETAG (2015), os STTR´s
tornaram-se mais ativos, na luta por remuneração
mais justa da categoria, por direitos trabalhistas e
por melhores condições de trabalho, contemplando
alimentação, transporte, saúde e segurança.
As conquistas de trabalhadores/as no
agronegócio do complexo carnes/grãos, sucro-
alcooleiro, e da carnaúba, podem ser medidas pelas
atuais Convenções Coletivas de Trabalho – biênio
2016/2017, negociadas entre as partes sem
necessidade do dissídio coletivo junto ao Poder
Judiciário. No caso da palha de carnaúba, foi
pactuada produtividade além do piso salarial para
todo/as o/as trabalhadore/as. Na cana-de-açúcar,
foi pactuado gatilho salarial para reposição de
perdas inflacionárias, a partir de janeiro de 2017
(tabela 1).

175
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Pisos Demais
Atividade salariais Data- empregados
econômica Base (reajuste
(R$) salarial)
1º de
Soja 950,00 6,6%
outubro
Palha 1º de
1.288,00 -
carnaúba maio
Cana de 1º
900,00 -
açúcar junho
Tabela 1. Dados de Convenções Coletivas de Trabalho (soja,
carnaúba, e cana-de-açúcar), no Piauí. Fonte: SRTE/PI.

No que concerne aos cenários para as


negociações coletivas de trabalho em 2016, estes
são desafiadores, frente à situação econômica
nacional. Das realizadas, até agora, 47% foram
fechadas com acordos abaixo da inflação, embora
alguns segmentos laborais e patronais tenham
negociado com índices acima da inflação (DIEESE,
2016).
Aponta-se, ainda, neste contexto, para a
dificuldade de negociações voltadas ao
estabelecimento de mecanismos que visem a
diminuir o desequilíbrio entre trabalhadore/as e
patronato, considerando-se serem: “[...]
praticamente ausentes cláusulas que tratem da

176
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

organização no local de trabalho e do acesso do


sindicato às informações das empresas” (DIEESE,
2001, p.14). No que tange, especificamente a
trabalhadores/as rurais “[...] exige-se maior
qualificação, tarefas foram extintas e outras criados,
aumentou o ritmo de trabalho, mudou a forma de
remuneração e de controle da produção. O ganho
de produtividade não foi transformado em
remuneração (DIEESE, 2001, p.236).
Esse cenário de uma economia em crise
aponta para a necessidade de que sujeitos laborais
do processo de negociação adotem estratégias e
utilizem seus poderes de barganha com vistas a
obter sucesso. Entretanto, mesmo em situações
dessa natureza, os sindicatos poderão obter ganhos
diretos e indiretos, que não venham a causar
impactos nos custos financeiros, mas lucratividade
nos custos sociais, estes, afetos intrinsecamente ao
quotidiano de trabalhadores/as, em diferentes
espaços de trabalho. A constante busca pela
dignidade no trabalho, compromisso primeiro do
sindicato, volta-se, segundo OIT (2004), ao trabalho
decente, que não prescinde do pleno emprego,
proteção social, direitos fundamentais no trabalho e
diálogo social.

177
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratamos da presença das negociações


coletivas de trabalho no âmbito do agronegócio, no
Estado do Piauí, expondo, em largos traços, como a
condição de assalariado/as demarcou a trajetória de
luta, a organização sindical laboral, e estratégias
adotadas por esses atores coletivos no processo
negocial com o patronato. Referimos, ainda, como a
persistência na luta por melhoria das condições de
trabalho no agronegócio do complexo carnes-grãos
ampliou-se, embora lentamente, para outras
atividades econômicas, a exemplo do SAG-
Carnaúba.
Evidenciamos que mediar lutas por melhorias
para trabalhadores/as é papel do sindicato,
apontando para a participação destes, no Brasil, em
específico, no que tange a trabalhadores/as rurais.
No atual contexto, em que as disputas pelo
compromisso do governo brasileiro evidenciam-se
de forma preferencial, em defesa da economia
política do território baseada no agronegócio, a
agricultura familiar sofre maiores pressões, sendo
vista como atividade de menor potencial
econômico. Os STTR´s – no Piauí, e Brasil, afora –
têm o desafio de manterem-se na luta, associando-
se a outras forças sociais, e contribuindo para que

178
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

cada trabalhador/a melhorem suas condições de


vida e trabalho.
Da análise, pode-se concluir que, no âmbito
desse desafio, sindicatos laborais de assalariado/as
rurais piauienses vêm demonstrando ação política
na luta em defesa dos direitos de trabalhadore/as
rurais, no novo campo de disputas configurado pela
negociação coletiva de trabalho, a partir dos anos
1990, no agronegócio no Piauí.

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183
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

O CONTRATO SOCIAL E VARIAÇÕES DO


CONCEITO DE SOBERANIA NO
CONTEXTO DOS DIREITOS HUMANOS.
Natasha Karenina de Sousa Rego

RESUMO:
O Pós Segunda Guerra Mundial suscitou problemas
práticos e conceituais a respeito da proteção
internacional dos direitos humanos frente o
conceito clássico de soberania. Delimitar as
responsabilidades estatais frente a proteção destes
direitos no âmbito internacional significa, muitas
vezes, aceitar a interferência de Estados e
organizações internacionais na esfera de soberania
do Estado. Este trabalho objetiva analisar as
variações do conceito de soberania no contexto dos
direitos humanos a partir do contrato social. Nesse
sentido, primeiramente delineiam-se os principais
fundamentos teóricos que sustentam o conceito
clássico de soberania. Em seguida, são
destrinchadas as variações do conceito de soberania
do contrato social. Por último, é explicitada a
problemática da soberania no contexto de proteção
dos direitos humanos. Este estudo verifica, em seus
resultados esperados, que as variações do conceito
de soberania, ainda que não exclusivamente, são

184
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

pautadas pelas próprias ampliações práticas e


conceituais dos direitos humanos perante o Estado-
nação e a comunidade internacional. A importância
deste trabalho reside no endosso à necessidade de
repensar novas formas de soberania que consigam
garantir os direitos dos indivíduos e manter o
Estado como um elemento legítimo política e
juridicamente.

Palavras-chave: Contrato social. Soberania.


Direitos Humanos.

Abstract: The post World War II raised practical


and conceptual problems concerning the
international protection of human rights against the
classical concept of sovereignty. Define state
responsibilities across their protection at the
international level means often accept the
interference of states and international
organizations in the sphere of state sovereignty.
This study aims to analyze variations of the concept
of sovereignty in the context of human rights, from
the social contract. In this sense, first it outlines the
main theoretical foundations that support the
classical concept of sovereignty. Then it analyzes
the variations of the concept of sovereignty of the
social contract. Finally, the issue of sovereignty in
the protection of human rights context is explained.

185
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

This study observes that changes in the concept of


sovereignty, although not exclusively, are guided by
very practical and conceptual expansions of human
rights before the nation-state and the international
community. The importance of this work lies in the
endorsement of the need to rethink new forms of
sovereignty that can guarantee rights of individuals
and maintain the state as a politically and legally
legitimate part.

Keywords: Social contract. Sovereignty. Human


rights.

Introdução

O acúmulo civilizacional do Ocidente, desde o


Pós Segunda Guerra Mundial, erigiu os direitos
humanos como bandeira e fundamento principal
para seus discursos. Ainda que a construção desde
referencial prático e teórico possa remontar à
Antiguidade Grega com a democracia ateniense, é
após a vivência e luto das agruras da Segunda
Guerra que questões atinentes a direitos humanos
deixam de ser preocupações territoriais de cada
Estado e passam a integrar continuamente a agenda
da comunidade internacional.

186
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Cada Estado pode (e deve) elencar, em suas


constituições e normativas internas, os direitos e os
deveres dos cidadãos e das cidadãs e, assim,
delimitar a esfera de atual do poder estatal para não
interferir nas liberdades individuais e empreender
ações positivas em prol da materialização de direitos
de outra monta. Em contrapartida, a
internacionalização dos direitos humanos
consolidou a necessidade de proteção destes
direitos não apenas em esfera nacional. Por
considerar tais direitos universais e essenciais a
qualquer ser humano, a responsabilidade de
proteção, respeito e garantia deve ser
compartilhada, observada e mesmo monitorada por
todos os Estados por meio de tratados
internacionais, que elencam direitos e mecanismos
de responsabilização.
Percebe-se que a responsabilidade dos
Estados, seja no âmbito doméstico ou no
internacional, traz consigo a necessidade de auferir
até que ponto cada Estado está disposto a abdicar
de sua autoridade dentro de um território perante
um grupo de pessoas para obedecer a uma
normativa internacional, ainda que para a proteção
de direitos humanos.
Assim, este trabalho visa analisar as variações
do conceito de soberania, no contexto dos direitos
humanos, a partir do contrato social. Ao leitor e à

187
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

leitora curiosa, o contrato social pode ser


considerado um acordo entre os membros da
sociedade pelo qual reconhecem a autoridade,
igualmente sobre todos, de um conjunto de regras,
de um regime político ou de um governante.
Primeiramente, delineiam-se os principais
fundamentos teóricos que sustentam o conceito
clássico de soberania. Em seguida, são
destrinchadas as variações do conceito de soberania
do contrato social. Justifica-se a escolha do contrato
social como marco temporal para esta investigação
por ter provocado rupturas significativas no
conceito de soberania a partir dos acúmulos que
davam subsídios aos direitos humanos. A
importância deste trabalho reside no endosso à
necessidade de se repensar novas formas de
soberania que consigam garantir os direitos dos
indivíduos e manter o Estado como um elemento
legítimo política e juridicamente.

O contrato social e o conceito clássico de


soberania

Ferrajoli (2002, p.47-50) recorda que a


soberania numa perspectiva externa dos Estados
nasceu da necessidade de defesa contra os inimigos
externos. As dinâmicas contemporâneas,

188
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

exemplificadas na rapidez e multiplicidade das


comunicações das várias sociedades de culturas
diversas, reacendem a luta pela identidade dos
povos e etnias e pelo reconhecimento das
diferenças, o que tem ensejado conflitos em prol da
redefinição dos limites fronteiriços dentro e fora
dos Estados (FERREIRA, 2012, p.242). A divisão
do mundo em Estados soberanos e à arbitrariedade
da delimitação das fronteiras, especialmente nos
contextos de colonização e de imperialismo, são
fatores a se considerar no estudo destas lutas
identitárias e conflitos territoriais.
Em seu Dicionário de Política, Bobbio et al.
(1998, p. 1179), no verbete soberania, escrevem que
“[...]em sentido restrito, na sua significação
moderna, o termo Soberania aparece, no final do
século XVI, juntamente com o de Estado, para
indicar, em toda sua plenitude, o poder estatal,
sujeito único e exclusivo da política”. Assim, o
Estado Moderno e a soberania são, ao mesmo
tempo, produto e produtores da Modernidade. O
conceito de soberania só pode ser evidenciado
quando começaram a coexistir diversos Estados
com potência semelhante, algo desconhecido da
Antiguidade e da Idade Média. (MELLO, 2013, p.3-
4)
Dos regimes absolutistas advém o primeiro
atributo da soberania, a unidade, traduzido na

189
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

incapacidade de existirem duas soberanias distintas


em um determinado território. A unidade possui
caráter monopolizador, na medida em que a
“soberania [..] passou a significar [...] o supremo
comando e chefia do Estado”, já que “o
absolutismo é uma necessidade da positividade da
soberania.” (CASTELLO BRANCO, 1988, pp.
144-145 apud MELLO, 2013, p.4).
Esta inteligência pode ser remetida a clássica
definição de soberania de Jean Bodin: “Sovereignty
is the absolute and perpetual power of the state,
that is, the greatest power to command.” (BODIN,
2000, p. 348 apud MELLO, 2013, p.4). A soberania
é absoluta/una por não sofrer limitações por parte
das leis, uma vez que essas limitações somente
seriam eficazes se houvesse uma autoridade
superior que as fizesse respeitar. Assim, se dentro
de um determinado território, existissem diversas
soberanias, ou diversos poderes de arrogar o maior
poder de comandar, não haveria, a rigor, soberania,
porque esta implica em poder uno e supremo.
A fim de entender tais disputas importa
delinear os principais fundamentos teóricos que
sustentam o conceito clássico de soberania, que
contribuiu para as bases teóricas da Modernidade
ocidental. O contrato social, nesse sentido, é o
meta-relato sobre o qual se assenta a moderna
obrigação política – obrigação está completa e

190
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

contraditória estabelecida entre homens livres com


o propósito de maximizar ou minimizar a liberdade
(SANTOS, 2002, p.7). Cada um dos três
contratualistas clássicos – Thomas Hobbes, John
Locke e Jean-Jacques Rousseau – apresenta sua
concepção de contrato social e de soberania, ainda
que a soberania popular idealizada por Rousseau
seja uma das principais bases da democracia e, por
isso, a mais conhecida.
A fundamentação hobbesiana da necessidade
do homem associar-se em contrato social com os
demais é o desejo que cada um deles tem de acabar
com a guerra de todos contra todos (Bellum omnia
omnes) do estado de natureza. A sociedade precisa,
assim, de uma natureza a qual todos os membros
rendam o suficiente de sua liberdade natural, para
que o soberano, de autoridade inquestionável,
consiga assegurar a paz interna e a defesa comum.
Para Hobbes, assim, os homens só podem viver em
paz anuindo em submeter-se a um poder absoluto e
centralizado. Há, portanto, uma forte relação entre
absolutismo e o contrato social, uma vez este pacto
leva ao estabelecimento absoluto do poder do
Estado
A partir de seu contrato social, Hobbes faz
surgir uma moderna relação súdito/soberano e
oferece uma nova configuração e legitimidade à
autoridade do poder. O direito positivo substitui o

191
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

direito natural: o direito começa a se transformar


em norma e as relações jurídicas a se tornar
implícitas na estrutura do Estado. Gradativamente,
o Estado começa a assumir as tarefas da
administração, da vigência e da submissão à lei e da
regulamentação do corpo social (VIEIRA; VIEIRA,
2012, p.5-6). Vale ressaltar que Hobbes elencou
situações de exoneração da sujeição do súdito
perante o soberano - a obrigação dos súditos para
com o soberano apenas subsistia enquanto
perdurasse o poder deste para protegê-los, por
exemplo - o que enseja que desde o princípio de sua
concepção, o poder soberano nunca foi absoluto e
inexpugnável, admitindo exceções fincadas na
natureza das coisas ou em algum modelo ético-
moral dominante da época (FERREIRA, 2012,
p.245-246).
Hobbes e Locke, o próximo contratualista,
acreditam no estado de natureza sem sociedade,
mas se diferenciam no momento em que o estado
de natureza de Locke não é degenerado como o de
Hobbes, e sua associação é precedida por um estado
de natureza em que o homem conhece ao menos o
direito natural. A guerra no estado de natureza de
Locke se apresenta como uma consequência do
desrespeito ao direito natural. Assim a associação
dos homens não se visa evitar a guerra como pensa
Hobbes e sim garantir uma estabilidade no governo

192
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

de seus interesses (VIEIRA; VIEIRA, 2012, p.6-7).


O estado de natureza lockeano se caracteriza
quando uma comunidade se encontra sem uma
autoridade superior ou relação de submissão. Não
se trabalha com a ideia de Estado como o ente
capaz de coibir a natureza humana imersa no estado
natural bélico e perigoso sob a égide da figura
absoluta. Para Locke, o Estado centraliza as funções
administrativas a partir da confiança e do
consentimento dos indivíduos integrantes de uma
comunidade política com uma administração com a
função de centralizar o poder público. Uma vez que
esse consentimento é dado, cabe ao governante
retribuir essa delegação de poderes agindo de forma
a garantir as liberdades individuais, assegurar
segurança jurídica e o direito à propriedade privada
a cada indivíduo. O Estado efetiva-se ao aprofundar
ainda mais os direitos naturais, dados por Deus, que
o indivíduo já possuía no estado natural.
Destaca-se no contrato social de Locke o
direito de resistência contra o governo tirano que
usurpa do indivíduo o direito natural à propriedade
privada. Percebe-se neste raciocínio um retorno ao
estado natural para defender o indivíduo do abuso
governamental à propriedade privada e a
possibilidade de substituição de governantes que
não respeitem o contrato social.
Decerto, o contratualista mais pertinente para

193
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

o estudo da soberania, especialmente da sua


vertente popular adotada nos regimes democráticos,
é Jean-Jacques Rousseau, para quem o contrato
social é a associação dos indivíduos em um todo, de
forma que todos sejam legisladores e súditos desse
todo: a liberdade de legislar acompanha a
obediência ao que foi definido neste exercício de
liberdade. A aparente perda de liberdade relacionada
à obediência é compensada pelo fato de que as leis
foram redigidas pelos próprios indivíduos livres. O
soberano não é um terceiro e sim a própria
comunidade na qual os indivíduos estão inseridos.
Os cidadãos são seres ativos e protagonistas e não
isolados como conforme Hobbes e Locke. A
soberania não é delegada, mas exercida pelo próprio
indivíduo.
O contrato social rousseauniano justifica a
legitimidade (diferente de Hobbes e Locke) ao
afirmar que o poder está na busca do bem comum.
Ele será do público com o particular, mas formado
por estes. Contudo, nem sempre a vontade do
coletivo tende ao certo e poderá representar apenas
a vontade particular quando obtidas em sociedades
desiguais, objetivando de modo sutil e ilegítimo, ser
apresentada como vontade do povo. (VIEIRA;
VIEIRA, 2012, p.9-10)
A soberania neste contrato social deverá ser
um acordo entre iguais, legitimada por um pacto,

194
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

comum a todos os cidadãos, de utilidade pública,


baseada na força do público como poder supremo
fosse. Nesse sentido, terá a lei que manter a
igualdade entre as pessoas, uma vez a natureza em si
irá sempre desigualar. Num Estado harmonioso, as
leis seguem sempre a natureza das coisas, enquanto
num Estado em desarmonia as leis quebrarão a
natureza possibilitando uma destruição do pacto
com eventual retorno ao absolutismo
(ROUSSEAU, 2002, p. 73-75).
O povo é o soberano representando a vontade
personificada no parlamento. O governo, por sua
vez, representa a força expressa no Executivo. Não
adianta ter força se não se tem vontade e vice-versa.
O Poder Executivo é a força e o Poder Legislativo é
a vontade. A soberania não pode ser relegada: a
qualquer tempo, ela pode retomar seu poder que
não foi em momento algum alienado. Assim, o
governo só pode agir conforme o soberano – o
próprio povo, sob pena de esfacelamento do corpo
político.
Os agentes públicos nos Poderes Executivo e
Legislativo não são donos das funções dos Poderes:
seu dono é o povo. O modelo de soberania não
pode ser repartido como se faz em Montesquieu,
que promove uma divisão de Poderes qual enseja
uma divisão parcial de soberania: a soberania
rousseauniana permanecerá sempre com o povo de

195
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

forma indivisível (MAUS, 2010, p. 138), uma vez


que a vontade geral só se manifesta quando há a
participação do todo. Desta inteligência decorre o
caráter indivisível e inalienável da soberania. A
vontade geral é a única que pode dirigir as forças do
Estado em busca do bem comum, finalidade que
deve guiar o governo de uma sociedade. O
soberano não pode ser representado a não ser por si
mesmo, uma vez que é possível transmitir o poder,
porém não a vontade. Desta forma, o corpo político
formado pelo contrato social é originalmente e para
sempre o titular da soberania, de forma que seu
desaparecimento resulta também no de seu titular.
Ainda que os contratos sociais apresentados
partam de diferentes estados de natureza e
objetivos, pode-se dizer que o componente interno
da soberania se baseia no contrato com o cidadão
de provisão de segurança, proteção de direitos e
bens públicos. O Estado teria nascido justamente
para tal fim, ainda que diferentes sejam os titulares
da soberania e os momentos da realização do pacto
entre cidadãos e soberano. De acordo com a ideia
de contrato social, os indivíduos abdicaram do uso
privado da força para que o Estado soberano, em
troca, os proteja.
A partir da inteligência de Rousseau, ainda que
o Estado tenha uma série de prerrogativas para a
melhor realização do interesse público, a fonte do

196
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

poder soberano não é a própria estrutura estatal e


sim os cidadãos e, num sentido mais amplo, as
pessoas. A proteção dos direitos humanos advém
desta constatação (OLIVEIRA, 2012, p.70).
É importante também para o presente estudo
apresentar a dicotomia intrínseca da soberania
manifestada em seus aspectos internos e externos.
Eles não são dois institutos diversos, mas duas
dimensões de um mesmo fenômeno político-estatal
(PETERS, 2009, p. 516). O viés interno da
soberania está associado ao poder e à legitimidade
(ou direito) (MELLO, 2013, p.8). Em contrapartida,
a principal característica do aspecto externo da
soberania é sua igualdade “potencial” no ambiente
anárquico. Para Menezes (1999, p. 156), a soberania
“externa é a representação do Estado em suas
relações com outros Estados, sem subordinação
nem dependência, num mesmo pé de igualdade.”
Nesse sentido, nas relações recíprocas entre os
Estados, em tese, para além de seu tamanho ou
influência nas relações internacionais, a soberania
externa significa que, nas relações recíprocas entre
Estados, não há subordinação nem dependência, e
sim igualdade deve prevalecer a independência e a
igualdade.
Assim, a palavra soberania não é apenas
utilizada para descrever o relacionamento entre um
superior e seus subordinados em um território -

197
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

soberania interna - , mas também a relação entre um


Estado e os demais - soberania externa
(BIERRENBACH, 2011, p. 27). Para Keohane
(2003. p. 283), a clássica concepção unitária de
soberania é a doutrina em que a soberania estatal se
exerce internamente sobre todas as outras
autoridades em um certo território e externamente
em uma relação de independência com as outras
autoridades estatais. A soberania, assim, está
marcada fortemente pela autonomia e pela
independência.
Para Ferrajoli (2002, p. 5-6), o primeiro viés a
se desenvolver foi o interno que visava “oferecer
um fundamento jurídico à conquista do Novo
Mundo, logo após seu descobrimento”. A
consolidação dos Estados nacionais e a sua
autonomia em relação a vínculos religiosos os
tornaram livres de limite, vindo a se constituir em
entes artificiais dotadas de poderes absolutos
(FERRAJOLI, 2002, p. 16-17). Ainda de acordo
com o autor, as soberanias interna e externa,
embora advindas da mesma origem, seguiram
trajetos diversos. Enquanto a interna sofreu
progressiva limitação ao longo dos séculos e a
externa, uma progressiva absolutização no palco do
direito internacional, especialmente entre a segunda
metade do século XIX e a primeira metade do
século XX. Absolutização do poder político de cada

198
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Estado, a independência nacional, a não


interferência em assuntos internos e a
autodeterminação dos povos aparecem como
resultados deste processo de absolutização da
soberania externa (FERREIRA, 2012, p.244).
Destaca-se ainda o Pós-Segunda Guerra Mundial
como um dos fatores responsáveis pelo repensar da
soberania em suas acepções interna e externa,
especialmente no diálogo com os direitos humanos.
A soberania externa é fruto de uma busca por
estabilidade e ordem e tem suas origens usualmente
atribuídas ao modelo instituído pela Paz de
Westfália em 1648 - especialmente no que tange o
princípio da não intervenção - tida como o marco
inicial da atual organização da comunidade
internacional, fundada na igualdade entre Estados
no ambiente anárquico internacional. Soma-se a este
fator o poder exclusivo e absoluto do soberano
dentro dos limites territoriais do Estado e o dever
dos demais Estados de não interferirem em
assuntos internos uns dos outros (FERREIRA,
2012, p.243) A ordem no nível externo seria
conquistada por meio da exclusão de autoridades
supranacionais. (OLIVEIRA, 2012, p.68)
A igualdade e a não interferência, princípios
essenciais à coexistência entre Estados, se expressa
na troca do reconhecimento das jurisdições
soberanas (BULL, 1995, p.80). Para um Estado ser

199
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

considerado soberano em uma comunidade


internacional, os demais devem reconhecê-lo como
tal, respeitar seus limites territoriais, tratá-lo com
igualdade e favorecer o respeito dos direitos e
deveres de seus respectivos cidadãos. Destaca-se,
neste sentido, o Estado Palestino que tem buscado
conquistar, perante a comunidade internacional,
reconhecimento enquanto Estado.
Para o autor, a sociedade internacional é
entendida como a vinculação dos Estados a um
sistema de regras, entre as quais se destaca o
respeito à própria soberania, a partir de tratados
celebrados, com vistas a disciplinar o uso da força,
entre outras matérias de interesse comum (BULL,
1995, p.52), como direitos humanos, meio ambiente
e relações comerciais. Cada Estado, no gozo de sua
soberania interna, pode aderir a diferentes regimes,
que disciplinam e limitam políticas, o que reflete a
crescente normatização das relações internacionais.
Bierrenbach (2011, p.29) afirma que, no cenário
internacional contemporâneo, a noção clássica de
soberania tem sido questionada por essa
normatização crescente. Outros fatores podem ser
destacados como a emergência de novos atores nas
relações internacionais, como as organizações não
governamentais de alcance transnacional, as
empresas transnacionais, dentre outros.

200
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Novos delineamentos do conceito de soberania

No atual cenário das relações internacionais,


Peters (2009, p. 517) enxerga um paralelo entre os
caminhos traçados pelas soberanias externa e
interna – para além da bifurcação apresentada por
Ferrajoli (2002, p. 27-28). Para a autora, citada por
Ferreira, (2012, p.244), a soberania externa tem
seguindo a mesma trajetória histórica da soberania
interna ao longo dos séculos, desde a divisão de
poderes e a busca por legitimidade até a prestação
de contas à população e às demandas republicanas
de transparência e publicidade.
O Pós-Segunda Guerra Mundial, conforme
citado acima, ensejou novos delineamentos da
busca por legitimidade dos atos do governo,
especialmente em virtude das violações maciças de
direitos humanos, referenciadas por ordens jurídicas
legais e positivas. Bierrenbach (2011, p. 24)
apresenta as consequências da dicotomia legalidade
vs legitimidade para a soberania, a partir da
retomada da tradição jusnaturalista, no Pós-Segunda
Guerra, segundo a qual o ser humano tem direitos
inatos, anteriores a qualquer positivação pelo
Estado. Intervenções com propósitos humanitários
seriam, neste sentido, consideradas legítimas. A
respeito da legalidade, a própria Carta das Nações
Unidas, documento que fundamenta a atuação desta

201
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

organização internacional e dos países-membros,


proíbe o uso da força como forma de solução de
controvérsias, excepcionando-se as hipóteses de
legítima defesa e de ameaça à paz e à segurança
internacional (ONU, 1995).
Não se pode olvidar que no século XX outro
fator influenciou os rumos práticos e teóricos da
soberania externa: o conceito de autodeterminação
dos povos, que viria posteriormente a fundamentar
o processo de descolonização que se seguiu após a
criação da ONU. Este conceito reconhece que
nenhum povo deva ser forçado a viver sob a
soberania de quem ele não deseja viver. Mas este
princípio só passou a ser amplamente recebido pela
comunidade internacional com a assinatura da Carta
das Nações Unidas (MELLO, 2013, p.11), o que
criou obrigações vinculantes para os países
signatários – e não necessariamente reduziu os
conflitos advindos de demandas por emancipação
no seio dos Estados.
Frise-se que este princípio fundamentou a
libertação de vários povos no processo de
descolonização e a criação de identidades nacionais,
e concedeu ao conceito de soberania mais valor,
especialmente para os países mais frágeis e jovens,
fruto do desmembramento de ex-colônias
europeias, especialmente, no continente africano.
Tamanha a importância que a Carta Africana dos

202
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Direitos do Homem e dos Povos (OUA, 1979),


principal documento do continente que trata de
Direitos Humanos, dispôs em seu art. 20 (1), in
verbis: “Todo o povo tem direito à existência. Todo
o povo tem um direito imprescritível e inalienável à
autodeterminação. Ele determina livremente o seu
estatuto político e assegura o seu desenvolvimento
econômico e social segundo a via que livremente
escolheu.”
O princípio da não interferência passa a ser a
fundamentação da soberania para os Estados
emancipados no continente africano frente a
colonização europeia no pós-Segunda Guerra
Mundial especialmente por trazer consigo os valores
de legitimidade, independência e estabilidade.
Brownlie (1997, p. 312-313) aduz que, “[o] corolário
da independência e da igualdade dos Estados é o
dever, por parte destes, de se absterem de intervir
nos assuntos internos ou externos dos outros
Estados”. A ótica da soberania interna e externa
passa necessariamente pela independência e não
interferência em relação aos outros Estados e
organizações internas ou internacionais.
Destaca-se que a independência nacional é o
primeiro princípio elencado no artigo 4° da CF/88,
com fulcro dos demais princípios que regem as
relações internacionais e que se confunde com a
própria soberania (LOPES; LOPES, 2014, p.3).

203
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Interessante destacar a conceituação de Reale (apud


CRIPPA, 2011, p.19), para quem soberania é "o
poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer
dentro de seu território a universalidade de suas
decisões nos limites dos fins étnicos de
convivência". A auto-organização do Estado e a sua
capacidade de impor suas decisões têm encontrado
contemporaneamente limites pautados
principalmente na proteção aos direitos humanos.
Citada anteriormente, a Carta das Nações
Unidas e os esforços de todos os Estados,
especialmente dos ocidentais, em construir uma
cultura de direitos humanos no pós-Segunda
Guerra, talvez tenham sido os elementos centrais
para os novos delineamentos do conceito de
soberania. Para Ferrajoli (2002, p. 40), a Declaração
de 1948, ao enterrar o modelo Westfália, eleva os
direitos humanos à categoria de normas
supraestatais a colocar limites externos ao poder dos
Estados.
O debate entre legalidade e legitimidade
apresenta um panorama em que ações, positivadas
em forma de lei, permitidas (ou não proibidas) pela
ordem jurídica constituída atentavam patentemente
contra direitos imanentes à pessoa humana para
além de qualquer característica social, sexual,
política, econômica ou outra que a distinga e
individualize.

204
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A tensão entre ordens jurídicas domésticas


com os Direitos Humanos – e a responsabilidade,
enquanto humanidade, que todos os indivíduos e
Estados têm de preservar estes direitos – instigou o
repensar do papel da soberania no mundo
moderno. Mello (2013, p.12) destaca ainda outros
fatores, como: o fenômeno da globalização, o
surgimento de diversas crises humanitárias, em
virtude, em grande parte, do colapso de alguns
Estados frágeis, ou de guerras internas pelo poder,
o fenômeno da comunicação em massa, que
permitiu o conhecimento destas questões, de forma
imediata, pelas opiniões públicas nacionais e
internacional.
Ferrajoli (2004) destaca ainda que a mudança
nos tipos de conflitos armados, trazida pelo
processo de descolonização, também contribuiu
para que a soberania fosse repensada. Os conflitos
ocorridos antes deste período eram titularizados por
Estados soberanos, que travavam guerras formais
de conquista ou invasão. As duas grandes guerras
exemplificam este momento. Em contrapartida, o
surgimento de vários Estados com déficit de
legitimidade e grande instabilidade política
(MELLO, 2013, p.13) ensejaram conflitos dentro
dos próprios territórios estatais entre grupos
étnicos, religiosos ou políticos que lutam
internamente por poder contra a ordem constituída.

205
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A guerra civil síria.


A criação da ONU com a assinatura da Carta
das Nações Unidas estabeleceu o primeiro sistema
internacional de proteção dos direitos humanos, que
a partir de tratados internacionais e de mecanismos
de controle e monitoramento visa a preservar,
garantir e proteger os direitos humanos no âmbito
internacional. Ao tornar-se signatário de um tratado
internacional, o Estado assume o dever de cumprir
com as obrigações acordadas de boa fé, em virtude
do princípio pacta sunt servanda, sem poder,
inclusive se utilizar de dispositivos do direito
interno para justificar o descumprimento. Uma vez
tendo cometido tal descumprimento, o Estado pode
ser responsabilizado internacionalmente a reparar o
dano, de forma monetária ou simbólica, e investir
em medidas de não repetição.
A partir deste processo de internacionalização
dos direitos humanos, os Estados não apenas
passaram a assinar tratados internacionais e
regionais sobre a matéria. As próprias constituições
começaram a refletir esta preocupação e a incluir
em seus textos dispositivos que visam a proteção da
pessoa humana. Para Bechara (2011, p. 134), este
limite colocado à atuação do Estado apresenta-se
como a medida necessária para se alcançar a paz e
uma melhor ordenação de harmonia internacional.
Em sentido diverso, dispõe Oliveira (2012,

206
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

p.68-69) pontuando que soberania e direitos


humanos podem ser considerados dois regimes
distintos: quanto mais forte o princípio da
soberania, mais fracas as normas de direitos
humanos e vice-versa. Jubilut (2010, p. 153)
apresenta um pensamento semelhante a partir do
diálogo legalidade vs legitimidade. A proteção dos
direitos humanos requer a minimização da
soberania estatal que passou a ser considerada não
somente um direito, mas também uma
responsabilidade do Estado para com seus cidadãos.
Como a proteção da soberania parece ser muito
mais enraizada nas normas fundadoras do Direito
Internacional do que a proteção dos direitos
humanos isso pode levar à inação em face de graves
violações de direitos humanos em função de
abordagens eminentemente legalistas.
Os dois pensamentos aparentemente
conflitantes podem ser conciliados: a soberania não
mais significa um projeto de poder absoluto
hermeticamente ordenado, e sim a forma como o
Estado organiza a força para assegurar a seus
titulares a pluralidade, a paz e a unidade política
estatal. Frise-se que os novos delineamentos da
concepção da soberania, ensejados pela
internacionalização dos direitos humanos e pela
globalidade e legitimidade dos direitos inerentes à
pessoa humana (LOPES; LOPES, 2014, p.4) não

207
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

esvaziaram o conteúdo da soberania e nem


diminuíram a autonomia e a capacidade de
autodeterminação de cada Estado. É reconhecido o
poder do Estado e de organizações internacionais
de adotar medidas recomendatórias ou
sancionatórias quanto àqueles que desrespeitarem
os direitos humanos em virtude das obrigações por
eles assumidas para com seus cidadãos e toda a
comunidade internacional.
Destaque-se que o Estado deixou de há muito
ser o único titular da condição de sujeito de direito
internacional. Este processo reflete as mudanças de
escopo do Direito Internacional, que deixou de se
ocupar com questões exclusivamente políticas e
estratégicas e passou a cuidar de questões
econômicas, sociais e ambientais. Os novos temas
repercutiram na criação de agências especializadas
(BIERRENBACH, 2011, p. 30). Segundo Amaral
Jr. “ora essa mudança é descrita como a passagem
do direito internacional de liberdade para o direito
internacional do bem-estar ora como a substituição
do direito internacional da coexistência pelo direito
internacional da cooperação” (2003, p.75). Para o
autor, a Carta das Nações Unidas “caminha no
sentido da constitucionalização das relações
internacionais (...) É um verdadeiro contrato social
internacional, dinâmico e aberto, que combina o
desejo de estabilidade com a necessidade de

208
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

mudança” (AMARAL JR, 2003, p.79).


Considerar a Carta das Nações Unidas como
um contrato social internacional é reafirmar os
princípios da soberania, da integridade territorial, da
não intervenção e da autodeterminação dos povos,
do respeito aos direitos humanos como basilares
para toda a comunidade internacional e convidar a
comunidade internacional a se afinar em torno de
um conceito de soberania que consiga contemplar
as demandas estatais, regionais e internacionais.
A interpretação corrente é de que ao ratificar
um tratado internacional sobre direitos humanos ou
integrar de organizações internacionais ou regionais
dedicadas ao tema os Estados abdicam de uma
parcela da soberania, em seu sentido clássico, e se
obrigam a reconhecer o direito da comunidade
internacional de observar, acompanhar e opinar
sobre sua atuação interna e mesmo de cobrar uma
atuação distinta a partir das obrigações
convencionais ou jus cogens, como as advindas da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é
assim considerada.
Nestes novos delineamentos do conceito de
soberania, Bierrenbach (2011, p. 32) destaca que a
criação do Tribunal Penal Internacional - primeira
corte criminal internacional de caráter permanente
com jurisdição sobre genocídio, crimes de guerra,
crimes contra a humanidade e agressão, estabelecida

209
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

em 1998, pelo Estatuto de Roma - só foi possível


no contexto do desenvolvimento do Direito
Internacional e da superação da alegação do
“domínio reservado do Estado”, a partir do
princípio da soberania. O princípio da
complementaridade como fundamento do
relacionamento entre as jurisdições interna e externa
foi consagrado pelo Estatuto de Roma – ainda que
seja base para a atuação das cortes regionais e
internacionais. Apenas a falta de capacidade ou de
disposição por parte do Estado para julgar os
responsáveis pelos crimes de jurisdição do TPI
ensejam a sua atuação. Percebe-se que a jurisdição
externa reforça o cumprimento pelo Estado de
obrigações por ele assumidas nos âmbitos interno e
externo. Estabelecer um tribunal supranacional
questionou de forma contundente a doutrina
clássica da soberania.
No que se refere ao campo dos direitos
humanos, reconhecer que o Estado não pode fazer
o que quiser com seus cidadãos representa de fato
uma recaracterização da soberania, com o
reconhecimento de que é legítima a interferência da
comunidade internacional em situações nas quais o
Estado seja responsável ativa ou passivamente ou
cúmplice por grandes violações (BIERRENBACH,
2011, p. 32-33). As constantes violações aos direitos
humanos cometidos por Estados contra a sua

210
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

própria população civil redundaram na progressiva


mitigação do âmbito da soberania. À medida a
proteção destes direitos se tornava universal, mais
se limitavam os princípios derivados da
intocabilidade da soberania estatal (FERREIRA,
2012, p.246).
Não há porque se questionar, por exemplo, a
legitimidade da atuação de tribunais internacionais
ou de doutrinas internacionais protetivas dos
direitos humanos, especialmente porque ela advém
da anuência anterior dos próprios Estados. Além
disso, a proteção do ser humano não tem se
restringido, com a internacionalização destes
direitos, ao âmbito doméstico. Toda a comunidade
internacional assumiu para si a responsabilidade de
evitar que novos Holocaustos e hecatombes
aconteçam – em que pesem as dificuldades para na
prática garantir este engajamento.
Conforme exposto anteriormente, a soberania
interna já havia sofrido modificações em seus
delineamentos - da soberania do soberano à
soberania popular. Contemporaneamente, a faceta
externa tem sofrido mudanças – da independência
absoluta à ideia de interdependência e cooperação,
com foco no bem-estar das sociedades e na
proteção dos direitos humanos (BIERRENBACH,
2011, p. 33; PETERS, 2009, p. 517). A soberania
popular e a ideia de interdependência e cooperação

211
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

apresentam uma perspectiva menos estado cêntrica


e mais voltada para o ser humano, que rompe com a
ideia de que o Estado é um fim em si mesmo e
busca calcá-lo em princípios humanistas.
Frise-se que os Estados continuam, mesmo
com a preocupação com os direitos humanos, a
participar da cena internacional com menos
autonomia, mas ainda como instrumento decisivo
mais colaborante e mais competitivo na luta do
mercado global por investimento e know-how
(FERREIRA, 2012, p.246). Em que pese a
pluralidade crescente de atores nas relações
internacionais e da possibilidade de o indivíduo
pleitear direitos diretamente em sistemas de
proteção de direitos humanos, o Estado continua
sendo o pivô dessas relações. Vantajosamente, os
indivíduos têm mais normativas para evitar ações
arbitrárias dentro e fora do território estatal, como
as constituições e os tratados internacionais, e
mecanismos para ver seus direitos protegidos ou
reparados.
Tem se discutido as fontes de legitimidade em
um contexto marcado pela diminuição do
protagonismo do Estado e enfraquecimento dos
vínculos de solidariedade nacionais. Bierrenbach
(2011, p. 37-38) situa a perspectiva realista da
legitimidade no sistema internacional sob o ponto
de vista de seus próprios atores. Para que um

212
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Estado se constitua e atue como tal é necessário o


reconhecimento por parte dos demais, que confere
aos Estados a legitimidade internacional. A autora
ainda traz, como fonte primária da legitimidade, a
soberania popular, inclusive dispondo que havendo
sinais de autodeterminação, a tendência deveria ser
respeitar a integridade territorial mesmo de Estados
fracos.
O sistema internacional de proteção dos
direitos humanos, capitaneado pela ONU, na figura
do Conselho de Segurança, é quem mais se
aproxima de titular legítimo do monopólio do uso
da força no contexto internacional. A presença de
membros permanentes com poder de veto é
expressão direta do poder e tem sido algo de críticas
que ensejam a necessidade de se rediscutir o próprio
Conselho e garantir a participação de mais Estados
e forças. Existe, ainda assim, uma legitimidade
referida às diferenças de poder, com fulcro no
argumento de que ao poder corresponde
responsabilidade.
A postura dos países em desenvolvimento tem
sido reiterar a necessidade de democratização dos
processos decisórios internacionais, especialmente
no que tange o Conselho. Tais países - vítimas
potenciais de ingerência em seus assuntos internos
e, inclusive, egressos de posição colonial - tendem a
interpretar a soberania de forma mais clássica,

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

estrita, em virtude da postura defensiva, afinal é a


primeira vez que muitos, enquanto Estados,
vivenciam a soberania por causa de sua defesa e da
aplicação do princípio da autodeterminação que eles
se emanciparam do jugo colonizador e imperialista.

Considerações finais

O reconhecimento de que o Estado não pode


fazer o que quiser com seus cidadãos fundamenta o
novo delineamento da soberania, noção de que a
proteção e garantia dos direitos humanos dentro do
Estado é responsabilidade deste, de acordo os
acordos internacionais dos quais é signatário. Esta
perspectiva modifica, definitivamente, a soberania
em seus âmbitos interno e externo. As variações do
conceito de soberania, ainda que não
exclusivamente, são pautadas pelas próprias
ampliações práticas e conceituais dos direitos
humanos perante o Estado-nação e a comunidade
internacional.
A Carta das Nações Unidas pode ser
considerada um contrato social internacional que
resgata os valores consolidados no contrato social
rousseauniano a respeito da soberania interna e traz
novos valores de proteção dos direitos humanos,
autodeterminação dos povos e soberania externa

214
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

que enseja o respeito do Estado pelos demais mas


garante que os cidadãos sejam respeitados. Esse
contrato implica em dirimir as diferenças sociais e
culturais que prevalecem hoje na maioria dos países
e que separam os Estados mais ricos dos demais.
As vertentes internas e externas da soberania
têm historicamente traçado rumos semelhantes,
ensejando que o próximo passo para os
delineamentos da soberana externa seja reconhecer
a Carta das Nações Unidas ou os tratados
internacionais de direitos humanos como um
acordo entre os membros da sociedade
internacional pelo qual reconhecem a autoridade,
igualmente sobre todos os Estados, do regime
político dos direitos humanos.

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Florianópolis: FUNJAB, 2012, v. XXI, p. 141-159. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=0fc170ecbb8ff
1af>. Acesso em 01 fev 2016.

ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA DO
CONTRATO ATUAL

218
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Patrícia Luz Cavalcante49

RESUMO:
Análise do contrato em sua perspectiva jurídica.
Com efeito, traz-se à baila a análise da formação dos
contratos. De início, breve passagem pela teoria e
formação do contrato social, segundo o proposto
por Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques
Rousseau, que traduz-se como uma das teorias que
melhor explica a origem da existência do estado,
como regulador das relações humanas. Ato
contínuo, análise do contrato, especificamente no
campo do direito privado, conceito e em breve
paralelo com a concepção central à luz do Código
Civil de 1916 eobservância à luz da Constituição
Federal de 1988, oportunizando-se a
“constitucionalização do direito civil”, e,
posteriormente, promulgação do Código Civil de
2002. Explanação dos vetores de interpretação
mormente princípios da socialidade, da eticidade e
da operabilidade, consoante exposição de motivos
do novel Código Civil de 2002, idealizados por
Miguel Reale, porquanto sistema aberto e dinâmico,
com integração simultânea entre fato, valor e

49 Advogada, inscrita na OAB-PI n.° 9.890, pós graduada em Direito


Tributário pela Rede Anhanguera LFG, currículo lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4901007U3,
e o e-mail: patricialuzc.adv@gmail.com

219
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

norma.Função social como princípio constitucional,


inserido também em todos os livros do Código
Civil de 2002, especialmente, no que tange aos
contratos, permitindo-se a “funcionalização dos
contratos” e explanação da dupla perspectiva de
aplicação, planos interno e externo. Destaque para
análise do princípio da boa-fé, suas funções de
interpretação, de controle, limitativa de direitos
subjetivos e de integração; seus desdobramentos,
entre os quais, institutos de “supressio” e “surrectio”,
“tu quoque”, “duty to mitigate the loss”, “vedação a
comportamentos contraditórios” e “exceptio doli”.
Diferenças entre exceção do “contrato não-
cumprido”, “exceção de inseguridade”, “exceptio non
rite adimpleti contractus” e “inadimplemento
antecipado”.
Palavras-chave: contrato socialidade eticidade
operabilidade boa-fé

ABSTRACT:
Contract analysis in its legal perspective. It brings to
the fore the analysis of the formation of contracts.
At first, brief the theory and training of the social
contract, as proposed by Thomas Hobbes, John
Locke and Jean-Jacques Rousseau, which translates
to one theory that best explains the origin of the
existence of the state as a regulator of relations
human. Subsequently, contract analysis, specifically

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

in the private law field, concept and soon parallel


with the central concept in the light of the 1916
Civil Code and compliance in the light of the
Constitution of 1988, providing opportunities to
"constitutionalization of civil law" and later
promulgation of novel Civil Code of 2002.
Explanation of interpretation vectors especially
principles of sociality, of ethics and operability, as
the explanatory memorandum of the novel Civil
Code of 2002, devised by Miguel Reale, for open
and dynamic system with simultaneous integration
between fact, value and norm. social function as a
constitutional principle, also inserted in all of the
2002 Civil Code books, especially with regard to
contracts, allowing the "functionalization of
contracts." Explanation of the double application
perspective, internal and external plans. Especially
analysis of the principle of good faith in its
interpretation of functions, control, limiting the
legal rights and integration; its consequences,
among which institutes "supressio" and "surrectio",
"tu quoque", "duty to mitigate the loss", sealing the
contradictory behavior and "exceptio doli."
Differences between the exception of non-fulfilled
contract, except insecurity, "exceptio non rite
adimpleti contractus" and anticipated default.
Key words: contract sociality ethics operability
good-faith.

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

1. Introdução

O presente artigo cinge-se pela análise do


contrato em sua perspectiva jurídica, sobretudo,
com vistas e em primazia da abordagem do referido
instituto, consoante os valores e vetores estampados
pela Nova Ordem Constitucional implementada em
1988.
Nessa senda, inicialmente, cumpre tecer
considerações primárias consoante a formação do
contrato.
Cediço que em algum momento, existira
somente o direito natural, aquele não-positivado,
onde os homens, em sentido lato, possuíam
direitos, mas não-positivados e que para o
implemento de uma ordem positivada, idealizou-se
a formação de um contrato social. Nesse ínterim, a
ideia de contrato social reportava-se na criação do
estado. Para o contratualista Thomas Hobbes, o
estado é criado por um contrato social em que cada
ser humano entrega a sua liberdade em troca de paz
e segurança.
Posteriormente, o contratualista John Locke
aduzia que para possibilitar a criação do estado, o
homem não entrega a sua liberdade toda, mas
apenas parte dela, de forma a preservar os direitos

222
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

fundamentais. É como dizer que o homem


entregou parte de sua liberdade para a criação do
estado, e aquela parte não-entregue corresponderia
exatamente aos direitos não passíveis de serem
renunciados, como exemplo, os direitos da
personalidade, os direitos fundamentais, traçando e
sugerindo as primeiras construções consoante a
separação de poderes.
Por fim, Jean-Jacques Rousseau, em sua obra
“O Contrato Social”, aduzia que o homem, visando
recuperar aquele bem estar primitivo, teria
transferido seus direitos naturais ao estado em troca
de direitos civis. Assim, tais direitos naturais,
estariam, pois, sob a tutela do estado, de modo que
não haveria renúncia à liberdade, pois tal ato seria
incompatível com a natureza humana. Toda a noção
de contrato social deste filósofo está baseada no
bem comum, na união de forças destinada à
utilidade geral, que não se limita ao somatório das
vontades particulares.
Tais considerações acima, formam a “Teoria
Contratualista”, uma das teorias que se voltam
acerca da formação do estado, este, como
normatizador e regulador das relações sociais.
Mormente a clássica dicotomia em direito
público e privado, no plano deste último, o pode-se
conceituar “contrato”como uma fonte de
obrigação, instituto caracterizado pela formação de

223
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

uma relação jurídica em que há manifestação e


acordo de vontades, mormente a consecução de
algum fim, não necessariamente comutativo, em
que ambas as partes terão prestação e
contraprestação à outra.
Ao reportarem-se aos estudos dos contratos,
bem aduzem GAGLIANO E PAMPLONA
FILHO (2012), que:

“trata-se, em verdade, da espécie


mais importante e socialmente
difundida de negócio jurídico,
consistindo, sem sombra de
dúvidas, na força motriz das
engrenagens socioeconômicas do
mundo. Desde os primórdios da
civilização, quando abandonamos o
estágio da barbárie, experimentando
certo progresso espiritual e material,
o contrato passou a servir, enquanto
instrumento por excelência de
circulação de riquezas, como a justa
medida dos interesses contrapostos.
Ao invés de utilizar a violência para
perseguir os seus fins, o homem
passou a recorrer às formas de
contratação, objetivando imprimir
estabilidade às relações jurídicas que
pactuava, segundo, é claro, os seus
próprios propósitos.” (P. 31).

224
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

E bem pontuam que, “em uma perspectiva


civil-constitucional, deve-se ter em conta que o
contrato, espécie mais importante de negócio
jurídico, apenas se afirma socialmente se entendido
como um instrumento de conciliação de interesses
contrapostos, manejado com vistas à pacificação
social e ao desenvolvimento econômico.”
(PAGINA 38/39)
Para tanto, mister reportar que os contratos,
em sua formação original, possuem bastantes
diferenças facilmente percebidas com os contratos
dos dias contemporâneos. Isso justifica-se, entre
outros fatores, pela globalização, cultura, a
complexidade dos sistemas normativos, expansão e
massificação das relações, o vulto dos interesses
envoltos e o progresso e evolução da sociedade.
Nesse passo, consoante o movimento francês
iluminista, em que escancarava-se a concepção
antropocêntrica, inicialmente, firmava-se a vontade
racional do homem, de fato, como o centro do
universo, determinando-se a supervalorização da
força normativa do contrato. A elevação da
autonomia da vontade à categoria de dogma,
calcada na visão antropocêntrica e patrimonialista,
refletiu-se amplamente em toda a concepção dos
contratos até o final do século XIX e início do
seguinte.
Nesse período, o contrato representava a lei

225
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

entre as partes, de forma absoluta, mormente


aplicação do “princípio pacta sunt servanda”. Essa
proposição possuía carga valorativa muito mais
forte que a sua carga valorada nos dias atuais, tal
como sendo de aplicação como uma regra sem
espaço para qualquer mitigação. De certo, nas
palavras de Orlando Gomes, “essa força
obrigatória, atribuída pela lei aos contratos, é a
pedra angular da segurança do comércio jurídico”.
(ORLANDOAPPUD GAGLIANO E
PAMPLONA FILHO, P. 60)
Entretanto, a adoção da tendência
individualista gerou sérios desequilíbrios sociais,
somente contornados pelo dirigismo contratual,
então, apresentado em meados do século XX,
consoante a expansão dos movimentos sociais
desencadeados na Europa Ocidental, e que
recolocariam o homem na sociedade, abandonando
aquela forte ideia anterior de ser o homem o centro
do universo e adoção de outros valores.
Por conseguinte, através da positivação do
modelo de dirigismo contratual, traçado como
decorrência também das inspirações
neoconstitucionalistas na segunda metade do século
XX,em que implementou-seforça normativa às
Constituições, estas, tendo positivado valores
perquiridos por uma sociedade, baseados em
liberdade e concomitantemente tendo o estado sua

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

atuação a coibir abusos; ainda, primazia da


dignidade da pessoa humana; respaldo à função
social dos contratos e da propriedade; valores
sociais do trabalho e de livre inciativa, ideais de
construção de sociedade livre, justa e solidária, bem
como garantir o desenvolvimento nacional e
erradicação da pobreza e da marginalização e
redução das desigualdades sociais e regionais e
consecução do bem-comum.Nesse novo contexto,
como bem reverenciado por GONÇALVES,
“pode-se afirmar que a força obrigatória dos
contratos não se afere mais sob a ótica do dever
moral de manutenção da palavra empenhada, mas
da realização do bem comum”. (P. 14).
Ainda em meados de 1974, Orlando Gomes
escreveu que em virtude de vários problemas da
sociedade humana, aquele Código anterior, qual
seja, o CC/1916, tornara-se obsoleto e sinalizava
que não adiantaria refazer outro. Para acompanhar a
evolução das relações e do direito, sua sugestão foi
que houvesse uma norma superior que previsse e
estabelecesse os fundamentos do direito civil. É que
somente com a referida norma superior é que seria
capaz de conferir flexibilidade ao direito civil,
surgindo, pois, as bases da concepção de
“constitucionalização do direito civil”.
Assim, em 1988, o poder constituinte
acolhendo a sugestão-crítica de Orlando Gomes,

227
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

com forte inspiração no direito italiano, promulga a


nova Constituição Brasileira, inovando e superando
a neutralidade percebida nas constituições
anteriores em relação ao direito civil, uma vez que
as anteriores mostraram-se indiferentes em relação
ao direito civil. Importante pontuar que antes da
CF/1988, nenhum instituto de direito civil havia
recebido tratamento de morada constitucional.
Assim, com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, ainda sob vigência do Código Civil
de 1916, inaugurava-se, finalmente, uma nova
ordem civil, denominada de “constitucionalização
do direito civil”. Desta feita, pela primeira vez, a
nova ordem apresentava-nos seus valores e
expressamente também previa alguns institutos
jurídicos previstos anteriormente tão-somente
naquele regramento civil, este, que por ter
hierarquia inferior em relação àquela, passaria por
necessária releitura. Assim, aquilo que fosse
apresentado no código civil deveria ser relido
conforme a interpretação e essência do perquirido
pela nova Constituição. Com mais razão, aquilo que
pudesse contrariá-la, deveria ser afastado. Desta
feita, com o movimento de constitucionalização do
direito civil, não mais seria adequado dividir e
separar o direito público e o direito privado, pois
tanto de um quanto do outro extraíam-se suas bases
da Constituição Federal.

228
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Logo em seguida, apresentou-se um


regramento especial de órbita consumerista, Lei
8.078/90, enaltecendo a atuação e intervenção
estatal, nos termos do art. 5º,inciso XXXII, da
Constituição Federal de 1988. Referida lei reclama
sua aplicação quando a relação contratual
entabulada entre as partes amoldasse aos conceitos
por ela trazidas para consumidor, nos termos do
art.2º do Código de Defesa do Consumidor – CDC,
como sendo toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como
destinatário final; ou, equiparando-se a consumidor
a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de
consumo; e, nos termos do art. 3° do CDC como
fornecedor, toda pessoa física ou jurídica, pública
ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os
entes despersonalizados, que desenvolvem atividade
de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição
ou comercialização de produtos ou prestação de
serviços.
Assim, consoante teoria finalista ou subjetiva,
permitindo, pois, pessoa jurídica figurar como
consumidor caso demonstrado ser a destinatária
final naquela cadeia, mormente o que
convencionou-se denominar por “teoria finalista
mitigada”. Ademais, a principiologia do CDC,

229
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

repousa por observar a relação de inferioridade e


desigualdade entre as partes, mormente relação de
sujeição, contratos de adesão, vulnerabilidade
material e hipossuficiência ainda no aspecto
processual, propondo-se conferir igualdade material
entre as partes, dada a situação de não-equivalência
exposta.
Por tanto, aquela relação contratual, dadas as
características assinaladas, merece, pois maior
intervenção e dirigismo. Isso porque, como aquela
máxima citada por Lacordaire, “entre o fraco e
forte, a liberdade escraviza e a lei liberta”, eis que
vontade entre as partes é livre, mormente adoção
liberalismo econômico, como regra, portanto é
esperado que a lei do mais forte pode aprisionar, e
necessária se faz a intervenção estatal, através da
regulação pela lei, válida, para então poder devolver
a igualdade material entre as partes.
Em seguida, um novo projeto de Código Civil,
novel Código Civil de 2002, era apresentado e então
passando a reforçar o já trazido pela Constituição e
que será analisado no tópico seguinte.

Desenvolvimento

Com o advento do novel Código Civil de

230
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

2002, alguns institutos foram reforçados. Os


principais vetores de interpretação e aplicabilidade,
segundo a exposição de motivos elaborada por
Miguel Reale, são: princípio da socialidade, princípio
da eticidade e princípio da operabilidade.
O princípio da socialidade reforça a
consagrada função social que deve motivar e guiar
os contratos formados. Segundo exposto por Reale,
um dos escopos da nova codificação foi o de
superar aquele caráter individualista da codificação
anterior. Assim, aquela concepção baseada no “eu”
é substituída pela visão do “nós”. Todas as
categorias civis passam a imprimir sua função social:
o contrato, a propriedade, a propriedade bem como
a posse, a família, a responsabilidade civil.
Destaque-se que a função social da
propriedade já encontrava-se prevista na
Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º,
incisos XXII e XXIII, e no seu art. 170, inciso III,
tendo sido reforçada pelo art. 1.228, § 1.º, do
Código Civil.
A função social dos contratos passou a ser
tipificada na nova codificação, prevendo o art. 421
do Código Civil que “a liberdade de contratar será
exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”. Denota-se um princípio contratual de
ordem pública, pelo qual o contrato deve ser,
necessariamente, visualizado e interpretado de

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

acordo com o contexto da sociedade. E, como frisa


Flávio Tartuce (2015):
“Mesmo a posse recebe uma função social, eis
que o atual Código consagra a diminuição dos
prazos de usucapião imobiliária quando estiver
configurada a posse-trabalho, situação fática em que
o possuidor despendeu tempo e labor na ocupação
de um determinado imóvel. A nova codificação
valoriza aquele que planta e colhe, o trabalho da
pessoa natural, do cidadão comum. Tais premissas
podem ser captadas pela leitura dos arts. 1.238,
parágrafo único, e 1.242, parágrafo único, do
CC/2002, que reduzem os prazos da usucapião
extraordinária e ordinária, para dez e cinco anos,
respectivamente quando o possuidor tiver realizado
no imóvel obras e serviços considerados pelo juiz
de caráter social e econômico relevante” (P. 61)
Por sua vez, o princípio da eticidade, permite a
verificação e efetivação da justiça e boa-fé. A boa-
fé, observada nos tratos e comportamentos das
partes como um padrão de conduta.
E, por fim, o princípio da operabilidade, que
tem dois significados. De início, denota-se o sentido
de simplicidade, uma vez que o Código Civil de
2002 segue tendência de facilitar a interpretação e a
aplicação dos institutos nele previstos. Por outra
via, extrai-se também o sentido de efetividade, ou
concretude do direito civil, dada a prevalência de

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

conceitos abertos e cláusulas gerais, onde o referido


princípio sugere soluções variáveis e não
“congeladas”, consoante realização da concretude.
Soma-se ainda a “teoria da eficácia horizontal
dos direitos fundamentais”, citando-se o Recurso
Extraordinário nº 201819/RJ, em que o Supremo
consagrou a tese da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais nas relações privadas, podendo-os ser
aplicados ainda que haja a existência de lei.
Consagrou-se a aplicação direta dessa eficácia, ao
argumento de que a adoção da referida teoria não
aniquila a autonomia privada que rege as relações
civis entabuladas. O que se defende é a
preponderância dos direitos fundamentais, isto é,
existindo ou não lei específica a tratar um referido
caso concreto, os direitos e garantias devem
prevalecer. Ressaltando-se, contudo, que o que irá
propiciar diferença é tão-somente o grau de
intensidade em que serão aplicados, é dizer,
existindo uma lei, eles devem atuar em menor
intensidade de quando a lei não existir.
De início, importante sinalizar que não mais
merecia espaço calhar o modelo baseado
anteriormente na “autonomia da vontade”, mas sim,
“autonomia privada”. Basicamente por 3 razões: a)
pela crise da vontade, caracterizada por contratos
feitos por impulso; b) pela efetivação de dirigismo
contratual, mormente necessária intervenção do

233
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

estado nos contratos; c) e por fim, dada a


prevalência do modelo de contrato de adesão e sua
massificação, o que de per si, não caracteriza um
contrato de consumo.
Nesse sentido, Enunciado 171, III Jornada de
Direito Civil:
Enunciado 171 – Art. 423: “O contrato de
adesão, mencionado nos arts. 423 e 424 do novo
Código Civil, não se confunde com o contrato de
consumo.”
Dito isto, a vontade não mais se apresentava
absoluta e totalmente livre. A liberdade de
contratar, do que e com quem contratar ainda
persistiria, entretanto, o estado, em sua atuação de
dirigente, através da lei, valores e proibições,
introduziria limites a coibir abusos de direito e em
consonância com a funcionalização, como deduz-se
do Enunciado 23, da I Jornada de Direito Civil:
Enunciado 23 - Art. 421: “A função social do
contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil,
não elimina o princípio da autonomia contratual,
mas atenua ou reduz o alcance desse princípio
quando presentes interesses meta individuais ou
interesse individual relativo à dignidade da pessoa
humana.”
Sob o prisma do princípio da função social,
etimologicamente tem-se no termo “função” como

234
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

“finalidade”, e, “social” emanando sentido de


“coletivo”. Logo, conclui-se que por tal princípio, o
contrato deve atender não apenas aos fins das
partes envolvidas, mas sim dentro dos anseios e
promoção de bem-comum à coletividade em que se
insere. Portanto, trata-se de um princípio de ordem
pública (vide art.2.035, parágrafo único, do Código
Civil), como mitigação tanto do princípio da força
obrigatória (“pacta sunt servanda”) bem como do
brocardo da relatividade dos contratos (“res inter alios
acta, allis nec prodest nec noce”),de que o contrato faria
força entre as partes envolvidas.Assim, a liberdade
contratual será exercida em razão e nos limites da
função social, nos termos do art.421, do Código
Civil.
Quanto à função social e sua apresentação,
merecem 2 considerações.
Quanto ao plano interno, aquele que verificar-
se-á entre as partes, observando-se, sobretudo,
primeiro, a tutela de dignidade da pessoa humana,
consoante art. 1º, inc.III, da CF/1988 e a exemplo,
menciona-se novamente o Enunciado 23, da I
Jornada de Direito Civil.
Em seguida, a supremacia da ordem pública e
observância do art.166, inciso II/CC pela nulidade
de cláusulas antissociais por ilicitude de seu objeto.
Destarte, ressalta-se ainda a aplicabilidade da
orientação do STJ, nos termos da Súmula 381, em

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

que embora palco de críticas doutrinárias, segue


mantido o entendimento de que nos contratos
bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício,
da abusividade das cláusulas. A “ratio” dessa
orientação baseia-se, sobretudo, em prestigiar o
formalismo processual em face do direito material
analisado, contrapondo-se ao previsto no art.51, do
CDC e de toda a principiologia por este adotada, e,
ainda, por proteger as instituições financeiras,
pensando-se nos possíveis impactos que tais
reconhecimentos de nulidades em inúmeros
contratos pudessem ocasionar e assim evitando-se
um “colapso” na economia.
Ainda a proteção da parte contratual mais
vulnerável, percebida nos arts. 423 e 424/CC,
mormente interpretação mais favorável ao aderente
e nulidade de cláusula de renúncia de direito
inerente ao negócio, por ser abusiva. Nesse sentido,
Enunciado 364, IV Jornada de Direito Civil:
Enunciado 364 – Arts. 424 e 828. “No contrato de
fiança é nula a cláusula de renúncia antecipada ao
benefício de ordem quando inserida em contrato de
adesão”.
Com efeito, outro ponto de análise no plano
interno, seria a vedação de onerosidade excessiva ou
desequilíbrio contratual ou “princípio da
equivalência material”, como proposto pela
doutrina contemporânea, a exemplo, o art.413/CC,

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

que prescreve que: “Art. 413. A penalidade deve ser


reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação
principal tiver sido cumprida em parte, ou se o
montante da penalidade for manifestamente
excessivo, tendo-se em vista a natureza e a
finalidade do negócio.”
Neste último ponto, merece rememorar que
apesar de o CC/16 não ter tratado de forma tão
clara e adoção dessa medida de flexibilização e
dever, como tratado aparentemente diferente do
expresso no CC/2002, ao interpretar o revogado
art.924, do CC/1916, que previa: “quando se
cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir
proporcionalmente a pena estipulada para o caso de
mora, ou de inadimplemento”, a doutrina
majoritária já aduzia que a melhor leitura desse
artigo era no sentido de conferir efeito de
imposição àquele termo “pode”, como clara busca
de equilíbrio material e atenção à hermenêutica de
que o direito moderno devesse atender mais ao
conjunto do que às minúcias, isto é, interpretar
as normas com complexo ao invés de as examinar
isoladas, preferindo, assim, o sistema à
particularidade.
E, por fim, a conservação contratual como
regra, sendo sua extinção com o a “ultima ratio”,
conforme deduzido no Enunciado 22, I Jornada de
Direito Civil, e aceitação do adimplemento

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

substancial, nos seguintes termos: “Art. 421: a


função social do contrato, prevista no art. 421 do
novo Código Civil, constitui cláusula geral que
reforça o princípio de conservação do contrato,
assegurando trocas úteis e justas.”
Quanto à eficácia externa, vislumbra-se: a)
tutela dos direitos difusos e coletivos, conforme
Enunciado 23, I Jornada de Direito Civil; b) tutela
externa do crédito, observando-se que o contrato
também gerará efeitos perante terceiros, como
extrai-se do art.608/CC, mormente “teoria do
terceiro cúmplice”, sob o viés de coibir abuso de
direito que também viesse a ser praticado por
terceiro, rechaçando-se qualquer alegação de que
não devesse observância de boa-fé objetiva
porquanto não compusesse aquele contrato. Nessa
toado, o terceiro deve proceder consoante boa-fé
objetiva, de modo a não prejudicar as relações que
mesmo lhes forem alheias; c) princípio da força
obrigatória do contrato (“pacta sunt servanda”), em
que o contrato, embora faça lei entre as partes,
enaltece-se a mitigação ocasionada pela função
social e boa-fé objetiva; d) princípio da boa-fé
objetiva, a objetiva, como uma evolução do
conceito de boa-fé,lato sensu, em que sua análise
deixa de ser aferida no plano intencional, dado que
dificultava a sua verificação e/ou prova de sua
quebra, sendo observada mais ainda no próprio

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Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

plano da conduta e dever de lealdade das partes.


Assim, a boa-fé objetiva estaria relacionada aos
deveres anexos, laterais ou secundários do contrato,
que são os deveres inerentes a qualquer contrato,
mesmo sem necessidade de previsão expressa e que
o acompanham desde as tratativas até a posterior
extinção.
A quebra de tais deveres sugere uma
modalidade de inadimplemento e denomina-se
“violação positiva do contrato”. Nesse sentido,
Enunciado 24, I Jornada de Direito Civil:Enunciado
24 - Art. 422: “Em virtude do princípio da boa-fé,
positivado no art. 422 do novo Código Civil, a
violação dos deveres anexos constitui espécie de
inadimplemento, independentemente de culpa”.
No que pertine à boa-fé, entre suas variadas
funções, podemos citar ao menos 4 entre as mais
importantes, quais sejam, a) função de
interpretação; b) função de controle ou reativa; c)
função limitativa de direitos subjetivos; d) função de
integração.
Quanto à função de interpretação, tem-se a
subjetiva e a objetiva. A boa-fé subjetiva enquadra-
se ao plano intencional, conforme extrai-se do
art.113, do Código Civil, em que expressamente
tem-se que os negócios jurídicos devem ser
interpretados de maneira mais favorável àquele que
esteja de boa-fé.

239
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Lado outro, a boa-fé objetiva, como exposto


alhures, confere dever de agir com lealdade,
cooperação, mormente dever de agir como padrão
de conduta ético que independe de qualquer
previsão no contrato.
Quanto à sua função de controle, nos termos
do art.187, do Código Civil, em que a norma ali
existente visa coibir abuso de direito, aquele que
violar a boa-fé objetiva no exercício de um direito
comete abuso de direito. Para tanto, em regra, a sua
verificação se dá pelo critério objetivo-finalístico,
consoante responsabilidade objetiva, em que não se
perquire culpa naquela conduta. É o que sugere o
Enunciado 37, I Jornada de Direito Civil, que
prescreve: 37 – Art. 187: “A responsabilidade civil
decorrente do abuso do direito independe de culpa
e fundamenta-se somente no critério objetivo”.
Entretanto, convém ressaltar que,
excepcionalmente, a doutrina confere a adoção do
sistema de verificação da comprovação da culpa
para a incidência do abuso de direito, como cita-se
o descumprimento da função social no direito de
propriedade, nos termos do art.1.228, parágrafos 2º,
4º e 5º, do Código Civil, para então possibilitar o
reconhecimento da desapropriação privada ou
judicial.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la

240
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

do poder de quem quer que injustamente a possua


ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser
exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido
em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais,
o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das
águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao
proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e
sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 4o O proprietário também pode ser privado
da coisa se o imóvel reivindicado consistir em
extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por
mais de cinco anos, de considerável número de
pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços
considerados pelo juiz de interesse social e
econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz
fixará a justa indenização devida ao proprietário;
pago o preço, valerá a sentença como título para o
registro do imóvel em nome dos possuidores.
Quanto à sua função corretiva, referido
princípio funciona como mecanismo de correção de

241
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

desequilíbrios existentes, buscando, pois, assegurar


ou devolver o equilíbrio material na relação
contratual.
Sinaliza-se ainda a função limitativa de direitos
subjetivos, visando evitar o exercício abusivo de
direitos subjetivos, memorando que o abuso pode
ser verificado quando o mais forte tenta impor sua
força sobre o mais fraco, como lembrado por
Pontes de Miranda.
Ainda a sua função de integração, consoante a
sua função supletiva de criar deveres anexos àqueles
propriamente objeto da própria essência/cerne do
referido contrato, em que sua violação também
ensejará apuração de responsabilização civil
contratual. Nesse sentido, citamos os deveres
anexos de cooperação, de dever de mitigar os
próprios prejuízos sentidos (“duty to mitigate the loss”)
e ainda do “princípio do venire contra factum proprium”,
onde uma conduta inicial possa causar legítima
confiança na outra parte, evitando-se
comportamentos contraditórios, em que pudesse
ser gerado um dano ou potencial dano pela
contradição não-desejada.
Como institutos parcelares ou
desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva,
citamos:a) institutos de “supressio e surrectio”,
traduzindo-se, “supressão” e “surgimento”,
respectivamente. Como conhecido exemplo, cita-se

242
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

o caso em que fora convencionado um lugar para o


pagamento, mas o devedor efetua constante e
repetidamente em local diverso, situação esta não-
impugnada, e, portanto, aceita tacitamente e
consolidada, pela parte credora, onde estabiliza-se
aquela situação, ocorrendo em supressão de um
direito ao credor e implemento de um novo direito
ao devedor, que poderá continuar a efetuar o
pagamento no local em que verificou-se por
tempos, em que pese no contrato haver previsão de
local diverso.
Há ainda o instituto do “tu quoque”, em alusão
à conhecida e clássica frase histórica dita por Júlio
César, ao ser apunhalado por seu próprio filho: “Tu
quoque, Brute, fili mi?”. Traduzindo-se, teríamos: “Até
tu, Brutus, meu filho?”. Como um dos
desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva,
está também ligado à regra proibitiva do
comportamento contraditório, o “tu quoque”,
pretende impedir que, em uma dada relação jurídica,
o comportamento abusivo de uma das partes
surpreenda a outra, colocando-a em situação de
injusta desvantagem, marcado pelo ineditismo ou
pela surpresa. Como exemplo, cita-se a previsão de
cláusula contratual em que seja vedado os prazos de
favor a uma das partes, dissonando do previsto no
art.372, do Código Civil.
Ainda, como um de seus desdobramentos,

243
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

aparece a vedação de comportamentos


contraditórios, porquanto, como dito alhures, eis
que com base em um comportamento originário,
surge-se a confiança e expectativa legítima gerada na
outra parte. Em havendo um comportamento
contraditório, tais valores restam feridos, ensejando-
se possível responsabilização civil, a depender de
real ou potencial dano veridicado.
Como mencionado, ainda o instituto do “duty
to mitigate the loss”, em que por aplicação de tal
máxima, criada pelo direito americano, espera-se a
atenuação dos prejuízos sentidos pela atuação da
própria vítima de um acontecimento. Tem-se
verdadeira explanação do dever de lealdade e
cooperação. Isso porque a inércia deliberada da
vítima poderia vir a majorar e/ou agravar prejuízos
a si mesmo e que não teria relação maciça e tão
direta com aquele causador. Assim, referido
comportamento leal, probo e cooperador merece
ser exigível como forma de mitigação de danos e
prejuízos para ambos os lados, na medida em que
ambos deixariam de perder em maior proporção e
evitando-se um aproveitamento voluntário que
pudesse dar azo à verificação de um enriquecimento
sem causa.
E ainda aplicação do “exceptio doli” ou “exceção
do contrato não-cumprido”, previsto expressamente
no art.476, do Código Civil, que atesta que, nos

244
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes


de cumprida a sua obrigação, pode exigir o
implemento da do outro, em que aquele demandado
alega em seu favor. Assim, aquele demandado,
visando a não-extinção do contrato, pode alegar em
sua defesa que aquela parte que deseja a extinção e
sua penalização, também não cumprira a sua
obrigação na relação.
Por oportuno, mister diferenciá-lo de 2 outros
institutos que possa guardar correspondência, mas
diferem-se.
A “exceção de inseguridade” traduz-se pela
situação em que a conduta de uma das partes de um
negócio jurídico submete a risco a fiel execução do
avençado, ocasião em que a parte inocente poderá
desde logo suspender o cumprimento de sua
prestação. Tal situação extrai-se do previsto no art.
477, do Código Civil, que assim prescreve: “Se,
depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das
partes contratantes diminuição em seu patrimônio
capaz de comprometer ou tornar duvidosa a
prestação pela qual se obrigou, pode a outra
recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que
aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia
bastante de satisfazê-la”.
Com efeito, o Enunciado 438, V Jornada de
Direito Civil, propõe: Art. 478: “A revisão do
contrato por onerosidade excessiva fundada no

245
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Código Civil deve levar em conta a natureza do


objeto do contrato. Nas relações empresariais,
observar-se-á a sofisticação dos contratantes e a
alocação de riscos por eles assumidas com o
contrato”. Assim, a “exceção de inseguridade”,
prevista no artigo 477, também pode ser oposta à
parte cuja conduta põe manifestamente em risco a
execução do programa contratual.
Verifica-se, pois, uma decorrência da boa-fé,
pois não é dado a quem põe em perigo o pactuado
ignorar a repercussão da própria conduta, para
exigir o adimplemento alheio. Isso porque o direito
privado não confere espaço para que os
contratantes adotem critérios distintos para julgar
e julgar-se, como bem pontuado por Cristiano de
Souza Zanetti.
Assim, observa-se que para a caracterização
da “exceção de inseguridade” basta a existência de
mero risco ao descumprimento, advindo por meio
de uma conduta qualquer da outra parte de um
negócio jurídico.
Tampouco pode-se confundir a figura aqui
tratada com a “exceptio non rite adimpleti contractus”,
onde depois de já concluído o contrato, caso
sobrevenha diminuição patrimonial a alguma das
partes, que seja capaz de comprometer ou tornar
duvidosa a honra de sua prestação a qual se
obrigou, poderá a outra parte recusar-se à prestação

246
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

que lhe incumbe, até que o primeiro satisfaça a sua


ou dê garantia para satisfazê-la. Em suma, a
“exceção do contrato não-cumprido”, está
relacionada ao seu efetivo descumprimento. Por sua
vez, a “exceção de inseguridade”, prevista no
art.477, do Código Civil, caracteriza-se pela mera
situação de um risco no descumprimento do
contrato. E, por fim, a “exceptio non rite adimpleti
contractus”, caracteriza-se pela diminuição
patrimonial que possa repercutir e ocasionar o não
cumprimento, diferenciando-se, ainda, da situação
de “inadimplemento antecipado”, onde, verifica-se
o risco como real, já existente e efetivo,
diferenciando-se da mera possibilidade, próxima ou
não tão-próxima.

Considerações finais

Pelo exposto, verifica-se que o fluxo das


relações humanas ao longo dos tempos
apresentadas oportunizou as mudanças nos tratos
sociais. Em linhas gerais, tivemos passagem da era
em que marcada pela inexistência de um ente
normatizador e regulador das relações civis; muito
depois, sentiu-se necessidade da configuração do
estado, sob a constituição de um modelo de
“contrato social”.

247
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Ainda assim, nos primórdios, a formação de


contratos contava com bases individualistas, sendo
o ponto central a valorização de uma visão
patrimonialista, marcado pela adoção do liberalismo
econômico, em meados dos séculos XIX e XX,
com pouca expressividade ou nenhuma atuação do
estado voltado a coibir abusos, onde a parte mais
forte da relação teria maior poder de arbitrar
cláusulas e a parte mais fraca, de submissão.
Posteriormente, com o fortalecimento dos
direitos e garantias fundamentais, já vivenciados em
sua terceira dimensão, voltando-se a conceitos de
solidariedade e valores coletivos e difusos, após o
movimento neoconstitucionalista e também pelas
influências de direito comparado e modelo estatal
liberal mas com atuação e intervenção autorizadas,
gradativamente observou-se a necessidade de
“constitucionalizar e repersonalizar” o direito civil,
provocando-se sua despatrimonialização, passando
a pessoa humana a ser o centro de imputação
jurídica.
Assim, a reverência aos novos princípios e
valores constitucionais previstos na CF/88,
promulgação de um código específico para contrato
de base consumerista e com a codificação de um
novo modelo já inaugurado por aquela Constituição
e reforçado no novo Código Civil de 2002, dada a
previsão e exigência da boa-fé objetiva em todas as

248
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

fases contratuais e a introdução e aplicação de


institutos de direito comparado, mormente sistema
da “common law”, permitiram uma maior abertura do
ordenamento civil, contrapondo-se ao
engessamento.Desta feita, verifica-se a característica
de sistema aberto, dinâmico e que envolve a
integração simultânea de fato, valor e norma, como
idealizado por Miguel Reale.
Feitas tais considerações, importa aduzir que o
contrato, na sua perspectiva atual, deve ser guiado e
formado por padrões mínimos de razoabilidade que
remetem à boa-fé objetiva, ao equilíbrio material
entre as prestações e à vedação do abuso de direito.
Nesses termos, quanto maior mostrar-se a
desigualdade entre aquelas partes contratantes, mais
necessária e intensa deverá ser a proteção conferida
àquela parte mais fraca da relação, e, por
conseguinte, menor e menos intensa a autonomia
da vontade, dada a interferência estatal.
Assim, a funcionalização dos contratos civis
bem como a constitucionalização do direito civil são
verificadas porquanto inserção da função social,
como princípio constitucional, a restar observado
nas relações civis e assim extirpar aquele conceito
inicial e defasado de cunho “individual” e
“patrimonialista” que incorporou-se ao Código Civil
de 1916.
Por sua vez, a constitucionalização, sugere que

249
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

a leitura e aplicação da norma perfaça-se, a priori,


em vistas ao contido e perquirido pela Constituição
Federal, visando a coletividade, bem-comum e
interpretação conforme àquela, dada a sua
superioridade no ordenamento, observando-se, para
tanto, critérios hermenêuticos de interpretação e
tratamento, mormente utilização da conhecida
pirâmide de Hans Kelsen.
Com efeito, consoante a análise de todos esses
institutos e desdobramentos dos escopos da
socialidade, eticidade e operabilidade marcaram uma
nova estrutura normativa, com vistas à
implementação de um novo modelo que
acompanhasse a nova realidade social, mormente
eficácia e efetividade da norma jurídica produzida.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Olney Queiroz; Kumpel, Vitor Frederico; Serafim,


Antonio de Pádua; Assis, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz, Noções
gerais de direito e formação humanística, 1ª ed., 4ª tiragem,
São Paulo, Editora Saraiva, 2014.
BRAGA NETTO, Felipe Peixoto, Manual de direito do
consumidor, 10ª ed., Salvador, Editora Juspodivm, 2015.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO,
Rodolfo, Novo curso de direito civil 4, contratos: teoria geral
- tomo I, 8ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 2012.
GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito das obrigações
– parte especial contratos, 13ª ed., São Paulo, Editora Saraiva,

250
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

2011.
TARTUCE, Flávio, Manual de direito civil – vol. único,
5ª ed., São Paulo, Editora Método, 2015.

DA APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA NA IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA

Perpetua do Socorro Carvalho Neta

Bacharela em Direito pelo Instituto Camillo Filho.


Pós- graduanda em Direito Tributário pelo Instituto
de Estudos Empresariais. Advogada. E-mail:
perpetua_neta@hotmail.com

RESUMO

A lei de Improbidade Administrativa surgiu como


uma forma de punir os agentes públicos que
ofendessem a moralidade administrativa e,
atualmente, tem cumprido a sua função, protegendo
de forma ampla e irrestrita o patrimônio público.
Este trabalho propõe-se a analisar a lei de
Improbidade, com enfoque na aplicabilidade do
princípio da insignificância, também denominado

251
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

de princípio da bagatela, aos atos de Improbidade,


fazendo-se um comparativo com o Direito Penal e,
ao mesmo tempo, sopesando com os princípios da
Administração Pública. Nesse sentido, uma corrente
majoritária e mais conservadora tem negado a
aplicação do princípio da bagatela à lei 8429/1992,
em razão do princípio da indisponibilidade do
interesse público, mas alguns julgados defendem
essa aplicação, em face do princípio da
proporcionalidade. Ressalta-se que a doutrina pouco
aprofundou- se nesse estudo e a jurisprudência tem
feito uma verdadeira ponderação de princípios
basilares no Direito Administrativo.
Palavras-chave: Lei de Improbidade Administrativa.
Princípios da Administração Pública. Direito Penal.
Princípio da Insignificância.

ABSTRACT

The Administrative Misconduct Law emerged as a


way to punish public officials who offend
administrative morality and currently has fulfilled its
job, protecting wide and unrestricted way the public
property. This work sets out to analyze the
Administrative Misconduct Law, focusing on the
applicability of the principle of insignificance, also
called the principle of trifle, to the acts of

252
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

improbity, by making a comparison with the


criminal law, and weighing with the principles of
public administration. In this sense, a more
conservative majority and current has denied the
application of the principle of the trifle to the law
8429/1992, due to the unavailability of the principle
of public interest, but some judicial deffended this
application, in view of the principle of
proportionality. It is noteworthy that the doctrine is
not very deepened in this study, and the
jurisprudence has made a real consideration of basic
principles in administrative law.
Key words: Administrative Law. Public
Administration Principles. Criminal Law.
InsiginificancePrinciple.

1. INTRODUÇÃO

Inquestionavelmente, o Brasil é um país


famoso pelas riquezas naturais e por seu grande
potencial de desenvolvimento. O que é indagado
por alguns historiadores e estudiosos é o porquê de
um país com tanto potencial ainda está classificado
como país “em desenvolvimento” ou
“subdesenvolvido”.
A resposta para tal questionamento, por
vezes, recai no “jeitinho brasileiro” que, em suma,

253
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

significa corrupção, desonestidade e má-fé. Assim,


furar a fila de um banco, estacionar em um local
proibido ou usar um papel timbrado público para
fins particulares são exemplos do “jeitinho
brasileiro” que está relacionado à improbidade
administrativa, termo técnico para conceituar o que
muitos denominam de corrupção administrativa.
A Constituição Federal prevê a Improbidade
no artigo 37, § 4º, porém tal norma é de eficácia
limitada, cuja regulamentação ocorreu em 1992 com
a lei 8.429 que definiu a improbidade administrativa
de forma genérica, com condutas exemplificativas,
classificados em três tipos de atos: aqueles que
importam enriquecimento ilícito, os que causam
prejuízo ao erário e aqueles que atentam contra os
princípios da administração pública.
A presente pesquisa busca verificar a
aplicabilidade do Princípio da Insignificância na
Improbidade. Esse ocorre quando uma pessoa
pratica uma ação tipificada como crime, mas esta
conduta é irrelevante, ou seja, não causa lesão à
sociedade, à vítima ou ao ordenamento jurídico,
desse modo, exclui-se a tipicidade do fato diante da
insignificância da conduta. Tal princípio é
amplamente discutido no Direito Penal, visto que
esse não cuida de bagatelas, assim, não há de se falar
em tipicidade material se a lesão é imperceptível
devido a sua insignificância e irrelevância social.

254
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Tomando-se por base a Lei 8.429, os recentes


entendimentos dos tribunais e a doutrina pátria, este
artigo intenciona analisar a aplicabilidade do
Princípio da Insignificância nos atos de
improbidade, pois num país com um verdadeiro
histórico de corrupção, a lei supracitada e a
Constituição Federal de 1998 inovaram ao
estabelecer a moralidade como princípio a ser
seguido pelo agente público, conforme percebe- se
no artigo 37, caput da Carta Magna.
Nesse contexto, é de salutar relevância este
estudo, já que o Brasil é um país onde a corrupção é
quase costume, a punição de agentes públicos
desonestos tem ganhado destaque na imprensa e a
própria sociedade, hodiernamente, tem discutido e
se manifestado sobre a fundamental importância da
moralidade nos três poderes: Executivo, Legislativo
e Judiciário.
Num cenário de descrédito dos cidadãos
brasileiros em relação à punição dos agentes
ímprobos, busca-se verificar a possibilidade de
aplicação das penas previstas na lei 8.429/1992 para
que cumpra suas funções preventiva e repressiva,
punindo os agentes ímprobos com base no
Princípio da Razoabilidade ao exercerem condutas
lesivas à Administração Pública.
Por outro lado, procurar-se-á analisar a
efetiva lesão à Administração Pública ao se realizar

255
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

condutas em desacordo com a lei de improbidade,


verificando se realmente há lesão e também a
possibilidade ou não da aplicação do Princípio da
Insignificância, frequentemente usado pelos
Penalistas, aos atos de improbidade causados pelos
agentes públicos.
Nesse sentido, os principais questionamentos
desse trabalho são: pequenas irregularidades
poderiam caracterizar improbidade na modalidade
de violação aos princípios da administração pública?
É possível relativizar quando se trata de
improbidade?
As correntes dividem-se: conforme a corrente
progressista, observada na jurisprudência do Rio
Grande do Sul, é possível sua aplicação por analogia
ao Direito Penal. Por outro lado, a corrente
conservadora entende que é impossível em razão da
indisponibilidade do bem jurídico tutelado, qual
seja, a moralidade administrativa, que não admite
relativizações. 50

2. PRINCÍPIO DA MORALIDADE

50 GOMES, Luiz Flávio. O princípio da insignificância é aplicável aos


atos de improbidade
administrativa<http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/248704/principio-da-
insignificancia-e-aplicavel-aos-atos-de-improbidade-administrativa>.
Acesso em 27 out, 2014.

256
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

O princípio da moralidade é pressuposto de


validade de todo ato da Administração Pública.
Segundo Hauriou, sistematizador de tal conceito,
não se trata da moral comum, mas sim de uma
moral jurídica, entendida como um conjunto de
regras de conduta tiradas da disciplina interior da
Administração.51
Para Hauriou, o Estado não é um fim em si
mesmo e sim um meio utilizado em prol do
interesse geral, ou seja, o bom administrador deve
agir dentro do interesse público. A moral
administrativa difere da moral comum, pois na
primeira o homem direciona a sua conduta interna
baseada na função administrativa, já na segunda
direciona a sua conduta externa, distinguindo o bem
e o mal.
Entretanto, alguns pensadores criticam o
entendimento de Hauriou:

Marcel Waline critica a posição de


Hauriou, concluindo que a violação
da moralidade administrativa
permite sancionar as violações ao
espírito da lei que respeitem a letra
desta; mas, em verdade, a violação
ao espírito da lei ainda é violação à

51 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24 ed. São


Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 83.

257
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

lei, logo, o desvio de poder advindo


de um ato imoral também é uma
forma de ilegalidade.52

Georges Vedel afirma que a doutrina de


Hauriou não é absoluta, defendendo que o desvio
de poder deve ser analisado como uma variação da
ilegalidade, situando-se na violação da lei que
imponha ao agente a obrigação de perseguir um
objetivo determinado com exclusão de todos os
outros.53
Após o estudo da moral segundo alguns
pensadores, passa-se a analisar a moralidade
administrativa, cujo principal ponto é o agir dos
administradores públicos considerando os valores
basilares do ordenamento jurídico, atendendo aos
interesses da coletividade, ainda que estes sejam
diferentes do seu interesse pessoal.
O Princípio da Moralidade Administrativa
conduz o gestor a agir de forma ética, proba e
honesta. O administrador deve tratar não apenas o
dinheiro público, mas também todos os demais
bens públicos como se seus fossem, ou seja, sem
excesso de gastos.

52 GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade


Administrativa. Prefaciado por José dos Santos Carvalho Filho. 4. Ed. Rio
de Janeiro. Lumen Juris, 2008, p.74-75
53 GARCIA; ALVES, opcit, p.76

258
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Destarte, é um princípio previsto no texto


constitucional e orientador da Lei 8.429/1992 que
reforça a ideia do homem público agir com
honestidade, retidão, honra e ética. Assim sendo, é
um verdadeiro critério geral definidor da
improbidade administrativa, pois a lei tem como
base a obrigatoriedade de um comportamento ético
por parte do agente público.
Sendo a moralidade administrativa o principal
vetor da lei 8.429/92, é evidente a aplicação de tal
princípio no art. 12 que trata dos atos que violam os
princípios da Administração. Desse modo, ainda
que algumas condutas que não possuam sanções
penais ou civis por não causarem prejuízo à
Administração Pública poderiam, eventualmente,
ser enquadradas na lei da Improbidade, por
violarem os princípios da Administração Pública,
em especial o Princípio da Moralidade. É o que se
vê na jurisprudência abaixo colacionada:
REEXAME NECEESÁRIO E
APELAÇÃO CÍVEL -
CONSTITUCIONAL -
ADMINISTRATIVO - AÇÃO
CIVIL PÚBLICA POR
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA -
ADMISSÃO DE SERVIDORES
SEM CONCURSO PÚBLICO -
ART. 11 DA LEI N.º 8.429/92 -
OFENSA AOS PRINCÍPIOS

259
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

DA LEGALIDADE E DA
MORALIDADE - FIXAÇÃO
DAS SANÇÕES -
PROPORCIONALIDADE -
PROCEDÊNCIA DO PEDIDO
DE CONDENAÇÃO AO
PAGAMENTO DE MULTA.
1. Por se revelar incontroverso que
o ex-Prefeito Municipal contratou e
manteve nos quadros da
Administração Pública municipal
diversos servidores, sem a prévia
realização do concurso público (CR,
art. 37, inc. II) e sem que fossem
observados o requisito e o prazo
para a contratação temporária
estabelecido na lei local, resta
configurada a prática de ato de
improbidade administrativa, por
violação aos princípios da legalidade
e da moralidade.
2. Nos termos do parágrafo único
do art. 12 da Lei n.º 8.429/92, a
fixação das sanções deve observar a
extensão da lesão causada e o
proveito patrimonial do agente,
revelando-se desproporcionais no
caso concreto as penas disciplinares
(perda da função pública e
suspensão dos direitos políticos), as
proibitivas de contratação e
vedatórias de recebimento de
benefícios fiscais, já que o ato ilegal

260
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

provocou danos à moralidade


administrativa, mas não diretamente
ao erário.
3. Reexame necessário reconhecido
de ofício e sentença reformada
parcialmente. V.V.P: 1. Não há falar
em aplicação analógica do art. 19 da
Lei n.º 4.717/65 à ação civil pública,
seja porque a Lei n.º 7.347/85,
diploma editado posteriormente
àquele primeiro, previu unicamente
a aplicação subsidiária dos
dispositivos do Código de Processo
Civil, em virtude de a admissão do
reexame necessário com fulcro na
Lei de Ação Popular não se
coadunar com os princípios da
igualdade, da efetividade, da
celeridade e da economia, que
orientam o moderno processo civil.
V.V.P: A mera contratação irregular
de pessoal, ainda que sem concurso
público, não denota culpa ou do lo
por parte do agente, ou mesmo a
ma-fé que revele um
comportamento desonesto, não se
podendo afirmar que a contratação
se deu com o objetivo único de
angariar votos, não havendo a
comprovação desse elemento
subjetivo, da ocorrência de
enriquecimento ilícito ou mesmo de
prejuízos ao erário, tendo a

261
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

municipalidade, de certa forma, se


beneficiado com a contratação,
através dos serviços que lhe foram
prestados, mediante contraprestação
salarial. Tomar a simples violação
dos princípios norteadores da
Administração Pública como ato de
improbidade viola o princípio da
razoabilidade, ressaltando-se neste
aspecto não se está admitindo ou
defendendo a prática de atos
irregulares, mas apenas restou
reconhecido que o ato praticado não
se configura ímprobo a ensejar a
aplicabilidade das penalidades
previstas na Lei nº 8.429/92.54

Por fim, vale destacar que jurisprudência pátria


firmou-se no sentido de que a lesão aos princípios
administrativos é suficiente para caracterizar os atos
de improbidade, ou seja, independe da ocorrência
de dano ou lesão ao erário público. Daí porque a
indubitável força normativa dos princípios na Lei de
Improbidade Administrativa – LIA , conforme se
percebe abaixo:
ADMINISTRATIVO.

54 BRASIL. Tribunal de Justiça – Minas Gerais. Apelação Cível


10313072114173002, Relator: Edgard Penna Amorim, Data de Julgamento:
22/05/2014, Câmaras Cíveis / 8ª câmara cível, Data de publicação:
02/06/2014.

262
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

PROCESSUAL CIVIL.
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. LEI
8.429/92, ART. 11, VI. ATOS
QUE ATENTAM CONTRA OS
PRINCÍPIOS DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
DESNECESSIDADE DE
OCORRÊNCIA DE PREJUÍZO
AO ERÁRIO.
I -Os atos que atentam contra os
princípios da Administração
Pública são condutas ímprobas
previstas no art. 11 da Lei
8.429/92 e independem de
demonstração de dano aos cofres
públicos ou enriquecimento
ilícito.
II - Deixar de prestar contas quando
esteja obrigado a fazê-lo constitui
ato violador dos deveres de
honestidade, imparcialidade,
legalidade e de lealdade do servidor,
que lesam a moralidade
administrativa, enquadrando-se na
hipótese de improbidade tipificada
no inc. VI do art. 11 da Lei
8.429/92.
III - Como não houve comprovação
de dano aos cofres públicos ou
enriquecimento ilícito, o quantum
da multa civil deve ser reduzido.

263
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

IV - Apelo provido em parte apenas


para reduzir a multa civil.55
ADMINISTRATIVO.
IMPROBIDADE. LEI 9.429/92,
ART. 11. DESNECESSIDADE
DE OCORRÊNCIA DE
PREJUÍZO AO ERÁRIO.
EXIGÊNCIA DE CONDUTA
DOLOSA.
1. A classificação dos atos de
improbidade administrativa em atos
que importam enriquecimento ilícito
(art. 9º), atos que causam prejuízo
ao erário (art. 10) e atos que atentam
contra os princípios da
Administração Pública (art. 11)
evidencia não ser o dano aos
cofres públicos elemento
essencial das condutas ímprobas
descritas nos incisos dos arts. 9º
e 11 da Lei 9.429/92. Reforçam a
assertiva as normas constantes dos
arts. 7º, 12, I e III, e 21, I, da citada
Lei.
2. Tanto a doutrina quanto a
jurisprudência do STJ associam a
improbidade administrativa à noção
de desonestidade, de má-fé do

55 BRASIL, Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível 20051


BA 2003.33.00.020051-9, Relator: Desembargador Federal Cândido
Ribeiro, Data de Julgamento: 03/11/2009, TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: 27/11/2009 e-DJF1 p.62.

264
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

agente público. Somente em


hipóteses excepcionais, por força de
inequívoca disposição legal, é que se
admite a configuração de
improbidade por ato culposo (Lei
8.429/92, art. 10). O
enquadramento nas previsões dos
arts. 9º e 11 da Lei de Improbidade,
portanto, não pode prescindir do
reconhecimento de conduta dolosa.
3. Recurso especial provido56

3. PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE
DO INTERESSE PÚBLICO

Para um melhor entendimento acerca da


aplicação do princípio da bagatela na improbidade,
cumpre destacar um princípio decisivo
principalmente para os mais conservadores: o
princípio da indisponibilidade do interesse público.
Este princípio prevê que a Administração
Pública não é titular do interesse público, mas sim o
Estado, que o manifesta por meio do Poder
Legislativo. Dele decorre a inalienabilidade e

56 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 604151 RS


2003/0196512-5, Relator: Ministro JOSÉ DELGADO, Data de
Julgamento: 25/04/2006, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação:
08.06.2006 p. 121.

265
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

impenhorabilidade dos bens públicos e a


subordinação da Administração à lei e aos atos
normativos que ela mesma edita.
O agente público, portanto, não pode dispor
livremente do interesse público, pois na sua atuação
não representa seus próprios interesses e sim os
interesses de toda a coletividade, por isso deve agir
segundo os estritos limites impostos pela lei.

4. PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE

No sistema jurídico brasileiro, a


proporcionalidade tem sido largamente utilizada e
tal conceito é consequência do próprio Estado
Democrático de Direito e da necessidade de
efetivação dos princípios constitucionais. Tal
princípio também é utilizado por alguns
doutrinadores para justificarem a aplicação da
bagatela na improbidade.
A ideia de proporcionalidade implica na
proibição do excesso, de condutas desarrazoadas e
exorbitantes57. É o que se depreende do
entendimento de Emerson Garcia:

57 FILHO, Marino Pazzaglini. Lei de improbidade administrativa


comentada. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41.

266
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Proporcionalidade, assim, além da ideia de


equilíbrio inerente à sua etimologia, é princípio de
defesa da ordem jurídica, restringindo o arbítrio e
preservando a legitimidade da normatização estatal58
No âmbito da improbidade administrativa tal
princípio tem sido aplicado pelos Tribunais
Superiores ao dosar as sanções impostas pela Lei
8.429/1992, conforme jurisprudência colacionada
abaixo:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO


POR ATOS DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA -
LICITAÇÃO -
IRREGULARIDADES -
FAVORECIMENTO INDEVIDO
E DIRECIONAMENTO DO
OBJETO LICITADO -
SUPERFATURAMENTO DAS
PROPOSTAS - INEXECUÇÃO
PARCIAL DAS OBRAS
LICITADAS - PRESENÇA DE
DOLO - IMPROBIDADE
CONFIGURADA (ART. 10, XII,
E ART. 11, AMBOS DA LEI
8.429/92)- APLICAÇÃO DAS
SANÇÕES - RAZOABILIDADE
E PROPORCIONALIDADE.

58 GARCIA; ALVES, opcit, p.95.

267
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Configura ato de improbidade


administrativa que causa lesão ao
erário, além de atentar contra
princípios da Administração
Pública, o direcionamento de
procedimentos licitatórios em favor
de uma mesma empresa licitante,
somado ao comprovado
superfaturamento das obras licitadas
e à parcial inexecução destas (art. 10,
inciso XII, e art. 11 da Lei
8.429/92). Na aplicação das sanções
previstas no art. 12 da Lei 8.429/92,
o Julgador deverá levar em conta a
extensão do dano causado, assim
como o proveito patrimonial obtido
pelo agente, em respeito aos
princípios da razoabilidade,
proporcionalidade e adequação na
interpretação e aplicação do
dispositivo.59
Percebe-se, portanto, que não se pode punir
além do que permite o bom direito. Cabe ao juiz –
aplicador do direito - dosar as sanções de acordo
com a natureza, gravidade e consequências do ato
administrativo ímprobo. É imprescindível a
indicação das razões para a aplicação de cada uma

59 BRASIL. Tribunal de Justiça – Minas Gerais. Apelação Cível


10647040469676004, Relator: Geraldo Augusto, Data de Julgamento:
11/02/2014, Câmaras Cíveis / 1ª Câmara Cível, Data de Publicação:
19/02/2014.

268
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

das sanções, levando em consideração os princípios


da proporcionalidade e da razoabilidade.
Desse modo, a proporcionalidade deve ser
observada em todos os ramos do Direito,
principalmente no Direito Administrativo, ainda
que este ramo vise à proteção dos interesses
coletivos. Insta salientar, nesse sentido, que a lei
9784/ prevê tal princípio.
Enfim, é preciso moderação para não
desestimular os administradores públicos zelosos e
preocupados e atingir apenas os que ferem o
sentimento de moralidade administrativa.

5. UM COMPARATIVO COM DIREITO


PENAL

Inicialmente, salienta-se que o Supremo


Tribunal Federal pacificou o entendimento de que
são quatro os critérios para a aplicação do princípio
da insignificância no âmbito penal, quais sejam:
mínima ofensividade da conduta do agente,
nenhuma periculosidade social da ação, reduzíssimo
grau de reprovabilidade do comportamento e
inexpressividade da lesão jurídica provocada. Tais
critérios são frutos da lição do Ministro Celso de
Mello, no Habeas Corpus n° 84.412/SP, o qual

269
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

serviu de parâmetro para diversas decisões do


Superior Tribunal de Justiça.
Assim, não resta dúvida quanto à aplicação do
princípio da bagatela no âmbito penal, uma vez que
exclui a tipicidade de comportamentos penalmente
irrelevantes, ou seja, que ofendam de modo
insignificante os objetos tutelados pela norma penal.
O Direito Penal é um direito mínimo, que
deve ser aplicado às condutas mais repreensíveis e
não a qualquer conduta indesejada. Tal característica
está intimamente ligada os princípios norteadores
do Direito Penal, como os princípios da intervenção
mínima, da subsidiariedade e da fragmentariedade,
pois o Estado só deve intervir, restringindo direitos
ou privando a liberdade, quando bens jurídicos
importantes são atacados. Além disso, o direito
Penal tem um caráter subsidiário em relação aos
demais ramos do Direito.
Dos princípios supracitados decorre, ainda, o
princípio da ofensividade, segundo o qual é
necessária a efetiva lesão ou ameaça de lesão ao
bem jurídico para que haja punição. Portanto, tais
princípios são verdadeiros limites ao direito de
punir concedido pelos cidadãos ao Estado, por isso,
nada mais razoável do que aplicá-los juntamente
com o princípio da bagatela no âmbito penal.

270
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Mas, e na seara administrativa? É possível a


aplicação da insignificância por analogia ao direito
Penal?
É o que se verá nas jurisprudências e
entendimentos colacionados a seguir.

6. A DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL

Um caso que teve grande repercussão à


respeito da aplicabilidade da insignificância nos atos
de improbidade trata-se de uma ação de
improbidade na qual o Chefe de Gabinete da
Prefeitura de Vacaria/RS foi acusado pelo
Ministério Público Estadual - MPE de utilizar
veículo municipal e três servidores da Guarda
Municipal para transportar bens particulares. Para o
MPE, a conduta do agente público violou a Lei
8.429/1992, em razão disso foi interposta a ação em
comento, buscando a aplicação das sanções legais.
Na defesa, o réu sustentou que o prejuízo ao erário
decorrente do fato foi mínimo (R$ 8,47), pedindo,
assim, a improcedência da ação movida contra ele.
Na primeira instância, o agente público foi
condenado à pena de multa de R$ 1.500,00 pelo ato
ilícito cometido, sem a condenação às demais
sanções previstas na lei. Porém, na decisão do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, corte

271
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

marcada por suas decisões inovadoras e


progressistas, houve a aplicação do princípio da
bagatela no caso concreto, entendendo-se que a
quantia irrisória de oito reais e quarenta e sete
centavos que movimentou todo o aparato judiciário,
desde o inquérito civil até a propositura da ação
civil pública, poderia resultar no máximo em multa
do mesmo porte, suscitando desproporcional
sanção, também irrelevante.
O princípio da insignificância que possui
estreita incidência no direito Penal tem como
atípicas ações e/ou omissões que de modo ínfimo
afetem o bem jurídico tutelado. Tanto na esfera
penal quanto na esfera administrativa, o aplicador
do direito deve aplicar a norma fundado na
proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de
decisões arbitrárias e injustas.
Percebe-se, assim, que o Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul é favorável à aplicação do
princípio da insignificância aos atos de improbidade
administrativa. É o que se vê na seguinte ementa:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA.
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. DANO
IRRELEVANTE. APLICAÇÃO
DO PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. A prosaica
importância de oito reais e quarenta

272
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

e sete centavos que ensejou toda a


movimentação do aparato judiciário,
desde o inquérito civil até a
propositura da ação civil pública,
culminando em desproporcional
sanção, poderia ensejar, quando
muito, multa do mesmo porte,
também por isso irrelevante. O
princípio da insignificância cunhado
pelos penalistas, têm como atípicas
ações ou omissões que de modo
ínfimo afetem o bem jurídico
tutelado. Na verdade, tanto na
esfera penal quanto tratando-se de
ato ímprobo, a incidência
indiscriminada da norma, sem que
tenha o julgador a noção da
proporcionalidade e da
razoabilidade, importa materializar a
opressão e a injustiça. Por isso,
condutas que do ponto de vista
formal se amoldam ao tipo não
devem ensejar punição, quando de
nenhuma relevância material. O
princípio da insignificância dá
solução a situações de iniquidade na
medida em que “descriminaliza”
condutas que embora formalmente
típicas, não atingem o bem jurídico
protegido ou o atingem de modo
irrelevante. Apelo provido.60

60 BRASIL. Tribunal de Justiça – Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº

273
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Inconformado com o acórdão do tribunal de


justiça gaúcho, o Ministério Público local interpôs
recurso especial. No julgamento, o Superior
Tribunal de Justiça - STJ deu provimento ao
recurso, restabelecendo a sentença de primeiro grau,
baseando-se na ideia de que o princípio da
insignificância não pode ser utilizado para afastar a
aplicação da Lei de Improbidade, conforme se
observa na ementa do acórdão abaixo transcrito:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO


CIVIL PÚBLICA. PRINCÍPIO DA
MORALIDADE
ADMINISTRATIVA.
IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. MERA
IRREGULARIDADE
ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA.
DISTINÇÃO ENTRE JUÍZO DE
IMPROBIDADE DA CONDUTA
E JUÍZO DE DOSIMETRIA DA
SANÇÃO. 1. Hipótese em que o
Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul ajuizou Ação
Civil Pública contra o Chefe de
Gabinete do Município de

70012886412, 21ª Câmara Cível, Relator: Genaro José Baroni Borges,


julgado em 08/02/2006.

274
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Vacaria/RS, por ter utilizado veículo


de propriedade municipal e força de
trabalho de três membros da
Guarda Municipal para transportar
utensílios e bens particulares. 2. Não
se deve trivializar a Lei da
Improbidade Administrativa, seja
porque a severidade das punições
nela previstas recomenda cautela e
equilíbrio na sua aplicação, seja
porque os remédios jurídicos para as
desconformidades entre o ideal e o
real da Administração brasileira não
se resumem às sanções impostas ao
administrador, tanto mais quando
nosso ordenamento atribui ao juiz,
pela ferramenta da Ação Civil
Pública, amplos e genéricos poderes
de editar provimentos
mandamentais de regularização do
funcionamento das atividades do
Estado. 3. A implementação judicial
da Lei da Improbidade
Administrativa segue uma espécie
de silogismo concretizado em dois
momentos, distintos e consecutivos,
da sentença ou acórdão que deságua
no dispositivo final de condenação:
o juízo de improbidade da conduta
(= premissa maior) e o juízo de
dosimetria da sanção (= premissa
menor). 4. Para que o defeito de
uma conduta seja considerado mera
irregularidade administrativa, exige-

275
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

se valoração nos planos quantitativo


e qualitativo, com atenção especial
para os bens jurídicos tutelados pela
Constituição, pela Lei da
Improbidade Administrativa, pela
Lei das Licitações, pela Lei da
Responsabilidade Fiscal e por outras
normas aplicáveis à espécie. Trata-se
de exame que deve ser minucioso,
sob pena de transmudar-se a
irregularidade administrativa banal
ou trivial, noção que legitimamente
suaviza a severidade da Lei da
Improbidade Administrativa, em
senha para a impunidade, business
as usual. 5. Nem toda irregularidade
administrativa caracteriza
improbidade, nem se confunde o
administrador inábil com o
administrador ímprobo. Contudo,
se o juiz, mesmo que
implicitamente, declara ou insinua
ser ímproba a conduta do agente, ou
reconhece violação aos bens e
valores protegidos pela Lei da
Improbidade Administrativa (=
juízo de improbidade da conduta), já
não lhe é facultado sob o influxo do
princípio da insignificância,
mormente se por "insignificância"
se entender somente o impacto
monetário direto da conduta nos
cofres públicos – evitar o juízo de
dosimetria da sanção, pois seria o

276
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

mesmo que, por inteiro, excluir (e


não apenas dosar) as penas
legalmente previstas. 6. Iniquidade é
tanto punir como improbidade,
quando desnecessário (por
atipicidade, p. ex.) ou além do
necessário (= iniquidade individual),
como absolver comportamento
social e legalmente reprovado (=
iniquidade coletiva), incompatível
com o março constitucional e a
legislação que consagram e
garantem os princípios estruturantes
da boa administração. 7. O juiz, na
medida da reprimenda (= juízo de
dosimetria da sanção), deve levar
em conta a gravidade, ou não, da
conduta do agente, sob o manto dos
princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, que têm
necessária e ampla incidência no
campo da Lei da Improbidade
Administrativa. 8. Como o seu
próprio nomen iuris indica, a Lei
8.429/92 tem na moralidade
administrativa o bem jurídico
protegido por excelência, valor
abstrato e intangível, nem sempre
reduzido ou reduzível à moeda
corrente. 9. A conduta ímproba não
é apenas aquela que causa dano
financeiro ao Erário. Se assim fosse,
a Lei da Improbidade
Administrativa se resumiria ao art.

277
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

10, emparedados e esvaziados de


sentido, por essa ótica, os arts. 9 e
11. Logo, sobretudo no campo dos
princípios administrativos, não há
como aplicar a lei com calculadora
na mão, tudo expressando, ou
querendo expressar, na forma de
reais e centavos. 10. A insatisfação
dos eminentes julgadores do
Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul com o resultado do juízo de
dosimetria da sanção, efetuado pela
sentença, levou-os, em momento
inoportuno (isto é, após eles
mesmos reconhecerem
implicitamente a improbidade), a
invalidar ou tornar sem efeito o
próprio juízo de improbidade da
conduta, um equívoco nos planos
técnico, lógico e jurídico. 11. A
Quinta Turma do STJ, em relação a
crime de responsabilidade, já se
pronunciou no sentido de que "deve
ser afastada a aplicação do princípio
da insignificância, não obstante a
pequena quantia desviada, diante da
própria condição de Prefeito do réu,
de quem se exige um
comportamento adequado, isto é,
dentro do que a sociedade considera
correto, do ponto de vista ético e
moral." (REsp 769317/AL, Rel.
Ministro Gilson Dipp, Quinta
Turma, DJ 27/3/2006). Ora, se é

278
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

assim no campo penal, com maior


razão no universo da Lei de
Improbidade Administrativa, que
tem caráter civil. 12. Recurso
Especial provido, somente para
restabelecer a multa civil de R$
1.500,00 (um mil e quinhentos
reais), afastadas as sanções de
suspensão de direitos políticos e
proibição de contratar com o Poder
Público, pretendidas originalmente
pelo Ministério Público.61

Portanto, a doutrina preponderante no STJ,


que segue uma linha mais conservadora, afirma que
a analogia com a esfera penal é impossível em razão
da indisponibilidade do bem jurídico tutelado: a
moralidade administrativa, que não admite
relativizações.
A segunda turma do STJ entende que não há
ofensa que seja insignificante em relação à
moralidade e à probidade administrativas,
constitucionalmente asseguradas. A
indisponibilidade do interesse público, princípio que
rege a Administração fundamenta tal afirmação.

61 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial 892818 RS


2006/0219182-6, Relator: Ministro Herman Benjamim, Data de
Julgamento: 11/11/2008, T2 – Segunda Turma, Data de Publicação: DJe
10/02/2010.

279
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Esse tribunal superior diferencia improbidade


administrativa de meras irregularidades, defendendo
a impossibilidade de aplicação da bagatela na
improbidade. É o que se vê em trecho do voto do
Ministro Relator Herman Bejamin:

Se o bem jurídico protegido pela Lei


de Improbidade é, por excelência, a
moralidade administrativa,
desarrazoado falar em aplicação do
princípio da insignificância às
condutas consideradas imorais pelo
próprio magistrado. Não existe
improbidade administrativa
significante e improbidade
administrativa insignificante. O que
há é irregularidade insignificante (e,
por isso, não constitui improbidade)
e irregularidade significante (e, por
isso, improbidade administrativa).
No campo dos valores
principiológicos que regem a
Administração Pública, não há
como fiscalizar a sua obediência
com calculadora na mão,
expressando-os na forma de reais e
centavos. Logo, o princípio da
insignificância não se presta para,
após o juízo positivo de
improbidade, exonerar, por inteiro e
de forma absoluta, o infrator da
aplicação das sanções– até da multa

280
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

civil– previstas na Lei.

Enfim, o STJ adotou o entendimento de que


todo ato de improbidade, ainda que cause mínimo
prejuízo ao erário, fere a moralidade administrativa,
razão pela qual deve ser reprimido, mediante sanção
compatível e, assim, proporcional e razoável, com a
gravidade do fato, conforme lição do Ministro
Relator no julgado:

Reitere-se: nem toda irregularidade


administrativa caracteriza
improbidade, nem se confunde o
administrador inábil com o
administrador ímprobo. Contudo,
uma vez que o juiz reconheça
violação aos bens e valores
protegidos pela Lei da Improbidade
Administrativa (= juízo de
improbidade da conduta), não pode
recusar, pura e simplesmente, a
aplicação das sanções previstas pelo
legislador, a pretexto de incidência
do princípio da insignificância
(sobretudo se por “insignificância”
se entender somente o impacto
monetário direto da conduta nos
cofres públicos).
(...)
A conduta ímproba não é apenas

281
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

aquela que causa dano financeiro ao


Erário. Se assim fosse, a Lei da
Improbidade Administrativa se
resumiria ao art. 10 (“Seção II –
Dos Atos de Improbidade
Administrativa que Causam Prejuízo
ao Erário”, para utilizar as palavras
da própria Lei, com meu grifo),
emparedados e esvaziados de
sentido, por essa ótica, os arts. 9 e
11. Logo, sobretudo no campo dos
princípios administrativos, o dano
aos cofres públicos é somente uma
das modalidades de dano à
moralidade administrativa; lá temos
a espécie, aqui, o gênero.62

7. CONCLUSAO

Neste trabalho analisou-se a lei de


improbidade administrativa e alguns princípios que
regem a Administração Pública, sob o enfoque da
possibilidade de aplicação do princípio da bagatela
aos atos de improbidade. Assim, em tal estudo
mostrou-se as duas correntes e os principais
argumentos de ambas. Como se viu, a corrente que

62 BRASIL.Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial892.818/RS, Rel.


Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe
10/02/2010.

282
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

parecer ser mais coerente é aquela que defende a


impossibilidade de aplicação do princípio da
insignificância nos atos previstos na lei 8.429/1992.
Qualquer ato de improbidade administrativa
tem que possuir certa relevância e, ao contrário do
que ocorre no Direito Penal, depois de enquadrada
uma conduta como ímproba não se observa a
relevância social da conduta, pois esta é presumida.
As condutas previstas na lei 8.429/1992 não
têm tipo penal e, por se tratarem de tipos abertos,
são condutas meramente exemplificativas,
justamente para facilitar a punição. Nesse sentido,
meras irregularidades não caracterizam
improbidade, pois a análise da relevância, do
ferimento ao sentimento de moralidade
administrativa já é o próprio juízo da improbidade.
Logo, se não há significância da conduta, não será
considerada ímproba.
Por óbvio, um legitimado a propor uma ação
de improbidade não irá mover o Judiciário em razão
da prática de uma conduta irrelevante para a
Administração Pública, como o uso de uma folha
de papel por um agente público, pois tal
comportamento é uma mera irregularidade
administrativa e não enseja punição nos moldes da
lei de improbidade. Contudo, se o fizer, o Judiciário
poderá decidir pela inexistência da improbidade
administrativa.

283
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Portanto, resta aos legitimados, na propositura


das ações de improbidade, e ao Poder Judiciário, ao
receber tais ações, se pautarem na moderação,
ponderando os princípios da indisponibilidade do
interesse público e da proporcionalidade, atacando
condutas que realmente causem danos efetivos à
Administração e/ou atinjam o sentimento de
moralidade administrativa. Entretanto, ante a
corrupção e o descaso recorrentes com a
Administração Pública brasileira, não é bem
moderação o que está faltando.
Conclui, então, que não é pelo valor
pecuniário que se avalia a ocorrência da
improbidade, mas pelo valor moral da lesão. Assim,
uma infração administrativa poderá gerar uma
punição disciplinar, por exemplo, sem que isso
implique o reconhecimento de uma improbidade.
Nesse sentido, a improbidade administrativa exige
que a infração possua um grau maior de
repreensibilidade do que a mera infração
administrativa, sem que seja medido pelo valor
pecuniário.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial


892818 RS 2006/0219182-6, Relator: Ministro Herman Benjamim,

284
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Data de Julgamento: 11/11/2008, T2 – Segunda Turma, Data de


Publicação: DJe 10/02/2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso
Especial892.818/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda
Turma, julgado em 11/11/2008, DJe 10/02/2010.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial
604151 RS 2003/0196512-5, Relator: Ministro JOSÉ
DELGADO, Data de Julgamento: 25/04/2006, T1 - PRIMEIRA
TURMA, Data de Publicação: 08.06.2006 p. 121.
BRASIL. Tribunal de Justiça – Minas Gerais. Apelação
Cível 10647040469676004, Relator: Geraldo Augusto, Data de
Julgamento: 11/02/2014, Câmaras Cíveis / 1ª Câmara Cível, Data
de Publicação: 19/02/2014.
BRASIL. Tribunal de Justiça – Minas Gerais. Apelação
Cível 10313072114173002, Relator: Edgard Penna Amorim, Data
de Julgamento: 22/05/2014, Câmaras Cíveis / 8ª câmara cível,
Data de publicação: 02/06/2014.
BRASIL. Tribunal de Justiça – Rio Grande do Sul,
Apelação Cível nº 70012886412, 21ª Câmara Cível, Relator:
Genaro José Baroni Borges, julgado em 08/02/2006.
BRASIL, Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação
Cível 20051 BA 2003.33.00.020051-9, Relator: Desembargador
Federal Cândido Ribeiro, Data de Julgamento: 03/11/2009,
TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: 27/11/2009 e-DJF1
p.62.
FILHO, Marino Pazzaglini. Lei de improbidade
administrativa comentada. São Paulo: Atlas, 2007. p. 41
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco.
Improbidade Administrativa. Prefaciado por José dos Santos
Carvalho Filho. 4. Ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2008.
GOMES, Luiz Flávio. O princípio da insignificância é
aplicável aos atos de improbidade
administrativa<http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/248704/prin

285
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

cipio-da-insignificancia-e-aplicavel-aos-atos-de-improbidade-
administrativa>. Acesso em 27 out, 2014.

O CONTRATO DE TERCEIRIZAÇÃO À
LUZ DO ORDENAMENTO JURIDICO
BRASILEIRO

Rafael Oliveira Santos

RESUMO

A proposta capital do presente trabalho é


abordar precisamente o contrato de terceirização o
e seus reflexos no ordenamento pátrio, propondo
uma análise que transcende o aspecto econômico,
voltando-se ao trabalhador enquanto sujeito de
direitos. Partindo de fatores históricos, o trabalho
explora aspectos gerais do modelo de contrato,
analisando ainda o projeto de lei 4330/2004 que
também trata da matéria. O tipo de pesquisa

 Graduado em Direito. Pós Graduado em Direito do Trabalho e Processo


do Trabalho. Advogado. Email: rafaelsantos0991@gmail.com.

286
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

adotada foi a bibliográfica, fundamentada na


doutrina, legislação e jurisprudência atualizada. Por
fim, conclui-se que o modelo de contratação
estudado carece de maior rigor fiscalizatório e
emprenho por parte dos políticos na criação de
corpos normativos que de fato protejam o
trabalhador, que é indubitavelmente o elo mais
fraco dessa relação e padece sem perspectiva de
mudanças significativas.

PALAVRAS-CHAVE: Contrato. Terceirização.


Ordenamento.

1. INTRODUÇÃO

Analisando o forte crescimento das


contratações por meio do instituto da terceirização
no Brasil, busca-se neste estudo o esclarecimento da
matéria por meio da apresentação de conceitos
importantes, fatos históricos relevantes e aspectos
legais.
No contexto prático dessa relação, vislumbra-
se a necessidade de proteção do trabalhador
terceirizado, observando-se os limites que a
legislação vigente estabelece para que não haja uma
supressão de dignidade nas relações laborais. O

287
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

trabalho verifica ainda os reflexos da terceirização


no meio ambiente de trabalho
Embora não seja um modelo de contratação
novo, ainda não se definiu uma legislação capaz de
contemplar a matéria em um único texto normativo,
recorrendo-se a atos normativos, leis esparsas e
jurisprudências. E por não haver uma
regulamentação que estabeleça claramente as regras,
a prática continua sendo mal entendida e mal
aplicada, dando margem a delitos e fraudes bem
conhecidos.
O objetivo do trabalho é o debate, a reflexão
sobre os pontos positivos e negativos da
terceirização no Brasil, a melhor aplicação do
instituto, a proteção das relações de emprego
inseridas neste contexto, objetivando a redução dos
casos de supressão de dignidade que atualmente são
uma triste realidade.
Do período pós-guerra até os dias atuais a
terceirização assumiu grandes proporções no
cenário mundial, merecendo destaque dentro dos
estudos justrabalhistas, tanto pela quantidade de
companhias que se utilizam desta prática, quanto
pelos valores envolvidos.
No Brasil não poderia ser diferente, a prática
tem crescido de maneira rápida, trazendo ao cenário
jurídico inúmeras discussões. Atualmente, este
processo inclui a contratação, subcontratação e

288
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

outras atividades, sendo uma tarefa necessária e


complexa, no contexto das grandes empresas e do
novo modo de produção.
Considerando estes aspectos e a complexidade
das relações entre empresas contratantes e
contratadas, faz-se necessário um estudo
aprofundado sobre a sistemática da terceirização.
Este Trabalho, objetivando estudar os reflexos
da terceirização no ordenamento justrabalhista
brasileiro, fora realizado com base em um estudo de
natureza qualitativa, por meio do desenvolvimento
de uma pesquisa exploratória e bibliográfica.
Diferentemente da pesquisa quantitativa, a
qualitativa não pretende numerar ou medir dados,
podendo utilizar dados estatísticos, mas não como a
base principal da pesquisa. Este trabalho foi
delineado sobre um estudo classificado como
pesquisa exploratória, que é feito através de uma
maior familiaridade com o problema, com a
pretensão de torná-lo mais explícito, facilitando a
construção de hipóteses. Esse tipo de pesquisa
objetiva o aprimoramento ou a descoberta de novas
ideias. É uma pesquisa bastante flexível e apresenta
um panorama geral, observando a importância de
todo e qualquer dado trazido ao texto.
No primeiro momento, serão apresentadas as
linhas históricas do contrato de terceirização, com o
objetivo de informar o leitor sobre a “evolução”,no

289
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

sentido cronológico da palavra, pois não se


pretende apontar melhorias (progresso), mas tão
somente situar o leitor em uma linha temporal
progressiva a respeito da matéria.
O desenvolvimento do trabalho abordará
ainda os aspectos gerais acerca do tema, pontuando
também questões importantes sobre o projeto de lei
4330/2004 e a terceirização no âmbito da
administração pública, para que se possa finalizar o
trabalho apresentando uma conclusão sólida em
relação ao que foi apresentado.

2. LINHAS HISTÓRICAS DO
CONTRATO DE TERCEIRIZAÇÃO

Com base em registros históricos que


remontam ao século XVIII, notadamente na
atividade têxtil fica evidenciado que a prestação de
serviços por terceiros não é uma prática inovadora.
Contudo, o formato que se apresenta
atualmente é reflexo de certos acontecimentos do
século XX, como a segunda guerra mundial, que fez
com que as grandes potências reunissem esforços e
capital na produção da indústria armamentista,
passando a transferir para terceiros as atividades
acessórias.

290
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

O declínio do Estado de Bem Estar Social


também foi outro fator de aprimoramento do
modelo de terceirização contemporâneo que se
aplica no Brasil e no mundo. “Nesse contexto, a
terceirização surgiu como resposta às necessidades
da economia de mercado e da reacomodação da
produção capitalista, sobretudo a partir da década
de 1970.”63
Os processos de terceirização efetivamente
tornaram-se consistentes apenas na década dos 70,
em virtude do forte abalo sofrido pela economia,
setor produtivo e pelas receitas fiscais do Estado de
bem-estar social que a crise do petróleo gerou.
Diante dos impactos sofridos na economia, a
classe trabalhadora ficou em extrema
vulnerabilidade, uma vez que a politica econômica
adotada em meio à crise culminou em um
retrocesso aos direitos já conquistados, como
esclarece Sandra Miguel Abou AssaliBertelli64:

63 BERTELLI, Sandra Miguel Abou Assali. Terceirização: forma de gestão


de trabalho ou meio de acomodação da produção capitalista. Disponível
em < http://www.anamatra.org.br/index.php/artigos/terceirizacao-forma-
de-gestao-de-trabalho-ou-meio-de-acomodacao-da-producao-capitalista-1
> Acesso em 13 de agosto de 2015.
64 MASCARENHAS, Thales Trajano. Requisitos que caracterizam a relação
de empregatícia. Disponível em
<http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=2450&idAreaS
el=8&seeArt=yes> Acesso em 22 de julho de 2015.

291
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

“A política econômica liberal


adotada pelos Estados nesse
período, notadamente na era
Tacher-Reagan, promoveu
precarização das relações de
trabalho, por meio da
desregulamentação dos direitos
conquistados nas décadas anteriores
(no período do pós-guerra),
investidas severas contra os
movimentos coletivos e hostilização
da atuação dos sindicatos.”

O Modelo de produção Fordista, de produção


em massa e fluxo contínuo, com a concentração de
trabalhadores no mesmo local, para controle do
ritmo e da qualidade da produção foi sucedido pelo
modelo de produção conhecido como toyotismo.
Este modelo tinha como ponto primordial a não
verticalização da empresa, “onde as atividades
principais ficavam sobre controle da empresa, e as
atividades acessórias eram repassadas a pequenas
terceirizadas”65. Com isso, surgiram inúmeras
empresas especializadas em executar as atividades
acessórias da empresa principal.

65 SILVA, Patricia Velho da. Aspectos destacados da terceirização frente


a atual ordem econômica da atividade empresarial. Monografia
apresentada na UNESC - Criciúma, para a obtenção do título de
especialista em Direito Empresarial, 2011.

292
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Para Mauricio Godinho Delgado66:

“(...) o toyotismo propõe a


subcontratação de empresas, afim
de delegar a estas tarefas
instrumentais ao produto final da
empresa polo. Passa-se a defender,
então, a ideia de empresa enxuta,
disposta a concentrar em si apenas
as atividades essenciais a seu
objetivo principal, repassando para
as empresas menores, suas
subcontratadas, o cumprimento das
demais atividades necessárias à
obtenção do produto final
almejado.”

“A história demonstra que as relações de


trabalho acabam por adaptar-se às exigências dos
ciclos econômicos, ainda que tal situação implique
precarização e comprometimento das conquistas
sociais.”67

66 DELGADO. Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São


Paulo:LTr, 2007. P.50
67 BERTELLI, Sandra Miguel Abou Assali. Terceirização: forma de gestão
de trabalho ou meio de acomodação da produção capitalista. Disponível
em < http://www.anamatra.org.br/index.php/artigos/terceirizacao-forma-
de-gestao-de-trabalho-ou-meio-de-acomodacao-da-producao-capitalista-1
> Acesso em 13 de agosto de 2015.

293
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Nesse sentido não se verifica, para o


trabalhador, uma “evolução” deste modelo de
contratação, uma vez que a pratica é comumente
fortalecida em tempos de crise, surgindo como
adaptações aos ciclos econômicos e como uma
solução para as empresas e não para os
trabalhadores. Verifica-se que as vantagens da
terceirização levam em conta critérios econômicos,
deixando de considerar conquistas, priorizando
sempre o lucro em detrimento do trabalhador.

3. ASPECTOS GERAIS DO CONTRATO


DE TERCEIRIZAÇÃO

O contrato de terceirização é fruto de uma


demanda empresarial, que resvala no campo
justrabalhista criando sujeitos e obrigações bastante
peculiares a este tipo de contrato.
Segundo Paulo Henrique Borges Pereira68:

“A expressão “terceirização” é de
origem empresarial, que, embora

68 PEREIRA, Paulo Henrique Borges. A eficácia e os Limites da


terceirização no Brasil. Disponível em
<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8931/A-eficacia-e-os-
limites-da-terceirizacao-no-Brasil> Acesso em 07 de setembro de 2015.

294
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

pareça, não possui o sentido de


“terceiro” como alheio à relação
corporativa ou produtiva, mas para
distinguir o subcontratado dos
demais colaboradores da
corporação, por exercer atividades
distintas da principal da empresa.”

O Autor69 ainda destaca “que a terceirização


não consiste num instituto justrabalhista, mas sim
num fenômeno econômico típico do final do século
XX, destinado a dissociar a relação trabalhista com
o tomador da mão de obra”.
A terceirização trabalhista recebe outras
denominações70, tais como focalização,
horizontalização, outsourcing, externalização de
atividades, parceria, contrato de fornecimento,
subcontratação, entre outras”. No entanto, se faz
necessário fazer uma ressalva quanto ao termo
subcontrata-contratação, pois este somente deve ser
utilizado para definir situações em que a
terceirização revestiu-se de ilicitudes.

69 FRANCO, Raquel Veras. A justiça do trabalho entre dois extremos: Do


Conselho Nacional do Trabalho (CNT) ao Tribunal Superior do Trabalho
(TST). Disponível em <http://www.tst.jus.br/historia-da-justica-do-
trabalho#_ftnref10> Acesso em 17 de setembro de 2015
70 RIBEIRO, Luis Guilherme. A terceirização trabalhista no Brasil:
aspectos gerais de uma flexibilização sem limite. Revista do CAAP - 1º
Semestre - 2009.

295
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Mauricio Godinho Delgado71 define


terceirização como:

“(...)fenômeno pelo qual se dissocia a


relação econômica de trabalho da relação
justrabalhista que lhe seria correspondente.
Por tal fenômeno insere-se o trabalhador
no processo produtivo do tomador de
serviços sem que se estendam a este os laços
justrabalhistas, que se preservam fixados
com uma entidade interveniente.”

Gabriela Delgado72 complementa o conceito


da seguinte forma:
“...enquanto no modelo clássico o
empregado presta serviços de
natureza econômica-material,
direitamente ao empregador, pessoa
física, jurídica ou ente
despersonificado, com o qual possui
vínculo empregatício (art. 2º, caput,
CLT), na relação trilateral
terceirizante o empregado presta
serviços a um tomador, apesar de
não ser seu empregado efetivo. A

71 DELGADO. Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São


Paulo:LTr, 2007. P. 430
72DELGADO, Gabriela Neves. Terceirização: Paradoxo do direito do trabalho

contemporâneo. São Paulo: LTr,2004. P.139

296
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

relação de emprego é estabelecida


com outro sujeito, a empresa
interveniente ou fornecedora. (...)
pode-se compreender a terceirização
dos serviços como a relação
trilateral que possibilita à empresa
tomara dos serviços (empresa
cliente) descentralizar e intermediar
suas atividades acessórias (atividade-
meio), para empresas terceirizantes
(empresa fornecedora), pela
utilização de mão de obra
terceirizada (empregado
terceirizado), o que, do ponto de
vista administrativo, é tido como
instrumento facilitador para a
viabilização da produção global,
vinculada ao paradigma da eficiência
nas empresa.”
Em apertada síntese, ambos os conceitos
revelam uma relação com 3 sujeitos: O prestador de
serviços (Pessoa jurídica que contrata o
trabalhador), o tomador de serviços (pessoa física
ou jurídica que contrata a empresa prestadora de
serviços) e o empregado (pessoa física que exerce
suas atividades de acordo com a demanda da
empresa prestadora de serviços).
Tem-se, portanto, dois contratos: Um
estabelecido entre o prestador e o tomador, que tem
natureza comercial; e outro estabelecido entre o
prestador e o empregado, que tem natureza

297
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

trabalhista e gera vinculo empregatício direto.


Denomina-se “Contrato de terceirização” o
contrato de caráter cível estabelecido entre o
tomador e o prestador.
Quanto ao estabelecimento de vinculo
empregatício surgem duas espécies de terceirização:
Terceirização Lícita e Terceirização ilícita.
Segundo José Cairo Júnior73:

“A terceirização lícita é aquela


admitida pela legislação e pela
construção jurisprudencial pátrias,
que se resume nas hipóteses
previstas pela Lei nº 6.019/74
(trabalho temporário); pela Lei nº
7.102/83 (serviços de vigilância e
transporte de valores) e pela Súmula
nº 331 do TST.”

A terceirização lícita deve ser adstrita às


atividades-meio da empresa tomadora de serviço e
sua execução deve ser feita por empresas
especializadas que as contenham como atividade-

73 CAIRO JR., José. Terceirização e Contrato de Trabalho. Disponível em


< http://www.regrastrabalhistas.com.br/artigos/49-empregador/3827-
terceirizacao-e-o-contrato-de-trabalho> acesso em 21 de agosto de 2015.

298
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

fim. Neste caso o vínculo empregatício fica


estabelecido entre o prestador e o empregado.
Será ilícita, portanto, a terceirização que
ocorrer fora dos casos previstos pela Lei nº
7.102/83 ou nos casos em desacordo com a súmula
331 do TST. Neste caso fica estabelecido o vínculo
empregatício entre o tomador e o empregado, uma
vez que a terceirização ocorreu apenas como meio
fraudulento para que não fossem reconhecidas as
obrigações trabalhistas.
No entendimento de Alice Monteiro de
Barros74, inúmeros são os malefícios da
terceirização ilícita, na atividade-fim da empresa,
dentre eles: violação ao princípio da isonomia,
impossibilidade de acesso pelo trabalhador ao
quadro de carreira da empresa usuária do serviço
terceirizado, além do esfacelamento da categoria
profissional.
Quanto à responsabilidade pelo pagamento
das indenizações decorrentes do contrato de
trabalho, tem-se uma relação de subsidiariedade e
não de solidariedade. O pagamento das
indenizações deverá ser feito, a priori, pelo
prestador de serviços.

74 BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 2. ed. São Paulo:


LTr, 2006. p. 428

299
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

A empresa tomadora de serviço poderá


responder, de forma subsidiária, nos termos da
súmula 331 do TST:

“IV - O inadimplemento das


obrigações trabalhistas, por parte do
empregador, implica a
responsabilidade subsidiária do
tomador dos serviços quanto
àquelas obrigações, desde que haja
participado da relação processual e
conste também do título executivo
judicial”.75

Destarte, a responsabilização da empresa


tomadora de serviço não se impõe de maneira
irrestrita, devendo a empresa estar devidamente
habilitada na relação processual que pretenda
discutir as obrigações trabalhistas, desde o
ajuizamento até a execução.
O contrato de terceirização, como dito
anteriormente, apresenta suas vantagens e
desvantagens. Entretanto, suas vantagens ficam
adstritas a questões econômicas e direcionadas às
empresas, ficando o trabalhador em segundo plano.

75 Sumula 331 do TST. Disponível em <


http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind
_301_350.html#SUM-331> Acesso em 17 de setembro de 2015.

300
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Mesmo no contexto econômico a terceirização


pode significar um risco, uma vez que este modelo
de contratação possui como característica a alta
rotatividade de mão-de-obra, que resulta no
aumento dos índices de desemprego, refletindo
negativamente nas vendas e lucros das empresas.
Os reflexos negativos da terceirização no meio
ambiente de trabalho apresentam-se como um dos
principais fatores de desvantagem do modelo. O
inquestionável aumento no processo de
precarização das condições de trabalho tem
provocado a desestruturação e a desintegração da
força de trabalho. Em muitos casos, “os níveis
salariais e os benefícios sociais nas subcontratadas
eram bem inferiores aos da empresa contratante.
Além disso, a terceirização está sempre associada à
ausência de equipamentos de proteção individual,
menor segurança e maior insalubridade.”76
Essa realidade acaba por retirar dos
trabalhadores sua capacidade laboral por completo,
uma vez que submetem-se a precárias condições de

76 MIRANDA, Carlos Alberto. Ataque ao mundo do trabalho: terceirização


e seus reflexos na segurança e saúde do trabalhador. P.11 . Disponível em
<
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&c
d=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB0QFjAAahUKEwjwiOzuhYLJAhVJlJA
KHWjvBns&url=http%3A%2F%2Fwww.toxnet.com.br%2Fdownload%2
Fataque-miranda.doc&usg=AFQjCNFoLVEQTv3snFm4KPkTlewG-
rFfJQ&sig2=u3htIoQwNsSoiRRjjsYe1A> Acesso em 15 de julho de
2015.

301
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

trabalho sem questionar o tomador ou o prestador


de serviço por medo de perderem sua única fonte
de renda.

4. PROJETO DE LEI 4330/2004

Apresentado em 26 de outubro de 2004 pelo


deputado Sandro Mabel, aprovado sob o relatório
do deputado Arthur Oliveira Maia em 08 de abril de
2015 em Sessão Extraordinária da Câmara dos
Deputados, pendente ainda da apreciação e votação
de emendas, o Projeto de Lei 4.330 apresenta novos
caminhos à terceirização no Brasil.
A partir da sua apresentação, o Projeto de Lei
dividiu as opiniões da sociedade brasileira:

“(...) de um lado a iniciativa privada


— a qual compreende que o atual
ordenamento jurídico lhe é por
demais contundente ao imputar
obrigações de distintas ordens e que
chegam até mesmo a obstacularizar
o desenvolvimento de suas
atividades — e de outro lado os
trabalhadores, seus organismos de
classe e boa parte dos
juslaboralistas, cuja compreensão
segue no sentido de que a

302
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

terceirização, tal como aprovada, se


consubstancia em verdadeiro
atentado à organização do
77
trabalho.”

A principal característica do referido projeto é


a possibilidade de terceirização de atividades fim,
mas este não é o único aspecto relevante:

“i) apenas as empresas


especializadas poderão prestar
serviço terceirizado; ii) familiares de
empresas contratantes não poderão
criar empresa para oferecer serviço
terceirizado; iii) as empresas
tomadoras dos serviços deverão
recolher o que for devido pela
empresa terceirizada contratada em
impostos e contribuições, a exemplo
do PIS/Cofins, CSLL e FGTS; iv) a
responsabilidade das empresas
tomadoras de serviços passa a ser
subsidiária, razão pela qual os
trabalhadores terceirizados somente
poderão executar sentenças judiciais
após esgotados os bens das

77 VIEIRA, Fernando Borges. Vantagens e desvantagens do projeto de lei


sobre terceirização. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-abr-
14/fernando-vieira-vantagens-desvantagens-pl-terceirizacao> Acesso em
23 de setembro de 2015.

303
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

empresas que terceirizam; v) as


empresas contratadas devem
destinar 4% do valor do contrato
para um seguro, o qual irá abastecer
um fundo para pagamento de
indenizações trabalhistas; vi) a
possibilidade de terceirização no
serviço público e vii) a previsão de
que os empregados terceirizados
sejam regidos pelas convenções ou
acordos trabalhistas estabelecidos
entre a contratada e o sindicato dos
terceirizados sendo que as
negociações da contratante com
seus empregados não se aplicariam
aos terceirizados.” 78
(Grifo do Autor)

Diante das novidades surge o inevitável


paralelo de vantagens e desvantagens, sob a ótica de
todos os sujeitos do processo de terceirização:

“Para os empregados é vantajoso


que caiba à tomadora de serviços o
recolhimento de tributos e
contribuições o que — ao menos
em tese — lhes assegura o
adimplemento de direitos; também

78 Idem

304
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

lhes é benéfico que as empresas


fornecedoras de mão de obra
terceirizada tenham de destinar 4%
do valor do contrato em favor de
um fundo cujo fito seja o de
responder pelas indenizações
trabalhistas.
Para os tomadores de serviços
terceirizados, há —
indubitavelmente — um rol maior
de vantagens. Aos empregadores é
consideravelmente vantajosa a
possibilidade de terceirizar todas as
atividades da empresa, sejam
atividades-fim ou atividades-meio; é
sobremaneira favorável passe a
responsabilidade ser subsidiária e
não mais solidária e, enfim, acaba
também por lhes beneficiar até
mesmo o fato de não se aplicar aos
terceirizados a Convenção ou o
Acordo Coletivo diversos daqueles
que tutelam os seus empregados.”79

Fernando Borges Vieira80 defende que, a


médio prazo, a sociedade brasileira sentirá os efeitos

79 VIEIRA, Fernando Borges. Vantagens e desvantagens do projeto de lei


sobre terceirização. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-
abr-14/fernando-vieira-vantagens-desvantagens-pl-terceirizacao> Acesso
em 23 de setembro de 2015.
80 Idem

305
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

negativos dos novos rumos que a terceirização está


tomando, havendo imensa possibilidade de uma
maior precarização das relações trabalhistas e um
cabal atentado à organização do trabalho.

5. TERCEIRIZAÇÃO NA
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA

No Brasil a terceirização na administração


pública é regulamentada de forma ampla, em textos
legislativos esparsos. O Decreto-Lei n° 200/67, que
dispôs sobre a organização da Administração
Pública Federal brasileira apresenta-se como um
dos primeiros textos a regulamentar a matéria81
Amélia MidoriYamaneSekido82 observa que
em 1988 a Constituição Federal trouxe a previsão
do instituto da terceirização na administração
pública. Em seu artigo 37, inciso XXI, a Carta

81 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e Intermediação de Mão-de-


Obra: ruptura do sistema trabalhista, precarização do trabalho e exclusão
social. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.p.116.
82 SEKIDO, Amélia MidoriYamane. Terceirização na administração pública:
a gestão de e a fiscalização de contratos. Monografia apresentada a
Universidade Gama Filho para obtenção de título de especialista em
auditoria governamental. Brasília, 2010. Disponível em
<https://www2.mppa.mp.br/sistemas/gcsubsites/upload/56/Artigo%20-
20Contrato%20de%20Gest%C3%83%C2%A3o.pdf> acesso em 23 de
agosto de 2015.

306
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Maior permitiu a contratação de serviços de


terceiros pela administração publica na condição de
haver Lei especifica prevendo licitação e regras para
os contratos referentes às contratações.
Somente em 1993, por meio da Lei 8.666,
houve a regulamentação condicionada pela
Constituição Federal para fins de terceirização no
âmbito da administração pública, tendo inicio uma
maior disseminação da prática.
De forma mais especifica, em 1997

“(...)foi editado o Decreto Federal


2.271 que veio para disciplinar a
contratação de serviços na
Administração Pública Federal
direta, autárquica e fundacional,
estabelecendo um rol de atividades
que devem ser preferencialmente
executadas de forma indireta:
conservação, limpeza, segurança,
vigilância, transportes, informática,
copeiragem, recepção, reprografia,
telecomunicações e manutenção de
prédios, equipamentos e
instalações.”83

83 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e Intermediação de Mão-de-


Obra: ruptura do sistema trabalhista, precarização do trabalho e exclusão
social. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.p.116.

307
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Por meio de atos normativos editados por


delegação do presidente da República foi possível
um melhor regramento da matéria, através das
Instruções Normativas do Secretário de Logística e
Tecnologia da Informação do Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão: IN nº 2/2008,
IN nº 3/2009, IN nº 4/2009 e IN nº 5/2009.
Dentre as determinações constantes da IN nº
2/2008, foram tratados vários assuntos e um dos
mais importantes foi o disposto no artigo 34, §5º,
que atribui à administração publica o dever de
fiscalização, que implicará diretamente na
responsabilidade do estado disposta também na
Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho.
Quanto à responsabilidade do Estado para
com o terceirizado existe uma aparente divergência,
uma vez que a Súmula 331 do TST estabelece, em
seu item V, que a administração pública pode
responder pelos encargos trabalhistas e
previdenciários de forma subsidiária, contudo o
artigo 71, §1º da Lei 8.666/93 dispõe exatamente o
contrário.
Entretanto, a referida divergência já encontra-
se superada no campo da doutrina e da
jurisprudência.Tem-se que a responsabilidade do
estado é subsidiária, nos casos de culpa in vigilando
ou in elegendo, decorrente da falta de fiscalização da
administração durante o contrato, conforme

308
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

verifica-se neste julgado do Tribunal Superior do


Trabalho:

“AGRAVOS DE
INSTRUMENTO DO
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO E
DA FAZENDA PÚBLICA DO
ESTADO DE SÃO PAULO.
MATÉRIAS COMUNS. ANÁLISE
CONJUNTA. RECURSOS DE
REVISTA.
RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA. TOMADOR DE
SERVIÇOS. TERCEIRIZAÇÃO.
ENTE PÚBLICO .
CONFIGURAÇÃO DA CULPA
IN VIGILANDO. PREMISSA
FÁTICO-PROBATÓRIA
REGISTRADA PELO TRT . NÃO
PROVIMENTO. Nega-se
provimento a agravo de instrumento
pelo qual o recorrente não consegue
infirmar os fundamentos do
despacho denegatório do recurso de
revista.
(TST - AIRR: 11052220115020074
, Relator: Kátia Magalhães Arruda,
Data de Julgamento: 10/09/2014, 6ª

309
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

Turma, Data de Publicação: DEJT


12/09/2014)” 84(Grifos do autor)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, conclui-se que a contratação por meio


de terceirização possui características peculiares e
apresenta suas vantagens e desvantagens. Sendo o
trabalhador o elo mais fraco desta relação.
O desenvolvimento deste trabalho iniciou-se
com uma apresentação e discussão de fatos
históricos que contribuíram para a construção do
modelo atual de contratação mediante terceirização
à luz do ordenamento pátrio.
Salienta-se que em momento algum foi
utilizada a expressão “evolução” histórica, uma vez
que a expressão está ligada a um progresso, o que
não se verificou ao longo da história. O que ficou
evidenciado foi que a contratação mediante
terceirização surge como resposta a problemas
econômicos e acaba deixando de observar as

84 BRASIL, TST - AIRR: 11052220115020074 , Relator: Kátia Magalhães


Arruda, Data de Julgamento: 10/09/2014, 6ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 12/09/2014 Disponível em
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/139214705/agravo-de-
instrumento-em-recurso-de-revista-airr-11052220115020074> Acesso em
05 de setembro de 2015.

310
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

conquistas sociais dos trabalhadores em detrimento


do lucro.
Ainda no desenvolvimento tratou-se de temas
relevantes à matéria, como: conceito de
terceirização, natureza jurídica, classificação,
responsabilidades provenientes do contrato de
terceirização, análise do projeto de lei 4330/2004 e
por fim os aspectos mais relevantes da terceirização
no âmbito da administração pública.
A terceirização no Brasil, até hoje, não teve
uma legislação especifica capaz de regular por
completo a matéria, sendo manuseada pelo
judiciário a partir da uma legislação esparsa e
entendimentos jurisprudenciais. O Projeto de Lei
4.330/2004, poderá se tornar o texto legal mais
completo sobre a matéria, mas ainda contém vários
pontos que precisam ser discutidos e analisados
para que o trabalhador fique realmente protegido.
Em análise final, tem-se que os reflexos da
terceirização no Brasil, quando analisados dentro da
base protecionista do direito do trabalho, ainda são
mais negativos que positivos.
Na análise das vantagens e desvantagens da
terceirização verifica-se em muitos estudos que as
vantagens são geralmente relacionadas ao contexto
da produção (administração), onde o objeto é o
capital e não o ser humano enquanto sujeito de
direitos. A partir disso, surgem os problemas sociais

311
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

e econômicos que sempre foram frutos das


revoluções e que merecem o amparo estatal no
sentido de proteger os sujeitos hipossuficientes
dessa relação, que são os trabalhadores.
As fraudes prevalecem, os acidentes de
trabalho são constantes, a legislação é fraca e os
projetos que relacionam a matéria contem vícios
altamente nocivos aos trabalhadores. Por estes
motivos a terceirização é, dentro do que foi
analisado, uma pratica que poderia surtir os efeitos
econômicos desejados e apontados como positivos,
mas o modo como está sendo praticada, a falta de
uma legislação mais completa e a carência de
fiscalização acabam desvirtuando as boas intenções
do modelo.

REFERÊNCIAS

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BERTELLI, Sandra Miguel Abou Assali. Terceirização:
forma de gestão de trabalho ou meio de acomodação da
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http://www.anamatra.org.br/index.php/artigos/terceirizaca
o-forma-de-gestao-de-trabalho-ou-meio-de-acomodacao-da-
producao-capitalista-1 > Acesso em 13 de agosto de 2015.

312
Coleção Dinâmica Jurídica. Volume 1. Contratos: análise multifacetada

BRASIL, TST - AIRR: 11052220115020074 , Relator: Kátia


Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 10/09/2014, 6ª
Turma, Data de Publicação: DEJT 12/09/2014 Disponível
em
<http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/139214705/agra
vo-de-instrumento-em-recurso-de-revista-airr-
11052220115020074> Acesso em 05 de setembro de 2015.
CAIRO JR., José. Terceirização e Contrato de Trabalho.
Disponível em <
http://www.regrastrabalhistas.com.br/artigos/49-
empregador/3827-terceirizacao-e-o-contrato-de-trabalho>
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CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e


Intermediação de Mão-de-Obra: ruptura do sistema
trabalhista, precarização do trabalho e exclusão social. Rio de
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DELGADO, Gabriela Neves. Terceirização: Paradoxo do
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MASCARENHAS, Thales Trajano. Requisitos que


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2450&idAreaSel=8&seeArt=yes> Acesso em 22 de julho de


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%2Fwww.toxnet.com.br%2Fdownload%2Fataque-
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setembro de 2015.

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