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Presidência da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da Justiça e Segurança Pública


Flávio Dino de Castro e Costa

Secretaria Nacional de Segurança Pública


Francisco Tadeu Barbosa de Alencar

Diretoria de Ensino e Pesquisa


Michele Gonçalves dos Ramos

Coordenação-Geral de Ensino
Ana Claudia Bernardes Vilarinho de Oliveira

Coordenação Pedagógica
Joyce Cristine da Silva Carvalho

Coordenação de Ensino a Distância


Renata Guilhões Barros Santos

Gerente de Curso
Adriana Aparecida Vizzotto

Conteudistas
Juliana Teixeira de Souza Martins
Orlinda Cláudia Rosa de Moraes
Renata Avelar Giannini

Revisão Técnica
Denice Santiago Santos do Rosário

Revisão Pedagógica
Evania Santos Assunção Motta

Revisão Textual
Bruna Carolina da Silva Pereira

Programação e Edição
Renato Antunes dos Santos
Fábio Nevis dos Santos

Design Instrucional
Marcelo Pinto de Assis
Sumário
1. APRESENTAÇÃO DO CURSO ...................................................................................................... 5
2. OBJETIVOS DO CURSO .............................................................................................................. 7
2.1 Objetivo Geral ............................................................................................................................. 7
2.2 Objetivos Específicos: .................................................................................................................. 7
3. ESTRUTURA DO CURSO............................................................................................................. 8
4. MÓDULOS DA FORMAÇÃO ....................................................................................................... 9
4.1 – Módulo I: Protagonismo de mulheres e enfrentamento da violência ................................ 9
4.1.1 Apresentação do módulo .................................................................................................... 9
4.1.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 10
4.1.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 11
4.1.3.1 Aula 1 – A evolução dos direitos humanos de mulheres........................................... 12
Evolução do direito das mulheres e meninas ................................................................... 13
As conferências internacionais de mulheres .................................................................... 16
Declarações da Assembleia Geral da ONU........................................................................ 20
Interseccionalidade e o marco normativo internacional de proteção dos direitos
humanos das mulheres ..................................................................................................... 21
Finalizando ........................................................................................................................ 23
4.1.3.2 Aula 2 - Principais Conceitos e Definições ................................................................. 23
Sexo ................................................................................................................................... 25
Gênero e Papéis Sociais de Gênero .................................................................................. 26
Identidade De Gênero ....................................................................................................... 31
Sexualidade ....................................................................................................................... 33
Orientação Sexual ............................................................................................................. 34
Atenção para não confundir: ............................................................................................ 35
Igualdade de Gênero e Feminismo ................................................................................... 38
Patriarcado e o Conceito de Família ................................................................................. 39
Interseccionalidade ........................................................................................................... 40
Finalizando ........................................................................................................................ 42
4.1.3.3 Aula 3 - Sensibilização à violência baseada em gênero ............................................. 43
Violência psicológica ou emocional .................................................................................. 44
Violência física ................................................................................................................... 45
Violência patrimonial ........................................................................................................ 45
Violência sexual ................................................................................................................ 45
Finalizando ........................................................................................................................ 47
4.1.3.4 Aula 4 - Participação, liderança e protagonismo de mulheres .................................. 48
Mulheres contribuem para o protagonismo e a estabilidade .......................................... 48
A agenda sobre mulheres paz e segurança....................................................................... 49
Resoluções sobre a agenda mulheres paz e segurança .................................................... 51
A agenda sobre mulheres, paz e segurança no Mundo, na América Latina e no Brasil ... 51
Finalizando ........................................................................................................................ 53
4.2 – Módulo II: Violências, estrutura de governança e políticas baseadas em evidências ....... 53
4.2.1 Apresentação do módulo .................................................................................................. 54
4.2.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 54
4.2.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 55
4.2.3.1 Aula 1 - O que os dados disponíveis nos dizem sobre violência contra mulheres e
meninas no Brasil? ................................................................................................................. 56
A Violência Doméstica....................................................................................................... 56
Violência Sexual................................................................................................................. 61
Violência Letal ................................................................................................................... 63
Fique por Dentro ............................................................................................................... 66
4.2.3.2 Aula 2 - Dados e Evidências na formulação de políticas públicas ............................. 68
Dados e evidências. Do que estamos falando?................................................................. 68
Que fontes de dados existem?.......................................................................................... 72
Saúde ................................................................................................................................. 73
Segurança Pública: ............................................................................................................ 74
Secretarias Estaduais de Segurança Pública: .................................................................... 74
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ........................................................ 75
Sociedade Civil................................................................................................................... 75
A importância dos registros feitos pelos profissionais do Susp........................................ 77
4.2.3.3 Aula 3 - Governança e a importância do trabalho em rede ...................................... 79
Estrutura de Governança da proteção de mulheres no Brasil .......................................... 79
Disque 100 e Ligue 180 ..................................................................................................... 84
O que é trabalho em rede? ............................................................................................... 84
A(s) rede(s) de proteção.................................................................................................... 86
Como Funciona.................................................................................................................. 87
Finalizando ........................................................................................................................ 89
4.3 – Módulo III: Aspectos operacionais e táticos fundamentais para o enfrentamento da
violência contra mulheres ...................................................................................................... 90
4.3.1 Apresentação do módulo .................................................................................................. 90
4.3.2 Objetivos do módulo ......................................................................................................... 90
4.3.3 Estrutura do módulo.......................................................................................................... 91
4.3.3.1 Aula 1 – O papel dos órgãos de segurança pública no enfrentamento da violência
contra mulheres e meninas. .................................................................................................. 93
Introdução ......................................................................................................................... 93
Violência contra a mulher é um problema de segurança pública ................................... 94
O enfrentamento da violência contra a mulher como parte da política de segurança
pública ............................................................................................................................... 97
Finalizando ...................................................................................................................... 100
4.3.3.2 Aula 2 - Legislação aplicada na proteção de mulheres e meninas em seus aspectos
práticos. ............................................................................................................................... 101
Introdução ....................................................................................................................... 101
Aspectos Gerais da Legislação e Aplicação Prática ......................................................... 104
Definindo a Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ........................................ 105
As Formas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher ..................................... 106
Aspectos Do Atendimento Às Mulheres Em Situação De Violência Doméstica ............. 107
Mas o que é revitimização? ............................................................................................ 108
Aspectos do Atendimento às Vítimas de Crimes Sexuais ............................................... 110
Medidas Protetivas de Urgência ..................................................................................... 115
Finalizando ...................................................................................................................... 117
4.3.3.3 Aula 3: Identificando a violência contra mulheres e meninas ................................ 118
Introdução ...................................................................................................................... 118
Principais aspectos da violência contra a mulher ........................................................... 118
Análise de risco ............................................................................................................... 119
Dimensões da avaliação de risco .................................................................................... 120
Fatores de Risco .............................................................................................................. 121
Fatores de proteção ........................................................................................................ 122
Classificação e gestão do risco ........................................................................................ 123
Gestão de Risco ............................................................................................................... 123
Plano de Segurança ......................................................................................................... 123
Formulário Nacional de Avaliação do Risco (FONAR) ..................................................... 124
Finalizando ...................................................................................................................... 127
4.3.3.4 Aula 4: Identificando o papel dos atores da segurança pública na redução da “rota
crítica” das vítimas de violência. .......................................................................................... 128
Introdução ....................................................................................................................... 128
Atuação da segurança pública com perspectiva de rede ............................................... 128
Rota crítica ...................................................................................................................... 131
E o papel dos atores da segurança pública na redução da “rota crítica” das vítimas de
violência?......................................................................................................................... 131
Finalizando ...................................................................................................................... 133
4.3.3.5 Aula 5: A atuação da segurança pública de modo integrado com os diferentes atores
da rede proteção e enfrentamento. .................................................................................... 134
Introdução ....................................................................................................................... 134
Atuação Integrada ........................................................................................................... 134
Vantagens de trabalhar de forma integrada .................................................................. 135
Desafios do trabalho integrado....................................................................................... 136
A segurança pública no contexto de integração operacional ......................................... 137
Finalizando ...................................................................................................................... 140
4.3.3.6 Aula 6: Serviços especializados no atendimento a mulheres e meninas no âmbito da
segurança pública. ............................................................................................................... 141
Introdução ....................................................................................................................... 141
As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher ................................................ 142
Atribuições das DEAMs ................................................................................................... 143
Patrulhas e Rondas Maria da Penha ............................................................................... 146
Principais características e modelo de atuação: ............................................................. 147
Principais atividades das Patrulhas Maria da Penha: ..................................................... 149
Principais estratégias das Patrulhas Maria da Penha: .................................................... 151
Finalizando ...................................................................................................................... 152
4.3.3.7 Aula 7: Desafios da atuação quando os autores ou vítimas de violência contra a
mulher são profissionais de segurança pública. .................................................................. 154
Introdução ....................................................................................................................... 154
Prevenção e enfrentamento da violência doméstica nas instituições de segurança
pública ............................................................................................................................. 155
4.3.3.8 Aula 8 – Boas Práticas: Grupos Reflexivos para profissionais de segurança autores
de violência doméstica e familiar ........................................................................................ 160
Finalizando ...................................................................................................................... 161
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 163
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 6

APRESENTAÇÃO DO CURSO

Caras alunas e caros alunos,

As diferentes formas de violência contra mulheres e meninas, em grande parte, estão


associadas à profunda desigualdade entre homens e mulheres presente em nossa
sociedade. Essa desigualdade influencia os papéis que homens e mulheres desempenham,
bem como os riscos a que estão submetidos e as redes de proteção às quais têm acesso.
Este curso tem como objetivo apresentar os principais conceitos, marcos teóricos e
normativos das vulnerabilidades que
Figura 1: Mulher loira em pé sobre fundo rosa cobrindo mulheres e meninas enfrentam, bem como
os olhos com as mãos
os instrumentos desenvolvidos para a
ampliação de sua proteção. Também será
abordada a importância do protagonismo
de mulheres no enfrentamento de
diferentes formas de violência e da
promoção da igualdade de direitos.
A violência contra mulheres e
meninas é um grave problema social e
vem ocupando espaço de relevância e
Fonte: Imagem de krakenimages.com no Freepik
visibilidade, com impactos diretos nos
órgãos de segurança pública. No entanto,
o enfrentamento desta forma de violência demanda um contínuo conhecimento sobre suas
dinâmicas e estratégias para sua prevenção e redução por parte dos profissionais que atuam
nos distintos serviços públicos, destaque feito àqueles que integram os órgãos do sistema
de segurança pública e justiça criminal.
A atuação frente aos crimes relacionados à violência contra mulheres e meninas
corresponde a uma parte significativa do trabalho desempenhado pelos diferentes órgãos de
segurança pública no Brasil. Por essa razão, independentemente da existência de setores
especializados no enfrentamento desta forma de violência, como é caso, por exemplo, das
Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher ou ainda as Patrulhas/Rondas Maria da
Penha, todos (as) os (as) profissionais de segurança pública devem possuir o conhecimento
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 7

que os (as) capacite a atuar de modo técnico, profissional e humanizado diante de cada
ocorrência, evitando, sobretudo, uma atuação revitimizante.
A ampliação do debate público sobre o tema, as alterações na legislação nacional
voltada ao enfrentamento da violência contra a mulher, bem como a necessidade de
padronização dos protocolos de atuação, tornam este um tema de interesse para todos os
profissionais do Sistema Único de Segurança Pública – Susp. Um dos principais
pressupostos do atendimento a mulheres e meninas em situação de violência é a
necessidade da intersetorialidade, ou seja, a perspectiva de um trabalho articulado e em
rede, entre órgãos e serviços das áreas de saúde, segurança pública, justiça, assistência
social, educação, dentre outras.

Este curso está dividido em três módulos:

Primeiro Módulo
Apresenta uma introdução ao tema, destacando os principais conceitos, marcos
teóricos e normativos sobre o enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, bem
como sobre a importância do protagonismo das mulheres na prevenção e redução da
violência.
Segundo Módulo
Aborda a estrutura de governança do enfrentamento desta forma de violência no
Brasil, bem como a importância do uso de dados e evidências para informar as políticas
públicas focadas nesta temática.
Terceiro módulo
Trata dos aspectos operacionais, práticos e legais, destacando experiências bem-
sucedidas no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, como as delegacias
especializadas, as Patrulhas/Rondas Maria da Penha, entre outros.

Público-alvo: Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública.


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Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 8

OBJETIVOS DO CURSO

2.1 Objetivo Geral

A ação educacional tem por objetivo capacitar os profissionais do Susp, a partir de


uma análise histórica e social de gênero, com a perspectiva de aprimoramento do serviço de
segurança pública no atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência e, também,
do fortalecimento da participação das mulheres na segurança pública.

2.2 Objetivos Específicos:


Os objetivos específicos do curso visam que os profissionais do sistema de
segurança pública possam:

⚫ Conhecer os principais conceitos, marcos teóricos e normativos sobre o


enfrentamento da violência contra mulheres e meninas e a importância do protagonismo de
mulheres e meninas a partir de uma linguagem fácil e acessível;
⚫ Conhecer a estrutura de governança e as principais políticas públicas para o
enfrentamento da violência contra mulheres e meninas no Brasil;
⚫ Conhecer boas práticas de enfrentamento da violência contra mulheres e
meninas: experiências desenvolvidas pelos órgãos do Susp;
⚫ Refletir sobre a violência presente nas sociedades contemporâneas (relações
de gênero, classe social e etnia);
⚫ Discutir a importância das mulheres na elaboração e execução das políticas de
segurança pública;
⚫ Analisar o papel dos órgãos de segurança pública na rede de proteção às
mulheres e às meninas, bem como no atendimento aos casos de violência contra as
mulheres e meninas.
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3. ESTRUTURA DO CURSO

Este curso possui uma carga horária de 40 horas e compreende os seguintes


módulos:

• Módulo 1 - Protagonismo de mulheres e enfrentamento da violência

• Módulo 2 - Violências, Estrutura de governança e políticas baseadas em evidência

• Módulo 3 - Aspectos operacionais e táticos fundamentais para o enfrentamento da


violência contra mulheres
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4. MÓDULOS DA FORMAÇÃO

Figura 2: Protagonismo Feminino

Fonte: Imagem de Ebanx Community

4.1 – Módulo I: Protagonismo de mulheres e


enfrentamento da violência

4.1.1 Apresentação do módulo

Este módulo é uma introdução ao tema, e destaca os principais conceitos, marcos


teóricos e normativos sobre o enfrentamento da violência contra mulheres e a importância
do protagonismo de mulheres a partir de uma linguagem fácil e acessível.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
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4.1.2 Objetivos do módulo

Este módulo tem por objetivos:

Contribuir para um entendimento sobre a origem e causas da violência contra

1 mulheres;

Oferecer ferramentas conceituais para facilitar a identificação e o registro da

2 violência contra as mulheres e seus diferentes tipos;

3 Apresentar o ciclo da violência e formas de interrompê-lo;

4 Apresentar a evolução e a importância dos direitos humanos de mulheres;

Apresentar os principais marcos normativos nacionais e internacionais que

5 servem de referência para atuação no enfrentamento da violência contra


mulheres e meninas no Brasil;

Apresentar a importância da participação de mulheres e sua relação com um


6 ambiente livre de violências.
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4.1.3 Estrutura do módulo

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1
Marco normativo internacional: a evolução dos direitos humanos de mulheres
Aula 2
Conceitos e Definições
Aula 3
Sensibilização à violência baseada em gênero
Aula 4
Participação, liderança e protagonismo de mulheres
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4.1.3.1 Aula 1 – A evolução dos direitos humanos de mulheres

Na Prática
Vocês sabem o que são os direitos humanos? Qual a importância deles? Por que eles
foram pensados? Como eles se relacionam aos direitos humanos de mulheres?
Gostaria de convidá-los e convidá-las a pensar nessas perguntas. Tire cinco minutos e
pense um pouco sobre elas. Anote em um papel e ao fim desta aula vamos comparar as
respostas.

Agora vamos lá. Quando falamos especificamente dos direitos humanos de


mulheres, estamos falando daqueles que se ocupam principalmente deste público, inclusive
de meninas. Ao longo dos anos, foi necessário estabelecer regras sobre como os países
deveriam tratar as suas mulheres. Isso aconteceu porque nem sempre as mulheres eram
tratadas com dignidade e respeito. A evolução dos direitos das mulheres acompanhou
também a evolução dos direitos humanos. Em 1948 foi elaborada a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Este marco normativo teve como objetivo principal garantir direitos
básicos e dignidade a todos e a todas, inclusive aquelas pessoas marginalizadas e
tradicionalmente excluídas da vida pública do Estado.
Figura 3: Eleanor Roosevelt - Presidente da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Fonte: Wikipedia
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 14

Eleanor Roosevelt foi uma figura importante em São Francisco, nos Estados Unidos, local em que a Declaração foi assinada.
Na foto ela declara este que foi um dos primeiros documentos internacionais que falam sobre como os países devem tratar seus cidadãos
e cidadãs com dignidade e respeito.

Neste contexto, a presente aula explora a evolução dos direitos humanos das
mulheres, desde a sua origem a partir da evolução dos direitos humanos e do
reconhecimento da igualdade de gênero, até os dias atuais. Entender o progresso dos
direitos humanos significa entender como a desigualdade impõe barreiras para que mulheres
possam se desenvolver plenamente e contribuir para o desenvolvimento das sociedades em
que vivem.

Evolução do direito das mulheres e meninas

Para abordar o tema dos direitos das mulheres e das meninas, recomenda-se um
entendimento sobre o “regime internacional de igualdade de gênero”, o contexto histórico em
que surgiu, bem como o que ele propõe. O termo regime se refere aos “princípios, normas,
regras e procedimentos decisórios de determinada área, sobre os quais as expectativas dos
atores são convergentes”.1 Tais regras e procedimentos podem ser explícitos, como a
codificação do Direito Internacional na forma de tratados, ou podem ser implícitos ou menos
vinculantes do ponto de vista formal, a exemplo das conferências internacionais. Estas
constituem importantes normas e ações, reunidos de maneira tal que conseguem influenciar
a ação do Estado. O regime de igualdade de gênero, como outros regimes, inclui uma série
de conferências, tratados, e diversificada rede de organizações, do nível global ao local,
incluindo organizações governamentais e não governamentais.
A Carta da ONU é um documento fundador do regime de igualdade de gênero. O
Preâmbulo da Carta reafirma, especificamente, a “fé nos direitos fundamentais humanos, na
dignidade e no valor do ser humano, nos direitos iguais dos homens e mulheres e das
grandes e pequenas nações, e […] na promoção do progresso social e de padrões de vida
melhores, em um contexto mais amplo de liberdade”. A Carta também enfatiza
especialmente a não discriminação contra mulheres e meninas, e a promoção da igualdade,
do equilíbrio e da equidade de gênero nos Capítulos I, III, IX e XII. Porém, alguns dos
princípios centrais que emergem na Carta, incluindo a igualdade soberana dos Estados, a
manutenção da paz e da segurança, e a não intervenção nos assuntos internos dos Estados,

1 STEPHEN K., 1982, p. 186.


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 15

frequentemente operam em oposição direta aos objetivos relacionados a gênero. Na prática,


estes princípios podem terminar sobrepondo-se aos objetivos relacionados a gênero.

Figura 4: Bertha Lutz A brasileira Bertha Lutz foi uma das cinco mulheres que participaram oficialmente como
durante os trabalhos da representantes de governo na Conferência de São Francisco, a qual originou a Organização das
Conferência de São
Nações Unidas, que é a principal organização internacional no âmbito da defesa de direitos. Bertha
Francisco - 1945
Lutz foi a responsável pela inclusão da igualdade de gênero na Carta deste importante organismo.
Uma enorme contribuição de uma brasileira para todas as mulheres do mundo.

A igualdade de gênero trata da possibilidade de acesso a


oportunidades iguais entre homens e mulheres. Sua interpretação
como uma questão de direitos humanos recebeu sua reafirmação

.
institucional dentro da ONU, pelo que se tornou informalmente
Fonte: Câmara dos conhecido como a Carta Internacional de Direitos Humanos.
Deputados

Carta Internacional de Direitos Humanos


Declaração Universal dos Direitos Humanos 10/12/1948
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento base não jurídico
que delineia a proteção universal dos direitos humanos básicos, adotada pela Organização
das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, elaborado principalmente pelo jurista
canadense John Peters Humphrey, contando com a ajuda de várias representantes de
origens jurídicas e culturais de todas as regiões do planeta.

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 16/12/1966


O acordo diz que seus membros devem trabalhar para a concessão de direitos econômicos,
sociais e culturais (DESC) para pessoas físicas, incluindo os direitos de trabalho e o direito
à saúde, além do direito à educação e a um padrão de vida adequado.

Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos 19/12/1966


Instrumento por meio do qual os Estados Partes das Nações Unidas que aderirem e
ratificarem o Pacto assumem o compromisso de respeitar e garantir a todos os indivíduos
que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos
reconhecidos no Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica,
nascimento ou qualquer condição.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 16

Protocolo Opcional 22/12/2000


Protocolo que estabelece mecanismos para notificação e investigação da Convenção sobre
a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres

Esses documentos fundacionais foram importantes para estabelecer um arcabouço


legal normativo e componentes substanciais do Direito Internacional. Ainda assim, a sua
implementação está, com frequência, aquém do ideal.
Apesar disso, essa declaração e os dois tratados subsequentes adotam uma
abordagem relativamente estreita sobre o tema. Elas não tratam de questões fundamentais
para o direito de mulheres e meninas que ocorrem no âmbito privado, local que é, ainda onde
as principais formas de violência afetam mulheres. Por essa razão, os seus mandatos são
bastante criticados, e seguiu-se um movimento forte e atuante por parte da sociedade civil
para que questões no âmbito doméstico também fossem tratadas. Em outras palavras: sim,
é dever do Estado proteger mulheres e seus direitos no interior de seus lares.
Era necessário, portanto, um documento de caráter jurídico vinculante e
especificamente dedicado aos direitos de mulheres e meninas. Então, em 1979 a Assembleia
Geral da ONU adotou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres (do termo em inglês CEDAW). Trata-se do primeiro
instrumento internacional de direitos humanos a definir explicitamente todas as formas de
discriminação contra mulheres como violações fundamentais de direitos humanos. Boa parte
do texto dessa convenção foi redigida pela Comissão sobre o Status da Mulher (do termo
em inglês CSW), criada especificamente para promover os direitos de mulheres e defendê-
los. A Comissão reúne-se até hoje, desde a sua criação em 1946, no mês de março, e traz
uma série de deliberações desde a sua criação sobre como seguir avançando neste âmbito.
O Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, que entrou em vigor em 2000, melhorou ainda mais o
regime de igualdade de gênero, criando procedimentos e mecanismos para que os Estados
prestem contas perante a Convenção. Ao ratificar o Protocolo Facultativo, um Estado
reconhece a competência do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher -
a CEDAW –, o órgão que monitora o cumprimento da Convenção pelos Estados para receber
e examinar queixas de indivíduos ou grupos dentro da sua jurisdição. Mais especificamente,
o Protocolo prevê os dois procedimentos listados abaixo.

1. Procedimento de comunicação: permite que mulheres, de maneira individual,


ou grupos de mulheres, submetam violações de direitos protegidos pela Convenção ao
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 17

Comitê. Para serem aceitas pelo Comitê, as comunicações individuais precisam atender a
uma série de critérios. Um exemplo é o esgotamento de todas as ações cabíveis em âmbito
nacional.
2. Segundo procedimento: permite que o Comitê inicie inquéritos sobre as
situações de violações graves ou sistemáticas de direitos das mulheres.
Em ambos os casos, para que sejam aceitos, os Estados devem ser partes
signatárias da Convenção e do Protocolo.2

As conferências internacionais de mulheres

Vimos na seção anterior que os direitos das mulheres avançaram através de três
instrumentos principais: a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, a inclusão da
igualdade de gênero no documento fundados da ONU, e a atuação da Comissão sobre o
Status da Mulher que gerou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, e uma série de protocolos adicionais. Porém, houve ainda
uma série de conferências internacionais que também contribuíram para avançar os direitos
das mulheres, em especial nas esferas econômica e política.
Entre 1975 e 1995, o regime de igualdade de gênero se consolidou em diversas
áreas através das quatro conferências globais sobre mulheres, realizadas na Cidade do
México, em Copenhague, na Dinamarca; em Nairóbi, no Quênia; e em Beijing, na China.
Essas conferências proporcionaram plataformas para negociações intergovernamentais e
deram às organizações de mulheres um palco internacional para a proposição de suas
reivindicações e para o seu trabalho em rede.
A primeira conferência foi convocada na Cidade do México para coincidir com o Ano
Internacional da Mulher, em 1975, oficializado para relembrar a comunidade internacional de
que a discriminação contra mulheres e meninas continuava a ser um problema na maior
parte do mundo. Esta primeira conferência focou no desenvolvimento de planos de ação para
atender três principais objetivos:
(1) a plena igualdade de gênero e a eliminação da discriminação de gênero;
(2) a integração e participação plena das mulheres nas ações relacionadas ao
desenvolvimento;
(3) a contribuição ampliada das mulheres para fortalecer a paz mundial.3

2 ONU MULHERES, 2000.


3 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1976.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 18

Figura 5: 1ª Conferência Mundial sobre Mulher - México (1975):


“Igualdade, Desenvolvimento e Paz”.

Fonte: ONU

Ainda que exista um reconhecimento, embora tímido, sobre o papel de mulheres


para a paz, esta conferência, juntamente com a Década das Nações Unidas para as
Mulheres (1976 - 1985), focou seus esforços em promover um diálogo mais amplo e quase
inédito sobre igualdade de gênero no mundo. Constituiu, efetivamente, um processo de
aprendizado que envolveu deliberações, negociações, estabelecimento de objetivos,
identificação de obstáculos e revisão dos avanços. Este processo continuou com a segunda
conferência mundial para as mulheres, realizada em 1980, em Copenhague.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 19

Figura 6: 2ª Conferência Mundial sobre a Mulher


Copenhague (1980): “Educação, Emprego e Saúde”.

Fonte: ONU

Especificamente sobre a atuação no âmbito da paz e segurança, o relatório


determina que no contexto do fortalecimento da paz e da segurança internacional,
desarmamento e enfraquecimento de tensões, seja prestada a devida atenção ao avanço de
mulheres e proteção de mães e crianças (parágrafo 33).4 O enquadramento dos direitos das
mulheres e da igualdade de gênero passam a ser componentes importantes para a paz e a
segurança.
A terceira conferência, em 1985, lançou as Estratégias Prospectivas de Nairóbi para
o Avanço das Mulheres, com um plano de ação que definiu as ações necessárias em prol da
igualdade, do desenvolvimento e da paz, até o ano 2000. Esse documento conectou
claramente a promoção e a manutenção da paz à erradicação da violência contra as
mulheres em todos os níveis da sociedade. O parágrafo 13, por exemplo, afirma que a
promoção plena e efetiva dos direitos das mulheres terão maiores chances de serem
implementados em um contexto de paz e segurança internacional. 5 Explica, ainda, que a
paz refere-se não somente à ausência de guerras, violência e hostilidades em níveis nacional
e internacional, mas também à valorização da justiça econômica e social, à igualdade e a
todo o rol de direitos humanos e liberdades fundamentais.

4 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1980.


5 DECLARAÇÃO DE BEIJING E A PLATAFORMA DE AÇÃO, 1995.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 20

Figura 7: 3ª Conferência Mundial sobre a Mulher - Nairóbi (1985):


“Estratégias Orientadas ao Futuro, para o Desenvolvimento da Mulher até o Ano 2000”.

Fonte: ONU

O documento também encoraja os Estados-membros a adotar medidas


constitucionais e jurídicas para eliminar todas as formas de discriminação contra as
mulheres, bem como moldar as estratégias nacionais para facilitar a participação das
mulheres em ações dedicadas à paz e ao desenvolvimento.
A quarta conferência mundial sobre mulheres, realizada em Beijing, em 1995,
produziu a Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação.6 A Declaração cobrou dos
governos os compromissos de implementar as estratégias acordadas em Nairóbi em 1985
antes do final do século XX e de mobilizar recursos para a implantação da Plataforma de
Ação. A Plataforma é o documento mais completo produzido por uma conferência da ONU
sobre os direitos das mulheres, uma vez que ela incorpora conquistas de conferências e
tratados anteriores, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a CEDAW e a
Declaração e Programa de Ação de Viena, que foram preparados na conferência global
sobre direitos humanos em 1993.

6 Idem.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 21

Figura 8: 1995 – IV Conferência Mundial sobre a Mulher com tema central:


“Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, China.

Fonte: ONU

Declarações da Assembleia Geral da ONU

Além dessas conferências globais, dos tratados internacionais e das diversas


entidades internacionais existentes, cabe destacar também que o regime da igualdade de
gênero é composto por uma série de Declarações da Assembleia Geral da ONU. Por
definição, as declarações não são compulsórias, mas têm contribuições importantes no que
diz respeito ao desenvolvimento da ideia da igualdade de gênero e ao seu impacto na missão
da ONU de manter a paz e a segurança internacional.
Em 1966, aprovou-se a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher da Assembleia Geral, que abriu o caminho para a CEDAW. Em 1974, a Assembleia
Geral aprovou a Declaração sobre a Proteção de Mulheres e Crianças em Emergências e
Conflitos Armados, que preparou o terreno para o arcabouço de proteção dentro do regime
de igualdade de gênero. Com a reafirmação da CEDAW e das declarações anteriores, a
Assembleia Geral adotou a Resolução 3521 (1975), convidando os Estados-membros da
ONU a ratificarem convenções internacionais e outros instrumentos ligados à proteção dos
direitos das mulheres. De acordo com essa resolução, ao se beneficiarem dos direitos
estipulados nos instrumentos internacionais pertinentes, as mulheres devem desempenhar
um papel igual ao dos homens em todas as esferas da vida, incluindo a promoção da paz e
o fortalecimento da segurança internacional.
Finalmente, em 1993, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 22

reconheceu a necessidade urgente da aplicação universal dos direitos das mulheres e dos
princípios a respeito da igualdade, segurança, liberdade, integridade e dignidade de todos
os seres humanos, e expressou sua preocupação com o fato de que a violência contra as
mulheres é um obstáculo à conquista da igualdade, do desenvolvimento e da paz. Ela
apontou que essa violência pode ser praticada por agressores de ambos os sexos, dentro
da família e do próprio Estado. Essas declarações e resoluções da Assembleia Geral, entre
outras, são peças centrais na compreensão do desenvolvimento e da trajetória do trabalho
da ONU na promoção da igualdade de gênero e do empoderamento de mulheres e meninas.
Mas além dos esforços com enfoque específico nas questões de gênero, outras
áreas dentro do Sistema ONU passaram por mudanças, criando espaço para que as
questões de gênero aparecessem em novos contextos, em particular no contexto da paz e
da segurança internacional. No final da década de 1990, por exemplo, no âmbito das graves
situações de violência em Ruanda e na ex-Iugoslávia, o Conselho de Segurança realizou
uma série de reuniões para tratar a questão da responsabilidade para proteger populações
civis em tempos de guerra.
Parte dessa mudança de pensamento estava relacionada à evolução do Direito
Internacional que, pela primeira vez, codificou o estupro e a violência sexual como crimes de
guerra, crimes contra a humanidade e atos de genocídio. Essa importante categorização
começou com os Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda,
tornando-se permanente com o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998.7
Neste, o estupro e a violência sexual são considerados crimes contra a humanidade. Esses
instrumentos internacionais históricos estão entre os fatores que pressionaram o Conselho
de Segurança a ampliar o seu entendimento do que constitui uma ameaça à segurança
internacional, estabelecendo uma jurisdição que vai além de um conflito armado
internacional, real ou iminente.

Interseccionalidade e o marco normativo internacional de proteção dos direitos


humanos das mulheres

Apesar do efeito perverso que a violência contra mulheres gera em mulheres


pertencentes a grupos que foram historicamente marginalizados de políticas públicas
brasileiras, não há menções específicas à necessidade de incorporar uma abordagem de
gênero aos principais instrumentos internacionais de proteção de mulheres. De fato, nenhum

7 BRASIL, 2002.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 23

dos documentos supracitados, particularmente a Carta da ONU, a Declaração Universal dos


Direitos Humanos, nem a própria CEDAW trata das perspectivas de mulheres pertencentes
a identidades que podem gerar vulnerabilidades e riscos extras para elas.8
No entanto, a participação de mulheres negras nas Conferências internacionais foi
intensa. Em 1975, com a Declaração do Ano 1975 como o Ano Internacional da Mulher, elas
compareceram na primeira conferência e apresentaram um documento que indicava a
situação de exploração e opressão da mulher negra em diferentes contextos. 9 A presença
delas nas Conferências, apesar de forte, teve seus primeiros resultados na Conferência de
Direitos Humanos em Viena, em 1993, quando, foi incluído em seu texto oficial menção a
necessidade de olhar os direitos de mulheres também pela ótica de mulheres não-brancas.
No Brasil, entre os anos 90 e 2000 houve importantes ações públicas em prol da
visibilização do racismo estrutural e o papel da ação afirmativa. Neste contexto, mulheres
negras tiveram um papel fundamental na Constituinte de 1988, inaugurando formulações
políticas para setores historicamente marginalizados no Brasil. Isto resultou, mais adiante,
em propostas práticas no âmbito nacional, como a política de cotas em universidades e
órgãos públicos no Brasil. Assim, em 1994, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em
Beijing, na China, e em 2001 na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação
Racial, a Xenofobia e Formas conexas de Intolerância em Durban, houve uma participação
e articulação transnacional do movimento feminista negro sem precedentes. Para Beijing,
mulheres negras enviaram importantes subsídios, como “A mulher negra na década: a busca
da autonomia.”10

SAIBA MAIS
A necessidade de estabelecer um regime de proteção das mulheres surgiu em razão da
marginalização e exclusão das mulheres ao longo dos séculos, o que gerou oportunidades
desiguais de acesso a direitos, inclusive com relação aos papéis que desempenham na
sociedade. Por isso, o movimento feminista, muito antes da existência das Nações Unidas,
luta para o reconhecimento destes direitos, o que só aconteceu após a elaboração de uma
série de documentos que discutimos aqui brevemente. Para um breve resumo do conteúdo
desta aula, acesse o vídeo do Politize: "Direito das Mulheres: o que são e como surgiram? -
Projeto Equidade". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wQHeL2hHe7g

8 Ferreira, Lobo (2023).


9 Nascimento, 1978.
10 (RIBEIRO, 2008, p. 991).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 24

Finalizando

Bom, agora que nós terminamos esse módulo, gostaria de convidá-los e convidá-las
a dar uma olhadinha naquele conteúdo que vocês pensaram na nossa atividade de abertura.
E então, suas respostas estão mais ou menos de acordo com o que aprenderam nessa
seção? Para facilitar vou fazer um resumindo aqui embaixo sobre o que aprendemos neste
módulo:

A) Mulheres foram tradicionalmente excluídas da vida pública do Estado e por


essa razão, com frequência têm seus direitos mais básicos violados;
B) Uma série de marcos internacionais, em especial a Convenção para
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, conformam o regime
internacional de proteção dos direitos das mulheres. Em outras palavras, eles determinam
como os Estados devem tratar suas mulheres, garantindo todos os seus direitos e igualdade
de oportunidades;
C) Porém, a forma como as mulheres são tratadas no interior de seus lares
demorou a ser reconhecida como direito. E é neste âmbito o local em que grande parte de
seus direitos são violados. E é claro que não podemos permitir isso. As conferências
internacionais, ações do movimento feminista e deliberações da Comissão sobre o status da
Mulher contribuíram para que se criassem protocolos e plataformas de atuação que corrigem
esse direito. Agora é nosso dever proteger essas mulheres.

4.1.3.2 Aula 2 - Principais Conceitos e Definições

Profissionais da segurança pública são, em sua maioria, homens. Para mulheres,


entrar em uma delegacia, ou discar o 190, para registrar uma ocorrência relacionada a
violência baseada em gênero pode ser um desafio. Isso porque pode ser difícil falar sobre
este tipo de violência, em especial quando o interlocutor é um homem.
Por que isso acontece? A violência contra mulheres, seja ela em qualquer uma de
suas formas, tem origem na profunda desigualdade de gênero em nossa sociedade. As
relações desiguais entre homens e mulheres geram relações de poder, que podem se
traduzir, inclusive, na violência sobre o corpo, comportamento e formas de ser de mulheres.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 25

A maioria dos perpetradores da violência contra mulheres são parceiros e ex-parceiros ou


membros da família.
Profissões como aquelas relacionadas à segurança pública remetem à categoria
construída a partir da imputação de papéis sociais a indivíduos de uma dada organização
que detém o monopólio da força. De certa forma, estes profissionais são, com frequência,
vistos como separados do restante da sociedade, e vivem em um sistema de relações, regras
e comportamentos distintos dos demais indivíduos desta mesma sociedade. Apesar das
particularidades de cada categoria, a estes profissionais são impostos comportamentos que
deverão desconstruir sua identidade original e colocar em seu lugar uma nova identidade.
Os adjetivos que tendem a definir estes profissionais nas sociedades ocidentais são, em
certa medida, os mesmos que definem os homens, o ser masculino: viril, corajoso,
audacioso, etc. Ambientes assim podem ser considerados amedrontadores e hostis para
muitas mulheres, por isso, também pode ser difícil para elas reportar este tipo de violência.
Mas não só a ida a delegacia que pode ser difícil para mulheres, é comum que a fim
de evitar o assédio, o constrangimento e outros tipos de agressão, muitas mulheres alteram
a sua rotina para fazer outro caminho ou mudam a forma de se vestir. De acordo com a ONG
Think Olga, 99,6% das mulheres brasileiras já sofreram com assédios no espaço público. 11
Considerando o risco constante à violência baseada no gênero e a dificuldade
enfrentada por muitas mulheres para reportar este tipo de violência, esta aula pretende
informar os profissionais do sistema de segurança pública sobre alguns conceitos e
definições básicos, como forma de sensibilizá-los sobre a relação entre os papéis que
mulheres desempenham na sociedade e os riscos e vulnerabilidades a que estão
submetidas.
Observem as fotos desses dois bebês:

Figura 9: Menina em rosa Figura 10: Menino recém-nascido para dormir

Fonte: Public Domain Pictures.net Fonte: Public Domain Pictures.net

11 Ver: Pesquisa Chega de Fiu Fiu - Think Olga.


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 26

Na Prática

1. Que presentes você daria para esses bebês?


2. O que você acha que cada um vai ser quando crescer?
3. O que vão estudar?
4. Como vão se vestir?
5. Aos 15 anos, o que estarão fazendo?
6. Aos 30 anos, o que estarão fazendo?
7. E se invertêssemos os presentes desses bebês?

SAIBA MAIS

Assistir o filme: Inspiring The Future - Redraw The Balance

Versão em português: Profissão de homem ou de mulher?

Sexo

Na Biologia, sexo é o conjunto de características físicas e orgânicas que permite


diferenciar o homem e a mulher, conferindo-lhes papéis específicos na reprodução. O sexo
é, assim, apenas uma classificação do corpo da pessoa: se este apresenta aspectos básicos
da biologia feminina, trata-se de uma mulher; da mesma forma, se o corpo possui
características biológicas exclusivas do sexo masculino, trata-se de um homem.
No momento do nascimento de um bebê, tudo que sabemos a seu respeito é o sexo.
Traços de sua personalidade, como temperamento, habilidades, gostos e desejos serão
revelados ao longo de seu amadurecimento. Isso se deve ao fato de que, biologicamente,
pertencer ao sexo masculino ou feminino não define o comportamento das pessoas. Ou seja,
um bebê do sexo masculino não tem maior propensão a gostar de futebol do que um bebê
do sexo feminino. O que definirá isso é a imersão social da criança. Além de masculino e
feminino, há uma terceira categoria de sexo chamada intersexo. Refere-se à pessoa cujas
características físicas/biológicas mesclam aspectos do sexo feminino e do masculino, ou,
ainda, não apresentam atributos que permitam a classificação em um único sexo. Por
apresentar variações de cromossomos ou órgãos genitais que estão fora do padrão, são
designados em uma outra classificação. Englobam hermafroditas, que apresentam tecidos
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 27

testiculares e ovulares, e pseudo-hermafroditas, caso de pessoas cujos testículos não


desceram, pênis demasiado pequeno, clítoris muito grande, vagina ausente ou código
genético masculino e características físicas femininas e vice-versa. Segundo a Organização
Mundial da Saúde, estima-se que cerca de 1% da população mundial seja intersexual.12

Gênero e Papéis Sociais de Gênero

O gênero reúne as características físicas, intelectuais e emocionais que se espera


de homens e mulheres. Refere-se à forma como a pessoa se expressa socialmente. No
exercício de abertura, apenas com o conhecimento do sexo biológico dos bebês, foram
expostos projeções e anseios para cada um. Tais projeções são reproduções dos papéis de
gênero, isto é, do que é esperado deles caso seja uma menina ou um menino. Estas
projeções também mudam segundo a cultura, a raça, e até mesmo a família de cada um.
Assim, família, amigos, mídia e sociedade dizem de diversas formas como homens e
mulheres devem agir, criando padrões de comportamento para cada gênero.
Essas ideias e expectativas são convenções sociais, padrões geralmente aceitos
sobre comportamentos e capacidades tipicamente femininas ou masculinas13. Assim, a ideia
de gênero é um processo social, ligado à cultura, que está menos relacionado à biologia de
cada um do que às expectativas da sociedade. Os papéis de gênero variam ao longo da
história e de acordo com a cultura local. Não há uma definição universal do que é ser homem
ou ser mulher, tampouco há características de masculinidade e feminilidade que abarque a
todos.
Logo, ao pensarmos em diferenças "naturais" entre homens e mulheres, devemos
compreender que não fazem parte da biologia de cada um, mas da forma com que são
colocados na sociedade. Em outras palavras, é o convívio social que determina as diferenças
entre os gêneros e não o sexo. Este convívio inicia-se quando somos ainda crianças.
Meninas não nascem com uma tendência natural a gostar de rosa, tampouco os
meninos de azul, porém essas cores estão constantemente associadas a seu gênero e, no
esforço de se encaixar, esses "gostos" são internalizados. Enquanto meninas ganham
bonecas, lousas, cozinhas de brinquedo, meninos brincam com video-games, carrinhos
elétricos e legos, esses brinquedos não são apenas entretenimento infantil, mas passam
uma mensagem e dizem às crianças o que é esperado delas. Mais que isso: os brinquedos

12 "Sou intersexual, não hermafrodita". EL PAÍS. Disponível em: https://tinyurl.com/Sou-intersexual.


13 "Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género: Manual de Actividades
Educativas". Projecto Acquire, EngenderHealth e Promundo, 2008. P. 95. Disponível em:
https://tinyurl.com/58ecpa79.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 28

influenciam diretamente no desenvolvimento cognitivo das crianças, na sua capacidade de


aprender. Ao brincar de ser professora, a menina pratica habilidades diferentes do menino
que brinca de lego. Enquanto este desenvolve noção espacial, por exemplo, ela pratica a
comunicação verbal.
Brinquedos são apenas um exemplo dentre tantos outros das possíveis influências
que, por vezes, passam despercebidas na educação das crianças e jovens e são tidas como
naturais, inerentes àquele gênero.14
Por exemplo, ao pensarmos no futuro profissional de um menino, pensa-se nas mais
diversas carreiras. Ao mesmo tempo, meninas são vistas como mais preparadas para
atividades voltadas à pessoas e à relações interpessoais, como profissões de comunicação,
de cuidados e de ensino (enfermeiras e professoras, por exemplo). As áreas de exatas são
automaticamente associadas a homens, que seriam, pelo senso comum, biologicamente
mais aptos a lidar com coisas, máquinas, tecnologia e raciocínio lógico.
Os papéis de gênero acabam por criar estereótipos do que é agir como homem e
como mulher. Aqueles que não atuam de acordo com o conjunto dessa "caixa" sofrem com
o rechaço, a vergonha ou a exclusão social. Assim, os papéis de gênero limitam as
possibilidades de expressão e ação das pessoas, que se veem pressionadas a seguir um
modelo.

Na Prática

Observe os pictogramas abaixo. Questione a mensagem que querem expressar. Em


seguida, tente visualizar as características construídas socialmente e o impacto que elas
podem gerar na vida de mulheres.

14 Ver também: "Estereótipo de que 'matemática é para garotos' afasta meninas da tecnologia, diz
pesquisador", disponível em: https://tinyurl.com/5yeksysj.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 29

Figura 11: Como homens e mulheres se comunicam

Fonte: Yang Liu Design/Taschen

______________________________________________________________________

Figura 12: Cultura de gênero em ilustrações,


o projeto Man Meets Woman de Yang Liu.

Fonte: Yang Liu Design/Taschen


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 30

1. COMUNICAÇÃO VERBAL

A comunicação verbal é um exemplo de como os papéis de gênero estabelecidos


podem prejudicar o desenvolvimento individual tanto de homens quanto de mulheres.
Homens são vistos como diretos, focados, "curtos e grossos" e decididos, mas também são
pouco incentivados a compartilhar seus sentimentos, o que gera um fluxo de repressão das
emoções. Já em relação às mulheres, a generalização é de que falam demais, dão muitas
voltas para passar uma mensagem simples, são sentimentais, choram em demasia e
apresentam alterações de humor bruscas.

Figura 13: Projeções a respeito do par perfeito por sexo

Fonte: Yang Liu Design/Taschen

2. VALORIZAÇÃO SOCIAL

Para os homens, a mulher dos sonhos é aquela que se encaixa dentro do padrão de
beleza. Para a mulher, o homem dos sonhos é admirado por outras características que não
só o seu corpo. A mulher aparece como um objeto: se o seu corpo for jovem e corresponder
ao desejado, não é necessário que ela tenha outra qualidade. Assim, o único interesse que
os homens têm nas mulheres reflete que elas são objetos sexuais, não seres pensantes com
quem compartilham sentimentos ou anseios.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 31

Figura 14: Estereótipo sobre capacidade de focar e desenvolver múltiplas tarefas

Fonte: Yang Liu Design/Taschen

3. FOCO

Muitos argumentam que homens não conseguem lidar com mais de um assunto ao
mesmo tempo, tendo um único foco por vez. A mulher, por outro lado, teria a habilidade de
fazer várias coisas ao mesmo tempo ("multitasking"). Mas não se trata de uma habilidade
natural, mas de necessidade, pois enquanto o homem se dedica com atenção a cada uma
de suas atividades, a mulher fica pelas outras atividades pendentes, como as tarefas da casa
e dos filhos, além de seu trabalho, se for o caso.

______________________________________________________________________

Esta atividade utilizou algumas representações15 de estereótipos de gênero, sobre


aspectos da masculinidade e da feminilidade. Vale notar que as imagens evidenciam que o
papel de gênero da mulher é, em geral, desvantajoso em relação ao do homem.

15 "Los estereotipos de género, resumidos en veinte esclarecedores pictogramas" (tradução livre: os


estereótipos de gênero, resumidos em vinte esclarecedores pictogramas). Disponível em:
https://tinyurl.com/3y9ys5vv.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 32

Abaixo, segue uma representação:

Figura 15: Estereótipos de gênero

Fonte: ONU Mulheres

Identidade De Gênero

A identidade de gênero é uma classificação pessoal, realizada através da autoidentificação,


e revela como a pessoa se sente sobre seu sexo. A autoidentificação pode não ser a mesma do sexo
biológico: uma pessoa do sexo masculino pode se identificar com o gênero feminino e vice-versa.16
Nesse sentido, há duas classificações usuais:
Cisgênero
Comumente chamadas de "cis", são as pessoas que se identificam com o gênero que lhes
foi atribuído no nascimento. Por exemplo, uma pessoa é do sexo feminino e se identifica como mulher
(gênero feminino).
Transgênero
Denominadas "trans", são pessoas que não se identificam com o gênero, expressões de
gênero e/ou papéis de gênero que lhes foram atribuídos pelo sexo biológico. É o caso das travestis
e transexuais. Para ilustrar: apesar de ter nascido do sexo masculino, a pessoa identifica-se, percebe-
se e se sente como mulher. Assim, mulher transgênero é toda pessoa que reivindica o
reconhecimento social e legal como mulher, também chamada de transmulher. E homem transgênero

16 "ORIENTAÇÕES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO: CONCEITOS E TERMOS". JESUS, Jacqueline


Gomes de. Brasília, 2012. P. 12. Disponível em: https://tinyurl.com/4denysk7.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 33

é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como homem, também denominada
transhomem trans-homem.17
A diferença entre transexuais e travestis está essencialmente na autoidentificação.
Se a pessoa deseja realizar a transição de gênero, através de tratamentos hormonais e
cirurgia de redesignação sexual, ela é transexual. Nesse caso, a pessoa gostaria que seu
corpo tivesse características do seu gênero (de como ela se identifica e se sente), não do
seu sexo biológico. Por outro lado, as travestis se identificam com o gênero oposto e adotam
suas expressões - comportamento, vestimentas etc -, mas não necessariamente desejam
mudar seu corpo. A questão social também tem papel fundamental nessa diferenciação, pois
muitas pessoas trans gostariam de realizar a transição de gênero, mas são impedidas por
dificuldades socioeconômicas. Desse modo, a autoidentificação é a melhor classificação,
visto que é baseada no desejo e no sentimento da pessoa e não em fatores físicos.
A transfobia é a discriminação que sofrem em função de sua identidade de gênero.
Por serem diferentes do padrão, pessoas trans sofrem muito preconceito e têm suas vidas
prejudicadas pela exclusão social e violência. Em geral, uma série de fatores deteriorantes
acomete a vida das pessoas trans: devido ao bullying e à perseguição nas escolas,
comunidades e mesmo em casa, dificilmente conseguem concluir sua educação; sem
instrução formal, não conseguem disputar espaço no mercado de trabalho formal 18 e são
forçadas a viver na marginalidade. As travestis19, em grande parte dos casos, sobrevivem
trabalhando como prostitutas.
A marginalização, porém, não é o pior que ocorre às pessoas trans. Elas sofrem
cotidianamente risco de vida devido à propagação do ódio e à desumanização de suas
imagens. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo - apenas em
2021, foram 316 mortes violentas, sendo 285 assassinatos, 26 suicídios, e 5 mortes por
outras causas. 20
Um fator importante da sociabilização da pessoa trans é o nome social. Marcada ao
longo de sua vida pela dificuldade de viver em um corpo que não representa seu gênero, as
travestis e transexuais preferem ser chamadas pelo nome escolhido por elas, diferente de
seu nome do registro civil, ainda ligado a seu sexo biológico, com o qual não se identificam.

17 Identificar-se com as expressões de um gênero não é o mesmo que aceitar os papéis de gênero socialmente
impostos. A pessoa pode se identificar com ser mulher, sem reproduzir os estereótipos.
18 "ORIENTAÇÕES SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO: CONCEITOS E TERMOS". JESUS, Jacqueline
Gomes de. Brasília, 2012. P. 16. Disponível em: https://tinyurl.com/4denysk7.
19 Independente de como se identificam, a maioria das travestis preferem o tratamento no feminino. Portanto,
deve-se chamá-las de AS travestis, não OS travestis.
20 "Dossiê de mortes e violência contra LGBT+ no Brasil". Disponível em: https://tinyurl.com/yeysa6pr.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 34

A utilização do nome social representa respeito e um mínimo esforço de inclusão dessa


população na sociedade.
Figura 16: Assassinatos de Travestis e Transexuais

Fonte: G1 – Globo.com

O motivo para tantas agressões às pessoas trans é o fato delas não corresponderem
à heteronormatividade, ou aos padrões socialmente construídos que consideram, por
exemplo, atribuições como a virilidade e a força como superiores. Neste contexto, o homem
é considerado superior às pessoas do gênero feminino, porém isso não se aplica a qualquer
homem: cabe apenas ao homem heterossexual que expresse categoricamente sua
masculinidade. Dessa forma, heteronormatividade descreve regras baseadas na vivência
heterossexual como obrigatórias a todos e pune socialmente aqueles que desviam dessas
normas.

Sexualidade

O sexo, como qualquer outro ato social, envolve uma série de questões da nossa
cultura: a beleza, o romance, o controle, a agressividade, a comunicação etc. Assim,
inevitavelmente a sexualidade é mais um marcador de diferença entre o gênero feminino e
o masculino, devido ao que é imposto pelos papéis de gênero atribuídos a homens e
mulheres e como cada um deve explorar sua liberdade sexual.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 35

Desde muito cedo, somos expostos a diversos tipos de mensagens, muitas vezes
contraditórias. Na família, em instituições religiosas e até mesmo nas escolas, é comum que
se apresente uma postura conservadora quanto ao sexo. Já a mídia e os amigos tendem a
tratar mais abertamente do assunto. Independente da abordagem, há sempre uma
mensagem e uma expectativa de comportamento sendo transmitida. Isso ocorre porque os
seres humanos, em geral, não limitam a sua sexualidade à reprodução e somam valores
morais e comportamentos sociais à prática sexual.21
Quem gosta mais de fazer sexo: o homem ou a mulher? Os estereótipos
(heteronormativos) de gênero afirmam que os homens são naturalmente mais inclinados aos
prazeres do sexo e precisam fazê-lo com mais frequência. Já o estereótipo feminino atribui
às mulheres o plano secundário, coadjuvante, como se as mulheres preferissem o romance
e gostassem menos da prática sexual.
Além disso, se uma mulher tem vários parceiros, é depreciada por ser vulgar ou
"prostituta". O homem, ao contrário, reforça sua masculinidade e é visto como "garanhão".
Por essa razão, a mulher costuma mentir o número de parceiros sexuais para preservar sua
reputação, ao passo que o homem tende a aumentar esse número, para mostrar potência e
virilidade. Essas ideias legitimam, isto é, autorizam socialmente, que homens tenham
relações fora do casamento ou se preocupem menos com o prazer feminino na hora do sexo.
Trata-se de um comportamento nocivo não apenas para a sexualidade da mulher, tolhida de
sua liberdade sexual, mas também para o homem, visto que o incentivo para que eles
tenham múltiplas parceiras aumenta os riscos de contração de DSTs e HIV.

Orientação Sexual

A orientação sexual refere-se à atração afetiva e sexual por alguém de algum(ns)


gênero(s). Ainda não há evidências científicas sólidas sobre como a orientação sexual é
determinada. A perspectiva mais consensual é a de que seja uma combinação de múltiplos
fatores sociais, psicológicos e biológicos. Do ponto de vista psicológico, não há como
escolher ser homossexual, heterossexual, bissexual ou assexual, portanto, não se trata de
opção sexual.

21 "Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género: Manual de Actividades


Educativas". Projecto Acquire, EngenderHealth e Promundo, 2008. P. 92. Disponível em:
https://tinyurl.com/y439ztda.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 36

As categorias correntes são:

Assexual: pessoa que não se sente atraída por nenhum gênero.


Bissexual: pessoa que se sente atraída afetiva e sexualmente por pessoas de
qualquer gênero.
Homossexual: pessoa que se sente atraída afetiva e sexualmente por pessoas do
mesmo gênero (gays e lésbicas).
Heterossexual: pessoa que se atrai afetiva e sexualmente por pessoas de outro
gênero (homem-mulher).

Atenção para não confundir:

i. Orientação sexual e identidade sexual: a primeira indica se a pessoa se sente


atraída por homens, mulheres ou ambos, em relação a seu próprio gênero. A segunda
classifica se a pessoa se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Por exemplo,
uma pessoa bissexual cisgênera é aquela que se identifica com o gênero designado e se
interessa por ambos os gêneros. Pode ser o caso de uma pessoa do sexo feminino, que se
identifica como mulher e sente atração por homens e mulheres. Da mesma forma, uma
pessoa trans, assim como qualquer outra pessoa, pode ser bissexual, heterossexual ou
homossexual. Por fim, alguém de sexo biológico masculino que se identifica com o gênero
feminino (transmulher) e sente atração por homens é uma pessoa heterossexual.
ii. Orientação sexual e papéis ou expressões de gênero: essa confusão é gerada
pelos conceitos de feminilidade e masculinidade, trabalhados anteriormente. A atribuição de
comportamentos específicos para pessoas a partir do seu sexo biológico gera problemas de
generalização e entendimento da orientação sexual de uma pessoa. Um homem que se
expressa de maneira tida como mais feminina não necessariamente se sente atraído por
outros homens. Um homossexual, bem como um heterossexual, pode expressar-se de forma
muito masculina, feminina, ou nenhum dos dois, sem que isso tenha relação com a sua
orientação sexual. Esta é determinada pelo desejo que a pessoa sente por outras pessoas
do mesmo gênero ou de gênero distinto.
Em resumo: o gênero é como a sociedade reconhece a pessoa; a identidade de
gênero é como ela se identifica e se sente, e a orientação sexual é por quem ela se sente
atraída.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 37

Figura 17: Envolvendo Rapazes e Homens na Transformação das Relações de Género:


Manual de Atividades Educativas.

Fonte: PROMUNDO, 2008


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 38

Igualdade de Gênero e Feminismo

As diferenças expressas nos conceitos de gênero e na construção dos papéis de


gênero têm reflexos na vida real.
- Apesar das mulheres serem metade da população mundial, representam 70%
das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo, segundo dados da Organização
das Nações Unidas (ONU).22
- A média salarial das mulheres é 24% inferior à dos homens.23
- Em todas as regiões do mundo, as mulheres trabalham mais que os homens:
realizam em média duas vezes e meia a quantidade de trabalho doméstico e cuidados não
remunerados realizados por eles.24
Como exposto anteriormente, os estereótipos de gênero são desvantajosos para as
mulheres, na medida em que exageram e reforçam comportamentos depreciativos relativos
à feminilidade, e celebram características tidas como masculinas. Estas desigualdades
refletem-se, inclusive, nos papéis e funções desempenhados por homens e mulheres na
sociedade. Mulheres cuidam dos filhos e da casa e os homens adquirem uma profissão.
Como consequência, a falta de responsabilidade paterna na criação dos filhos e nos
cuidados da casa, combinada à falta de creches e à dificuldade de concluir os estudos, reduz
as possibilidades de inserção laboral de mulheres. Estas acabam trabalhando em atividades
informais, sem garantias de proteção social ou de estabilidade no trabalho. Desse modo,
para dar conta dos cuidados da família e do lar, as mulheres se veem impedidas de investir
em sua formação ou de trabalhar fora de casa, o que reforça a desigualdade.
Neste contexto, a pobreza e a violência contra mulheres estão relacionadas e se
reforçam mutuamente. Enquanto a violência contra a mulher afeta a sua capacidade
produtiva e social, a pobreza gera dependência econômica e a dificuldade de sair de
relacionamentos violentos.
Percebe-se que as diferenças de gênero, entre o que é esperado da mulher e do
homem, geram discriminação e preconceito em relação às mulheres, sendo tratadas de
forma diferente, negativa e limitante. Por isso, os movimentos de mulheres lutam pela
igualdade de gênero, para que ambos desfrutem do mesmo status e compartilhem as

22 "LA TRAMPA DEL GÉNERO. MUJERES ,VIOLENCIA Y POBREZA." (tradução livre: A Armadilha do
Gênero. Mulheres, Violência e Pobreza). ANISTIA INTERNACIONAL. Disponível em:
https://tinyurl.com/3revn64r.

23 "EL PROGRESO DE LAS MUJERES EN EL MUNDO 2015-2016" (tradução livre: O Progresso das Mulheres
no Mundo 2015-2016). ONU MULHERES, 2015, página 11. Disponível em: https://tinyurl.com/3r7d2j97.
24 Ibid.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 39

mesmas oportunidades, direitos e liberdade de explorar seu potencial individual. A esse


movimento social e político, denominamos Feminismo. Em linhas gerais, o feminismo prega
a igualdade de gênero, a maior participação e a valorização da mulher na sociedade e o fim
da cultura centrada na ideia de que a vida pública é exclusiva aos homens e a privada, a
mulheres.

Patriarcado e o Conceito de Família

Ao longo da história, a sociedade passou por diversas configurações sociais. Apesar


de parecer que sempre foi assim e que o nosso modelo de sociedade é "natural", ele é fruto
de uma construção política e social. Atualmente, nós vivemos sob o modelo patriarcal, no
qual o homem exerce o poder nas funções sociais, como autoridade, chefe da família,
responsável pelo trabalho remunerado e detentor de privilégios. No âmbito da família, isso
se traduz na autoridade do homem sobre a mulher e os filhos, que, inferiores na hierarquia,
lhe devem obediência.
Figura 18: Patriarcado

Fonte: Medium.com
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 40

Nesse sistema, a família é a base social a partir da qual se constroem outros setores
da vida em sociedade. A família patriarcal baseia-se na exploração do homem sobre a
mulher, que fica excluída das possibilidades de participação ativa e relegada às funções de
reprodução e cuidados dos filhos e do marido. Ao mesmo tempo, a sexualidade do homem
é reforçada e estimulada, para exercer sua autoridade sobre a mulher. A esta, cabe obedecer
aos seus anseios, reduzindo a sua sexualidade à satisfação masculina. O objetivo do sexo
entre os dois é, portanto, proporcionar prazer ao homem.
Esse modelo é expressão máxima da sociedade da época da agricultura
escravocrata e apresenta muitos conflitos diante da modernidade. Com a formação de
grandes cidades, urbanização, industrialização e os avanços tecnológicos, a mulher25 entra
no mercado de trabalho, passa a desempenhar funções para fora do ambiente privado (do
lar), a receber salário e a não se dedicar integralmente aos filhos. Essa transição levantou
questionamentos sobre o tratamento que os homens lhes davam e reforçou o movimento
feminista em sua reivindicação por igualdade.
Outro embate do patriarcalismo nos tempos atuais é em relação à família, pois se
baseia em famílias heterossexuais, compostas por homem, sua mulher e os filhos do casal,
e rejeita outras formas possíveis de formação familiar, como casais homossexuais e mães
solteiras (família monoparental).
Essas questões demonstram que vivemos sob um modelo em ruínas, que não
consegue acompanhar o avanço da sociedade. Uma das principais dificuldades é convencer
os homens a renunciarem aos privilégios: se antes eles tinham o poder e o controle, cada
vez mais passam a ter que compartilhá-lo, em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.

Interseccionalidade

Refere-se às relações de poder intrínsecas geradas por identidades sobrepostas que


têm sido tradicionalmente marginalizadas ou negadas – raça e etnia, religião, idade,
ruralidade, pessoas portadoras de deficiência, identidade de gênero, orientação sexual, entre
outras são alguns exemplos dessas identidades. Uma abordagem interseccional significa
que existe uma consciência sobre as disparidades de poder entre diferentes identidades, que
frequentemente se sobrepõem e que ações de superação dessas relações de poder devem

25 Vale ressaltar que o patriarcado é um sistema cujo modelo é branco. Os homens negros exercem também
superioridade em relação às mulheres e reproduzem valores patriarcais devido a seus privilégios masculinos.
No entanto, a mulher negra sempre esteve no mercado de trabalho informal, em contraponto à mulher branca,
que ocupava o espaço privado do lar. Isso não significa que a mulher negra estivesse em posição de igualdade
em relação ao homem.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 41

levar em consideração cada uma dessas camadas identitárias e os riscos e vulnerabilidades


intrínsecos a elas.
No campo da violência contra mulheres, por exemplo, sabemos que mulheres negras
são mais suscetíveis a estarem em situação de violência acumulada com desigualdade
salarial (estão na base da pirâmide), a exemplo daquelas chefiam famílias monoparentais e
as que vivem em classe social menos favorecida, o que faz com que as políticas públicas
não as protejam e não garantam sua segurança efetiva como se propõem. Além disso, são
estas mulheres que vivem diversos estigmas sociais atrelados à resistência, à dor, à
coisificação do corpo e à baixa escolaridade, que as colocam nesse lugar. Desta forma é
notório que as políticas de enfrentamento a este tipo de violência no Brasil não geraram
resultados para elas, somente, e de forma acanhada, para mulheres brancas. Reforçado nos
dados a seguir:
Segundo a plataforma EVA do Instituto Igarapé26, em 2020, todas as formas de
violência contra a mulher aumentaram. Na realidade, mulheres têm 3,5 vezes mais chances
de sofrerem violência que homens. Segundo o DATASUS, em 2020, 3.822 mulheres foram
assassinadas no Brasil, o que representa um aumento de 10% em comparação ao ano de
2019. No entanto, mulheres não são afetadas da mesma forma pela violência. Mulheres
negras permanecem entre as principais vítimas e figuram em 67% dos casos de
assassinatos, em 2020, sendo 61% pardas e 6% pretas. Mulheres brancas correspondem a
29,5% dos casos e indígenas, 1%. A taxa de homicídio de mulheres indígenas é 2,3 vezes
maior que a de mulheres brancas. Entre 2000 e 2020, o assassinato de mulheres indígenas
aumentou em 7 vezes. Já o assassinato de mulheres negras aumentou 45% e o de mulheres
brancas diminuiu em 33% no mesmo período. Isso mostra que quaisquer que sejam as
políticas de enfrentamento da violência contra mulheres, elas não têm o mesmo impacto em
todas as mulheres e uma abordagem interseccional é necessária.

26 Acesse: eva.igarape.org.br
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 42

SAIBA MAIS

Entender o conceito de gênero é fundamental para compreender quais as


expectativas sociais sobre mulheres na sociedade. Estes papéis têm uma relação intrínseca
com os riscos e as vulnerabilidades que as mulheres enfrentam. Entender a relação entre
estes papéis e os riscos a que estão submetidas é fundamental para planejar políticas
adequadas de enfrentamento da violência contra mulheres.
Para se aprofundar neste assunto, consulte os seguintes materiais:
Vídeo da ONU: Mulheres sobre a igualdade de gênero:
https://www.youtube.com/watch?v=ZCGLC-vziRc
A Diferença entre sexo, gênero e orientação sexual:
https://tinyurl.com/4wuznb3a
Vídeo sobre gênero fluido da Revista AzMina:
https://tinyurl.com/37tm8tnt

Finalizando

Neste módulo, você aprendeu que:

● O sexo é biologicamente definido, e normalmente determinado pelo


nascimento. Pessoas transgênero são aquelas que não se identificam com o sexo que
nasceram e fazem uma transição. Já o gênero é socialmente construído: difere e varia de
acordo com a cultura e com o tempo e influencia os papéis, as responsabilidades e
oportunidades para homens e mulheres.

● Entender como o gênero, e por consequência, as expectativas sociais sobre os


papéis de homens e mulheres, impactam o seu dia a dia e os riscos a que estão submetidos,
é realizar uma análise de gênero.

● Incluir uma abordagem interseccional significa entender o impacto que outras


identidades e marcadores sociais têm na vida das pessoas e implementar iniciativas que
visem superá-las.

● A igualdade de gênero se refere a direitos, responsabilidades e oportunidades


iguais para mulheres e homens, meninas e meninos. Igualdade não significa que mulheres
e homens serão totalmente iguais, e sim que os direitos, as responsabilidades e as
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 43

oportunidades de mulheres e homens não dependerão do sexo com o qual a pessoa nasce.
A igualdade de gênero implica que os interesses, as necessidades e as prioridades de
mulheres e homens sejam levados em consideração, reconhecendo a diversidade dos
diversos grupos de mulheres e homens.

● Já o feminismo é uma corrente de pensamento que visa promover a igualdade


de gênero. Ela não é contrária aos homens. Ela simplesmente preconiza que homens e
mulheres devem ter os mesmos direitos.

4.1.3.3 Aula 3 - Sensibilização à violência baseada em gênero

Na Prática

Observe as frases abaixo e indique quais são formas de agressão a mulheres.

➔ Em um momento de raiva, quebrar um objeto que ela gosta de propósito.


➔ Cantada!
➔ Seguir uma mulher bonita na rua para conseguir seu telefone.
➔ Dar umas bebidas a mais para a mulher para conseguir levá-la para cama.
➔ Compartilhar nudes (fotos nuas) de mulher no WhatsApp.
➔ Beijar à força.
➔ Na balada, passar a "mão boba" em uma menina com shorts curto.
➔ Empurrar a mulher.
➔ Não deixar que a mulher saia com aqueles amigos que você julga serem má
influência.
➔ No meio do sexo, tirar a camisinha sem que ela perceba.
➔ Transar com uma mulher bêbada demais.
➔ Manipular a mulher para que ela ache que está louca e você escapar de uma briga.
➔ Após levar um fora da namorada, contar para todo mundo que ela era uma
vagabunda.
➔ Tirar foto por baixo do vestido de uma mulher no transporte público.
➔ Ameaçar contar um segredo se a mulher não transar com você.
➔ Elogiar uma mulher que passa na rua.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 44

➔ Xingar a mulher que foi grossa ao te dar um fora.


➔ Controlar o dinheiro que a mulher pode gastar.

Se você considerou que alguma dessas frases não é agressão, pergunte-se porquê.
Todas elas são diferentes tipos de violência contra mulheres.

Antes de falar em violência contra mulheres, gostaria de apresentar o conceito de


violência baseada em gênero. Como vimos, o gênero refere-se àquelas ideias sobre o que
mulheres, homens, meninas, meninos e outros grupos de gênero podem ou não fazer em
nossa sociedade, que papéis eles podem desempenhar. A partir deste conceito, entende-se
que violência baseada em gênero são agressões físicas ou simbólicas, cujos motivos sejam
consequência dos padrões e papéis sociais de gênero, de estereótipos, ou de ideias sobre
o papel que cada um de nós desempenha. O não cumprimento de uma determinada
expectativa ligada ao seu papel de gênero - por exemplo, a mulher não fazer o jantar, ou
homem ser muito "afeminado" - torna-se uma razão para a agressão. Mulheres e o grupo
LGBTQIA+ são os mais atingidos pela violência de gênero.
L – Lésbicas
G – Gays
B – Bissexuais
T – Transexuais
Q – Queer
I – Intersexuais
A – Assexuais
+ - Demais orientações sexuais e identidades de gênero

Como este curso fala especificamente sobre a violência contra mulheres, aqui
estamos tratando de todo tipo de violência cometida contra mulheres, inclusive mulheres
trans e meninas. A maioria desta violência ocorre porque elas não cumprem com a
expectativa de gênero. Nestes casos, a violência é uma forma do homem exercer o seu
poder.
No Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é a principal legislação brasileira
de combate à violência doméstica contra a mulher e classifica as agressões em cinco
categorias: violência psicológica, violência moral, violência patrimonial, violência física e
violência sexual.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 45

Violência psicológica ou emocional


Humilhação; deboche público; desvalorização moral; desqualificação intelectual;
piadas ofensivas por ser mulher; restrição da liberdade de crença e prática religiosa; qualquer
atitude que gere dano psicológico e diminuição da autoestima; que prejudique o pleno
desenvolvimento da mulher ou vise degradar ou limitar suas ações e comportamentos. Os
meios de exercer violência emocional podem ser ameaça, constrangimento, insulto,
manipulação, vigilância, perseguição, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e
vir ou qualquer outra forma de afetar a saúde psicológica e o exercício do livre arbítrio.

Violência física
Qualquer ofensa à integridade ou à saúde física da mulher, tal como arremessar
objetos; sacudir ou segurar a mulher com força; dar empurrões, tapas, socos, chutes, puxões
de cabelo, mordidas; agredir com armas ou objetivos; queimar; coagir a fazer algo contra sua
vontade, como ingestão forçada de bebida alcoólica e/ou drogas ou ser forçada a participar
de atividades degradantes, como realizar fetiches.

Violência moral
Qualquer ofensa à reputação ou ao bem-estar psicológico que envolva insultos
relativos à sua condição de mulher - puta, vadia, louca -; xingamentos por rejeitar investida
afetiva ou sexual; repassar imagens ou informações de caráter íntimo sem autorização. Os
casos de violência moral recentes têm sido a pornografia de vingança (revenge porn), que
é o compartilhamento de fotos nuas (nudes) ou vídeos íntimos na internet, por um dos
envolvidos, sem autorização da mulher exposta, a fim de causar dano à sua reputação.

Violência patrimonial
Controlar, guardar ou tirar o dinheiro de uma mulher contra a sua vontade; guardar
documentos pessoais; quebrar ou causar danos propositais a objetos; furtar valores, bens,
documentos ou instrumentos de trabalho. Qualquer ofensa ao patrimônio da mulher como
forma de atingi-la.

Violência sexual
Toques ou carícias não desejadas ou não consentidas (ação popularmente conhecida
e naturalizada como "mão boba"); forçar a prática de atos sexuais, estupro, tentativa de
estupro, abuso de vítima sob o efeito de álcool e/ou drogas ou sem condições de consentir;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 46

forçar gravidez ou aborto; impedir o uso de método contraceptivo; retirar a camisinha sem
que a parceira perceba ou sem consentimento; beijar à força. A violência sexual, além de
gerar traumas para a vítima, pode resultar em gravidez indesejada e aumentar o risco de
contração de DSTs e infecção por HIV.
Há duas formas de violência psicológica pouco notadas como agressões. O
comportamento controlador de homens sobre suas esposas, ao não as deixar sair, ao
impedir ou restringir o contato com suas famílias e amigos, ou ainda investigar seus celulares
e e-mails. Da mesma forma, fazer a mulher achar que está ficando louca ou que não sabe
mais o que diz (gaslighting) é uma forma de abuso mental enquadrada como violência
emocional, através do qual o homem distorce os fatos e manipula situação para fazer a vítima
duvidar de sua memória ou estabilidade mental.
A Lei Maria da Penha define ainda como violência doméstica e familiar contra a
mulher:

Art.5 "(...) qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.27

A outra definição legal de violência contra a mulher está no Código Penal brasileiro
e prevê o feminicídio como modalidade de homicídio qualificado. O feminicídio é o
assassinato de mulheres pela razão de ser do sexo feminino; e/ou se envolver violência
doméstica e familiar; e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
A violência contra a mulher costuma ser uma violência baseada no gênero e tem
embasamento em uma discriminação, uma ideia de como as pessoas devem agir. Na
perspectiva machista, considera-se que uma mulher que tem múltiplos parceiros é vulgar e,
portanto, não é digna de respeito. Um homem que concorde com essa ideia e observe tal
comportamento em sua mulher, filha ou conhecida, tende a reagir negativamente e a
discriminá-la de alguma forma em seu convívio social, seja não contratando para um serviço,

27 LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em: LEI Nº 11.340/2006. Acesso em 04/06/2017.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 47

ofendendo à sua reputação ou a agredindo física ou sexualmente. Em resumo, a quebra de


um papel de gênero leva o homem a não identificar aquela mulher como merecedora de
direitos ou de respeito.
Para verificar se houve violência de gênero, vale refletir se aquela agressão teria tido
lugar se invertêssemos os papéis. Se, ao substituirmos a mulher por um homem, a violência
perder o sentido motivador, significa que foi uma violência contra o gênero feminino, por ser
mulher. Essa é uma boa estratégia para desnaturalizar comportamentos.

Finalizando

Neste módulo, você aprendeu que:

A principal legislação nacional sobre a violência doméstica, no Brasil, é a Lei

1 Maria da Penha. Ela também indicou que existem cinco formas de cometer
violência contra mulheres;

2 A violência moral refere-se a atos difamatórios sobre uma mulher, atentando-


se contra sua honra, dignidade e dizendo coisas sobre ela que não são
verdades;

A violência psicológica tem como principal foco coibi-la. É quando existem


3 xingamentos e ameaças, por exemplo;

A violência patrimonial ocorre quando há o controle sobre os bens dessas


4 mulheres, inclusive dinheiro, objetos pessoais, documentos, entre outros;

Já a violência física refere-se à violência que as atinge fisicamente: além do


5 impacto emocional, inclui chutes, tapas, pontapés;

A violência sexual refere-se a qualquer ato sexual forçado, carícias não


5 consentidas etc.;

Todos os tipos de violência contra mulheres atentam à sua integridade física e


6 emocional e devem ser combatidos. Não há um tipo mais grave do que outro e
todos estão codificados no código penal.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 48

4.1.3.4 Aula 4 - Participação, liderança e protagonismo de mulheres

Na Prática

Vocês sabiam que a presença de mulheres na formulação de políticas e ações de


enfrentamento da violência contra elas mesmas aumenta em grande medida as chances
de que estas políticas deem certo?

Pensem na profissão que cada um de vocês desempenha no sistema de segurança


pública. As mulheres são a maioria ou a minoria? Por quê? E mais importante, considerando
tudo que vocês já aprenderam até aqui: como vocês acham que a presença de mulheres
pode contribuir para que ações voltadas ao enfrentamento da violência tenham medidas
mais eficazes?

Mulheres contribuem para o protagonismo e a estabilidade

É isso mesmo. A presença de mulheres na vida pública do Estado e a forma como


são tratadas tem uma relação íntima com a prosperidade, a estabilidade e o desenvolvimento
dos países.28 Por exemplo, o grau em que elas estão envolvidas na política está
correlacionado, por exemplo, a níveis de corrupção e renda nacional e à probabilidade de
conflito armado.29 Observa-se, ainda, que países com níveis de crescimento relativamente
altos e com baixos índices de desigualdade de renda tendem a ter mais mulheres no
parlamento e maior proporção de mulheres inseridas no mercado de trabalho. 30 Além disso,
identificou-se que a presença de mulheres em órgãos legislativos gera efeitos positivos para
questões sociais, particularmente, saúde e educação.31 O Banco Mundial estima que a
eliminação do hiato no acesso à educação entre meninos e meninas aumentaria o PIB
mundial em cerca de 5,4%32. Além de impulsionar o crescimento econômico, o maior
investimento na educação de mulheres e meninas também contribui para a redução de
elevadas taxas de fertilidade e da mortalidade materna e infantil.33

28 Ver: Hudson (2012). Além disso, para acessar o projeto de Woman Stats, de Hudson, ver:
https://tinyurl.com/449ybjxu.
29 Ver: https://tinyurl.com/2zae7j6p.
30 Ver: https://tinyurl.com/bdhea9du. .
31 Ver:https://tinyurl.com/mtrshju6.
32 Ver:https://tinyurl.com/yevh8zd3.
33 Ver: https://tinyurl.com/4krr4hea.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 49

E não é só isso, a presença de mulheres em ações relacionadas à paz e à segurança


também tem um impacto. O trabalho seminal de Laurel Stone comprova que a participação
de mulheres em processos de paz aumenta sua durabilidade. Stone e outras acadêmicas
feministas que a seguiram mostraram que isso ocorre justamente porque mulheres acabam
priorizando questões sociais relacionadas às raízes do conflito e não somente a outras mais
imediatas relacionadas ao cessar fogo.34
E o que tudo isso tem a ver com vocês? Eu diria que tudo. Para começar, gostaria
de contar para vocês sobre uma agenda da ONU, a agenda sobre mulheres, paz e
segurança, que fala do protagonismo de mulheres em ações da paz e da segurança.

A agenda sobre mulheres paz e segurança

No ano 2000, após pressões de inúmeros grupos feministas, o Conselho de


Segurança da ONU aprovou a Resolução 1325 que inaugurou esta agenda. Nela,
reconheceu-se que a guerra gera impactos diferenciados para homens, mulheres, meninos,
meninas e outras com pessoas de identidades de gênero diferentes. Isso ocorre justamente
por conta daqueles papéis de gênero e expectativas sociais que conversamos em aulas
anteriores. Essa resolução reconheceu ainda que é preciso promover a participação de
mulheres na resolução destas guerras e conflitos, pois elas trazem uma perspectiva única e
que geralmente é excluída dessas mesas de negociações.
Esta resolução foi fundamental para que a igualdade de gênero fosse tratada em
ainda mais um âmbito que ela era geralmente ignorada, o da guerra. Foi a partir daí também,
que se reconheceu que a violência sexual em contexto de conflito é um crime contra a
humanidade e ela foi incluída no rol de atribuição do Tribunal Penal Internacional em 2003.
A violência sexual, no entanto, não é o único tipo de violência cometida contra
mulheres em contextos de conflitos. Ela é apenas a face mais visível e já foi,
comprovadamente, utilizada como uma arma de guerra. Grupos rivais utilizam a violência
sexual como forma de enfraquecer grupos rivais, atacando a sua masculinidade e a
expectativa do papel de proteção que homens deveriam exercer. Ela ainda é usada como
tática de genocídio, em especial se combinada à esterilização forçada, ou gravidez forçada,
como forma de eliminar uma etnia. Enfim, são infelizmente muitas as formas de violência.
Mas o importante aqui é destacar que ela não surge na guerra e nem é o único tipo de
violência que afeta mulheres.

34 Stone (2014); Paffenholts (2015a, 2015b, 2015c); O`Reilly et al (2015)


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 50

Na realidade, a raiz deste e dos outros tipos de violência é justamente a


desigualdade de gênero e a crença de que mulheres desempenham um status inferior em
nossas sociedades. Assim, a violência em conflito, é resultado de uma desigualdade que
existe antes desse conflito e que continua após esse conflito. Qualquer atividade de proteção
precisa ser combinada com ações relacionadas à promoção da igualdade. Além disso,
também ficou comprovado que nesse contexto mulheres são as principais vítimas de todos
os tipos de violência, à exceção da violência letal. Novamente, isto ocorre em função das
expectativas sociais que existem sobre mulheres. Os novos conflitos têm um impacto
desproporcional na população civil, e na maioria das vezes, mulheres são relegadas às
funções de cuidado.
Ainda que esta agenda reconheça esse impacto desproporcional e específico em
mulheres, ela também fala do seu potencial de transformação. Afinal, nem todas as mulheres
ficam confinadas aos cuidados. Diversas mulheres vão para o fronte como combatentes, seja
de grupos armados, seja como parte das forças de segurança e defesa de Estados. Elas
participam ativamente da guerra inclusive como combatentes. E não é só isso. Mesmo
aquelas que ficam para trás em suas comunidades, muitas vezes desempenham um papel
de mediação com esses grupos, permitindo o acesso de ajuda humanitária, acesso a escolas
para seus filhos, proteção de hospitais. Há ainda aquelas que estão no suporte às ações de
combate, fazendo as refeições daqueles que vão para o fronte. Enfim, como podem, ver são
muitas as funções que mulheres desempenham, sejam no combate, seja no apoio, seja no
cuidado. Qualquer que seja essa função, ela precisa ser reconhecida, visibilizada e apoiada.
Para sua referência, após a Resolução 1325, outras dez foram elaboradas pelas
Nações Unidas. Um resumo delas está no quadro abaixo. Na próxima seção falaremos sobre
o que essa agenda tem a ver com você.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 51

Resoluções sobre a agenda mulheres paz e segurança

► Resolução 1325 (2000): participação plena e igualitária das mulheres;


impactos desproporcionais dos conflitos armados sobre mulheres e meninas.
► Resolução 1820 (2008): uso da violência sexual como tática de guerra
► Resolução 1888 (2009): disposições para prevenir e combater a violência
sexual; Representante Especial do Secretário-Geral sobre Violência Sexual em Conflitos
► Resolução 1889 (2009): indicadores de progresso para Resolução 1325
(2000); participação plena e igualitária das mulheres; necessidades particulares de
mulheres e meninas
► Resolução 1960 (2010): relatórios sobre violência sexual em conflitos
armados; compromissos específicos e com prazos definidos de combate à violência sexual
► Resolução 2116 (2013): impunidade e violência sexual
► Resolução 2122 (2013): implementação 1325; participação da sociedade
civil; estudo global sobre a 1325.
► Resolução 2242 (2015): traz temas emergentes, como extremismo violento,
pandemias, entre outros.
► Resolução 2467 (2019)): abordagem centrada em sobreviventes para
prevenir e responder à violência sexual
► Resolução 2493 (2019): implementação da 1325; mulheres em processos
de paz; direitos das mulheres; sociedade civil.

A agenda sobre mulheres, paz e segurança no Mundo, na América Latina e no Brasil

Como vocês devem imaginar, uma resolução abordando este tema trouxe de fato
impactos grandes para o campo da paz e da segurança. O principal deles foi uma abertura
cada vez maior de posições e carreiras que têm sido tradicionalmente fechadas para
mulheres, como as forças armadas e as polícias. O pensamento é o seguinte. Se precisamos
de mais mulheres atuando nestes contextos, inclusive por meio de operações de paz, então
cada país precisa ter mais mulheres atuando nessas posições no âmbito nacional. E foi isso
que a ONU pediu. Desde 2005, a ONU tem solicitado aos países para enviar mais mulheres
uniformizadas e mais mulheres civis para atuar em suas forças de paz, promovendo a paz
nesses ambientes de guerra.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 52

Foi nesse contexto que o Brasil elaborou o seu primeiro Plano Nacional de Ação
sobre a agendas Mulheres, Paz e Segurança, e foi lá que reconheceu que é preciso incluir
mais mulheres brasileiras nas forças policiais e militares do Brasil, como forma de propiciar
a oportunidade para que o país efetivamente contribua com estes esforços internacionais.
Desde então, a participação de mulheres brasileiras policiais e militares nesses esforços
melhorou muito. Mas será que falar desta agenda no Brasil é possível? Afinal, o Brasil não é
um país em guerra. Ao menos não se fala da concepção tradicional de guerra. E é
exatamente este o ponto que queria abordar.
Na América Latina e no Brasil, especificamente, enfrentamos dinâmicas conflitivas,
a partir da atuação do crime organizado que tem um impacto desproporcional nas
populações locais, inclusive mulheres e meninas, justamente pelas expectativas sociais de
que tanto falamos. É por isso que é preciso ter uma atenção especial para este público
nessas áreas, em que o Estado tem dificuldade de acessar. E a presença de mulheres,
profissionais da segurança pública para acessá-las, servir como modelo e referência é
fundamental. A presença de mulheres na segurança pública afetará os tipos de ações
dedicadas ao enfrentamento da violência contra mulheres, as ações que observam o impacto
que dinâmicas criminais e conflitivas têm neste grupo e contribuirá para que se tornem mais
eficazes, aperfeiçoando a eficácia operacional das operações.
Mulheres são necessárias em todos os níveis. Tanto em um nível estratégico
pensando nestas políticas, como no nível tático, no terreno, observando o impacto na ponta.
Elas não são as únicas capazes de desempenhar este trabalho, mas, em razão dos papéis
sociais a que elas também estiveram sujeitas, tendem a colocar atenção em aspectos que
os homens prestam menos atenção. Por isso, vamos promover o protagonismo das mulheres
no enfrentamento da violência e convocar os homens para atentar a estes aspectos também.

SAIBA MAIS
Existe uma enorme gama de materiais que tratam desta agenda no Brasil. Acesse
por exemplo:
Renata Giannini et. al. "A agenda sobre mulheres, paz e segurança no contexto
latino-americano: desafios e oportunidades". Artigo Estratégico Instituto Igarapé (mar/2018.
Disponível em: https://tinyurl.com/2p8k3kpp.
Renata A. Giannini. “Promover gênero e construir a paz: a experiência brasileira”.
Artigo Estratégico Instituto Igarapé, (Set/2014). Disponível: https://tinyurl.com/7k599ent.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 53

Renata A. Giannini; Denise Hirao. "Identificar desigualdades para planejar uma paz
duradoura no Brasil". Advocacy Paper. Gender Associations (Dez/2020). Disponível:
https://tinyurl.com/2972ehex.

Finalizando

Neste módulo aprendemos que:

⚫ A agenda sobre mulheres, paz e segurança trata do protagonismo de mulheres


em ações relacionadas à paz e à segurança. Isso porque a presença de mulheres
promovendo acordos de paz mais duradouros e a forma como os países tratam as suas
mulheres podem gerar estabilidade e prosperidade;
⚫ Apesar desta agenda ter sido lançada com foco em guerras tradicionais, as
novas tendências mostram que há outros desafios complexos que ela pode abordar, como a
presença do crime organizado e seu impacto em mulheres. Neste contexto, é preciso
observar o impacto que estas dinâmicas conflitivas têm em mulheres no Brasil;
⚫ A presença e o protagonismo de mulheres em ações de enfrentamento da
violência contra mulheres em todos os níveis, do mais estratégico ao tático, contribuirá para
que suas necessidades sejam devidamente atendidas, colocará mulheres em posição de
cooperar para buscar soluções de um problema que as afeta e, em suma, terá um impacto
positivo na eficácia operacional das operações e ações.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 54

4.2 – Módulo II: Violências, estrutura de governança e


políticas baseadas em evidências
Figura 19: Cenário da Violência

Fonte: Correio Braziliense

4.2.1 Apresentação do módulo

No primeiro módulo você conheceu os marcos normativos internacionais e a


evolução histórica dos direitos humanos de mulheres, aprendeu também conceitos
importantes para começar a entender um pouco mais sobre as violências baseadas em
gênero, os aspectos legais relacionados a essas violências e a importância do protagonismo
das mulheres.
Dando continuidade ao nosso curso, o Módulo II vai trazer o panorama da violência
de gênero no Brasil e abordar a importância dos dados na construção de políticas de
proteção e enfrentamento e de que maneira o profissional de segurança pública pode
contribuir. Além disso, apresentaremos a estrutura de governança para o enfrentamento da
violência contra as mulheres no país, bem como a importância do trabalho em rede e do
trabalho dos profissionais do Susp.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 55

4.2.2 Objetivos do módulo

Este módulo tem por objetivos:

⚫ Compreender o contexto da violência contra meninas e mulheres no Brasil;


⚫ Conhecer a estrutura de governança para enfrentamento da violência contra
mulheres no Brasil;
⚫ Reconhecer como dados e evidências são importantes para informar as
políticas públicas;
⚫ Descrever a importância da produção de dados e registros dos atendimentos
realizados pelos profissionais do Susp;
⚫ Identificar a importância da atuação em rede no enfrentamento das violências
contra mulheres e meninas
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 56

4.2.3 Estrutura do módulo

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 01. O que os dados disponíveis nos dizem sobre violência contra
mulheres e meninas no Brasil?
1.1. A Violência Doméstica
1.2. Violência Sexual
1.3. Violência Letal - Feminicídios e Homicídios Dolosos de Mulheres

Aula 2. Dados e Evidências na formulação de políticas públicas


2.1. Dados e evidências. Do que estamos falando?
2.2. Que fontes de dados existem?
2.3. A importância dos registros feitos pelos profissionais do Susp

Aula 3. Governança e a importância do trabalho em rede


3.1. Estrutura de Governança do Enfrentamento das violências contra as mulheres
no Brasil
3.2. O que é trabalho em rede?
3.3. A(s) rede(s) de proteção
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 57

4.2.3.1 Aula 1 - O que os dados disponíveis nos dizem sobre violência


contra mulheres e meninas no Brasil?

Como vimos no módulo anterior, as violências contra meninas e mulheres se


constituem como um tipo muito complexo de violência. São inúmeros os tipos, as causas e
as maneiras de enfrentamento.
É fundamental que o profissional do Susp compreenda as especificidades das
violências de gênero para que possa se preparar adequadamente para enfrentá-las.
Dados recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 35 mostraram que em
2022 todos os tipos de violências contra as mulheres aumentaram em comparação com o
ano anterior. Cresceram os registros realizados pelas secretarias de segurança pública de
crimes como: agressões decorrentes de violência doméstica, ameaças, feminicídios,
homicídios dolosos, tentativas de feminicídio e os estupros. Aumentaram também os
chamados para o 190, número de emergência das polícias militares, para casos de violência
doméstica. Em 2022 foram 102 chamados por hora. O olhar analítico para o conjunto
desses fatores é fundamental para que possamos compreender o cenário e, a partir dos
dados, sermos capazes de traçar estratégias de enfrentamento.
As diferentes violências contra a mulher, se não forem interrompidas, podem
culminar na expressão mais extrema desse tipo de violência, que é o feminicídio.
Durante essa aula vamos entender um pouco mais sobre o que essas diferentes
violências significam e o que e quais dados disponíveis nos dizem a respeito.

A Violência Doméstica

A violência doméstica, como mencionado no módulo anterior, é definida na Lei


11.340/2006, Lei Maria da Penha, da seguinte forma:

“art. 5º (...) configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com
ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

35 O Anuário Brasileiro de Segurança Pública é uma publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
está em sua 17ª edição. O Anuário se baseia em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública
estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública. Disponível
em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 58

Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos
humanos.”

A Lei Maria da Penha deixa bem claro que a violência doméstica e familiar configura-
se como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que tenha como resultados morte,
sofrimento ou abuso, sejam esses de ordem física, material ou psicológica.
A definição em Lei é importante porque é ela que vai nortear os trabalhos dos
profissionais do Susp desde o registro ou atendimento de uma ocorrência até seu desfecho
ou encaminhamento.
Os dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, referente à 2022, mostram
que todos os indicadores de violência doméstica cresceram em comparação com o ano
anterior. As secretarias estaduais de segurança pública informaram que houve um aumento
de 2,9% nos registros de agressões por violência doméstica, 7,2% nos de ameaça e 8,2%
nos chamados para o 190, o número de emergência das Polícias Militares, resultando em
102 acionamentos por hora.

Figura 20: Crescem todos os indicadores de violência doméstica. 36

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023, pg 16

A violência doméstica quando causada por parceiro íntimo se caracteriza por um


relacionamento abusivo, onde nem sempre ocorre violência física, mas que costuma ser
caracterizado por um ciclo específico, no qual há o que chamamos de “escalada da
violência”. A violência cresce, escala e não diminui. O que pode ocorrer é uma alternância
entre momentos de tensão e momentos de aparente tranquilidade. São as chamadas fases
da violência doméstica, que merecem nossa atenção e que podem ser entendidos da
seguinte maneira:

36 Números referentes a registros do ano 2022.


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 59

Figura 21: Ciclo da violência.

Fonte: Instituto Maria da Penha (IMP)

Quadro 1: Fase 1 - Aumento da Tensão Quadro 2: Fase 2 - Ato de Violência

AUMENTO DA TENSÃO ATO DE VIOLÊNCIA

Nesse primeiro momento, o agressor Esta fase corresponde à explosão do


mostra-se tenso e irritado por coisas agressor, ou seja, a falta de controle chega ao
insignificantes, chegando a ter acessos de raiva. limite e leva ao ato violento. Aqui, toda a tensão
Ele também humilha a vítima, faz ameaças e acumulada na Fase 1 se materializa em violência
destrói objetos. verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial.

A mulher tenta acalmar o agressor, fica Mesmo tendo consciência de que o


aflita e evita qualquer conduta que possa agressor está fora de controle e tem um poder
“provocá-lo”. As sensações são muitas: tristeza, destrutivo grande em relação à sua vida, o
angústia, ansiedade, medo e desilusão são sentimento da mulher é de paralisia e
apenas algumas. impossibilidade de reação. Aqui, ela sofre de uma
tensão psicológica severa (insônia, perda de
Em geral, a vítima tende a negar que isso peso, fadiga constante, ansiedade) e sente medo,
está acontecendo com ela, esconde os fatos das ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha,
demais pessoas e, muitas vezes, acha que fez confusão e dor.
algo de errado para justificar o comportamento
violento do agressor ou que “ele teve um dia ruim Nesse momento, ela também pode tomar
no trabalho”, por exemplo. Essa tensão pode decisões − as mais comuns são: buscar ajuda,
durar dias ou anos, mas como ela aumenta cada denunciar, esconder-se na casa de amigos e
vez mais, é muito provável que a situação levará parentes, pedir a separação e até mesmo
à Fase 2. suicidar-se. Geralmente, há um distanciamento
do agressor.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 60

Quadro 3: Fase 3 - Arrependimento e comportamento carinhoso

ARREPENDIMENTO E COMPORTAMENTO CARINHOSO

Também conhecida como “lua de mel”, esta fase se caracteriza pelo arrependimento do
agressor, que se torna amável para conseguir a reconciliação. A mulher se sente confusa e
pressionada a manter o seu relacionamento diante da sociedade, sobretudo quando o casal tem
filhos. Em outras palavras: ela abre mão de seus direitos e recursos, enquanto ele diz que “vai
mudar”.
Há um período relativamente calmo, em que a mulher se sente feliz por constatar os esforços e as
mudanças de atitude, lembrando também os momentos bons que tiveram juntos. Como há a
demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele, o que estreita a relação de dependência
entre vítima e agressor.

Um misto de medo, confusão, culpa e ilusão fazem parte dos sentimentos da mulher. Por
fim, a tensão volta e, com ela, as agressões da Fase 1.

Fonte: Instituto Maria da Penha (IMP)

Essas fases da violência doméstica constituem um grande desafio para a proteção


das mulheres que se encontram nessas situações e para a atuação dos profissionais de
segurança pública.
Inseridas no contexto da violência, as mulheres costumam sentir medo, culpa e,
muitas vezes, esperança de que o homem vai mudar e que a violência cessará. Algumas
vezes as mulheres podem até pedir ajuda, ligar para o 190, por exemplo, mas isso nem
sempre significa que irão adiante com a denúncia. Podem voltar atrás e depois chamar por
ajuda e voltar atrás novamente. Por isso, precisamos estar prontas e prontos para acolher
essas mulheres tantas vezes quantas forem necessárias.
Em 2021 foram tipificados os crimes de “stalking”, que é a perseguição, e o de
violência psicológica. Como são crimes de recente tipificação, não conseguimos fazer
comparações com anos anteriores, mas os dados mostram que os números registrados não
são desprezíveis, como podemos ver abaixo. Em relação às medidas protetivas de urgência
concedidas, observamos um aumento de 13,7% em relação ao ano anterior. Mas por que
essas informações são importantes?
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 61

Figura 22: 155 casos diários de Stalking.

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023, pg 16

Mencionamos anteriormente que a violência doméstica possui fases que marcam um


processo de escalada da violência. Se a violência não for interrompida ela pode culminar na
morte dessa mulher. Stalking e violência psicológica são, portanto, fatores de risco para o
feminicídio. Ao olharmos para os números dessas violências, somado ao aumento das
medidas protetivas concedidas, temos um quadro bastante preocupante que nos revela que
as violências contra as mulheres vêm crescendo. Por outro lado, isso nos dá a oportunidade
de intervir e criar projetos e políticas de proteção.

SAIBA MAIS
Você conhece a história da Maria da Penha?
Clique aqui para conhecer a mulher que dá o nome a uma das leis mais importantes
do nosso país para o enfrentamento da violência contra a mulher.

A promotora do Ministério Público de São Paulo, Silvia Chakian, fala no USP Talks,
sobre os diversos aspectos relacionados à violência contra a mulher.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 62

Violência Sexual

Conforme vimos no módulo anterior, a violência sexual é entendida como

“(…) qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou
a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que
a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou
manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.” (LEI 11.340/06).

A descrição acima não é capaz de dar conta da complexidade desse tipo de


violência, permeada por muita culpa, vergonha e medo. Por conta disso, as violências
sexuais são as mais subnotificadas e não só aqui no Brasil. Estudo recente divulgado por
pesquisadores do IPEA indicou que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são reportados às
polícias e 4,2% pelos sistemas de informação da saúde. Assim, segundo a estimativa
produzida pelos autores, o patamar de casos de estupro no Brasil é da ordem de 822 mil
casos anuais.
Dados recentes sobre violência sexual apontam que em 2022 tivemos uma explosão
nos registros de estupro. Dos 74.930 registros, 18.110 são estupros e 56.820 são estupros
de vulnerável.

Você sabe o que é estupro de vulnerável?

O art. 217-A do código penal define que:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)
anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1 o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que,
por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática
do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei
nº 12.015, de 2009)

Fonte: LEI Nº 12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009

Compreender a diferença entre estupro e estupro de vulnerável é fundamental para


endereçarmos as ações de enfrentamento. Mais importante ainda é compreender onde
acontecem essas violências, qual o perfil das vítimas e dos agressores.
Se em nosso imaginário social prevalece a ideia de que esse tipo de violência
acontece principalmente à noite, quando a mulher é surpreendida por um desconhecido em
um beco escuro, os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram
uma realidade bem diferente - por isso a importância dos dados para que conheçamos a
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 63

realidade. Os dados mostram que, em 68,3% dos casos, a violência aconteceu na residência
da vítima. Mostrou também que 6 em cada 10 vítimas tinham entre 0 e 13 anos. Nessa faixa
etária, em 86,1% dos casos o agressor era alguém conhecido, sendo um familiar em 64,4%
das ocorrências. O horário em que ocorreram os estupros e estupros de vulneráveis também
nos dão pistas importantes: enquanto os estupros acontecem mais à noite e na madrugada,
os estupros de vulnerável, que tem crianças como principais vítimas, ocorrem
majoritariamente entre 06h e 18h.

Figura 23: Horário que ocorreu o estupro de vulnerável.

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2023, pg.160

Portanto, quando nos referimos às violências sexuais, especialmente aos estupros


e estupros de vulnerável que ocorreram em 2022:

“(...) estamos falando de um tipo de violência essencialmente intrafamiliar, que acontece em casa,
durante o dia, e que tem como principais vítimas pessoas vulneráveis. Esses são fatores que tornam o
enfrentamento a esse tipo de violência sexual extremamente desafiador”. Provavelmente estamos lidando aqui
com situações de violências de gênero muito arraigadas, imbricadas e naturalizadas nas relações familiares e
que são, portanto, transmitidas através das gerações. Esse contexto faz com que seja muito difícil para as
vítimas reconhecerem as violências que sofrem e, quando o fazer, terem muita dificuldade em denunciar ou
buscar ajuda. Dada a complexidade, as respostas às violências sexuais não são simples e precisam considerar
as diversas camadas do problema” (FBSP, 2023, pg 160)
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 64

SAIBA MAIS

Ouça essa entrevista de Samira Bueno, Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de


Segurança Pública para a Natuza Nery no Podcast “O Assunto”, do G1, comentando a
Explosão de Estupros no Brasil em 2022.

Leia a entrevista da médica e sexóloga forense, Mariana Ferreira, sobre o trabalho


que realiza atendendo vítimas de violência sexual:
“Ela atende vítimas de estupro no IML, de bebês de dias a senhora de 80 anos”

Violência Letal

Quando falamos de violência letal contra as mulheres, estamos falando


principalmente de dois tipos de violência: o feminicídio e o homicídio doloso de mulheres.
Qual a diferença entre eles?
Os crimes letais estão definidos no Código Penal, lei brasileira de 1940. No capítulo
I, dos crimes contra a vida, o art. 121 discorre sobre o “matar alguém”, que abarca o homicídio
simples, o homicídio qualificado, o homicídio culposo, o infanticídio e o aborto, e dispõe sobre
a variação da pena a cada um desses atos, considerados crimes. Um homicídio é
considerado doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Em 2015 foi sancionada a Lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do feminicídio,
que introduz um qualificador na categoria de crimes contra a vida, alterando o Código Penal
de 1940, e mudando também a categoria dos chamados crimes hediondos, acrescentando
nessa categoria o feminicídio. Agora, é possível qualificar um homicídio contra uma mulher
pela condição do sexo feminino. E, considera-se que existem razões de condição do sexo
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 65

feminino quando o crime envolve a violência doméstica e familiar, mas também menosprezo
ou discriminação à condição de mulher, o caracterizando também como um crime de ódio.
A alteração da seção dos crimes hediondos (lei nº 8.072/90), que inclui o feminicídio
na mesma categoria, resultou na necessidade de se formar um Tribunal do Júri (júri popular),
para julgar os réus de feminicídio.

PARA REFLETIR
Por que é importante tipificar o assassinato de mulheres? Por que é necessário descortinar
essa violência enquanto um crime cometido pela condição de gênero, evidenciando quando
uma mulher é assassinada por ser mulher?

A Lei do Feminicídio é uma conquista para todas as mulheres e a sociedade em


geral. Poder compreender com mais profundidade as violências que acometem as mulheres
é fundamental. Como mencionado anteriormente, feminicídios são crimes de ódio e resultado
de um processo que engloba outros tipos de violências contra as mulheres. Portanto, são
crimes evitáveis, mas fazem parte de um continuum complexo, que apenas a criminalização
não vai dar conta de resolver, como aponta a advogada Carmen Hein de Campos, no Dossiê
Feminicídio elaborado pela Agência Instituto Patrícia Galvão:

“O feminicídio é a ponta do iceberg. Não podemos achar que a criminalização do feminicídio vai dar conta da
complexidade do tema. Temos que trabalhar para evitar que se chegue ao feminicídio, olhar para baixo do
iceberg e entender que ali há uma série de violências. E compreender que quando o feminicídio acontece é
porque diversas outras medidas falharam. Precisamos ter um olhar muito mais cuidadoso e muito mais atento
para o que falhou.”

A luta de mulheres brasileiras e da América Latina e Caribe contribuiu para que


avançássemos com a tipificação do feminicídio:

“o movimento legislativo na região tem como objetivo comum identificar as mortes de mulheres no conjunto de
homicídios que ocorrem em cada país para dimensionar o fenômeno das mortes intencionais de mulheres por
razões de gênero e tirá-lo da invisibilidade resultante da falta de dados estatísticos. Nesse sentido, nomear as
mortes violentas de mulheres como femicídio ou feminicídio faz parte das estratégias para sensibilizar as
instituições e a sociedade sobre sua ocorrência e permanência na sociedade, combater a impunidade penal
nesses casos, promover os direitos das mulheres e estimular a adoção de políticas de prevenção à violência
baseada no gênero”. (ONU MULHERES, 2016)
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 66

Desde a promulgação da Lei, em 2015, os registros de casos de feminicídio por parte


das autoridades policiais vêm aumentando. É possível dizer que esse aumento é decorrente,
certamente, de uma melhora nos registros, mas não só. A mudança na lei exigiu dos
profissionais de segurança pública e sistema de justiça, uma mudança no olhar para as
mortes violentas de mulheres, desde a investigação, o processo criminal, até o julgamento
desses crimes. Tornou-se necessária a incorporação da lente de gênero no trabalho desses
profissionais. Assumir um olhar de gênero nos sistemas de segurança e justiça é um caminho
sem volta. Cada vez mais a atuação profissional exige a adequação de protocolos e
procedimentos, algo que será abordado com mais detalhes no Módulo 3.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz os dados mais recentes sobre a
violência letal contra as mulheres, apontando um crescimento nos feminicídios, na tentativa
de feminicídios, mas também nos homicídios femininos, conforme quadro abaixo:

Figura 24: Crescimento da Violência contra a Mulher.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023

A análise mais detalhada dos dados, considerando perfil da vítima, local do


crime e relação entre autor e vítima, nos mostra que em 2022 morreram mais mulheres
negras (61,1%) e a maioria em idade reprodutiva, entre 18 e 44 anos (71,9%). Em 83,7%
dos casos, o autor da violência é alguém conhecido da vítima: principalmente o parceiro
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 67

íntimo (53,6%), o ex-parceiro íntimo (19,4%) e algum familiar (10,7%). Sete em cada dez
mulheres foram mortas dentro de casa. Assim como o que vimos em relação à violência
sexual, os feminicídios ocorrem principalmente no contexto doméstico e familiar. A casa das
meninas e mulheres é o local onde estão mais vulneráveis às violências.
Por isso a necessidade de incorporar e aprofundar o olhar de gênero na atuação
profissional. Compreender o contexto em que essas violências acontecem é muito
importante e imprescindível se quisermos salvar mulheres de mortes e outras violências.

SAIBA MAIS
Uma das consequências mais graves dos feminicídios no Brasil, são os filhos que
ficam órfãos após essa violência.
Assista à matéria da TV Brasil sobre os Órfãos do Feminicídio para saber mais.
No Senado Federal está em tramitação o Projeto de Lei n° 1185, de 2022, que visa
criar a Política Nacional de Proteção e Atenção Integral aos Órfãos e Órfãs de
Feminicídios, voltada para a proteção e promoção de atenção multisetorial a crianças e
adolescentes menores de dezoito anos de idade cujas mães responsáveis legais tenham
sido vítimas de feminicídio.

Fique por Dentro

Em agosto de 2023, por unanimidade de votos, o STF declarou inconstitucional o


uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra
mulheres. O julgamento é resultado da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 779, protocolada em janeiro de 2021.
A tese da legítima defesa da honra nunca esteve prevista em nosso ordenamento
jurídico, mas era utilizada com frequência em casos de feminicídio e agressões de mulheres,
como justificativa para o comportamento violento do agressor. A manifestação do STF pela
inconstitucionalidade dessa tese é fundamental porque reconhece, como bem disse a
Ministra Rosa Weber, que:

“não há espaço para a restauração dos costumes medievais e desumanos do


passado pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso em defesa
da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina pela qual
se legitima a eliminação da vida de mulheres”.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
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Com isso, o Superior Tribunal Federal afasta de uma vez por todas as possibilidades
da utilização de argumento que se aproxime da legítima defesa da honra, não somente nos
Plenários do Júri, mas também nas Varas de Violência Doméstica, Cíveis, Trabalhistas,
Criminais e de Família.

SAIBA MAIS

STF retoma julgamento sobre validade da legítima defesa da honra

Acesse o link:

https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/08/01/stf-retoma-julgamento-sobre-
validade-da-legitima-defesa-da-honra.ghtml
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 69

4.2.3.2 Aula 2 - Dados e Evidências na formulação de políticas públicas

Na aula anterior nós aprofundamos aspectos relacionados à violência doméstica,


violência sexual e violência letal contra mulheres, a partir dos dados mais recentes,
disponibilizados pelas secretarias estaduais de segurança pública, compilados e analisados
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No entanto, quando falamos de dados e evidências no Brasil, estamos nos referindo
a um campo bastante complexo e que precisa ainda melhorar muito. Existem diferentes
fontes de dados e informações que podem (e devem) subsidiar o trabalho de gestores,
profissionais e pesquisadores da área. Infelizmente, ainda não contamos com um banco de
dados nacional e nem com um registro unificado, embora já tenhamos instrumento legal para
tal.
Na segunda aula do Módulo 2, vamos aprender sobre dados e evidências na
formulação de políticas públicas, a partir das fontes disponíveis e a importância dos registros
e informações produzidos pelos profissionais do Susp.

Dados e evidências. Do que estamos falando?

A primeira aula do módulo apresentou o cenário da violência contra as mulheres a


partir dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, uma organização da sociedade civil que coleta, compila, padroniza e
publica estatísticas referentes à violência no país. Esses dados são obtidos via Lei de Acesso
à Informação (LAI)37, tendo como fonte as bases de dados encaminhadas pelas próprias
secretarias estaduais de segurança pública e polícias estaduais. São registros de crimes em
geral e dados sobre a estrutura e financiamento da segurança pública, com o intuito de dar
transparência a informações importantes para nortear a construção de políticas públicas
efetivas e garantir a melhoria da Segurança Pública no país.
Obter dados para a construção de políticas públicas é iniciativa fundamental se
queremos empreender esforços e recursos de maneira inteligente e responsável. Mas essa
não é uma tarefa simples.
Existem diferentes fontes de dados, diferentes maneiras de registrar informações e
na maioria das vezes os dados disponíveis não são comparáveis. Cada setor faz (ou deveria
fazer) seu próprio registro, sem que haja uma padronização. Em 2021 foi sancionada a lei

37 LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 70

14.232, que institui a Política Nacional de Dados e Informações relacionadas à Violência


contra as Mulheres (PNAINFO)38, que tem como objetivo reunir, organizar, sistematizar e
disponibilizar dados e informações atinentes a todos os tipos de violência contra as mulheres.
A Lei prevê ações importantes, que podem fazer toda a diferença no campo do
enfrentamento das violências que citamos ao longo desse curso. As ações são:
✓ Integração das bases de dados dos órgãos de atendimento à mulher em
situação de violência no âmbito dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário;
✓ Produção e gestão transparente das informações sobre a situação de violência
contra as mulheres no País;
✓ Incentivo à participação social por meio da oferta de dados consistentes,
atualizados e periódicos que possibilitem a avaliação crítica das políticas públicas de
enfrentamento da violência contra as mulheres.

Através das ações acima, a PNAINFO pretende:

✓ Subsidiar a formulação, o planejamento, a implementação, o monitoramento


e a avaliação das políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres; produzir
informações com disponibilidade, autenticidade, integridade e comparabilidade sobre todos
os tipos de violência contra as mulheres;
✓ Manter as informações disponíveis em sistema eletrônico para acesso rápido
e pleno, ressalvados os dados cuja restrição de publicidade esteja disciplinada pela
legislação;
✓ Integrar e subsidiar a implementação e avaliação da Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres;
✓ Padronizar, integrar e disponibilizar os indicadores das bases de dados dos
organismos de políticas para as mulheres, dos órgãos da saúde, da assistência social, da
segurança pública e do sistema de justiça, entre outros, envolvidos no atendimento às
mulheres em situação de violência;
✓ Padronizar, integrar e disponibilizar informações sobre políticas públicas de
enfrentamento da violência contra as mulheres;
✓ Atender ao disposto nos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário,
no que tange à produção de dados e estatísticas sobre a violência contra as mulheres.

38 PNAINFO
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 71

Para conseguir alcançar os objetivos propostos, a lei prevê ainda a criação, por parte
do poder público, do Registro Unificado de Dados e Informações sobre Violência contra
as Mulheres que deverá reunir informações e dados sobre os registros administrativos,
sobre os serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência e
sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Ou seja, um
mapeamento completo de todos os aspectos necessários para a construção de uma política
mais eficiente de proteção, onde estarão contidas as seguintes informações:

✓ local, data, hora da violência, meio utilizado, descrição da agressão e tipo de


violência;
✓ perfil da mulher agredida, incluídas informações sobre idade, raça/etnia,
deficiência, renda, profissão, escolaridade, procedência de área rural ou urbana e relação
com o agressor;
✓ características do agressor, incluídas informações sobre idade, raça/etnia,
deficiência, renda, profissão, escolaridade, procedência de área rural ou urbana e relação
com a mulher agredida;
✓ histórico de ocorrências envolvendo violência tanto da agredida quanto do
agressor;
✓ ocorrências registradas pelos órgãos policiais;
✓ inquéritos abertos e encaminhamentos;
✓ quantidade de medidas protetivas requeridas pelo Ministério Público e pela
mulher agredida, bem como das concedidas pelo juiz;
✓ quantidade de processos julgados, prazos de julgamento e sentenças
proferidas;
✓ medidas de reeducação e de ressocialização do agressor;
✓ atendimentos prestados à mulher pelos órgãos de saúde, de assistência social
e de segurança pública, pelo sistema de justiça e por outros serviços especializados de
atendimento às mulheres em situação de violência; e
✓ quantitativo de mortes violentas de mulheres.
Para a implantação da referida política, está prevista a criação de um comitê formado
por representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, coordenado por órgão
do Poder Executivo Federal. As UFs e municípios poderão aderir à Política mediante
instrumento de cooperação federativa.
Infelizmente, a Lei ainda não saiu do papel e, para tal, vai precisar superar muitos
obstáculos, a começar pela integração das bases de dados de todos os órgãos de
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 72

atendimento às mulheres em situação de violência. Hoje, por exemplo, os registros de


atendimento das polícias militares e civis não são integrados e ambos também não se
conectam com os registros do Judiciário. Na prática, isso significa que, se uma mulher que
for atendida pela PM, numa chamada de 190 para violência doméstica, e esse chamado não
resultar em denúncia ou prisão e, num outro dia a mesma mulher for assassinada pelo
mesmo agressor, em ocorrência dessa vez atendida pela Polícia Civil, para investigar as
circunstâncias da morte, não há como saber que ela tinha acionado a polícia antes. Mesmo
que tenha chamado 10 vezes. A menos que se tenha o testemunho de alguém ou a confissão
do próprio agressor. Os sistemas das duas organizações não conversam. E mais, se uma
mulher tiver uma medida protetiva em um estado, mudar para outro, o agressor for atrás dela
e ela for assassinada, é bem provável que não se saiba (ou demore-se a saber) sobre a
existência dessa medida protetiva. Não são apenas os setores diferentes que não
conversam, como segurança e justiça. Informações estaduais também não são trocadas
mesmo quando estamos falando de um mesmo setor, ainda que estejamos nos referindo às
polícias de um mesmo estado. Por isso é tão importante a articulação nacional, para que
essas informações, que são tão valiosas, possam ser compartilhadas no interesse das
mulheres em situação de violência e na prevenção de violências.
Não basta, portanto, haver o registro dos
Figura 25: Diga não à violência
dados e das informações, eles precisam estar
disponíveis para que aquele ou aquela, interessadas
na própria proteção, na pesquisa e estudos sobre um
determinado aspecto ou, principalmente, no
desenvolvimento de ações e projetos de
enfrentamento e proteção possam utilizar, aprofundar
ou comparar com outras informações disponíveis.
Uma boa política pública se faz com
diagnóstico, implementação de ações, monitoramento
e avaliação. Para se fazer o diagnóstico, ou seja,
Fonte: TJ Amapá - Twitter
conhecer o problema ou contexto no qual deseja-se
atuar, são necessários dados e informações. São o
ponto de partida. Mas se estamos dizendo que nossas informações não estão disponíveis
ou que são precárias e insuficientes, como é que conseguiremos fazer bons projetos e
políticas capazes de atender o propósito de proteger meninas e mulheres?
A política pública baseada em evidências se resume em, de maneira bem objetiva,
minimizar o uso de intuição ou achismos na formulação de políticas públicas, substituindo-
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 73

os pelo uso de evidências robustas a respeito do problema em foco, do processo e dos


métodos de avaliação. Trata-se de estabelecer um processo de decisão baseado em
informações de alta qualidade, uso de dados e boa capacidade analítica. A construção das
evidências nas quais as políticas serão baseadas exige a transparência dos métodos, da
maneira de aplicação, controle e avaliação, de forma a possibilitar a reprodução e confiança
nos resultados.
A seguir, vamos apresentar diferentes fontes de informação que vão ajudar na
construção desse caminho em busca das evidências, tão importantes para as políticas
públicas.

Que fontes de dados existem?

Como mencionado anteriormente, existem diversas fontes de dados que podem


ajudar àqueles que querem se aprofundar e conhecer mais a respeito das violências que
afetam as mulheres brasileiras e dos serviços de atendimento e proteção existentes.
Registros de ocorrências policiais, notificações dos profissionais de saúde, sistematização
de informações por parte das organizações da sociedade civil, pesquisas acadêmicas e
pesquisas de vitimização são fontes de informação importantes para compor o cenário e as
diferentes perspectivas dos contextos de violência.
As pesquisas de vitimização são importantes porque buscam mapear
subnotificações, informações de pessoas que foram vítimas de algum crime ou violência e
que, por qualquer que seja o motivo, não fizeram registro em nenhum órgão oficial.
Abaixo elencamos algumas fontes de dados existentes que possuem distintas
origens e finalidades, mas que podem ajudar você que pretende entender melhor sobre as
diferentes violências que assolam as mulheres diariamente:
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 74

Saúde

Figura 26: Sistema de Informação de Agravos de Notificação.

SINAN: SISTEMA DE INFORMAÇÃO DE AGRAVOS DE NOTIFICAÇÃO


“O Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan é alimentado pela notificação e
investigação de casos de doenças e agravos que constam da lista nacional de doenças de notificação
compulsória (Portaria de Consolidação nº 4, de 28 de Setembro de 2017), mas é facultado a estados
e municípios incluir outros problemas de saúde importantes em sua região. Sua utilização permite a
realização de diagnóstico da ocorrência de um evento na população, podendo fornecer subsídios para
explicações causais dos agravos de notificação compulsória, além de vir a indicar riscos aos quais as
pessoas estão sujeitas, contribuindo assim, para a identificação da realidade epidemiológica de
determinada área geográfica. A notificação individual de violência interpessoal e
autoprovocada é compulsória nos casos cujas vítimas são crianças, adolescentes,
mulheres e pessoas idosas. O Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes incluiu
também os(as) indígenas, as pessoas com deficiência e a população LGBT,
considerando a maior vulnerabilidade desses grupos.
Fonte: https://portalsinan.saude.gov.br/
39
Fonte: SINAN

SIM - Sistema de informações sobre Mortalidade.

O acesso às informações sobre mortalidade estão disponível nos seguintes endereços e


formas:
Para tabulação On-Line:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def
Permite aos usuários tabular os dados por meio de aplicativo de fácil manejo
chamado Tabnet;
Para Download dos Micro Dados:
http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=0901&item=1&acao=26&pad=3165
5
Para tabulação de dados:
Para realização de tabulações é disponibilizado pelo DATASUS a ferramenta TabWin,
para download da ferramenta acesse:
http://www.datasus.gov.br/tabwin;
Painéis: para acesso aos painéis de mortalidade acesse o link:
https://svs.aids.gov.br/daent/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/
A Secretaria de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde publica e disponibiliza,
anualmente, o livro "Saúde no Brasil", as edições mais recentes de tais publicações
estão disponíveis no endereço:
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/publicacoes-svs
Fonte: Apresentação - SIM - CGIAE - DAENT - SVS/MS (aids.gov.br)

39 Saiba mais em:


https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/viva_instrutivo_violencia_interpessoal_autoprovocada_2ed.pdf
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 75

Segurança Pública:

Figura 27: SINESP: Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisional e sobre Drogas.

Fonte: Sinesp

Secretarias Estaduais de Segurança Pública:

Reúnem registros administrativos realizados pelas Secretarias de Segurança


Pública, seja de ocorrências ou atendimentos realizados pelas polícias civil e militar. Algumas
secretarias disponibilizam as informações em seus sites institucionais. Alguns estados (e
municípios) possuem uma publicação periódica com dados específicos sobre violência
contra a mulher, como o Rio de Janeiro, que tem o “Dossiê Mulher”, elaborado pelo Instituto
de Segurança Pública e que traz não apenas os dados, mas análises sobre os mesmos,
numa contribuição importante para a proteção das mulheres no Rio de Janeiro.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 76

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

O IBGE publica a Munic - pesquisa de informações básicas municipais onde a cada


quatro anos sai o suplemento sobre segurança pública onde é possível encontrar
informações sobre as delegacias especializadas de atendimento às mulheres em situação
de violência.

Sociedade Civil

Fórum Brasileiro de Segurança Pública:

Anuário Brasileiro de Segurança Pública se baseia em informações fornecidas pelas


secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre
outras fontes oficiais da Segurança Pública. A publicação é uma ferramenta importante para
a promoção da transparência e da prestação de contas na área, contribuindo para a melhoria
da qualidade dos dados. Além disso, produz conhecimento, incentiva a avaliação de políticas
públicas e promove o debate de novos temas na agenda do setor.
https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/

Atlas da Violência busca retratar a violência no Brasil principalmente a partir dos dados do
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos
de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. https://forumseguranca.org.br/atlas-da-
violencia/ e https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/

Pesquisa Visível e Invisível - a Vitimização de Mulheres no Brasil foi realizada pelo


Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017, 2019, 2021 e 2023 com o intuito levantar
informações sobre a percepção da violência contra a mulher e sobre a vitimização sofrida
segundo os tipos de agressão, o perfil da vítima e as atitudes tomadas frente à violência.
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-
relatorio.pdf

Instituto Igarapé

A EVA - Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas, é uma


plataforma de visualização que reúne conteúdo relevante para informar políticas públicas
voltadas para a prevenção, redução e eliminação da violência contra mulheres na América
Latina. A ferramenta mapeia casos de diversos tipos inicialmente em três países: Brasil,
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 77

Colômbia e México. Os dados, que chegam ao nível municipal, estão detalhados por idade,
raça e tipo de instrumento utilizado. A plataforma mostra também a evolução dos direitos
humanos das mulheres e da igualdade de gênero, e explora a implementação de iniciativas
focadas na violência contra mulheres.

Instituto Patrícia Galvão

O Dossiê Feminicídio é uma ferramenta de suporte para que interessados de


diversas áreas: imprensa, academia, terceiro setor, governo, movimentos sociais e
interessados em geral possam pautar e debater questões fundamentais, cobrar direitos e
desconstruir discriminações, contribuindo para evitar que mortes anunciadas sigam
acontecendo sem provocar impacto na opinião pública e nem respostas satisfatórias das
instituições do Estado.
No Dossiê estão reunidas diversas pesquisas, dados, documentos e legislações de
referência. O instituto entrevistou diversas pessoas, entre especialistas, pesquisadores,
operadores da área do direito, de outras áreas que atendem vítimas, entre outros. O
resultado foi sistematizado em uma plataforma interativa para acesso via internet, com
conteúdos organizados para garantir a autonomia de quem acessa o Dossiê, seja para
consultas específicas ou para saber mais sobre o tema de um modo geral.

Monitor Da Violência - G1, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Núcleo


de Estudos da Violência/USP

O Monitor da Violência é uma parceria do FBSP com o G1 e o Núcleo de Estudos da


Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). O projeto começou em 2017, quando
230 jornalistas apuraram e escreveram as histórias de 1.195 pessoas que morreram de forma
violenta no país. Desde então, o painel monitora mensalmente os homicídios, latrocínios e
lesões corporais seguidas de morte no país.

Antra - Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Publicam anualmente dossiê com dados sobre os assassinatos da população


LGBTQIA+: https://antrabrasil.org/assassinatos/
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 78

Instituto DataSenado

O Instituto reúne informações e estatísticas oficiais para subsidiar a atuação


parlamentar do Senado Federal.
https://www.senado.leg.br/institucional/datasenado/paineis_dados/#/?pesquisa=viol
encia_domestica_familiar

Observatório da Mulher contra a Violência (OMV)

Reúne e sistematiza as estatísticas oficiais sobre a violência contra a mulher;


promove estudos e pesquisas, levantamento de estatísticas e outras informações relevantes,
que levem em consideração o grau de parentesco, a dependência econômica e a cor ou
etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e
familiar contra a mulher, para a sistematização de dados a serem unificados nacionalmente,
e para a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas; em apoio ao trabalho da
Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal e a Comissão Permanente Mista de
Combate à Violência contra a Mulher40. Em parceria com o Instituto DataSenado, elaborou o
Painel Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, uma plataforma interativa para
visualização, análise e download dos resultados das pesquisas de opinião sobre violência
contra a mulher. O levantamento é feito a cada dois anos e a série histórica tem início em
2005.
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv

A importância dos registros feitos pelos profissionais do Susp

Nós vimos anteriormente como ter dados e evidências qualificadas são importantes
para a construção de políticas públicas mais eficientes. Por isso, é fundamental que os
profissionais do Susp criem ou estimulem a cultura de registro dos atendimentos realizados
com o maior número de informações possível. De registros os atendimentos de chamados
no 190 para violência doméstica, no caso das polícias militares, aos boletins de ocorrência
online ou nas delegacias de polícia, no caso das polícias civis. Quanto mais informações
disponíveis como raça/etnia, cor, idade, relação entre vítima e autor, melhor.

40 https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/pdfs/resolucao-no-7-de-2016
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 79

Se eu não registro é como se determinado fenômeno não existisse. Ao fazer os


registros adequadamente, o profissional do Susp vai conseguir ter clareza sobre de que
maneira violência contra as mulheres é ou não uma demanda que se apresenta e de que
forma precisa se preparar para atuar no enfrentamento.
Os registros feitos devem ser capazes de traduzir o fenômeno que se quer
observar/estudar e prevenir, no caso de crime e violência.

SAIBA MAIS
Veja, na prática, como utilizar dados e evidências em projetos e políticas locais!
Conheça a experiência do NÚCLEO DE ESTUDO E PESQUISA EM VIOLÊNCIA DE
GÊNERO E NÚCLEO POLICIAL INVESTIGATIVO DO FEMINICÍDIO – TERESINA (PI)
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 80

4.2.3.3 Aula 3 - Governança e a importância do trabalho em rede

Para refletir antes de começar

Figura 28: Legado


Fonte: O que o sol faz com as flores, 2018, p. 213

Estrutura de Governança da proteção de mulheres no Brasil

No primeiro módulo do curso você aprendeu sobre a evolução dos direitos humanos
das mulheres e os marcos normativos mais importantes para que pudéssemos chegar onde
estamos. Todos esses aspectos, obviamente, tiveram um impacto decisivo nos rumos e
aspectos do enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil, especialmente por
parte do poder público. Como a história nos mostra, o movimento organizado de mulheres
teve e ainda tem um papel fundamental e indispensável na aprovação de leis, influenciando
a criação de políticas e denunciando violências.
A partir, portanto, da atuação desses movimentos sociais no Brasil e no mundo e, à
medida em que os direitos humanos das mulheres foram sendo conquistados e
consolidados, conforme abordado no Módulo 1, as políticas para as mulheres foram sendo
desenhadas pelos governos e, no Brasil, temos alguns marcos importantes que nos ajudam
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 81

a entender como a estrutura de governança da proteção de mulheres está orientada em


nosso país, a partir de planos, pactos e legislações federais.

“a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres pelo Governo Federal, no ano de
2003, e com a realização de conferências nacionais, cujas diretrizes levaram à formulação dos Planos
Nacionais de Políticas para as Mulheres. A complexidade e a abrangência do problema da violência contra
mulheres exigiram do Governo brasileiro alterações significativas na formulação e implementação de suas
políticas públicas, motivo pelo qual os Planos Nacionais de Política para Mulheres buscaram instituir a
integração entre diversas agências públicas, níveis governamentais e setores sociais para que a atuação estatal
ocorresse de forma satisfatória. No período entre 2005 e 2015, foram elaborados pelo Governo Federal três
Planos Nacionais de Políticas para Mulheres, os quais elencaram o enfrentamento da violência como um dos
principais eixos de atuação para garantir às mulheres uma vida mais digna. Foram traçadas diversas metas,
tais como a implementação e o fortalecimento da política nacional de enfrentamento; a garantia de atendimento
integral, humanizado e de qualidade às mulheres em situação de violência doméstica; a redução dos índices
criminais; a transversalidade das temáticas de gênero e violência contra mulheres nas mais diversas políticas
públicas setoriais; a intersetorialidade entre órgãos e atores de diferentes níveis de governo (BRASIL, 2005;
BRASIL, 2008; BRASIL, 2011).”41

Estrutura de Governança da proteção de mulheres no Brasil:


⚫ 2003: Lei no 10.778, de 24 de novembro, que estabelece a Notificação
Compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida
em serviços de saúde públicos ou privados.
⚫ 2003: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM, criada com
o objetivo de assessorar diretamente a presidência da República nos assuntos relacionados
às mulheres, buscando promover através de suas ações, a igualdade entre homens e
mulheres e combater todas as formas de preconceito e discriminação.
⚫ 2004: Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, construído a partir de
extensa consulta através de conferências em nível nacional, estadual e municipal:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/PNPM.pdf
⚫ 2006: Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da
Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
⚫ 2007: Pacto Nacional pelo enfrentamento a violência contra as mulheres,
que reuniu dez Ministérios sob a coordenação da SPM, além de governos nos níveis
estaduais e municipais e também organizações sociais de mulheres.
http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/lula/pacto-
nacional-pelo-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres-2010
⚫ 2007: II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

41 AVELINO, Victor Pereira; BARBOSA, Ycarim Melgaço. Entraves à implementação da política de


enfrentamento à violência contra mulheres: um problema de governança pública. Oikos: Família e Sociedade
em Debate, v. 31, n. 1, p.57-75, 2020. http://dx.doi.org/10.31423/oikos.v31i1.9933
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 82

⚫ 2009: Criação da Procuradoria da Mulher, no âmbito da Câmara dos


Deputados com o objetivo de zelar pela participação mais efetiva das deputadas nas
atividades da Câmara, fiscalizar e acompanhar programas do Executivo, receber denúncias
de discriminação e violência contra a mulher e cooperar com organismos nacionais e
internacionais na promoção dos direitos da mulher.42
⚫ 2010: SPM ganha Status de Ministério
⚫ 2011: Revisão do Pacto Nacional - incluiu em suas ações o fortalecimento
das redes de proteção, incremento ao acesso à justiça, garantia da aplicação da Lei Maria
da Penha em nível nacional, entre outros. https://www.compromissoeatitude.org.br/pacto-
nacional-pelo-enfrentamento-a-violencia-contra-mulheres/ .
⚫ 2010: Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
⚫ 2011: O CNJ determina que os Tribunais de Justiça criem Coordenadorias
Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar -- CEVID, que têm
por missão melhorar as infraestruturas judiciais, apoiar na formação de magistrados e
funcionários, criar tribunais de violência doméstica, recolher dados relevantes, tratar queixas
e corrigir falhas no sistema. Embora o nível de atividade varie de estado para estado, as
CEVIDs têm sido atores locais críticos no estabelecimento de redes multiagências de apoio
às vítimas de violência43
⚫ 2013: A Câmara dos Deputados criou uma Secretaria da Mulher (Secretaria
da Mulher), dentro da qual estão a Procuradoria da Mulher e a Coordenação dos Direitos da
Mulher (Coordenadoria da Mulher). Esta última representa a bancada feminina e tem assento
no colégio das lideranças partidárias com direito à palavra, voto e uso do plenário da casa
normalmente destinado apenas a uma líder partidária.
⚫ 2015: III Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
⚫ 2015: Lei no 13.104, de 9 de março de 2015, que altera o artigo 121 do Código
Penal para prever o Feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e
o art. 1o da Lei no 8.072, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
⚫ 2016: Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva
de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios), doravante 'Diretrizes Nacionais',
com base no Protocolo Modelo da ONU (Brasil, 2016): importante incentivo e incremento às
ações da segurança pública e justiça criminal

42 Saiba mais em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-


mulher/videos/10-anos-procuradoria-da-mulher
43 Macaulay, 2021
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 83

⚫ 2017: CNJ lança sua Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à


Violência contra as Mulheres
⚫ 2018: DECRETO Nº 9.586, DE 27 DE NOVEMBRO DE 2018, Institui o
Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres e o Plano Nacional de Combate à
Violência Doméstica.
⚫ 2019: Um Pacto Nacional pela Prevenção da Violência Doméstica foi
assinado pelos três poderes, com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo
Tribunal Federal (STF) representando o Judiciário, o Ministro da Justiça, o poder executivo,
e a bancada feminina, o legislativo nacional. A SPM foi rebaixada por decreto presidencial e
reabsorvida, junto com o CNDM, em um Ministério da Justiça reestruturado.
⚫ 2019: Criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
- centraliza as ações na família e não nas mulheres.
⚫ 2019: o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) 44 cria um Cadastro
nacional de feminicídios e violência doméstica, conforme o estabelecido na Lei Maria da
Penha, no que se refere à atuação do Ministério Público. No entanto, como a participação e
adesão dos estados não é obrigatória, nem todos os estados participam e compartilham as
informações: https://www.cnmp.mp.br/portal/violencia-domestica
⚫ 2021: Promulgada a Lei 14.232, que institui a Política Nacional de Dados e
Informações relacionadas à Violência contra as Mulheres (PNAINFO).
⚫ 2023: É criado o Ministério das Mulheres
⚫ 2023: Lei 14.550 - Garante a proteção imediata para mulheres que
denunciam violência doméstica, conferindo maior efetividade à aplicação das medidas
protetivas de urgência. Ela também estabelece que a causa ou a motivação dos atos de
violência e a condição do agressor ou da ofendida não excluem a aplicação célere da
legislação. Confira as principais mudanças:
1. Determina concessão da medida protetiva de urgência independentemente de
registro de boletim de ocorrência;
2. Concede o devido valor à palavra da vítima;
3. Determina que medidas protetivas não têm prazo;

44 O Conselho Nacional do Ministério Público -- CNMP), criado em 2004, abraçou a causa do enfrentamento
das violências contra as mulheres. No entanto, apesar de os promotores se orgulharem de sua autonomia
operacional e profissional, o processo tem sido mais desigual e menos homogêneono sentido de tornarem
operacionais as práticas de enfrentamento. No topo da pirâmide, o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais
dos Estados tem uma comissão permanente sobre violência doméstica. Além disso, a maioria das
procuradorias-gerais estaduais (procuradorias) tem uma unidade de direitos da mulher na capital e algumas
também têm escritórios regionais. No estado de São Paulo, por exemplo, há o Grupo de Atuação Especial de
Enfrentamento à Violência Doméstica (GEVID). (Macaulay, 2021)
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 84

4. Configura toda situação de violência doméstica e familiar contra a mulher como


violência baseada no gênero45.
⚫ 2023: Lei 14.541, que garante o funcionamento ininterrupto de Delegacias
Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), ou seja, durante toda a semana, finais
de semana e feriados. Não havendo a delegacia especializada em um determinado
município, a delegacia existente deverá dar prioridade ao atendimento à mulher vítima de
violência, que deve ser feito por uma agente feminina especializada nessa abordagem. A lei
prevê ainda assistência psicológica e jurídica a mulheres vítimas de violência.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.541-de-3-de-abril-de-2023-474874075
⚫ 2023: Lei 14.542 garante prioridade para mulheres em situação de
violência doméstica ou familiar no Sistema Nacional de Emprego (Sine), facilitando a
inserção no mercado de trabalho, no intuito de promover a autonomia financeira. Há previsão
de reserva de 10% das vagas ofertadas para intermediação. Conforme a proposição
legislativa, a possibilidade de as mulheres terem acesso à renda própria contribui para que
possam se afastar do ambiente de violência permanente em que se encontram, e estimular,
assim, o ingresso da mulher vítima de violência doméstica no mercado de trabalho:
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.542-de-3-de-abril-de-2023-474873609
⚫ 2023: Lei 14.540 instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao
Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual: tem
validade no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e
municipal. Entre os objetivos da Lei 14.540 prevenir e enfrentar a prática do assédio sexual
e demais crimes contra a dignidade sexual e de todas as formas de violência sexual, além
de capacitar agentes públicos, implementar e disseminar campanhas educativas. O texto
prevê, adicionalmente, que qualquer pessoa que tiver conhecimento da prática de assédio
sexual e demais crimes contra a dignidade sexual tem o dever legal de denunciar e de
colaborar com os procedimentos administrativos internos e externos:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14540.htm
A criação das normas é fundamental, pois colocam na agenda do poder público
temas que são imprescindíveis e inegociáveis. No entanto, apenas as leis não bastam, pois,
as mesmas precisam de fiscalização, incentivo e acompanhamento em sua aplicação. A lei
que determina o funcionamento das DEAMs ininterruptamente é importante para jogar luz
na necessidade do atendimento especializado às mulheres em situação de violência, mas

45 https://www.gov.br/mulheres/pt-br/central-de-conteudos/noticias/2023/abril/lei-determina-protecao-
imediata-a-mulheres-que-denunciam-violencia-domestica-e-familiar
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 85

será que as polícias civis de todos os estados conseguem colocá-lo em prática? Possuem
efetivo e equipamentos para tal? Sabemos que o número de delegacias existentes não é
nem de longe suficiente para atender a demanda. Existem alternativas, como a criada por
São Paulo, que disponibiliza atendimento por videoconferência realizado por equipe
especializada, 24h, às mulheres em localidades onde não existem delegacias das mulheres.
O importante é que os estados se preocupem em capacitar todo o efetivo para que sejam
capazes de atender mulheres em situação de violência, trabalhem eles em delegacias
especializadas ou não.
Por isso, além de conhecer as normas legais, os profissionais do Susp precisam
conhecer os serviços disponíveis para atendimento e acolhimento das mulheres, sejam estes
no âmbito da segurança e da justiça ou de outra área correlata.

Disque 100 e Ligue 18046

O Disque 100 e o Ligue 180 são serviços gratuitos para denúncias de violações de
direitos humanos e de violência contra a mulher, respectivamente. Qualquer pessoa pode
fazer uma denúncia pelos serviços, que funcionam 24h por dia, incluindo sábados, domingos
e feriados. Além de cadastrar e encaminhar os casos aos órgãos competentes, a Ouvidoria
recebe reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de
atendimento.

Figura 29: Disque 100 Ligue 180

Fonte: Folha do Litoral

46 https://www.gov.br/mdh/pt-br/direitoshumanosparatodos/disque-100-e-ligue-180
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 86

O que é trabalho em rede?

O conceito de rede de enfrentamento da violência contra as mulheres se refere a


uma atuação conjunta e articulada de diferentes setores e segmentos, incluindo instituições
e serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, com o objetivo de
desenvolver estratégias de prevenção, além de políticas de garantia de autonomia, direitos,
direito à vida, responsabilização dos agressores, entre outras. A rede de enfrentamento
procura trabalhar em situações de combate, prevenção, assistência e garantia de direitos -
numa tentativa de dar conta da complexidade do fenômeno da violência contra as mulheres.
Para isso, uma rede de enfrentamento precisa reunir:
“agentes governamentais e não-governamentais formuladores, fiscalizadores
e executores de políticas voltadas para as mulheres (organismos de políticas para as
mulheres, ONGs feministas, movimento de mulheres, conselhos dos direitos das
mulheres, outros conselhos de controle social; núcleos de enfrentamento ao tráfico
de mulheres, etc.); para a responsabilização dos agressores; universidades; órgãos
federais, estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos (habitação,
educação, trabalho, seguridade social, cultura) e serviços especializados e não-
especializados de atendimento às mulheres em situação de violência (que compõem
a rede de atendimento às mulheres em situação de violência)”47.
Já o que chamamos de “rede de atendimento” se refere ao conjunto de ações e
serviços de diferentes setores (em especial, da assistência social, da justiça, da segurança
pública e da saúde), que tem como objetivo ampliar e melhorar a qualidade do atendimento,
a identificação e o encaminhamento adequados das mulheres em situação de violência,
considerando a integralidade e a humanização do atendimento. (Brasil, 2011).
O Dossiê Feminicídio, do Instituto Patrícia Galvão, nos dá exemplos de iniciativas
que podem contribuir para a interrupção das violências e que tem como cerne a integração
de serviços:
1) Criação de serviços em todo o território nacional, com investimento financeiro
adequado;
2) Serviços integrados com acolhimento de qualidade e perspectiva de gênero:

47 https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-referencias/copy2_of_entenda-a-
violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 87

“A integração e o fluxo dos serviços são fundamentais no atendimento para garantir que,
uma vez rompida a barreira inicial da denúncia, a mulher seja efetivamente atendida e
tenha sua integridade preservada.”
Jacqueline Pitanguy, socióloga, cientista política e Coordenadora da ONG CEPIA –
Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.

3) Produção de dados e indicadores para elaboração, implementação e monitoramento


das políticas públicas:

“É importante conhecer a dimensão da violência contra as mulheres para poder enfrentá-


la e adotar políticas coordenadas nos locais onde estão os maiores índices. Para adotar
medidas mais efetivas, é preciso ter dados que relacionem, por exemplo, as
interseccionalidades de raça e idade com a violência de gênero.”
Valéria Diez Scarance Fernandes, promotora de Justiça e coordenadora-geral da
Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
(Copevid).
4) Promoção de ações de prevenção à violência e desconstrução das desigualdades
de gênero, envolvendo educação e mídia.
A importância da integração e, principalmente, da articulação dos serviços está em
impedir que as mulheres que precisam de ajuda entrem no que os especialistas chamam de
“rota crítica” do feminicídio: “Apesar de previsto tanto pela Lei Maria da Penha quanto por
convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, o atendimento integral às mulheres em
situação de violência ainda é um desafio a superar. Essa lacuna impõe às vítimas a chamada
‘rota crítica’ – o caminho fragmentado que a mulher percorre buscando o atendimento do
Estado, arcando com as dificuldades estruturais colocadas, como de transporte, repetindo o
relato da violência sofrida reiteradas vezes e, ainda, enfrentando muitas vezes a violência
institucional por parte de profissionais que, pouco sensibilizados, reproduzem discriminações
contra as mulheres nos serviços de atendimento .”48

A(s) rede(s) de proteção

As redes de proteção, compreendidas entre redes de enfrentamento e de


atendimento possuem as seguintes características:

48 https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/capitulos/quais-sao-os-servicos-existentes-e-seus-
limites/
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 88

Fonte: Secretaria de Política para as Mulheres, pg. 15.

https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-
referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres

Conheça um exemplo de trabalho em rede, a Casa da Mulher Brasileira, um


programa criado pelo governo federal e que reúne diversas frentes de atendimento às
mulheres em situação de violência.
A Casa da Mulher Brasileira integra em um mesmo espaço físico serviços
especializados para os mais diversos tipos de violência contra as mulheres. Ali é possível
encontrar profissionais dos diversos serviços de atendimento, começando por acolhimento e
triagem; apoio psicossocial; delegacia; Juizado; Ministério Público, Defensoria Pública;
promoção de autonomia econômica; cuidado das crianças – brinquedoteca; alojamento de
passagem e central de transportes.

Como Funciona

Acolhimento e Triagem: O serviço da equipe de acolhimento e triagem é a porta de


entrada e onde espera-se que seja criado um laço de confiança com a mulher que procura
atendimento de maneira a agilizar os encaminhamentos e iniciar os atendimentos prestados
pelos outros serviços da Casa, ou pelos demais serviços da rede, quando necessário.

Equipe multidisciplinar: A equipe multidisciplinar presta atendimento psicossocial


continuado e dá suporte aos demais serviços da Casa. O trabalho dessa equipe tem por
objetivo principal auxiliar as mulheres a lidarem com o impacto da violência que sofreram,
num processo de resgate da autoestima, da autonomia e da cidadania.

Delegacia: Presença de uma unidade da Delegacia Especializada de Atendimento


à Mulher (Deam), da Polícia Civil para ações de prevenção, proteção e investigação dos
crimes, sejam os de violência doméstica ou sexual, entre outros.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 89

Juizado/Vara Especializada: Os juizados/varas especializadas de Violência


Doméstica e Familiar contra a Mulher são os órgãos da Justiça responsáveis por processar,
julgar e executar as causas resultantes de violência doméstica e familiar, conforme previsto
na Lei Maria da Penha.

Ministério Público: A Promotoria Especializada do Ministério Público promove a


ação penal nos crimes de violência contra as mulheres. Além disso, atua na fiscalização dos
serviços da rede de atendimento.

Defensoria Pública: É o Núcleo Especializado da Defensoria Pública que orienta as


mulheres sobre seus direitos, presta assistência jurídica e acompanha todas as etapas do
processo judicial, de natureza cível ou criminal.

Promoção de Autonomia Econômica: Podemos considerar esse serviço uma das


“portas de saída” da situação de violência para as mulheres. Educação financeira, qua-
lificação profissional e inserção no mercado de trabalho podem ajudar as mulheres a
romperem com os ciclos de violência nos quais estão inseridas. Em situações onde as
mulheres não tenham condições de sustento próprio e/ou de seus filhos, podem solicitar sua
inclusão em programas de assistência e de inclusão social dos governos federal, estadual e
municipal.

Central de Transportes: A Casa da Mulher Brasileira também proporciona o


deslocamento de mulheres atendidas na Casa da Mulher Brasileira para os demais serviços
da Rede de Atendimento: saúde, rede socioassistencial (CRAS e CREAS), medicina legal e
abrigamento, entre outros.

Brinquedoteca: Acolhe crianças de 0 a 12 anos de idade, que acompanhem as


mulheres, enquanto estas aguardam o atendimento.

Alojamento de Passagem: A casa conta ainda com um espaço de abrigamento


temporário de até 24h para mulheres em situação de violência, acompanhadas ou não de
seus filhos e que corram risco iminente de morte.

Serviços de Saúde: É possível receber também atendimento de saúde nas Casas.


Nos casos de violência sexual, a contracepção de emergência e a prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis/aids devem ocorrer em até 72h. Além do atendimento de
urgência, os serviços de saúde também oferecem acompanhamento médico e psicossocial.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 90

Caso queiram saber mais sobre os serviços de atendimento disponíveis, é possível


consultar, por exemplo, o Observatório da Mulher contra a Violência, do Senado Federal,
que disponibiliza informações sobre os serviços especializados de atendimento às mulheres
em situação de violência em todo o Brasil:
https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/acoes-contra-violencia/servicos-
especializados-de-atendimento-a-mulher
O Mapa do Acolhimento, uma iniciativa da sociedade civil, apresenta um mapa de
serviços públicos de atendimento às mulheres:
Disponível em: https://queroseracolhida.mapadoacolhimento.org/
Além da possibilidade de disponibilizarem atendimento psicológico e jurídico gratuito.
Outra iniciativa nesse sentido, também da sociedade civil, é o Justiceiras, projeto do
Instituto Justiça de Saia que também oferece atendimentos jurídico e psicológico para
mulheres em situação de violência.

Finalizando

Neste módulo, você aprendeu que:

✓ As violências contra a mulher vêm crescendo nos últimos anos;


✓ As violências doméstica e a sexual acontecem principalmente nas casas de
meninas e mulheres, local onde deveriam estar seguras;
✓ O principal autor dessas violências é alguém conhecido, muitas vezes com
vínculo familiar;
✓ São as mulheres negras as mais vulneráveis;
✓ Existem diferentes fontes de dados, diferentes maneiras de registrar
informações e na maioria das vezes os dados disponíveis não são comparáveis. Cada setor
faz (ou deveria fazer) seu próprio registro, sem que haja uma padronização;
✓ A Lei que cria a PNAINFO - Política Nacional de Dados e Informações
relacionadas à Violência contra as Mulheres está vigente, mas não saiu do papel;
✓ Existe uma estrutura de governança e as principais políticas públicas para o
enfrentamento da violência contra mulheres no Brasil;
✓ É importante utilizar os dados disponíveis para orientar as suas ações - por isso
é fundamental saber onde encontrá-los;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 91

✓ É fundamental que os profissionais do Susp saibam produzir dados e registros


dos atendimentos que realizam;
✓ Para o enfrentamento das violências baseadas em gênero, é importante a
atuação em rede;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 92

4.3 – Módulo III: Aspectos operacionais e táticos fundamentais para o


enfrentamento da violência contra mulheres

4.3.1 Apresentação do módulo

Este módulo abordará os aspectos operacionais e táticos do enfrentamento e


prevenção das diferentes formas de violência contra mulheres e meninas. Considerando que
as forças de segurança pública dedicam boa parte de seu trabalho ao atendimento de
ocorrências relativas ao tema e que nem sempre a unidade ou setor demandado será uma
unidade ou serviço especializado, faz-se necessário que todos os (as) profissionais do Susp,
além do conhecimento sobre a legislação, saibam aplicar os protocolos previstos aos casos
concretos, sob uma perspectiva de atendimento empático e humanizado às mulheres e
meninas em situação de violência.
Para tanto, nesta etapa do curso, além de revisitar a legislação básica e seu emprego
prático, vamos refletir sobre o lugar da Segurança Pública como uma das principais portas
de entrada dos casos de violência contra a mulher ao sistema Justiça Criminal, bem como
refletir sobre a importância da atuação dos órgãos em rede como forma de evitar a
revitimização e a violência institucional na jornada das vítimas.
Discutiremos os desafios da atuação nos casos envolvendo profissionais do Susp na
condição de vítimas ou autores de violência contra a mulher. E entraremos em contato com
algumas das boas práticas consolidadas no campo da segurança pública na temática do
enfrentamento e prevenção da violência contra a mulher, que vêm se notabilizando pelo
reconhecimento social, eficiência e bons resultados.

4.3.2 Objetivos do módulo

Este módulo tem por objetivos:


● Compreender o lugar de importância do enfrentamento da violência contra
mulheres e meninas no campo da segurança pública;
● Identificar a importância da atuação em rede no enfrentamento da violência
contra mulheres e meninas;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 93

● Conhecer os instrumentos e experiências nacionais voltados para o


enfrentamento da violência contra mulheres, a exemplo do formulário de risco, as delegacias
especializadas, patrulha Maria da Penha, entre outros;
● Conhecer e saber utilizar as principais ferramentas voltadas à avaliação de
risco de mulheres em situação de violência;
● Saber identificar os diferentes níveis de prevenção da violência direcionada a
mulheres e meninas;
● Conhecer os principais protocolos e diretrizes para atendimento de mulheres e
meninas em situação de violência;
● Saber atuar no atendimento de mulheres integrantes de povos originários,
meninas, idosas e deficientes.

4.3.3 Estrutura do módulo

Este módulo compreende as seguintes aulas:

1 Aula 1 - O papel dos órgãos de segurança pública no enfrentamento da


violência contra mulheres e meninas

2 Aula 2 - Legislação aplicada na proteção de mulheres e meninas em seus


aspectos práticos

3 Aula 3 - Identificando a violência contra mulheres e meninas

Aula 4 - Identificando o papel dos atores da segurança pública na redução


4 da “rota crítica” das vítimas de violência

5 Aula 5 - A atuação da segurança pública de modo integrado com os


diferentes atores da rede proteção e enfrentamento

6 Aula 6 - Serviços especializados no atendimento a mulheres e meninas


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 94

no âmbito da segurança pública

7 Aula 7 - Desafios da atuação quando os autores ou vítimas de violência


contra a mulher são profissionais de segurança pública.

8 Aula 8 - Boas Práticas: Grupos Reflexivos para profissionais de


segurança autores de violência doméstica e familiar
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 95

4.3.3.1 Aula 1 – O papel dos órgãos de segurança pública no


enfrentamento da violência contra mulheres e meninas.

Introdução

Atuar frente aos diferentes tipos de violência e crimes contra mulheres representa
parte importante do trabalho realizado por profissionais de segurança pública e o tema vem
ocupando espaço de relevância na agenda das instituições.
As estatísticas de agressões sexuais, violência doméstica e outras formas de
violência de gênero denunciadas às forças policiais seguem aumentando. E esse fenômeno
pode ou não ser devido a um aumento real do número de agressões cometidas, sendo
possível que, o aumento dos registros seja, em parte, devido à maior conscientização social
de que esses atos constituem crime.
Especificamente em relação às chamadas emergenciais, via 190, cabe destacar o
estudo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontado que, entre os anos de
2020 e 2021, houve o acionamento cada vez mais frequente das polícias em contextos de
violência doméstica.

“O aumento das chamadas de emergência especificamente para situações que envolvem violência
doméstica é um sinal de que as polícias militares dos estados estão sendo cada vez mais demandadas a
atuarem nesses casos ou, ao menos, a prestarem um atendimento inicial. O que reforça a importância de não
apenas os efetivos das unidades especializadas no atendimento às mulheres em situação de violência, mas
todo o efetivo policial estar sensibilizado e capacitado para atender essas mulheres. Sabendo que as
complexidades da violência doméstica podem fazer com que uma mulher chame por socorro, desistindo depois
de ir à frente com a denúncia, e que sinta medo, culpa ou vergonha de pedir ajuda e romper com o ciclo de
violência no qual está inserida, o atendimento de emergência e adequado acolhimento e encaminhamento se
tornam extremamente importantes. Um mau atendimento nesse momento pode significar perdermos essa
mulher para sempre.” (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2022, p.7)

Fato é que esse fenômeno impacta diretamente a atuação dos profissionais de


segurança pública, independente do órgão de atuação, os quais precisam estar preparados
para atender às vítimas de forma técnica e humanizada, compreendendo a complexidade da
situação, a multicausalidade desse tipo de violência e o contexto de vulnerabilidade das
vítimas.

Atenção!
Não banalizar as situações de violência ou julgar as vítimas é o primeiro passo para
um bom atendimento. É necessário valorizar a palavra da vítima oferecendo-lhe uma escuta
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 96

empática e acolhedora. Muitas mulheres vítimas de violência relatam a dificuldade de serem


ouvidas pelos profissionais que as atendem.

Na Prática

Antes de prosseguir leia o texto: “Escutatória” de Rubem Alves, clicando no link abaixo:

Escutatória - Rubem Alves

Violência contra a mulher é um problema de segurança pública

Embora atualmente possa parecer óbvio que violência contra a mulher é uma
questão de segurança pública, especialmente porque hoje há mudanças significativas e
investimentos nessa temática dentro do campo da segurança pública brasileira, nem sempre
as violências de caráter doméstico ou de gênero, ou seja, as que mais acometem as
mulheres e meninas, ocuparam lugar de prestígio na agenda da segurança pública. As
primeiras iniciativas na área da segurança pública voltadas para o atendimento especializado
de mulheres datam dos anos 1980 e foram desenvolvidas pela Polícia Civil através das
Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.
A legalidade é um dos princípios que devem orientar a atuação de todo cidadão, em
especial os agentes públicos. Ainda assim, se torna importante identificar claramente qual o
papel dos órgãos da segurança pública no enfrentamento da violência contra
mulheres. A principal referência sobre a finalidade da segurança pública e as atribuições
das forças de segurança pública é a Constituição Federal em seu artigo 144:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para
a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V -
polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital.
[...]
§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens,
serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

É quase que indissociável a relação entre segurança pública e repressão criminal,


não por acaso, de acordo com Rossoni & Herkenhoff (2017: 342), “as primeiras análises da
segurança pública fazem referência, sobretudo, à ordem pública e à repressão criminal.
Decerto, ao se preservar a segurança pública, garante-se o valor da convivência pacífica e
harmoniosa, minimizando-se a violência das relações humanas”.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 97

O artigo 144 estabelece que a segurança pública é exercida para a preservação da


ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Portanto, a compreensão
sobre o direito à incolumidade, ou seja, o direito de “estar em segurança”, é o ponto de partida
para atuação dos órgãos de segurança pública, através de seus agentes, no enfrentamento
da violência contra mulheres e meninas.
É igualmente importante considerar que a Constituição Federal de 1988, em seu art.
226, § 8°, antes da existência de legislação específica sobre o tema, já destacava o papel
do Estado na proteção da família contra a violência doméstica: “Art. 226. A família, base da
sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 8º O Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações.”
As missões constitucionais dos órgãos dentro do sistema de segurança ditarão seus
papéis específicos no trato com essas vítimas. Sendo que ao longo de sua jornada, uma
mesma vítima de violência poderá passar por atendimentos em distintos órgãos do sistema
de segurança pública e defesa social.
É importante compreender a gravidade e o tipo de vitimização que acomete
especificamente esse grupo vulnerável e que, em grande parte, a violência é praticada por
pessoas próximas ou do círculo familiar, havendo, portanto, uma significativa probabilidade
dessa violência se repetir ou se agravar, mesmo após a intervenção de algum órgão de
segurança pública. Daí a importância da qualidade do primeiro atendimento.
Segundo Rossoni & Herkenhoff (2017: 343), “prestar o serviço de segurança pública
significa não apenas tentar impedir ou, pelo menos, punir os atos lesivos, como também
reduzir suas consequências quando não foi possível preveni-los”. Embora as ações de
segurança pública tenham em sua essência o caráter preventivo, ou seja, mesmo aquelas
de caráter repressivo também têm sua parcela de prevenção, fato é que a maioria das
instituições de segurança pública atuam após a ocorrência do fato.
Partindo desse pressuposto, é preciso ampliar o olhar do profissional de segurança
pública, geralmente focado no crime e no criminoso, ou seja, na elucidação do crime, nas
provas, na prisão do autor, para também incluir a vítima como vértice importante de um
triângulo onde se localizam: o crime, o autor e a vítima.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 98

Figura 30: Triângulo do crime

Fonte: Criado por Orlinda Claudia Rosa de Moraes

Sobre esse aspecto Rossoni & Herkenhoff (2017) destacam o quão recente é a
atenção e o olhar para a vítima e o quanto esta foi relegada a um papel secundário e
frequentemente esquecido como parte do fenômeno criminal.
“Os primeiros estudos sobre a vítima surgiram principalmente com Mendelsohn e Von Henrig. No
Brasil, somente na década de 1970, essas pesquisas se desenvolveram, sobretudo com a criação da
Sociedade Brasileira de Vitimologia. Apesar desse progresso, a produção brasileira é, ainda, muito tímida.
Grande parte das vítimas sobreviventes tende a sofrer algum tipo de trauma, síndrome ou sequela, sem
despertar, com raras exceções, maior preocupação preventiva e corretiva por parte do poder público, salvo o
encaminhamento para a rede hospitalar em caso de trauma físico (ferimentos corporais).” ROSSONI &
HERKENHOFF (2017: 344)

Esse olhar especial para as vítimas não deve se restringir às medidas relativas à
apuração do fato, tais como: coleta de provas, depoimentos ou identificação da autoria, que
são elementos fundamentais para elucidação de crimes e responsabilização dos autores.
Deve-se também incluir uma perspectiva de humanização e sensibilidade no atendimento às
vítimas.

Torna-se, portanto, necessário aprofundarmos a compreensão acerca do processo


de vitimização, sendo que Terres (2019), a partir da perspectiva dos estudos criminológicos,
apresenta o processo de vitimização da seguinte forma:
A vitimização é o processo de sofrimento dos efeitos de um crime, experimentado em três formas
distintas: (1) com o sofrimento direto ou indireto dos danos de ordem física, mental, estética, mental e/ou
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 99

material; (2) com o incremento do sofrimento em decorrência da interferência do próprio Sistema de Justiça
Criminal e; (3) com o prolongamento do sofrimento em razão do julgamento do comportamento da vítima por
parte da sociedade. TERRES (2019:51).

Desse modo, identifica-se a existência de uma vitimização primária, secundária e


terciária, definidas por Antônio Garcia Pablos de Molina. Sendo a vitimização primária, o
sofrimento ou dano imediatamente causado pelo crime. A vitimização secundária é
ocasionada pelo sofrimento ocasionado em decorrência da intervenção do Sistema de
Justiça Criminal e pode ser materializado na dor de reviver os fatos nos depoimentos, na
realização de exames periciais ou mesmo em ter que encontrar acusado em juízo. Já a
vitimização terciária se refere ao processo de julgamento social do comportamento da vítima.
Esses aspectos da vitimização devem ser considerados nos atendimentos realizados
às vítimas de crimes de qualquer natureza e, especialmente, em relação ao atendimento de
grupos vulneráveis como mulheres e meninas.
Ao longo dessa unidade do curso mostraremos, através de exemplos e boas
práticas, como é possível oferecer um atendimento eficiente, profissional e humanizado às
mulheres e meninas vítimas de violência.

O enfrentamento da violência contra a mulher como parte da política de segurança


pública

Preliminarmente é necessário contextualizar política pública, pois muito se fala sobre


a necessidade de implantação de políticas públicas em distintas áreas de atuação estatal. A
área de prevenção e enfrentamento à violência contra mulher, assim como em outras áreas,
tem na multisetorialidade um fator importante a ser considerado, pois as ações demandam
profunda articulação entre diferentes atores e instituições relacionadas ao problema.
Segundo Amaral (2008) a função que o Estado desempenha em nossa sociedade
sofreu inúmeras transformações ao passar do tempo. Sendo que no século XVIII e XIX, seu
principal objetivo era a segurança interna e a defesa externa em caso de ataque inimigo.
Com o aprofundamento e expansão da democracia, as responsabilidades do Estado se
diversificaram de modo que, atualmente, é comum se afirmar que a função do Estado é
promover o bem-estar da sociedade.
Para atingir resultados em diversas áreas e promover o bem-estar da sociedade, os
governos desenvolvem as “Políticas Públicas” que, em linhas gerais, podem ser definidas da
seguinte forma: “Políticas Públicas são um conjunto de ações e decisões do governo,
voltadas para a solução (ou não) de problemas da sociedade”.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 100

Embora o enfrentamento da violência contra a mulher faça parte da atuação


cotidiana dos órgãos de segurança pública, existem instrumentos formais que tornam cada
vez mais institucionalizada essa atuação, destacando-se nesse contexto a Lei nº
13.675/2018 e a Lei nº. 11.340/2006.
A Lei nº 13.675/2018, dentre outras medidas, disciplina a organização e o
funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, bem como cria a Política
Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), tendo a finalidade de
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, por meio de
atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública
e defesa social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em
articulação com a sociedade.
À primeira vista a PNSPDS contempla a temática de forma genérica, considerando
que dentre seus princípios estão a proteção dos direitos humanos, o respeito aos
direitos fundamentais e a promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
E também se verifica como uma de suas diretrizes o atendimento prioritário, qualificado
e humanizado às pessoas em situação de vulnerabilidade.
Entretanto, a PNSPDS se torna mais enfática ao definir (art. 8, VII) os meios e
instrumentos para a implementação da PNSPDS, destacando-se o Plano Nacional de
Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher dentre as ações pertinentes às
políticas de segurança a serem implementadas em conjunto com os órgãos e instâncias
estaduais, municipais e do Distrito Federal responsáveis pela rede de prevenção e de
atendimento das mulheres em situação de violência (incluído pela Lei nº 14.330, de 2022).
A Lei nº. 11.340 de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha,
que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, traz
importante sinalização sobre o papel das forças de segurança pública no contexto da política
pública de proteção às mulheres em situação de violência.
Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por
meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de
ações não-governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com
as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;
[...]
IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas
Delegacias de Atendimento à Mulher;
[...]
VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de
Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões
de gênero e de raça ou etnia;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 101

A Lei Maria da Penha fala da integração operacional entre os órgãos do sistema de


justiça e os órgãos da segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e
habitação. Essa integração entre os órgãos ou atuação em rede é fundamental para garantir
o atendimento integral às vítimas de violência, reduzindo a possibilidade de revitimização ou
violência institucional.
Percebemos até aqui que os órgãos do sistema de segurança pública integram a
rede proteção às mulheres em situação de violência e têm seu papel formalmente
reconhecido nas políticas públicas voltadas à prevenção e enfrentamento da violência contra
mulheres e meninas.
A atuação dos profissionais de segurança pública não se restringe às unidades ou
setores especializados no atendimento a mulheres, pois grande parte das ocorrências se
dão no cotidiano, no dia a dia dos serviços não especializados, razão pela qual todos devem
estar capacitados e sensibilizados para o atendimento.

SAIBA MAIS
Tipos de prevenção: prevenção primária, secundária e terciária.

1 - A prevenção primária tem como objetivo principal o combate aos fatores indutores
da criminalidade antes que eles incidam sobre o indivíduo. Atua na raiz do delito,
neutralizando o problema antes que ele apareça. Este tipo de prevenção busca afastar as
condições responsáveis pelo aumento da criminalidade. Para que essa modalidade de
prevenção produza os efeitos esperados, é necessário um investimento de longo e médio
prazo.

2 - A prevenção secundária consiste em medidas voltadas aos indivíduos


predispostos a padecer ou protagonizar o problema criminal. Esse tipo de prevenção opera
a médio e curto prazo e age quando e onde ocorre o crime. Além disso, a prevenção
secundária procura produzir nos indivíduos um respeito pela norma que os dissuada de violá-
la.
3 - A prevenção terciária, por sua vez, refere-se aos indivíduos com passado delituoso
e busca estimular nova conduta por meio das medidas de punição e ressocialização do
processo de execução penal visando prevenir a reincidência.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 102

Na Prática

Reflita sobre os três tipos de prevenção e identifique de que forma eles podem ser aplicados
ao problema da violência contra mulher.

Finalizando

Neste módulo, você aprendeu que:

● A violência contra a mulher é fenômeno impacta diretamente a atuação dos


profissionais de segurança pública;
● A escuta e o acolhimento são elementos importantes no atendimento de
mulheres e meninas vítimas de violência;
● A violência contra a mulher é um problema de segurança pública.
● A prevenção da violência contra a mulher faz parte da Política Nacional de
Segurança Pública e Defesa Social, integrando formalmente a agenda de atuação dos
órgãos do Sistema de Segurança Pública e Defesa Social.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 103

4.3.3.2 Aula 2 - Legislação aplicada na proteção de mulheres e meninas


em seus aspectos práticos.

Introdução

A legalidade é a base da atuação dos profissionais de segurança pública em um


estado democrático de direito. Nesse contexto, mais do que o conhecimento da letra da lei,
espera-se desses profissionais uma atuação prática que reflita, além do entendimento
jurídico, a compreensão dos fatores históricos e sociais que envolvem um tema tão complexo
como é a violência contra mulheres e meninas.
Preliminarmente, cabe relembrar que o Estado Brasileiro é signatário de tratados
internacionais de Direitos Humanos voltado à proteção dos direitos humanos das mulheres,
como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher - “Convenção de Belém do Pará (1994) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU 1979).
Buscando um panorama mais amplo, o quadro a seguir traça uma linha do tempo da
proteção jurídica das mulheres na legislação brasileira:

1934 A Constituição de 1934 estabeleceu o direito ao voto feminino,


ainda que facultativo;

1962 O Estatuto da Mulher Casada deferiu que a mulher não mais


precisava da autorização do marido para trabalhar fora, receber herança,
comprar ou vender imóveis, assinar documentos e até viajar;

1977 O matrimônio deixou de ser indissolúvel com a Lei do Divórcio;

1988 A Constituição Federal estabelece a proibição de diferença


salarial, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de
sexo, idade, cor ou estado civil, dentre outros direitos – artigo 3º, artigo 5º,
inciso I, artigo 7º, incisos XVIII, XIX, XX, XV, XXX;

1990 O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece igualdade de


condições do pai e da mãe no exercício do pátrio poder;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 104

1995 A Lei nº 9.029 traz a proibição da exigência de atestados de


gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos
admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho e dá outras
providências. Ainda, proibiu a adoção de qualquer prática discriminatória e
limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua
manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação
familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros,
ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao
adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal;

1999 A Lei nº 9.799 traz dispositivos sobre a proteção do trabalho da


mulher - Da Duração, Condições do Trabalho e da Discriminação Contra a
Mulher – Artigos: 372 a 400 da CLT;

2001 A Lei nº 10.224 inclui o tipo penal de “Assédio Sexual”, no


Código Penal Brasileiro;

2002 A falta de virgindade deixou de ser motivo para anulação do


casamento;

2005 O termo “mulher honesta” foi retirado do Código Penal;

2006 A Lei Maria da Penha é sancionada para coibir e prevenir a


violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados
internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre
a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação
de violência doméstica e familiar;

2015 A Lei do Feminicídio torna crime hediondo o assassinato de


mulheres em decorrência de violência doméstica ou discriminação de
gênero;

2015 A Lei nº 13.112 dá às mães o direito de registrar filhos no cartório


sem a presença do pai;

2017 A Lei 13.505 acrescenta dispositivos à Lei Maria da Penha dispondo


sobre o direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar de
ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado,
preferencialmente, por servidores do sexo feminino.

2018 A Lei nº 13.718 criminaliza a conduta de importunação sexual e


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 105

altera disposições sobre os crimes contra a dignidade sexual;

2018 A Lei nº 13.641 tipifica o crime de descumprimento de medidas


protetivas de urgência;

2018 A Lei nº 13.772 dispõe sobre o registro não autorizado da


intimidade sexual;

2019 A Lei nº 13.894 proporciona a prioridade de divórcio para vítimas


de violência doméstica e prevê a competência dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher para a ação de divórcio, separação,
anulação de casamento ou dissolução de união estável nos casos de
violência;

2019 A Lei nº 13.827 autoriza a aplicação de medida protetiva de


urgência pela autoridade policial;

2019 A Lei nº 13.836 torna obrigatória a informação sobre a condição de


pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica ou
familiar;

2019 A Lei nº 13.871 dispõe sobre a responsabilidade do agressor pelo


ressarcimento dos custos relacionados aos serviços de saúde prestados
às vítimas de violência doméstica e familiar;

2019 A Lei nº 13.880 dispõe sobre a apreensão da arma de fogo sob


posse de agressor nos casos de violência doméstica;

2019 A Lei nº 13.882 garante matrícula dos dependentes da mulher


vítima de violência em instituição de educação básica mais próxima de seu
domicílio;

2019 A Lei nº 13.931 dispõe sobre a notificação compulsória dos casos


de suspeita de violência doméstica contra a mulher;

2020 A Lei nº 13.984 estabelece a obrigatoriedade referente ao agressor,


que deve frequentar centros de educação e reabilitação e fazer
acompanhamento psicossocial;

2021 A Lei nº 14.132 inclui artigo no Código Penal (CP) para tipificar os
crimes de perseguição (stalking);

2021 A Lei nº 14.164 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional para incluir conteúdo sobre a prevenção à violência contra a
mulher nos currículos da educação básica, além de instituir a Semana
Escolar de Combate à violência contra a Mulher, a ser celebrada todos os
anos no mês de março;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 106

2021 A Lei nº 14.149 que institui o Formulário Nacional de Avaliação


de Risco, com o intuito de prevenir feminicídios;

2021 Lei nº 14.188 define o programa de cooperação Sinal Vermelho


contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento
da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei nº 11.340,
de 7 de agosto de 2006 e altera o Código Penal, para modificar a
modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por
razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência
psicológica contra a mulher

2022 A Lei nº 14.310 altera a Lei Maria da Penha para determinar o


registro imediato, pela autoridade judicial, das medidas protetivas de
urgência deferidas em favor da mulher em situação de violência doméstica
e familiar, ou de seus dependentes.

2023 A Lei 14.550 altera a Lei Maria da Penha para dispor sobre as
medidas protetivas de urgência e estabelecer que a causa ou a motivação
dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem
a aplicação da Lei.

Esta linha do tempo demonstra o longo caminho na evolução e consolidação dos


direitos das mulheres, desde a conquista do direito ao voto nos anos 30 do século passado.
Entretanto, é perceptível a intensificação das mudanças legislativas a partir de 2015 e que
tais mudanças permanecem em curso, dada a necessidade de adaptação legislativa à
realidade fática.
Nesse sentido, não se pretende aqui esgotar o tema legislação, por demais amplo,
mas sim abordar seus principais aspectos práticos e aguçar a sua curiosidade acadêmica
em ampliar e manter seu conhecimento atualizado.

Aspectos Gerais da Legislação e Aplicação Prática

É ampla a legislação voltada à proteção das mulheres, especialmente quando


consideradas as interseccionalidades que perpassam as violências baseadas no gênero
sofridas por mulheres e meninas, em que fatores como idade, raça ou condição física
ampliam o grau de vulnerabilidade e risco.
Todavia, começaremos por uma das leis mais conhecidas no país, a Lei nº 11.340/
2006, a Lei Maria da Penha, que é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 107

Unidas para a Mulher (Unifem) uma das três leis mais avançadas do mundo, entre 90 países
que têm legislação sobre o tema. Dentre seus principais pontos destaca-se o reconhecimento
da violência doméstica e familiar como violação de direitos humanos.
Ela é considerada uma norma de “discriminação positiva” e visa acelerar a igualdade
de fato entre homens e mulheres. Trata-se de um dispositivo jurídico de natureza processual
e não material. Segundo Ada Pellegrini, o direito material é conceituado como “o corpo de
normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida (direito
civil, penal, administrativo etc.)”. Para a mesma autora, o direito processual seria o “complexo
de normas e princípios que regem tal método de trabalho, ou seja, o exercício conjugado da
jurisdição pelo Estado-juiz, da ação pelo demandante e da defesa pelo demandado”.
Por fim, o direito processual é o conjunto de normas que regulamentam a forma de
aplicação do direito material. Os crimes estão definidos no Código Penal e legislações
extravagantes – direito material, nesse contexto a Lei Maria da Penha – direito processual,
define o rito. Sendo que, até o advento da Lei nº 13.641/2018, a Lei Maria da Penha não
trazia em seu bojo nenhum tipo penal.

Definindo a Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

De acordo com a Lei nº 11.304/2006 (Art.5º) configura violência doméstica e familiar


contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que venha causar morte,
lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

Acesse a lei pelo link: LEI Nº 11.340, DE 07 DE AGOSTO DE 2006

⚫ No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio


permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
⚫ No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade
ou por vontade expressa;
⚫ Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação;
⚫ E as relações pessoais enunciadas independem de orientação sexual.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 108

Súmula 600 do STJ - Para a configuração da violência doméstica e familiar prevista


no artigo 5º da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), não se exige a coabitação entre
autor e vítima. (Súmula 600, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/11/2017)
No caso dos crimes de violência doméstica, não temos um sujeito ativo obrigatório,
ou seja, não é necessário que seja um homem, mas o sujeito passivo é necessariamente
uma mulher.
Sobre o sujeito passivo, é importante ressaltar que em dois julgados recentes, o
Superior Tribunal Federal (STF) garantiu o direito aos transgêneros e aos transexuais,
afirmando o direito à igualdade sem discriminações, abrangendo a identidade e a expressão
de gênero. Trecho da ementa:
1 - Se o denunciado, companheiro de vítima transexual que se identifica com o gênero feminino, a
agride com barra de ferro e corta os cabelos dela com faca, além de a injuriar e ameaçar, por ciúmes e
sentimento de posse, evidenciando a subjugação da figura feminina e violência de gênero, no contexto
doméstico e de intimidade familiar, a competência para processar e julgar a ação penal pelos supostos crimes
cometidos é do juizado especializado da mulher“ Acórdão 1671958, 07425997220228070000, Relator: JAIR
SOARES, Câmara Criminal, data de julgamento: 1°/3/2023, publicado no PJe: 13/3/2023.

As Formas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher

A Lei Maria da Penha (Art.7º) traz uma visão mais ampla da violência doméstica e
familiar contra a mulher compreendida além da violência física, mas abrangendo a violência
sexual, psicológica, moral e patrimonial.

✓ A violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua


integridade ou saúde corporal;
✓ A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause danos
emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno
desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e
decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade,
ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

SAIBA MAIS
Art. 1º Esta Lei reconhece que a violação da intimidade da mulher configura
violência doméstica e familiar e criminaliza o registro não autorizado de conteúdo com
cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado. (Redação dada pela
Lei nº 13.772, de 2018).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 109

Ver também: Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o Programa de


Cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de
enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei
11.340/2006. Cria o artigo 147-B no CP: "Violência psicológica contra a mulher”.

✓ A violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a


presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer
modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a
force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos;
✓ A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure
retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades;
✓ A violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação.

Calúnia: Art. 138 CP. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como
crime.
Difamação: Art. 139 CP. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua
reputação.
Injúria: Art. 140 CP. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade, honra pessoal ou o
decoro.
Pesquisas e estatísticas oficiais apontam que nos contextos de violência doméstica
os crimes de lesão corporal dolosa e ameaça representam a maior parte dos registros em
delegacias, bem como dos acionamentos emergenciais das polícias militares. Portanto, é
fundamental que os profissionais do Susp, no atendimento de ocorrências do tipo, saibam
identificar as diferentes formas de violência e sejam capazes de realizar os procedimentos e
encaminhamentos adequados à cada situação.

Aspectos Do Atendimento Às Mulheres Em Situação De Violência Doméstica

A intensidade e demanda do trabalho da segurança pública ou a falta de


conhecimento podem fazer com que os profissionais, inadvertidamente, adotem condutas
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 110

revitimizantes no atendimento das ocorrências envolvendo crimes contra mulheres e


meninas.

Mas o que é revitimização?

A revitimização (ou vitimização secundária) é uma série de atos e questionamentos


que geram constrangimentos para as mulheres que foram vítimas de violências de gênero.
Geralmente essa revitimização faz com que a mulher em situação de violência desista da
denúncia ou de prosseguir com o processo. Além disso, essa prática afeta a imagem da
vítima a respeito da instituição à qual pertence o agente autor da revitimização.
O que pode caracterizar, na prática, uma atitude revitimizante? Eis alguns exemplos:
o emprego de linguagem discriminatória; a realização de perguntas contaminadas por juízo
de valor ou estereótipos de gênero; permitir que mulher vítima de violência seja exposta à
parte acusada, principalmente quando esta demonstre medo ou desconforto em sua
presença.

Figura 31: As mãos das pessoas apontam para a garota. É uma mulher não confiante. Opinião das pessoas
e a pressão da sociedade. Vergonha.

Fonte: Plano Vetor Pro

Nesse contexto precisamos compreender, também, o que é “violência institucional”,


o crime inserido pela Lei nº 14.321/2022 à Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade.
VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL: Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a
testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos,
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 111

que a leve a reviver, sem estrita necessidade: (I) a situação de violência; ou (II) outras
situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização.
Vale lembrar também que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – editou a
Resolução nº 254/2018, abordando a violência institucional praticada contra a mulheres,
conceituando-a como a ação ou omissão de qualquer órgão ou agente público que fragilize,
de qualquer forma, o compromisso de proteção e preservação de direitos das mulheres.
Destaca-se também que a Lei nº 13.505/2017 acrescentou novos dispositivos à Lei
Maria da Penha tratando do atendimento policial e pericial especializado prestado à mulher
em situação de violência doméstica e familiar. Sendo importante observar a perspectiva da
NÃO REVITIMIZAÇÃO das mulheres atendidas, como se pode observar:

⚫ O atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por


servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados;
⚫ A inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de
testemunha de violência doméstica obedecerá às seguintes diretrizes:
(I) Salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada
a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;
(II) Garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência
doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou
suspeitos e pessoas a eles relacionadas;
(III) Não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo
fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida
privada.
⚫ Na inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de
testemunha de delitos será adotado preferencialmente, o seguinte procedimento:
(I) A inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual
conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência
doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida;
(II) Quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado
em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial.
ATENÇÃO: Embora utilizemos de forma recorrente o termo ‘vítima’ é importante
observar a importância do termo ‘em situação de’ é utilizado no lugar de vítima de violência,
visto que a condição de vítima pode ser paralisante e reforça a representação da mulher
como passiva e dependente: “Quando a mulher é referida como estando em situação de
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 112

violência, ela está em condição, ou seja, ela acessa um lugar de passagem, pois é um sujeito
nessa relação. Estar em situação oferece a possibilidade de mudança” (MIRIM, 2005).

Aspectos do Atendimento às Vítimas de Crimes Sexuais

Os dados demonstram que os crimes sexuais figuram entre aqueles com o maior
percentual de subnotificação. Fatores como medo, vergonha e falta de confiança nas
instituições contribuem para as vítimas não registrarem. Esse quadro de subregistro é grave,
pois, além favorecer a impunidade, faz com que a maior parte das vítimas de estupro acabe
não acessando os procedimentos de saúde previstos nesses casos, aumentando os riscos
do agravamento de sequelas relacionadas à violência sexual. Não obstante o fato de que
qualquer pessoa pode ser vítima de crimes de natureza sexual, os dados mostram que
mulheres e meninas são as vítimas preferenciais.
A violência sexual produz graves efeitos na saúde física, com o risco de
contaminação por Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), entre elas, o HIV, até
gravidez indesejada, agravando o quadro traumático. Além disso, há que se considerar os
efeitos na saúde mental das vítimas que podem desenvolver quadros de depressão,
síndrome do pânico, ansiedade e distúrbios psicossomáticos.
Um dos grandes desafios no enfrentamento desse tipo de violência é a articulação e
integração dos serviços de todas as áreas relacionadas tais como: segurança pública, saúde,
justiça e assistência social, de modo a oferecer um atendimento humanizado e integral. Daí
a importância dos profissionais do Susp conhecerem tanto a legislação aplicada, quanto os
protocolos e encaminhamentos relativos ao atendimento das vítimas de crimes sexuais no
âmbito dos demais serviços, em especial na área da saúde.
A Lei nº 12.015/2009, que define os crimes contra a dignidade sexual define o crime
de estupro da seguinte forma:
Acesse a lei pelo link: LEI Nº 12.015, DE 7 DE AGOSTO DE 2009
ESTUPRO: Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
De acordo com esta redação qualquer pessoa, independente do sexo, pode ser
sujeito passivo do crime de estupro. A lei também tem o intuito de coibir abuso e exploração
sexual de crianças e adolescentes, incluindo o tipo penal estupro de vulnerável:
ESTUPRO DE VULNERÁVEL: Art. 217-A.Ter conjunção carnal ou praticar outro ato
libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 113

Figura 32 – Estupro de Vulnerável

Fonte: TJDFT

§ 1º. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém
que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a
prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Sobre as diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos
profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema Único de Saúde
temos como referência o Decreto nº 7.958 de 13 de março de 2013, destacando-se:

DIRETRIZES PARA O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Art. 2º O atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança


pública e da rede de atendimento do SUS observará as seguintes diretrizes:
I - Acolhimento em serviços de referência;
II - Atendimento humanizado, observados os princípios do respeito da dignidade da
pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 114

III - Disponibilização de espaço de escuta qualificado e privacidade durante o


atendimento, para propiciar ambiente de confiança e respeito à vítima;
IV - Informação prévia à vítima, assegurada sua compreensão sobre o que será
realizado em cada etapa do atendimento e a importância das condutas médicas,
multiprofissionais e policiais, respeitada sua decisão sobre a realização de qualquer
procedimento;
V - Identificação e orientação às vítimas sobre a existência de serviços de referência
para atendimento às vítimas de violência e de unidades do sistema de garantia de direitos;
VI - Divulgação de informações sobre a existência de serviços de referência para
atendimento de vítimas de violência sexual;
VII - Disponibilização de transporte à vítima de violência sexual até os serviços de
referência; e
VIII - Promoção de capacitação de profissionais de segurança pública e da rede de
atendimento do SUS para atender vítimas de violência sexual de forma humanizada,
garantindo a idoneidade e o rastreamento dos vestígios coletados.
É importante salientar que o atendimento da pessoa em situação de violência sexual
nos serviços de saúde independe da apresentação do Boletim de Ocorrência (BO) ou
Registro de Ocorrência (RO), entretanto, cabe às instituições de saúde, conforme a Lei nº
12.845 de 2013, Art. 3º, III, estimular o registro da ocorrência e os demais trâmites legais
para encaminhamento aos órgãos de medicina legal, no sentido de diminuir a impunidade
dos (as) autores (as) de agressão.
Em 2019 foi publicada a Lei nº 13.931, que trata da notificação compulsória dos
casos de suspeita de violência contra a mulher pelos profissionais de saúde, que deverão
registrar no prontuário médico da paciente e comunicar à polícia os casos de violência contra
a mulher.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 115

NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA:

Figura 33: Notificação Compulsória

Fonte: Blog Concent

Art. 1º: Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional,


os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em
serviços de saúde públicos e privados.
§ 4º: Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher
serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro)
horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos”.
É possível verificar até aqui toda complexidade presente no atendimento às vítimas
de estupro, sendo que tal complexidade se amplia quando as vítimas são crianças e
adolescentes.
CRFB, Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Portanto, nesse contexto, é importante considerar que a Constituição Federal
Brasileira (art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) dispõem sobre
a proteção integral da criança e do adolescente, definindo assim a prioridade absoluta no
atendimento aos seus direitos como cidadãos brasileiros.
Tal condição demanda a aplicação da doutrina da proteção integral, que pressupõe
a efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Trazendo em sua
essência a proteção e a garantia do pleno desenvolvimento humano, a partir do
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 116

reconhecimento da condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em


desenvolvimento.

ASSÉDIO SEXUAL E IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

Preliminarmente, devemos esclarecer que o entendimento da sociedade brasileira


sobre o que configura “assédio” não tem o mesmo significado em termos de aplicação da lei.
Conforme destaca Moraes (2017):

O que se percebe na recorrência do emprego do termo “assédio” é a tentativa de “dar nome” às
experiências de desconforto, perseguição, constrangimento ou importunação, normalmente infringidos às
mulheres, quer seja no espaço do trabalho, nas relações interpessoais ou mesmo no simples ato de circulação
no espaço público. (MORAES, 2017: p. 04)

Figura 34: Não é Não

Fonte: Sind-Saude MG

Portanto, a depender das circunstâncias, natureza e gravidade do fato, condutas


inicialmente descritas pelo senso comum como “assédio sexual”, quando analisadas sob os
aspectos da legislação, podem configurar diferentes crimes ou contravenções penais tais
como: estupro, estupro de vulnerável, constrangimento ilegal, ato obsceno, violação sexual
mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual dentre outros.
Embora seja um tipo de violência que, na prática, apresente baixa notificação às
autoridades e, portanto, alto índice de subnotificação e impunidade, as diferentes
manifestações de assédio são mais frequentes do que se imagina.
Pois, de acordo com dados da pesquisa: Visível e Invisível: A Vitimização de
Mulheres no Brasil - 4ª edição - 2023, no ano de 2022, 46,7% das mulheres brasileiras de 16
anos ou mais sofreram alguma forma de assédio sexual. As condutas mais frequentemente
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 117

citadas foram as cantadas e os comentários desrespeitosos na rua, experimentados por 4


em cada 10 mulheres.
O assédio sexual é uma expressão da violência sexual, caracterizada como manifestação sensual ou
sexual, alheia à vontade da pessoa a quem se dirige. Configuram atos de assédio, abordagens grosseiras e
comentários obscenos, ofensas e propostas inadequadas que constrangem, humilham, amedrontam, ou seja,
que não contam com o consentimento da outra parte. (FBSP, 2023: p.37).

Por parte dos profissionais do Susp, esse fenômeno demanda conhecimento e


sensibilidade para melhor ouvir, acolher e encaminhar as vítimas desse tipo de crime. Deve-
se reconhecer que o assédio, em suas diferentes manifestações, pode acontecer no âmbito
da sociedade como um todo e também nas instituições, inclusive nas instituições de
segurança pública. Este não é um tema fácil de ser abordado e solucionado, contudo, precisa
ser reconhecido e enfrentado pela sociedade e instituições pois, conforme verificamos, vem
gerando vítimas invisíveis.

ASSÉDIO SEXUAL: Artigo 216-A. constranger alguém com o intuito de obter


vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior
hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena:
Detenção de 1 a 2 anos.
§ 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.
(Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Figura 35: Como denunciar o assédio

Fonte: SindComerciários
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 118

O crime de assédio sexual foi incluído no Código Penal Brasileiro a partir da Lei nº.
10.224, em maio de 2001. Embora, na legislação brasileira, não haja distinção de gênero
para aplicação desta lei, nota-se que esse tipo de crime atinge principalmente as mulheres,
assim como a maioria dos crimes de natureza sexual que têm as mulheres e meninas como
as principais vítimas.

ATENÇÃO

✓ O assédio sexual refere-se a uma situação de desigualdade de poder entre


vítima e assediador, em que a simples negativa à investida de intensão sexual, em geral não
é suficiente para cessar a violência.
✓ Assédio vertical (ascendência hierárquica). Assédio horizontal (entre
trabalhadores do mesmo nível).
✓ Assédio sexual, se não constituir crime mais grave, inclui condutas que vão
desde contato físico até cantadas e comentários de conotação sexual.
✓ O assédio não deve ser confundido com paquera. No assédio, apenas um dos
lados tem interesse, trata-se, portanto, de uma ação unilateral. Não há reciprocidade ou
consentimento.

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), quaisquer


insinuações, contatos físicos forçados, propostas ou pedidos impertinentes, entre outros,
podem ser considerados como assédio sexual, desde que apresentem pelo menos uma das
seguintes características:

✓ Ser claramente uma condição para dar ou manter emprego;

✓ Influir nas promoções ou na carreira do assediado (a);

✓ Prejudicar o rendimento profissional, humilhar, insultar, ou intimidar a vítima.

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL: Artigo 215-A. Praticar contra alguém e sem sua


anuência ato libidinoso com objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Pena:
reclusão de 1 a 5 anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 119

O crime de importunação sexual foi incluído no Código Penal Brasileiro a partir da


Lei nº. 13.718, de setembro de 2018.
A depender da conduta e se não constituir crime mais grave, esse tipo penal se refere
à prática de ato libidinoso (que tem objetivo de satisfação sexual) na presença de alguém,
sem sua autorização e sem violência física ou grave ameaça. Exemplos: passar a mão,
apalpar, lamber, tocar, desnudar, masturbar-se ou ejacular em público, dentre outros.

ATENÇÃO

✓ Em caso de existência de prova material, como a ejaculação em alguma peça


de roupa, esse material deve ser encaminhado à perícia técnica.

✓ Apenas mulheres podem ser vítimas de importunação sexual? A lei não faz
distinção de gênero, ou seja, tanto homens quanto mulheres podem ser autores ou vítimas
desse tipo de crime.

✓ Qual a diferença entre importunação sexual e estupro? Tanto a importunação


sexual quanto o estupro dizem respeito crimes contra a dignidade sexual, mas não significam
a mesma coisa. A principal diferença entre os dois tipos penais é que, na importunação
sexual, não há violência ou grave ameaça.

✓ Leitura recomendada: Não é não: saiba o que é importunação sexual e assédio


sexual, e o que fazer se você for vítima. Disponível em:

https://www.defensoria.ce.def.br/noticia/nao-e-nao-saiba-o-que-e-importunacao-
sexual-e-assedio-sexual-e-o-que-fazer-se-voce-for-vitima/

Medidas Protetivas de Urgência

Medidas protetivas são mecanismos legais de proteção a pessoas que, de alguma


forma, se encontrem em situação de vulnerabilidade. Por meio dessas medidas busca-se
garantir os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, como forma de preservar
a integridade e saúde física, mental e psicológica das vítimas. Portanto, elas têm o objetivo
de fazer cessar agressões através de dirigentes tipos de restrições, como a proibição de
contato sob quaisquer meios, afastamento da pessoa agressora do lar, dentre outros.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 120

Medidas protetivas podem ser encontradas e concedidas com fundamento em


diferentes leis, sendo as principais delas a Lei Maria da Penha, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, o Estatuto do Idoso e mais recentemente, a Lei nº 14.344 de maio de 2022 –
Lei Henry Borel.
Figura 36: Quebre o Ciclo

Fonte: TJMT

Nesse sentido é importante que os profissionais do Susp tenham conhecimento


sobre o direito de acesso das vítimas às medidas protetivas e as garantias quanto ao
cumprimento destas por parte dos agressores.
O descumprimento de medida protetiva de urgência configura crime, como se verifica
pelo artigo 24-A da Lei Maria da Penha (concluído pela Lei nº 13.641 de 2018) e artigo 25 da
Lei nº 14.344/22.
No caso específico da violência doméstica, o deferimento das medidas protetivas de
urgência se configura em um importante fator de proteção das vítimas, sobretudo contra a
reincidência de novas agressões, tão comuns nesse tipo de violência. Outro dado que
aponta para fator de proteção presente nessas medidas é o fato de que maior parte das
mulheres vítimas de feminicídio não possuíam medidas protetivas ou registros anteriores ao
fato, razão pela qual é importante orientar as vítimas quanto a esse direito, sobretudo no
primeiro atendimento.
Ainda assim, encontramos autores dispostos a descumprir as medidas protetivas, o
que sinaliza a elevação do risco de feminicídio presente nos casos em que há violação da
medida por parte do agressor.
Eis uma das razões pelas quais esse tipo de crime requer especial atenção por
parte dos profissionais do Susp, destacando-se que, em regra, a maioria das Patrulhas e
Rondas Maria da Penha do país atua, prioritariamente, no acompanhamento e fiscalização
das medidas protetivas deferidas a mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 121

SAIBA MAIS
Assista o vídeo “Imagine…”, que retrata cenas do cotidiano de uma audiência
tradicional, onde crianças e adolescentes são levadas a falar da situação de violência a que
foram expostos. https://youtu.be/i9EupNn0Vgo
A partir do vídeo sugerimos a reflexão sobre o significado do processo judicial para
uma criança ou adolescente e o quanto é importante o cuidado e atenção para promover
uma intervenção protetiva e acolhedora em situações que ensejam a escuta da
criança/adolescente vítima ou testemunha. Sugerimos também ampliar esse olhar reflexivo
para mulheres vítimas de abusos submetidas reiteradamente a contar e reviver a violência
sofrida e o quanto de revitimização há nesse processo. E o que é possível fazer para
evitarmos a revitimização.

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

• Há um percurso histórico na evolução e consolidação dos direitos das mulheres


no Brasil e que esse processo permanece em curso, através principalmente de mudanças
nas dinâmicas sociais e na legislação;
• A violência institucional é uma das formas de revitimização de mulheres e
meninas em situação de violência;
• Dentre as diretrizes para atendimento às vítimas de crimes sexuais estão: o
acolhimento e atendimento humanizado, observados os princípios do respeito da dignidade,
da não discriminação, do sigilo e da privacidade.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 122

4.3.3.3 Aula 3: Identificando a violência contra mulheres e meninas

Introdução

Figura 37: Ciclos de Violência

Fonte: CNJ

Conforme estamos vendo ao longo deste curso, existem diferentes tipos de violência
que afetam principalmente o gênero feminino, e que parte dessa violência é reforçada
através da cultura e dos estereótipos de gênero.
Portanto, parte importante da prevenção e enfrentamento da violência contra
mulheres e meninas passa pela identificação e reconhecimento dessa violência em suas
distintas manifestações, bem como pelo conhecimento e aplicação dos mecanismos
adequados a cada situação.
Além disso, é importante dimensionar os riscos associados, pois, nos contextos de
agravamento da violência contra a mulher, o feminicídio é uma possibilidade. E embora nem
sempre existam registros oficiais, como Registros ou Boletins de Ocorrência, nos casos de
feminicídios íntimos, normalmente as testemunhas, familiares ou vizinhos relatam um
histórico de agressões anteriores. Daí retornamos à importância do primeiro atendimento
como um fator importante para a quebra do ciclo da violência por parte da vítima.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 123

Principais aspectos da violência contra a mulher

Devido aos fatores que já abordamos ao longo dos módulos anteriores, a vitimização
feminina guarda importantes diferenças em relação à população em geral. Nesse sentido,
assim como qualquer pessoa, as mulheres também estão expostas à criminalidade comum
e urbana como é o caso dos crimes patrimoniais e contra a pessoa. Porém, além disso, elas
são as principais vítimas de violências praticadas por parceiros íntimos, familiares e
conhecidos.
E, por conta dessa proximidade entre vítima e agressor, os episódios de violência
tendem a se repetir e esse contexto faz com que durante o atendimento de casos de violência
doméstica e familiar contra mulheres, muitos profissionais se perguntem por que os
envolvidos permanecem nessa situação. Questionamentos como: por que esta vítima não
se separa do agressor? O que leva estas pessoas a continuarem se relacionando? Quantas
vezes o Estado deverá retornar em determinada residência por causa da violência entre o
casal?
Embora sejam compreensíveis tais indagações, é importante que os profissionais
encarregados do atendimento de ocorrências de violência doméstica e familiar não façam
julgamento pessoal sobre a vítima e que atuem dentro da técnica e da legalidade. Atendendo
quantas vezes forem chamados ou quantas vezes a vítima busque o atendimento de um
órgão do sistema de segurança pública.
Outro aspecto relevante na contextualização da violência contra a mulher é o tipo de
local onde ocorrem as violências, em geral, interior das residências, longe do olhar público,
o que torna a atuação preventiva mais complexa, em especial considerando as modalidades
de prevenção baseadas na presença e ostensividade do policiamento.
Portanto, nesse contexto, fatores como tempo de resposta das forças de segurança
pública nos casos de acionamentos emergenciais, o acolhimento e a correta aplicação da
lei têm efeitos importantes para reduzir a impunidade e transmitir segurança às vítimas que
denunciam.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 124

Análise de risco

É fato que nem todos os profissionais do Susp, no âmbito de suas atribuições,


aplicam ou utilizam as ferramentas de avaliação de risco, pois estas, normalmente, são
utilizadas pelos serviços especializados, profissionais do sistema de justiça e equipes
multidisciplinares.
Ainda assim, é importante que todos os profissionais do Susp conheçam essas
ferramentas e que, sobretudo, saibam que é possível identificar fatores de risco e proteção
associados aos casos de violência contra mulher, pois este conhecimento poderá ser
determinante na postura de atendimento de ocorrências de violência doméstica e na correta
orientação das vítimas.

Dentre os objetivos da avaliação de risco destacam-se:

⚫ Estabelecer estratégias integradas com o Sistema de Justiça e demais atores


da rede social a fim de proteger, prevenir e evitar a ocorrência de novas situações de
violência;
⚫ Estabelecer estratégias de intervenção a fim de que mulheres em situação de
violência sejam acolhidas e iniciem um processo de compreensão sobre o contexto de
violência em que estão inseridas.

AVALIAÇÃO DE RISCO: avaliar risco é adotar procedimentos sistematizados para


identificação da possibilidade de ocorrência de novas violências e dessas serem letais
(MEDEIROS, 2015). Envolve o registro minucioso de informações relevantes para
compreensão dos riscos (ACOSTA, 2013).
É uma ação essencial para o aprimoramento dos atendimentos oferecidos a
mulheres em situação de violência, com vistas à garantia de sua segurança (MEDEIROS,
TAVARES & DINIZ, 2015).
A avaliação de risco não deve substituir outras ações realizadas em casos de
violência doméstica, tais como registro de boletim de ocorrência policial, concessão de
medidas protetivas e acolhimento psicossocial (MEDEIROS, 2015).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 125

A avaliação de risco permite:

⚫ Fundamentar pedidos de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria


da Penha, contribuindo para a celeridade de seu deferimento;
⚫ Orientar a aplicação das medidas de proteção previstas no artigo 11 da Lei
Maria da Penha;
⚫ Prevenir o agravamento da violência para vítimas sobreviventes de feminicídios
e/ou vítimas indiretas;
⚫ Organizar o encaminhamento e o acompanhamento das mulheres por meio da
rede de serviços, facilitando a comunicação entre os profissionais com vistas a ampliar a
proteção para as mulheres.

REDE DE ATENDIMENTO: São as instituições ligadas à repressão e prevenção da


violência doméstica e que se inter-relacionam para maior proteção da mulher em contexto
de violência doméstica. Exemplos: Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública,
Delegacia de Polícia, Polícia Militar, serviços de saúde, serviços de atendimento psicossocial
e serviços de assistência social.

Dimensões da avaliação de risco

Especialmente considerando que a violência contra as mulheres é multicausal, na


avaliação do risco é importante considerar a existência de diferentes dimensões e que estas
se inter-relacionam, sendo elas:
INDIVIDUAL: Aspectos e características dos indivíduos que podem se configurar em
fatores de maior vulnerabilidade ou proteção. Exemplos: presenciar violência doméstica
quando criança; sofrer abuso na infância.
CULTURAL: Aspectos culturais devem ser considerados na avaliação de risco.
Exemplos: noção de masculinidade ligada à agressão ou dominação; consentimento social
do castigo físico contra meninas e mulheres; aprovação da violência para resolver conflitos
cotidianos.
FAMILIAR: O contexto familiar em que o caso se encontra inserido. Exemplos:
conflitos conjugais; controle patrimonial por parte do homem; uso de violência como
resolução dos conflitos familiares.
SOCIAL: O contexto social mais amplo também deve ser considerado. Isolamento
da mulher; desemprego; dificuldade de acesso aos serviços da rede de atendimento.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 126

Fatores de Risco

São eventos e características individuais e ambientais que aumentam a


probabilidade de ocorrerem atos violentos contra as mulheres nas relações domésticas e
familiares. Eis alguns fatores de risco já identificados pela literatura:

⚫ Estereótipos rígidos de gênero;


⚫ Separação recente;
⚫ Ameaça ou tentativa de suicídio;
⚫ Dependência econômica;
⚫ Histórico de violência;
⚫ Escalada na frequência e intensidade da violência;
⚫ Acesso à arma de fogo;
⚫ Desemprego;
⚫ Comportamento de ciúme excessivo e controle sobre vítima;
⚫ Descumprimento de medidas protetivas;
⚫ Conflitos relacionados à guarda, visita ou pensão de filhos;
⚫ Dependência emocional;
⚫ Ocorrências policiais anteriores/ reincidência;
⚫ Uso abusivo de álcool e outras drogas;
⚫ Isolamento social da vítima;
⚫ Agressões físicas graves, ameaças;
⚫ Agressões durante a gestação;
⚫ Transtornos mentais;
⚫ Vítima ser Pessoa com Deficiência (PcD);
⚫ Banalização ou negação da violência.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 127

ATENÇÃO:

O uso de armas nos episódios de violência é apontado pela literatura como um fator
de risco importante. (Medeiros, 2015).

Estudos indicam que mulheres ameaçadas ou agredidas com arma têm 20 vezes
mais probabilidades de serem vítimas de feminicídio. (AMCV et al., 2013)

A violência durante a gestação está relacionada ao risco de feminicídio (Campbell et


al., 2003).

Limitações físicas e psicológicas decorrentes do período gestacional podem


acentuar a situação de vulnerabilidade da mulher. Identificar episódios de violência durante
a gravidez é relevante para a avaliação da dinâmica relacional (Medeiros, 2015).

Fatores de proteção

São eventos e características pessoais e ambientais que protegem as mulheres da


vulnerabilidade a que estão expostas pelos fatores de risco e contribuem para a construção
de estratégias de enfrentamento e ruptura das situações de violência. Sendo alguns deles:
⚫ Rede de apoio fortalecida;
⚫ Adesão ou inserção em acompanhamento pela rede de proteção;
⚫ Separação ou melhorias no relacionamento;
⚫ Autonomia da vítima;
⚫ Interrupção da violência;
⚫ Auto responsabilização do agressor;
⚫ Filhos protegidos;
⚫ Publicização do fato;
⚫ Articulação da rede de proteção;
⚫ Deferimento de medidas protetivas adequadas e respeito às medidas
protetivas;
⚫ Independência financeira;
⚫ Estabelecimento de políticas públicas de proteção às vítimas e
responsabilização dos agressores.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 128

ATENÇÃO

AUTONOMIA DAS MULHERES: autonomia é a capacidade de tomar decisões


próprias, de tornar-se independente de alguém ou de alguma situação. Autonomia significa
superar a situação de coação, visando à superação em relação à desigualdade de poderes.
O atendimento policial visa respeitar e promover a tomada de decisão da mulher quanto à
sua vida e quanto à interrupção do ciclo da violência. (MJSP, 2022).

Classificação e gestão do risco

A gestão do risco deve se configurar em um esforço conjunto de construção de uma


avaliação estruturada que possa permitir mapear os fatores de risco, reconhecer o perigo
existente e, por conseguinte, favorecer a adoção das medidas e intervenções capazes de
minimizar os riscos e contribuir para a proteção da mulher.

Gestão de Risco

É o conjunto de estratégias que visam prevenir o risco de reincidência ou o aumento


da gravidade da violência.
Portanto, a correta identificação dos fatores de risco e proteção é fundamental para
a gestão do risco e, nesse sentido, instrumentos como o Formulário Nacional de Avaliação
de Risco (FONAR) são essenciais.

Figura 38: FONAR

Fonte: TJDFT
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 129

Plano de Segurança

É o conjunto de estratégias a serem acionadas em situações de risco e que podem


fazer toda a diferença, em contextos de Violência de Doméstica de Gênero contra a mulher.
Embora saibamos que existem questões estruturais que tornam os casos de
violência doméstica parecidos, é importante frisar que cada situação é única e que, portanto,
há necessidade de elaboração dos Planos Individuais de Segurança e os Planos de
Segurança em Rede, os quais, sempre que possível, deverão também ser elaborados com
a colaboração de integrantes de entidades públicas ou privadas, sendo fundamental a
comunicação entre todos, com o objetivo de diversificar as forças e favorecer o acesso da
vítima aos recursos de diversos órgãos.
⚫ Plano de segurança pessoal: Deve ser individualizado e elaborado junto com
a mulher em situação de violência e poderá incluir desde contatos com organização de
atendimento a mulheres em situação de violência doméstica; acionamentos números de
emergência, como da Polícia Militar; Uso de aplicativos de proteção e segurança para
mulheres; identificar lugares seguros dentro da residência em caso de ataques; identificar
familiares e vizinhos que possam oferecer suporte; acesso a recursos financeiros; cuidados
quanto à guarda de documentos; dentre outros.
⚫ Plano de Segurança em Rede: Trabalho articulado entre os diversos atores
da rede, envolvendo ações de organizações governamentais e não governamentais
responsáveis por garantir a proteção e o atendimento a pessoas em situações de violência
doméstica e familiar.

ATENÇÃO:

A avaliação de risco requer uma intervenção integrada entre os serviços da rede de


atendimento e envolve a elaboração de plano de segurança pessoal e plano de intervenção
institucional com enfoque na proteção da mulher, dos filhos e de outros familiares envolvidos
na situação de risco (AMCV et al, 2013; Glass, Eden, Boom & Perrin, 2010 in Medeiros,
2015).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 130

Formulário Nacional de Avaliação do Risco (FONAR)

O Formulário Nacional de Avaliação de Risco (FONAR) é um instrumento criado em


conjunto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP) para avaliar de forma técnica os riscos associados a cada caso de violência
doméstica e familiar, com o objetivo de evitar o agravamento das violências e o feminicídio.
O FONAR está previsto através da Lei n.º 14.149/21 de maio de 2021 e determina a
aplicação do questionário às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar
preferencialmente pela Polícia Civil, pelo Ministério Público ou pelo Poder Judiciário,
dependendo de onde ocorra o primeiro atendimento dessa mulher, conforme se verifica pelo
artigo 3 º da citada lei:

Art. 3º- O Formulário Nacional de Avaliação de Risco será preferencialmente aplicado pela Polícia
Civil no momento do registro da ocorrência policial, ou, na impossibilidade, pela equipe do Ministério Público
ou do Poder Judiciário, por ocasião do primeiro atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

Parágrafo único. É facultada a utilização do modelo de Formulário Nacional de Avaliação de Risco


por outras instituições, públicas ou privadas, que atuem na área da prevenção e do enfrentamento da violência
doméstica e familiar contra a mulher.

Note-se que não há impeditivo para que outras instituições, públicas ou privadas,
atuem na área da prevenção e do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a
mulher. Portanto é possível que os profissionais atuantes nas Patrulhas e Rondas Maria da
Penha, desde que devidamente capacitados, também apliquem o questionário.
Contudo, é importante que seja evitado que vítima tenha que responder o FONAR
várias vezes, ou seja, em cada órgão pelo qual venha passar ela precise novamente
responder ao questionário. A repetição desnecessária de determinado procedimento pode
ensejar mais sofrimento às vítimas, caracterizando um tipo de revitimização, daí a
importância da articulação das instituições em rede para que, uma vez respondido o FONAR,
as informações cheguem às instituições encarregadas do acompanhamento do caso e da
gestão do risco.
O Formulário é composto de questões objetivas (Parte I) e subjetivas (Parte II), e
será aplicado por profissional capacitado, admitindo-se, na sua ausência, o preenchimento
pela própria vítima, tão somente, quanto às questões objetivas (Parte I) sendo esta dividida
em quatro blocos:

BLOCO I - SOBRE O HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA

BLOCO II - SOBRE O (A) AGRESSOR (A)


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 131

BLOCO III - SOBRE VOCÊ (a vítima)

BLOCO IV - OUTRAS INFORMAÇÕES IMPORTANTES

As perguntas do questionário permitem avaliar de forma técnica o grau de risco e


aplicação de medidas necessárias e disponíveis a cada órgão da rede, podendo ser estas
desde a expedição das medidas protetivas de urgência pelo Judiciário até a indicação e
condução da vítima para abrigo sigiloso ou casa de passagem - nas localidades onde existam
- ou mesmo a frequência de visitas à determinada vítima pelos serviços de Patrulhas e
Rondas Maria da Penha.
Portanto, o FONAR deve ser compreendido como um importante instrumento para o
trabalho de toda a rede de proteção e enfrentamento da violência contra mulher, e não como
mais um procedimento burocrático e formal. O FONAR deve ser utilizado e compreendido
como elemento de tomada de decisão pelos atores da rede.

SAIBA MAIS

1 - Recomendamos a leitura e análise do FORNAR através do link:


https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3218
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 132

Leia atentamente o estudo de caso a seguir:

Um homem de 56 anos assassinou a ex-mulher com três tiros e depois se matou em


uma manhã de terça-feira, na zona oeste do Rio de Janeiro. O caso foi registrado como
feminicídio e seguido de suicídio.
O autor do crime, analista financeiro, que se separou há poucos meses da esposa,
uma médica de 46 anos, não aceitava o fim do relacionamento. Ele aguardou a ex-mulher
sair para o trabalho, por volta das 9 horas da manhã, a encurralou em frente ao condomínio
onde ela morava e fez quatro disparos contra a mesma.
Três tiros acertaram a vítima, que foi socorrida ainda com vida e encaminhada pela
unidade de resgate ao pronto socorro, mas não resistiu.
O assassino fugiu do local do crime e foi encontrado pela Polícia Militar em sua casa,
cerca de duas horas depois. Ele se trancou na residência e pediu um psicólogo e um
advogado ao Grupo de Ações Táticas Especiais do BOPE da PMERJ. Durante as
negociações, o autor chegou a dizer que iria se entregar, mas atirou contra si mesmo, vindo
a morrer no local.
Após o fato, relatos de familiares e vizinhos sobre o caso informam que o casal
apresentava longo histórico de violências anteriores, porém não registradas. E era de
conhecimento de amigos e familiares que o autor possuía uma arma de fogo legalmente
registrada e que se tornava agressivo após uso de álcool.

Na Prática

Com base na leitura desse caso:

a) Quais fatores de risco podem ser identificados nesse contexto?

b) Que medidas de proteção e encaminhamentos poderiam ser feitos, caso os


episódios de violência anteriores fossem notificados antes desse desfecho?
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 133

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

⚫ Uma parte importante da prevenção e enfrentamento da violência contra


mulheres e meninas passa pela identificação e reconhecimento dessa violência em suas
distintas manifestações;
⚫ Fatores como tempo de resposta das forças de segurança pública nos casos
de acionamentos emergenciais de crimes contra a mulher, bem como o acolhimento e a
correta aplicação da lei têm efeitos importantes para reduzir a impunidade e transmitir
segurança às vítimas que denunciam;
⚫ É importante compreender a avaliar os riscos associados à violência contra
mulheres e meninas, que devido a suas características podem se agravar até um feminicídio;
⚫ O FONAR está previsto através da Lei n.º 14.149/21 de maio de 2021.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 134

4.3.3.4 Aula 4: Identificando o papel dos atores da segurança pública na


redução da “rota crítica” das vítimas de violência.

Introdução

O percurso das mulheres e meninas vítimas de violência pelos diferentes órgãos da


rede de proteção e enfrentamento da violência contra mulher pode se configurar em processo
de revitimização, conforme temos visto ao longo deste curso.

Nesse contexto, a sensibilização dos profissionais do Susp quanto ao seu papel na


redução da rota crítica das vítimas de violência torna-se importante elemento na prestação
do serviço. Entretanto, é preciso inicialmente reforçar os conceitos de rede de atendimento
e rota crítica, bem como tais conceitos se relacionam com a atuação da segurança pública,
no atendimento especializado e não especializado.

Atuação da segurança pública com perspectiva de rede

Figura 39: Segurança Pública

Fonte: Grancursosonline

A violência contra as mulheres constitui um fenômeno multidimensional e


multifacetado, relacionado a uma gama de fatores individuais, relacionais, comunitários e
socioculturais. Portanto, o enfrentamento desse tipo de violência demanda a atuação de
todos os setores com perspectiva de rede. O trabalho em rede parte do princípio de que cada
sujeito ou instituição isoladamente não é capaz de dar conta da atenção integral às
demandas e necessidades das mulheres em situação de violência.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 135

Rede é uma malha de múltiplos fios, que pode se espalhar indefinidamente para todos os lados, sem
que nenhum dos seus nós possa ser considerado principal ou central, nem representante dos demais. Não há
um “chefe”, o que há é uma vontade coletiva de realizar determinado objetivo. (WHITAKER, 1993, p. 26).

Figura 40: Rede de articulação.

Fonte: https://fnq.org.br

Do latim retis, a palavra rede significa teia, entrelaçamento de fios e nós que formam
uma espécie de tecido.
Nesse sentido o conceito de rede de enfrentamento da violência contra as mulheres
se refere à atuação articulada entre as instituições, serviços governamentais, não-
governamentais e a comunidade, visando o desenvolvimento de estratégias efetivas de
prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres e seus direitos
humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em
situação de violência (Brasília, 2011).
Já a rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de
diferentes setores (em especial, da assistência social, da justiça, da segurança pública e da
saúde), que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento; à identificação
e ao encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência e à integralidade e
humanização do atendimento (Brasília, 2011).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 136

EIXOS ESTRUTURANTES DO ENFRENTAMENTO DA


VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER:

1 - PREVENÇÃO: Ações educativas que disseminem o irrestrito respeito às


mulheres e meninas;

2 - ASSISTÊNCIA: Fortalecimento da rede de atendimento e capacitação de agentes


públicos;

3 - RESPONSABILIZAÇÃO / COMBATE: Cumprimento da Lei Maria da Penha e da


Lei do Feminicídio;

4 - DADOS E INFORMAÇÕES: pesquisa e registros administrativos.

A prevenção da violência contra a mulher também compreende três níveis: a


prevenção primária, a prevenção secundária e a prevenção terciária:

PREVENÇÃO PRIMÁRIA: busca evitar a ocorrência da violência contra as


mulheres, em especial por meio de mudanças de atitudes, crenças e comportamentos e de
ações educativas, como por exemplo: campanhas, ações e programas em escolas e
universidades, dentre outras.
PREVENÇÃO SECUNDÁRIA: também denominada de intervenção precoce, refere-
se ao rol de respostas imediatas à violência para lidar com suas consequências a curto prazo
na vida das mulheres. A prevenção secundária “visa alcançar indivíduos que estão numa
situação de risco acima da média de sofrerem ou praticarem a violência doméstica, ou de
uma violência embrionária evoluir para episódios mais graves” (ÁVILA, 2017, p. 97).
Exemplos: Acolhimento psicossocial em centros de referência, atividades educativas e de
orientação sobre direitos.
PREVENÇÃO TERCIÁRIA: refere-se a respostas de longo prazo, após a ocorrência
da violência contra as mulheres, incluindo iniciativas voltadas para os autores de violência.
Em casos de violência doméstica, o apoio à vítima e a responsabilização do agressor tem
por finalidade evitar a reiteração da violência, que usualmente possui um caráter cíclico.
Exemplos: Acompanhamento de mulheres pelas Rondas e Patrulhas Maria da Penha; gestão
dos riscos e plano de segurança; ações educativas de responsabilização de autores de
violência (serviços e programas de responsabilização e educação dos agressores).
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 137

Rota crítica

De acordo com a Política Nacional de enfrentamento à Violência contra a Mulher


(2011), a rota crítica “refere-se ao caminho que a mulher percorre na tentativa de encontrar
uma resposta do Estado e das redes sociais frente à situação de violência. Essa trajetória
caracteriza-se por idas e vindas, círculos que fazem com que o mesmo caminho seja repetido
sem resultar em soluções, levando ao desgaste emocional e à revitimização”.
Portanto, a necessidade de criação de uma Rede de Atendimento leva em conta a
rota crítica (OMS/OPAS, 1998) que a mulher em situação de violência percorre. Essa rota
possui diversas portas de entrada (serviços de emergência na saúde, delegacias, serviços
da assistência social), que devem trabalhar de forma articulada no sentido de prestar uma
assistência qualificada, integral e não-revitimizante à mulher em situação de violência.
Segundo BARAGATTI (2019), et al., existem os fatores impulsores e os fatores
inibidores para a mulher buscar ajuda a fim de romper com a violência sofrida. Dentre os
fatores inibidores estão: a desconfiança das instituições; a disponibilidade limitada dos
serviços de apoio; e a fragmentação dos atendimentos pela rede de proteção. Como fatores
impulsores, temos a disponibilidade de atendimento institucional e a existência de mão de
obra qualificada nos serviços de atendimento.

E o papel dos atores da segurança pública na redução da “rota crítica” das vítimas
de violência?

Tendo em vista que os órgãos de segurança pública integram a rede de


enfrentamento e proteção às mulheres em situação de violência e que a atuação dos
profissionais do Susp pode se dar através de serviços especializados e não especializados,
os atores da segurança pública têm papel importante na jornada das vítimas de violência e
podem atuar na redução dos efeitos da rota crítica das vítimas de violência.
A polícia, em razão de sua capilaridade, associada à sua disponibilidade e por ser,
normalmente, a "primeira resposta" para variados casos e situações na comunidade,
constitui um ator imprescindível para uma resposta efetiva ao problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Para o Escritório de Vítimas de Crime dos Estados Unidos (2001), as três maiores
necessidades da vítima após o crime ter sido cometido são:

1. Primeiro lugar: sentir-se segura;


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 138

2. Segundo lugar: necessidade de expressar suas emoções;


3. Em terceiro e último lugar: necessidade de saber o que irá acontecer após ter
sido vitimizada.

De uma maneira geral, para as Nações Unidas (2003) e para o Escritório para
Vítimas de Crime (2001) o rol de respostas das forças de segurança pública aos casos de
violência doméstica deve incluir:

✓ Atuação imediata ante um pedido de ajuda;


✓ Atuação imediata nos casos de reincidência;
✓ Informação e apoio à vítima durante o processo de intervenção.

Dentre as premissas para um atendimento humanizado e não-revitimizador podem-


se destacar:

1 Atitude compreensiva, empática e solidária;

2 Validação da situação de “vítima” da mulher, ou seja, de que ela não é responsável


ou culpada pela violência sofrida;

3 Respeito à liberdade e à autonomia das escolhas e decisões da mulher;

4 Garantia de privacidade e confidencialidade;

5 Garantia da segurança da mulher;

6 Escuta sem declarações ou registros que contenham conteúdo baseados em


preconceitos, pré-julgamentos e discriminações;

7 Trabalho intersetorial e em rede.


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 139

Embora tenhamos enfatizado a atuação das polícias, especialmente, no contexto de


"primeira resposta" é importante destacar que, além de áreas como saúde, Justiça e
assistência social, outros órgãos do Susp podem estar na rota trilhada pelas mulheres
vítimas de violência, podendo estas ser atendidas por Guardas Municipais, Peritos Criminais,
Bombeiros, dentre outros.
Razão pela qual conhecer o seu papel na rede de enfrentamento e proteção das
mulheres em situação de violência, bem como estar sensibilizado quanto ao problema e
devidamente capacitado pode fazer com que o profissional do Susp seja um importante ator
na redução da rota crítica das vítimas.

SAIBA MAIS

Assista ao vídeo: Rota Crítica – Barreiras Enfrentadas pelas Mulheres na busca por
Apoio e o Papel da Sociedade. Créditos: Equipe do Núcleo Judiciário da Mulher -
NJM/TJDFT. https://www.youtube.com/watch?v=_9tnHo5Y1OU

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

⚫ O enfrentamento da violência contra a mulher demanda a atuação de todos os


setores com perspectiva de rede;
⚫ O trabalho em rede parte do princípio de que cada sujeito ou instituição
isoladamente não é capaz de dar conta da atenção integral às demandas e necessidades
das mulheres em situação de violência;
⚫ A rota crítica se refere ao caminho que a mulher percorre na tentativa de
encontrar uma resposta do Estado e das redes sociais frente à situação de violência. Essa
trajetória caracteriza-se por idas e vindas, círculos que fazem com que o mesmo caminho
seja repetido sem resultar em soluções, levando ao desgaste emocional e à revitimização.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 140

4.3.3.5 Aula 5: A atuação da segurança pública de modo integrado com


os diferentes atores da rede proteção e enfrentamento.

Introdução

A lei Maria da Penha prevê a integração operacional entre órgãos que atuam no
atendimento às mulheres em situação de violência:
Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por
meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de
ações não-governamentais, tendo por diretrizes: I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação; (BRASIL, 2006)

Portanto, a integração entre os órgãos é um elemento importante na política de


proteção integral às mulheres e meninas em situação de violência. Nesse sentido, a
construção de protocolos, fluxos de atendimento e atuação integrada são essenciais para a
qualidade do atendimento às vítimas e consequente redução das idas e vindas pelos
serviços.
Conforme visto até aqui, diversos fatores concorrem para que as mulheres vítimas
de violência desistam ao longo do processo. E, nesse contexto, os diferentes órgãos
precisam estar conectados para que os encaminhamentos e procedimentos necessários
sejam realizados de modo a impactar ao mínimo possível a vítima de violência.

Atuação Integrada

Para falar de atuação integrada entre os órgãos de enfrentamento e combate à


violência contra mulheres e meninas, é necessário retomar a importância da perspectiva de
rede. Deve-se considerar que, para atuar de forma integrada, primeiramente, é preciso
compreender as atribuições de cada serviço e suas limitações.
A rede precisa ser entendida como uma forma de gestão pública marcada pela
cooperação e solidariedade, pautada na interdependência.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 141

Pilares do trabalho em rede:

⚫ RECONHECER: que o outro existe e é importante;


⚫ CONHECER: o que o outro faz;
⚫ COLABORAR: prestar parceria quando necessário;
⚫ COOPERAR: compartilhar saberes, ações e poderes; compartilhar objetivos e
projetos.

Entretanto, Pasinato (2015) destaca que é necessário ultrapassar os limites da


atuação em microrredes de execução, ou seja, das relações pessoais entre profissionais de
ponta para encaminhamentos imediatos que, embora de suma importância, têm seus efeitos
limitados, para então atingir a efetiva institucionalização da atividade política de articulação
(comunicação), a fim de fornecer sustentabilidade e eficácia da rede.
Dutra et al (2013) também destaca os da informalidade e pessoalidade na interação
dos atores da rede de atendimento às mulheres em situação de violência:

A necessidade dos profissionais de compartilhar sua prática acaba se resolvendo de modo informal,
na rede de relações pessoais, a partir da confiança mútua. Entretanto, essa rede se dissolve quando os atores
mudam de posição e levam consigo sua rede de contatos e apoios. Não há, assim, um vínculo entre os serviços
e um fluxo interinstitucional que permita a troca de experiências.

Embora, de fato na prática, as pessoas das instituições se comuniquem, é importante


que essa comunicação seja institucional, que a rede seja institucional e não apenas pessoal,
pois a pessoalidade tem como um dos seus efeitos negativos a dependência de indivíduos
que acabam por se tornar “insubstituíveis”, inviabilizando a continuidade de fluxos, ações
institucionais e até políticas públicas em caso de eventual substituição desses atores.

Vantagens de trabalhar de forma integrada

Podemos identificar vários benefícios na atuação integrada, os quais atingem não


apenas as mulheres em situação de violência, mas geram benefícios também para as
instituições, como os que se destacam abaixo:
⚫ Estabelecer vínculos positivos por meio da interação entre instituições e
pessoas;
⚫ Refletir, trocar experiências e buscar soluções para problemas comuns;
⚫ Estimular o exercício da solidariedade e da cidadania;
⚫ Ampliar as possibilidades de intervenção;
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 142

⚫ Promover maior resolutividade dos problemas;


⚫ Estabelecer e encurtar os fluxos de atendimento;
⚫ Evitar a revitimização das mulheres.

Desafios do trabalho integrado

Entretanto, trabalhar de forma integrada, embora seja um ideal a ser alcançado pelas
políticas de proteção às mulheres, ainda assim tem seus desafios e percalços. Dentre os
quais podemos destacar alguns:
⚫ Reduzido número de serviços especializados (considerando toda a realidade
local, urbana e rural);
⚫ Escassez de recursos financeiros e humanos;
⚫ Carência de equipe qualificada para o atendimento às mulheres, a fim de evitar
a revitimização no atendimento (atendimento especializado e não especializado);
⚫ Desconhecimento sobre o trabalho de outras instituições;
⚫ Falta de conhecimento dos fluxos de encaminhamentos adequados por parte
dos serviços não especializados;
⚫ Pouca integração entre a rede de proteção às mulheres e as outras redes:
socioassistencial, de saúde, da justiça e segurança que, em algumas regiões, ainda
trabalham de forma isolada, dificultando a articulação;
⚫ Pensamento de que “só o meu serviço é que sabe fazer o trabalho direito”.

Algumas estratégias de atuação integrada

Apesar das dificuldades da atuação integrada entre os órgãos, existem estratégias


que podem ajudar na necessária integração, dentre as quais destacamos algumas:
✓ Organização do fluxo de atendimento pautado nos marcos legais, em especial
a Lei Maria da Penha e legislações correlatas;
✓ Definição dos fluxos de atendimento;
✓ Identificação das instituições e estabelecimento de uma rede local;
✓ Ampla divulgação das ações da rede e dos locais de atendimento;
✓ Realização de fóruns permanentes para troca de informações e
aprofundamento das relações institucionais.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 143

A segurança pública no contexto de integração operacional

Preliminarmente, é importante ressaltar que existem distintas portas de entrada para


o primeiro atendimento de mulheres em situação de violência à rede de proteção, como é o
caso da saúde e assistência social. Entretanto, os profissionais de segurança pública, em
especial os policiais civis, são os primeiros profissionais a terem contato pessoal com as
mulheres em situação de violência doméstica. Nessa situação, o contato inicial é muito
importante, podendo ser fundamental para a descrição da queixa e posterior investigação
criminal. (CARMO SOUZA, ET AL, 2018).
Entretanto, em se tratando de atendimentos emergenciais podemos ter esse primeiro
atendimento realizado pela Polícia Militar, Guardas Municipais ou Corpos de Bombeiros a
depender do tipo de acionamento ou cobertura dos serviços na região do fato, sendo
importante que estes profissionais tenham conhecimento, ainda que básico, dos fluxos e
serviços existentes na sua área de atuação.
Seguem abaixo alguns exemplos de serviços integrantes da rede de atendimento:
✓ Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos de Atendimento à
Mulher;
✓ Casas-Abrigo;
✓ Casas de Acolhimento Provisório;
✓ Abrigo sigiloso;
✓ Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher;
✓ Núcleos ou Postos de Atendimento à Mulher nas Delegacias Comuns da
Polícia Civil e Militar;
✓ Instituto Médico Legal;
✓ Defensorias Pública;
✓ Juizados de Violência Doméstica e Familiar;
✓ Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;
✓ Ouvidorias da Mulher;
✓ Serviços de Saúde voltados para o atendimento dos casos de violência sexual
e doméstica;
✓ Patrulha e Ronda Maria da Penha das Polícias Militares e Guardas Municipais;
✓ Casa da Mulher Brasileira.
A integração operacional no âmbito da segurança pública se torna mais presente
nos serviços especializados como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 144

Rondas ou Patrulhas Maria da Penha. Nesses serviços a existência de diretrizes, protocolos


e fluxos preestabelecidos de encaminhamentos fazem com que a interação seja mais efetiva.
Observe a seguir os modelos de fluxogramas de atendimento às mulheres vítimas
de violência, publicamente divulgados pela Prefeitura de Uberaba. Estes fluxogramas,
embora reflitam a situação local em um dado momento, são bons exemplos de como a
construção e publicização dos protocolos e fluxos de atendimento às mulheres vítimas
contribuem para a transparência e orientação de todos os interessados e, nesse contexto,
encontra-se a população e também os agentes públicos, que muitas vezes desconhecem a
estrutura existente e quais os encaminhamentos possíveis a cada situação de violência
contra mulheres e meninas.

Imagem 41: fluxograma de atendimento às mulheres vítimas de violência de segunda à sexta das 8:00h às
18:00h.

Fonte: http://www.uberaba.mg.gov.br/portal/conteudo,52860

Este fluxograma apresenta toda a rede de atendimento e os caminhos a partir de


cada possível porta de entrada da mulher em situação de violência. Nota-se que ele detalha,
além dos fluxos, os dias e horários de atendimento.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 145

Imagem 42: fluxograma de atendimento às mulheres vítimas de violência de após às 18:00h, finais de
semana e feriados.

Fonte: http://www.uberaba.mg.gov.br/portal/conteudo,52860

Este é o fluxograma de atendimento noturno, finais de semana e feriados, esse tipo


de informação é fundamental para evitar idas e vindas das mulheres em situação de
violência, sobretudo em situação de emergência, quando a vítima se encontra ainda mais
fragilizada.

Imagem 43: fluxograma de assistência jurídica às mulheres vítimas de violência doméstica.

Fonte: http://www.uberaba.mg.gov.br/portal/conteudo,52860
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 146

Já este outro fluxograma apresenta os serviços de assistência jurídica disponíveis


às mulheres vítimas de violência doméstica. Observe que no modelo, a Delegacia de Polícia,
a Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica (PPVD) e o Centro Integrado da Mulher
(CIM), podem fazer o encaminhamento para esses serviços, garantindo o acesso das vítimas
à defesa de seus direitos e acompanhamento jurídico durante o processo.

SAIBA MAIS

Casa da Mulher Brasileira:


https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-
mulheres/arquivo/assuntos/violencia/cmb

E reflita sobre o modo como funciona a Casa da Mulher Brasileira e como a estrutura
deste serviço público contribui para integração entre os órgãos e onde a segurança pública
se insere neste espaço.

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

⚫ A integração operacional entre órgãos que atuam no atendimento às


mulheres em situação de violência é prevista em lei;
⚫ A atuação integrada entre os órgãos de enfrentamento e combate à violência
contra mulheres e meninas está diretamente relacionada à atuação em rede;
⚫ Para atuar de forma integrada, primeiramente, é preciso compreender as
atribuições de cada serviço e suas limitações;
⚫ Na atuação integrada entre os diferentes órgãos voltados ao atendimento das
mulheres em situação de violência, é importante que a comunicação seja institucional, que
a rede seja institucional e não apenas pessoal.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 147

4.3.3.6 Aula 6: Serviços especializados no atendimento a mulheres e


meninas no âmbito da segurança pública.

Introdução

Nesta aula abordaremos os serviços especializados no atendimento às mulheres em


situação de violência no âmbito da segurança pública, seu histórico e dinâmicas de
funcionamento. Nesse contexto, vamos conhecer um pouco mais sobre esse tipo de
especialização e sua importância na jornada das vítimas de violência.
O que é um serviço especializado? O status de serviços especializados de
atendimento à mulher se atribui àqueles que atendem exclusivamente a mulheres e que
possuem expertise no tema da violência contra as mulheres.

Figura 44: CEAM

Fonte: Prefeitura de Luziânia/GO

No campo da segurança pública, as primeiras iniciativas de atuação policial


especializada no atendimento à violência contra a mulher no país surgem nas polícias civis
que, nos anos 1980, criaram as primeiras Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher (DEAM) ou Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), fazendo de um serviço policial
a principal política pública no modelo de Patrulha Maria da Penha (Patrulhas, Rondas ou
Guardiãs Maria da Penha, Patrulhas de Prevenção à Violência Doméstica). Segundo
Macaulay (2022), as patrulhas policiais de “segunda resposta” constituem uma forma
inovadora de enfrentamento da violência doméstica.
O Rio Grande do Sul foi o estado brasileiro pioneiro na criação desta modalidade de
policiamento, instalando em 2012, no âmbito da Brigada Militar, a Patrulha Maria da Penha,
conforme destaca Gerhard (2014), com a finalidade de expandir a atuação da PM nos
conflitos de gênero, através da especialização de suas atividades junto a mulheres vitimadas
em âmbito doméstico.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 148

Dessa forma, com objetivo de comprovar a efetividade das práticas de polícia comunitária, foi criado
e instalado, no dia 20 de outubro de 2012, pela Polícia Militar, um programa de pleno atendimento às mulheres
vítimas de violência doméstica, a Patrulha Maria da Penha, com atendimento e fiscalização através de policiais
militares capacitados especificamente para essa finalidade, contemplando a adequação de recursos, meios e
práticas de polícia às necessidades das vítimas e buscando seu envolvimento na solução da violência
doméstica. (GERHARD, 2014, p.83)

Desde então, o atendimento especializado para mulheres em situação de violência,


através da criação de Patrulhas e Rondas Maria da Penha, também vem sendo adotada
tanto pelas Polícias Militares, quanto pelas Guardas Municipais e Guardas Civis em
diferentes municípios brasileiros, como por exemplos: a Guarda Civil Metropolitana de São
Paulo (2014), a Guarda Civil Municipal de Suzano - SP (2014) e a Guarda Municipal de
Duque de Caxias – RJ (2016).

As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher

A criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher foi a primeira


experiência de implementação de uma política pública de combate à violência contra as
mulheres no Brasil, sendo a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) instalada em
1985, na cidade de São Paulo.
A Norma Técnica de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento
às Mulheres – DEAM (Brasília, 2010), apresenta o contexto histórico de criação da DEAM e
sua implementação como uma resposta à demanda social mobilizada pelos movimentos
feministas e de mulheres por uma ação mais efetiva do Estado em relação à violência contra
as mulheres.
A política de criação das DEAMs teve como motivação primária responder à demanda dos
movimentos feministas e de mulheres por uma ação mais vigorosa por parte do Estado em relação à violência
contra as mulheres. Os movimentos sociais de mulheres criticavam o descaso e/ou a tolerância com que o
sistema de justiça criminal lidava com os crimes cometidos contra as mulheres, particularmente os homicídios
ditos “passionais” e a violência doméstica e sexual. (Brasília, 2010:7)

Segundo Kopittke (2023), em alguns estados brasileiros as DEAMs investigam todo


tipo de violações de direitos das mulheres, enquanto em outros, as delegacias especializadas
focam sua atuação apenas nos crimes da Lei Maria da Penha, como violência doméstica,
além de casos de crimes contra a dignidade sexual e feminicídio.
A Lei Maria da Penha, em suas diretrizes de integração de ações entre as esferas
governamentais, constantes do artigo 8º, inciso IV, destaca a implementação de atendimento
policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à
Mulher.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 149

Nesse contexto, o atendimento especializado nas DEAMs demanda profissionais


habilitados, qualificados e sensibilizados. Sendo que, para esse atendimento, é necessário
o conhecimento do fenômeno da violência e suas implicações na vida das mulheres.
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher compõem a estrutura da
Polícia Civil, órgão integrante do Sistema de Segurança Pública de cada Estado. Esse
serviço especializado, além de um importante porta de entrada das mulheres na rede de
serviços, tem papel fundamental na prevenção e repressão qualificada à violência contra as
mulheres, desempenhando o papel prático de coibir, prevenir e investigar os crimes de
violência contra a mulher.

Atribuições das DEAMs

As atribuições das Delegacias de Polícia Civil - dentre as quais se incluem as DEAMs


- estabelecidas pela Lei 11.340/2006 estão dispostas no Capítulo III, artigos 10 a 12-C e seus
incisos. Destacando-se que o artigo 11 da Lei estabelece que as Autoridades Policiais, além
da realização de todos os procedimentos policiais cabíveis para a elucidação do crime
(inquérito policial), deverão ainda:

I - Garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao


Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II - Encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III - Fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local
seguro, quando houver risco de vida;

IV - Se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus


pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - Informar à ofendida os direitos a ela conferidos na Lei e os serviços disponíveis,


inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente
da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de
união estável.

Observe que o inciso V trata da necessidade de informação sobre os serviços


disponíveis e o consequente encaminhamento à rede de serviços de atendimento à mulher
em situação de violência, o que requer não apenas o conhecimento formal da rede, mas uma
atuação integrada com os demais órgãos e serviços da rede.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 150

Cabendo, portanto, relembrar que a política integral e articulada de prevenção e


assistência à mulher em situação de violência estabelecida pela Lei Maria da Penha requer
a criação e/ou articulação da rede de serviços de atendimento entre todos os atores
envolvidos.

Sabemos que o primeiro contato entre o (a) policial e a mulher em situação de


violência é muito importante e pode ser determinante para o desenrolar da queixa-crime e/ou
da investigação criminal. Assim sendo, desde a estrutura física da DEAM até a postura dos
agentes devem propiciar um atendimento acolhedor, conforme preconiza a Norma Técnica
de Padronização das Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres. Link:
https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/2338/1/6padronizacao_deams.pdf.

Imagem 45: 1ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) - São Paulo

Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/

Embora a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher seja uma das políticas


públicas no âmbito da segurança mais reconhecidas pela população - fato que se verifica
através de dados como os da pesquisa “Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no
Brasil ”, do FBSP (2023), mostrando que 14,0% das mulheres que sofreram algum tipo de
violência denunciou o fato numa DEAM - ainda assim, a maioria dos municípios brasileiros
não possui o serviço, ficando, portanto, a cargo das Delegacias Distritais (não
especializadas) o atendimento das ocorrências relacionadas à violência contra a mulher.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 151

Link para a pesquisa Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil:


https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-
relatorio.pdf
Outro levantamento mais recente mostrou que existem apenas 492 delegacias
especializadas no atendimento à mulher no Brasil e destas, apenas 60 (12,1%) funcionam
24 horas, embora a lei nº 14.541 de 03 de abril de 2023 disponha sobre a criação e o
funcionamento ininterrupto de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Link
para a lei:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14541.htm

Art. 3º As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam) têm como finalidade o


atendimento de todas as mulheres que tenham sido vítimas de violência doméstica e familiar, crimes contra a
dignidade sexual e feminicídios, e funcionarão ininterruptamente, inclusive em feriados e finais de
semana.
§ 1º O atendimento às mulheres nas delegacias será realizado em sala reservada e,
preferencialmente, por policiais do sexo feminino.
§ 2º Os policiais encarregados do atendimento a que se refere o § 1º deste artigo deverão receber
treinamento adequado para permitir o acolhimento das vítimas de maneira eficaz e humanitária.
§ 3º As Delegacias Especializadas disponibilizarão número de telefone ou outro mensageiro
eletrônico destinado ao acionamento imediato da polícia em casos de violência contra a mulher.
Art. 4º Nos Municípios onde não houver Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher
(Deam), a delegacia existente deverá priorizar o atendimento da mulher vítima de violência por agente
feminina especializada. (Brasil, 2023)

Nesse sentido, a criação dos Núcleos de Atendimento à Mulher (NUAM) ou Núcleos


Integrados de Atendimento à Mulher (NIAM) tem sido uma alternativa adotada pela Polícia
Civil do Rio de Janeiro para, além das DEAMs, oferecer atendimento especializado e
acolhedor às mulheres em situação de violência nas Delegacias Distritais (não
especializadas).
Esses núcleos têm estruturas adaptadas à realidade local, mas, ainda assim, são
modelados de forma semelhante, buscando atuar de modo integrado com a rede de proteção
à mulher, mobilizando instituições, estruturas e atores em nível local, objetivando prestar um
atendimento mais humanizado e eficiente para melhor amparar às mulheres em situação de
violência, proporcionando-lhes condições para interromper o ciclo de violência.
Geralmente estes espaços são criados a partir de parcerias entre a Polícia Civil e
organismos federais, estaduais e municipais de proteção às mulheres, além de outros órgãos
e entidades integrantes da rede. O serviço conta com policiais especialmente capacitados e
policiais femininas na composição das equipes, além de terem um ambiente físico
diferenciado e mais acolhedor.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 152

Há também outras iniciativas de especialização no atendimento às mulheres em


situação de violência no âmbito das polícias civis, como é o caso dos Núcleos Integrados
de Atendimento à Mulher (NUIAMs), que são espaços especialmente desenvolvidos com o
objetivo de oferecer atendimento multidisciplinar às mulheres em situação de violência,
através de acolhimentos nas áreas de psicologia, direito e serviço social. Para isso, são
realizadas parcerias com instituições e organizações da sociedade civil, como é o caso dos
NUIAMs da Polícia Civil do Distrito Federal.

Imagem 46: NUIAM- Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher – Distrito Federal

Fonte: https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/

O Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher (NUIAM) é uma iniciativa da Polícia


Civil do DF para enfrentamento à violência contra a mulher, em parceria com os Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (TJDFT), com as Promotorias de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher (MPDFT) e Coordenadoria Executiva de Medidas
Alternativas (CEMA/MPDFT), bem como com outras instituições governamentais,
instituições de ensino superior e sociedade civil organizada. Veja mais sobre este NUIAM:
https://www.pcdf.df.gov.br/images/conteudo/gci/nuiam/folderV_final_2_1.pdf
É importante que esses serviços especializados de atendimento às mulheres no
âmbito da segurança pública sejam incorporados às estruturas organizacionais das
instituições às quais se vinculam, como forma de garantia da institucionalidade e
sustentabilidade desses serviços ao longo do tempo, evitando sua descontinuidade.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 153

Patrulhas e Rondas Maria da Penha

As Patrulhas e Rondas Maria da Penha são serviços especializados no atendimento


à mulher em situação de violência doméstica e familiar, realizados pelas Polícias Militares e
Guardas Municipais. E tem como objetivo oferecer acompanhamento preventivo periódico e
garantir maior proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar que
possuem medidas protetivas de urgência vigentes, baseadas na Lei 11.340/2006 (Lei Maria
da Penha).
As Patrulhas buscam a prevenção da violência e a proteção às vítimas, com
metodologias que atuam na análise preditiva de ocorrências e fiscalização de medidas
protetivas de urgência, principalmente as classificadas com alto grau de risco, com o objetivo
de reduzir os índices de violência e evitar a ocorrência de feminicídio.
Em regra, o acesso das mulheres em situação de violência às patrulhas acontece
por encaminhamento do Poder Judiciário, após o deferimento da medida protetiva de
urgência. Há também alguns desses serviços especializados que prestam atendimento,
ainda que a mulher não tenha medida protetiva em vigor, a partir de busca ativa e da análise
de ocorrências policiais. Macaulay (2022) destaca que as práticas operacionais das
Patrulhas Maria da penha variam ligeiramente, a depender das parcerias institucionais:

As práticas operacionais das patrulhas do MdP em diferentes estados e municípios variam


ligeiramente, dependendo da configuração das parcerias institucionais locais. Por exemplo, a avaliação de risco
e triagem de casos prioritários para encaminhamento ao comando de patrulha do MdP pode ser realizada,
diversamente, pela polícia de primeira linha, pelo responsável pelo esquadrão receptor da denúncia, pelo chefe
da esquadra da mulher, pelo Ministério Público, ou pelo tribunal (principalmente se for um Juizado
Especializado em Violência Doméstica e Familiar), seja pelo juiz isoladamente ou em conjunto com sua equipe
profissional multidisciplinar. (MACAULAY, 2022:79)

Ainda não há uma lei federal que regulamente e padronize especificamente esse tipo
de serviço, embora desde 2017 esteja em tramitação o Projeto de Lei Federal nº 7187/17
que visa incluir a Patrulha Maria da Penha entre os programas previstos na Lei Maria da
Penha, tornando-o um programa permanente e presente em todos os estados.
Portanto, as Patrulhas Maria da Penha das Polícias Militares e Guardas Municipais,
em regra, são reguladas por normas internas das instituições gestoras, decretos ou leis
estaduais ou municipais.
Todavia, em sentido mais amplo, esses serviços especializados têm seu amparo
legal no Art. 8º da Lei Maria da Penha, que estabelece que a política pública que visa coibir
a violência doméstica e familiar contra a mulher se dará por meio de um conjunto articulado
de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 154

Principais características e modelo de atuação:

As Patrulhas e Rondas Maria da Penha possuem modelos de atuação, estruturas e


características semelhantes, dentre as quais pode-se destacar:
⚫ Identidade visual específica (viaturas caracterizadas com elementos na cor
lilás);
⚫ Profissionais previamente capacitados para o atendimento às vítimas de
violência de gênero;
⚫ Equipes integradas por policiais/guardas femininas;
⚫ Atuação em cooperação com órgãos do Sistema Justiça para a fiscalização do
cumprimento de Medidas Protetivas de Urgência.

Imagem 47: Braçal utilizado por policiais da Patrulha Maria da PM do Rio de Janeiro.

Fonte: Agência Brasil

Esse modelo de serviço especializado, pautado prioritariamente no


acompanhamento e fiscalização de medidas protetivas, se constitui em um serviço de
prevenção terciária, ou seja, a intervenção do serviço se dá após o fato (unidade de segunda
resposta).

Intervenção de Primeira Resposta: Consiste no atendimento pelo policial


que toma conhecimento do fato de violência doméstica durante o episódio criminal ou
após o relato da vítima.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 155

Intervenção de Segunda Resposta: Consiste no atendimento policial no


pós-crime, normalmente realizado após a análise dos casos mais graves e das
reincidências. Costuma ser feito através de contatos com as vítimas e visitas
domiciliares.

Cabe destacar que as patrulhas também realizam ações de prevenção primária e


secundária, tendo como exemplo de ações de prevenção primária a realização de palestras
e campanhas de conscientização, ao passo que as rondas e patrulhamentos em áreas de
maior incidência de violência doméstica são exemplos de ações de prevenção secundária.

Imagem 48 - Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar do Rio Grande do Sul

Fonte: Governo do Estado do Rio Grande do Sul

Principais atividades das Patrulhas Maria da Penha:

⚫ Fiscalização das medidas protetivas de urgência: As Patrulhas, em geral,


têm como objetivo fiscalizar o cumprimento de medidas protetivas. Tais ações têm como pré-
requisito, para o acompanhamento, a solicitação/deferimento da medida protetiva de
urgência e aceitação do serviço por parte da vítima. Nesses casos, o policiamento
especializado objetiva a fiscalização por meio de visitas, rondas de monitoramento e
acionamentos de aplicativos para situações emergenciais.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 156

⚫ Busca ativa com base no atendimento de ocorrências de violência


doméstica: os programas de apoio à mulher vítima de violência doméstica e familiar podem
realizar a busca ativa com base nos registros de ocorrências com visitas à vítima para
avaliação dos encaminhamentos necessários, podendo existir ou não a solicitação de
medida protetiva de urgência.
⚫ Palestras e campanhas de conscientização: as atividades de palestras e
campanhas de conscientização fazem parte das ações de prevenção primária realizadas
pelas patrulhas e visam levar conhecimento sobre a lei de proteção às mulheres em situação
de violência e as formas de identificar e prevenir a violência contra a mulher. Estas ações
normalmente realizadas em eventos públicos, escolas e empresas se alinham com os
propósitos da Lei 11.340/2006.

Imagem 49 – “Blitz” educativa da Patrulha Maria da Penha da Guarda Municipal de Marabá em parceria com
o Departamento Municipal de Trânsito: Campanha Brasileira de Laço Branco.

Fonte: Prefeitura Municipal de Marabá


Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 157

Você sabe o que é a Campanha do Laço Branco?

Figura 50: Campanha Laço Branco

Fonte: Sindicato Bancários/CE

O movimento Laço Branco, criado em 1991, reuniu um grupo de homens canadenses


que repudiavam a violência contra a mulher. Além do símbolo do Laço Branco, eles também
adotaram como lema jamais cometer um ato violento contra as mulheres e não fechar os
olhos diante dessa violência. A mobilização originou-se a partir do caso do “Massacre de
Montreal”, ocorrido em 6 de dezembro de 1989, quando um homem entrou armado em uma
escola, matando 14 mulheres e ferindo outras dez.
O dia 6 de dezembro foi instituído no Brasil, pela Lei 11.489/2007, como o Dia
Nacional da Mobilização dos Homens pelo Fim da Violência contra as Mulheres e tem como
objetivo sensibilizar os homens para a eliminação das diversas violências que atingem as
mulheres. Principais estratégias das Patrulhas Maria da Penha:
⚫ Acolhimento: refere-se a uma estratégia de apoio à mulher que tem início
desde a primeira escuta quando se tratar de uma suspeita de violência doméstica e familiar.
A vítima deve ser atendida por um(a) profissional preparado para realizar uma escuta atenta,
qualificada, sem comportamentos que intimidem a mulher ou a coloque em situação de
descrédito; sendo importante colher as informações necessárias para que se inicie a
construção do plano de segurança com foco na vítima.
⚫ Visita inicial: a equipe poderá realizar a identificação do local de
residência/abrigamento, trabalho e outros que sejam indicados pela mulher, visando a sua
proteção. É viável que a visita seja previamente agendada com a usuária, evitando situações
de agravamento da violência, caso o agressor ainda esteja residindo com a vítima.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 158

⚫ Rondas de monitoramento: são patrulhamentos realizados rotineiramente,


em locais previamente identificados, visando prestar apoio e transmitir maior segurança à
mulher assistida pelo serviço.
⚫ Intervenção: é pertinente sempre que a mulher assistida ou terceiro solicitar
intervenção policial diante de alguma ameaça à sua segurança, por parte do agressor. A
intervenção também poderá ocorrer sempre que a equipe julgar necessário.
⚫ Visitas de monitoramento: podem ocorrer por meio de visitas não agendadas,
que seguem uma previsibilidade mínima, combinada com a vítima assistida. Nessas visitas,
a equipe realiza contato pessoal, buscando informações sobre o cumprimento da medida
protetiva por parte do agressor e novos fatos que possam ensejar modificações no
acompanhamento.
⚫ Relatórios situacionais: quando há convênio ou termos de cooperação entre
as instituições, geralmente dentre as atribuições das patrulhas estão a elaboração de
relatórios situacionais que servem para manter a comunicação das Patrulhas com o
judiciário, a fim de informar quanto ao andamento da fiscalização das medidas e eventuais
alterações no quadro de violência. Essa informação pode subsidiar a tomada de decisão
quanto às medidas protetivas e gestão do risco associado ao caso.
⚫ Produção de estatísticas: a avaliação e monitoramento das políticas públicas
dependem da produção de dados. Nesse sentido, os registros dos atendimentos realizados
pelas patrulhas permitem a análise do alcance, desempenho e produtividade do serviço,
contribuindo para sua valorização e reconhecimento interno e externo.
⚫ Intervenção junto aos autores de violência: embora não seja regra, algumas
patrulhas possuem eixos de atuação direcionados aos autores de violência. Essas
intervenções podem variar desde contatos com autores para cientificá-los e orientá-los
acerca das medidas protetivas, até a participação de agentes das patrulhas em grupos
reflexivos para autores de violência e a realização de palestras para homens.
Por fim, é importante destacar que há também exemplos de serviços especializados
em que o escopo do atendimento realizado é mais amplo, incluindo os demais grupos
vulneráveis. Sendo que a nomenclatura dada ao serviço pode variar de acordo com a
Unidade da Federação e com o escopo do atendimento, tais como o Programa de Prevenção
Orientado à Violência Doméstica e Familiar - PROVID, Grupo de Apoio às Vítimas de
Violência-GAVV, Programa Mulher Segura, Serviço de Prevenção à Violência Doméstica
(SPVD) dentre outros.
Texto para leitura: Casoteca de Práticas de Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres: experiências desenvolvidas pelos profissionais de segurança pública e do sistema
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 159

de justiça (2018). Sobre as experiências das patrulhas da PM do Maranhão e da GCM de


Suzano. Link para o texto: Casoteca FBSP | 2018

SAIBA MAIS

Assista aos vídeos abaixo e identifique as semelhanças e diferenças entre os


funcionamentos das patrulhas apresentadas.

https://www.youtube.com/watch?v=km2qQY56PnU

https://www.youtube.com/watch?v=689OZ8NldzA

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

⚫ O status de serviço serviços especializados de atendimento à mulher se atribui


àqueles que atendem exclusivamente a mulheres e que possuem expertise no atendimento
à violência contra a mulher;
⚫ As Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher, criadas a partir dos
anos 1980, foram as primeiras iniciativas de atuação policial especializada no atendimento à
violência contra a mulher;
⚫ O artigo 8º, inciso IV, da Lei Maria da Penha, destaca a implementação de
atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de
Atendimento à Mulher;
⚫ As Patrulhas e Rondas Maria da Penha são serviços especializados no
atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar realizados pelas Polícia
Militar e Guarda Municipal.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 160

4.3.3.7 Aula 7: Desafios da atuação quando os autores ou vítimas de


violência contra a mulher são profissionais de segurança pública.

Introdução

Nesta aula trataremos da complexidade, riscos e atuação nos casos de violência


contra a mulher envolvendo profissionais do Susp na condição de autores ou vítimas. Tema
sensível e de difícil abordagem, tendo em vista envolver a capacidade das instituições em
lidarem com a violência doméstica quando esta atinge seu público interno.
Preliminarmente, cabe destacar a importância de que as instituições de segurança
pública conheçam a realidade e os índices de ocorrências de violência doméstica e familiar
envolvendo o público interno de modo a promover uma efetiva construção de diagnóstico e
mobilização, visando à prevenção e ao enfrentamento desse tipo de violência.
A partir do que vimos ao longo deste curso, compreendemos que a violência de
gênero e a violência doméstica e familiar contra a mulher estão presentes na sociedade como
um todo e, portanto, os profissionais de segurança pública não estão livres de figurarem
como autores ou vítimas de tais violências.
E, nesse sentido, a atuação dos profissionais de segurança pública no atendimento
de ocorrências ou na condução de procedimentos em esfera criminal e administrativa de
casos envolvendo público interno nessas condições, demanda, além de isenção e
profissionalismo, a compreensão do grau de risco associado ao contexto.
Embora não existam estatísticas públicas oficiais sobre os crimes cometidos por
profissionais de segurança pública no âmbito familiar, alguns estudos realizados apontam
uma incidência significativa e relevância do problema.
Considera-se a alta incidência de atos relacionados à violência doméstica praticados por profissionais
da segurança pública uma questão relevante e que merece constante problematização. Em pesquisa
desenvolvida por Renata Cardoso (2016), foi realizado um levantamento dos policiais militares do Distrito
Federal que respondiam a procedimentos administrativos por violência praticada contra os parceiros íntimos.
De acordo com a pesquisadora, entre os anos de 2012 e 2014 a categoria “violência doméstica” consistia na
segunda maior demanda da Seção de Procedimentos Administrativos da PMDF. ( SECRETARIA DE
ESTADO DE JUSTIÇA DE CIDADANIA, 2019, p. 5)

Cruz (2023) reconhece que há pouca produção acadêmica sobre violência em


ambiente doméstico envolvendo profissionais de segurança pública, entretanto identifica que
o tema aparece de modo subjacente em estudos sobre polícia, como vitimização policial e
suicídio.

No Brasil, existem poucos estudos sobre as violências cometidas no ambiente doméstico


por profissionais de segurança pública, entretanto, esses temas apareçam de forma tangencial em estudos
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 161

sobre polícia. Dayse Miranda (2016) apontou os conflitos conjugais e histórico de violência doméstica como
fatores de risco presentes nas narrativas de policiais militares que haviam pensado ou tentado suicídio. (CRUZ,
2023.p.10)

Portanto, estamos diante de um fenômeno ainda pouco estudado e carente de


estatísticas públicas oficiais, mas que demanda atenção e cuidado das instituições de
segurança. Especialmente considerando o papel destas no combate e enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra a mulher.

Prevenção e enfrentamento da violência doméstica nas instituições de segurança


pública

Diante da necessidade de conhecimento e dos desafios da atuação dos profissionais


do Susp em ocorrências envolvendo profissionais de segurança pública na condição de
autores ou vítimas de violência doméstica, utilizaremos aqui como referência as Diretrizes
Nacionais para Atendimento Policial Militar às Mulheres em Situação de Violência Doméstica
e Familiar – Âmbito Nacional publicado pela SENASP, que dedica um de seus capítulos ao
atendimento policial em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher profissional
da segurança pública.
Conforme o próprio documento ressalta, mesmo tendo como público-alvo policiais
militares, estas diretrizes podem ser referência para todos os profissionais da segurança
pública que atuam em defesa de mulheres.
Portanto, de acordo com as Diretrizes Nacionais para Atendimento Policial Militar às
Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Ministério da Justiça e Segurança
Pública, 2022) a prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher no âmbito das
instituições de segurança pública podem se dar a partir de quatro pilares:

(1) Prevenção;
(2) Atendimento à mulher em situação de violência;
(3) Iniciativas voltadas para o autor do fato;
(4) Apuração no âmbito disciplinar.

Estes pilares sinalizam as possibilidades de atuação das instituições de segurança


pública tanto de modo preventivo, bem como após o fato, garantido acolhimento às vítimas
e responsabilização dos autores.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 162

Entretanto é importante esclarecer que estas diretrizes são linhas gerais de atuação
e, portanto, as instituições de segurança pública têm suas características e particularidades,
devendo utilizar as diretrizes com base na autonomia institucional, estrutura organizacional
e legalidade.

PREVENÇÃO:

Quanto às ações de prevenção da violência doméstica e familiar envolvendo o


público interno das instituições de segurança pública, dentre outras, podem-se destacar:
⚫ Sensibilizar e capacitar os profissionais sobre os mecanismos de prevenção da
violência doméstica e familiar;
⚫ Realizar abordagens educativas e de conscientização sobre o tema da
violência doméstica e familiar contra a mulher envolvendo profissionais de segurança
pública, na condição de vítimas ou autores;
⚫ Promover a qualificação do público interno para o atendimento de ocorrências
relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher;

ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA:

Em relação ao atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar,


é necessário considerar que esta vítima pode ser uma profissional do Susp, esposa ou ex-
esposa de profissional do Susp ou possuir outro tipo de vínculo familiar e/ou de afeto com
profissional do Susp que configure o fato como violência doméstica.
Cada uma dessas particularidades demanda atenção, ações e encaminhamentos
específicos, entretanto, nem sempre as instituições possuem fluxos e protocolos
previamente estabelecidos, o que tende a dificultar a atuação.
Contudo, é importante que as vítimas se sintam seguras para relatar e registrar os
fatos junto aos órgãos de segurança pública, com a certeza de que haverá a devida aplicação
da lei, afastando a percepção de corporativismo ou negligência na apuração dos fatos e
eventual responsabilização do autor.
Sendo assim, em termos práticos, é importante conhecer, além da legislação
pertinente, as normas e protocolos internos previstos pela instituição para a atuação nos
casos de violência doméstica e familiar envolvendo público interno como autores ou vítimas.
Nesse aspecto, tratando-se do atendimento à mulher em situação de violência
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 163

doméstica e familiar, pertencente ao Sistema Único de Segurança Pública, tem-se como


recomendação geral que a instituição de origem da mulher preste apoio amplo e acompanhe
o caso, principalmente se o agressor também pertencer ao Susp, for portador de arma de
fogo ou tiver lotação no mesmo local de trabalho da vítima.
Em linhas gerais, o atendimento às vítimas de violência doméstica dentro das
instituições de segurança pública deve preconizar objetivos tais como:
⚫ Fornecer dados que possibilitem a elaboração de diagnóstico específico
acerca do índice de vítimas e autores de violência doméstica e familiar dentro de instituições
de segurança pública;
⚫ Disponibilizar às vítimas integrantes de instituições da segurança pública
canais exclusivos de denúncia, devendo ser adotadas as medidas administrativas, bem
como prestadas as orientações a respeito da necessidade de registro de boletim de
ocorrência e da realização de representação perante o Ministério Público, para os crimes de
ação condicionada à representação da vítima;
⚫ Disponibilizar ambiente para acolhimento e atendimento adequado buscando
minimizar a exposição da vítima e evitando que ela passe por diversos setores em busca de
ajuda ou atendimento;
⚫ Oferecer a possibilidade de acompanhamento da Ronda/Patrulha Maria da
Penha, nos locais onde exista, podendo tal apoio ser prestado pelo policiamento responsável
pela área, desde que o efetivo policial esteja qualificado.

Assédio Sexual

Outro aspecto a ser considerado no enfrentamento da violência contra a mulher no


âmbito das instituições de segurança pública são os casos envolvendo assédio sexual.
Embora este seja um tipo penal que não faça distinção de gênero, a maior parte das vítimas
são mulheres.

De acordo com Catharine MacKinnon, o assédio sexual é uma forma de


discriminação sexual, pois a desigualdade entre as atribuições masculinas e femininas
interfere na construção da realidade pelo ponto de vista do dominante, ou seja, pelo
masculino, o que faz com que a maioria dos casos de assédio sexual tenham as opressões
de gênero em seu cerne e, portanto, recaiam sobre mulheres.

Ademais, é importante atentar-se para o fato de que vários tipos de violências de


gênero podem se agravar quando se trata de mulheres que compõem grupos minoritários,
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 164

sendo esta a condição das mulheres nas instituições de segurança pública.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o assédio sexual é assim


definido:

Assédio sexual no ambiente de trabalho é a conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente,


por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe
constrangimento e violando a sua liberdade sexual. O assédio sexual viola a dignidade da pessoa humana e
os direitos fundamentais da vítima, tais como a liberdade, a intimidade, a vida privada, a honra, a igualdade de
tratamento, o valor social do trabalho e o direito ao meio ambiente de trabalho sadio e seguro. De cunho
opressivo e discriminatório constitui violação aos Direitos Humanos.

INICIATIVAS VOLTADAS PARA O AUTOR DO FATO:

Quando um (a) profissional de segurança pública comete violência de gênero e/ou


feminicídio, quais os desdobramentos desse fato na vida dele (a)? Quais os impactos desse
fato na imagem da instituição a qual pertence o (a) agente? Havia sinais ou histórico de
conflitos conjugais e familiares envolvendo o (a) agente? A instituição à qual pertence o (a)
agente tinha ciência dos fatos? Houve providências institucionais tomadas?

Figura 51: Agressor

Fonte: Alesp

Sem prejuízo da avaliação dos aspectos éticos e disciplinares associados a qualquer


conduta delitiva perpetrada por profissionais de segurança pública, especificamente nos
casos envolvendo violência de gênero e intrafamiliar, é fundamental considerar os fatores
psicossociais associados a cada caso concretos, sobretudo, considerando os riscos de
desfechos trágicos como feminicídio (tentado ou consumado) seguido de suicídio ou
tentativa associados às ocorrências do tipo.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 165

Embora não possa servir de justificativa para a violência doméstica, é possível


identificar alguns fatores presentes nos conflitos e que funcionam como gatilhos da violência,
como por exemplo: ciúme, uso abusivo de álcool e/ou drogas ilícitas, problemas de saúde
mental não tratados, não aceitação do término do relacionamento, disputas por bens,
disputas pela guardas e visitação de filhos, dentre outros.
Conforme destacado no início desta aula, não existem estatísticas públicas oficiais
relativas ao envolvimento de profissionais de segurança em casos de violência doméstica e
feminicídios, desse modo, boa parte dos estudos sobre o tema são realizados através de
pesquisas em notícias divulgadas pela mídia. Não traremos aqui casos individuais, mas é
possível encontrar um número significativo de casos em uma busca simples na internet.
A pesquisa de Fernanda Novaes Cruz (2023) realizada a partir de levantamento
jornalístico, analisou 28 casos de mulheres que foram vítimas fatais de seus parceiros
profissionais de segurança pública durante o ano de 2021 no Brasil, demonstrando os
seguintes resultados:
(1) Em metade dos casos analisados após o homicídio o agente cometeu suicídio; (2) a existência de
vínculo afetivo anterior ou atual entre o agressor e a vítima, (3) a utilização de armas de fogo na maior parte
das mortes, e (4) parte considerável dos casos traziam menções à episódios ou comportamentos violentos
prévios.

Nos casos em que o autor (a) de violência doméstica e familiar se trata de profissional
do Susp, as diretrizes nacionais para atendimento policial militar às mulheres em situação
de violência doméstica e familiar sugerem o seguinte:
⚫ Realizar o encaminhamento do profissional denunciado pela violência a
serviços ou grupos de responsabilização e educação e/ou atendimento psicossocial e
psicológico;
⚫ Suspender o porte de arma institucional e demandar a entrega de armas em
posse do autor até que o fato que originou a denúncia seja investigado e que a vítima esteja
em situação de proteção estatal;
⚫ Informar ao profissional do Susp, autor de violência doméstica e familiar contra
a mulher, acerca das medidas legais que serão adotadas;
⚫ Criar grupos reflexivos, a exemplo dos existentes em alguns estados,
estimulando o debate sobre o impacto da violência doméstica e familiar dentro das próprias
instituições de segurança pública;
⚫ Por peculiaridades de algumas instituições de segurança pública, as vítimas
devem ser incentivadas a realizar a denúncia e receber apoio na mudança de local de
trabalho, de forma que ela possa se distanciar do agressor.
Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 166

APURAÇÃO NO ÂMBITO DISCIPLINAR

Já em relação ao âmbito disciplinar, destaca-se que os princípios de ética devem ser


observados pelos integrantes das forças de segurança pública. Desse modo, é recomendado
a instauração de procedimento administrativo para apurar a conduta oportunizando a ampla
defesa e o contraditório.

4.3.3.8 Aula 8 – Boas Práticas: Grupos Reflexivos para profissionais de


segurança autores de violência doméstica e familiar

A Lei nº 13.984/2020 alterou o art. 22 da Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da


Penha, para estabelecer como medidas protetivas de urgência a frequência do agressor a
centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial.

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei,
o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas
protetivas de urgência, entre outras:
[..]
VI - Comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e
VII - Acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo
de apoio.
O aprofundamento da discussão sobre a prevenção da violência doméstica e familiar
contra a mulher perpassa, além das ações voltadas às mulheres em situação de violência,
um olhar em relação ao autor do fato que não se restrinja à perspectiva da punição, sem com
isso isentá-lo da necessária responsabilização pelo crime cometido.
E, nesse contexto, os grupos reflexivos para autores de violência doméstica e familiar
contra a mulher têm sido uma alternativa exitosa.
Beiras et al (2022), sugere a criação de Grupos para populações específicas de
Violência doméstica:

Recomenda-se também a criação de grupos específicos para trabalhadores da segurança pública,


como policiais e agentes carcerários, em conexão com políticas de formação em gênero, masculinidades e
violências contínua e efetiva para esse público. Por um lado, tal população pode se mostrar reticente quanto a
participar junto a criminosos “comuns” de um grupo, bem como em expor sua intimidade diante desses outros
homens.

O relatório do trabalho com grupos de homens autores de violência – (2019),


denominado: “Grupo Reflexivo com Intervenções Terapêuticas”, para agentes de segurança
pública do Distrito Federal demonstrou a efetividade deste tipo de ação, pois, na apuração
de reincidência identificou-se - até o momento de produção do relatório - dois casos
envolvendo participantes do Grupo Refletir, o que reforça a efetividade da ação. No total,
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passaram pelo grupo 83 (oitenta e três) profissionais da segurança pública, sendo 62


(sessenta e dois) Policiais Militares, 15 (quinze) Bombeiros Militares, dois Policiais Civis, três
Policiais Penais e um Agente de Trânsito.
A realização de grupos reflexivos para agentes de segurança pública se alinha, tanto
com a previsão legal, quanto com a perspectiva de prevenção da reincidência e respostas
institucionais para o problema. O Grupo Refletir é uma das estratégias de prevenção
adotadas pela Rede de Serviços do Distrito Federal:

O Grupo Reflexivo com Intervenções Terapêuticas foi iniciado com o objetivo de institucionalizar a
atenção psicossocial e de prevenção à violência doméstica destinada aos profissionais de segurança pública,
por meio de um espaço de escuta, cuidado e autorresponsabilização pelos atos. O grupo propõe uma reflexão
acerca do reconhecimento de crenças legitimadoras e perpetuadoras do uso de violência em relações
domésticas e familiares, levando seus integrantes a despirem-se de valores e crenças que levem a justificativas
e à negação dos comportamentos abusivos, bem como na ampliação da visão de mundo no que tange
violência, gênero, masculinidades e direitos.

LEITURA: Relatório do Trabalho com Grupos de Homens Autores de Violência:


grupo reflexivo com intervenções terapêuticas, para agentes de Segurança Pública do
Distrito Federal – 2019.

https://www.tjdft.jus.br/informacoes/cidadania/nucleo-judiciario-da-
mulher/documentos-e-links/relatorios/relatorios-de-projetos-do-njm/relatorio-do-grupo-
reflexivo-com-intervencoes-terapeuticas-para-agentes-de-seguranca-publica-do-distrito-
federal-2019.pdf

Assista ao vídeo: Quebrando o Silêncio: como os homens se transformam.


https://www.youtube.com/watch?v=gw09QlQE7J4

SAIBA MAIS!

Para finalizar esta aula indicamos assistir ao vídeo:

Documentário "O Silêncio dos Homens" - Trailer:


https://www.youtube.com/watch?v=UzWyx_TcPmQ
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Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 168

Finalizando

Nesta aula você aprendeu que:

⚫ A violência doméstica e familiar e de gênero é um problema presente na


sociedade e nas instituições de segurança pública;
⚫ É importante que as instituições de segurança pública conheçam a realidade e
os índices de ocorrências de violência doméstica e familiar envolvendo o público interno;
⚫ A prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher no âmbito das
instituições de segurança pública podem se dar a partir de quatro pilares: prevenção,
atendimento à mulher em situação de violência, iniciativas voltadas para o autor do fato e
apuração no âmbito disciplinar;
⚫ A realização de grupos reflexivos específicos para agentes de segurança
pública se alinha, tanto com a previsão legal, quanto com a perspectiva de prevenção da
reincidência e respostas institucionais para o problema da violência doméstica envolvendo
profissionais de segurança pública.
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Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 169

REFERÊNCIAS

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http://seer.ufms.br/index.php/RevTH/article/viewFile/444/244

Beira, Adriano, et al. Grupos reflexivos e responsabilizantes para homens autores de


violência contra mulheres no Brasil: mapeamento, análise e recomendações.
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Federal e adota outras providências. Brasília, 2006.

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7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de
1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.

Brasil, Lei n.º 13.948, de 03 de agosto de 2020. Altera o art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de
agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para estabelecer como medidas protetivas de
urgência frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e
acompanhamento psicossocial.

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Segurança Pública e Violência contra Mulheres e Meninas:
Do Enfrentamento ao Protagonismo Feminino na Prevenção e Redução da Violência 172

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