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Presidência da República

Luiz Inácio Lula da Silva

Ministério da Justiça e Segurança Pública


Flávio Dino de Castro e Costa

Secretaria Nacional de Segurança Pública


Francisco Tadeu Barbosa de Alencar

Diretoria de Ensino e Pesquisa


Michele Gonçalves dos Ramos

Coordenação-Geral de Ensino
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Coordenação Pedagógica
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Coordenação de Ensino a Distância


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Gerente de Curso
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Colaboração: Renato Sérgio de Lima

Revisão Técnica
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Danilo Bruno Moreira

Revisão Pedagógica
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Revisão Textual
Julio Cezar Rodrigues

Programação e Edição
Renato Antunes dos Santos
Fábio Nevis dos Santos

Design Instrucional
Wagner Henrique Varela da Silva
Sumário

APRESENTAÇÃO DO CURSO ................................................................................................................... 5

OBJETIVOS DO CURSO .................................................................................................................................. 9


OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...................................................................................................................................... 9
ESTRUTURA DO CURSO ..................................................................................................................................... 10

MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ........................................................................... 11

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 11


OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 11
ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 12

AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO ............................................................................... 13

1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL: AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE


CIDADANIA ..................................................................................................................................................... 14

AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS ....................................................................................... 26

AULA 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


............................................................................................................................................................ 36

FINALIZANDO....................................................................................................................................... 45

MÓDULO 2 – CONCEITO DE POLÍCIA E ORIGENS HISTÓRICAS ............................................................... 47

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO ............................................................................................................................ 47


OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................... 47
ESTRUTURA DO MÓDULO ................................................................................................................................. 47

AULA 1 – O CONCEITO DE POLÍCIA E O SURGIMENTO HISTÓRICO DAS POLÍCIAS MODERNAS .............. 48

AULA 2 – OS DOIS MODELOS BÁSICOS DE POLÍCIA: DEFENDENDO O ESTADO VERSUS DEFENDENDO OS


CIDADÃOS............................................................................................................................................ 60

AULA 3 - A DOUTRINA POLICIAL ENTRE O COMBATE AOS CRIMINOSOS E A PROTEÇÃO DO CIDADÃO . 71

AULA 4 - A DISCRICIONARIEDADE NO TRABALHO POLICIAL ................................................................. 83

AULA 5 – LEGITIMIDADE E TRABALHO POLICIAL .................................................................................. 93

FINALIZANDO..................................................................................................................................... 102

MÓDULO 3 - POLÍCIA E A ESFERA DA POLÍTICA .................................................................................. 105

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 105


OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................. 106
ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 106

AULA 1 - DILEMAS DO GOVERNO POLÍTICO DAS POLÍCIAS ................................................................. 107

AULA 2 – POLÍCIA POLÍTICA E A POLÍTICA DA POLÍCIA ........................................................................ 120

2.1 POLÍCIA E POLÍTICA ....................................................................................................................120

2.2 POLÍCIA POLÍTICA .......................................................................................................................125

2.3 POLÍTICOS DE ESQUINA ................................................................................................................ 129

AULA 3 – POLÍCIA E A RECONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA ..................................................... 133


3.1 CARACTERÍSTICAS DE CONTEXTOS PÓS-CONFLITO ...................................................................... 134

3.2 O CONCEITO DE CORE POLICING DE BAILEY & PERITO ................................................................. 138

3.3 A POLÍCIA E A (RE)CONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA POLÍTICA ........................................................ 142

AULA 4 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO POLICIAL ...................................................... 151

4.1 POLICIAL E TRABALHADOR .......................................................................................................... 152

4.2 CONDIÇÕES DE TRABALHO E DEMOCRACIA ................................................................................. 157

4.3 ASSOCIATIVISMO E SINDICALIZAÇÃO .......................................................................................... 160

FINALIZANDO..................................................................................................................................... 164

MÓDULO 4 - OS DESAFIOS DO ESTADO BRASILEIRO E A SEGURANÇA PÚBLICA: O SISTEMA ÚNICO DE


SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................................................................ 167

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO .......................................................................................................................... 167


OBJETIVOS DO MÓDULO ................................................................................................................................. 168
ESTRUTURA DO MÓDULO ............................................................................................................................... 168

AULA 1 - OS DESAFIOS BRASILEIROS E SUAS REPERCUSSÕES NA OFERTA DE SEGURANÇA PÚBLICA .. 169

AULA 2 - A SEGURANÇA PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................................ 175

AULA 3 – O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA (SUSP) ........................................................... 182

3.1 GOVERNANÇA: MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO ...................................................................... 183

3.2 LEGISLAÇÃO E CONCEPÇÃO DO SUSP ......................................................................................... 185

3.3 A POLÍTICA NACIONAL E OS PLANOS FEDERAL E SUBNACIONAIS DE SEGURANÇA PÚBLICA E


DEFESA SOCIAL .................................................................................................................................. 190

3.4 PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL: OS CONSELHOS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DEFESA SOCIAL


.......................................................................................................................................................... 195

3.5 FINANCIAMENTO DO SUSP: FUNDO NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA E FUNDO


PENITENCIÁRIO NACIONAL ................................................................................................................ 196

3.6 SISTEMAS DO SUSP .................................................................................................................... 198

CONCLUSÃO ................................................................................................................................................. 201

FINALIZANDO..................................................................................................................................... 206

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................................... 207


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 5

APRESENTAÇÃO DO CURSO

Caras alunas e caros alunos,

Sejam bem-vindas e bem-vindos ao curso: “O Estado democrático de


direito e o papel dos profissionais do Sistema Único de Segurança
Pública”. A Segurança Pública tem um papel fundamental na defesa da
Democracia. O exercício pleno da cidadania, compreendida genericamente
como os direitos e deveres da população de um país, não pode ser atingido sem
que as pessoas tenham assegurados o direito à vida, à liberdade, à propriedade
e ao livre exercício de suas atividades econômicas. A possibilidade de viverem
suas vidas livres da ameaça constante da violência é fundamental para a
garantia daquelas condições.

Nesse sentido, entendemos que os/as profissionais do Sistema Único de


Segurança Pública (SUSP) constituem a linha de frente da luta pela defesa da
cidadania e da Democracia no Brasil. Mas como esses profissionais podem
defender a Democracia? A tarefa é desafiadora e pode parecer distante da
realidade cotidiana desses/as agentes. Um dos objetivos do nosso curso é
justamente mostrar como o SUSP pode ser um aliado desses/as profissionais.
Antes de falarmos diretamente sobre as estruturas e o funcionamento do
sistema, introduziremos conceitos e informações relevantes para a
contextualização dessa missão tão importante. Percorreremos eventos
históricos e diversos campos de conhecimento com o intuito de fazer com que
esses/as profissionais possam enxergar oportunidades para a defesa da
democracia e do Estado do Direito em seu dia-a-dia, enquanto trabalhadores,
representantes do Estado e provedores de um serviço essencial à sociedade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 6

Este curso está dividido em quatro módulos:

Primeiro Módulo

Iniciaremos a nossa jornada com a discussão de “poder de polícia” como


associado ao bom funcionamento das cidades e ao resguardo dos cidadãos,
mostrando que a especialização da polícia como “burocracia de combate ao
crime” é um processo histórico associado à consolidação do Estado Liberal
Moderno na Europa (XVIII-XIX). Apresentamos ainda uma reflexão sobre a
legitimidade e a discricionariedade policiais.

Segundo Módulo

Na sequência, falaremos das origens históricas da democracia, do estado


democrático de direito e definiremos alguns conceitos-chave nesse sentido.
Trataremos ainda dos dilemas da defesa da democracia pelos/as profissionais
de segurança em sociedades complexas, em que o conflito é característica
fundamental e positiva de sociedades livres e plurais.

Terceiro Módulo

A partir daí introduzimos uma discussão sobre a relação da polícia com a


esfera da política em que trataremos do difícil equilíbrio entre o controle e a
instrumentalização política das polícias na democracia. Falaremos ainda sobre
condições de trabalho e dilemas da participação política desses/as profissionais
enquanto “trabalhadores da segurança”. Partimos do princípio de que para que
esses profissionais desempenhem um papel na produção de adesão aos
princípios e normas democráticos, é preciso que estes/as vivam a democracia
em seus ambientes de trabalho.

Quarto Módulo

Por fim, encerramos o curso com a apresentação da arquitetura e


funcionamento do Susp e os dilemas enfrentados para a sua implementação
considerando a realidade brasileira, que se caracteriza por um modelo de
cidadania que encarna uma tensão entre princípios formais democráticos e
práticas sociais hierarquizantes.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 7

Este curso tem, dentre seus propósitos, oferecer os instrumentos para que
os profissionais de Segurança Pública atuem ainda mais fortemente para
assegurar a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça previstas já nas primeiras linhas da nossa Constituição
Federal, a Lei Maior. Os caminhos que apresentaremos aqui passam, em
resumo, por refletir sobre o papel da Segurança Pública e seus profissionais na
construção do Estado de Direito. Por meio dos conteúdos que serão trazidos
aqui, almejamos que os/as profissionais do SUSP disponham de um repertório
para sua atuação junto à sociedade e junto aos órgãos e corporações das quais
fazem parte. Nesse esforço, procuramos alcançar os profissionais da ponta da
linha, mas também os gestores e lideranças policiais e dos órgãos ligados ao
Sistema de Segurança Pública.

Ao final, esperamos que esse conteúdo contribua para avanços na


Segurança Pública no Brasil, retratando-se em uma compreensão ampliada do
papel desse serviço público na construção das relações sociais, na tomada de
decisão mais adequada aos limites e potencialidades providas pelo Estado de
Direito e no impulsionamento de um arranjo institucional que atinja níveis
melhores de eficácia e eficiência na Segurança Pública.

Sua participação é fundamental nesse processo pedagógico.

A Segurança Pública exerce um papel fundamental para a nossa


vida em sociedade, sem a qual se fragiliza a noção de cidadania, central
para o Estado Democrático de Direito. Esse cenário exige refletir sobre o
papel dos profissionais de Segurança Pública na construção do Estado de
Direito, com base em discussões sobre a provisão de segurança às
pessoas, o papel da polícia enquanto instituição encarregada da ordem e
da aplicação das leis, as origens do Estado e da democracia e os arranjos
institucionais brasileiros que configuram a segurança como serviço, direito
e bem público. Espera-se que, ao final do conteúdo, o/a instruendo/a amplie
seu repertório para suas atuações junto à sociedade e junto aos órgãos e
corporações das quais fazem parte. Nesse esforço, procuramos alcançar
os profissionais na ponta da linha, mas também os gestores e lideranças
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 8

policiais e dos órgãos ligados ao Sistema de Segurança Pública,


promovendo uma compreensão ampliada do seu papel e da tomada de
decisão em conformidade aos limites e possibilidades do Estado de Direito
no Brasil.

Figura 1: A sociedade brasileira

Fonte: Misael Alberto Cossio Orihuela/ https://jus.com.br/artigos/44467/elementos-


constitutivos-do-estado
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 9

OBJETIVOS DO CURSO

O curso “O Estado democrático de direito e o papel dos profissionais


do Sistema Único de Segurança Pública” tem como objetivo desenvolver uma
compreensão dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da
cidadania, de modo a fortalecer o papel das instituições de segurança pública na
defesa da sociedade e da democracia, a partir da valorização do profissional que
integra o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para a preservação da
integridade dos poderes e o respeito às leis.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

✓ Introduzir conceitos que contribuam para uma melhor compreensão do


papel das organizações de segurança pública na defesa da democracia;
✓ Contextualizar historicamente o surgimento do Estado Democrático de
Direito e o papel das polícias estatais em sua consolidação;
✓ Problematizar a relação daquelas organizações com a esfera política,
introduzindo o dilema entre o controle e a instrumentalização política das
polícias no contexto da democracia contemporânea;
✓ Promover o papel dos/as profissionais de segurança pública como
mediadores da ordem em sociedades complexas, marcadas por conflitos
de interesse e diversidade;
✓ Discutir a importância da promoção de ambientes de trabalho
democráticos e da participação dos profissionais do SUSP como
“trabalhadores da segurança” para a promoção da democracia; e
✓ Apresentar a arquitetura do Susp, sua finalidade, princípios organizativos,
potenciais benefícios e desafios de implementação na sociedade
brasileira.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 10

ESTRUTURA DO CURSO

Este curso possui uma carga horária de 50 horas e compreende os


seguintes módulos:

Módulo 1 - O Estado Democrático de Direito

Módulo 2 - Conceito de Polícia e Origens Históricas

Módulo 3 - Polícia e a Esfera Política

Módulo 4 - Os desafios do Estado brasileiro e a Segurança Pública: o


Sistema Único de Segurança Pública
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 11

MÓDULO 1 – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Para falarmos sobre o Estado Democrático de Direito e o papel dos


profissionais do Sistema de Segurança Pública (Susp) é importante fazermos
uma retrospectiva histórica. A proposta aqui não é dar uma aura de
academicismo ao conteúdo, mas sinalizar o papel que oferece para a
constituição da democracia, que é o melhor instrumento até então criado para
estabelecer uma convivência que se pretenda pacífica e realizadora das
potencialidades humanas, sobretudo em sociedades complexas como as
contemporâneas.

Embora as atuais configurações de Estado não sejam necessariamente


modelagens perfeitas, a constante atuação da sociedade civil, dos funcionários
públicos e da classe política, cuja participação está assegurada pela lei e
permitirá aumentar as potencialidades para que o Estado ofereça as condições
para, como diz no Preâmbulo da nossa Constituição Federal, “assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”.

Assim, reafirmando o propósito de obter uma melhor dimensão dos papéis


dos profissionais da segurança pública, trataremos de alguns autores que dão
sustentação a essa construção política chamada Estado.

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem por objetivos:

Conhecer os fundamentos históricos e filosóficos que orientam a


formação do Estado Democrático de Direito; e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 12

Discutir o papel dos profissionais de Segurança Pública na consolidação


do Estado Democrático de Direito, tendo por base a construção da ordem em
sociedades complexas.

ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 – O surgimento do Estado Moderno;

Aula 2 – Cidadania e Direitos Humanos; e

Aula 3 – O papel da segurança pública na consolidação do Estado


Democrático de Direito.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 13

AULA 1 - O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO

Muito embora a tradição da ciência política remonte o surgimento do


Estado à Grécia da Antiguidade, partiremos dos escritos dos autores da
Modernidade.

Diferentemente da Antiguidade, e da Idade Média que a sucedeu, a


Modernidade vai ocorrer em um ambiente econômico e político muito mais
próximo dos tempos atuais. Isso não apenas cronologicamente, mas, sobretudo,
pelo fato de que foi na Idade Moderna que se formaram as instituições
econômicas e políticas que dão a conformação inicial do nosso cenário, dentre
as quais o Estado Moderno (BOBBIO, 2002).

A principal diferença da sociedade moderna reside no fato de que a


divisão de poderes políticos não mais se dava sobre a tradição ou pelo
nascimento (como a sucessão do governante por seu filho mais velho, ou a
proibição do casamento entre os senhores e seus servos). Agora, a sociedade
se dividia por critérios econômicos e, apesar da desigualdade que ela trouxe (às
vezes até maior que no feudalismo), sinalizou-se que qualquer pessoa poderia
alcançar qualquer posição social. Essa transformação econômica, que se deu
ao longo de séculos, retirou as amarras ideológicas que vinculavam as pessoas
daquele tempo às suas posições de poder por regras imutáveis. Nesse momento
da história, as forças que estruturavam a ordem social, como a religião, perdem
força para um papel cada vez maior do indivíduo (ELIAS, 1990). No fundo, junto
com outras construções filosóficas da Modernidade, introduziu-se a noção de
liberdade.

É pela noção de liberdade que trataremos de dois dos principais autores


que deram as bases filosóficas que originaram o Estado. Falaremos de Hobbes
e Rousseau. Chamados de contratualistas, eles pensaram em resolver a
seguinte equação: como assegurar liberdade aos indivíduos, sem que a
humanidade recaia em modelos políticos em que o governante se transforme em
um tirano? Em outras palavras:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 14

Vamos Refletir!
Qual a melhor forma de assegurar níveis de harmonia e paz na
sociedade?

1.1 O NASCIMENTO DA DEMOCRACIA MODERNA E LIBERAL:


AS REVOLUÇÕES BURGUESAS E A CONSTITUIÇÃO DA
NOÇÃO DE CIDADANIA

Na seção anterior, tratamos brevemente sobre como política e economia


foram os motores para as transformações humanas que levaram à consolidação
do Estado Moderno, instituição que conhecemos hoje simplesmente como
Estado. Neste tópico, vamos apresentar alguns fatos históricos que nos
trouxeram até aqui. Por meio deles, encontraremos alguns instrumentos políticos
que se mantiveram ao longo de todos esses anos e que impactam a nossa
sociedade até os dias atuais. Esperamos que, com isso, possamos, por um lado,
dar uma dimensão do papel dos profissionais de segurança na defesa do Estado
Democrático de Direito e, por outro, frisar que alcançar uma sociedade justa e
pacífica exige esforço diário e cotidiano de todos nós.

Assim, vamos repassar dois acontecimentos fundamentais para se


compreender a formação do Estado, ambos ocorridos na Europa, nos séculos
XVII e XVIII: a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e a Revolução Francesa. De
início, importa dizer que, com eles, surgiram instrumentos tão importantes para
a nossa democracia, como a existência de uma Constituição que regule o
exercício do poder e a própria democracia formal (a que prevê os mecanismos
que franqueiam a alternância de governo), sem a qual a Democracia tende a
desembocar na Tirania.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 15

Os contratualistas Thomas Hobbes e Jeans-Jacques Rousseau

Uma das bases do pensamento político moderno foram os escritos dos


chamados contratualistas. Para eles, na origem do Estado teria ocorrido um
pacto em que os indivíduos decidem por outorgar uma parcela de suas
liberdades para um ente abstrato encarregado de lhes garantir a vida, a
propriedade e a parcela de liberdade que fora conservada. Esse grande acordo
dos indivíduos seria como um contrato (daí o nome “contratualistas”) que os
indivíduos firmassem entre eles mesmos e que receberia o nome de Estado. E,
assim como nos contratos que assinamos durante a nossa vida, estariam
prescritos direitos e deveres mútuos, cujas infrações resultariam em penalidades
de parte a parte.

Apesar de parecer que esse pensamento não é tão inovador, ele


representou uma ruptura no pensamento político até então vigente. Primeiro
porque dizia ao mandatário do governo, em especial às monarquias absolutistas
vigentes, que ele não podia exercer um poder infinito, mas restrito à medida do
pacto estabelecido pela sociedade. Assim, a vida, que não havia sido objeto de
cessão no contrato social, não poderia ser requerida pelo rei em nome do
Estado. Segundo, porque colocava a subordinação do governante aos
instrumentos escritos e legitimados pela sociedade, o que fez emergir uma
pressão nos países para que fossem redigidas leis que estabelecessem os
limites do exercício do poder político. A partir daí, a ideia de uma Constituição
ganhou força, fazendo com que (não sem muita luta), as monarquias absolutistas
se tornassem monarquias constitucionais, e, em alguns casos, repúblicas.

Apesar de passados cerca de quatro séculos, as questões práticas sobre


a observância do contrato ou pacto social são ainda razões que exigem a
atenção coletiva e de cada um dos indivíduos. Isso porque as regras do jogo são
ultrapassadas por governos e pelos indivíduos. Esses atos, classificados como
ilegais, requerem que o Estado atue regulando e punindo as ações individuais
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 16

que se coloquem contra a lei, mas também que a sociedade civil 1 se posicione
em face dos abusos de poder que o Estado pratique.
Thomas Hobbes tem como sua principal obra Leviatã. Para ele, a
sociedade pré-estatal (chamada de estado de natureza) é uma guerra
permanente entre os indivíduos pela ausência de um ente que pudesse regular
a vida social. Em sua concepção,

A natureza faz os homens tão iguais, quanto às faculdades do


corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem
manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do
que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em
conjunto, a diferença entre um e outro homem não é
suficientemente considerável para que qualquer um possa com
base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa
também aspirar, tal como ele (Hobbes, 1988, p. 74 apud Ribeiro,
2006, p. 54).

No estado de natureza, o indivíduo, para manter sua vida e liberdade, não


teria outro caminho senão recorrer à violência física ou viver sob a ameaça de
ser vítima de outros indivíduos ou grupos. Os homens hobbesianos eram tão
iguais, que o mais razoável – seja para evitar um ataque ou simplesmente para
sobrepujar outro homem – seria atacar. Assim, dada a inexistência de um Estado
capaz de controlar e reprimir as violências entre as pessoas, fazer a guerra
contra os outros é a atitude mais “racional” a ser adotada (RIBEIRO, 2006, p.
55).
Dentre outras contribuições para o pensamento político, Hobbes nos
oferta a ideia da criação de um poder soberano – o Estado - que proporcione

1 O Estado também possui deveres de atuar contra a ação de seus integrantes em caso de
ilegalidades. Para um aprofundamento quanto a isso, recomendamos o estudo das análises
sobre check and balances, incialmente tratada em O Federalista (LIMONGI, 2010).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 17

estabilidade às relações sociais e, que, nessa medida, fosse capaz de impedir a


guerra de todos contra todos.
Ao mesmo tempo, Hobbes também se preocupava de que esse Estado
não se tornasse uma tirania capaz de retirar a vida de seus cidadãos. Em sua
concepção, o Estado é limitado, pois ele não pode dispor de todos os direitos
dos indivíduos, já que somente a liberdade lhe foi outorgada, e parcialmente,
pelos cidadãos que firmaram o contrato social. A vida, mesmo no modelo de
Hobbes, permanece indisponível.

Saiba mais
Thomas Hobbes viveu entre 1588 e 1679 e suas ideias
circularam durante a Revolução Gloriosa na Inglaterra. Suas
ideias monarquistas se opunham à República de Cromwell
instalada naquele país, tendo sido exilado na França por suas
ideias.

Acesse: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/thomas-hobbes.htm

A questão sobre os limites da ação do Estado se coloca de maneira ainda


mais intensa nos anos em que Jean-Jacques Rousseau viveu. Passados quase
cem anos entre as vidas de Rousseau e Hobbes, as forças políticas e sociais
europeias se modificaram com a ascensão de uma classe que passara a
reivindicar parcelas maiores de atuação no poder político. Fraturando a
hegemonia da Igreja católica e da monarquia, agora uma classe
economicamente poderosa, a burguesia, exigia novas formas de organização do
Estado. Rousseau se defronta com uma sociedade mais complexa em relação
àquela que existia na transição do período feudal ao mercantil, haja vista o
adensamento da população em ambientes urbanos e a oposição das classes
subalternas aos ditames da monarquia. Ele será o teórico do poder político que
se origina do povo, fonte originária de todo poder.
Rousseau irá catalisar esse pensamento presente nessa época e é
considerado por muitos o pensador da Revolução Francesa (1789), muito
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 18

embora tenha vivido antes desse acontecimento (1712-1778) que derrubou o rei
Luis XVI do trono e provocou o questionamento de todas as monarquias vigentes
na Europa. Seus escritos, representados sobretudo nas suas principais obras,
“O Contrato Social” e “Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens”, tiveram impacto mesmo fora do continente
europeu, como na Independência dos Estados Unidos da América (1776) e na
Inconfidência Mineira do Brasil, nos anos de 1780.

Uma das principais diferenças em relação a Hobbes é que, para


Rousseau, o momento pré-estatal é pacífico e é o Estado tirano quem
usurpa o poder. Assim, ganham relevância as formas com as quais o
Estado alcança a legitimidade para atuar na sociedade. Não importa que o
governo seja uma monarquia, uma aristocracia ou uma república, o povo
deve manter-se como soberano do poder político, perante o qual o governo
se subordina.

Esse pensamento é tão vigoroso que, passados quase 300 anos, inspirou
a Constituição Federal brasileira vigente que diz, no parágrafo único do artigo 1º,
que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL.
CONSTITUIÇÃO (1988). Isso significa que o povo é o corpo a partir do qual
advém a legitimidade que permite ao governo exercer suas atribuições. Por ser
o povo a origem desse poder, é a ele que se voltam as ações realizadas pelos
agentes públicos. Isso não se dá por uma elevação moral, abstrata, dos
integrantes do Governo, ainda que isso seja importantíssimo, mas decorre,
sobretudo, da lei. Aqui, voltamos a Rousseau.

“Sempre se é livre quando se está submetido às leis, mas não quando


se deve obedecer a um homem; porque neste segundo caso devo
obedecer à vontade de outrem, e quando obedeço às leis acato apenas
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 19

a vontade pública, que é tanto minha como de qualquer outro.”


(ROUSSEAU apud BOBBIO, 2002, p. 172).

Neste trecho, podemos encontrar dois temas fundamentais do


pensamento de Rousseau: os termos em que se estrutura o pacto social e como
se constrói a legitimidade que permite a prevalência da lei sobre as vontades dos
indivíduos. Para ele, as pessoas não devem se submeter aos mandamentos de
um governante que não tenha alcançado essa posição senão por força da
vontade popular. Essa vontade popular se materializa, por sua vez, pela sujeição
à lei que, mediante regras estabelecidas também coletivamente, fornece o
conjunto de regras pelas quais tais governantes (sejam os políticos, sejam os
funcionários estatais), vão exercer o poder. A sujeição a esse poder decorre,
portanto, da escolha livre dos indivíduos em ceder parte de sua liberdade para
que o Estado lhes garanta, sobretudo, segurança contra terceiros que atentem
contra bens que não foram alienados, como a vida, a propriedade e a liberdade.
Diferentemente de Hobbes, que estudamos acima, Rousseau depositará
na democracia os fundamentos para que o poder possa ser exercido sobre a
coletividade, desde que nos termos do que será chamado posteriormente de
Estado de Direito.

As Revoluções burguesas

Os pensamentos iluministas presentes no mundo a partir do século XVI


promoveram mudanças significativas no ambiente político. Os governos
autoritários passaram, no decorrer de alguns séculos, a se verem questionados
quanto às formas de exercício do poder, exatamente por seu caráter despótico
e opressor. Diversos países foram atingidos por essas mudanças, mas, nos
casos da Inglaterra e França, foram especialmente marcantes em razão da
importância que possuíam nas relações políticas internacionais daquele período.
Por essa razão, as chamadas Revoluções Inglesa e Francesa são fundamentais
para compreender os processos que trouxeram até nós as noções de:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 20

Democracia

Estado de Direito e

Direitos Humanos.

A Revolução Inglesa

1603-1649

A Revolução Inglesa foi um processo político ocorrido entre os séculos


XVI e XVII que culminou na transição do absolutismo para o parlamentarismo.
Esse período foi marcado por fortes conflitos entre a monarquia, a classe
econômica (burguesia) e a Igreja em razão de reiteradas discordâncias das
decisões do rei nos campos econômico e religioso. Em resumo, foram sobretudo
as decisões da monarquia inglesa quanto ao aumento de impostos e apropriação
de terras que trouxeram desagrado às classes sociais afetadas. A forte oposição
do Parlamento em relação à Coroa veio à tona no período do reinado da Dinastia
Stuart (1603-1649), que teve como um de seus principais nomes o Rei Carlos I,
que, em seu reinado, decretou a obrigatoriedade de empréstimos à Coroa.
Claramente, como já afirmado, a vontade do rei gerou uma forte oposição por
parte do Parlamento. Apesar disso, o monarca aprofundou a tomada de medidas
impopulares.

Tais medidas aprofundaram o descontentamento dos comerciantes


marítimos e dos proprietários de terras. Some-se a isso um forte
descontentamento das classes populares, igualmente afetadas pela política
econômica. Em face da crise interna, em 1642 teve início uma guerra civil que
levou à execução de Carlos I em 1649. Essa guerra teve como um de seus
principais nomes o de Oliver Cromwell que criou o chamado Exército Novo
Modelo que combatia as forças reais. Com Cromwell, tem início um intervalo
republicano na história inglesa.

1660-1668

A Inglaterra se viu dominada por militares após o Rei Carlos I ter sido
derrubado. Essa ditadura inglesa foi marcada fortemente pelo puritanismo
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 21

empregado pelos revolucionários ingleses. O governo de Oliver Cromwell teve


como principal ação os chamados “Atos de Navegação”, que exigia que todos
os produtos importados pela Inglaterra fossem transportados por navios de
bandeira Inglesa o que causou uma insatisfação por parte da Holanda, em uma
clara tentativa de Cromwell de afirmar a hegemonia marítima e comercial
britânica. Todavia, Oliver Cromwell morreu vítima de uma febre e por sua
vontade seu filho, Richard Cromwell, assume. Seu governo não durou muito pois
lhe faltava influência sobre os oficiais do Exército britânico, que tivera importante
papel na guerra civil, e logo saiu do poder. Com isso foi feita a chamada
Restauração (1660-1668) a qual simbolizava a volta da monarquia absolutista à
Inglaterra, cujo principal nome era o Rei Carlos II, filho de Carlos I.
1688
Com a monarquia restaurada e sem muitas revoltas por parte do povo,
Carlos II morre e seu irmão Jaime II sobe ao trono; porém, por contrariar o
Parlamento, é deposto pelo mesmo em 1688, no que ficou conhecido como
Revolução Gloriosa, que leva esse nome pois simbolizou a substituição pacífica
e sem derramamento de sangue de Jaime II pela então coroada rainha Mary e o
Rei holandês Guilherme de Orange.
Os acontecimentos na Inglaterra que culminaram na Revolução Gloriosa
representam um dos primeiros movimentos que buscaram pôr fim à situação
própria do feudalismo. Os privilégios econômicos e políticos da monarquia, que
se assentavam em uma estrutura social fundamentada nos cânones religiosos
imutáveis foram sendo questionados, por força do surgimento de uma classe
comercial (burguesia) que passou a se colocar contra esse estado de coisas e
buscou maior possibilidade de influenciar as decisões do governo. O
despotismo, que marcou a história inglesa por muitos séculos, não tinha mais
espaço.
1689
A monarquia constitucional parlamentarista inglesa, pela qual o monarca
subordina-se às leis elaboradas pelo Parlamento, consolida-se em 1689 com a
Declaração dos Direitos. Antes de serem coroados, Guilherme de Orange e
Maria Stuart, tiveram que jurar obediência a ele, em uma clara inversão dos
tempos anteriores. O tratado estabeleceu o princípio de eleições livres e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 22

liberdade de expressão no Parlamento. Também incluiu que nenhum direito de


tributação ocorresse sem o aval do Parlamento, o direito de os súditos
apresentarem petições ao Rei e tratamento justo das pessoas pelos tribunais.

A Revolução Francesa

Semelhante à Revolução Inglesa, a Revolução Francesa, cujos fatos


mais marcantes se deram no século XVIII, é um evento ímpar para a
compreensão da criação do Estado Moderno, em razão da passagem do
Absolutismo para governos constitucionais.

Devemos lembrar que, nessa época, na França, vigorava o que se


chamaria Antigo Regime, que, além do despotismo monárquico, ainda mantinha
algumas características de uma sociedade feudal, dentre as quais o imobilismo
social e grande desigualdade na distribuição do poder, concentrado na nobreza
e no clero. Segundo Norbert Elias, em Sociedade de Corte2, essa disposição das
forças sociais possibilitava que a França possuísse uma das mais autoritárias
monarquias, que, com o rei Luís XIV (1643-1715) atingiu seu ponto máximo. A
ele é atribuída a frase “O Estado sou eu”, em uma clara simbologia da tamanha
concentração de poderes nas mãos do governante.
Muito embora a sociedade fosse uma monarquia absolutista, as
condições sociais passam, gradualmente, a exercerem uma pressão sobre o rei,
de forma a que suas decisões fossem cada vez mais aderentes aos interesses
de outros grupos, que não a nobreza e o clero.

O rei, “pela graça de Deus”, era a fonte da justiça, da legislação e da


autoridade administrativa, decidindo, ainda, pela guerra e pela paz. Essas

2ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Tradução de Ana Maria Alves. Lisboa: Editorial
Estampa, 1987, 240
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 23

atribuições, contudo, foram escapando, uma a uma, do controle direto da


monarquia, sendo atribuídas, gradativamente, a instâncias intermediárias.
A justiça e a legislação, por exemplo, cada vez mais passaram a ser
exercidas pela Parlamento e pelas Cortes – tudo em nome do rei,
evidentemente. Ainda aqui, a centralização encontrava forte resistência em
setores onde a justiça senhorial sobrevivia.” (Miceli, 1987, p. 51).

Em termos sociais, a França era dividida em três classes sociais bastante


demarcadas, que recebiam o nome de Estados. Essa divisão era também
política, com a definição de espaço na Assembleia Nacional Francesa, como
veremos adiante:

Primeiro Estado

O primeiro Estado era constituído por representantes do clero. Sua


influência se dava tanto do ponto de vista religioso como da cobrança de taxas
sobre o uso de suas terras – que cobriam cerca de 10% do território francês –,
além de taxas sobre batismo, casamento, etc.

Segundo estado

A nobreza constituía o segundo Estado. Além de viver junto ao próprio rei


e desfrutar do consequente fausto que a vida da corte proporcionava, possuía
alguns privilégios de exploração econômica decorrentes de seus títulos.

Os maiores benefícios da nobreza, entretanto, vinham da isenção de


tributos e da prestação de serviços obrigatórios, tais como alojar soldados
e cuidar dos caminhos. Possuíam, ainda, direito de caça e pesca e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 24

detinham o monopólio de acesso aos cargos superiores do exército, da


Igreja e da magistratura.” (Miceli, 1987, p. 55).

Terceiro Estado

O terceiro estado era constituído por todos os demais franceses e


constituíam mais de 96% da população. Comerciantes, banqueiros, profissionais
liberais, lojistas, além de todo o campesinato faziam parte dele. Era um Estado
bastante heterogêneo, mas que, em diferentes níveis, tinham em comum o fato
de participarem muito fragilmente do poder político, apesar de, sobretudo a
burguesia, disporem de forte poder econômico.

Nos últimos anos do século XVIII, já com o reinado de Luís XVI, a França
passava por uma severa crise fiscal. Isso exigiu que Luís XVI propusesse ao
Parlamento francês o fim das isenções econômicas usufruídas pelos primeiro e
segundo Estados. Diante da crise que tais propostas geraram junto a esses
grupos, somado à insatisfação que já existia no terceiro Estado, o Parlamento
exigiu que o rei convocasse a Assembleia Nacional. Nela, cada Estado teria
direito a um voto o que, diante da disparidade na composição em termos das
quantidades populacionais que representavam, indicava uma clara perda para o
terceiro Estado. Não somente o rei Luís XVI foi colocado em xeque, mas a
própria noção de representatividade da Assembleia Nacional, pois, apesar de o
terceiro estado ser a imensa maioria da população, sua participação nas
discussões tinha o mesmo peso que o primeiro e segundo estados.
O terceiro estado então fez uma série de reivindicações, dentre as quais
a de que o voto fosse por pessoa e não mais por ordem, já que compunham a
maioria da população francesa, exigências as quais não tiveram respostas do rei
Luís XVI. Paralelamente ao processo político, ocorre um importante
acontecimento que simbolizou a Revolução Francesa - a Queda da Bastilha
(1789) - movimento de cunho popular caracterizado por derrubar uma prisão a
qual continham presos políticos, um lugar o qual representava uma grande
marca do velho e decadente Regime absolutista francês. Com isso, o rei Luís
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 25

XVI foi ficando cada vez mais fragilizado politicamente. Encurralado e sem
saídas, tomou como medida sancionar as vitórias populares.
Com toda essa crise, o rei decide fugir do palácio a fim de tentar organizar
forças estrangeiras para, de alguma forma, tentar reconquistar seus direitos
reais. Porém, acaba sendo descoberto na fronteira e é trazido para Paris. Luís
XVI então é julgado, considerado um traidor da França e acaba sendo
condenado à guilhotina, encerrado, assim, a monarquia absolutista francesa.
Mais do que uma disputa pelo poder, tão comum na história, a Revolução
Francesa representa o fim dos privilégios de classe, a vitória de uma ideia de
igualdade entre os indivíduos e a definição de que a legitimidade do poder
político advém do povo, por meio de seus representantes legalmente
constituídos, o que, à época, constituíam ideias profundamente reformadoras. A
dimensão de tais acontecimentos foi tamanha que o documento pelo qual os
revolucionários redigiram os seus princípios se tornou a base a partir da qual foi
construída a ideia de que a garantia à vida, à liberdade e à propriedade são
inerentes à condição de ser humano. Essa condição política é vista, a partir de
então, como condição essencial para a existência de um governo legítimo. A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, escrita em 1789, materializa
esse pensamento e é, a partir dela, que os Direitos Humanos vão passar a ser
uma dimensão essencial para a construção do Estado Democrático de Direito.
Tanto a citada Declaração quanto os Direitos Humanos serão mais bem
explorados em aula adiante.

Em resumo, as Revoluções Inglesa e Francesa legaram ao mundo


as lições de que a legitimidade dos governos advém do povo, mediante os
processos democráticos que estabelecem como esse poder deve ser
exercido, colocando término quanto à origem de outras formas de
legitimidade, como a pessoal, tradicional ou religiosa, comum a regimes
absolutistas. A partir de então, a lei é o instrumento que subordina a ação
de governos, a qual, por sua vez, deve derivar de processos que sejam
democráticos a ponto de conferir ampla participação na sua elaboração.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 26

AULA 2 – CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS

As mudanças políticas que o mundo assistiu na era moderna não foram


possíveis sem que uma nova sociedade – em comparação com a feudal –
surgisse. As pessoas, sem as amarras da antiga ordem, passaram a reivindicar
seus espaços de poder, representados pelas Revoluções Inglesa e Francesa
que trouxemos anteriormente. Prevalece, a partir desse momento histórico, a
concepção de que os indivíduos possuem direitos que não poderão ser atacados
pelo Estado, pois, somente a partir desse novo status que receberá o nome de
cidadania, poderá existir democracia e, consequentemente, o exercício do
poder legítimo por parte do governo. Assim, não é exagero afirmar que a noção
de Direitos Humanos surge nesse período que, como vimos, coloca a pessoa
humana como centro dos processos sociais e políticos (e, portanto, não mais a
tradição nobiliárquica nem a religiosa).
Os Direitos Humanos, por sua vez, são garantias de direito que se aplicam
universalmente, independente de especificidades das condições dos indivíduos.
Raça, credo, idioma, nacionalidade, condição econômica, como exemplos, não
são critérios para destituir determinada pessoa de seus atributos legais.
O instrumento político-jurídico que deu os passos iniciais para toda a
construção de direitos humanos se dá exatamente em 1789, no país palco da
Revolução Francesa. A ideia de um “Direito Humano” é filha, portanto, das
mesmas agitações sociais que deram origem aos ideais iluministas de
“indivíduo” e de “igualdade”. O surgimento de um indivíduo universal na França
(o “cidadão”), portador de direitos iguais, independentes de seu status social
(renda, títulos, nome), quando expandido para uma escala mundial, redundou no
surgimento de um direito que se pretende aplicável a toda “humanidade”,
independentemente de qualquer diferença observável entre os “seres humanos”.
A ideia de um Direito Humano, como a conhecemos hoje, surgiu e se
desenvolveu a partir da Revolução Francesa, cujo marco histórico foi a “Tomada
da Bastilha”, em 14 de julho de 1789, quando foi oficialmente derrubada a
monarquia na França. Como a monarquia era considerada, pelos revolucionários
franceses, um regime de governo “corrompido”, que atribuía direitos e distribuía
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 27

propriedades observando o status social das pessoas, foi elaborada uma nova
“constituição” para a recém instaurada “República Francesa”. Esta, além de
proclamar a “igualdade de direitos” como princípio, foi a responsável por cunhar
o termo “cidadão”.
A “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” foi promulgada
naquele mesmo ano “revolucionário” de 1789. Em seu preâmbulo, o legislador
escreveu:

Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia


Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o
desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males
públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar
solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do
homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos
os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus
direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo
e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento
comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam
por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos
cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e
incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e
à felicidade geral.

Como você deve ter notado, já em seu preâmbulo, a Declaração deixa


clara a intenção do legislador, em primeiro lugar, de instituir e proteger os
“direitos do homem” igualmente, colocando a “felicidade geral” e a própria
proteção desse instituto jurídico (a “Constituição”) como objetivos últimos para a
recém fundada República Francesa e seus cidadãos. Para sustentar sua
intenção de aplicar-se a todos e todas igualmente, a ideia nascente de um direito
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 28

universal precisava encontrar uma espécie de “unidade de medida” comum a


toda a humanidade. Essa medida era a ideia de “indivíduo”, surgida do chamado
“século das luzes”, do Iluminismo, movimento que valorizava a razão e a figura
humana, tomada como “medida de todas as coisas”, e teve seu auge entre os
séculos XVIII-XIX. O indivíduo viria a se tornar o “cidadão” da República
Francesa (1789). A diferença é que o cidadão passa a ser sujeito de direitos. E
os direitos são iguais para todos os cidadãos, independentemente da origem e
posição social.

Figura 2: O Homem Vitruviano de Leonardo Da Vinci

Fonte: wikipedia

Todos e todas são cidadãos, porque iguais em suas diferenças. Essa


medida de igualdade, o “indivíduo”, refletia a humanidade como uma experiência
social diversa, em seus modos e aparência, mas unida por uma mesma
“natureza humana”. Sobre esse substrato comum, o legislador francês atrelou os
chamados “direitos naturais”, inalienáveis e sagrados, como vimos acima. Essas
“garantias fundamentais” seriam consideradas essenciais à viabilidade material
e moral da existência humana.
Necessárias à reprodução da vida e das condições de vida do povo
francês, na percepção do legislador da época, os direitos naturais eram “a
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
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liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão” (Declaração,


artigo 2º).
A partir da França “revolucionária” de 1789, a “capital mundial das luzes”,
berço do Iluminismo (séc. XVII-XVIII), estas ideias viajaram o mundo,
atravessando oceanos e influenciando gerações.
Por outro lado, se o Iluminismo representa a inspiração da noção de
direitos humanos, a sua formulação concreta acontece como consequência da
Segunda Guerra Mundial. Nela, foram cometidas inúmeras barbaridades,
especialmente pelo regime nazista, que culminaram numa tentativa de
extermínio de judeus, homossexuais, neurodivergentes, comunistas e outros
indivíduos considerados como inimigos do Estado ou como prejudiciais para o
sucesso da raça ariana.
Em suma, o Estado não era apenas o garantidor dos direitos individuais,
como defendiam os contratualistas que apresentamos nesse mesmo Módulo, ele
era também um potencial violador desses mesmos direitos e possuía um poder
gigantesco para tal, quando decidia enveredar por esse caminho. Portanto, os
indivíduos precisavam de proteção supraestatal, na medida em que ficava
patente que o Estado, e a legislação nacional, não podiam ser os únicos
garantidores da proteção dos direitos individuais. Era preciso gerar um
arcabouço moral e jurídico que reconhecesse os direitos básicos de todas as
pessoas do planeta, independentemente do país onde morassem e da legislação
nacional vigente nesse território. Nenhuma lei nacional poderia anular ou
comprometer esses direitos básicos e inalienáveis. A ideia era gerar uma ordem
internacional pós-Segunda Guerra Mundial baseada nesses princípios, que
deveriam servir para evitar uma repetição das atrocidades cometidas. De alguma
forma, os direitos humanos constituem uma tentativa de plasmar a noção do
direito natural, que é consubstancial ao ser humano pelo simples fato de sê-lo e
que, portanto, não dependem da sua conduta, não precisam ser merecidos nem
ganhos.
O resultado dessa visão foi a “Declaração Universal dos Direitos
Humanos” aprovada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, cujo
preâmbulo reza:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 30

(...) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos


Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e
todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da
sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio
do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e
liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e
internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância
universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-Membros
quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

A Declaração foi aprovada por 48 votos a favor, 8 abstenções (sobretudo


de países socialistas que tinham algumas ressalvas) e nenhum voto contrário.
Os direitos reconhecidos aos indivíduos por essa declaração são os
seguintes:

1 Igualdade em dignidade e direitos (art. 1)


2 Igualdade de direitos sem diferenciação de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento ou condição jurídica do território a que pertença uma
pessoa (art. 2)
3 Direito à vida, liberdade e segurança pessoal (art. 3)
4 Proibição da escravidão ou servidão (art. 4)
5 Proibição da tortura e dos tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes (art. 5)
6 Reconhecimento como pessoa perante a lei (art. 6)
7 Igualdade perante a lei e proteção contra discriminação (art. 7)
8 Remédios efetivos contra violações aos direitos fundamentais (art.
8)
9 Proibição de prisão e banimento arbitrários (art. 9)
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 31

10 Direito a tribunais imparciais (art. 10)


11 Presunção de inocência e proibição de castigos por crimes não
tipificados antes da conduta julgada (art. 11)
12 Proteção contra interferências à vida privada e contra ataques à
honra (art. 12)
13 Liberdade de locomoção dentro do Estado e direito a deixar
qualquer país (art. 13)
14 Direito ao asilo para as vítimas de perseguição (art. 14)
15 Direito à nacionalidade (art. 15)
16 Direito a contrair matrimônio livremente consentido e à proteção da
família (art. 16)
17 Direito à propriedade (art. 17)
18 Liberdade de pensamento, consciência e religião (art. 18)
19 Liberdade de opinião e expressão (art. 19)
20 Liberdade de reunião e associação (art. 20)
21 Direito à participação política expressa em eleições por sufrágio
universal e secreto (art. 21)
22 Direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade
da pessoa e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (art.
22)
23 Direito ao trabalho que assegure uma remuneração digna e à
sindicalização (art. 23)
24 Direito ao repouso e ao lazer (art. 24)
25 Direito a um padrão de vida que garanta bem-estar (art. 25)
26 Direito à educação, que deve ser gratuita no nível fundamental
(art. 26)
27 Direito a participar da vida cultural e proteção do direito autoral (art.
27)
28 Direito a uma ordem social e internacional que respeite os direitos
humanos (art. 28)
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 32

29 Direito a ser sujeito apenas às limitações estabelecidas por lei (art.


29)
30 Proibição de interpretar qualquer parte dessa Declaração como
justificativa para vulnerar direitos aqui reconhecidos (art. 30)

Após a Declaração, os direitos foram expandidos e codificados no Pacto


Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1966. Ambos os pactos já foram ratificados por
mais de 170 países.
Posteriormente, outras convenções mais específicas outorgaram um
conteúdo concreto a vários desses direitos, como a Convenção sobre os Direitos
da Criança (1989) ou a Convenção contra à Tortura e Outros Tratos o Penas
Cruéis, Inumanos ou Degradantes (1984).
No nível do continente americano, e dentro dele no âmbito da
Organização de Estados Americanos (OEA), foi adotada em 1969 a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José.

Saiba mais
Essa convenção, que contempla uma Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e uma Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi
ratificada pelo Brasil em 1992. Em 1998, o Brasil reconheceu a
competência da Corte sobre o seu território, tornando-se desde então
obrigatório o cumprimento das sentenças dela. Cortes continentais
semelhantes existem na Europa (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos)
e na África (Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos).

Os diplomas de direitos humanos (declarações, pactos, convenções, etc.)


contém tanto direitos “negativos” quanto “positivos”. Os primeiros dizem respeito
a ações que o Estado deve se abster de fazer, para poder respeitá-los, tais como
direito à vida ou a proibição da tortura. Se referem aos direitos civis e políticos,
basicamente. Essa abordagem visa colocar limites às ações dos Estados para
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 33

evitar abusos contra os cidadãos, tal como tinha sucedido na Segunda Guerra
Mundial.
Por sua vez, os direitos positivos são relativos a bens, serviços ou
oportunidades que o Estado deve prover para que os indivíduos sob seu cargo
tenham uma vida digna, como o direito à educação ou ao trabalho.
Correspondem sobretudo aos direitos econômicos, sociais e culturais.
Alguns direitos podem ser ao mesmo tempo positivos e negativos, como,
por exemplo, o direito à saúde. Os Estados devem prover serviços de saúde,
mas também devem evitar tomar medidas que comprometam a saúde dos
cidadãos.
Outra forma comum de classificar os direitos é dividi-los em direitos de
primeira, segunda e terceira geração, em função do momento em que foram
propostos e reconhecidos. Os de primeira geração são os direitos civis e
políticos, começando pelo direito à vida, sem os quais os outros não podem ser
realizados. Os de segunda geração são os econômicos, sociais e culturais,
objeto do Pacto Internacional de 1966. Por último, os de terceira geração, os
mais recentes, são direitos coletivos e não mais individuais, como o direito a um
meio ambiente limpo, o direito à paz e o direito à autodeterminação cultural.
De forma geral, os direitos humanos são considerados como direitos
brandos (soft law), isto é, como direitos propositivos e ideais, mas cuja garantia
efetiva depende mais da aceitação dos Estados do que de sentenças jurídicas.
A própria Declaração Universal em seu preâmbulo que acabamos de ver define
os direitos humanos como “um ideal comum a ser atingido”, isto é, como um
dever-ser ou um desideratum. Isto é especialmente verdadeiro para os direitos
positivos, econômicos, sociais e culturais. A despeito do direito individual ao
trabalho, por exemplo, existem pessoas desempregadas em todos os países do
mundo, e o objetivo é tentar que esse percentual seja reduzido ao mínimo
possível.
Mas, mesmo no caso dos direitos negativos de interpretação mais
inequívoca, como os direitos civis e políticos, não existe um aparato coercitivo
para garanti-los, diferentemente dos direitos protegidos na legislação nacional,
que podem ser defendidos por sentenças judiciais nacionais que, se resistidas,
podem ser aplicadas pela polícia. A polícia, como vimos, possui o monopólio da
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 34

violência legítima. Não existem, entretanto, polícias universais nem polícias das
Nações Unidas que garantam a aplicação da lei internacional que, por isso, é
conceituada como uma “lei branda", que depende da aceitação dos Estados.

2.1 A FALSA OPOSIÇÃO ENTRE SEGURANÇA E DIREITOS HUMANOS

Em muitos países, incluindo o Brasil, há setores sociais que percebem os


direitos humanos como beneficiando apenas os criminosos e, portanto,
prejudicando o resto da sociedade. Isso é mais comum ainda entre indivíduos
que compartilham essa percepção dicotômica e maniqueísta que divide a
sociedade em dois grupos rígidos: cidadãos de bem e bandidos (ver Aula 3 do
Módulo I).

Nessa visão, se a lei impõe limites ao que o Estado pode fazer em relação
a um suspeito ou mesmo a um criminoso convicto, isso é percebido como um
empecilho na busca da segurança. Gera-se, assim, um falso antagonismo entre
direitos humanos e segurança, como se essa última só pudesse ser obtida
mediante o sacrifício dos direitos individuais. Na realidade, não há evidências de
que o atropelo dos direitos das pessoas tenha resultado numa sociedade mais
segura e há muitas evidências em sentido contrário: quando o Estado pôde agir
livremente contra seus opositores ou inimigos, sem limites legais, isso provocou
grande insegurança na população.

Quem vê os direitos humanos como inimigos da segurança tende a


perceber os defensores de direitos humanos como traidores à sociedade,
particularmente quando a segurança pública é entendida como uma guerra (ver
Aula 3 do Módulo I). A culpa do fracasso na luta contra o crime é então atribuída
aos “direitos humanos” como conceito ou como grupo de pessoas que os
defendem. Curiosamente, isso acontece mesmo que os direitos humanos em
geral, especialmente no que concerne aos direitos negativos, não fazem senão
reafirmar o que as legislações nacionais já contêm.

A proibição da tortura e da execução sumária, por exemplo, não é


algo inventado pelos pactos de direitos humanos, mas está contida nos
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 35

códigos penais de quase todos os países do mundo. Porém, os detratores


dos direitos humanos focalizam as críticas neles ao invés de atacar a lei
nacional.

Essa concepção é consequência de uma visão deturpada da realidade.


Obviamente, como seu próprio nome indica, os direitos humanos não defendem
apenas os suspeitos ou os criminosos, mas a todos os cidadãos que são sujeitos
desses direitos universais. Os policiais são, como qualquer cidadão, sujeitos de
direitos humanos, tanto como pessoas quanto como trabalhadores, e seus
direitos como cidadãos e trabalhadores também devem ser respeitados.
Por outro lado, o teste principal dos direitos humanos advém justamente
no tratamento que o Estado dá às pessoas mais vulneráveis, como os presos,
ou àqueles suspeitos de cometerem os piores crimes. O tratamento dado a esses
indivíduos é a medida do nível civilizatório de uma sociedade. Só quando
indivíduos eventualmente considerados indesejáveis forem tratados conforme a
lei estipula é que todos teremos a garantia de que nossos direitos serão
respeitados.
A verdadeira discussão não é se os direitos humanos defendem a uns ou
a outros, a divisão se dá entre os que desejam uma atuação do Estado pautada
e limitada pela lei e aqueles outros que promovem uma atuação ilegal e sem
controle por parte dos agentes do Estado, rumando assim de volta à Idade
Média.
Se a polícia tem como missão central a defesa da lei, seria um absurdo
que fizesse isso quebrando a própria lei, pois nesse percurso anularia sua
própria missão.

Os policiais precisam tomar cuidado com os cantos de sereia que


vêm de determinados setores sociais que defendem uma atuação ilegal da
polícia (como aqueles que defendem que “bandido bom é bandido morto”),
pois, para além de razões morais e sociais, serão os policiais os que
eventualmente se sentarão no banco dos réus para responder de possíveis
abusos, e não aqueles que advocaram esses caminhos.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 36

Aula 3 - O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA NA


CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

3.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Nas aulas anteriores, vimos o surgimento histórico do Estado moderno e


da democracia, os dois pilares essenciais do Estado Democrático de Direito.
Na sociedade pré-moderna ou feudal, o poder era exercido por uma
pessoa, o monarca, ou por um grupo, tomando em conta apenas sua visão de
mundo e seus interesses. É o que se chama despotismo. O monarca absoluto
não é obrigado a justificar suas decisões, que não precisam necessariamente
ser coerentes ou sistemáticas. Obviamente, isso é a definição mesma de
arbitrariedade, ou seja, medidas que obedecem exclusivamente ao livre arbítrio
de quem as toma.
Como forma de evitar a arbitrariedade, as sociedades desenvolveram um
conjunto de regras que definem os limites da ação dos titulares do poder e
balizam as ações que estejam ao seu alcance: as leis. O Estado de Direito é
aquele em que a lei se sobrepõe à vontade dos governantes, que estão
subordinados às regras legais definidas coletivamente. Nisso se contrapõe ao
Estado Despótico.
O Estado de Direito pode ser caracterizado por uma série de traços
centrais, entre eles:

1 Igualdade perante a lei. As normas obrigam a todos pois num


Estado de Direito, não há ninguém acima da lei. Ela não pode ser
aplicada de forma seletiva ou pessoalizada, a favor ou contra
determinado indivíduo.
2 Transparência e previsibilidade. As normas devem ser públicas
para que todos as conheçam e possam cumpri-las e ninguém pode
ser sancionado senão pelo descumprimento de uma lei
previamente existente. Isso confere previsibilidade ao governo e à
vida em geral, que constitui um dos componentes essenciais da
vida em sociedade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 37

3 Devido processo. A tomada de decisões por parte de qualquer um


dos poderes (executivo, legislativo ou judicial) deve seguir
determinados procedimentos previamente estabelecidos para
serem legais e legítimas.
4 Prestação de contas. Os tomadores de decisão, em qualquer um
dos poderes, precisam justificar publicamente suas decisões para
que elas possam ser submetidas a escrutínio e para que eles
possam ser responsabilizados por suas decisões (accountability)
(ver Aula 1 do Módulo III).
5 Segurança jurídica. As leis devem ser aplicadas de forma
isonômica a todas as situações que apresentem as mesmas
características, e as decisões tomadas de acordo com a lei não
podem ser mudadas pela iniciativa individual de nenhum ator. A
segurança jurídica é outro fator de extrema relevância para conferir
previsibilidade à vida social.
6 Separação e independência de poderes, que não podem estar
concentrados numa única pessoa ou instância. Tradicionalmente,
as funções de elaboração de leis (legislativa), de condução do
Estado (executiva) e de aplicação das leis (judiciais) são atribuídas
a órgãos diferentes e independentes entre si, para evitar a
acumulação de poder nas mãos de algumas pessoas.
7 Acesso à justiça. Todas as pessoas, independentemente da sua
condição, devem poder apresentar suas solicitações e
reclamações a um sistema de justiça que seja imparcial.
Paralelamente, todos os indivíduos devem ter a possibilidade de
representação legal.

O Estado de Direito se corresponde exatamente com a noção de


legitimidade legal-racional de Max Weber que vimos no Módulo I (Aula 5), que
estava baseada num conjunto de normas escritas e racionais.
A diferença entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito é
que, nesse último caso, as leis são necessariamente aprovadas com a
participação de toda a coletividade e integrando todos os setores sociais, isto é,
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 38

são geradas de forma democrática. Com isso, a lei e o exercício do poder tendem
a atingir uma legitimidade maior e, dessa forma, aumenta a obediência a essas
leis que foram desenvolvidas de forma coletiva. Se os contratualistas falavam de
um contrato implícito para a criação do Estado, nesse caso trata-se de um
contrato explícito em que as pessoas participam na gestação das normas a que
estarão sujeitas.

Na prática
Os dois termos (Estado de Direito e Estado Democrático de
Direito) são usados muitas vezes de forma quase indistinta, mas o
último sublinha o caráter democrático do Estado e a legitimidade
subsequente.

Vamos Refletir!
Mas, afinal, por que é de fato importante que todos esses conceitos
sejam levados a efeito pelos profissionais do Susp, diante de problemas de
tamanha ordem e gravidade como são aqueles com os que têm de lidar
constantemente?

É justamente porque as trajetórias das nações que melhor responderam


a esse desafio se inspiraram nas ideias de justiça, democracia, respeito às leis
e aos direitos humanos, pensadas em seu alcance universal e irrestrito.

Muito provavelmente, quando perguntamos quais as sociedades que


melhor conseguiram resolver seus problemas ligados à violência, somos levados
a pensar em países com baixos índices de crimes, tais como Japão, Noruega,
Suécia. As explicações para isso são inúmeras; contudo, ainda que possa
parecer que estes países sempre possuíram ótimos níveis de convivência e que
tal estado de coisas é resultado que alguma característica inata às suas
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 39

populações, um olhar mais atento às suas histórias nos provará que foram
processos políticos que possibilitaram bons níveis de convivência social. Para
discutir uma dessas possibilidades, vamos trazer uma análise realizada pela
OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Você sabia?
A OCDE é uma organização internacional composta por 38 países-
membros, que reúne as economias mais avançadas do mundo, além de
alguns países chamados “emergentes”. O ingresso de um país junto a
essa organização significa uma espécie de credenciamento que sinaliza
que as práticas adotadas e o ambiente político estão conseguindo
enfrentar os desafios sociais, econômicos e ambientais de forma
satisfatória.

Saiba mais
Fazem parte da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá,
Chile, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Eslováquia,
Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, Estônia, Finlândia, França, Grécia,
Holanda, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letônia, Lituânia,
Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Suécia,
Suíça, Reino Unido, República Tcheca, Turquia. Os primeiros passos para o
ingresso do Brasil junto à OCDE ocorreram em janeiro de 2022, juntamente
com Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Romênia.

Acesse: https://www.oecd.org/about/

Um dos quesitos avaliados pela OCDE para o credenciamento de países


é o rule of law ou Estado de Direito, que eles definem como a capacidade de o
país-candidato oferecer as mesmas regras, procedimentos e princípios para
indivíduos e organizações, incluindo o próprio governo, garantindo um
tratamento justo pelas instituições e igual acesso à justiça (OECD, 2019). Assim,
segundo a OCDE, rule of law é um conceito multidimensional composto por
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 40

diversos elementos como os direitos fundamentais, ordem e segurança,


capacidade de aplicar a lei (regulatory enforcement) e justiça civil, além de um
governo aberto (OECD, 2019). O desdobramento de cada um desses
componentes diz muito sobre quais são as variáveis de importância para verificar
se um país promove o Estado de Direito em seu território. A seguir,
apresentamos um resumo (WORLD JUSTICE PROJECT, 2022):

1 Tratamento igualitário e ausente de discriminação;

2 Existência do devido processo legal e direitos aos acusados em


delitos e infrações administrativas;

3 Garantia efetiva à vida e à segurança, à liberdade de expressão e


opinião, à liberdade de crença e religião, à liberdade de associação,
ao direito ao trabalho e contra a interferência indevida à
privacidade;

4 Controle efetivo do crime;

5 Controle efetivo dos conflitos civis;

6 Interdição à vingança privada para a resolução dos conflitos;

7 Efetividade das regulações governamentais, tais como leis e


normas infralegais; e

8 Acesso à justiça, sem discriminação.

Pode-se observar no mapa a seguir que os países possuem diferentes


níveis de efetivação do Estado de Direito. Grosso modo, aqueles que foram
avaliados com melhores níveis são exatamente os que registram menores níveis
de violência.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 41

Figura 3: Estado de Direito pelo mundo

Fonte: WJP Rule of Law Index, 2022.

* As cores mais avermelhadas indicam menores níveis de aderência ao Estado de Direito


enquanto as cores voltadas ao verde mostram maiores níveis de aderência.

Esse estudo nos traz duas conclusões importantes:


Primeira conclusão:

Decorridos cerca de 400 anos desde os escritos e eventos que inspiraram


o Estado Democrático de Direito, seus fundamentos são bastante atuais. Os
avanços resultantes desse processo histórico fundamentam as análises
promovidas nos dias atuais, na medida em que o Estado Democrático de Direito
é considerado um requisito para atingir fins que vão muito além da questão da
imposição da lei e da participação no poder, pois é por meio dele que se
promovem avanços econômicos, sociais e ambientais.

Segunda conclusão:

Direitos humanos, democracia, segurança, cidadania e capacidade de o


Estado regular os conflitos humanos são os caminhos mais bem sedimentados
para ofertar melhores níveis de convivência social. Ainda que existam outros
fatores que expliquem os motivos pelos quais determinados países possuem
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 42

menores níveis de violência, há fortes razões para se defender que são


exatamente os elementos oferecidos pelo Estado Democrático de Direito
aqueles que conduzem a maiores ganhos nesse campo.

3.2. O PAPEL DA SEGURANÇA PÚBLICA PARA O ESTADO


DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Todos os direitos elencados na Declaração Universal de Direitos


Humanos, que vimos na aula anterior, só podem ser usufruídos se o cidadão
está e se sente em segurança. Quem teme pela própria vida, pela integridade
pessoal ou inclusive pela sua propriedade dificilmente poderá exercer outros
direitos. Paralelamente, a prevalência da ordem pública é também um
componente importante para a possibilidade de usufruir os direitos básicos e
para a previsibilidade das relações sociais. Num cenário caótico e desordenado,
será difícil gozar dos direitos que a lei confere ao cidadão.

O conceito de “segurança humana”, proposto pelo PNUD (1994) em


contraposição à segurança nacional, pode ser concebido, na sua
formulação mais sintética, como a libertação dos indivíduos do medo
e da necessidade. Nesse sentido, une tanto a satisfação dos direitos
econômicos, sociais e culturais (a necessidade) com a proteção
contra ameaças à integridade pessoal (o medo). Mas, no fundo, os
dois aspectos estão intimamente relacionados na medida em que,
como argumentamos, o medo pode acabar anulando a possibilidade
de satisfazer outros direitos.

Considerando que é obrigação do Estado garantir a segurança da


população, a segurança torna-se necessariamente pública. Em consequência, o
Estado é o sujeito central que deve garantir a segurança, embora várias
legislações, incluindo a Constituição Brasileira de 1988, reforcem o papel dos
próprios cidadãos no processo.
A segurança tem componentes por um lado objetivos e por outro lado
intangíveis e subjetivos. Assim, oferecer segurança implica não apenas reduzir
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 43

os riscos e as ameaças que as pessoas apresentam de serem vítimas de crimes


ou violência, mas também conseguir que elas percebam esses riscos como
baixos, se sentindo efetivamente seguras.
Em tudo isso, o papel das instituições de segurança pública é
fundamental, pois são elas, através da sua função preventiva e repressiva, as
encarregadas de prover segurança às pessoas e, dessa forma, possibilitar que
elas usufruam o conjunto dos seus direitos. Nesse sentido, as instituições de
segurança são garantidoras do Estado Democrático de Direito.

Na prática
Especificamente, elas também garantem o próprio exercício da
democracia representativa, possibilitando que as eleições sejam livres.
Por exemplo, perseguindo os crimes eleitorais, que tentam impedir,
condicionar ou comprar o voto. E, em ocasiões, impedindo a atuação
daqueles que querem derrubar o governo democraticamente eleito por
meio da força. De fato, uma democracia sem instituições de segurança
pública ficaria extremamente vulnerável à ação de extremistas que
quisessem acabar com ela.

Mas para além desses casos mais dramáticos, as instituições de


segurança pública cumprem uma função mais ampla de legitimação do sistema
político e da democracia. Pois um clima de insegurança e uma alta incidência de
crimes tendem a corroer a confiança dos cidadãos e questionam a própria
legitimidade de um Estado que não é capaz de lhes oferecer segurança. Nesse
cenário, é mais provável que surjam tendências antidemocráticas e formas
violentas de exercício do poder ou de abordagem dos conflitos. Os linchamentos
de pessoas suspeitas de cometerem crimes, por exemplo, estão associados ao
medo e à raiva na população, que não sente que o Estado funcione corretamente
para protegê-las e que, em consequência, e opta por medidas ilegais e brutais,
com o risco de vitimar inocentes e de incrementar, ainda mais, a própria
sensação de insegurança.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 44

Assim, instituições de segurança pública que consigam prover segurança


aos cidadãos com eficácia são também promotoras do Estado Democrático de
Direito e da própria democracia.
Entretanto, o fortalecimento do Estado de Direito não depende só do
fornecimento de segurança, mas também da forma como esse serviço é
oferecido. Assim, se as instituições de segurança desempenham suas funções
conforme a lei, e tratando a todos os cidadãos de maneira justa, imparcial e
equitativa, elas estarão ao mesmo tempo promovendo o Estado Democrático de
Direito.
Adicionalmente, se essas instituições funcionam com transparência e
prestando contas das suas atuações à sociedade, abrindo-se ao escrutínio da
cidadania ao invés de operar com sigilo e opacidade, elas também estarão
fortalecendo o Estado Democrático de Direito. Em suma, espera-se delas que
funcionem com as mesmas características que são exigíveis a esse Estado:
igualdade, transparência, previsibilidade, devido processo e prestação de contas
à sociedade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 45

Finalizando....

Neste módulo você aprendeu:

✓ Os fundamentos históricos e filosóficos que orientam a formação do


Estado Democrático de Direito e os sucessos conseguidos na
consolidação deste novo dispositivo, que configurou a mais bem acabada
forma de exercício do poder político nas sociedades contemporâneas.
Assim, abordamos os teóricos contratualistas, as Revoluções Burguesas
e suas principais derivações conceituais: o Estado de Direito, a cidadania,
a democracia e os Direitos Humanos.
✓ Os direitos humanos, inspirados no Iluminismo, aparecem como uma
formulação explícita em meados do século XX como resultado das
barbaridades cometidas pelos Estados contra seus próprios cidadãos
durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo a tentativa de genocídio.
Em consequência, eles sublinham a importância de estabelecer limites à
atuação do Estado, limites definidos pelos direitos inalienáveis que todos
os indivíduos possuem pelo fato de serem pessoas e, portanto, sujeitos
de direitos.
✓ Embora algumas pessoas percebam os direitos humanos como
defensores de criminosos e antagônicos em relação à segurança pública,
o texto tenta desmontar essa falsa oposição mostrando que a
universalidade dos direitos humanos diz respeito a todos, inclusive aos
policiais, cujos direitos também devem ser protegidos de violações. De
fato, os países que apostaram por um modelo político baseado na
democracia e os direitos humanos são hoje os países com menores níveis
de violência no mundo.
✓ Na última aula, definimos o Estado Democrático de Direito e suas
características centrais, tais como igualdade perante a lei, transparência,
devido processo, prestação de contas, segurança jurídica, separação de
poderes e acesso à justiça. De forma geral, o Estado Democrático de
Direito é uma tentativa de conjugar a capacidade de o Estado promover
níveis aceitáveis de convivência social aliada ao estabelecimento de
limites ao seu poder. Esses limites devem assegurar aos indivíduos a
liberdade que lhes é inerente e sem a qual o poder passa a ser opressor.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 46

✓ Por último, analisamos o papel da segurança pública e dos agentes de


segurança pública na consolidação do Estado Democrático de Direito.
Esse papel é central na medida em que sem segurança é impossível o
exercício do resto dos direitos. São os policiais os que garantem também
eleições livres, perseguindo os crimes eleitorais e evitando que
extremistas possam tentar derrubar os governos eleitos
democraticamente através da violência. Além disso, de forma mais ampla,
a provisão de segurança e ordem pública tende a fortalecer a confiança
dos cidadãos no sistema político e melhora a legitimidade do Estado.
✓ Em resumo, este módulo procurou mostrar que segurança pública,
direitos humanos e aplicação da lei não são expressões que se
contrapõem. É exatamente o oposto. Esses termos conjugam-se para
enfrentar os mesmos problemas. Promovê-los é, em grande medida,
papel do Estado e de seus agentes, incluindo, inquestionavelmente, os
profissionais do Susp.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 47

MÓDULO 2 – CONCEITO DE POLÍCIA E ORIGENS HISTÓRICAS

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Este módulo buscará discutir o papel da polícia na constituição do Estado


Democrático de Direito, começando pelas origens e o processo de formação das
polícias modernas, e continuando pelos dilemas mais importantes que enfrenta
uma organização policial contemporânea. Um dos conceitos que será abordado
em maior profundidade é o de legitimidade, tanto do ponto de vista geral quanto
na forma em que a legitimidade afeta às organizações policiais.

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem por objetivos:

● Aprofundar as origens históricas da polícia;


● Compreender o papel da polícia e os sentidos do trabalho policial
no mundo contemporâneo, em especial no diálogo entre proteção
e limitação de direitos; e

● Refletir sobre a importância da legitimidade para que a polícia


possa desenvolver suas funções.


ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 – O conceito de polícia e o surgimento histórico das polícias


modernas;

Aula 2 – Os dois modelos básicos de polícia: defendendo o Estado versus


defendendo os cidadãos;

Aula 3 – A doutrina policial entre o combate aos criminosos e a proteção


do cidadão

Aula 4 – A discricionariedade no trabalho policial; e

Aula 5 – Legitimidade e trabalho policial.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 48

AULA 1 – O CONCEITO DE POLÍCIA E O SURGIMENTO


HISTÓRICO DAS POLÍCIAS MODERNAS

1.1 ORIGENS DA POLÍCIA

Etimologicamente, a palavra “polícia”, que existe com pequenas variações


em todas as principais línguas europeias, deriva do termo grego “polis”, que se
traduz como cidade ou forma de governar a cidade, mas também do termo latino
“politia”, que identifica um regime político e administrativo (Mulone, 2019). Assim,
polícia tem a ver com cidade e com governança (ver Aula 3 do Módulo IV) ou,
vinculando os dois termos, com a governança da cidade. De fato, a criação das
polícias está fortemente associada às cidades e, particularmente, às grandes
cidades onde ela se originou.
No seu texto Omnes et Singulatim, Michel Foucault (Foucault, 1981: 243–
254) descreve o trabalho de Turget de Mayenne, quem em 1611 apresentou o
seu programa de polícia aos parlamentares holandeses. Para Turquet o
significado de polícia era “governo”, de uma forma muito abrangente.
O primeiro tratado sobre polícia foi escrito por Nicolas de La Mare, um
comissário real que vivia em Paris, entre 1722 e 1729. Nesse texto, “polícia”
significava ordem ou, nas palavras do autor, uma “linda ordem”. Segundo ele, a
ideia de ordem urbana possuía onze dimensões:
1 Religião;

2 Moralidade;

3 Saúde pública;

4 Suprimento de alimentos;

5 Estradas públicas;

6 Pontes e prédios públicos;

7 Segurança para as pessoas;

8 Ciências e artes;

9 Comércio, Indústrias e artes mecânicas;

10 Serventes e trabalhadores; e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 49

11 Os pobres.

O filósofo ilustrado alemão, Christian Wolff, desenvolveu nesse mesmo


período uma “ciência da polícia” (Policeywissenschaft), que era consistia na
administração governamental e que serviu de base para a conformação de um
precedente do estado de bem-estar na Prússia. As primeiras cátedras dessa
nova ciência foram criadas em 1727 pelo rei da Prússia.

Em seu texto clássico de 1748, “O Espírito das Leis”, Montesquieu (2000)


usa o conceito de “polícia”, entendido como um conjunto de regulações menos
estritas e sobre assuntos menos graves do que aqueles que estão regidos pela
lei:

“Há criminosos que o magistrado pune; há outros a quem ele corrige;


os primeiros estão sujeitos ao poder da lei, os últimos à sua autoridade; os
primeiros são retirados da sociedade, obriga-se aos últimos a viver de
acordo com as regras da sociedade.

No exercício da polícia, é o magistrado quem pune, antes do que a


lei; nos julgamentos dos crimes, é a lei que pune antes que o magistrado.
Assuntos de polícia são coisas de todos os instantes, que geralmente
equivalem a pouco; quase nenhuma formalidade é necessária.”
(Montesquieu, 2000: 5.26.24.)

Lenoir, que foi nomeado Tenente-Geral da polícia (Lieutenant général de


police) de Paris em 1774, define polícia como “a ciência de governar os homens
e de fazer bem a eles” (1779:34). Por sua vez, Boucher d’Argis, na Enciclopédia
(Encyclopédie) de Diderot e d’Alembert, define polícia como “a arte de prover
uma vida confortável e tranquila” aos indivíduos (Boucher d’Argis, 1765). Dessa
forma, o termo foi ficando estabelecido e foi estendido a outros países. No
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 50

Dicionário da Língua Inglesa (Dictionary of the English Language), de Samuel


Johnson, aparece o termo “polícia” como importado do francês com o seguinte
significado: “a regulação e governo de uma cidade ou país, no que diz respeito
aos habitantes” (volume 2 da edição de 1806).

Observe-se que, até esse momento, o termo “polícia” equivale a um


conjunto de regulações e à governança, e não é aplicado às pessoas
encarregadas dessa missão. Isto é, o termo designava a função, mas não o
órgão nem os agentes que devem desenvolvê-la. Por outro lado, a ideia de
polícia se aplicava a tudo o que estivesse relacionado com o governo e o bem-
estar da cidade e, portanto, abrangia além da manutenção da ordem ou da
preservação da lei, tal como as entendemos nos tempos modernos.

Diversos autores argumentaram que o controle social tradicional que


vigorava nas sociedades tradicionais e no mundo rural desapareceu na medida
em que as pessoas passaram a viver em cidades de maior tamanho. Nas
pequenas comunidades rurais, todos se conhecem e qualquer conduta contrária
à norma grupal pode ser castigada de uma maneira informal, mas que pode ser
ao mesmo tempo muito dura, como, por exemplo, por meio do isolamento social
dos transgressores ou do ‘ostracismo’ romano, isto é, da expulsão da
comunidade. Essa possibilidade não existe mais na grande cidade, onde o
anonimato é rei e na qual um transgressor num canto da cidade pode fugir ao
outro extremo do local sem ser reconhecido. Assim, alguns autores argumentam
que a polícia foi criada a partir da necessidade social de manter a paz entre
desconhecidos, isto é, entre os habitantes da cidade.

Na Roma clássica, foi criada a figura do Aedil no ano 497 a.C. O Aedil se
encarregava da ordem e da segurança, além de muitas outras funções, entre
elas a manutenção de aquedutos, banhos, prédios, esgotos, além do controle da
moral pública, das apostas, da usura, dos animais perigosos, dos esportes, dos
funerais e dos mercados, garantindo que os preços nesses últimos fossem
razoáveis.

No mundo pré-moderno, as pessoas encarregadas de manter a ordem e


defender a lei nas cidades não costumavam ser funcionários, mas cidadãos
comuns. No século XIII, na Inglaterra, o Estatuto de Winchester criou a figura do
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 51

“vigilante noturno” (night watchman), um habitante da cidade designado para


desempenhar esse papel como um dever cívico, sem receber remuneração
alguma (Rawlings, 2003). Com o tempo, alguns dos designados preferiram pagar
a outros para exercer a função, de tal forma que o vigilante acabou se
transformando numa profissão.

Na Idade Média, diversas cidades criaram a figura do ‘constable’, um


cidadão que preenchia o cargo de forma honorária durante um ano e cujas
funções incluíam, além da manutenção da ordem e da aplicação da lei, a
organização do recrutamento militar, a coleta de impostos, a regulação das
moradias e o controle da vadiagem, entre outras diversas tarefas que atualmente
são responsabilidade da administração municipal. Em suma, as funções
atribuídas aos cargos equiparáveis aos de um policial dos nossos dias eram
muito mais amplas do que as desses últimos e abrangiam diversas tarefas que
hoje em dia são responsabilidade da administração municipal.

Historicamente, a aplicação da lei, incluindo a investigação dos crimes,


pertencia à esfera privada, não à pública, e dependia da vontade das
vítimas e dos recursos que elas pudessem angariar. Tanto em Atenas
quanto em Roma, a vítima e seus familiares deviam investigar a autoria
do crime sofrido e encontrar o culpado (Emsley, 2021). Em Londres, na
segunda metade do século XVII, os caçadores-de-ladrões (thief-takers)
eram pagos pelas vítimas para recuperar os bens roubados e para
capturar e conseguir a condenação dos criminosos.

Em suma, as funções atribuídas aos cargos equiparáveis aos de um


policial dos nossos dias eram muito mais amplas do que as desses últimos como
são previstas atualmente e, além de abranger atividades que hoje não são de
competência das polícias, não eram nem mesmo todas consideradas da esfera
pública governamental.

Desse modo, o surgimento das polícias modernas está vinculado a três


processos que foram acontecendo paralelamente ao longo do tempo:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 52

1º Processo:

A progressiva aceitação pelo poder executivo da obrigação de prover


segurança aos cidadãos e garantir a aplicação das leis, incorporando essas
funções na esfera pública. Esse processo está intimamente ligado com a criação
e o fortalecimento do Estado moderno (ver Módulo II, Aula I). Apesar da
existência simultânea da segurança privada, o Estado foi desenvolvendo uma
progressiva monopolização, e centralização, das organizações policiais. Até o
ponto de que possuir uma polícia passou a ser considerada uma das
características centrais do Estado moderno e um símbolo de progresso.

2º Processo:

A profissionalização crescente dos encarregados da lei e da ordem, que


deixaram de ser cidadãos comuns e passaram a ser funcionários públicos pagos
pelo seu trabalho. Eles começaram a ser treinados especificamente para essa
função e tiveram acesso a carreiras policiais dentro de instituições criadas ao
efeito.

3º Processo:

A especialização progressiva das funções atribuídas aos encarregados de


prover segurança. Essa especialização se deu em relação a várias dimensões,
entre elas:

1) a polícia foi ficando restrita à manutenção da ordem e a aplicação


das leis, enquanto outras tarefas, que tinham mais a ver com o funcionamento
efetivo da cidade, foram transferidas a outras instituições com mandatos
diferenciados.

2) o papel da polícia foi se concentrando na função executiva, e


deixando de lado a legislativa e a judicial. Em alguns momentos da história, o
conceito de polícia abrangia a capacidade de ditar normas e de decidir e aplicar
castigos, isto é, contemplava funções legislativas e judiciais, embora de forma
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 53

limitada. Com o tempo, a polícia foi ficando restrita ao poder executivo, perdendo,
em tese, qualquer capacidade legislativa ou judicial. Isto significa que as polícias
modernas carecem, em princípio, de qualquer função punitiva, a despeito da
pressão significativa que com frequência enfrentam por parte da sociedade e dos
governos para que apliquem punições. Contudo, numa sociedade moderna a
decisão sobre punições cabe exclusivamente ao poder judicial e a sua aplicação,
fundamentalmente ao sistema de justiça criminal.

1.2 SEGURANÇA INTERNA VERSUS SEGURANÇA EXTERNA

Na próxima aula, veremos os dois modelos pioneiros de criação da polícia


na Europa, o francês e o inglês, com suas semelhanças e diferenças. Por
enquanto, vale a pena acrescentar que, na criação do Estado moderno, além
dos três processos antes mencionados vinculados ao surgimento da polícia
moderna (caráter público, profissionalização e especialização), há outra
evolução de grande importância para a constituição da polícia: a separação entre
a segurança externa (ou segurança nacional) e a segurança interna (ou
segurança pública).

Historicamente, a segurança e a proteção contra inimigos internos ou


externos eram uma coisa só. Progressivamente, exércitos nacionais foram
sendo criados para enfrentar as ameaças provenientes de outros países e se
iniciou um processo de profissionalização militar. No início do século XIX, o
exército prussiano determinou que os oficiais não seriam mais pessoas de classe
alta, mas aqueles que tivessem demostrado um melhor desempenho nas
escolas militares ou no combate. A partir do exemplo prussiano, que teve um
grande sucesso na guerra franco-prussiana de 1870, os exércitos se
democratizaram, admitindo pessoas de todas as classes sociais em todas as
posições de comando, e se profissionalizaram.

Na mesma medida, foi crescendo a necessidade percebida de criar e


fortalecer outra instituição, a polícia, especializada na ordem interna e na defesa
da lei contra desordeiros e criminosos.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 54

A doutrina militar parte do enfrentamento ao inimigo, como alguém


externo à nossa sociedade. Mas se o exército lidava com inimigos que
precisavam ser derrotados ou aniquilados, o perigo de enviar uma força militar a
enfrentar revoltosos ou pequenos criminosos era causar um grande número de
vítimas entre a população civil e, com isso, estimular ainda mais as revoltas.
Como mostrou o exemplo inglês, que será apresentado em detalhe na próxima
aula, um dos motivos para criar uma corporação policial diferenciada foi o de
limitar os danos e promover a pacificação das populações, algo dificilmente
possível através de um exército. Assim, enquanto o exército devia combater
inimigos e aplicar toda a força necessária para tanto, a polícia devia enfrentar
cidadãos suspeitos de terem cometido alguma transgressão, com uma força
muito mais comedida, para que eles pudessem ser julgados, punidos e,
finalmente, reintegrados à sociedade.

Dessa forma, a especialização antes mencionada no processo de criação


das polícias modernas incluiu também essa diferenciação entre uma instituição
encarregada de enfrentar ameaças do exterior e outra com a missão de enfrentar
ameaças internas, que incluíam desordens e crimes.

1.3 A NATUREZA DO TRABALHO POLICIAL

As polícias, a despeito do seu papel central no Estado moderno, não


receberam historicamente muita atenção como objeto de análise. Apenas nos
últimos 50 anos começaram a surgir pesquisadores dedicados especificamente
ao estudo das organizações policiais e do fenômeno do policiamento. A maior
parte desses autores procedem do mundo anglo-saxão e, em menor medida, do
francófono. Em consequência, as teorias sobre polícia costumam estar
baseadas nas realidades desses dois âmbitos geográficos e culturais.
A polícia é uma organização presente em praticamente todos os países
do mundo e todas as pessoas, se perguntadas, sabem identificar um policial. A
sua onipresença, porém, não significa que a sua natureza ou sua função sejam
fáceis de conceitualizar nem que exista uma definição universal do que seja a
polícia.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 55

Egon Bittner, um dos pioneiros no estudo da polícia, baseia sua definição


da instituição policial em dois eixos: o uso potencial da força e a capacidade
de atuar em emergências.
Em relação ao primeiro eixo, ele argumenta que o papel da polícia é o de:

“um mecanismo para a distribuição da força coercitiva não-


negociável empregada de acordo com os ditados de uma compreensão
intuitiva das exigências situacionais” (Bittner, 1990:13).

Na mesma linha, Brodeur afirma que:

“os agentes policiais são parte de várias organizações conectadas


que estão autorizadas para usar de formas mais ou menos controladas
meios diversos, geralmente proibidos por lei ou regulação ao resto da
população, para aplicar vários tipos de regras e costumes que promovam
uma ordem definida na sociedade” (Brodeur, 2010: 130).

Essa última definição não fala explicitamente de força, mas de meios


proibidos às pessoas comuns. Além do uso da força, o direito de interceptar
comunicações, por exemplo, poderia ser outro exemplo de meios que não estão
legalmente à disposição dos indivíduos.
Essa visão de polícia baseada no uso potencial da força encaixa
perfeitamente com à de Max Weber, que define o Estado como

“uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do


uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER,
1982, p. 98) (ver conceito de legitimidade na Aula 5 desse módulo).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 56

De forma a acabar com a violência entre os indivíduos, resultado das


disputas entre eles, o Estado assume a responsabilidade de resolver esses
conflitos e de exercer, só ele, a força que for necessária para aplicar sua decisão.
Isso deveria evitar uma espiral de vinganças e violências descontroladas entre
as pessoas e, em função disso, pacificar a sociedade (ver Módulo II, Aula 1).

A expectativa era que outorgar a legitimidade do uso da força apenas


a essa força pública resultaria numa solução mais efetiva, mais profissional,
mais justa e menos violenta para as desordens e os conflitos sociais.

Obviamente, o monopólio da força não é absoluto, pois todas as


legislações reconhecem o direito individual ao uso da força em casos de legítima
defesa, mas é sobre-entendido que essa defesa é legítima enquanto o Estado
ainda não se fizer presente e, em consequência, o indivíduo precisar se proteger
com urgência por si mesmo até a chegada dos agentes públicos. Quando esses
últimos chegarem, serão eles os encarregados de prover a força necessária para
sustentar a lei.

O bordão “chama a polícia” aponta justamente o momento em que o


indivíduo percebe que há um risco claro de violência e, nesse ponto, deve
se omitir e chamar os profissionais.

Na Prática
Há ainda circunstâncias em que o monopólio da violência legítima é
questionado pela existência de outras legitimidades alternativas à do
Estado. Por exemplo, nos casos de linchamentos em que pessoas
enfurecidas capturam e torturam ou matam alguém supostamente
responsável de ter cometido um delito. Essa violência não é legítima do
ponto de vista das leis e do Estado, mas se beneficia do apoio, e
consequentemente da legitimidade, popular.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 57

Por outro lado, há também uma grande controvérsia hoje em dia sobre se
a proliferação da segurança privada em muitos países do mundo supõe ou não
uma erosão desse monopólio da violência legítima do Estado.
A ideia do monopólio da violência como um mecanismo pacificador se
enquadra também dentro da concepção do processo civilizatório de Norbert
Elias, que descreve como a humanidade tem feito um esforço para reduzir os
níveis de violência entre os seres humanos nos últimos séculos e desenvolvido
valores contrários a ela. Como veremos na próxima aula, a criação da polícia
inglesa no século XIX está ligada, entre outras coisas, à vontade de evitar as
mortes que provocava a intervenção do exército para reprimir conflitos civis. Mais
uma vez, encontramos um propósito pacificador por trás da criação das polícias.
A ideia-força da definição da polícia em termos da possibilidade do uso da
força, que vem desde Bittner até nossos dias, não implica que a polícia deva
usar a força de forma corriqueira ou muito menos intensa. Os pesquisadores que
observaram o trabalho diário das polícias registraram que os incidentes do uso
da força física eram bastante raros (Bayley & Garofalo, 1989). E, de fato,
princípios internacionais estabelecem que a polícia deve tentar usar o mínimo
grau de força possível, e ainda assim limitando os danos, na procura dos seus
objetivos legítimos. Em suma, o elemento definidor não é nem deve ser a
quantidade de força usada, mas a simples possibilidade de ela vir a ser usada.
Bittner compara a capacidade de um policial para usar a força de forma legítima
e competente à de um sacerdote para administrar sacramentos; trata-se de uma
capacidade definitória e negada a terceiros.
Idealmente, o fato de a polícia ser uma organização legal e bem treinada
no uso da força deveria servir como um elemento dissuasório para diminuir a
resistência a ela e, portanto, reduzir a probabilidade desse uso da força.
Observe-se que a literatura policial prefere o termo “uso da força” ao de
“violência” quando se refere ao trabalho policial, mas a rigor não há uma
diferença conceitual entre ambas (Brodeur, 2003: 208).
O segundo eixo central do conceito de Bittner é ver a polícia como uma
organização que pode ser acionada em casos de emergência. Isso fica refletido
de forma muito gráfica na sua descrição de que o papel do policial é intervir em
situações em que:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 58

“alguma-coisa-não-deveria-estar-acontecendo-e-sobre-a-qual-
alguém-precisa-fazer-alguma-coisa-agora” (Bittner 1990: 249).

Esse alguém é, obviamente, o policial. As emergências não estão


necessariamente ligadas a delitos, ou a situações potencialmente violentas, e
podem ser de natureza muito variada. Em Bolívia, alguns anos atrás, a escassez
de gás tornou-se um problema e causou tensões na disputa pelos botijões. A
polícia foi então incumbida de distribuir os botijões pela cidade. Observe-se que,
na medida em que a polícia é chamada para intervir em emergências que não
estão relacionadas com a criminalidade, isso vai na direção contrária da
tendência antes descrita de especialização crescente das suas funções que, em
tese, teriam sido restritas à aplicação da lei e à manutenção da ordem.
Nesse sentido, Bittner (1990:263) analisa o contraste entre a função
teórica das polícias modernas, isto é, a manutenção da ordem e a defesa da lei,
e as atividades diversas que elas acabam levando a cabo. Essa contraposição
não é simples para os policiais, que a vivem de forma conflituosa:

Acreditando que a razão real para a sua existência é a perseguição


perene de pessoas como Willie Sutton [um criminoso conhecido na época
nos EUA] —para o qual ele carece tanto da oportunidade como dos
recursos— o policial se sente obrigado a minimizar a significação dos
exemplos do seu desempenho nos quais parece seguir os passos de
Florence Nightingale [fundadora da enfermagem moderna na Inglaterra].
Temendo o papel da enfermeira ou, pior ainda, o papel do assistente social,
o policial combina ressentimento contra o que ele tem de fazer no dia a dia
com a necessidade de fazê-lo. E nesse percurso perde a sua verdadeira
vocação”. (Bittner, 1990:263).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 59

1.4 UMA DEFINIÇÃO PROVISÓRIA DE POLÍCIA

Após revisar o conteúdo das seções anteriores, poderíamos arriscar


uma definição provisória e sempre sujeita a críticas e revisões. Assim, a
polícia moderna seria uma instituição pública incumbida da missão de
preservar a ordem e aplicar a lei, missão para a qual possui a prerrogativa
de usar a força, como ultima ratio, sempre de acordo com as leis, em nome
da sociedade e do Estado. O objetivo de aplicar a lei inclui corriqueiramente
a prevenção dos delitos, a investigação dos crimes e a captura dos
presumíveis responsáveis, mas exclui a princípio qualquer capacidade
punitiva.

Além dessas funções precípuas relativas ao crime e à ordem, as polícias


são usualmente convocadas para atuar em situações diversas, particularmente
em emergências, em função da sua disponibilidade e da sua capacidade de usar
legalmente a força.
A missão da preservação da ordem significa também a preservação do
status quo. Nesse sentido, diversos autores avaliam que a polícia tende a ser
uma instituição conservadora (Ericson, 1982), noção que se pode aplicar ao
conjunto do sistema de justiça criminal e não apenas à polícia. Porém, isso não
significa que a polícia não possa ser também um agente de mudança social.
Assim, por exemplo, a chefa de polícia de uma cidade canadense deu uma
entrevista para uma revista gay alguns anos atrás, como uma forma de combater
o preconceito contra essa comunidade e favorecer a integração.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 60

AULA 2 – Os dois modelos básicos de polícia: defendendo o


Estado versus defendendo os cidadãos.

A polícia moderna, desde o seu nascimento, vive uma tensão entre dois
grandes modelos: uma polícia pensada para defender o Estado ou o regime
versus uma polícia desenhada para proteger os direitos dos cidadãos e para
pacificar as relações entre eles, mais afastada, portanto, de preocupações
políticas. Todas as polícias possuem, em alguma medida, ambos os polos,
embora em proporções diferentes.
Para introduzir esses dois modelos vamos apresentar inicialmente as
duas polícias consideradas como as pioneiras da polícia moderna na Europa:
1 a francesa no século XVII e
2 a inglesa no século XIX, essa última também chamada de Nova Polícia
(New Police).

Esses dois casos, embora tenham sido obviamente reais historicamente


e influenciados pela realidade do seu tempo, podem nos servir também quase
que como tipos-ideais, isto é, como formulações gerais de cada um dos dois
modelos. Isso porque ambos representam bem os dois respectivos extremos
desse continuum entre polícia para a preservação do Estado e polícia para a
preservação dos indivíduos e dos seus direitos.

2.1 A CRIAÇÃO DO TENENTE GERAL DE POLÍCIA (LIEUTENANCE


GÉNÉRALE DE POLICE) NO SÉCULO XVII NA FRANÇA

Em março de 1667, um decreto de Louis XIV, rei da França, criou a figura


do Tenente Geral de Polícia (Lieutenance Générale de Police). Gabriel Nicolas
de la Reynie, que ostentava o cargo de Mestre dos Pedidos à Casa Real (maîtres
des requêtes), um cargo para o qual era preciso ter desempenhado o cargo de
magistrado nas Cortes, foi a primeira pessoa designada como Tenente Geral de
Polícia.
O rei criou essa figura para integrar as funções policiais, particularmente
no que se refere a Paris, numa única instância. Até esse momento, as funções
estavam divididas entre um Tenente Civil (Lieutenant Civil) e um Tenente
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 61

Criminal (Lieutenant Criminel), o que gerava confusão e insatisfação. Diversas


fontes históricas recolhem panfletos e poemas da época que descreviam uma
grande falta de segurança nas ruas de Paris (Buisson, 1950: 16–17).
Por outro lado, o decreto reconhecia que havia uma certa
incompatibilidade entre as funções policiais e as judiciais, de forma que nenhum
funcionário deveria ser responsável por ambas. Em decorrência disso, o
funcionário encarregado da administração de justiça seria dali em diante o
Tenente Civil (Lieutenant Civil). No entanto, como veremos em breve, o Tenente
Geral de Polícia continuava conservando algumas funções que podemos
considerar legislativas ou judiciais. A explicação é que o conceito de
administração judicial estava reservado às faltas ou crimes mais graves, como
aparecia com clareza na citação de Montesquieu no seu livro “O Espírito das
Leis” que vimos na Aula 1.

De fato, o Tenente Geral de Polícia, além do seu poder executivo


como chefe de polícia, podia também decretar normas e regulações cujo
descumprimento acarretava penas pesadas, e atuava como juiz em todos
os assuntos que a lei não remetia necessariamente às cortes judiciais,
aqueles de menor gravidade. Mesmo assim, o Tenente de Polícia tinha o
poder de impor penas de prisão e inclusive a pena de morte.

Essa concentração do poder de polícia numa única instância, numa única


pessoa na realidade, inaugura em França uma tradição centralizadora que pode
ser encontrada na segurança pública do país até os nossos dias (Brodeur, 2010:
51).

Embora o rei tenha criado a polícia como uma função e não como um
conjunto de homens, o Tenente Geral de Polícia obviamente precisava de uma
equipe para desenvolver seu trabalho. Ele tinha sob seu comando um número
aproximado de 40 comissários (commissaires) responsáveis pelos diversos
bairros de Paris. Como delegados do Tenente Geral, esses comissários também
possuíam poderes judiciais e podiam conduzir julgamentos. Os comissários
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 62

eram assistidos por uns 20 inspetores cuja principal missão era a vigilância.
Todos eles, comissários e inspetores, podiam solicitar o apoio da Guarda de
Paris, que possuía mais de 1.000 homens armados, alguns dos quais tinham
treinamento militar. Na prática, era esse componente militar que andava
uniformizado e usava a força quando necessário.

De acordo com Lenoir, que foi nomeado Tenente Geral de Polícia no


século XVIII como já foi mencionado, os inspetores por sua vez recrutavam
informantes, que geralmente procediam da própria criminalidade, para
obter informação (Lenoir, 1779: 154). Assim, prostitutas, donos de tabernas
e de casas de apostas, entre outros, constituíam uma rede de indivíduos
que mantinham a polícia bem-informada do que acontecia.

Williams, 1979: 202:

Para além das suas múltiplas ocupações, a questão essencial é saber


quais eram as prioridades do Tenente Geral de Polícia. Por um lado, alguns
autores destacam seu papel de manutenção da ordem e de provisão de
segurança para as pessoas, objetivos que se traduziam no patrulhamento
ostensivo (Williams, 1979: 202).

Clément, 1866: 72:

Por outro lado, porém, diversos outros autores sublinham que a prioridade
do Tenente Geral da Polícia era o controle da opinião pública (Clément, 1866:
72).

Bondois, 1936: 21:

Assim, por exemplo, a Polícia se preocupava em combater a dissidência


religiosa, inicialmente os jansenistas e posteriormente os protestantes, que
foram proibidos pelo rei Louis XIV em 1685. Quando o famoso Tenente Geral La
Mare, já mencionado, recebeu uma pensão do rei, suas façanhas no posto foram
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 63

glosadas. Nenhuma delas tinha a ver com crime violento, mas com fraude
econômica, falhas no suprimento de alimentos à população, religião, matérias de
Estado e censuras de livros (Bondois, 1936: 21).

O ponto central para entender a polícia francesa é pensar que ela foi
criada como um serviço auxiliar do rei. Desse modo, o poder de polícia é
concebido como emanado diretamente do soberano. Em função disso, a
manutenção do regime monárquico e da figura do rei é parte fundamental da sua
missão.

Você sabia?

Para as monarquias absolutas do século XVII e XVIII o maior perigo


não provinha dos criminosos, mas das revoltas populares, muitas vezes
relacionadas com a dificuldade de conseguir alimentos.

Por isso, a garantia no fornecimento dos alimentos era uma questão tão
sensível para a polícia. Ao mesmo tempo, a polícia se preocupava em combater
as “ideias perigosas” como um requisito para a manutenção da ordem, ordem
essa que precisa ser entendida não apenas como a ausência de atos vandálicos
ou criminais, mas sobretudo como a manutenção do status quo político
imperante. Para evitar o contágio dessas ideias, ideias estas que finalmente
acabariam provocando a Revolução Francesa, algumas das estratégias usadas
pela polícia incluíam a censura e o espalhamento de boatos falsos. Em suma, a
polícia francesa do século XVII pode ser classificada como uma polícia política
(ver Aula 2 do Módulo III).
No dia a dia, o principal alvo da atuação policial desde 1667 até a
Revolução Francesa era o lumpemproletariado3. Vadios que não trabalhavam,
mendigos e trabalhadores informais que sobreviviam precariamente nas

3 O lumpemproletariado é o termo usado para designar o conjunto de indivíduos que


compõem a camada mais marginal e empobrecida da sociedade. Eles carecem de recursos
regulares e de trabalho formal ou legal, além de consciência de classe.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 64

margens do mercado eram sempre suspeitos (Williams, 1979, cap. 5) por


diversas razões.

Em primeiro lugar:

Vadios e mendigos eram considerados um símbolo de degradação moral.

Em segundo lugar:

Eles eram tratados como os suspeitos principais de cometerem crimes


nas ruas da cidade.

E, em terceiro lugar:

Este contingente era visto como sempre pronto para aderir a uma revolta,
que como vimos era o maior temor do regime.

De acordo com Brodeur (2010), o sistema de justiça criminal francês do


Antigo Regime procurava a prevenção a partir de quatro elementos:

1 leniência, de forma que os magistrados preferiam optar por admoestações


e soluções não penais;
2 procura de postos de trabalho para as pessoas, como forma de evitar o
que era considerado como o principal fator de risco;
3 vigilância da população como instrumento central. Observe-se que
enquanto no modelo inglês a vigilância era exercida através do
patrulhamento ostensivo e uniformado, como será apresentado mais
adiante, na França a vigilância era desenvolvida por meio do recrutamento
de informantes não ostensivos, isto é, de forma oculta e reservada; e
4 Controle da opinião pública, como já foi abordado.

Depois da Revolução Francesa, essa contraposição tradicional entre uma


polícia que se ocupava dos assuntos do Estado e uma polícia que se ocupava
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 65

dos crimes de rua e da regulação do cotidiano deu lugar a dois termos


característicos na literatura francesa: alta polícia (“Haute Police”) e baixa polícia
(“Basse Police”).

Alta polícia (“Haute Police”):

A primeira se concentra na proteção do Estado e em atuações de cunho


político para proteger o regime sob a chamada “razão de Estado”.

Baixa polícia (“Basse Police”):

A segunda lida com crimes comuns e desordens nas ruas.

Pelos próprios termos utilizados é claro que a primeira é considerada mais


relevante e a segunda é vista como secundária. Os elogios ao desempenho do
Tenente La Mare anteriormente mencionados também evidenciavam que os
serviços policiais reconhecidos como de grande importância eram aqueles
funcionais para a preservação do regime.
O fato de a polícia ser um órgão do rei podia também, em ocasiões,
representar alguma vantagem para a população. Assim, enquanto na Inglaterra
as acusações contra os suspeitos de cometerem crimes dependiam
fundamentalmente da atuação das vítimas, na França o policiamento era todo
ele considerado um assunto de lei pública e as cortes não dependiam tanto da
acusação da vítima, considerando que qualquer crime contra um terceiro era, ao
mesmo tempo, um crime contra o rei (Beattie, 2001).

2.2. ACRIAÇÃO DA POLÍCIA METROPOLITANA DE LONDRES


(METROPOLITAN POLICE) NO SÉCULO XIX NA INGLATERRA

Em 1829 Sir Robert Peel, o Ministro do Interior (Home Secretary),


consegue aprovar no Parlamento a Lei da Polícia Metropolitana (Metropolitan
Police Act) que criava a Polícia Metropolitana para Londres. Até esse momento,
o policiamento na cidade estava a cargo de diversas agrupações, como os
“constables”, já descritos acima, os vigilantes da noite, os “beadles” e os “city
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 66

marshals” (Beattie, 2001: 122). E, em caso de revoltas, os militares eram


chamados. Por outro lado, o papel dos caçadores de ladrões (thief-takers), pagos
pelas vítimas, seguia sendo fundamental para capturar criminosos. Existia
também a suspeita de que muitos desses caçadores de ladrões atuavam de fato
em conluio com os próprios criminosos. Esse policiamento através de tantos
grupos diferentes e descoordenados era considerado insatisfatório e uma
proposta de lei de reforma policial já tinha sido apresentada em 1785, sem
sucesso.

Três são os motivos principais alegados para a reforma policial que foi
finalmente bem-sucedida em 1829:
1 a necessidade de coordenação e de centralização do policiamento;
2 o clima de desordem e insegurança, principalmente em relação aos
crimes contra a propriedade, imperante nas ruas de Londres; e
3 o alto número de vítimas fatais que aconteciam quando os militares eram
chamados para reprimir distúrbios civis.

A diferença medular entre o modelo de polícia inglês e o francês pode ser


observada já desde o instrumento da sua criação: um decreto do rei em França
e uma lei aprovada no Parlamento na Inglaterra. A Inglaterra de 1829,
diferentemente da França de 1667, era uma monarquia parlamentar onde o rei
reinava, mas não governava. Além disso, quase dois séculos tinham se passado
entre esses dois momentos, a estrutura social dos países europeus tinha se
transformado com o ascenso da burguesia em detrimento da aristocracia, e o
mundo inteiro tinha sido abalado pelas ideias do Iluminismo. A burguesia inglesa,
dominante no início do século XIX, tinha evitado até esse momento o surgimento
na Inglaterra justamente de uma “polícia do rei” nos moldes da França (Mulone,
2019: 216), para evitar ser submetida.

Em suma, enquanto a polícia francesa tinha como objetivo central a


manutenção do regime, a polícia inglesa foi criada para preservar a ordem
e a paz entre os cidadãos, e para combater a delinquência comum.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 67

A Nova Polícia criada em 1829 era conformada por um grupo de homens


sob comando único que vestiam uniforme azul, para diferenciá-los do uniforme
vermelho do exército, patrulhavam a pé e carregavam como arma, com algumas
exceções, apenas um cassetete de madeira. A despeito das mudanças
históricas, o conceito do policial desarmado subsiste basicamente até hoje no
Reino Unido.
Os policiais, chamados “bobbies” em referência a Sir Robert Peel, tinham
como missão apreender criminosos e desordeiros, mas, sobretudo, prevenir a
ocorrência de crimes através do patrulhamento ostensivo. Se a vigilância na
França era desenvolvida por informantes anônimos, o que era imprescindível
para detectar possíveis crimes políticos ou ideias contrárias ao regime, na
Inglaterra era o policial uniformado quem vigiava e dissuadia delitos comuns com
a sua presença. Apenas em 1842, a Polícia Metropolitana criou um
departamento de investigação criminal com detetives não uniformizados, devido
ao receio de que a nova polícia dependesse de espiões ou informantes, tal como
a polícia francesa (Wade, 1829: 358).
Grande ênfase foi colocada na necessidade de que os novos policiais
tivessem uma moral ilibada, de tal forma que houve muitas expulsões de agentes
no início, a grande maioria por causa de serem surpreendidos bêbados (Taylor,
1998: 89–95). Paralelamente, foram criados mecanismos e comissões oficiais
para controlar possíveis abusos e exercer o controle externo da organização
policial.
A criação da Nova Polícia aprofundou a tendência à especialização da
função policial. Apesar da polícia ter conservado algumas tarefas que não eram
sempre estritamente criminais, ela passou a ser vista não mais como um sistema
autônomo de governança da cidade e sim como um braço do sistema de justiça
criminal.
A partir desse momento, a palavra polícia passou também a designar um
conjunto de pessoas dedicadas profissionalmente a preservar a ordem e a fazer
cumprir a lei, uma organização com essa missão, e não apenas uma função
como acontecia anteriormente. Para a função se reserva agora o termo
policiamento, palavra que, no entanto, não existe em todas as línguas.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 68

Na Inglaterra, o novo modelo policial teve um impacto enorme sobre as


acusações criminais, que passaram a depender majoritariamente do trabalho e
das decisões da polícia, deixando para atrás o modelo dos caçadores de ladrões
e a dependência da iniciativa das vítimas.
O fato de a Polícia Metropolitana de Londres ter sido a primeira polícia
moderna a ser criada para a proteção da sociedade e de, em função disso, ter
servido de modelo para muitas outras polícias em países democráticos no
mundo, provoca às vezes uma certa idealização dos “bobbies”. Assim, proteger
a população não significava respeitar os direitos de todos os grupos sociais por
igual de forma democrática.

Na Prática
Os alvos principais da polícia britânica não eram muito diferentes
dos da polícia francesa e se concentravam nas camadas mais humildes da
sociedade: prostitutas, bêbados e vadios.

De acordo com a própria lei de criação de 1829, o policial podia


“prender todas as pessoas ociosas, vadias e desordeiras que ele
encontrasse perturbando a paz pública ou de quem ele tivesse justa causa
para suspeitar de intenções malignas” (Metropolitan Police Act, 10 Geo. 4.
chap. 44, sect. 7).

Desse modo, a detenção discricionária e arbitrária era comum, embora


não com intenções diretamente políticas (Beattie, 2001: 97–98).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 69

2.3. UMA POLÍCIA PARA PROTEGER OS CIDADÃOS VERSUS UMA


POLÍCIA PARA PROTEGER O GOVERNO

Como acabamos de ver, os modelos francês e inglês servem bem para


exemplificar os dois extremos desse continuum relativo ao objetivo central da
polícia: proteger os cidadãos versus proteger o sistema político da ameaça vinda
dos próprios cidadãos.

Obviamente, as polícias dos países democráticos se situam e devem se


situar muito mais perto do primeiro polo do que do segundo. Aqui é preciso fazer
uma distinção fundamental entre proteção do sistema político e proteção do
governo que ocupa o poder num certo momento.

Nenhuma polícia democrática deve ter como objetivo a preservação


do governo atual, embora não seja raro que elas sofram pressão para agir
de uma forma que convenha ao governante, considerando que são parte
do poder executivo e devem obediência a ele (ver Aula 1 do Módulo III).

Paralelamente, todas as polícias do mundo, inclusive as dos países


democráticos, dedicam parte do seu tempo a monitorar e desativar ameaças ao
sistema político, por exemplo, golpes de estado ou tentativas de intimidar ou
atacar aos cargos públicos. Todas as legislações, incluindo as dos países
democráticos, possuem dispositivos que criminalizam a tentativa de derrubar os
poderes constituídos pela força.
Em consequência, todas as polícias possuem elementos do modelo
francês e do modelo inglês em alguma medida (Mulone, 2019: 216). Porém, as
polícias dos países democráticos apresentam grandes diferenças e vantagens
em comparação com as dos países autoritários.

Em primeiro lugar:

Os níveis de legitimidade dos sistemas políticos democráticos costumam


ser muito mais elevados (ver Aula 5 desse Módulo I), o que facilita enormemente
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 70

o trabalho da polícia, que pode contar, com maior probabilidade, com o apoio da
população. Ela não precisa ser temida para ter respeito dos cidadãos.

Em segundo lugar:

A esfera do que é politicamente proibido e, portanto, reprimido, é muito


maior nos sistemas autoritários, onde por exemplo, manifestações públicas, ou
inclusive a expressão de ideias contrárias ao governo, não são toleradas. Isso
magnifica exponencialmente a tarefa de uma polícia destinada a conter os
descontentes. Nos regimes democráticos, a fração de tempo que as polícias
dedicam a prevenir ou combater crimes políticos é muito pequena, e o resto do
tempo pode ser empregado na luta contra a criminalidade comum. O contrário
acontece nas ditaduras onde, não raro, a criminalidade comum é secundária
para as forças de segurança pública desde que não perturbe o sistema.

Em terceiro lugar:

Os regimes democráticos se caracterizam pelo respeito ao estado de


direito, de modo que as polícias devem se pautar sempre pela lei. Isso permite
aos policiais orientarem suas ações com base na legalidade, evitando que
ordens que extrapolem os limites legais e, inclusive, os limites técnicos, sejam
cumpridas. Por exemplo, as polícias, com base na lei e em seus protocolos de
ação, podem orientar adaptações e até mesmo se negar a seguir indicações de
como reprimir uma manifestação opositora ou um motim prisional, se elas não
se ajustarem às diretrizes técnicas contidas nos protocolos de atuação policial
para manifestações ou motins. Em regimes autoritários, por sua vez, não
costumam existir limites quanto ao que a polícia pode ou não fazer, nem quanto
ao que os governos podem exigir das polícias.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 71

Aula 3 - A DOUTRINA POLICIAL ENTRE O COMBATE AOS


CRIMINOSOS E A PROTEÇÃO DO CIDADÃO

Nas aulas anteriores vimos uma oposição essencial para entender a


polícia: uma instituição para proteger o poder político versus uma instituição para
defender os cidadãos.

Dentro desse último paradigma de uma polícia para proteger os cidadãos,


cabe estabelecer outra polaridade de grande relevância: uma polícia para
combater os criminosos versus uma polícia para proteger os cidadãos. Ou, dito
de outra forma, uma polícia para limitar direitos versus uma polícia para defender
direitos. Essa antinomia só cobra sentido se a polícia tiver como objetivo geral a
proteção do cidadão, pois ela torna-se irrelevante se a sua meta for preservar o
governo ou o regime. Nesse último caso, a instituição operará sempre
restringindo os direitos individuais para assim defender os titulares do poder.

A princípio, poderia parecer que a oposição aqui colocada é carente de


sentido ou redundante, pois para proteger os cidadãos é preciso com frequência
reprimir os criminosos. Ou seja, para defender os direitos de uns cidadãos é
preciso limitar os direitos de outros. No fundo, é isso o que uma boa polícia
teoricamente faz, restringe os direitos de alguns para preservar os da grande
maioria.
Entretanto, a diferença radica na ênfase que a instituição coloca em um
ou outro extremo.
Polícia pensada fundamentalmente para combater os delitos:

Terá como objetivo central a identificação e prisão dos responsáveis, isto


é a repressão ao crime. Com este foco, provavelmente dedicará menos atenção
à prevenção e à sensação de segurança dos cidadãos. Nesse cenário, as
prisões e apreensões costumam ser os indicadores mais valorizados de
desempenho policial.

Polícia desenhada para a proteção dos cidadãos:


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 72

Considerará sobretudo o bem-estar deles, priorizando este ponto à


detenção do autor do delito. O foco, neste caso, é naquilo que realmente gera
insegurança na população, dedicando menos atenção a condutas de menor
potencial ofensivo. Privilegia a prevenção, pois nada protege melhor a
comunidade do que evitar os crimes, ao invés de ter que correr atrás dos
responsáveis a posteriori.

Há situações concretas em que a diferença entre ambos os enfoques fica


patente. Num congresso sobre segurança pública em Belém do Pará uma
pessoa relatou um incidente em Buenos Aires, quando correu um boato de que
seriam vendidas entradas para um show dos Rolling Stones num shopping
center do centro da cidade. Concentraram-se lá milhares de pessoas que ficaram
frustradas quando souberam que a informação sobre a venda de entradas não
era verdadeira. Houve quebra-quebra, algumas vitrines de lojas foram
quebradas e produtos foram furtados. Quando a polícia chegou ao local, avaliou
que se tentasse intervir contra os autores dos furtos poderia gerar uma
debandada que poderia provocar graves consequências. Por isso, optou por
esvaziar completamente o shopping, direcionando todas as pessoas para a
saída, sem se ocupar, nesse primeiro momento, dos furtos. Na hora das
perguntas, um policial brasileiro inquiriu se a polícia argentina aceitava a
impunidade em relação aos crimes contra a propriedade, sugerindo que
deveriam ter tentado prender os responsáveis. Para esse policial, provavelmente
o combate aos criminosos era a prioridade que deveria pautar a intervenção
policial, e a preocupação com a possibilidade de provocar feridos na debandada
que poderia ter acontecido era secundária.
No Brasil, não é incomum que as polícias desenvolvam operações contra
grupos criminosos que desembocam em tiroteios em áreas densamente
povoadas, gerando sérias consequências negativas para a vida dos moradores
(impossibilidade de trabalhar, assistir a escola ou receber tratamento médico)
além de colocá-los sob risco de serem atingidos por balas perdidas.
Nesse sentido, um policial guardião precisa, antes de deflagar qualquer
operação policial, avaliar o risco para as pessoas que moram nessas regiões, de
forma a não gerar mais custos sociais do que benefícios.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 73

Outra situação bastante comum é aquela em que um policial se depara


com criminosos num contexto inesperado e em inferioridade numérica. Tentar
intervir poderia colocar o policial e a população ao redor em situação de risco,
por isso pode ser melhor optar por um recuo tático, acompanhando os criminosos
de longe e pedindo reforços. De forma geral, uma superioridade numérica por
parte da polícia permite um menor emprego da força e uma maior segurança
para os envolvidos. Mas para policiais concentrados no combate ao crime, o
recuo pode ser considerado uma falha técnica ou moral, ou até ser classificado
como prevaricação.
Por outro lado, a discricionariedade no trabalho policial, que será
abordada em detalhe na próxima aula, tende a ser entendida de forma diferente
por aqueles que entraram na polícia basicamente para enfrentar bandidos, em
comparação com os que privilegiam a proteção da cidadania.

“Pois pessoas que tem escolhido a polícia como a sua carreira —


sob o suposto de que consiste em lutas contra as forças do mal e com a
compreensão de que serão livres para fazer em cada encontro específico
aquilo que as circunstâncias demandarem segundo o seu próprio
julgamento— devem ver cada restrição regulatória e cada tentativa de
monitoramento como uma mudança fundamental nas condições do seu
emprego.” (Bittner, 1984: 211).

De fato, diversas subculturas policiais privilegiam noções como o risco, a


masculinidade assertiva e o heroísmo que parecem ter muito mais a ver com a
luta contra criminosos do que com proteção do cidadão. Na mesma linha, a
tentativa de introduzir modelos de polícia comunitária muitas vezes enfrenta
resistências de policiais que acreditam que isso não é uma verdadeira polícia,
pois esta última precisa de criminosos para serem combatidos. Numa pesquisa
para avaliar a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio
de Janeiro, um sargento entrevistado que era contrário a esse novo modelo
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 74

policial de proximidade assinalava que, mesmo assim, às vezes havia


ocorrências “boas” que devolviam a ele a sensação de retornar à “verdadeira
polícia”. Para ele, a vocação autêntica da polícia parece ser a de trocar tiros com
bandidos:

“Teve uma ocorrência boa nossa. Patrulhamento ali, ô. Foram três


elementos, vieram lá do [nome de outra comunidade] pra assaltar ali. A
viatura estava fazendo uma abordagem ali, eles passaram voados. A
viatura foi até trocar tiro com a minha viatura. Resumindo: morreu um,
morreu um elemento e foram dois presos, e dois carros recuperados e duas
armas apreendidas. [...] Então, foi feita aquela ocorrência boa, deu até
manchete porque era uma coisa boa. E é feito TRO (Talão de Registro de
Ocorrência), tudo legal.” (Cano, Borges & Ribeiro, 2012: 153)

Um elemento que estimula a visão do policiamento como luta contra os


criminosos é a percepção dicotômica e maniqueísta da sociedade, que se
dividiria em dois grupos claramente diferenciados e antagônicos: os “cidadãos
de bem” e os “bandidos”. Considerando que esses últimos são considerados
fatalmente inclinados ao delito, a única solução seria o combate sem quartel
contra eles como forma de proteger os primeiros. Os cidadãos de bem, por sua
vez, não apresentariam risco algum de se verem envolvidos em atividades
ilícitas, pois eles seriam, por definição, bons. Em consequência, quando a
sociedade é percebida dessa forma, a probabilidade de que a polícia seja
concebida como uma cruzada contra os criminosos é muito maior. Na verdade,
todos os cidadãos podem cometer um delito em algum momento das suas vidas
em função das circunstâncias e ninguém pode ser permanentemente excluído
dessa possibilidade. Paralelamente, pessoas hoje envolvidas em atividades
ilícitas podem ser ressocializadas e abandonar a vida do crime.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 75

3.1. POLÍCIA COMO CONTROLE SOCIAL VERSUS POLÍCIA COMO


SERVIÇO SOCIAL

Quando a polícia existe para preservar o regime ou o governo, como


vimos na aula 2 desse módulo, a sua função precípua é o controle social dos
indivíduos para evitar a subversão. Mas mesmo quando a meta central é a
proteção do cidadão, esse objetivo pode tentar ser atingido através do controle
das pessoas, agora não com fins políticos, mas para evitar a criminalidade.

Na Prática
Esse controle se exerce preferentemente, mas não exclusivamente,
sobre grupos e camadas sociais considerados suspeitos de cometerem
crimes.

Muitas polícias no mundo funcionam sob esse paradigma de controle


social. Não raro, as populações por elas policiadas temem a polícia, a quem
consideram uma instituição criada para controlá-las. A suspeita, portanto, opera
em ambas as direções, da polícia em relação aos cidadãos e desses últimos em
relação à polícia.

Na tradição dos países latinos:

os prenomes da polícia costumam ser “força” (força policial ou força pública) ou


“corporação”, ambos reforçando a noção do controle como objetivo primordial.

Já na tradição anglo-saxã:

que bebe da experiência pioneira dos ‘bobbies’ londrinos apresentada na aula 2


desse módulo, o prenome da polícia costuma ser “serviço”: serviço policial
(police service). Obviamente, tal nome não garante uma polícia de qualidade,
mas o seu significado transmite a concepção da polícia como uma instituição a
serviço dos cidadãos, que seriam a sua clientela.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 76

As implicações simbólicas do conceito de serviço policial não podem ser


desconsideradas.

Em primeiro lugar:

Se a sociedade é a sua clientela, espera-se que a polícia tente satisfazer


essa clientela e que, para tanto, assuma as prioridades dela como próprias. Em
diversos países de tradição anglo-saxã, como a Austrália, a avaliação de
desempenho da instituição policial incorpora como um dos seus indicadores
centrais a percepção dos cidadãos em relação à instituição e avaliação que
fazem do seu trabalho. Não poderia ser considerada uma polícia de boa
qualidade aquela que deixa seus cidadãos, a sua clientela, insatisfeitos, mesmo
no suposto de que a incidência criminal seja baixa.

Em segundo lugar:

Se a polícia é um serviço aos cidadãos, ela deve a eles total transparência


e uma prestação de contas (accountability) detalhada (ver Aula 1 do Módulo 3).
Sigilo e opacidade não combinam com essa visão.

Em primeiro lugar:

E talvez isso seja o mais importante, a ideia de serviço policial altera a


relação de poder entre a cidadania e a polícia. Se uma polícia desenhada como
um mecanismo de controle sobre os cidadãos tende a se colocar numa posição
de superioridade, espera-se que uma polícia concebida como serviço outorgue
preeminência hierárquica à própria sociedade ou, como muito, se situe numa
posição de igualdade, considerando que os policiais são também cidadãos e
membros da sociedade que devem proteger.

Em suma, embora a eleição dos termos usados para definir a polícia


(força, corporação, serviço etc.) responda a razões linguísticas e culturais de
longa data, eles traduzem também valores que refletem qual é o papel da
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 77

instituição na sociedade e qual a sua posição na hierarquia social. Se bem muitos


países latinos assumiram o lema de “servir e proteger” como inspiração, eles o
fazem desde o conceito de uma força ou uma corporação policial. O conceito de
corporação, especificamente, aponta à solidez e à estrutura interna da instituição
mais do que a sua função perante a sociedade.

Obviamente, não basta mudar o nome para mudar a natureza de


uma instituição, mas a importância simbólica dos termos não pode ser
desprezada.

3.2. POLICIAL GUERREIRO VERSUS POLICIAL GUARDIÃO

Dois termos que encarnam bem a dicotomia apresentada na seção


anterior são os de “policial guerreiro” e “policial guardião”.

Policial guerreiro:

O policial guerreiro vai um passo mais longe na direção antes descrita de


uma polícia para combater a criminalidade, pois considera que esse combate é,
de alguma forma, uma guerra.

O policial guerreiro se caracteriza por uma doutrina de enfrentamento ao


inimigo, voltando atrás na tendência histórica que separou as polícias dos
exércitos. Ele tem como prioridade o combate a um inimigo que precisa ser
derrotado. O uso de equipamentos e táticas de tipo militar na segurança pública
seriam características frequentemente associadas a esse modelo.

Policial guardião:

Pretende sobretudo proteger os cidadãos. A luta contra os criminosos


seria uma meta secundarizada em relação à primeira. De novo, a prevenção
encaixa perfeitamente nessa visão, pois a ausência de violência e do crime é a
melhor proteção que pode ser oferecida.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 78

Já a prevenção não faz muito sentido para o policial guerreiro, pois ele
deve enfrentar um inimigo que em geral já foi plenamente definido e identificado.
Da mesma maneira que nas seções anteriores, a percepção dicotômica e rígida
da sociedade entre cidadãos de bem e bandidos fortaleceria a aposta por este
tipo de policial.
Noutro sentido, a noção de policial guerreiro reforça a ideia do
patrulhamento ostensivo em lugares públicos (o “campo de batalha”) e se afasta
da investigação policial, que não precisa de guerreiros, mas de detetives.
Portanto, a aposta pelo policial guerreiro é também uma aposta pela
ostensividade em detrimento da investigação criminal.

Nas últimas duas décadas o conceito do policial guerreiro tem sido muito
discutido nos EUA, especialmente após os atentados de 11 de setembro de
2001. O primeiro resultado dos atentados foi que a ênfase em medidas e políticas
antiterroristas acabou minando a distinção entre segurança interna e externa.

A discussão sobre o policial guerreiro está, nos EUA, fortemente


imbricada com a polémica sobre a militarização das polícias.

Segundo Balko (2013: 46), a militarização da polícia começou nos


Estados Unidos já nos anos 60 e foi intensificada nos anos 80, durante a guerra
contra as drogas, para receber posteriormente outro novo impulso depois do 11
de setembro de 2001. Em 1965, houve revoltas populares no bairro de Watts,
em Los Angeles, que duraram vários dias e causaram perdas de vidas e enormes
danos materiais. A polícia enfrentou coquetéis-molotov e disparos isolados. Em
consequência, a polícia de Los Angeles (LAPD) pediu conselho ao exército sobre
como enfrentar essas situações e criou um dos primeiros grupamentos de
operações especiais dentro de uma organização policial: o chamado SWAT.

Você sabia?
O acrônimo inicialmente queria dizer Special Weapons Attack Team
(Time de Ataque com Armas Especiais), mas depois veio a ser conhecido
de forma mais moderada como Special Weapons and Tactics (Armas e
Táticas Especiais).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 79

Esse grupamento passou a ter armamento mais poderoso e treinamento


militar, incluindo táticas militares. Assim, a criação do SWAT foi inspirada por
uma doutrina de contra-insurgência urbana, isto é, do combate contra a
insurgência política. Seus integrantes foram treinados para lidar tanto com
revoltas generalizadas quanto com atiradores que se atrincheiravam para causar
o maior número de vítimas, como aconteceu na Universidade do Texas, em
Austin, em 1966. Esse tipo de incidente de lá para cá tornou-se, infelizmente,
frequente. Em pouco tempo, os grupos SWATs se estenderam por todo o país.
Uma pesquisa publicada a finais dos anos 90 mostrava que 89% das cidades
estadunidenses com mais de 50.000 habitantes tinham um grupamento SWAT,
o dobro do percentual registrado em 1980 (Kraska & Kappeler, 1997). Inclusive
65% das cidades com população entre 25.000 e 50.000 possuíam também um
grupo SWAT. Em outras palavras, o modelo SWAT tinha se universalizado.
E não era só que os grupos de operações especiais fossem mais
frequentes, eles eram também crescentemente utilizados, inclusive em
operações que não tinham nada a ver com o propósito original. Em muitas
ocasiões, o SWAT era usado para policiamento de rotina, como uma forma de
intimidar pessoas em lugares considerados perigosos ou indivíduos que
tivessem cometido ou pequenas transgressões.

“Usamos patrulhas de saturação em pontos quentes. Fazemos muito


do nosso trabalho com a unidade SWAT porque temos armas maiores.
Enviamos dois carros, com dois a quatro agentes em cada um, procuramos
transgressões menores e pulamos, seja nas pessoas na rua ou nos
automóveis. Depois de pularmos, o segundo carro fornece cobertura
periférica com exibição ostentosa de armamento. Estamos enviando uma
mensagem clara: se os tiroteios não pararem, vamos atirar em alguém.”
(Kraska & Kappeler, 1997: 10).

Os membros do SWATs estavam fortemente armados, com um


equipamento defensivo e ofensivo que impressionava, e eram considerados a
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 80

“elite policial”, o que marcava fortemente a instituição policial para além das
intervenções desses grupos. Por outro lado, a lei norte-americana permitia que
o exército repassasse seus equipamentos excedentes às organizações policiais,
o que facilitava o acesso dessas últimas a armamentos militares (Simckes et al.,
2019).

Outro ponto de grande importância é que a formação nas academias de


polícia se inspirava nesse modelo do policial guerreiro, privilegiando o
treinamento físico e as técnicas de uso da força e deixando de lado o ensino de
habilidades comunicacionais e de procedimentos de desescalada das tensões
(Rahr & Rice, 2015). Além disso, o treinamento para produzir policiais guerreiros
tornou-se muito hierárquico e autoritário, exigindo dos recrutas a obediência de
um soldado e o submetimento automático, atitudes que o novo policial tendia a
reproduzir com os cidadãos uma vez acabada sua formação.

Stoughton (2016) considera que a mentalidade do guerreiro possui,


idealmente, características muito positivas como a tenacidade, a vontade de
enfrentar qualquer obstáculo e a disposição ao sacrifício por uma causa,
características que ele resume em quatro traços:

1 honra, que se traduz em um estrito código moral pensado para servir a


outros, de preferência aos mais débeis que não podem se defender por si
mesmos;
2 sentido do dever, mesmo quando demande sacrifícios pessoais;
3 determinação para enfrentar as dificuldades e para obedecer ordens,
inclusive quando não estejam de acordo com o conteúdo delas; e
4 disposição a exercer uma violência justa contra o mal, que é visto como
inevitável e omnipresente.

O autor tenta também entender as razões da forte atração da figura do


policial guerreiro para os policiais no país e oferece vários motivos:
1 ele é visto como um bastião essencial para proteger a sociedade e, com
isso, o agente se sente importante e imprescindível;
2 é uma posição exclusiva, que não está ao alcance de todos, pois é preciso
possuir diversas virtudes para poder desempenhá-la;
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 81

3 é um conceito que reduz a dissonância cognoscitiva (isto é a contradição


percebida pelo indivíduo) entre a função ideal que se supõe que realiza a
polícia e a sua realidade no dia a dia. Assim, os policiais se veem a si
mesmos como os ‘mocinhos’ das disputas, mas algumas das suas ações
não encaixam bem nesse papel, e o ideal do guerreiro ajuda a diminuir
esse contraste; e
4 é um modelo que recebe apoio externo, ao menos de parte importante da
população que subscreve essa filosofia e às vezes a demanda.

Entretanto, a despeito das suas virtudes teóricas, o modelo do policial


guerreiro acaba, na prática, provocando diversos efeitos negativos. Durante o
treinamento, o policial guerreiro é ensinado a desconfiar de tudo e de todos e a
ver a qualquer cidadão como uma possível ameaça. Transmitem-lhe que essa é
a melhor forma de reduzir os riscos contra sua pessoa num mundo que seria
essencialmente hostil. No entanto, essa atitude provoca hipervigilância e
agressividade, e tensiona as relações com as pessoas.
A consequência é que o culto ao policial guerreiro provocou a deterioração
da relação com a comunidade, a desconfiança dos cidadãos aos quais devia
servir (Stoughton, 2014) e, em última instância, a deslegitimação da instituição
policial (ver Aula 5 desse módulo). Décadas de investimento no paradigma da
polícia comunitária ficaram comprometidas pela proliferação do policial guerreiro
nos EUA, com os efeitos subsequentes, especialmente na relação entre minorias
étnicas e as polícias.
O policial guerreiro, que desconfia de todos, não consegue estabelecer
uma relação horizontal com o cidadão, muito menos uma relação de serviço.
Espera submissão dele e, quando não a consegue, tende com maior facilidade
à confrontação e ao uso da força, muitas vezes de forma desnecessária. O
resultado é que um modelo que foi desenhado em tese para aumentar a
segurança do policial acaba provocando um aumento do risco de ferimentos não
apenas para as pessoas comuns, mas também para o próprio policial.
O policial guerreiro e a visão militarizada da segurança pública têm sido
usados também para justificar abusos policiais ou condutas extralegais. Embora
os conflitos bélicos possuam normas precisas, codificadas no Direito
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 82

Internacional Humanitário, muita gente ainda está convencida de que tudo vale
numa guerra e, portanto, abusos devem ser ignorados ou perdoados.

Para tentar retornar a um paradigma do policial guardião, Stoughton


(2014) oferece duas recomendações centrais.
Primeira recomendação central:

A primeira é estimular os policiais, desde a academia, a manter contatos


com os cidadãos que não estejam relacionados diretamente com a aplicação da
lei. Em outras palavras, deve-se encorajar os agentes a conversar informalmente
com as pessoas em situações que não sejam revistas, buscas, multas, prisões,
interrogatórios ou paradas para pedir identificação. Obviamente, isso supõe
voltar ao modelo da polícia comunitária, onde a maioria dos contatos são
proativos e espontâneos, não pautados por suspeitas de crimes ou
contravenções.

Segunda recomendação central:

A segunda recomendação é enfatizar a contenção tática (tactical restraint)


no treinamento inicial e na revisão de incidentes de uso da força. O conceito de
contenção tática pode ser entendido como uma tentativa de reduzir os riscos
evitáveis para os policiais e para terceiros, sempre que isso não comprometa o
objetivo central da intervenção. O recuo tático é uma dessas opções, entre
outras, para evitar males maiores. O autor dá exemplos concretos de
corporações policiais que instruem seus membros a não efetuar uma prisão ou
a não continuar uma perseguição a pé a não ser que contem com apoio de outros
colegas, como formas de evitar a escalada no uso da força.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 83

Aula 4 - A DISCRICIONARIEDADE NO TRABALHO POLICIAL

4.1 O QUE É A DISCRICIONARIEDADE

Uma das questões mais debatidas em relação ao trabalho policial é a sua


discricionariedade, isto é, a possibilidade de decidir o que fazer numa situação
específica sem que essa decisão esteja plenamente pautada por leis, normas ou
regulamentos. A ideia é que normas e regulamentos impõem limites ao que o
policial pode fazer, mas não determinam o que ele ou ela devem fazer em
concreto, pois não podem prever a multitude de situações que deverão ser
enfrentadas no dia a dia.
De fato, quanto mais se avança no fluxo do sistema de justiça criminal
(que começa com a polícia e acaba no sistema prisional), menor tende a ser a
discricionariedade. Pensemos no trabalho de um juiz. O juiz possui um longo
tempo de reflexão no seu próprio escritório para tomar a sua decisão, que deve
ser fundamentada por escrito. Além disso, ela é pública por definição e
submetida ao escrutínio das partes e da opinião pública em geral.
Adicionalmente, ela é sujeita a revisão dos tribunais superiores através do
mecanismo de apelação. Nesse cenário, qualquer decisão que não responda à
lei e aos princípios jurisprudenciais poderá ser revisada e revertida
posteriormente. Tudo isso não significa que o juiz não tenha discricionariedade,
que de fato existe na medida em que ele ou ela interpreta tanto a lei quanto as
provas apresentadas, sob o princípio, no Brasil, do “livre convencimento
motivado”. Entretanto, essa discricionariedade é limitada por todos os elementos
apresentados acima.
Em contraposição, o policial trabalha muitas vezes na rua, sozinho ou em
pequenos grupos, com escassa supervisão, e muitas das suas ações não são
sequer registradas e, portanto, dificilmente poderão ser sujeitas a revisão. A
aparição das câmeras corporais e de outros mecanismos tecnológicos veio
alterar essa situação em alguma medida, mas o nível de registro das atuações
e de supervisão é ainda bastante limitado. A discricionariedade começa pela
decisão inicial que o policial deve tomar, a de intervir ou não numa determinada
situação.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 84

Nenhuma polícia do mundo, por mais estrita e autoritária que seja,


intervém em todos os casos de desordem ou pequenos delitos, pois em
ocasiões pode não valer a pena ou pode provocar efeitos indesejados. Já
o juiz, para seguir com a comparação, não pode decidir não se pronunciar
sobre os assuntos que são levados à sua consideração.

Na literatura policial, o aspecto mais estudado dentro da


discricionariedade é a decisão de abrir um procedimento formal contra alguém
por ter cometido um crime ou uma contravenção, ou não o fazer. A polícia, como
de resto todo o sistema de justiça criminal, opera sob o conceito ideal da
aplicação da lei a todos os infratores e a todos os crimes. Mas essa ideia não
passa de uma fantasia, especialmente nas contravenções e nos crimes de menor
gravidade. Em todos os países do mundo, a polícia ignora algumas
transgressões e reprime outras só em determinadas circunstâncias. A
possibilidade legal de não apresentar uma acusação penal mesmo quando há
evidência de crimes é maior nos sistemas de lei comum ou common law, nos
quais pode se desistir da acusação por motivos do interesse público, mas existe
em alguma medida em todos os sistemas legais.

Saiba Mais
Nos sistemas de “common law”, vigentes nos países anglo-saxões e
nas suas colônias, a aplicação da lei depende fundamentalmente da
jurisprudência anterior e, por isso, os diplomas legais tendem a ser menos
detalhados. Contrariamente, nos sistemas de “civil law, adotados na
Europa continental e nas suas colônias, os códigos legais escritos são a
fonte primária do direito e, por isso, tendem a ser mais específicos. A
jurisprudência nesses casos desempenha um papel menos importante.

O policiamento convive com um cenário de recursos escassos que


precisam ser aplicados da maneira mais eficiente para a sociedade. Para isso, é
necessário avaliar questões como: informações conhecidas e disponíveis para
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 85

planejamento, risco e sensação de segurança para a população e potencial de


impacto, por exemplo. Imaginemos que os motoristas que tivessem cometido
alguma violação a alguma norma de trânsito nos últimos 24 meses fossem todos
eles, de repente, multados e tivessem seu automóvel apreendido. Boa parte da
frota de veículos do país ficaria subitamente imobilizada, e o impacto desta
decisão para a segurança não seria necessariamente positivo.
O mesmo ocorre quando comandos e forças policiais precisam avaliar a
extensão e potencial de impacto das suas intervenções. Um cenário no qual
todos os carros devessem ser apreendidos, por exemplo, daria lugar ao que se
conhece como “leis inexequíveis” (“unenforceable laws”). Outro exemplo é o
adultério, que era crime de acordo com o Código Penal brasileiro até 2005.
Mesmo antes dessa data, certamente teriam havido fortes e legítimas críticas
se a Polícia Civil de um estado brasileiro tivesse dedicado seus recursos e seu
pessoal a investigar adultérios e prender adúlteros ao invés de lidar com crimes
de grande potencial ofensivo, como roubos ou homicídios.
O reconhecimento de que não há recursos humanos e materiais suficientes
para que todos os delitos sejam reprimidos todo o tempo é o que gera a
necessidade de planejamento de ações com o maior número possível de
informações e ações preventivas.
Em suma, a polícia vive a contradição entre a realidade e um ideal
certamente inaplicável e provavelmente indesejável. Em palavras de Herman
Goldstein, um dos estudiosos que mais tem se dedicado a refletir sobre o tema:

“Dado que a discricionariedade policial tem sido encoberta e não


autorizada, não existe um sistema para estruturá-la e controlá-la. Por isso,
a polícia sofre realmente o pior de todos os mundos: deve exercer ampla
discricionariedade por trás de uma fachada de um desempenho
burocrático; e se espera dela um alto nível de equidade e justiça nas suas
determinações discricionárias apesar de que não lhe foram fornecidos os
meios dos quais os governos comumente dependem para atingir esses
fins.” (Goldstein, 1977: 110)
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 86

Essa contradição faz com que a polícia deva deixar de lado a aplicação
da lei em muitas situações, mas experimente ao mesmo tempo grandes
dificuldades em reconhecer publicamente que o faz, sob risco de sofrer danos
reputacionais e inclusive sanções legais, como as contidas no crime de
prevaricação.
Obviamente, a discricionariedade relativa à decisão de processar o
responsável por uma transgressão vai diminuindo de acordo com a gravidade do
crime e com as consequências negativas para a sociedade. Não seria aceitável,
por exemplo, que a polícia decidisse não proceder contra o responsável por um
homicídio, independentemente de qualquer consideração.
Mas, mesmo nos crimes graves, a polícia deverá decidir que prioridade
dará a cada um deles e, com isso, ajudará a determinar a probabilidade de
esclarecimento de cada um.
Tudo isso configura um cenário de aplicação seletiva da lei, que é ainda
mais inevitável no contexto em que se encontram a grande maioria das polícias
da América Latina e de muitos outros países no mundo, sobrecarregadas por um
alto número de denúncias que não podem ser investigadas em detalhe na sua
totalidade. Assim, se a seletividade é inevitável, a forma como ela será exercida
determinará a qualidade e equidade do serviço policial.

A discricionariedade contempla não apenas a decisão de abordar ou


não um infrator, mas o modo de fazê-lo, que pode ir de uma prisão a uma
advertência, uma mediação ou uma referência a outros serviços sociais.

Além disso, a discricionariedade não afeta só a decisão de abordar ou


processar ou não uma pessoa, mas abrange todas as áreas do trabalho policial.
Quando usar a força e com que intensidade, que níveis de vigilância sigilosa
devem ser aplicados, que tipos de pessoas devem ser paradas e revistadas e
muitas outras atuações estão impregnadas por uma ampla margem decisória.
Outro motivo da discricionariedade é o intervalo temporal de que os
policiais dispõem para tomar suas decisões. Na citação de Montesquieu no “O
Espírito das Leis” que vimos no início da Aula 1, ele afirmava que “assuntos de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 87

polícia são coisas de todos os instantes, que geralmente equivalem a pouco;


quase nenhuma formalidade é necessária”. Essa visão da polícia como sinônimo
de informalidade, ao contrário do poder judicial, prenuncia também um alto grau
de discricionariedade. Mas essa mesma citação contínua do modo seguinte:

“As ações da polícia são rápidas e a polícia [poder de polícia] é


exercida sobre coisas corriqueiras; portanto, grandes punições não são
próprias dela. Ela está perpetuamente ocupada com detalhes; portanto,
grandes exemplos não encaixam nela. Ela tem regulações ao invés de leis.”
(Montesquieu, 2000: 5.26.24.)

Assim, além de registrar que a polícia se ocupava na época de assuntos


menos importantes, em contraposição ao poder judicial, Montesquieu sublinha
também a necessidade da rapidez na atuação policial.

A polícia, diferentemente do juiz, não pode demorar em tomar


decisões, especialmente quando intervém em emergências e em situações
de risco, o que, como Bittner assinalava, constitui uma das marcas da sua
função.

Policiais do mundo todo destacam a dificuldade de decidir em décimos de


segundo, às vezes sem conhecer bem o local ou o contexto, e considerando que
essas decisões podem ter consequências graves. É justamente a possibilidade
do uso da força conferida à polícia que magnifica as consequências, positivas ou
negativas, da sua intervenção.
Em suma, em função da urgência e da multiplicidade de situações que
envolvem o trabalho da polícia, é impossível fazer com que o trabalho policial
siga exatamente as diretrizes de uma norma, porque nenhuma pode ser
suficientemente exaustiva ou específica. A lei, no melhor dos casos, poderia
prover uma justificação da atuação policial depois dos fatos. E se um policial for
questionado sobre uma ação com base em algum princípio, ele sempre poderia
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 88

responder “você tinha que estar aí” (Manning, 2013 :63). Isso leva a Skolnick, no
seu livro clássico “Justice without Trial”, a descrever

“a concepção de policial como um artesão mais do que como um


ator legal” (Skolnick, 1966: 231).

4.2 OS RISCOS DA DISCRICIONARIEDADE

Até aqui apresentamos evidências no sentido de que a discricionariedade


é inevitável e pode ser desejável na medida em que permite uma resposta
policial mais ajustada ao caso e ao contexto específico (Verhage, 2022: 88).
Porém, existe também um lado obscuro do fenômeno que não pode ser ignorado
e que apresentamos a seguir.

Em primeiro lugar:

A discricionariedade é prima irmã do casuísmo, isto é, se cada policial


decide em cada momento segundo seus próprios critérios é muito possível que
esses critérios variem de forma subjetiva e pouco criteriosa. E que dependam
das crenças, ou dos preconceitos, do agente individual, distanciando-se do
princípio de uma administração impessoal, de acordo com o artigo 37 da
Constituição Brasileira.

Em segundo lugar:

E pelos mesmos motivos apontados acima, uma ampla e irrestrita


margem de discricionariedade torna mais difícil garantir o princípio de igualdade
perante a lei. Não seria surpresa se o casuísmo acabasse provocando que
alguns grupos sociais fossem tratados de forma mais favorável e outros de forma
mais dura, ainda mais numa sociedade tão desigual quanto a brasileira (ver
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 89

Módulo IV). Esse tratamento desigual já seria um abuso em si mesmo e poderia


provocar outros.

Em terceiro lugar:

A ampla margem de decisão poderia aumentar a probabilidade de


corrupção. Se a lei é aplicada seletivamente, como de fato acontece na prática,
os funcionários corruptos poderiam exigir dinheiro para se omitir perante
determinados transgressores enquanto perseguem outros. Com efeito, nessas
situações a perseguição contra alguns aumenta o valor a ser cobrado dos outros
pela omissão institucional.

Em quarto lugar:

A discricionariedade dificulta a transparência e a prestação de contas, na


medida em que os membros de uma instituição atuam de formas diferentes em
diferentes momentos e lugares e, portanto, carecem de uma posição institucional
comum que possa ser monitorada e debatida.

Dois temas de grande relevância para a polícia que têm sido vinculados à
discricionariedade são a subcultura policial e a socialização informal, ambos
por sua vez também estreitamente relacionados entre si.

A ampla discricionariedade na tomada de decisões que não podem ser


estreitamente pautadas por normas, abre espaço para que a subcultura
organizacional, isto é o conjunto de regras e princípios informais que regem as
relações dentro de uma instituição sem que sejam escritas nem oficialmente
endossadas pela autoridade institucional, adquira grande importância na
determinação de como os policiais vão agir. Claro que todas as profissões e
instituições desenvolvem subculturas próprias, mas estas parecem ser
especialmente influentes na polícia.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 90

“Minhas observações sugerem... que as normas localizadas dentro


das organizações policiais são mais poderosas do que as decisões judiciais
na conformação do comportamento policial, e que na realidade o processo
de interação entre ambas explica em última instância como a polícia se
comporta.” (Skolnick, 1966: 219)

Alguns autores afirmam que, confrontada com a necessidade de produzir


resultados, a polícia com frequência sacrifica a legalidade em prol da eficiência
(Goldsmith, 2010: 95). A ideia que estaria por trás seria a de que não seria
possível prover segurança seguindo a lei, pois essa última atrapalharia a
consecução dos objetivos, uma ideia muito perigosa pois abre a porta para todo
tipo de abusos.

Se a cultura policial chegar ao ponto de se superpor à lei, chegaria a ser


inócuo tentar modificar o comportamento policial através de mudanças legais,
pois, se a subcultura policial for contrária às mudanças, ela encontraria formas
de impedi-las na prática.

Conectado com o ponto anterior, numerosos estudos com polícias de


diversos países relatam que o impacto da socialização formal, isto é, da
formação oficial nas academias de polícia, é muito menor do que a influência dos
pares, ou seja, do que a subcultura policial. De novo, a discricionariedade na sua
atuação profissional desempenharia um papel importante nessa predominância
da socialização informal sobre a formal.

“O que acontece tipicamente é que os policiais descobrem, depois


de ter se graduado da sua formação de recrutas e de assumir seus
primeiros cargos, que constantemente são chamados a tomar decisões;
que relativamente pouco do que lhes fora ensinado parece aplicar às
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 91

situações que enfrentam; e que com frequência não tem orientação para
decidir o que fazer numa situação dada. Eles aprendem gradualmente da
sua associação com o pessoal mais experimentado e dos seus
supervisores, que há um conjunto de “saber-fazer” no qual eles devem se
inspirar.” (Goldstein, 1977: 101).

4.3 O QUE FAZER COM A DISCRICIONARIEDADE

Frente à discricionariedade policial, há várias posições possíveis. A


primeira é a negação. De fato, a visão tradicional mantinha que não havia
discricionariedade no desempenho policial, que só começou a ser reconhecida
no início dos anos 60 (Cordner & Scott, 2014), isto é, pouco tempo atrás.
Inclusive hoje, muitos departamentos de polícia operam como se ela não
existisse.

A segunda opção é admitir que há discricionariedade, mas


considerá-la como algo essencialmente negativo que deve ser combatido e
reduzido à sua mínima expressão. Os setores que defendem essa visão
costumam destacar vários argumentos para opor-se a ela:

1 o grande poder atribuído à polícia, que inclui a possibilidade de usar a


força letal contra as pessoas;
2 a reputação que muitas polícias possuem de exceder a sua autoridade
legal;
3 o fato de essa discrição tolerada ter sido abusada no passado.

Uma terceira possibilidade é assumir a discricionariedade como natural e


não fazer nada em relação a ela, deixando de lado os riscos que possa acarretar,
que é a situação prevalecente em muitas instituições policiais.

E a quarta possibilidade é aceitar a discricionariedade, mas se


esforçar para estruturá-la e controlá-la dentro de parâmetros institucionais. Um
dos defensores dessa visão, Goldstein argumenta que, a despeito dos riscos
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 92

inerentes à discricionariedade anteriormente mencionados, a falta de


reconhecimento da natureza discricionária do trabalho policial é o que explica,
ao menos em parte, alguns dos abusos e deficiências mais comuns nas
operações policiais (Goldstein, 1977: 108). Segundo ele, a qualidade do serviço
policial depende da forma de exercício da discricionariedade.

O objetivo seria então formular princípios institucionais e protocolos de


atuação que sirvam de orientação para o policial na rua e que o protejam contra
punições arbitrárias em função do exercício da discricionariedade. Com efeito,
muitas polícias têm se dedicado nos últimos tempos à criação de protocolos
operacionais que traduzam os princípios abstratos em regras práticas que, se
não determinam nunca plenamente o que deve ser feito, oferecem, no entanto,
uma orientação mais explícita. A ideia é que uma posição institucional será
sempre mais ponderada e cuidadosa do que o casuísmo de cada agente atuando
por sua conta. Essa parametrização dos espaços de decisão deve
favorecer também a supervisão dentro da instituição e facilitar a prestação de
contas fora dela.

De qualquer forma, a discricionariedade precisa sempre, como


contrapartida, a necessidade de transparência no trabalho policial e de prestação
de contas (accountability), como forma de evitar que essa flexibilidade seja
usada de forma desigual ou em benefício do próprio policial ou de terceiros
interesses (ver Aula 1 do Módulo III).

O objetivo final é que a discricionariedade seja empregada, na medida do


possível, em função do bem comum e de forma igualitária entre os diferentes
grupos sociais.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 93

Aula 5 – Legitimidade e Trabalho Policial

5.1 O CONCEITO DE LEGITIMIDADE

A legitimidade pode ser definida como a crença de que o exercício de um


poder é justo e adequado à situação, em outras palavras, de que tal poder
deveria continuar a ser aplicado da mesma forma. Em consequência, a
legitimidade do poder não é uma descrição da sua existência, o ser, mas está
vinculada ao dever-ser. A crença sobre a legitimidade do poder procede
daqueles que se submetem a ele. Por sua vez, aqueles que detêm o poder
costumam acreditar que têm direito a ele, mas isso não lhes confere legitimidade.
Para que ela exista, é preciso que a crença seja compartilhada por aqueles sobre
os quais o poder é exercido.

A necessidade do conceito surge justamente porque um poder pode ser


real e incontestado, mas ilegítimo. Nessa situação, as pessoas se submetem por
medo ou coação, mas, se tivessem uma alternativa, se rebelariam.

Frequentemente, apresenta-se uma oposição entre os conceitos de


autoridade (autoritas), que contaria com legitimidade, e poder sem mais
(potestas), esse último carecendo dela.

A legitimidade pode ser relacionada a um regime político, a uma


pessoa, a uma norma ou a uma instituição. Um governante legítimo é
aquele que é aceito de forma espontânea pelos seus governados. Uma
norma legítima é aquela que é considerada justa por aqueles que devem
obedecê-la.

Observe-se que a presença ou ausência de legitimidade é fundamental


para o controle social. Se as pessoas aceitam as normas e os regimes políticos
como legítimos, o custo da fiscalização e do controle social será mínimo,
necessário apenas para aqueles sujeitos que são, excepcionalmente,
transgressores. Por outro lado, se os membros de uma sociedade percebem
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 94

uma norma ou uma instituição como ilegítima, a tendência a desobedecer será


frequente e o custo de fiscalização, muito elevado. Será preciso gerar ameaças
e castigos para que as pessoas sigam normas que não aceitam de bom grau.
Se para Sigmund Freud, o “superego” é a instância psíquica através da
qual o indivíduo interioriza as normas que antes vinham de fora, fazendo com
que ele as obedeça sem necessidade de vigilância ou castigo, a legitimidade
cumpre uma função semelhante no nível social. Se uma coletividade assume
uma norma como legítima, tenderá a se pautar por ela, independentemente da
vigilância ou da imposição de sanções.
O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) distingue três tipos clássicos
de legitimidade ou dominação legítima (“Legitimen Herrshaft”):

Legitimidade tradicional:

Baseada nos costumes e na tradição histórica. As pessoas obedecem


porque sempre foi assim e isso gerou a expectativa de que deveria continuar
sendo assim;

Legitimidade carismática:

Os indivíduos seguem a uma pessoa concreta pelas suas qualidades


individuais e sua influência. O que ele ou ela determinar será, então, legítimo.
Essa legitimidade é pessoal e intransferível. Profetas, senhores da guerra,
demagogos e alguns líderes políticos podem desfrutar desse tipo de
legitimidade, que não precisa de justificação externa; e

Legitimidade legal-racional:

Fundamentada na existência de leis que, por sua vez, entende-se que


seguem princípios racionais que beneficiam a coletividade. Esse é o tipo de
legitimidade em que se baseia o Estado moderno (ver Aula 1 do Módulo 2). Para
os contratualistas, que interpretam o Estado como resultado de um pacto entre
os indivíduos, esse tipo de legitimidade fica ainda mais evidente, pois os próprios
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 95

indivíduos teriam cedido originalmente o poder ao Estado para seu próprio bem-
estar. Dessa forma, ao ser eles mesmos a fonte original do poder, a legitimidade
viria de forma natural.

5.1.1 A LEGITIMIDADE COMO BASE DO TRABALHO POLICIAL: “POLICING BY


CONSENT”

Como já foi dito na seção anterior, a legitimidade diminui drasticamente o


custo de fiscalização das normas. Nesse sentido, resulta evidente que é
essencial para a polícia, que é a instituição encarregada de vigiar o cumprimento
das normas mais importantes, tipificadas penalmente, e de prender os
responsáveis por transgredi-las.

A doutrina policial britânica, inaugurada pela Polícia Metropolitana de Sir


Robert Peel em 1829, passou a ser conhecida como “policiamento por
consentimento” (policing by consent). A ideia é que a polícia só pode realizar seu
trabalho de forma satisfatória se conta com a aceitação e a cooperação da
sociedade. Contrariamente, a polícia dificilmente poderá funcionar a contento se
a comunidade a vê de forma negativa ou, pior ainda, como inimiga. A polícia
precisa ser aceita socialmente como instituição para poder desenvolver seu
trabalho.

A doutrina policial do “policing by consent” veio a ser resumida nos


chamados “9 Princípios de Policiamento de Sir Robert Peel”. Na verdade,
embora derivados das instruções gerais que recebiam os novos recrutas da
Polícia Metropolitana de Londres em 1829, não há registro histórico de que
Robert Peel tenha, ele próprio, enumerado esses princípios (Lentz et al., 2007).
Eles aparecem pela primeira vez no livro de um historiador da polícia, Charles
Reith, em meados do século XX (Reith, 1952), e têm feito um grande sucesso
até o ponto de ter sido incorporados pelo governo britânico.

Saiba mais
Acesse: https://www.gov.uk/government/publications/policing-by-
consent/definition-of-policing-by-consent

O segundo desses princípios reza da seguinte forma:


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 96

“Reconhecer sempre que o poder da polícia para cumprir as suas


funções e deveres depende da aprovação pública da sua existência, ações
e comportamento e da sua capacidade de garantir e manter o respeito
público.”

Assim, o primeiro requisito de uma polícia é que ela deve ser aceita pela
sociedade, que deve aprovar não apenas a sua existência, mas também a sua
forma de atuar. O terceiro dos princípios de Peel vai além ao afirmar que a polícia
deve procurar ativamente a “cooperação voluntária do público na tarefa de
garantir a observância das leis”, numa proposta que parece sugerir um papel de
pedagogia social para os policiais, além de uma coprodução da segurança por
parte dos cidadãos. Essa cooperação entre polícia e sociedade é mais esperável
se, como afirma o princípio 7, “a polícia é o público e o público é a polícia”,
frisando a noção de que os policiais não são senão membros da sociedade aos
quais foi encarregada uma tarefa que, no fundo, é de todos.

Uma sociedade que coopera com a polícia garante, por um lado, um


menor nível de transgressão e, por outro, quando a transgressão acontece,
significa que as pessoas colaborarão identificando os responsáveis e
apresentando provas contra eles. Em suma, a inteligência policial depende
fundamentalmente da cooperação ativa dos cidadãos.

A legitimidade da polícia pode ser decomposta em dois níveis:

1º Nível:

Em primeiro lugar, a legitimidade do próprio Estado a que ela representa.


É muito difícil que uma polícia seja vista como legítima se pertence a um poder
executivo que, em si mesmo, é percebido como ilegítimo. Isso é justamente o
que acontecia com as polícias coloniais nos séculos XIX e XX, entendidas como
órgãos de um poder externo e opressor.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 97

2º Nível:

Em segundo lugar, a polícia como instituição também precisa estabelecer


sua própria legitimidade, para além da legitimidade do Estado. E para esse
segundo nível de legitimidade a conduta dos policiais é o fator fundamental.

Em sociedades democráticas, o nível de legitimidade do Estado tende a


ser muito superior e, nessa mesma medida, o caminho para a polícia atingir
também legitimidade é muito mais claro. Em sociedades autoritárias, onde a
polícia é dedicada à proteção do regime, as chances de legitimidade institucional
são muito pequenas.

Entre os três tipos de legitimidade apresentados por Weber, a polícia


depende fundamentalmente da legitimidade legal-racional. Ocasionalmente, ela
pode também se beneficiar de algum grau de legitimidade tradicional ou
carismática, por exemplo através de um chefe de polícia muito popular, mas o
que fundamentará a sua aceitação popular de maneira geral é a sua observância
das leis.

O conceito de “polícia por consentimento” está fortemente vinculado


ao de serviço policial que vimos na Aula 4 deste módulo, na medida em que
o consentimento é muito mais provável se os cidadãos percebem que a
instituição está ao seu serviço.

Infelizmente, em muitos países da América Latina encontram-se


realidades muito distantes do paradigma de policiamento por consentimento.
Pesquisas de opinião mostram níveis de aprovação muito baixos para as polícias
latino-americanas, em geral muito inferiores aos dos exércitos. Setores
significativos da população consideram as polícias ineficazes ou pior, corruptas
e excessivamente violentas. Nas áreas marginais das grandes cidades, onde
moram os cidadãos com menos recursos, aqueles que não têm acesso a
segurança privada e dependem, portanto, em maior medida da segurança
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 98

pública, as relações com as polícias costumam ser particularmente tensas. Em


algumas zonas, a polícia é recebida com desconfiança ou inclusive hostilidade,
e os policiais devolvem esse mesmo tratamento.

Nesse sentido, a relegitimação das polícias é um desafio significativo em


muitos países da região, particularmente entre os jovens e nas populações mais
desfavorecidas. E não é só na América Latina. Reiner (1992), por exemplo,
afirma que o desafio da polícia britânica na pós-modernidade é recuperar a
legitimidade do velho “bobbie”.

5.2 JUSTIÇA PROCEDIMENTAL E LEGITIMIDADE POLICIAL

Os trabalhos de Tom Tyler (1990) têm projetado o conceito de justiça


procedimental na compreensão dos motivos que levam as pessoas a
obedecerem às leis. A ideia central é que a justiça pode ser dividida em dois
componentes: a justiça distributiva, que tem a ver com o fato de as decisões
finais serem justas; e a justiça procedimental, referida à justiça do procedimento
seguido para chegar na decisão final, qualquer uma que ela seja. O postulado
central é que se as pessoas percebem que os procedimentos através dos quais
as decisões foram tomadas foram justos, elas aceitarão o veredito mesmo que
não gostem do conteúdo. Considerando que as sentenças dificilmente agradarão
a todas as partes, é fundamental então conseguir que os procedimentos sejam
percebidos como justos e imparciais.

Esse princípio foi inicialmente pensado para a administração de justiça,


mas foi estendido também à polícia. Nesse último caso, os proponentes da teoria
argumentam que a percepção de justiça procedimental por parte das pessoas
depende do tratamento recebido por parte dos policiais.

De acordo com Tyler e Meares (2019), a avaliação que as pessoas fazem


dos contatos com a polícia depende de quatro elementos:

1 o grau em que elas percebem que tiveram uma oportunidade real de


expressar seus pontos de vista e seus argumentos, o que na literatura
se conhece com o termo de ‘voz’ (“voice”);
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 99

2 a percepção dos cidadãos de que os policiais foram imparciais e neutros,


o que também inclui a explicação por parte destes últimos dos seus
procedimentos;
3 o sentimento de ter sido tratado com respeito por parte da polícia, de
uma forma que não fira a dignidade pessoal (ver Aula 2 do Módulo III); e
4 a percepção de que os policiais têm a intenção de beneficiar as pessoas
e, portanto, de que seus motivos são louváveis.

Um grande volume de estudos tem sido desenvolvido sobre a relação


entre justiça procedimental e legitimidade policial. Uma meta-análise (ou seja,
um estudo sintético que tenta extrair conclusões de um conjunto de pesquisas
empíricas anteriores) de 56 pesquisas concluiu que existe uma correlação
positiva entre a percepção de justiça procedimental e a legitimidade policial, mas
que a direção causal dessa relação não pôde ser testada (Bolger & Walters,
2019, p. 98). Em outras palavras, não está claro em que medida a justiça
procedimental melhorou a legitimidade policial ou, pelo contrário, em que medida
uma polícia percebida como legítima tenderá se comportar de uma maneira mais
respeitosa em relação aos procedimentos. Outra meta-análise anterior
(Mazerolle et al., 2013) concluiu que o diálogo entre policiais e cidadãos é um
mecanismo relevante para estimular a satisfação dos cidadãos, a confiança na
polícia e a percepção de justiça procedimental.

Diversas avaliações de impacto de programas de treinamento de policiais


em justiça procedimental nos Estados Unidos encontraram uma redução dos
incidentes de uso da força, mas nem sempre obtiveram uma melhora na
legitimidade policial (Weisburd et al., 2022).

A grande maioria desses estudos acontece nos países do Norte, em


Estados Unidos e na Europa. A minoria de estudos em países do Sul Global, ou
seja, países em desenvolvimento, nem sempre encontra resultados
convergentes. Na Turquia, por exemplo, a utilização de protocolos de justiça
procedimental para os policiais de trânsito conseguiu melhorar a percepção dos
condutores em relação ao agente que parava seu carro, mas não em relação à
polícia em geral (Sahin et al., 2017). Em Gana, a percepção da justiça
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 100

procedimental não estava correlacionada com a disposição das pessoas a


cumprir com as leis de trânsito (Tankebe et. al, 2019).

De fato, a grande promessa dessa teoria era justamente que a percepção


da justiça procedimental nas interações com a polícia levaria os cidadãos não
apenas a melhorar a legitimidade policial, mas sobretudo a colaborar com a
polícia e a cumprir as leis.

Na Prática
Esse vínculo está longe de ser comprovado empiricamente,
especialmente em países do Sul global com baixos níveis de
legitimidade do Estado e uma forte percepção de corrupção policial.

Podem os grupos criminosos atingir legitimidade?

Vamos Refletir
Até aqui, falamos de legitimidade das leis e das instituições, isto é, de uma
legitimidade legal. Mas é possível que pessoas ou grupos contrários à
legalidade atinjam legitimidade? A resposta é que, a princípio, grupos
criminosos podem receber legitimidade da mesma forma que o Estado.

Em determinadas áreas de países como México, Colômbia ou Brasil é


possível encontrar grupos criminosos que são apoiados por uma parte dos
habitantes das comunidades onde moram. Isso se origina não apenas porque
eles geram renda através das atividades ilegais, mas porque em alguns casos
esses grupos desenvolvem atividades assistenciais para beneficiar a população
(compra de medicamentos ou alimentos, organização de festas etc.), em função
da omissão do próprio Estado que abandona muitos dos seus cidadãos à própria
sorte. É muito comum que tais grupos adotem uma estratégia dupla, fazendo uso
da coação e da violência contra indivíduos que não obedecem a suas ordens e,
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 101

ao mesmo tempo, da assistência às pessoas como mecanismo para ganhar


legitimidade.

Obviamente, existe uma correlação negativa entre a legitimidade de


grupos criminosos e a da polícia, de maneira que a legitimidade dos primeiros
pode ser considerada tanto causa quando consequência da crise de legitimidade
da instituição policial. Quando os grupos criminosos recebem algum tipo de
legitimidade, a tarefa da polícia se torna muito mais difícil. Nesses cenários, a
repressão policial contra esses grupos não diminui necessariamente a sua
legitimidade, pois ela depende de fatores estruturais mais profundos, como a
omissão do Estado, que estão muito além do alcance da polícia. Mesmo assim,
um dos objetivos prioritários dela deve ser incrementar progressivamente a
própria legitimidade e contribuir para criar condições para a redução da
legitimidade dos grupos criminosos.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 102

Finalizando....

Neste módulo você aprendeu:

✓ Nesse módulo, começamos por apresentar as origens históricas da


polícia desde a época clássica até os nossos dias. Se o conceito de polícia
começou sendo sinônimo de governança das cidades num sentido muito
amplo, o surgimento da polícia moderna foi resultado de um processo de
profissionalização, incorporação pelo Estado e especialização de
funções. A polícia perdeu todas as funções legislativas, judiciais e
sancionadoras, e ficou encarregada do cumprimento da lei e da
manutenção da ordem. A criação da polícia como instituição separada dos
exércitos sinaliza, por um lado, a diferenciação entre segurança interna e
externa e, por outro, a necessidade de não tratar como inimigos os
cidadãos do próprio país, mesmo aqueles que tenham transgredido as
leis. De acordo com Egon Bittner, a instituição policial se diferencia de
outras instituições do Estado por duas características centrais: o uso
potencial da força e o emprego em emergências. Na prática, os policiais
acabam desenvolvendo diversas funções, inclusive assistenciais, para
além da missão de fazer cumprir a lei e manter a paz social, mas se
ressentem de ter que desempenhar essas outras tarefas, o que faz com
que muitos deles questionem sua identidade profissional.
✓ De forma geral, há dois paradigmas gerais de polícia: uma polícia que tem
como missão a preservação do poder político, inspirada na polícia
francesa criada no século XVII, e uma polícia que pretende proteger os
cidadãos, de acordo com o modelo pioneiro da Polícia Metropolitana de
Londres fundada em 1829. Todas as polícias do mundo contêm em si
mesmas uma parte do modelo francês e outra do modelo inglês. Isso se
aplica também às polícias democráticas, que também precisam combater
os crimes políticos. Mas estas últimas dão prioridade à proteção dos
cidadãos sobre a preservação do Estado. Embora algo idealizada, a
polícia londrina do século XIX representa até hoje um modelo para as
polícias democráticas no mundo.
✓ Dentro do modelo de polícia para proteger a cidadania, há também duas
opções: enfatizar o combate ao crime ou privilegiar a proteção das
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 103

pessoas. Ambos os extremos podem ser caracterizados pelos conceitos


de “policial guerreiro”, que coloca a luta contra os criminosos como
prioridade central, e “policial guardião”, que favorece a proteção e a
prevenção sobre a repressão aos criminosos. Obviamente, a militarização
da segurança pública tende a favorecer o policial guerreiro.
✓ Mesmo que ambos os aspectos sejam naturalmente complementários, a
ênfase em um ou outro revela muito sobre a doutrina policial. Outro
binômio muito relacionado com o anterior é a contraposição entre uma
visão de polícia como serviço, comum nos nomes das polícias em países
anglo-saxões, e uma polícia percebida como controle da sociedade.
✓ Uma das características centrais do trabalho policial é a
discricionariedade, isto é, a necessidade de decidir o que fazer em
contextos concretos sem que essa decisão esteja plenamente pautada
por normas ou protocolos. Na prática, é impossível que uma norma possa
prever todas as situações que podem surgir no dia a dia do trabalho
policial. Além da multiplicidade dos contextos, a necessidade de
contrabalançar direitos diversos e de agir com rapidez em emergências
tornam a discricionariedade inevitável. Não serve de nada negá-la, mas é
importante que ela seja pautada por normas e protocolos institucionais
para evitar os riscos do casuísmo, da inequidade no trato de pessoas com
diferentes perfis sociais e da corrupção.
✓ A última aula foi dedicada ao conceito de legitimidade, que equivale a
aceitação de um poder como justo por parte daqueles que se submetem
a ele. Para Weber, a legitimidade pode se originar na tradição, no carisma
ou num conjunto de leis, e essa última é fundamental para alavancar a
legitimidade policial num regime democrático. A legitimidade é essencial
para que a polícia possa desenvolver o seu trabalho, recebendo apoio e
informação da população a quem deve proteger. Esse é o cerne do
conceito “policiamento por consentimento” que inspirou a polícia britânica
até hoje. O conceito de “justiça procedimental” está relacionado não ao
conteúdo das decisões, mas ao modo como são tomadas. No caso das
polícias, a avaliação que o cidadão faz dos seus encontros com a polícia
depende de se ele se sentiu ouvido, respeitado e tratado de forma
imparcial.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 104

✓ Com essas bases históricas e conceituais, esperamos ter desenhado um


cenário sobre o papel da polícia numa sociedade democrática, como um
ator central que não só vigia o cumprimento das normas acordadas entre
todos, mas que também pode promover harmonia e coesão social.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 105

MÓDULO 3 - POLÍCIA E A ESFERA DA POLÍTICA

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Como vimos no Módulo 1, existe uma distância entre as leis que


organizam formalmente os sistemas políticos democráticos e as normas
informais que orientam as práticas sociais numa democracia. Entretanto,
podemos afirmar que todos os regimes políticos que um dia já foram praticados
possuem essa mesma característica. Em grande parte, essa dissociação deriva
da relação entre os sistemas políticos e as estruturas de poder da sociedade e
aumenta proporcionalmente ao incremento das desigualdades. No exercício de
sua missão, os profissionais de segurança pública ocupam esse lugar em que a
lei encontra suas condições materiais de aplicação. Um lugar conflituoso, mas
crítico para a defesa da democracia como princípio e experiência viva. Pesquisas
mostram que as condições de (in)segurança impactam os níveis de
desigualdade, afetando diferencialmente as condições materiais dos sujeitos e o
pleno exercício de direitos.

Por conta dessas características, nos focaremos na relação dos


profissionais de segurança pública com a esfera política. Apresentaremos o
conceito de “política”, por um lado, enquanto capacidade de influenciar a
distribuição de poder na sociedade e, por outro, como direito de associação e
participação na construção das políticas públicas por parte dos “trabalhadores
da segurança pública”. Trataremos as dimensões políticas do seu trabalho como
um tipo de tensão permanente entre a necessidade de controle e o perigo de
instrumentalização pela classe política, um risco inerente ao funcionamento das
democracias e seus ciclos eleitorais. Nesse mesmo diapasão, introduziremos o
tema da governança de polícia como uma forma de controle político.
Finalizaremos colocando uma discussão sobre a importância das condições de
trabalho dos profissionais de segurança pública. Entendemos que a democracia
deve ser promovida a partir de instituições democráticas em seu cotidiano de
trabalho e na relação com a sociedade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 106

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem por objetivos:

● Desenvolver uma compreensão mais aprofundada da relação


entre a polícia e o que chamamos de esfera da política,
desconstruindo falsas dicotomias que podem ameaçar a
democracia;

● Discutir os aspectos políticos do trabalho da polícia a partir do seu


lugar na ordem do Estado e da sua relação com a estrutura das
desigualdades; e

● Apresentar a perspectiva do/a policial como um trabalhador da


segurança pública, os dilemas e possibilidades dos modelos de
organização existentes, reforçando a ideia de que apenas
organizações que vivem uma democracia na prática podem
reforçá-la na relação com a sociedade.

ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 – Dilemas do governo político das polícias;

Aula 2 – Polícia política e a política da polícia;

Aula 3 – Polícia e a Reconstituição da esfera da Política; e

Aula 4 – Polícia e (re)constituição da esfera política.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 107

Aula 1 - DILEMAS DO GOVERNO POLÍTICO DAS POLÍCIAS

Você já deve ter ouvido a frase “segurança pública deve ser uma política
de Estado, não de Governo”. Você mesmo já deve ter recorrido a essa expressão
algumas vezes. Em especial, naqueles momentos em que testemunhamos um
bom trabalho ser interrompido por esse tipo de interferência que chamamos de
“política”, esse é um pensamento que pode vir à tona.

A frase mobiliza concepções diferentes de “política” para reclamar uma


importante continuidade das políticas de segurança pública, buscando um certo
nível de blindagem contra a esfera da política a partir da associação com a ideia
de “Estado” e o caráter mais estável do funcionamento dos sistemas políticos.
Ela mobiliza de forma bastante concreta, a partir do dia a dia dos/as profissionais
de segurança pública, algumas das problemáticas de fundo para as reflexões
que nos propomos a fazer aqui. Em especial, a importância da distinção entre o
governo político das polícias e a sua instrumentalização político-partidária.

Parafraseando o historiador e estadista francês François Pierre


Guillaume Guizot (1787 - 1874), que lutou contra as tentativas de usurpação do
poder legislativo pelo rei Charles X após a segunda Revolução Francesa de
1930,

“quando a política penetra no recinto dos Tribunais, a Justiça se


retira por alguma porta”.

É a mais pura verdade que a interferência política sobre o sistema de


justiça e segurança é um perigo para a democracia. Mas como podemos evitar
essa interferência nefasta? A ironia, para efeitos da nossa discussão, é que a
própria política, ou seja, o funcionamento democrático da esfera política, é a
única que pode impedir o uso politicamente enviesado dos serviços policiais e
do Estado.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 108

Como vimos nos módulos anteriores, o Estado corresponde ao conjunto


do sistema político, incluindo aí o Governo, que se refere à condução política
das funções executivas do Estado. Em uma democracia, a polícia presta contas
ao Governo. Isso porque o Governo é eleito pelo povo e é nessa legitimidade
que deve executar as suas funções de coordenação política dos vários órgãos
constitucionalmente autorizados ao exercício do poder. Nesse sentido, o
descontentamento refletido na expressão que abre a nossa aula sobre a ameaça
constante de descontinuidade associada à interferência do Governo, não é
totalmente infundado. Entretanto, a dissociação política que ela sugere é
perigosa para a democracia. Se uma polícia instrumentalizada politicamente pelo
Governo pode ser ruim, a sua emancipação da esfera da política é ainda mais
preocupante.

Enxergar a diferença entre uma coisa e outra, como veremos a seguir,


implica uma ampliação da nossa visão sobre a relação da polícia com a esfera
da política e encarna a própria distinção entre tirania e democracia.

1.1 ENTRE O CONTROLE E A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA

Vamos Refletir
Você concorda que a atuação dos órgãos de segurança, enquanto burocracias
de Estado, deve ser neutra e não promover ideologias de partidos e nem
diferenciações de tratamento entre pessoas baseadas em sua raça, gênero,
orientação sexual, religião ou classe social?

Esse caráter de neutralidade, ou melhor, de justiça procedimental (ver


Aula 5 do Módulo I) deve nortear a ação do Estado de uma maneira geral e é
garantido por meio da submissão de seus órgãos a uma série de controles
democráticos associados a esfera política. Mas o que estamos chamando aqui
de “esfera da política”? Por que falamos em “controle político” das polícias?
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 109

Discutiremos algumas definições consagradas de “política” no início da


segunda aula desse Módulo. O que chamamos aqui de “esfera da política”
abrange tanto os espaços institucionais em que o poder é disputado na
sociedade (ex. política eleitoral, associações e sindicatos, mídia) quanto a esfera
pública de uma maneira geral. Nesse sentido, os “controles políticos” das polícias
seriam as formas institucionais (ex. o Executivo, as corregedorias e comissões
legislativas) e processos sociais de natureza política (ex. formação de opinião,
construção das políticas de governo, manifestações populares) pelos quais são
estabelecidos os limites e prioridades para a ação dessas organizações. Como
vimos na seção anterior, esse espaço de construção do Governo é constrangido,
em última instância, pelo parâmetro da legalidade em um Estado Democrático
de Direito.

Tendemos a abordar a discussão sobre controle das organizações


policiais de maneira bastante limitada, focada em formas institucionais
especializadas, como as Corregedorias. Falaremos melhor sobre o
funcionamento dessas estruturas mais à frente. Por hora, é importante conveniar
a ideia de que os controles políticos sobre as polícias (sobre a operação do
Estado, de uma maneira geral) são instrumentos de governo que buscam
garantir que o interesse público esteja sempre no centro de suas ações.

Figura 4

Fonte: Revide.

A diferenciação entre "interesse público" e "interesse privado" é


fundamental para a teoria política e o Direito e tem sido discutida por vários
autores, que adotam perspectivas diversas. Para Rousseau, o interesse
público está ligado ao bem-estar coletivo da sociedade e pode conflitar com
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 110

os interesses privados, que corresponderiam aos desejos egoístas e


individuais. Adam Smith, por sua vez, em "A Riqueza das Nações",
argumenta que, por meio da busca do interesse próprio, os indivíduos
contribuem para o interesse público ou geral. John Rawls, quando fala do
princípio da "justiça como equidade" (2003), considera o interesse público
como aquele que promove a igualdade de oportunidades e melhora a
posição dos menos privilegiados. Robert Dahl, por sua vez, em O “Mito do
Mandato Presidencial” (1991), fala que o interesse público não pode ser
imediatamente associado ao exercício do Governo, mas que é um conceito
contestável, resultado de um processo de negociação e competição entre
grupos com capacidades diferenciais de incluir seus próprios interesses na
agenda governamental em sociedades democráticas.

Michel Foucault em a Microfísica do Poder (1979) afirma que o “governo”


é a correta disposição de coisas e pessoas com vistas a produção de um objetivo
adequado dentro de uma finalidade específica. Para Foucault, existem diversos
espaços em que o governo é exercido na sociedade, numa empresa, na família,
numa congregação religiosa, onde quer que se pretenda maximizar uma
finalidade de maneira explícita. Para o autor, o governo político da sociedade é
prerrogativa do Estado e a polícia constitui o seu principal instrumento.

Com base no que já aprendemos nos módulos anteriores, podemos dizer


que a finalidade específica do Governo em um Estado Democrático de Direito é
a submissão da sociedade e do próprio Estado ao “império da lei”, que por sua
vez permitirá atingir objetivos socialmente consensuais. Nesse sentido, a
questão que se coloca para essa aula é como governar a polícia de modo a
materializar essa finalidade.

1.2 ENTRE A GOVERNANÇA DE POLÍCIA E A GOVERNANÇA POLICIAL

Em seu livro Governing the Police, David Bayley e Philip C. Stenning


(2017) falam sobre os limites e possibilidades do exercício da governança
democrática sobre as polícias e afirmam que as democracias enfrentam um
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 111

dilema fundamental nesse sentido. Os autores se perguntam, como podem os


representantes eleitos democraticamente governar a polícia para que ela aja
segundo o interesse público, evitando a tentação de usá-la para avançar seus
próprios interesses político-partidários. Para responder a essa questão, os
autores realizaram uma instigante análise focada em observar o cotidiano da
relação entre políticos e comandantes operacionais da polícia em seis
democracias do mundo anglo-saxão (Austrália, Grã-Bretanha, Canadá, Índia,
Nova Zelândia e Estados Unidos). O objetivo da pesquisa foi compreender os
fatores que contribuem para que, no exercício de seus respectivos papéis, a
relação entre esses atores produza condições de governança focada na
realização do interesse público.

Os resultados são instigantes e merecem ser conhecidos pelo seu valor


comparado. Entretanto, devido a associação direta entre o formato dos sistemas
de governança das polícias e os tipos de sistemas legais vigentes nos países, a
comparação deve ser sempre cuidadosa. Por exemplo, na Grã-Bretanha os
autores identificaram uma mudança relevante no sistema de nomeação dos
chefes de polícia local, que passaram a ser eleitos pela comunidade e não mais
indicados pelo Executivo. Lembramos que o sistema legal vigente na Grã-
Bretanha é a “common law” ou “lei comum”, em que a eleição para cargos do
sistema judiciário é comum. Para os autores, essa mudança representou uma
exposição positiva da polícia ao controle social, reforçando ideais de
consentimento e legitimidade. No entanto, a medida também enredou os
comissariados de polícia dos condados diretamente nos jogos de poder e
alianças que caracterizam a vida política em nível local. Resultados como esse
levaram os autores a concluírem que essa ambiguidade é inerente ao governo
democrático da polícia e que um equilíbrio deve sempre ser buscado. O trabalho
de Bayley e Stenning mostra também a importância das pesquisas sobre esse
tema para que possamos conhecer esses desafios e contorná-los.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 112

Saiba mais
Nos sistemas de “common law”, vigentes nos países anglo-saxões e
nas suas colônias, a aplicação da lei depende fundamentalmente da
jurisprudência anterior e, por isso, os diplomas legais tendem a ser menos
detalhados. Contrariamente, nos sistemas de “civil law, adotados na
Europa continental e nas suas colônias, os códigos legais escritos são a
fonte primária do direito e, por isso, tendem a ser mais específicos. A
jurisprudência nesses casos desempenha um papel menos importante.

Proença Júnior, Muniz e Poncioni (2009) publicaram os resultados de uma


exaustiva revisão da bibliografia nacional e internacional sobre governança em
seu artigo com o instigante título “Da governança de Polícia à Governança
Policial: controlar para saber; saber para governar”. Nesse trabalho, os autores
propõem uma distinção entre “governança de polícia” e “governança policial”.

A governança da polícia:

corresponderia à institucionalidade dos mecanismos executivos que


asseguram a aderência da polícia à democracia e as leis de um país. Ela resulta
de uma composição entre as metas e métodos estabelecidos pelo Governo, as
predileções, prioridades e problemas da comunidade de cidadãos que concede
o mandato policial (autorização pública) e as demandas das próprias agências
policiais. Estas últimas são colocadas a partir do campo da governança policial.

A governança policial:

constitui a medida de autonomia decisória concedida às polícias para gerir


as suas próprias organizações com base em seu saber profissional específico.

A governança de polícia não se confunde, mas contém e subordina a


governança policial. Entretanto, pretensões de controle total das polícias
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 113

estariam fadadas ao insucesso, pois tenderiam a produzir uma burocratização


excessiva das organizações e a estimular o imobilismo, prejudicando, em última
instância, a própria finalidade de promover a “democracia como anterioridade,
contexto e ambição” da ação policial (PROENÇA JÚNIOR; MUNIZ; PONCIONI,
2009, p. 32). A questão, mais uma vez, é a busca de um equilíbrio, de uma
proporção ideal entre autonomia e controle político. Como apontado por Bayley
e Stenning, a solução encontrada pelos autores está na busca das condições
ideais de operação da governança policial, ou seja, da execução cotidiana de
seu mandato. Para Proença Júnior, Muniz e Poncioni, a governança de polícia e
a governança policial compartilham a tarefa de estabelecer as prioridades e a
forma de utilização dos recursos para o policiamento. O entendimento sobre a
importância dessa relação está colocado no próprio subtítulo do trabalho
“controlar para saber; saber para governar”. Se para o trabalho de Bayley e
Stenning aparece a metáfora de um gradiente, no caso de Proença Júnior, Muniz
e Poncioni vemos emergir um ciclo virtuoso entre conhecimento e controle.
Com base nas referências trazidas ao texto, gostaríamos de concluir a
presente seção destacando três pontos que nos auxiliam a lidar com o dilema
que colocamos entre o governo político das polícias e a sua instrumentalização
político-partidária.

1º ponto:

Em primeiro lugar, chamamos a atenção para o caráter inescapável desse


dilema. Como vimos, mesmo alternativas que colocam a polícia sobre intenso
controle social apresentam reveses e um equilíbrio entre autonomia e controle
deve ser buscado.

2º ponto:

Em segundo lugar, destacamos a relação entre a procura pelo


conhecimento e as formas de controle político das organizações policiais. Nesse
quesito, a abertura das organizações à realização de pesquisas empíricas,
sejam conduzidas por seus próprios agentes ou por atores externos, é
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 114

fundamental, assim como o diálogo constante com a esfera da governança


policial, ou seja, com as exigências práticas da execução do mandato.

3º ponto:

Um terceiro ponto colocado pelos autores e que toca especialmente o


tema de que tratamos é a importância de uma arquitetura institucional que
consiga traduzir as crescentes complexidades das funções de segurança pública
e que faculte uma supervisão equilibrada da aplicação dos recursos policiais e o
monitoramento de seus resultados. O Sistema Único de Segurança Pública
(Susp) é uma tentativa nesse sentido.

Por fim, esperamos ter conseguido esclarecer o tema da interferência dita


“política” de Governos sobre a segurança pública. Na verdade, o que expõe as
organizações a estas interferências é a falta de regras claras e de disposição
para governar a polícia de forma equilibrada e informada, a partir de estruturas
e processos institucionais de governança que devem ser construídos de forma
pactuada.

1.3 CONTROLE SOCIAL E ACCOUNTABILITY

Como esperamos que tenha ficado claro a partir da discussão da seção


anterior, a relação entre conhecimento e controle é central para o governo da
polícia, assim como a existência de uma arquitetura organizacional abrangente,
que articule as diversas instâncias de controle político das organizações
policiais. Conheceremos melhor as estruturas institucionais previstas pelo
Sistema Único de Segurança Pública para esse propósito no módulo 4, que vai
tratar do histórico, funcionamento e arquitetura do SUSP. Elas incluem
conselhos, comissões e sistemas de informação que formam a governança do
sistema. Na presente seção, vamos tratar de três mecanismos importantes para
a viabilização da governança de polícia: a participação e controle social, a
articulação entre as formas de controle externo e interno, e a discussão sobre a
relação entre inteligência organizacional e accountability.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 115

1.4 CONTROLE SOCIAL E ACCOUNTABILITY

Definir participação social implica entender as múltiplas ações que


diferentes forças sociais desenvolvem com o objetivo de influenciar a formação,
execução, fiscalização e avaliação de políticas públicas. A participação da
sociedade na gestão de políticas e programas públicos é chamada de controle
social. O paradigma da participação social nas democracias advém de duas
importantes constatações. A primeira é que o Estado não possui todas as
respostas para o caráter multifacetado dos problemas que afetam sociedades de
escala e complexidade crescentes. Nesse sentido é que afirmamos, por
exemplo, que as políticas públicas devam estar baseadas em diagnósticos
detalhados dos contextos e valores sociais de seus potenciais beneficiários e
beneficiárias. Para que isso aconteça, a participação da população é condição
sine qua non. Em segundo lugar, o nível de participação em uma determinada
política pública é fundamental para a adesão social necessária à sua
implementação e à consecução de seus objetivos.

Figura 5

Fonte: Departamento de Polícia da Cidade de Lovejoy, Georgia - E.U.A.

Projetos de policiamento comunitário são um bom exemplo de


iniciativas que sofrem com a descontinuidade nas políticas de segurança
pública, principalmente em vizinhanças marcadas pela desconfiança em
relação ao Estado e seus agentes. Nesses lugares, um período prolongado
de cooperação positiva entre as forças policiais e a comunidade é
fundamental para a (re)construção das bases de legitimidade de suas
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 116

ações. Esses projetos encontram-se inseridos no conjunto das políticas de


governo e sua continuidade depende de uma série de fatores internos e
externos, incluindo a própria prerrogativa do governo de encerrar as suas
atividades. A proximidade com a comunidade constitui uma importante
ferramenta de governança das polícias na democracia. Entretanto, como
buscamos mostrar em nossa aula, toda a forma de governo guarda o risco
prático da instrumentalização política. No caso do policiamento
comunitário, pesquisas mostram que esse risco advém de grupos locais
que concentram poder econômico e que tentam definir as prioridades do
policiamento de forma não-representativa das demandas da comunidade
como um todo (ver Muniz et al, 1997; Skogan, 2004). Lidar com esse tipo
de risco implica que as polícias busquem alternativas para contornar esses
desequilíbrios, criando oportunidades iguais de participação social para
ouvir as demandas da população de forma ampla.

Na segurança pública, o princípio democrático segundo o qual todos os


que são atingidos por medidas sociais e políticas devem participar de seu
processo decisório acumulou avanços importantes no século XXI, com a
revolução digital e o avanço da política de Dados Governamentais Abertos (do
Inglês Open Government Data - OGD; ver box informativo). Entretanto, ainda é
bastante limitado pelos argumentos da técnica e do segredo. A técnica blinda as
organizações policiais em relação à participação social com base na tese de que
apenas policiais tem conhecimento para discutir a polícia. A polícia é um órgão
público e o público, seja ele leigo ou especializado, tem o direito de ter sua
perspectiva considerada. O argumento do segredo afirma que o
compartilhamento de informações sobre o funcionamento das polícias pode
comprometer a segurança da população e a integridade de suas operações.

De fato, existem informações que circulam nos ambientes de trabalho da


polícia que são altamente sensíveis e condições de acesso devem ser
estabelecidas. Entretanto, o segredo não deve ser a regra geral, mas a exceção
em uma democracia. Além disso, muito embora seja óbvio que certos assuntos
exijam a perspectiva específica dos policiais para serem encaminhados, como
opções mais adequadas de calibres policiais ou de viaturas para manobras de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 117

direção defensiva, ainda assim, a decisão de como utilizá-los permanece sendo


política, ou seja, sujeita ao escrutínio da sociedade.

1.5 RELAÇÃO ENTRE CONTROLE EXTERNO E CONTROLE INTERNO

O primeiro grau de controle em qualquer sistema de responsabilização


policial são os mecanismos de controle interno das polícias. Tais
mecanismos possuem três componentes principais:

1 padrões profissionais e de integridade,

2 supervisão e monitoramento contínuos e

3 relatórios internos e mecanismos disciplinares (DCAF, 2015).

Todas as ações policiais devem estar fundamentadas na lei. No entanto,


as definições legais podem ser insuficientes quando se trata do exercício diário
dos poderes da polícia (ver Aula 3 do Módulo 2). É imperativo, portanto, que esta
desenvolva padrões profissionais abrangentes (códigos de conduta), fornecendo
orientações claras sobre o exercício prático dos deveres e poderes dos agentes.
A supervisão e monitoramento contínuos visam verificar a conformidade dessas
práticas quotidianas de policiamento com a lei, as políticas e os padrões de
integridade, detectar comportamentos ilegais e/ou antiéticos, mas principalmente
a melhora geral do serviço e da eficácia da instituição (ICRC, 2013, p. 140). O
mesmo se aplica à prática de produção de relatórios internos e aos mecanismos
disciplinares formais, como as corregedorias.

Entretanto, outro componente central dos sistemas de responsabilização


e governança da polícia em uma democracia são os mecanismos independentes
para tratar tanto denúncias internas de irregularidades e abusos de poder como
as queixas públicas contra a polícia de uma forma imparcial. Chamamos essa
dimensão de mecanismos de controle externo das polícias. Existe uma
variedade de estruturas e processos que conformam essa esfera de
responsabilização e governança das organizações, na estrutura do Judiciário, do
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 118

Executivo e do Legislativo, como as comissões de inquérito, as ouvidorias de


polícia, os termos de ajuste de condutas, dentre outros. A articulação entre os
mecanismos de controle interno e externo das polícias é essencial para a
construção de um sistema de responsabilização e governança policial funcional,
tanto numa perspectiva preventiva quanto reativa.

1.6 INTELIGÊNCIA ORGANIZACIONAL E ACCOUNTABILITY

Segundo Couto e Macedo-Soares (2004), a “inteligência organizacional”


seria a capacidade coletiva de uma organização para identificar situações que
justifiquem iniciativas de aperfeiçoamento e de conceber, projetar, implementar
e operar os sistemas aperfeiçoados para propiciar a utilização ótima de recursos
intelectuais, materiais e financeiros da própria organização. Organizações
inteligentes sabem lidar com as informações produzidas pelo seu
funcionamento, transformando o registro meramente burocrático de tarefas em
insumos de conhecimento a partir da sua catalogação e análise. Muitas vezes,
as organizações não dispõem dessa capacidade instalada e podem contar com
o apoio de instituições externas para a sua consecução.

Figura 6

Fonte: https://digital.gov/2021/10/08/census-led-prize-challenge-incentivizes-using-
open-data-for-good/

O “Open Data for Good Grant Challenge” foi uma experiência de


Dados Governamentais Abertos (do Inglês Open Government Data - OGD)
lançada pelo Governo dos Estados Unidos em 2021 para estimular o uso
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 119

de dados públicos no desenvolvimento de aplicações que resolvessem


problemas relevantes para os cidadãos americanos. O avanço da
digitalização no setor público conduziu à produção de grandes quantidades
de dados, tornando o Estado um dos principais produtores de dados
processáveis na economia digital. Nesse contexto, parcerias com centros
de pesquisa e a iniciativa privada são comuns e se mostram estratégicas
na busca por alternativas para o incremento da capacidade de
planejamento e execução das organizações públicas. Ao aderir à política
de Dados Governamentais Abertos, as instituições públicas tornam-se mais
transparentes e responsáveis perante os cidadãos. Ao incentivar a sua
utilização, reutilização e distribuição gratuita, os governos promovem
soluções de políticas públicas inovadoras e centradas nos cidadãos.

A ideia de accountability está diretamente associada às boas práticas de


governança democrática no setor público. Esta é formada por dois componentes
principais: “prestação de contas”, que é o fornecimento de informações, e
“responsabilização”, por meio da qual é feito um julgamento sobre a adequação
do comportamento, com base nesta e em outras informações.

Em português, a palavra, que é de origem Inglesa, é comumente


substituída por termos como “dever de transparência e prestação de
contas”.

A possibilidade de responsabilização do Governo significa que os


funcionários públicos – eleitos e não-eleitos – têm a obrigação de explicar as
suas decisões e ações aos cidadãos. Entretanto, para que o Governo seja
passível de responsabilização, este precisa adotar uma política de dados
transparente e práticas de prestação de contas regulares à sociedade. Em última
instância, a organização precisa manter padrões de registro, sistematização e
difusão das informações produzidas pelo seu funcionamento (relatórios, boletins,
fichas), de modo que estas formem conjuntos de dados processáveis e
publicáveis.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 120

AULA 2 – POLÍCIA POLÍTICA E A POLÍTICA DA POLÍCIA

2.1 Polícia e Política

Na presente aula, discutiremos a relação da polícia com a esfera da


política a partir da caracterização do seu lugar estrutural na organização do
Estado e da ordem social. Para explorar esse tema, iniciaremos nossa discussão
pela definição do sociólogo Max Weber. Segundo Weber, a política se
caracteriza como um meio de exercer influência sobre a distribuição,
manutenção ou transferência do poder em uma determinada associação política
(WEBER, 2011).

“Todo homem, que se entrega à política, aspira ao poder — seja


porque o considere como instrumento a serviço da consecução de outros
fins, ideais ou egoístas, seja porque deseje o poder “pelo poder”, para gozar
do sentimento de prestígio que ele confere.” (WEBER, 2011, p. 26).

A partir dessa definição de política, passaremos agora a tratar das


diversas maneiras por meio das quais o trabalho da polícia é influenciado e
influencia a distribuição de poder na sociedade por meio de pesquisas que
mostram como as condições de insegurança interferem no acesso a bens e
serviços, como educação e saúde, atingindo os grupos sociais de forma
diferenciada. É nesse sentido que entendemos que a atuação da polícia possui
um impacto político importante, em termos “weberianos”.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 121

Figura 7

Fonte: https://www.imdb.com/title/tt2137321/

O documentário “The Dorp: 40 days of our lives” (2009), dirigido pelo


cineasta sul-africano Max Fabian Meis, retrata a dimensão geracional da
filiação às diversas gangues juvenis que operam na região dos Cape Flats,
na Cidade do Cabo, e coloca com clareza gráfica os efeitos da violência
armada na vida de uma comunidade. O termo “dorp”, em Africâner, significa
uma pequena cidade, ou vila. O documentário acompanha quatro
personagens que representam quatro gerações (infância, juventude, idade
adulta e terceira idade) em caminhadas pelo seu bairro para explorar suas
diferentes visões sobre o lugar e os graves problemas sociais que o afetam.
Todos os personagens almejam um futuro melhor, mas parecem presos
num círculo de pobreza e violência difícil de ser rompido.

Comecemos nossa discussão pelas formas através das quais a política


de segurança pública é afetada pelas relações de poder na sociedade
considerando recortes de raça, gênero, classe social, capacidade física, local de
residência, orientação sexual dentre outros. Quando analisamos o perfil das
áreas mais afetadas pela violência e a insegurança em termos de sua população
residente, características urbanísticas e de habitação podemos observar certos
padrões de concentração. Esses padrões são indicativos de fatores estruturais
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 122

que operam sobre aqueles espaços de modo a torná-lo mais suscetíveis à


violência e suas consequências.

Atualmente, o entendimento de como esses diferentes pertencimentos


afetam à exposição à violência tem sido profundamente influenciado pelo que
ficou conhecido como “teoria da interseccionalidade” (ver Crenshaw, 2017;
Collins & Bilge, 2020).

Saiba mais
A teoria da interseccionalidade se concentra na análise das
interconexões entre diferentes formas de opressão, discriminação e
desigualdade a que indivíduos ou grupos podem estar submetidos e que
operam simultaneamente no sentido de aumentar ou reduzir a
probabilidade destes figurarem como autores ou vítimas de violência.

Por exemplo, no Brasil, as maiores vítimas e autores em casos de


violência armada são do sexo masculino. Os homens, entretanto, não estão
igualmente expostos a esse tipo de violência. Homens negros, jovens e
periféricos estão estatisticamente mais expostos à violência armada (ver Costa
& Lima, 2017). Nesse caso, além do sexo, a raça, a faixa etária e o local de
residência dos sujeitos operam de forma articulada para construir uma situação
de exposição diferencial à violência. A interseccionalidade explora como estas
diferentes desvantagens se acumulam, operam de forma articulada na vivência
social, comunitária e familiar dos sujeitos e como seus efeitos se sobrepõem
para configurar uma situação de desigualdade e desempoderamento estrutural.
Medeiros (2019), afirma que essa reflexão é importante de ser incorporada às
políticas públicas para que estas não reproduzam cegamente as situações de
desigualdade e recomenda algumas medidas:

1 Foco no espaço e nos modos de vida que nele se desenvolvem


para entender como as múltiplas desvantagens operam sobre os
sujeitos;
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 123

2 Adoção de uma perspectiva crítica sobre o modo como as políticas


públicas são planejadas, implementadas e avaliadas (ciclos da
política);
3 Criação de mecanismos antidiscriminação e de estratégias que
promovam a inclusão e representatividade social no processo da
política pública como um todo; e
4 Adoção do modelo de políticas públicas baseadas em evidências.

Figura 8

Fonte: Redes da Maré, 2021.

Uma outra dimensão política importante e que se relaciona com as


políticas de segurança pública e o trabalho da polícia encontram-se
consolidadas em uma bibliografia sobre os impactos ou custos sociais
da violência. Esses trabalhos também utilizam os recortes de gênero, raça,
classe social etc., mas podemos dizer que se focam mais nas
consequências da violência, enquanto a análise interseccional parte de
uma situação de exclusão e opressão para buscar as suas causas. Em
verdade, as duas abordagens são complementares. Pesquisas que
busquem investigar os efeitos da violência urbana sobre a frequência
escolar, por exemplo, podem identificar que certas áreas das cidades são
mais afetadas que outras nesse sentido.

Pesquisa desenvolvida pela Iniciativa de Defesa da Infância do


Departamento de Justiça dos EUA (Swaner, Ayoub & Rempel, 2015) e pelo
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 124

escritório especial das Nações Unidas (United Nations, 2020), mostram que
a exposição de crianças a situações de violência continuada pode
prejudicar o seu desenvolvimento emocional, psicológico e até mesmo
físico. As crianças expostas à violência têm maior probabilidade de ter
dificuldades na escola, abusar de drogas ou álcool, agir agressivamente,
sofrer de depressão ou outros problemas de saúde mental e envolver-se
em comportamentos criminosos quando adultos. Estudo desenvolvido pelo
Fundo Monetário Internacional (Ouedraogo & Stenzel, 2021) em países da
África Subsaariana, por sua vez, sugere que um aumento de 1 ponto
percentual na violência contra as mulheres está associado a um nível de
atividade econômica 9% inferior. No curto prazo, isso acontece porque as
mulheres provenientes de lares abusivos tendem a trabalhar menos horas
e a ser menos produtivas quando trabalham. No longo prazo, níveis
elevados de violência doméstica podem diminuir o número de mulheres na
força de trabalho, minimizar a aquisição de competências e educação pelas
mulheres e resultar em menor investimento público e geração de riquezas
em geral.

Sabemos que o trabalho da polícia não vai resolver o problema da


desigualdade. As condições de segurança da população também não dependem
unicamente da ação das polícias. A segurança, em muitos aspectos, é uma
condição existencial que envolve a percepção das pessoas sobre as suas
condições de vida, como o acesso a moradia digna, emprego e liberdade de
circulação. Entretanto, como vimos até aqui, a segurança, enquanto direito a
uma vida livre dos efeitos deletérios do crime e da violência, é fundamental para
o acesso a direitos e a recursos materiais. Enquanto principal instrumento de
intervenção direta da política de segurança pública, o trabalho da polícia é
fundamental para a construção das condições de usufruto pleno de direitos e de
desenvolvimento dos sujeitos.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 125

2.2 Polícia política

Uma “polícia política”, diferente de uma “polícia democrática”, opera


fora dos limites da soberania popular que, numa democracia, delimita o campo
de ação, métodos e prioridades dos serviços policiais. Ela é um instrumento da
vontade personalista de um ditador, de um partido político ou instituição que
busca manter uma situação de dominação ou alcançá-la por meio do uso de
violência contra dissidentes e oposicionistas. A polícia política opera nas
sombras, no sentido de que suas atividades não estão sujeitas aos controles
sociais e políticos de uma democracia, implementados, como vimos, por meio
do que chamamos governança de polícia (Proença Júnior, Muniz & Poncioni,
2009).

A “polícia política” não é, entretanto, sinônimo de “polícia secreta”,


menos ainda de “serviços de inteligência”.

Podemos chamar de polícias secretas os serviços de coleta de


informações que utilizam técnicas sigilosas de vigilância, infiltração,
recrutamento de informantes e interceptação de mensagens. Muito embora as
polícias políticas possam incorporar estas técnicas ao seu trabalho de supressão
de dissidências ao regime, ela não necessariamente atua inteiramente com base
no segredo. Isso porque as demonstrações públicas de violência servem para
dissuadir manifestações de descontentamento. As polícias secretas, por sua
vez, não podem ser confundidas com os serviços de inteligência que constituem
uma parte importante da manutenção da soberania mesmo em regimes
democráticos. Portanto, a confusão entre polícia política, polícia secreta e
serviços de inteligência ocorre por conta dessa superposição de métodos, mas
também pelo fato de setores de inteligência estatais em regimes democráticos
terem sido utilizados em ocasiões em benefício do governo e contra a oposição.

O perigo dos serviços de inteligência se tornarem polícias políticas é real


exatamente pela mistura perigosa entre o imperativo do segredo de suas
operações e a sua proximidade com o poder político. Com baixa transparência
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 126

e controle social, os serviços de inteligência estão sujeitos a serem desviados da


missão que lhes compete, para um trabalho mesquinho de coleta de informações
contra grupos oposicionistas. Nesse sentido, respeitadas as necessidades
específicas desse tipo de atividade, os serviços de inteligência também devem
estar submetidos a estruturas de governança e prestação de contas, desde que
as pessoas destinatárias estejam integradas aos “círculos de sigilo” da
comunidade de inteligência no interior das três esferas de governo. O foco maior
no controle interno da atividade de inteligência deve, portanto, ser
complementado pela aplicação rigorosa de padrões de integridade e ética
profissional à conduta de seus membros.

Figura 9

Fonte: https://www.brookings.edu/books/secrets-and-spies/

Em 2017, uma série de ataques terroristas em Londres e Manchester


mataram trinta e seis pessoas e feriram quase duzentas outras. Três dos
seis agressores eram conhecidos do Serviço de Segurança Britânico, dois
deles tendo sido anteriormente objeto de interesse e um, Khuram Butt, de
uma investigação ativa. Essa situação levantou questões sobre os níveis
de prestação de contas dessas agências no Reino Unido. A sociedade, o
Parlamento Britânico e o Judiciário passaram a questionar o serviço de
inteligência do país e a forma como o dinheiro público estava sendo
aplicado por estas agências. O livro “Secrets and Spies” (Segredos e
Espiões) reúne informações sobre esse e outros casos, bem como a
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 127

literatura técnica especializada e sociológica sobre o tema, para discutir em


profundidade a questão da busca desse equilíbrio difícil entre segredo e
transparência que deve marcar o funcionamento dos setores de inteligência
em uma democracia.

Palavra do Especialista
O jurista Roberto Romano, Professor da Unicamp, em seu artigo
“Sigilo Jornalístico e Segredo de Estado” (2006), coloca essa questão de
forma definitiva. Em suas palavras, a “democracia começa e termina com
o segredo” (:226). Essa frase encarna perfeitamente o caráter dilemático
da questão. Se, como afirma Michel Foucault em seu livro “Segurança,
Território e População” (FOUCAULT, [1978] 2008), conhecer as
características de uma população é fundamental para o governo da
sociedade, função para a qual colaboram tanto a estatística como a própria
atividade de inteligência, a limitação desse saber-poder do Estado foi
fundamental para o surgimento do Estado Democrático de Direito.

O resultado que emerge do processo de instrumentalização política das


polícias pode ser definido como um “Estado policial”. O jurista francês Raymond
Carré de Malberg (1861–1935) oferece uma das mais utilizadas definições desse
conceito. Nas palavras do autor, em um Estado policial:

“a autoridade administrativa pode, de modo discricionário e com uma


liberdade decisória mais ou menos completa, aplicar aos cidadãos todas as
medidas que ela julga útil de serem tomadas por iniciativa dela mesma,
para enfrentar circunstâncias e atingir em cada momento os fins a que se
propõe. O Estado policial se opõe ao Estado de direito.” (Malberg, 1920).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 128

À título de conclusão, podemos dizer que existem dois caminhos


para a degeneração de uma polícia democrática em uma polícia política.
Ambos se nutrem da falta de transparência e submissão aos controles
políticos e democráticos.

1º caminho:

O primeiro e principal deles, como vimos, é a permeabilidade das


organizações à instrumentalização política pela ausência de um sistema de
governança de polícia.

2º caminho:

O segundo, como tratamos nesta seção, é o argumento da técnica e do


segredo, que blinda a polícia do controle da sociedade e facilita o seu uso político
por governantes autocráticos.

Essa mesma fragilidade, entretanto, tende a redundar na emancipação


política das organizações policiais, ou seja, na sua total independência dos
controles políticos democráticos. Esse é o problema principal da ideia
equivocada de que a política deva passar longe do trabalho da polícia.

Se a política é um meio de disputar o poder na sociedade, como nos


define Max Weber, e é verdadeira a máxima imortalizada por John Dalberg-
Acton de que o poder absoluto corrompe absolutamente, a busca por uma
relação equilibrada entre a polícia e a esfera da política se mostra
fundamental para uma polícia verdadeiramente democrática.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 129

2.3 Políticos de esquina

Em uma situação em que os membros de uma sociedade deixam de


reconhecer a capacidade do Estado de prover alternativas justas e adequadas
para o encaminhamento dos conflitos sociais, este perde significativa
capacidade regulatória. As pessoas deixam de reportar esses conflitos, que
passam a “não existir” como registros oficiais (subnotificação) e podem passar a
ser administrados fora do campo estatal, como no recurso a formas de
justiçamento ou a grupos que disputam a autoridade do Estado.

Como vimos, não é possível governar aquilo que não se conhece, menos
ainda quando não existe reconhecimento da legitimidade para tal. Essa falta de
reconhecimento pode ter diversas causas contextuais, como a distância e o
isolamento de comunidades, a sua prolongada exposição a situações de
violência perpetrada por agentes estatais, a existência de grupos locais que
capturam funções de regulação disputando com o Estado a legitimidade para tal,
dentre outras. Nessa aula, entretanto, vamos identificar algumas causas
estruturais importantes nesse sentido e que mostram que a construção da
legitimidade da lei do Estado é um processo constante e diário de convencimento
cujo objetivo é ganhar “corações e mentes” para as vantagens da mediação
estatal dos conflitos.

Esse fato é histórico e contraria um certo senso comum “legalista” que


entende que a simples existência da lei produz efeitos regulatórios imediatos,
inequívocos e definitivos sobre a sociedade. Quando as pessoas apresentam
forte adesão às leis, esse estado de ordem é com certeza fruto de um esforço
continuado de construção. Essa é uma construção política, porque constrói a
legitimidade do Estado e conforma o espaço regulatório das sociedades. Mais
do que a simples aplicação de sanções, a redução desse intervalo entre a lei e
sua obediência envolve um esforço orientado de mediação e elaboração
simbólica. A capilaridade da ação da polícia a coloca exatamente nesse lugar
conflituoso em que a lei, enquanto formulação ideal, encontra as suas condições
materiais de realização no mundo e por isso os policiais desempenham um papel
fundamental nesse sentido.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 130

Antes de falarmos sobre estas características do trabalho policial, vamos


tratar das causas históricas dessa condição. Segundo Norbert Elias (1990), no
mundo ocidental a história do “processo civilizador” foi marcada por dois
movimentos principais.

1º movimento:

Em termos sociais, este se caracterizou pela contínua transformação do


que o autor chamou de “padrões de vergonha e repugnância”, fontes simbólicas
importantes para o exercício do controle social informal ou difuso.

2º movimento:

Em termos político-institucionais, transformações nas sociedades


europeias levaram à progressiva concentração do direito ao uso legal e legítimo
da violência na figura do Estado, que passou a exercê-lo por meio de um grupo
de indivíduos profissionalmente treinados para tal (ver Aula 1 do Módulo I).
Dentre as categorias profissionais autorizadas a fazê-lo, a polícia definitivamente
é uma das mais presentes no cotidiano da vida em sociedade.

Nesse sentido, a consolidação do monopólio estatal da violência no


mundo moderno, a partir do século XVIII, trouxe como principais vantagens
civilizatórias a maior imparcialidade e objetividade das funções de regulação e
de produção de justiça no âmbito do Estado, que passou a operar como uma
terceira-parte neutra na intermediação dos conflitos sociais. A desvantagem
desse movimento é que com a retirada dessas funções da comunidade, criou-se
um hiato de reconhecimento entre:

A lei universal,

aplicável igualmente a todos.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 131

E a norma social,

que reconhece os atributos da pessoa e sua trajetória para a produção de


alternativas de regulação adequadas a cada situação específica.

Acontece que, por vezes, as demandas de natureza moral que informam


as reivindicações por justiça das comunidades não são contempladas pelas
alternativas universais oferecidas pelo Estado.

William Ker Muir (1977), em seu livro “Street Corner Politicians”, define os
policiais como “políticos de esquina”. Isso porque sua função seria marcada por
um trabalho cotidiano e diligente de fazer com que as “leis do mundo” (normas
sociais e práticas culturais) possam encontrar o “mundo das leis” (normas
positivadas e universais). O autor fez seu trabalho de campo no departamento
de polícia da cidade norte-americana de Lacônia4. Numa democracia, como
vimos, esse trabalho da polícia precisa obter consentimento social e Muir
pensava esse atributo em oposição à necessidade de aplicação da força. Quanto
maior o consentimento, menos a necessidade de usar meios mais invasivos para
obter a submissão das pessoas às leis. Essa competência, entretanto,
demandava um entendimento das percepções sobre justiça e sobre a natureza
dos conflitos e daquilo que está sendo disputado pelas pessoas.
Nesse sentido, o trabalho do antropólogo Luis Roberto Cardoso de
Oliveira pode nos auxiliar na caracterização dessa problemática. Em seu texto
“Existe violência sem agressão moral?” (2008), o autor apresenta casos em que
circunstâncias de desrespeito à cidadania não são devidamente captadas pelo
processo judicial ou pela linguagem dos direitos universais. Com base em suas
análises, ele propõe o conceito de “insulto moral” como uma dimensão
importante do fenômeno jurídico e do Direito. Nas palavras de Cardoso de
Oliveira,

4 Nome fictício dado pelo autor.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 132

“Trata-se de direitos acionados em interações que não podem


chegar a bom termo por meio de procedimentos estritamente formais e que
requerem esforços de elaboração simbólica da parte dos interlocutores
para viabilizar o estabelecimento de uma conexão substantiva entre eles,
permitindo o exercício dos respectivos direitos.” (OLIVEIRA, 2008, p. 136).

O trabalho de “elaboração simbólica” a que o autor se refere implica


que os interlocutores de casos como esses estejam abertos a reconhecer
demandas por “respeito” e “consideração” que muitas vezes permeiam as
percepções das pessoas sobre o que constitui uma agressão, formas
“satisfatórias” de reparação e o próprio significado social do direito. O limite
desse trabalho de mediação, num Estado Democrático de Direito, será sempre
a lei.

Em seu livro "Policing the Frontier: An Ethnography of Two Worlds in


Niger" (Policiando a Fronteira: Uma Etnografia de Dois Mundos no Níger), Mirco
Göpfert, também aborda essa questão das moralidades que moldam as
demandas regulatórias da sociedade e, por consequência, as práticas policiais.
Göpfert aborda os dilemas dos policiais para fazer cumprir a lei em um contexto
de fraca penetração e legitimidade das instituições do Estado na cidade de
Godya5, localizada na zona de fronteira entre o Niger e a Nigéria. Naquele
contexto, segundo o autor, mesmo os próprios policiais de Godya entendiam que
as instituições e leis do Estado eram inadequadas para trazer justiça aos modos
de vida das pessoas e tentavam produzir formas mutuamente compatíveis de
sociabilidade e moralidade entre a forma burocrática e a vida vivida. Ele chamou
essa atividade de “trabalho de reparação”, um esforço para reparar a lei por
meio da incorporação de concepções populares de certo e errado em seu
trabalho rotineiro, produzindo maior adesão social às leis do Estado.

5 Nome fictício dado pelo autor.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 133

AULA 3 – POLÍCIA E A RECONSTITUIÇÃO DA ESFERA DA


POLÍTICA

Encerramos a última aula (Aula 2) deixando alguns conceitos importantes


para a discussão que fazemos nas seções seguintes sobre o papel da polícia no
que chamamos de “reconstituição da esfera da política”. Ao compreendermos
o lugar da polícia na estrutura do Estado, que caracterizamos como um ponto de
encontro entre o mundo das leis e as leis do mundo, propusemos a imagem
do serviço policial como caracterizado por um trabalho de mediação entre a lei
e a realidade social.

Ao contribuir para a restituição da fé das pessoas na lei e na justiça


estatal, a polícia pode ser um instrumento fundamental para fortalecer a
legitimidade do Estado e a sua capacidade regulatória.

Entretanto, não é qualquer forma de atuação da polícia que pode ser


considerada trabalho de mediação. Na verdade, o trabalho de polícia que media
é aquele que é guiado por princípios e atitudes de abertura para a sociedade,
para a compreensão da natureza e motivação dos conflitos, dos valores que
informam as noções de justiça e das condições materiais de acesso à direitos.
Um trabalho feito na legalidade, ao qual as pessoas atribuem legitimidade e que
por isso tem a capacidade de (re)constituir a autoridade do próprio Estado. Em
contextos que estamos chamando aqui de pós-conflito, em que a capacidade
regulatória estatal foi completamente perdida ou encontra-se em frangalhos,
esse trabalho de mediação se torna altamente relevante, como veremos.

Nesse sentido, nas seções seguintes, vamos desenvolver essas


questões, iniciando com uma breve caracterização desses contextos pós-
conflito. Em seguida, apresentaremos o conceito de “core policing” de David H.
Bayley e Robert M. Perito desenvolvendo um pouco mais sobre as
características do policiamento que têm o potencial de reparar a ordem social e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 134

reabilitar a autoridade do Estado. Como encerramento da aula, trazemos um


caso concreto de reconstrução das bases de legitimidade da polícia na África do
Sul após o fim do regime do apartheid, em 1994. O caso sul-africano é
considerado paradigmático, pois envolveu a polícia em um processo de reforma
ampla do Estado e de reconciliação da sociedade.

3.1 Características de contextos pós-conflito

As características de contextos pós-conflito podem variar amplamente


com base na gravidade do conflito, sua história e duração, o contexto social e
cultural do país, dentre outros fatores. Em alguns casos, grupos dissidentes ou
insurgentes mantêm-se mobilizados mesmo depois de um acordo ou armistício
ter sido alcançado por suas lideranças. Em outros, o medo de represálias, uma
vez estabelecidos processos de alternância de poder, pode refrear os esforços
de reconciliação. Certos conflitos apresentam motivações étnicas ou religiosas
e objetivam a supressão de um grupo ou prática social. Outros visam o
estabelecimento de um determinado grupo no poder ou simplesmente a
derrubada do regime. Os conflitos podem ser generalizados ou localizados,
envolver disputas regionais internas ou com outros países. Podem provocar
deslocamentos massivos de refugiados, mas também limitações para o
deslocamento interno. Podem envolver antagonismos entre facções dentro dos
exércitos, entre milícias ou desses grupos com a própria polícia. As
possibilidades são amplas.

Entretanto, podemos dizer que países que passaram por guerras civis
ou conflitos prolongados compartilham algumas características gerais
desafiadoras. A principal delas é o reestabelecimento das instituições, da ordem
e da previsibilidade social em um ambiente de profunda instabilidade política
causada pela suspensão das regras que regem a sociedade em situações de
normalidade. Mais desafiador ainda é o restabelecimento da fé das pessoas no
Estado e suas instituições, no reconhecimento de sua função de terceira-parte
neutra para a mediação dos conflitos sociais.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 135

É relativamente comum que as pessoas utilizem o termo “guerra


civil” para falar de conflitos que, na verdade, não poderiam ser
classificados dessa forma. Para caracterizar uma guerra civil é preciso que
sejam identificados grupos que abertamente contestem o poder político de
forma violenta. Se não existe a ambição explícita de tomar o Governo ou
transformar o regime por meio do recurso às armas, um conflito, por
definição, não pode ser chamado de guerra civil. Mesmo que prolongado e
violento, um conflito armado movido exclusivamente por motivações
econômicas, como a exploração de mercados ilegais, também não pode
ser classificado dessa forma. Apesar de inegavelmente produzirem
impactos políticos no sentido de afetar certos grupos sociais de forma mais
gravosa, com a limitação de seus direitos, acesso a recursos materiais e
limitação de sua circulação, conflitos de base econômica tendem a ser
vistos como dinâmicas criminais.

A nomenclatura “contexto pós-conflito” pode levar a alguns equívocos,


como quando pensamos nessas situações como sinônimos de paz ou de
superação de um conflito existente. Os contextos pós-conflito não são,
necessariamente, marcados pela paz social. A paz costuma ser definida como
um estado de tranquilidade, harmonia e estabilidade. Se considerarmos que
nenhum agrupamento humano reúne essas características de forma ampla e
continuada é possível dizer que a paz seria, na verdade, um horizonte para a
ação, raramente uma realidade concreta. Mesmo para aquelas sociedades que
não estão em guerra, não seria correto afirmar que a paz reina na vida de seus
habitantes.

Vamos Refletir
A paz não significa superação ou eliminação total dos conflitos. O
conflito, na verdade, faz parte da própria vida em sociedade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 136

Palavra do Especialista

O sociólogo Georg Simmel, em seu texto “O Conflito como Sociação”


(2011[1964]), nos fala do conflito como uma forma de relação social que o
autor denomina “sociação” e que seria típica da vida nas grandes cidades.
Nesse sentido, o autor contraria a perspectiva de que o conflito possuiria
apenas atributos negativos e desagregadores, afirmando que a
organização interna da vida urbana se basearia em uma hierarquia
complexa de simpatias, indiferenças e aversões que estariam na base
de antagonismos de tipo mais efêmero ao mais duradouro. Para Simmel,
existe muito pouco espaço para a indiferença na sociedade. Relações de
simpatia e aversão seriam as forças que movem a formação de grupos
sociais, que são agrupamentos humanos baseados na identificação mútua
e na comunidade de gostos e interesses. Existirão conflitos entre esses
grupos e dentro de cada um deles. Para Simmel, entretanto, as situações
de antagonismo em si não produzem sociação. O que produz sociação é a
forma como estes são expressos e encaminhados, o que permitirá a
continuidade da sociedade em um tipo de unidade na diferença, que
Simmel chama de situação de “equilíbrio provisório”.

Quando falamos em contextos pós-conflito falamos dos desafios de


reconstruir a legitimidade do Estado após uma guerra civil ou governo autoritário.
Entretanto, os desafios e dilemas implicados nesse processo são compartilhados
por outros contextos sociais e da vida em sociedades complexas. Nesse sentido,
trazemos as orientações de Simmel para afirmar que, assim como nos contextos
pós-conflito, a vida urbana seria caracterizada por situações de equilíbrio
provisório, mais ou menos duradouras e abrangentes, e que dependeriam de
articulações políticas, sociais e de base comunitária para se manterem e
expandirem. A ideia de paz, apesar de utópica, não deixa de apresentar uma
relevância política importante nesse processo. Ela criaria um tipo de unidade de
sentido para os esforços coletivos do Governo e da sociedade para a construção
de uma situação de equilíbrio que, como vimos, tende a não ser definitiva.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 137

No geral, em contextos pós-conflito são criados fóruns de diálogo


que não raramente recebem nomes como “comitês de paz” e que buscam
promover reconciliação e justiça. Estabelecer um processo político
inclusivo e transparente, que permita a participação de todas as partes
implicadas no conflito, é essencial para alcançar um equilíbrio que
necessariamente envolverá compromissos de parte a parte.

A polícia também desempenha um papel fundamental nesse sentido. Em


contextos de pluralismo jurídico, em periferias urbanas, áreas rurais ou
comunidades fronteiriças, ou onde a violência de conflitos prolongados fez com
que a lei do Estado parecesse distante e ameaçadora, perguntar por que as
pessoas denunciam crimes específicos à polícia pode fornecer informações
importantes sobre as bases sociais da legitimidade do Estado. No livro
“Peacekeeping, Policing and the Rule of Law after Civil War” (Manutenção da
Paz, Policiamento e Estado de Direito após a Guerra Civil), Robert A. Blair (2020)
analisa as condições para que as intervenções das Nações Unidas (ONU)
consigam (re)estabelecer o Estado de Direito em contextos pós-conflito.

Veja a análise de Blair sobre as condições para que as intervenções


das Nações Unidas (ONU) consigam (re)estabelecer o Estado de Direito em
contextos pós-conflito:

O autor analisa o caso da guerra civil da Libéria (1989-1997) e oferece


uma definição operacional do conceito de Estado de Direito como a disposição
das pessoas em recorrer a alternativas de mediação sancionadas pelo Estado
em detrimento de formas de justiça de base comunitária, como o linchamento e
o banimento. O autor mostrou que comunidades rurais expostas a patrulhas
policiais diárias, realizadas conjuntamente pelas tropas da ONU e oficiais da
polícia liberiana, estavam mais inclinadas a denunciar crimes graves à polícia,
como homicídios e roubos. Esta conclusão é relevante não apenas no contexto
das intervenções da ONU, mas demonstra o papel crítico do policiamento regular
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 138

na sustentação (ou destruição) das crenças das pessoas nos poderes


reguladores da lei e na sua capacidade de distribuir a justiça do Estado de formas
consideradas adequadas e legítimas também pelas comunidades.

Entretanto, não é qualquer tipo de policiamento que restabelece a fé das


pessoas na justiça do Estado. Nas seções seguintes, desenvolveremos mais
sobre esse tema, tratando da forma como as funções e características do serviço
policial podem atuar no sentido de promover a adesão das pessoas às leis e
instituições, mesmo em contextos em que o Estado pareça distante, goze de
níveis baixos de legitimidade ou tenha sido inviabilizado materialmente pela
destruição total ou parcial de estruturas e instituições públicas.

3.2 O conceito de Core Policing de Bailey & Perito

Qual é o núcleo do trabalho policial? Sua característica mais elementar?


Em “The Police in War: Fighting Insurgency, Terrorism, and Violent Crime” (A
Polícia na Guerra: Combatendo a Insurgência, o Terrorismo e o Crime Violento),
David H. Bayley and Robert M. Perito (2010) refletem sobre aquelas perguntas
para propor um conjunto de medidas focadas na reabilitação de forças policiais
para a atuação em funções de segurança pública após períodos de guerra civil
ou conflito. Nesses contextos, como vimos, movimentos de resistência
(“insurgentes”) ainda encontram-se ativos, impondo a necessidade da
continuidade de operações conjuntas entre as Forças Armadas e policiais.
Nesse ambiente confuso, em que crimes comuns muitas vezes se confundem
com crimes políticos, Bayley e Perito advogam pela importância do reencontro
das forças policiais com suas funções civis essenciais de prevenção e
investigação dos crimes, e de garantia da ordem pública, que constituiriam o
núcleo de suas atividades e que os autores chamam de “core policing”
(“policiamento essencial”).

Em sua definição do conceito, Bayley e Perito afirmam que três princípios


devem nortear as atividades essenciais do policiamento:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 139

Disponibilidade (availability):

No que se refere à disponibilidade, os autores falam em aspectos como a


visibilidade do policiamento e a postura dos/as policiais. Nesse sentido, por
exemplo, uma viatura baseada em uma esquina, mas com os vidros fechados
ou com agentes em postura pouco amistosa não seria o suficiente para
configurar um policiamento disponível.

Pronta-resposta (responsiveness):

Pronta-resposta se refere à capacidade da polícia de responder aos


chamados e atender efetivamente as demandas do público em tempo hábil e de
forma previsível.

Imparcialidade (even-handedness):

Finalmente, aquilo que os autores chamam de imparcialidade se aproxima


daquilo que discutimos sobre “justiça procedimental” (ver Aula 5 do Módulo I),
que defende a equidade e a transparência como fundamentos dos processos e
procedimentos do Estado.

O "crime comum" refere-se a delitos que violam as leis gerais de


uma sociedade, como homicídio, roubo, estupro, entre outros. Por sua vez,
o "crime político" é um termo de definição mais complexa, pois pode variar
segundo contextos históricos e políticos específicos. Segundo autores
como Hannah Arendt e Carl Schmitt, a diferença entre crime comum e
crime político reside principalmente na motivação por trás do ato delituoso.

Veja a opinião dos estudiosos:

Hannah Arendt (1989):

Hannah Arendt (1989), em sua obra “As Origens do Totalitarismo”,


argumenta que o crime político é cometido com base em motivações políticas ou
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 140

com o objetivo de atingir fins políticos específicos, como mudar o governo,


promover uma ideologia ou desafiar o status quo. Arendt enfatiza que o crime
político é uma manifestação da ação política, uma tentativa de intervir na esfera
pública para expressar descontentamento, buscar ou conservar o poder.

Carl Schmitt (2008):

Já para Carl Schmitt (2008), em sua obra “O Conceito do Político”, o crime


político ocorre quando um indivíduo ou grupo age contra o Estado ou as
instituições políticas estabelecidas como parte de um conflito mais amplo, em
que o seu autor questiona a ordem política existente.

O livro de Bayley e Perito é baseado em um estudo de caso de


experiências de “transferência de poder” (“power handover”) implementadas
durante a ocupação Norte Americana no Afeganistão e no Iraque. Em especial,
os autores se dedicam às medidas adotadas para a requalificação e treinamento
da polícia local de modo que esta pudesse reassumir funções de segurança
pública e realizar atividades de policiamento regular, em um contexto em que
grupos insurgentes ainda permaneciam ativos. O trabalho seminal de Bayley e
Perito nos fala principalmente sobre a importância da segurança pública e da
ação da polícia para a (re)construção do Governo civil. Esse processo,
entretanto, seria uma via de mão dupla. A legitimidade das organizações policiais
também depende da existência de um Governo com estruturas e procedimentos
claros de governança de polícia e uma política de segurança pública que defina
as prioridades do policiamento (ver Aula 1 desse módulo).

Sem segurança não há Governo e sem Governo não há política de


segurança pública. Então como resolver esse dilema em contextos pós-conflito,
em que o Governo civil está sendo reconstruído e a segurança ainda é um
problema grave? Por onde começar? Na perspectiva dos autores, a polícia seria
o “agente primário” desse movimento.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 141

“Em resumo, existem duas razões para considerarmos a polícia local


como agente primário no desenvolvimento de um Governo legítimo: ela
pode prover informações cruciais para o enfrentamento da violência e ela
pode demostrar para um público cético que vale a pena apoiar o Governo.
Esses efeitos se reforçam mutuamente. As pessoas que consideram o
Governo legítimo estarão mais inclinadas a cooperar com a polícia; as
informações do público que auxiliem o incremento da segurança pública
aumentam também a legitimidade do Governo. Sem apoio público, ambos,
o controle da violência e a estabilidade do Governo encontram-se em risco.
A polícia local é mais importante para ganhar esse apoio do que qualquer
outro agente de segurança, seja este local ou estrangeiro.” (Bayley &
Perito, 2010, p. 152–153).

Em suma, enquanto o Governo está sendo reconstruído, o segredo para


estabelecer esse ciclo virtuoso de mútua legitimação social de que nos fala
Bayley e Perito é focar nos aspectos essenciais (“core”) do trabalho da polícia.
A pesquisa de Bayley e Perito confirma que o bom trabalho policial é essencial
para promover a adesão e respeito às leis e instituições de um país. O inverso
também é verdadeiro e o funcionamento dos controles políticos do Governo - o
que chamamos de governança de polícia - atribui legitimidade ao trabalho da
polícia, ao garantir que seus serviços sejam prestados de forma disponível,
pronta e justa. Nesse sentido, o principal mérito do conceito de core policing de
Bayley e Perito é prover uma referência de parâmetros mínimos para definir o
que seria esse “bom trabalho policial” que reconstrói a fé das pessoas no Estado
de Direito.

Como vimos, mesmo em situações em que o Governo ainda é incipiente


e luta para reconstruir sua legitimidade em meio a profunda insegurança e
instabilidade política, a crença coletiva de que a lei deve se aplicar a todos
depende grandemente do desempenho de uma polícia que conheça os códigos
locais. Mesmo nesses contextos altamente militarizados, segundo Bayley e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 142

Perito, a polícia deve buscar reencontrar as suas funções civis. Entretanto, não
basta treinar a polícia para que esse “reencontro” aconteça. Faz-se necessário
um esforço simultâneo de reformulação e fortalecimento das estruturas de
governança do sistema de justiça e segurança de forma ampla. O que, segundo
os autores, demandaria vontade política, liderança estratégica e participação
social.

Sem um sistema judiciário e de justiça criminal funcional, o restauro da


ordem pública e o processo de estabilização em contextos pós-conflito ficam
profundamente comprometidos no longo prazo. Nesse contexto, formas de
justiça sumária podem florescer, tanto na sociedade quanto nos meios policiais,
sem nenhuma consequência legal para os seus perpetradores. Essa armadilha
acaba por corromper até os/as policiais mais bem treinados, minando a
confiança pública no Governo e qualquer tentativa de estabelecimento de um
modelo de governança democrática.

Uma visão clara sobre os serviços de segurança pública seguindo


os princípios de core policing é apenas o ponto de partida. O dilema da
construção da paz é, portanto, fazer com que essas coisas caminhem
juntas, segurança e o desenvolvimento de um governo civil eficaz.

3.3 A polícia e a (re)constituição da esfera da política

A África do Sul, entre os anos de 1948 e 1994, viveu sobre o regime do


apartheid. O apartheid representou um tipo de autoritarismo peculiar, baseado
em teorias racistas vigentes à época, em que a restrição de direitos para certos
grupos sociais era operada não em um contexto de “exceção”, como
normalmente operam os regimes totalitários, mas de funcionamento regular das
instituições e sob o resguardo das leis do país. Tratava-se de um sistema de
governo altamente legalista, obcecado com a ideia de ordem e que pregava a
separação total entre regimes político-jurídicos por “grupos raciais”: um Estado,
uma lei, uma polícia para os brancos, outra para a população negra. Para tanto,
foram criadas áreas segregadas autorizadas a instituir o seu próprio Governo,
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 143

sua própria polícia e sistema de justiça, mas sempre subordinadas aos desígnios
do Governo central.

Figura 10: Apartheid fence, Johannesburg, 1953

Fonte: Schadeberg, Jurgen, 1953.

Saiba mais
A palavra apartheid significa “separação” em afrikaans e foi adotada
como slogan pelo Partido Nacional Sul-africano depois da vitória de Daniel
François Malan nas eleições parlamentares de 1948. Na foto acima,
denominada “apartheid fence” (“cerca do apartheid” em português), vemos
a ideia de separação encarnada no registro feito por Jurgen Schadeberg
em um parque de Joanesburgo (Johannesburg, 1953).

De modo a garantir a separação entre os grupos raciais, foi implementado


um sistema de passes, um tipo de passaporte interno onde o Estado fazia
constar o lugar em que as pessoas negras podiam morar e trabalhar, limitando
a sua circulação. A polícia sul-africana era a principal responsável pela
fiscalização do sistema de passes, auxiliada, por vezes, pelas forças armadas.
Sem o apoio da maioria da população, com a sua atuação focada na repressão
política (ver “polícia política” na Aula 2 desse módulo) e na manutenção da ordem
racial do apartheid, a South African Police (SAP) era a principal força policial do
país e ficou conhecida por casos extremos de violência.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 144

Figura 11: Hector Pieterson sendo carregado por Mbuyisa Makhubo após ser baleado
pela polícia sul-africana. Sua irmã, Antoinette Sithole, corre ao lado deles.

Fonte: Sam Nzima.

Você sabia?
Diversos episódios de violência policial ocorridos durante o apartheid
ganharam projeção internacional. Um dos mais famosos foi o "Massacre de
Sharpeville". O episódio ocorreu em 21 de março de 1960, na cidade de
Sharpeville, na África do Sul, e desempenhou um papel fundamental na
história da luta contra o regime de segregação racial no país, gerando
comoção pública e pressão internacional pelo seu fim. Durante uma
manifestação pacífica contra as "Leis do Passe" a polícia de Sharpeville
abriu fogo contra os manifestantes, matando sessenta e nove pessoas e
ferindo centenas de outras. Dezesseis anos depois, em 1976, em Soweto,
bairro negro da cidade de Joanesburgo, um outro episódio de brutalidade
foi protagonizado pela polícia sul-africana. Em junho daquele ano, cento e
setenta e seis jovens em idade escolar que protestavam contra a
obrigatoriedade do ensino do afrikaans, língua de origem colonial
holandesa, em detrimento de línguas nativas, foram mortos pela polícia.
Contagens não oficiais falam em até setecentos jovens mortos no episódio
que ficou conhecido como o “Levante de Soweto” e foi imortalizado pela
imagem do menino Hector Pieterson, de apenas doze anos, sendo
carregado sem vida por um colega e pela irmã, em busca de socorro (ver
figura 12).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 145

Segundo David Welsh (2010), em seu livro “The Rise and Fall of
Apartheid” (O Surgimento e a Queda do Apartheid), os elevados custos de
manutenção do sistema de passes, associados a pressões diplomáticas
internacionais, embargos econômicos e movimentos de resistência
internos tornaram o regime do apartheid inviável e precipitaram o seu fim.
Na década de 90, quando Nelson Mandela deixou a prisão, existiam onze
forças policiais diferentes operando no território sul-africano. A principal era
a SAP, cuja atuação se concentrava nas cidades, áreas de moradia da
população branca. Os postos de baixa-patente da SAP eram reservados à
população negra, mantendo-se os níveis estratégicos e de comando da
organização nas mãos da minoria branca. As demais polícias eram
compostas a partir de efetivos da SAP e eram responsáveis por atuar nos
dez territórios reservados exclusivamente para os negros africanos, os
chamados Bantustões.

Ainda na década de 90, iniciam-se às conversas sobre paz e reconciliação


e o funcionamento da polícia foi um tópico importante nas negociações. O
período foi marcado por muitas incertezas e instabilidade política, pelo
crescimento da criminalidade comum e por episódios de violência política. Como
vimos na discussão de Bayley e Perito (2010) sobre core policing, o principal
desafio enfrentado pelo novo Governo sul-africano naquela época era o de
construir uma identidade civil e de serviço para a SAP em um contexto em que
funções de segurança pública e segurança nacional ainda se sobrepunham. De
modo a lidar com esses desafios de forma estruturada, foram criados comitês
locais e regionais de transição, chamados Peace Committees (Comitês de Paz),
previstos em uma legislação transicional provisória chamada National Peace
Accord, um acordo nacional entre os diferentes grupos políticos que definia os
termos do processo de transição pacífica para a democracia na África do Sul.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 146

Como vimos nas seções anteriores, o termo “contexto pós-conflito” pode


ser mal interpretado como um período de paz social (“peacetime society”). A paz
é um processo, uma construção, que envolve pactuações e um gerenciamento
adequado das tensões e motivações para o conflito, de modo a administrá-lo na
direção da construção de padrões de convivência democráticos. No caso da
África do Sul, havia um forte pânico revanchista por parte da população branca,
que temia ser perseguida pelo Governo de maioria negra. Por sua vez, o novo
Governo temia que a burocracia do Estado, herdada do apartheid, sabotasse o
projeto político de emancipação da população negra encampado pelo Congresso
Nacional Africano (CNA). Esse pedregoso, mas necessário caminho para a paz
foi trilhado sob a liderança de Nelson Mandela, talvez uma das únicas
unanimidades políticas em um país racialmente dividido e temeroso em relação
ao futuro.

Figura 12

Fonte:

"Invictus” (2009) mergulha no turbulento período pós-apartheid na


África do Sul e destaca o extraordinário papel de Nelson Mandela na busca
pela paz e reconciliação. O filme foi dirigido por Clint Eastwood e é uma
adaptação da história real contada no livro "Playing the Enemy" de John
Carlin. A história começa com Nelson Mandela (Morgan Freeman) saindo
da prisão após 27 anos de detenção, determinado a unir a África do Sul. A
estratégia de Mandela é tão surpreendente quanto eficaz: ele decide usar
o esporte, em particular o rugby, como uma ferramenta para unir as
pessoas. O rugby era tradicionalmente visto como um esporte associado à
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 147

minoria branca, enquanto a maioria negra odiava-o como um símbolo do


regime opressor. No entanto, Mandela reconhece que o sucesso da equipe
nacional de rugby, os Springboks, poderia ser uma oportunidade única para
unir a nação. Ele se aproxima do capitão da equipe, François Pienaar (Matt
Damon), e apoia os esforços da equipe na Copa do Mundo de Rugby de
1995. O filme retata muito bem a habilidade política de Nelson Mandela,
que enxergou no sucesso dos Springboks uma oportunidade para colocar
a ideia de paz e reconciliação no centro do imaginário social e político da
África do Sul naquela época.

Segundo Janine Rauch (2000), em seu paper “Police Reform and South
Africa's Transition” (Reforma Policial e Transição na África do Sul), a missão da
polícia durante o apartheid era fazer cumprir as leis de segregação racial e suas
funções eram muito assemelhadas às de uma “polícia política” (ver Aula 2 desse
módulo), o que não exigia grandes competências em funções policiais
tradicionais e permitia abusos em grande escala. Demonstrações de lealdade
política e a força bruta eram as únicas habilidades exigidas de seus agentes. A
tarefa de transformar a SAP em uma organização legítima para a maioria da
população e eficaz contra o crime era gigantesca e ficou conhecida como um
dos mais ambiciosos processos de reconstrução das bases de legitimidade de
uma força policial na história das democracias modernas.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 148

Figura 13: Nelson Mandela depositando o seu voto nas primeiras eleições
democráticas da África do Sul, realizadas em Abril de 1994, momento histórico registrado pelo
fotógrafo Paul Weinberg.

Fonte: Paul Weinberg.

Em 1994, Nelson Mandela é eleito o primeiro presidente da África do Sul


democrática. Uma das primeiras medidas adotadas pelo seu Governo foi a
mudança de foco da SAP para um conceito de polícia como “serviço” (ver Aula
3 do Módulo I). No ano seguinte, a nomenclatura “força policial” foi abandonada
e a SAP passou a se chamar South African Police Service (SAPS) com a edição
da Lei da SAPS (SAPS Act/1995). Naquele período, outras medidas foram
adotadas, como o redesenho de uniformes, insígnias e viaturas, bem como a
substituição da longa cadeia de postos e graduações militares por um modelo
civil, mais enxuto, inspirado na polícia britânica. Foram adotadas políticas de
recrutamento, aposentadoria compulsória e estímulos de progressão na carreira
que facilitaram o acesso da população negra aos cargos de chefia da
organização, tornando-a mais racialmente balanceada.

De modo a reduzir a instabilidade política e evitar que pessoas com


treinamento militar fossem incorporadas por grupos criminosos, foi adotada
uma política de desmobilização das diversas guerrilhas que lutaram contra
o regime do apartheid que incluía a sua incorporação aos efetivos da polícia
e das forças armadas.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 149

A polícia comunitária passou a ser a base filosófica do sistema de


governança da organização. Nesse sentido, foram criadas estruturas de
accountability e participação social como os Community-Police Forums (Fóruns
de Polícia Comunitária) e o Independent Complaints Directorate (Diretoria
Independente de Reclamações, um tipo de Ouvidoria de Polícia). A nova lei da
SAPS tornou também obrigatória a divulgação anual dos planos e prioridades da
organização, seus focos orçamentários e gastos, bem como um relatório anual
sobre desempenho. Foram criadas instâncias consultivas e de fiscalização,
como os Secretariats for Safety and Security (Secretarias de Segurança),
estruturas de gestão da política pública em nível estadual formadas por policiais
e especialistas em segurança pública. A formulação da política pública de
segurança passou a ser proposta federativamente, no âmbito das Secretarias de
Segurança estaduais, com a participação de policiais e da população civil, sob a
coordenação do então Minister of Safety and Security (Ministério da Segurança),
hoje Minister of Police (Ministério da Polícia).

Figura 14

Fonte: South African Police Service

Saiba mais
A insígnia adotada pela SAPS em 1995 usa uma árvore de aloe vera
como imagem principal. Planta típica da África do Sul, o aloe vera é uma
vegetação de gosto amargoso, mas que é reconhecida mundialmente por
suas propriedades curativas e simboliza a ideia de que a polícia pode ser
um remédio amargo, mas fundamental para a saúde da comunidade.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 150

Se considerarmos o tamanho dos desafios e das dificuldades enfrentadas


para a construção de uma polícia legítima pós-apartheid e o espaço de tempo
limitado em que todas essas transformações foram implementadas, pode-se
dizer que todo o processo resultou na transição de uma polícia de Estado, com
características de polícia política, para uma organização focada no cidadão. A
SAPS, entretanto, ainda enfrenta desafios sérios, principalmente no que se
refere ao combate à corrupção e ao enraizamento de valores como direitos
humanos e igualdade racial entre seus membros. A despeito desses desafios,
em grande parte compartilhados com organizações policiais em muitos países,
a SAPS é um exemplo da importância estratégica da polícia para o processo de
construção e defesa da democracia em contextos de pós-conflito.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 151

AULA 4 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E ASSOCIATIVISMO


POLICIAL

Nesta aula que encerra o Módulo III, trataremos de uma dimensão da


relação da polícia com a esfera da política que tem recebido bastante atenção
na literatura internacional, mas que, no Brasil, em especial, encontra-se ainda
pouco desenvolvida. A dimensão do/a policial como um trabalhador da
segurança pública. Na primeira aula deste módulo, colocamos um dilema para
a relação da polícia com a esfera da política, entre o governo político das
polícias, que chamamos de governança de polícia, e a sua
instrumentalização política. Nas duas aulas que se seguiram (Aulas 2 e 3),
falamos sobre o lugar da polícia na estrutura do Estado, sua relação com
moralidades e desigualdades, e apresentamos a discussão de core policing
para pensar como a polícia pode reconstituir (ou destruir) a legitimidade do
Estado e das leis. Na presente aula, entretanto, a relação entre a polícia e o
Estado parte da perspectiva do mundo do trabalho para falarmos da polícia.

O tema levanta debates acalorados. A pergunta é como dar vazão às


demandas de ordem trabalhista dos/as policiais de modo institucional e
transparente, sem que isso constitua uma ameaça para a ordem do Estado e da
sociedade. Como veremos em nossa seção inicial, essa tarefa encontra
barreiras no próprio reconhecimento do/a policial como trabalhador em razão do
lugar contraditório de sua ocupação na sociedade de classes. Na seção
seguinte, apresentamos a tese de que apenas uma organização que vive a
democracia em seu dia a dia pode atuar como sua defensora. Essa é uma
aplicação do princípio de justiça procedimental ao trabalho da polícia e que tem
ganhado espaço nas discussões sobre o que chamamos aqui de
associativismo policial. Por fim, apresentaremos as vantagens e desvantagens
dos dois modelos de organização dos trabalhadores policiais mais difundidos, as
associações e os sindicatos.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 152

4.1 Policial e trabalhador

O trabalho da polícia tem uma característica peculiar. Seu dia a dia,


grande parte do tempo, pode ser repetitivo, burocrático e enfadonho, mas uma
emergência qualquer subitamente faz explodir os níveis de adrenalina e
estresse. No transcorrer de um turno de trabalho, esses profissionais podem
viver um verdadeiro carrossel de emoções. Essas características fazem com que
o seu trabalho seja fonte de prazer e orgulho, mas também de grande sofrimento
físico e emocional. Sentimentos de isolamento social, inadequação e a
percepção de que seus esforços não seriam reconhecidos pela sociedade
agravam esse quadro.

Por conta dessas características, os policiais costumam ser


associados à figura do herói. O herói é um arquétipo universal que
personifica virtudes e valores humanos, como coragem, sabedoria e justiça,
servindo de modelo de comportamento. O herói é também alguém que vive
a sua vida pela busca de um propósito maior, como a luta contra o mal.
Nessa jornada, ele aprende e ensina a todos nós sobre a vida e a condição
humana.

No entanto, a associação com a figura do herói, em certos aspectos, pode


ser problemática. Primeiro, porque o herói é uma personagem. Pense nos filmes
de ação hollywoodianos. Entre explosões e escapadas espetaculares, ninguém
vê as dores cotidianas do herói, suas fraquezas e vulnerabilidades. Nas raras
vezes em que elas são mostradas em filmes, o herói sempre triunfa sobre elas.
Segundo, porque os padrões de moralidade claros que informam as ações do
herói na ficção raramente se verificam na prática. Na vida real, as circunstâncias
são bem mais complexas e ambíguas, exigindo maior atenção e compreensão
acerca das motivações e pressões que conformam as decisões de pessoas de
carne e osso.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 153

Palavra do Especialista

Diversas pesquisas na área de saúde e segurança do trabalho


identificam que essa associação com a figura do herói leva à
desconsideração da importância das condições de trabalho dos policiais.
Em alguns casos, observa-se a glorificação explícita de situações laborais
que estão longe das ideais. Afinal, o valor do herói está em superar todas
as dificuldades, negligenciando suas dores para realizar o propósito maior
de ser um exemplo. Mesmo o treinamento por vezes reflete essa crença e
coloca esses profissionais em situações-limite para que possam sobreviver
ao dia a dia de sua profissão: longas horas de pé, turnos de serviço
exaustivos, equipamentos inadequados, alimentação insuficiente etc.
(Silveira & Oliveira, 2016; Albernaz & Pires, 2022).

Vamos Refletir
Você concorda que a atuação dos órgãos de segurança, enquanto
Se é verdade que sua profissão exige níveis de dedicação e
burocracias de Estado, deve ser neutra e não promover ideologias de
preparação diferenciados, estas exigências não podem naturalizar causas
partidos e nem diferenciações de tratamento entre pessoas baseadas em
de adoecimento físico, emocional e moral associados ao seu trabalho.
sua raça, gênero, orientação sexual, religião ou classe social?

Em parte, isso se deve a dificuldade que a sociedade, o Estado e, muitas


vezes, os próprios profissionais têm de se identificarem como trabalhadores da
segurança pública.

Mas o que é um “trabalhador”? Por definição, o trabalhador é alguém que:

1 não possui os meios de produção (fábricas, terras, máquinas


etc.) e, portanto,
2 precisa vender sua força de trabalho em troca de um salário.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 154

Estas são suas características principais. Nesse sentido, o profissional de


segurança pública é um trabalhador. Mas por que o reconhecimento dessa
condição é tão difícil? Já falamos sobre a imagem do herói que leva à exaltação
de atributos sobre-humanos dos agentes, naturalizando as agruras de sua
situação de trabalho. Entretanto existem outros motivos, bem mais estruturais,
para essa situação.

Veja os dois motivos:

1º motivo:

O primeiro motivo seria o lugar contraditório ocupado pela polícia na


sociedade de classes. Robert Reiner, em um texto clássico de 1978, chamado
The Police in the Class Structure (A Polícia na Estrutura de Classe) fala sobre
essa questão em relação à polícia do Reino Unido. Mas antes precisamos
esclarecer o que chamamos aqui de “sociedade de classes”. A sociedade é
formada por diversos segmentos populacionais que chamamos “classes sociais”
(classe média, classe alta, classe baixa etc.), que se diferenciam entre si
segundo critérios como faixa de renda, educação, padrões de consumo, hábitos
e valores. Um dos elementos de diferenciação mais importantes entre as classes
sociais, entretanto, é a ocupação. No exercício de sua ocupação, os policiais,
que são também trabalhadores, podem ser empregados na repressão a
movimentos reivindicatórios de outros trabalhadores. Por conta disso, segundo
Reiner, na sociedade Inglesa, nem o/a policial se identificava com a classe
trabalhadora, nem esta com o trabalho dos policiais.

2º motivo:

Em segundo lugar, podemos mencionar a questão da sindicalização. A


Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece o direito à sindicalização
como um direito fundamental dos trabalhadores, e isso é refletido em sua
Declaração sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Essa
declaração afirma que todos os membros da OIT têm a obrigação de respeitar e
promover a liberdade de associação, ou seja, o direito dos trabalhadores de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 155

formar e se juntar em sindicatos, e o direito de negociação coletiva com


empregadores sobre salários, condições de trabalho e outros assuntos de
interesse mútuo.

Figura 15

Fonte:

Você sabia?
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência
especializada das Nações Unidas dedicada a promover direitos
trabalhistas, emprego decente e relações de trabalho justas em todo o
mundo. Ela enfatiza a importância do direito à sindicalização como um dos
princípios fundamentais do trabalho. O direito à sindicalização é abordado
principalmente nas convenções e recomendações da OIT, bem como em
suas declarações e documentos relacionados. A OIT trabalha para garantir
que os países membros respeitem e implementem esses princípios
fundamentais. A organização também monitora a conformidade dos países
membros com esses princípios e pode prestar assistência técnica para
promover a sindicalização e a negociação coletiva em nações que
enfrentam desafios nessa área.

Em diversos países, os policiais não podem formar sindicatos. Os


sindicatos são organizações formadas por trabalhadores com o objetivo principal
de representar os interesses e direitos de uma determinada categoria
profissional. Essas organizações atuam como intermediárias entre os
trabalhadores e os empregadores ou governos, buscando melhorar as condições
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 156

de trabalho através de acordos coletivos. Diferente dos serviços de assistência


jurídica das associações policiais, cujas decisões não geram efeitos coletivos, os
acordos têm status de lei e devem ser obedecidos pelos empregadores,
beneficiando toda categoria.

A proibição da sindicalização da polícia, como veremos nas seções


seguintes, não é uma regra universal e pesquisas mostram que existem prós e
contras em torno dessa medida. Por hora, é importante frisar que os policiais são
trabalhadores essenciais, encarregados do monopólio da violência legal e
legítima do Estado e, por conta disso, não podem fazer greves.

A paralização dos serviços policiais historicamente tem sido


associada a problemas graves de desordem e insegurança (Rocha, 2018;
Benzaquen, 2020).

Essa característica, que distingue esses profissionais, acaba afastando-


os ainda mais da identidade de trabalhador, cujos direitos de sindicalização e
greve são garantidos por lei nas democracias. Mas, então, como tratar essa
questão das condições de trabalho da “classe policial”? Se concordamos que a
profissão é essencial e que sua execução pode comprometer física, psicológica
e moralmente seus praticantes, é preciso garantir condições de trabalho
adequadas para estes profissionais.

Falaremos das vantagens e desvantagens de diferentes modelos de


participação política de policiais enquanto trabalhadores mais à frente.
Entretanto, é importante mencionar que existe uma experiência relativamente
recente no Brasil em que essa identificação promoveu um modelo de
participação efetiva. No ano de 2009, aconteceu a primeira Conferência Nacional
de Segurança Pública (CNSP). A CNSP envolveu meses de um amplo processo
de consulta à sociedade, com grupos de trabalho organizados em nível municipal
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 157

e estadual, focados em construir propostas para a política nacional de segurança


pública, segundo eixos temáticos. A participação nesses grupos era dividida por
categorias e uma escolha importante foi a separação entre os “trabalhadores da
segurança pública” e o “Governo”. Com essa medida, deixou-se claro que, muito
embora os interesses do Governo e da polícia sejam coincidentes na promoção
da ordem pública, estes podem estar separados quando se fala em condições
de trabalho.

4.2 Condições de trabalho e democracia

Na área de saúde e segurança do trabalho, estudos recentes têm


incluído a questão do “sofrimento moral” dos policiais referindo-se a
situações em que agentes cometem, deixam de prevenir ou testemunham
mortes ou atos graves de violência que violentam suas crenças morais
profundas sobre certo e errado, justiça e dignidade (Papazoglou et al.,
2020).

Como os próprios autores desses estudos apontam, a dimensão do


sofrimento moral ainda é pouco explorada tanto na pesquisa quanto na política
pública de segurança. Podemos adicionar a esse diagnóstico o fato de que a
dimensão moral do sofrimento emocional e físico dos policiais não deve se
restringir às suas atividades finalísticas, incluindo, por exemplo, as relações
entre pares e superiores hierárquicos.

A moral se refere a um conjunto de princípios, valores e normas que


orientam o comportamento humano em relação ao que é considerado certo ou
errado dentro de uma determinada sociedade, cultura ou grupo, sendo
influenciada por fatores como a religião, a origem social, a ocupação, a
orientação sexual, dentre outros. Nesse sentido, o que é considerado
moralmente aceitável em determinado contexto pode não ser em outras
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 158

situações e conflitos morais podem emergir. Quando conflitos desse tipo


acontecem no dia a dia - e eles acontecem bastante - é possível ignorá-los,
aceitando que as concepções de certo e errado entre as pessoas simplesmente
diferem e a vida segue. Em uma situação de trabalho, entretanto, não há muita
escapatória. As pessoas precisam desempenhar tarefas compartilhadas, tomar
decisões conjuntas e entregar resultados. A questão é como lidar com esse tipo
de conflito, que atinge as nossas crenças mais arraigadas sobre certo e errado,
no ambiente de trabalho das polícias, em que a hierarquia e disciplina são
altamente valorizadas.

Hierarquia e disciplina existem em todas as organizações. Em um sentido


lato, podemos dizer que qualquer espaço social, formal ou informalmente, possui
suas próprias hierarquias e formas disciplinares. Nas organizações policiais,
estes princípios organizadores são basilares para a coordenação entre as
frações de efetivos e para garantir que o poder armado da polícia não se volte
contra a sociedade e o próprio Estado. Todo o sentimento de desconforto ou
desacordo que não afronte esses propósitos deve contar com canais
apropriados de expressão. O represamento dessas demandas, além de causa
para o sofrimento moral, como vimos, pode gerar uma situação de desgoverno
estrutural em razão da adoção de estratégias individuais e coletivas de
sabotagem que impactam a possibilidade de uma governança de polícia eficiente
e efetiva.

Essas são algumas das conclusões do estudo de Fleming, Marks e Wood


(2006), consolidadas no artigo “Standing on the inside looking out: the
significance of police unions in networks of police governance" (Olhando de
dentro para fora: a importância dos sindicatos policiais nas redes de governança
policial).

Ao analisarem o estado da arte das relações trabalhistas e do


funcionamento dos sindicatos policiais, os pesquisadores chegaram a uma
importante constatação: uma polícia que não abre espaços de escuta e
participação focados no aprimoramento do seu ambiente laboral tem
dificuldades de se enxergar como promotora da democracia.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 159

Se a realização de uma democracia de fato depende da materialização de


um Estado Democrático de Direito, que tem como nortes a justiça procedimental
e a legalidade (ver Aula 5 do Módulo I), apenas uma organização que viva esses
princípios na prática poderá reforçá-los na relação com a sociedade. Segundo
os autores, a falta de respeito a esses princípios dentro da instituição policial
tende a contribuir para o desenvolvimento de uma concepção cínica do seu
trabalho e da relação com a sociedade e com o Governo, o que se reflete na
forma como os policiais se relacionam com pessoas fora da instituição. Muito
embora existam diversas causas para o que os autores chamam de cinismo
policial (ver Graves, 1996; Caplan, 2003), o estudo de Fleming, Marks e Wood
tem o mérito de relacioná-lo diretamente à identificação do policial como
trabalhador e suas condições de trabalho.

Saiba mais
Em parte, o “cinismo” pode ser uma forma de autodefesa, pois as
pessoas cínicas têm dificuldade em acreditar na honestidade e integridade
de terceiros. Os cínicos tendem a criticar constantemente o status quo, as
normas sociais e as ações das pessoas. Entretanto, a característica
fundamental do cinismo é um ceticismo acentuado em relação a ideias,
valores, instituições e pessoas. Eles veem as instituições sociais como
corruptas e desonestas. Uma postura excessivamente cínica pode levar a
relações sociais difíceis, isolamento social e um senso geral de
desconfiança em relação ao mundo, o que pode provocar sofrimento
emocional e privação.

Outros estudos focados no desenvolvimento de sistemas de governança,


tanto no setor público quanto no privado, corroboram esse entendimento, que
não se restringe de forma alguma às organizações policiais. Esses estudos
mostram também que quando questões relacionadas ao ambiente de trabalho
não são tratadas pelas organizações por meio de canais e procedimentos
estabelecidos, florescem estratégias de sobrevivência e progressão na carreira
que usam a patronagem e a troca de favores como moedas. Falaremos mais
sobre isso na próxima seção. Por hora, gostaríamos apenas de fixar que toda a
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 160

experiência social rotineira produz um tipo de pedagogia prática, ou seja, ensina


algo que vira um conhecimento arraigado devido ao seu caráter vivencial. Nesse
sentido, se em seu ambiente de trabalho o/a policial precisa barganhar direitos
como privilégios, essa é a lógica que ele/a adotará ao tratar dos direitos de
outros.

Saiba mais
As "relações de patronagem" se referem a um tipo de interação
social ou prática em que uma pessoa em posição de poder, conhecida
como "patrão" ou "patrono," fornece proteção, favores, apoio ou recursos a
outra pessoa em troca de lealdade, obediência ou serviços. Essas relações
são desiguais em termos de poder e influência, e o patrão detém uma
posição social, política ou econômica superior à pessoa que recebe o
patrocínio, conhecida como "protegido" ou "afilhado". Embora as relações
de patronagem possam ter benefícios mútuos, elas também podem criar
desigualdades e oportunidades limitadas para aqueles que não têm acesso
a um patrono influente. Em muitos casos, as relações de patronagem
podem perpetuar sistemas de nepotismo e corrupção. Portanto, em muitos
países e contextos, esforços são feitos para regulamentar ou reduzir essas
práticas a fim de promover maior igualdade de oportunidades e justiça.

4.3 Associativismo e sindicalização

Como vimos no início de nossa aula, a polícia vive sob um regime de


trabalho especial. Seus serviços são considerados essenciais e o exercício do
direito à greve dessa categoria pode ser altamente danoso para a sociedade.
Por sua vez, o direito à sindicalização não se aplica universalmente à polícia,
como no caso dos demais trabalhadores. Existem países que adotam o modelo
que podemos chamar “associativista” e outros autorizam a organização de
sindicatos, mas com a vedação do direito de greve.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 161

Saiba mais

Em alguns países, como a África do Sul, apenas os funcionários civis


da polícia podem paralisar as suas atividades.

Falaremos sobre as vantagens e desvantagens desses modelos mais à


frente.

Essa situação nos coloca um conjunto de desafios importantes.

1 Como promover melhores condições de trabalho por meio de


canais e processos institucionalizados e universais?
2 Como viabilizar a participação desses trabalhadores na política
pública de segurança, que os afeta diretamente?
3 Como construir uma pedagogia institucional democrática dentro
das polícias, para que estas possam ser verdadeiras defensoras da
democracia?

Como mencionamos no início da seção, podemos dizer que sindicatos e


associações policiais são os dois modelos mais comuns operando hoje na
regulação das relações de trabalho entre a polícia e seu empregador, o Estado.
Estudos mostram diferentes resultados em termos da obtenção de
melhoramentos efetivos das condições de trabalho dos policiais e da promoção
da democracia entre os dois modelos. Entretanto, podemos dizer que a principal
diferença entre eles gira em torno do que chamaremos de efeitos coletivos.

A organização de associações policiais é aceita universalmente nas


democracias contemporâneas. Os/as policiais, como qualquer pessoa, podem
se associar em grupos de interesse ocupacionais, fraternais, recreativos, dentre
outros. Estas associações, no mundo policial, notadamente, oferecem serviços
de diversas ordens, incluindo assistência jurídica. Entretanto, os efeitos dessas
decisões judiciais pontuais não têm validade para o restante da categoria
profissional, ou seja, não geram efeitos coletivos. Mas isso não quer dizer que
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 162

essas organizações não tenham seu espaço de negociação com o Governo de


melhorias para a classe que representam. Os sindicatos, por sua vez, têm um
“assento” na mesa de negociações garantido por lei, em câmaras de arbitragem.
As associações participam de conselhos consultivos de Governo e trabalham
com a estratégia de construir redes de influência política.

Nesse ponto, retornamos ao trabalho de Robert Reiner (1978), “The


Police in the Class Structure” (A Polícia na Estrutura de Classe) que mostra
que mais importante que a distinção de modelos é a questão de como estas
organizações, sejam sindicatos ou associações, constroem o seu poder de
barganha na prática. Reiner afirmou ainda que os sindicatos de policiais
no Reino Unido não poderiam ser definidos facilmente como
“conservadores” ou “progressistas”. Segundo o autor, isso se devia à
postura pragmática que estas organizações adotavam na negociação de
suas reivindicações com o Governo. Reiner identifica ainda os perigos da
negociação permanente entre a polícia britânica e a classe política acerca
das condições de trabalho e das demandas (materiais, legislativas,
operacionais) de execução do mandato da polícia. O autor entende que
quanto maior a permeabilidade do comando das organizações a estas
negociatas, maior o risco de instrumentalização política das polícias. Para
Reiner, mesmo os contratos de sindicatos, que são formas
institucionalizadas de negociação da classe política com as organizações
policiais, precisam ser transparentes para que não criem brechas para a
impunidade, como apresentado pelo trabalho de Stephen Rushin,
abordado mais à frente no texto.

Ainda segundo Robert Reiner, a principal maneira de construir poder de


barganha pelos sindicatos e associações é o tamanho de sua membresia e o
seu enraizamento nas unidades policiais. O autor também menciona o papel da
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 163

relevância dessas organizações na construção do debate público sobre polícia.


Mas aquilo que as associações e sindicatos precisam, acima de tudo, é mostrar
resultados. Que tipo de resultados? Isso vai variar, dependendo de quais sejam
as demandas da categoria naquele momento e contexto. O trabalho de
representação precisa ser dinâmico e estar em contato direto com suas bases
de apoio. Na busca por esses resultados, surge como assunto delicado a relação
dessas organizações com a esfera política.

Se, por um lado, a falta de poder de barganha coletiva pode expor mais o
modelo associativista à lógica de estabelecimento de relações de patronagem
com políticos e comandantes, sabotando os esforços de profissionalização da
polícia, os contratos produzidos pelos sindicatos têm sido motivo de
preocupação, ameaçando a democracia em diversos países do mundo. Esse é
um amplo debate que tem questionado exatamente a forma como as demandas
trabalhistas de policiais podem ser ouvidas de forma institucionalizada, universal
e transparente.

O extenso trabalho do pesquisador Stephen Rushin, Police Union


Contracts (2017) analisou um total de 178 contratos firmados entre
sindicatos policiais e governos de cidades nos Estados Unidos.

Com base nessa amostra, o autor e sua equipe analisaram em quantos


destes contratos foi verificada a concessão de proteções processuais que
dificultavam a responsabilização de policiais acusados de desvios de conduta.

Os resultados foram alarmantes, pois na grande maioria das


grandes cidades dos Estados Unidos, esse tipo de medida tinha sido
acordado entre governos municipais e sindicatos. Isso mostra a
responsabilidade dos Governos na supervisão, não apenas de aspectos
técnicos do trabalho da polícia, mas principalmente políticos, no sentido de
definir e defender meios aceitáveis para se obter resultados em uma
democracia.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 164

Finalizando....

Neste módulo você aprendeu:

✓ Nesse módulo, tratamos das dimensões políticas do trabalho policial


como um tipo de tensão permanente entre a necessidade de controle e o
perigo de instrumentalização da polícia pela classe política, um risco
inerente ao funcionamento das democracias e seus ciclos eleitorais.
Depois de diferenciarmos entre o “controle político” e a
“instrumentalização político-partidária”, introduzimos o tema da
“governança de polícia” (Proença Júnior, Muniz e Poncioni, 2009) como
solução para o problema e tratamos dos riscos de uma “polícia política”.
Destrinchamos ainda os aspectos “políticos” do trabalho policial,
finalizando o módulo colocando uma discussão sobre a importância das
condições de trabalho dos profissionais de segurança pública como um
aspecto fundamental para a defesa da democracia.
✓ No exercício de sua missão, os profissionais de segurança pública
ocupam um lugar estratégico na proteção do Estado Democrático de
Direito. Não apenas em razão do seu trabalho de controle e prevenção do
crime que, como vimos, é fruto de um processo histórico de
especialização dos serviços policiais. Mas em razão de sua atuação se
situar em um lugar - que é físico, mas também político - que
caracterizamos como um “ponto de encontro”. Um encontro que acontece
entre a polícia e a população, entre os cidadãos e o Estado, entre o mundo
das leis e as leis do mundo. Em sociedades altamente desiguais,
funcionários/as públicos/as que trabalham diretamente com as demandas
da população tendem a experimentar o Estado como uma espécie de
“fronteira” (Göpfert, 2020), em que a distância entre as circunstâncias
ideais visualizadas pelo Legislativo e as condições materiais de aplicação
das leis parece por vezes intransponível.
✓ Nesse contexto, cabe aos poderes Judiciário e Executivo, que atuam
diretamente no espaço regulatório dos sistemas políticos, trabalhar para
reduzir esse intervalo. A polícia, enquanto instituição estatal, é
considerada um híbrido: um instrumento de intervenção do Executivo,
mas que se incorpora ao processo Judiciário por meio do seu trabalho de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 165

identificação e processamento legal de crimes e condutas


desestabilizadoras da ordem pública. Sabemos que a polícia não vai
resolver o problema da desigualdade. Muito menos fechar o intervalo
regulatório que caracteriza os sistemas político-jurídicos. Entretanto,
devido à natureza dos seus poderes e à autorização para o emprego da
força, a polícia desempenha um papel “político” fundamental no sentido
de influenciar a distribuição de poder na sociedade (Weber, 2011).
✓ Mas de que maneiras isso acontece? Ao longo do Módulo III, mostramos
que essa dimensão política do trabalho da polícia se manifesta, por
exemplo, nos impactos diferenciais da violência e da insegurança sobre
determinadas áreas e segmentos da população, mas também no trabalho
cotidiano dos/as policiais enquanto “políticos de esquina”, realizando um
trabalho de mediação simbólica que incorpora demandas por respeito e
consideração (Oliveira, 2008) nos conflitos em que são chamados/as a
intervir. Mostramos que a adequada mediação dessas conflitualidades
cotidianas, que fazem parte da vida em sociedades urbanas complexas
(Simmel, 2011[1964]), pode fazer a diferença no acesso a direitos.
✓ Entretanto, para que isso aconteça, como vimos, é preciso interromper o
processo avançado de militarização das polícias, priorizando o
desenvolvimento de suas funções civis com o objetivo de ampliar a sua
disponibilidade, capacidade de pronta-resposta e imparcialidade (Bayley
& Perito, 2010), configurando a polícia enquanto um serviço essencial
focado no cidadão. Recorremos, nesse sentido, ao exemplo dos
chamados “contextos pós-conflito”, em que os dilemas implicados na
reconstrução da confiança das pessoas nas leis e na justiça do Estado,
ou seja, na reconstrução do Estado de Direito, são mais agudos. Vimos
com o exemplo sul-africano que, mesmo nesses cenários extremos, é
possível realizar esse trabalho de reconstituição da esfera da política em
que a reforma da polícia se mostrou fundamental para o processo de
construção da democracia.
✓ Ao longo do módulo, argumentamos que o Estado de Direito e a
sociedade como um todo se beneficiam muitíssimo de uma polícia
consciente de seu papel e relevância social. Entretanto, mostramos
também que a democracia é importante para a própria polícia. Nesse
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 166

contexto, afirmamos que a discussão sobre formas de expressão e


encaminhamento de demandas trabalhistas e conflitos internos às
organizações policiais contribui para uma relação equilibrada entre a
polícia e a esfera da política, no sentido de reduzir oportunidades para o
recurso à “troca de favores” e ao “apadrinhamento político” na
reivindicação de direitos que deveriam ser garantidos aos trabalhadores
e trabalhadoras da segurança pública.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 167

Módulo 4 - OS DESAFIOS DO ESTADO BRASILEIRO E A


SEGURANÇA PÚBLICA: O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA
PÚBLICA

APRESENTAÇÃO DO MÓDULO

Esse módulo buscará se aprofundar nos desafios que estão presentes na


realidade nacional brasileira, em especial, no referente à questão da segurança
pública. Tentaremos oferecer uma discussão sobre a prestação do serviço de
prover segurança às pessoas, debatendo sobre os problemas que ora
remanescem de nosso passado, ora dizem respeito às lacunas que a segurança
pública possui em relação a outros campos das políticas públicas que, apesar
de problemas estruturantes da vida nacional, têm obtido melhores índices de
eficiência e eficácia na provisão dos seus respectivos bens públicos.

Assim, com o objetivo de melhorar o serviço ofertado, discorreremos


sobre as questões presentes nessa área, recorrendo à análise de suas variáveis
sociais e político-jurídicas, em especial a Constituição Federal. A partir daí,
lançaremos mão da discussão sobre como o Estado brasileiro estabelece seus
caminhos (legais, políticos e administrativos) para atingir os objetivos
consensuados politicamente, o que chamaremos provisoriamente de
governança da Segurança Pública.

O Sistema Único de Segurança Pública (Susp) será, então, objeto das


nossas discussões, com o objetivo de torná-lo um instrumento do Estado e da
sociedade civil na alavancagem de melhores condições de segurança à
população e aos profissionais de Segurança Pública. Abordaremos as questões
afetas a este sistema, dentre as quais sua concepção, legislação vigente,
orçamento, desenho institucional e políticas públicas no seu escopo.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 168

OBJETIVOS DO MÓDULO

Este módulo tem por objetivos:

✓ Abordar os desafios do Estado brasileiro na construção do Estado


Democrático de Direito do ponto de vista da Segurança Pública;
✓ Compreender o desenho legal e institucional que orienta a
Segurança Pública no Brasil;
✓ Apresentar instrumentos ligados à governança da Segurança
Pública no Brasil; e
✓ Apresentar o Susp, de forma a oferecer aos profissionais de
Segurança Pública possibilidades de otimização do trabalho
desenvolvido.

ESTRUTURA DO MÓDULO

Este módulo compreende as seguintes aulas:

Aula 1 – Os desafios brasileiros e suas repercussões na oferta de


segurança pública;

Aula 2 – A Segurança Pública e a Constituição Federal de 1988; e

Aula 3 – O Sistema Único de Segurança Pública (Susp).


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 169

Aula 1 - OS DESAFIOS BRASILEIROS E SUAS REPERCUSSÕES


NA OFERTA DE SEGURANÇA PÚBLICA

Muito embora se pense que segurança pública seja sinônimo da atuação


na área de justiça criminal, a capacidade de prender criminosos e levá-los a
julgamento é apenas uma das faces do amplo trabalho que significa prover
melhores níveis de segurança e uma resolução menos violenta dos conflitos,
cerne da atuação dos profissionais do Susp. Em outras palavras, o sistema de
justiça criminal, responsável pelo atendimento estatal prestado após o
cometimento de um delito é apenas um aspecto do esforço para a preservação
do Estado de Direito. Como vimos, assegurar o império da lei (rule of law) passa
pela promoção da cidadania muito antes de se acionar mecanismos que
estabeleçam sanções penais. Essa afirmação alcança um ponto central do
trabalho policial, pois, não obstante as polícias possuírem uma potencialidade
de fazer valer, nas ruas, a força da lei, seu papel começa muito antes e, podemos
dizer, vai muito além da lei penal.

Nos módulos anteriores, tratamos da polícia como um serviço policial


orientado mais para a sociedade do que para o Estado. De fato, nosso próprio
conjunto legal brasileiro, construído a partir da Constituição Federal de 1988,
também assim o faz. Apesar disso, podemos dizer que a segurança pública no
Brasil não foi capaz de fazer uma guinada que fosse além de sua forte vinculação
com o Direito Penal.

Essa dificuldade nacional tem suas razões e tentar abordá-las e, mais,


encontrar caminhos para superá-las é o que vamos buscar neste módulo, ao
resgatar algumas leituras sobre o Brasil. Feito isso, procuramos apresentar os
avanços que vêm sendo construídos no sentido de entregar melhores níveis de
segurança pública.

Conseguir níveis de sucesso melhores é, contudo, uma construção


coletiva de muitas mãos. Esperamos poder oferecer alguns elementos para
ela.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 170

O Brasil é reconhecidamente um dos países mais violentos do mundo


(UNODC, 2019), não obstante possuir índices socioeconômicos melhores que
muitas nações com menores taxas de crimes violentos.

Ao mesmo tempo, a distribuição de tais taxas é desigual: enquanto


populações de determinados territórios e de determinadas clivagens
sociais possuem números dentre os melhores do mundo, outras têm uma
incidência de violência superior à de países envolvidos em guerras internas
(FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023).

Assim como os crimes que atentam contra a vida e a incolumidade das


pessoas, os crimes contra a propriedade são igualmente expressivos. Esse
panorama traz a questão da insegurança para o cotidiano das pessoas, as quais
chegam a reorientar suas vidas em face do medo de serem vítimas de crimes.

Essa situação não é própria somente dos nossos dias. A violência compõe
a nossa própria história, desde a configuração histórica das nossas relações
sociais, marcada por séculos de submissão de parcela substancial da nossa
população à escravidão e, por óbvio, à violência, até a naturalização da violência
para a solução de conflitos.

Uma das principais peculiaridades brasileiras reside no fato de que alguns


elementos que perpassaram a nossa conformação como país comunicam-se
muito fortemente com o nosso atual momento, impondo grandes obstáculos para
se alcançar níveis mais “civilizados”, ou menos violentos, nos termos de Norbert
Elias (1990), já trazidos neste curso.

Por certo que, tão variadas sejam as lentes de análise sobre os problemas
estruturantes de nossa sociedade, tão variadas serão as explicações para eles.
Para nosso módulo, vamos nos deter em duas marcas de nossa sociedade que,
em nossa concepção, guardam forte relação com a violência e a oferta de
segurança pública pelo Estado.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 171

Você sabia?
Uma das características mais marcantes da sociedade brasileira é o
autoritarismo, marca de nossa cultura política em que o poder se
concentra nas mãos de uma pessoa ou grupo político, com pequena
participação das pessoas nas decisões que afetam suas vidas
(SCHWARCZ, 2019).

Ainda que isso seja marcante nas questões que envolvem Estado e
sociedade, o autoritarismo se construiu nas diversas esferas de relações sociais
com grande disparidade (ou assimetria) de poder, como o caso dos senhores e
a população escravizada, nas relações familiares com pouco espaço de poder
para mulheres e filhos, ou nas relações de trabalho que se constituíram após o
regime escravocrata.

Paulo Sérgio Pinheiro (1991, 1997) estabelece uma relação entre o


autoritarismo e a incapacidade de o Brasil estabelecer um Estado de Direito que,
por meio da lei, conferisse um estatuto de igualdade aos cidadãos na
participação no poder, a despeito da existência de previsões legais no sentido
de reduzir essas disparidades.

Esse autoritarismo socialmente implantado persiste também naquilo


que podemos chamar de “microdespotismo” da vida diária, que se
manifesta na forma de racismo, sexismo, elitismo e outras hierarquias
socialmente entrincheiradas. Uma dramática desigualdade entre ricos e
pobres, um gap profundo e histórico que não diminuiu, mas, pelo contrário,
aumentou as dificuldades das novas democracias. A combinação de uma
falta de controle democrático sobre as classes dominantes e a negação dos
direitos para os mais pobres reforça as diferenças sociais hierárquicas,
fazendo com que os direitos e o império da lei sejam pouco mais que uma
cortina de fumaça para uma terrível dominação (PINHEIRO, 1997, p. 47).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 172

Como apontado por Pinheiro, é por meio do Estado Democrático de


Direito que o autoritarismo pode ser enfrentado. Isso é especialmente válido para
o Brasil contemporâneo, onde o conjunto de leis apresenta um repertório que se
coloca de forma bastante propositiva; o que ocorre, todavia, é que essas leis,
aqui, não conseguem ser integralmente colocadas em prática, pela dificuldade
do Estado brasileiro em fazer valer esse ordenamento. Isso é fruto, em parte, da
dificuldade dos grupos mais vulneráveis para fazerem valer sua cidadania, e, em
parte, e principalmente, da deficiência da própria arquitetura do Estado em
alcançar essas populações.

No que se refere à segurança pública, o autoritarismo se reflete em


algumas dimensões, veja algumas delas abaixo:

Violência ou abuso policial:

Uma delas se traduz em práticas de excesso de poder que recebe o nome


de violência ou abuso policial. Sob o prisma em questão, trata-se exatamente de
uma das faces do autoritarismo, uma vez que faz presente o exercício do poder
sob o domínio do outro e, portanto, com a retirada do arcabouço jurídico que lhe
assegure as garantias individuais.

Grupos criminais:

Se o excesso de poder estatal é um reflexo do autoritarismo, ele não se


faz presente apenas nas instituições, pois existe também nas micro relações
sociais. Outra marca do nosso autoritarismo é a capacidade de grupos criminais
imporem sua autoridade. Se, por certo, os grupos, ou facções, criminais mais
conhecidos nacionalmente logo nos vêm à mente, há, infelizmente, um rol de
outros grupos que, valendo-se da força bruta, mas também da ameaça,
constrangem parcelas imensas da população. Esse é o caso das chamadas
milícias, dos grileiros que se valem da força para a remoção forçada de
populações, dos madeireiros e extrativistas ilegais, dentre outros exemplos,
cujas ações, sobretudo exercidas sobre as populações mais desassistidas,
reforçam a marca do autoritarismo brasileiro.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 173

Outra questão bastante peculiar à nossa sociedade é a crença de que os


bens e serviços públicos são, ao invés de coletivos, especialmente voltados a
atender determinados grupos. É o que se denomina patrimonialismo. Por meio
dessa concepção deturpada, grupos poderosos se apropriam daquilo que
deveria atender ao bem comum. A distribuição desigual de recursos a
populações mais poderosas constitui uma distorção dos fins a que o Estado se
destina.

Um dos principais teóricos sobre isso foi Raymundo Faoro (2001), em seu
livro “Os Donos do Poder”. Nele, Faoro descreve como, desde o início da história
nacional, um grupo, para o qual o Estado funciona como uma extensão de seus
interesses, alcançou posições de destaque no Brasil. Nessa trajetória, o governo
no Brasil privilegiou o atendimento às classes economicamente poderosas,
deixando de lado critérios que atendessem a fins públicos definidos em leis.
Assim, segundo essa leitura, os integrantes do Estado orientavam suas práticas
para o atendimento a esse grupo, negligenciando, portanto, as camadas menos
favorecidas e mais carentes.

O patrimonialismo presente no Estado brasileiro é objeto de diferentes


esforços por combatê-lo. Veja o que diz Fernando Abrucio e Maria Rita Loureiro:

No trabalho “Burocracia e Ordem Democrática: desafios


contemporâneos e experiência brasileira”, Fernando Abrucio e Maria Rita
Loureiro (2018) descrevem um conjunto de iniciativas adotadas pelo Brasil
no sentido de conferir melhores níveis de profissionalismo e
impessoalidade à burocracia nacional, como forma de estabelecer uma
dissociação entre interesses públicos e privados, muito embora apontem
para a incompletude desse esforço nacional.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 174

Podemos dizer que uma das consequências mais evidentes do


patrimonialismo é a corrupção, mediante a qual servidores públicos apropriam-
se dos recursos públicos para seu próprio benefício. A existência de órgãos, tais
como tribunais de contas e corregedorias, que se coloquem frente a essas
práticas, revela-se ainda mais importante em contextos em que as diferenças
entre o público e o privado são tênues, e em serviços públicos que gozam de
grande potencial discricionário, como a polícia.

Vamos Refletir

Combater o patrimonialismo exige uma dimensão ética que seja capaz de


Se é verdade que sua profissão exige níveis de dedicação e
reafirmar que, nas suas diferentes atuações, o Estado deverá entregar
preparação diferenciados, estas exigências não podem naturalizar causas
níveis de eficiência e efetividade, calcados em uma moralidade pública.
de adoecimento físico, emocional e moral associados ao seu trabalho.
Caso contrário, corre-se o risco de que, mesmo nas decisões mais triviais,
a segurança pública seja um instrumento das distorções que reproduzam
esses problemas.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 175

Aula 2 - A SEGURANÇA PÚBLICA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL


DE 1988

Como dissemos, os problemas quanto à nossa formação social e política


derivam de configurações que são resultado de especificidades da história
nacional e que vêm até o presente. Contudo, mesmo os países com melhores
níveis de desenvolvimento político e social tiveram percursos históricos que, em
alguma medida, assemelham-se ao do Brasil, mas, por força de novos arranjos,
tiveram maior sucesso em superá-los.

Um problema que permeia a sociedade brasileira e o próprio Estado para


a consolidação do Estado Democrático de Direito é a distribuição desigual de
poder na sociedade. Trata-se de um problema que alcança em cheio os
profissionais da segurança pública.

Na Prática
Para ilustrar, vamos pensar nas eleições brasileiras que ocorriam no
começo do século passado. Com o fim da Monarquia em 1889 e a
instalação da República, logo na passagem do século, o Brasil teve
eleições para presidente. Nada mais democrático, certo? Mas, quem podia
votar? Para se ter ideia, nas eleições da chamada Primeira República
(1889-1930) apenas 6% dos eleitores eram autorizados a votar*. Parece
inegável que a participação na definição das regras do país restringia-se a
uma pequeníssima parcela da população, esses mais poderosos
economicamente.

*Disponível na página eletrônica do Tribunal Superior Eleitoral.


Acesse:https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Fevereiro/90-anos-da-justica-
eleitoral-12-eleicoes-presidenciais-ja-foram-realizadas-no-brasil-desde-1945

Esse exemplo nos mostra que o exercício do voto deve ser amplo o
suficiente para que contemple a vontade coletiva, caso contrário, teríamos a
reprodução da concentração de poder, reforçando a desigualdade e a mitigação
da cidadania para enormes parcelas da população.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 176

A possibilidade de votar e ser votado é indispensável, mas não é


suficiente para que tenhamos um Estado Democrático de Direito pleno para
todos, que assegure universalmente direitos tais como o direito à vida, à
liberdade, à educação e à segurança, que concretizam a possibilidade de
participação na vida política de um país.

A vigente Constituição Federal, promulgada em 1988, busca


superar os problemas políticos que remanescem no Brasil e consolida o esforço
nacional para estabelecer uma nova pactuação que promova cidadania a grupos
que, historicamente, tiveram sua participação excluída.

Você sabia?
Chamada de “Constituição Cidadã”, representa a tentativa de
romper com um passado marcado pelo autoritarismo e pela reprodução de
estruturas que consolidaram forte desigualdade social e que estiveram na
base da formação da nossa nação e, consequentemente, do Estado
brasileiro.

Ela tenta superar os problemas que percorrem nossa história, não só pela
sedimentação da democracia, mas, em grande parte, pela organização do
Estado brasileiro com o intuito de torná-lo capaz de ser aderente aos interesses
da sociedade. Nestes termos, podemos afirmar que a Constituição Federal
possui tanto uma dimensão cidadã – representada com destaque nos seus
artigos 5º e 9º, que tratam dos direitos civis e dos direitos sociais – como uma
dimensão gerencial, como, por exemplo, no artigo 37 e seguintes, que abordam
a administração pública.

Podemos representar essa passagem em três pontos principais:

1 o fortalecimento dos mecanismos e instituições que garantissem a


realização de eleições nos três níveis federativos (União, Estado e
Município);
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 177

2 a proteção aos direitos civis, sociais e políticos como base da


construção de nossa sociedade; e
3 uma organização do Estado que fosse capaz de atender às
exigências dessa sociedade, baseada em princípios básicos nas
principais democracias, como eficiência, eficácia e efetividade,
legalidade e impessoalidade.

Nos termos constitucionais vigentes, a segurança pública se relaciona


com os últimos dois pontos que trouxemos anteriormente. Isso porque ela tanto
se coloca como um dos direitos a que os brasileiros fazem jus, assim como uma
na questão da organização administrativa do Estado na oferta desse serviço
público. Ocorre que, ainda que se possa dizer que houve avanços em relação
às Constituições Federais anteriores, a atual Carta vigente, por outro lado,
manteve alguns problemas e apresentou outros novos.

Em termos do texto constitucional, a segurança pública aparece em dois


momentos.

O espaço especialmente dedicado à segurança pública vem previsto no


artigo 144, o qual, em seu caput, prevê que a segurança pública é:

“dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” (BRASIL.


CONSTITUIÇÃO (1988).

Esse dispositivo se coaduna com o espírito que permeia a Constituição


Federal na medida em que busca trazer a sociedade para participar das ações
do Estado, em uma clara inflexão em relação aos padrões vigentes até então na
segurança pública, cujas questões eram pensadas como “assuntos de Estado”,
sem a participação da sociedade, portanto. Esse esforço em promover maior
participação social será uma tônica em todo o texto constitucional, como nas
áreas de saúde (artigo 198) e educação (artigo 205, caput), dentre outras.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 178

O artigo 144 passa, então, a definir as competências de cada uma das


agências policiais, quais sejam a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal,
a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares, os Corpos
de Bombeiros Militares e a Polícia Penal*.

Saiba mais
*O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 28 de agosto
de 2023, reconheceu as Guardas Municipais como integrantes do rol de
agências que integram a Segurança Pública. Para mais informações,
recomendamos a leitura do julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº 995.

Acesse: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6444398

Não será objeto do presente conteúdo descrever cada uma das missões
dessas agências policiais, as quais estão definidas no dispositivo legal, muito
embora existam importantes zonas de superposição de atuação. Para nossa
finalidade, cabe destacar uma outra questão ligada a esse artigo, qual seja a
falta de articulação entre essas agências. Para isso, vamos passar brevemente
pelo capítulo que trata de outra importante área de prestação estatal: a saúde e
os artigos 196 a 200 em que serão encontrados dispositivos mais bem
elaborados em relação à governança.

Muito diferentemente da segurança pública, a Constituição Federal


dedicou muito maior detalhamento sobre o funcionamento, financiamento,
formas de controle social e, até mesmo, vencimentos dos profissionais de saúde.
Tomemos, por exemplo, a forma com que o legislador constitucional buscou
avançar na articulação entre os diferentes atores da área da saúde:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede


regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado
de acordo com as seguintes diretrizes:
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 179

I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II - atendimento integral, com prioridade para as atividades


preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III - participação da comunidade (BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988).

Dentre a enormidade de ações disponíveis na saúde, a Constituição


Federal define que são prioritárias as atividades preventivas, em comparação
com as adotadas após o acometimento de doenças, por exemplo. Além disso, a
participação da comunidade é sinalizada como uma diretriz necessária à
prestação do serviço que, por sua vez, deverá contemplar ao mesmo tempo
atendimento descentralizado, mas que atenda a ditames mais centralizados.
Além desse artigo, outros vão compor o esforço em estabelecer uma articulação
que busque entregar bons níveis de eficiência e efetividade. É o que se vê
quando define como cada um dos entes federativos (União, Estado ou Distrito
Federal, e Municípios) participará no financiamento da área de saúde, qual o
papel da iniciativa privada e, até mesmo, como serão formuladas as políticas
salariais dos servidores ligados a essa área.
Ainda que haja muito em que se avançar nos assuntos ligados à oferta de
saúde no Brasil, podemos afirmar que os mecanismos vigentes são capazes de
congregar um conjunto de medidas que permite reorganizar os rumos dessa
política, por meio de instrumentos que derivam do governo, em suas diferentes
instâncias federativas, mas que contemplam a participação social, de forma a
buscar melhor atender a população. Atendo-se somente ao cenário
constitucional brasileiro, a segurança pública recebeu um tratamento bastante
aquém (SILVA et al., 2023). Mais do que apontar as razões que levaram a esse
tratamento legal à segurança pública (FERNANDES, 2021), importa dizer que
avanços ou retrocessos de uma sociedade são construções coletivas, que
envolvem os indivíduos, em seus múltiplos papeis, e as instituições que
compõem a vida nacional.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 180

Esse pensamento também se aplica a outro desafio, que deriva


igualmente da Constituição Federal. Neste caso, mais do que uma questão
inerente ao próprio texto, diz respeito a como a segurança pública foi
compreendida como um tema desconectado de outras áreas da vida social, a
despeito do pensamento do legislador constitucional.
Além do artigo 144, a segurança está também prevista, no artigo 6º, como
um direito social, ao lado de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia,
dentre outros. Nestes termos, a segurança pública é um direito fundamental e
condição essencial para o exercício pleno da cidadania, tal como desenvolvemos
nos módulos anteriores, em especial quando tratamos sobre o Estado de Direito
(rule of law) e sobre como a segurança é condição fundamental para o exercício
desse Estado de Direito.
Mas, o que gostaríamos de problematizar aqui é a razão pela qual a
segurança pública no Brasil conecta-se muito menos à noção de um direito social
e, muito mais, a uma série de órgãos ligados, tão-somente, à justiça criminal. Se,
inquestionavelmente, a prisão de pessoas que incorrem na prática de crimes é
uma das condições para assegurar melhores níveis de segurança, também é
certo que promover segurança não se resume a esse tipo de atuação.

Prevenir o cometimento de crimes, diminuir os riscos de as pessoas


serem vítimas das mais diversas formas de violência, restabelecer social e
individualmente um cenário de mitigação da violência sofrida ou tornar
pessoas e comunidades mais resilientes à eclosão da violência são
exemplos de medidas que se dão muito distantemente à Justiça Criminal e
que dialogam com a noção de segurança pública enquanto direito.

E ainda, revestir a segurança pública como uma área de atenção social


preferencial por parte do Estado, implicaria, ao menos conceitualmente,
conceder o tratamento que outras áreas, como alimentação, enfrentamento à
pobreza, saneamento básico e educação, além da própria saúde já trazida aqui,
também recebem.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 181

A prestação de um melhor serviço de segurança requer que as


ações sejam pensadas enquanto políticas públicas, o que, minimamente,
envolve transparência, prestação de contas, participação social,
planejamento de políticas multisetoriais, monitoramento e avaliação de
resultados e a reorientação dos rumos adotados em face das evidências
existentes (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014; CAPELLA,
2018; FARAH, 2016; FILGUEIRAS, 2018).

No entanto, a despeito das mudanças incrementais verificadas nas


últimas décadas, que aumentaram a eficiência operacional e tecnológica das
forças de segurança do país, a persistência de opções político institucionais que
valorizam um modelo de segurança reativo impede que o tema seja tratado como
uma política social universal que atinja toda a população brasileira.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 182

Aula 3 – O SISTEMA ÚNICO DE SEGURANÇA PÚBLICA (SUSP)

Até este momento, procuramos, neste módulo, apresentar os desafios


que cercam a oferta de melhores níveis de segurança pública para a
consolidação de um Estado de Direito. Revisamos algumas mazelas que dizem
respeito a como o Estado brasileiro se colocou na relação com a sociedade,
como o autoritarismo e o patrimonialismo, para pensar em como a Constituição
Federal buscou enfrentar tanto esses como um conjunto de outros problemas.
Neste ponto, apresentamos algumas análises sobre fragilidades e possibilidades
de avanço em uma leitura essencialmente ligada ao texto constitucional.

Buscamos deixar claro, contudo, que as dificuldades que existem exigem


esforços para superá-las que passam por novas percepções sobre o trabalho
dos profissionais de segurança pública e que não passam necessariamente por
mudanças legais. São, muito mais, novas formas de se abordar o problema da
segurança pública no Brasil que requerem igualmente outros arranjos
institucionais.

A partir daqui, pretendemos apresentar uma ferramenta que, à


semelhança de outras áreas de atuação do Estado, pretende promover avanços.
Abordaremos o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Para introduzir
esse conteúdo, trataremos inicialmente sobre o principal produto que o Susp
pretende entregar, e que busca enfrentar um dos principais problemas da
segurança pública no Brasil: como coordenar os diferentes atores interessados
(chamados pela literatura de stakeholders). Falamos aqui dos órgãos de Estado,
como as polícias, as guardas municipais, os órgãos de polícia forense, as
secretarias estaduais e os órgãos federais de gestão da segurança pública, mas
também da sociedade civil, destinatária e, portanto, centralmente interessada no
tema. Aqui, emerge um problema que tem sido objeto de estudo em diferentes
contextos internacionais, que é o de:

Promover a organização do Estado e da sociedade civil, de forma


articulada, com a finalidade de buscar a maximização dos bens públicos. É
o que chamamos governança.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 183

3.1 Governança: monitoramento e avaliação

Para iniciarmos essa discussão, vamos buscar compreender o que


significa governança. O artigo de Bernardo Buta e Marco Antonio Carvalho
Teixeira discute os diferentes sentidos da palavra e nos traz algumas definições.
Para os fins que pretendemos aqui, daremos ênfase à definição trazida por
Gisselquist para quem governança é “o exercício do poder político para gerenciar
assuntos coletivos” (GISSELQUIST, 2014, apud BUTA e TEIXEIRA, 2020, p.
381). Em estudo sobre governança e a Polícia Rodoviária Federal, Duarte Pires
(2016, p. 27) vai nos trazer uma definição da Organização das Nações Unidas,
que diz muito a respeito sobre como conjugar essa temática com a segurança
pública no Brasil.

Governança não é necessariamente uma “entidade física”, nem é o


ato de governar sobre cidadãos. É mais realisticamente entendida como
um processo: o processo por meio do qual instituições, organizações e
cidadãos “guiam” a si próprios. Governança trata, também, da interação
entre o setor público e a sociedade, e de como esta se organiza para a
tomada de decisão coletiva, de modo a que sejam providos mecanismos
transparentes para que tais decisões se materializem (PIRES, 2016, p.17).

Um dos pontos centrais a respeito da governança é como articular atores


com realidades, inserções institucionais e problemas diversos para propiciar
avanços em uma determinada questão. Um exemplo é trazido pelos trabalhos
de um autor ligado à Universidade Erasmus, em Roterdã, Holanda, chamado
Erik Hans Klijn, que discorre sobre as dificuldades de se implementar ações
conduzidas pelo Estado, mesmo em um país unitário e com um território bem
menor que o Brasil, como a Holanda. Em um de seus textos, escrito em coautoria
com Van Gils (2007), Klijn explica como foi possível conciliar interesses que
colidiam para promover a reforma do porto de Roterdã, em um trabalho que
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 184

exigiu 30 anos de negociação para que os diferentes interessados conseguissem


ter seus interesses atendidos, ainda que parcialmente, na concretização da
reforma. Traz como lição que, apesar dos conflitos, é fundamental que sejam
promovidos arranjos, sistemas, desenhos institucionais, dentre outras medidas,
que busquem atender interesses públicos. Com base nessas lições, podemos
dizer que, sem isso, há uma falha na provisão dos interesses coletivos, uma em
razão das disputas, outra porque os esforços, quando descoordenados,
sobrepõem-se, deixam vazios de atuação ou, simplesmente, anulam-se.

Agora, observem o quadro a seguir. Ele foi elaborado por Renato Sérgio
de Lima e utilizado por Iara Sennes em seu trabalho que diz respeito à
governança em segurança pública no Brasil (SENNES, 2021). Ele apresenta um
mapeamento dos stakeholders da burocracia estatal ligados à segurança pública
nacional.

Figura 16: Mapa de Stakeholders pertencentes ao Estado (Segurança Pública,


Sistema Socioeducativo e Justiça Criminal)

Fonte: Sennes (2021).

Já por esse ponto de vista, é possível ter um retrato do desafio brasileiro


para fazer com que tais órgãos atuem de forma articulada. Quando incluímos os
stakeholders da sociedade civil, tais como os ligados ao setor econômico privado
(mercado), as associações e sindicatos dos trabalhadores de segurança pública,
a imprensa e a opinião pública, apenas para citar alguns, esse panorama se
torna ainda mais complexo. Integrá-los, todos, de forma a conferir sentidos que
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 185

atendam à pactuação política prevista, por exemplo, em leis e planos nacionais,


é, por certo, uma difícil tarefa. Além da capacidade de conciliar sentidos
federativos e institucionais diversos, importa, para uma eficiente governança,
avaliar se os planejamentos e ações em curso entregam bons níveis de eficácia,
ou, em outras palavras, se atendem ao interesse público com níveis adequados
de investimento e se conectam-se com os anseios da sociedade. Com estas
questões no horizonte, o Susp foi elaborado. Passaremos a abordá-lo com mais
detalhamento.

3.2 Legislação e Concepção do Susp

Instituído pela Lei Federal nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (BRASIL


LEGISLATIVO, 2018), o Susp representa o esforço para estabelecer as bases
para uma ação articulada dos órgãos e instituições de segurança pública do
Brasil, em seus diferentes níveis federativos, e da sociedade civil. Do ponto de
vista constitucional, esta lei dialoga com o artigo 144, inciso 7º da Constituição
Federal, que postergou para lei futura a organização e o funcionamento dos
órgãos responsáveis pela segurança pública. A lei nº 13.675 estabelece em seu
artigo 1º que o SUSP tem por finalidade a:

“preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do


patrimônio, por meio de atuação conjunta, coordenada, sistêmica e
integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em articulação com a
sociedade.”

A questão que essa lei busca enfrentar é como o Brasil pode promover
melhores condições de segurança às pessoas, organizando os atores públicos,
em especial as Polícias, Guardas Municipais, Bombeiros, apenas para citar
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 186

alguns, ao mesmo tempo em que estabelece espaços privilegiados de


participação da sociedade na segurança pública. Busca ir além das capacidades
individuais de cada servidor e de cada instituição para tornar o conjunto desses
órgãos, reconhecidos como um “sistema”, eficazes, efetivos e eficientes. Para
isso, não bastam o voluntarismo, o heroísmo e as boas intenções.

A oferta ótima de qualquer bem público, assim como a segurança,


requer:

1 que os atores conheçam suas atribuições (evitando sobreposições


ou ausências);
2 que sejam estabelecidas responsabilidades (“quem coordena?;
quem presta contas?”);
3 que sejam estabelecidos espaços institucionais de qualificação dos
quadros em razão de novos desafios que se colocam à frente; e
4 que espaços de diálogo sejam definidos entre a segurança pública
enquanto Administração Pública e a sociedade, de forma que não
ocorra um processo de insulamento (ABRUCIO; LOUREIRO, 2018)
muito comum nas burocracias estatais. Com o insulamento, a
técnica administrativa, no limite, desconecta-se dos anseios da
população, guiando-se apenas pelas lógicas institucionais.

A Lei nº 13.675/18 estabelece o conjunto de princípios, diretrizes e


objetivos que traduzem os sentidos das políticas de segurança pública no Brasil
(artigos 4º, 5º e 6º). Muito embora princípios, diretrizes e objetivos digam respeito
a diferentes momentos da formulação e implementação de uma política pública,
podemos, a partir deles, compreender quais são as principais ideias que
promoveram a concepção desse sistema.

A prevenção e repressão à violência e seus riscos é o que qualifica,


em última análise, os objetivos do Susp. Isso se representa na interdição ao uso
da violência na resolução dos conflitos (artigo 4º, inciso VIII), na atuação
moderada e proporcional na atuação estatal (artigo 4º, inciso IX) e na proteção
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 187

da vida, junto ao patrimônio e ao meio ambiente (artigo 4º, inciso X). Dedica
atenção às políticas destinadas à preservação da ordem pública (artigo 1º; artigo
6º inciso II), à investigação de crimes (artigo 6º, inciso III e XXIV), ao tráfico de
drogas (artigo 6º, XVI) e aos crimes transfronteiriços (artigo 6º, inciso VIII).

Além da legalidade que deve orientar as políticas e ações promovidas em


segurança pública (artigo 4º, inciso I), a Lei 13.675/18 tem a proposta de conferir
melhores níveis de eficiência, eficácia e efetividade. Essas exigências se
colocam ao Estado, em geral, no seu papel de oferta de bens públicos
(BRESSER-PEREIRA, 2008; CAPELLA, 2018; CAVALCANTE; PIRES, 2018), o
que se aplica também na segurança pública.

Essas concepções perpassam diferentes princípios e objetivos do Susp e


coincidem com os referenciais que regem a governança das políticas públicas
de forma geral (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2014). Em
especial quando tratam da articulação entre os entes federativos e entre as
agências responsáveis pela Segurança Pública (artigo 5º, inciso IV; artigo 6º,
inciso I e XIX) nas fases de planejamento, execução, monitoramento e avaliação
das ações, promovendo-se a racionalização dos meios com base nas melhores
práticas (artigo 5º, inciso V), incluindo-se o compartilhamento de bancos de
dados (artigo 5º, inciso VIII) e informações de inteligência (artigo 6º, X), a
interoperabilidade tecnológica (artigo 5º, inciso XI; artigo 6º, incisos III, VII) e a
unificação dos registros policiais.

Outro aspecto incluído na concepção do Susp foi a construção de uma


Segurança Pública que estabelecesse canais de comunicação com a sociedade
civil. Com esse intuito, a lei reafirma a importância do controle social sobre as
ações em Segurança Pública, enfatizando a publicidade e a transparência das
atuações (artigos 4º, incisos XI e XVI, e artigos 33 a 35), que abrem a
possibilidade de definição de responsabilidades quanto às ações a serem
promovidas diante da ausência da provisão de segurança pública (controle social
a priori) ou diante de excessos (controle social a posteriori) (PROENÇA JÚNIOR;
MUNIZ; PONCIONI, 2009).

Aliada à concepção de gestão pública baseada em evidências, a Lei do


Susp incentiva, em diversas passagens, a produção de conhecimento que
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 188

impulsione avaliações sobre os resultados das ações adotadas (artigo 4º,


inciso XII, artigo 5º, inciso IX e artigo 6º, incisos VI, XVI e XVIII) de forma a
reorientar as políticas adotadas de forma mais eficaz, a qualificação dos
profissionais de Segurança Pública (artigo 5º, inciso VI e artigo 6º, inciso XI) para
a adoção das melhores práticas (artigo 5º, inciso V) e a inovação tecnológica
(artigo 5º, incisos VII e XI; artigo 6º, inciso III).

A Lei 13.675/18 dedica especial espaço à promoção de melhores


condições de trabalho para os profissionais de Segurança Pública (artigo 4º,
inciso II; artigo 5º, inciso VI e artigo 6º, inciso XXI e XXII), por meio de sua
valorização, programas de apoio à sua incolumidade física e mental (artigo 42)
e constante melhoria em sua qualificação
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 189

Figura 17: Princípios, diretrizes e objetivos que informam a concepção do Sistema Único de
Segurança Pública (Susp).

Prevenção e • Interdição ao uso da violência na resolução dos conflitos


repressão às • Proteção da vida, do patrimônio e do meio ambiente
violências e • Preservação da ordem pública, investigação de crimes,
enfrentamento ao tráfico de drogas e aos crimes
seus riscos transfronteiriços

Articulação entre
os entes • Racionalização dos meios com base nas melhores práticas
federativos e • Compartilhamento de bancos de dados e informações de
entre as inteligência
agências de • Interoperabilidade tecnológica
Segurança • Unificação de registros policiais
Pública

• Transparência

Controle social • Responsabilização

• Prestação de contas

• Realização de avaliação e monitoramento das políticas


Produção de pública
conhecimento • Reorientação da capacitação profissional com base nas
melhores práticas
• Inovação tecnológica

Promoção de • Proteção, valorização e reconhecimento dos profissionais


de Segurança Pública
melhores • Formação continuada e qualificada
condições de • Criação de mecanismos de proteção aos profissionais e
trabalho seus familiares
• Monitorar ações nas áreas de valorização profissional

Fonte: Lei Federal nº 13.675/18; do conteudista.


O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 190

Inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS) e no Sistema Único de


Assistência Social (Suas), exemplos que contam com maior longevidade (SILVA
et al., 2023), a Lei do Susp busca estabelecer um arranjo político que ofereça na
segurança pública melhores níveis de eficiência e efetividade.

A fórmula elaborada se estrutura em três pontos, quais sejam:

1 a existência de uma Política Nacional em Segurança Pública e seus


decorrentes Planos Nacional, Estaduais e Distrital;
2 o funcionamento de Conselhos pluralmente constituídos pelo Estado
e pela sociedade civil; e
3 a destinação orçamentária consoante os objetivos estabelecidos
pela normatização e pelas instâncias de participação.

Esse tripé Plano/Conselho/Fundo resume como a Lei do Susp estrutura a


governança do Sistema (SENNES, 2021; SILVA et al., 2023) e é sobre cada um
desses pontos que vamos tratar a partir daqui.

3.3 A Política Nacional e os Planos Federal e subnacionais de Segurança


Pública e Defesa Social

Alcançar objetivos requer o estabelecimento de um planejamento sobre


quais caminhos adotar, quais são principais e quais secundários, quanto de
recurso vou empregar para alcançá-los, quais são as etapas que pretendo
superar e como reoriento o percurso em face das incertas do futuro. Esse
planejamento é consolidado, geralmente, em um plano. Sobre ele, temos
autonomia para ajustar o curso.

Isso se torna mais complexo quando há outras pessoas interessadas


nesse plano. Como são diversos os objetivos a serem alcançados, torna-se
necessário estabelecer consensos mínimos que dirijam os planos, seus objetivos
e diretrizes. É o que se denomina a política que rege o plano.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 191

“Políticas” e “planos” são encontrados em diferentes instituições da


sociedade, inclusive em empresas privadas, cujo número de atores interessados
é menor que em uma nação e cujos interesses tendem a ser menos plurais e
conflituosos.

É exatamente para definir objetivos, estabelecer metas finais e


intermediárias, promover o monitoramento e avaliações constantes da
efetividade das ações planejadas e permitir o avanço de todo esse processo que
o Brasil, seguindo exemplos mundiais, estabeleceu Políticas Nacionais, que se
desdobram em Planos Nacionais e subnacionais.

Na Prática
Há inúmeros exemplos disso como a Política Nacional de Resíduos
Sólidos, a Política Nacional do Meio Ambiente, a Política Nacional de
Habitação, a Política de Defesa Nacional, a Política Nacional de Energia, a
Política Nacional de Saúde, dentre outras, cada qual com seus planos
correspondentes. Essas iniciativas diferenciam-se entre si em termos de
suas capacidades de entregar os bens públicos previstos em seus
objetivos, dentre outras variáveis.

Já vimos que, em 2018, foi promulgada a Lei Federal nº 13.675 que cria
a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, aqui resumida. A partir
da promulgação dessa lei, foi criado o Plano Nacional de Segurança Pública e
Defesa Social (BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA.,
2021).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 192

Figura 18: Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030.

Fonte: https://www.gov.br/mj/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/categorias-de-
publicacoes/planos/plano_nac-_de_seguranca_publica_e_def-_soc-_2021___2030.pdf

O Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (BRASIL.


MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2021, p. 10) traz como
objetivos:

1 Determinar ciclos de implementação, monitoramento e avaliação do


PNSP;
2 Apresentar ações estratégicas alinhadas aos objetivos da Política
Nacional de Segurança Pública e Defesa Social; e
3 Definir metas estratégicas e indicadores alinhados aos objetivos da
Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e às ações
estratégicas apresentadas;
4 Estabelecer estratégias de governança e gerenciamento de riscos
com vistas à plena execução, o acompanhamento e a avaliação do
PNSP; e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 193

5 Orientar os entes federativos quanto ao diagnóstico, elaboração,


conteúdo e forma dos planos de segurança pública e defesa social,
visando o alinhamento com a PNSPDS e o PNSP.

Existem competências distribuídas entre os entes federativos, conforme


previsão constitucional. Isso se reflete nos objetivos do Plano, que se concentra
na apresentação, definição e orientação de estratégias e metas que subsidiem
as instituições subnacionais na concretização desses esforços.

O Plano estabelece os objetivos, representados por algumas metas


almejadas para o final do ciclo 2021-2030. São algumas delas:

Figura 19: Metas do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-30

Problema Metas

Redução de 23,57 vítimas por 100 mil habitantes


Homicídios para 16 vítimas por 100 mil habitantes. Queda de
32,13%

Redução de 0,44 vítimas por 100 mil habitantes


Lesão Corporal seguida de Morte para 0,30 mil por 100 mil habitantes. Queda de
31,64%

Redução de 0,97 vítimas por 100 mil habitantes


Latrocínio para 0,70 vítimas por 100 mil habitantes. Queda
de 27,61%

Redução de 4,09 vítimas por 100 mil mulheres


Mortes Violentas de Mulheres para 2,00 vítimas por 100 mil mulheres. Queda de
51,12%.

Redução de 17,54 vítimas por 100 mil habitantes


Mortes no trânsito
para 9 por 100 mil habitantes. Queda de 48,7%.

Vitimização de profissionais de
Redução de 30% dos números absolutos
Segurança Pública

Suicídio de profissionais de Segurança


Redução de 30% dos números absolutos
Pública
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 194

Redução de 236,4 furtos por 100 mil veículos


Furto de veículos para 140 furtos por 100 mil veículo. Queda de
40,78%

Redução de 241,11 roubos por 100 mil veículos


Roubo de veículos para 150 roubos por 100 mil veículos. Queda de
31,79%

Aumento para 677.187. Acréscimo de 60% em


Vagas no sistema prisional
relação a 2017

Atividades laborais no sistema Meta de 363.414 pessoas atendidas. Aumento de


prisional 185% em relação a 2017

Atividades educacionais no sistema Meta de 218.994 presos. Aumento de 185% em


prisional relação a 2017.

Meta de 50% das Unidades Locais 6 devidamente


Prevenção de desastres e acidentes certificadas, por meio de alvará de licença dos
Corpos de Bombeiros Militares até 2030.

Fonte: Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social; elaboração própria

O Plano avança metas que esmiuçam as pretensões da Lei nº 13.675/18,


constituindo-se num referencial sobre os caminhos a serem trilhados pelos
órgãos e instituições de Segurança Pública. Podemos citar as ações,
denominadas “estratégicas” nas áreas de governança, na articulação entre
governos e sociedade, nas ações preventivas e repressivas com vistas à
redução de crimes e conflitos sociais, no enfrentamento aos crimes
transnacionais e na melhoria da capacitação e valorização dos profissionais de
Segurança Pública, dentre outras recomendações.

A redação do artigo 22, § 5º da Lei nº 13.675/18 sinaliza para que Estados,


Distrito Federal e Municípios elaborem seus respectivos Planos, os quais
deverão ter por base o Plano Nacional (SENNES, 2021). Muitos Estados já

6 Unidade Local é unidade de produção numa única localização geográfica (endereço), onde a
atividade econômica é realizada (ou a partir de onde é conduzida) (IBGE, 2007 apud BRASIL,
2021, p. 22).
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 195

possuem seus respectivos instrumentos orientadores das políticas públicas de


segurança e defesa social consolidados na forma de Planos Estaduais de
Segurança Pública e Defesa Social, o que consideramos fundamental para que
os órgãos envolvidos possam balizar suas iniciativas bem como para apontar à
sociedade quais são os objetivos traçados e como alcançá-los, permitindo tanto
o controle das ações quanto o apoio necessário para sua sustentação ou
correção.

3.4 Participação da sociedade civil: os Conselhos de Segurança Pública e


Defesa Social

Alcançar objetivos requer o estabelecimento de um planejamento sobre


quais caminhos adotar, quais são principais e quais secundários, quanto de
recurso vou empregar para alcançá-los, quais são as etapas que pretendo
superar e como reoriento o percurso em face das incertas do futuro. Esse
planejamento é consolidado, geralmente, em um plano. Sobre ele, temos
autonomia para ajustar o curso.

A participação social é condição necessária para uma política que seja


aderente aos anseios da sociedade. Ela se faz por meio de canais de
participação definidos previamente segundo regras democráticas. Com essa
intenção, a Lei Federal nº 13.675/18 definiu os canais de participação social junto
à Administração Pública. Segundo o referido diploma, ela se dá por meio de
Conselhos existentes nos níveis federativos. De acordo com o artigo 19, § 2º,

“os Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social congregarão


representantes com poder de decisão dentro de suas estruturas
governamentais e terão natureza de colegiado, com competência
consultiva, sugestiva e de acompanhamento social das atividades de
segurança pública e defesa social, respeitadas as instâncias decisórias e
as normas de organização da Administração Pública.”
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 196

Assim, os Conselhos têm como funções principais acompanhar as


condições de trabalho, a valorização e o respeito pela integridade física e moral
dos profissionais de Segurança Pública, o cumprimento das metas previstas,
além do resultado da apuração das denúncias em tramitação nas respectivas
corregedorias e as ações promovidas em função delas. Cabe, ainda, aos
Conselhos proporem diretrizes para as políticas públicas de segurança pública
e defesa social, com vistas à prevenção e à repressão da violência e da
criminalidade (artigo 20, §§ 4º e 5º).

Em nível federal, o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa


Social – (CNSP) está regulado pelo Decreto nº 9.489, de 30 de agosto de 2018
(BRASIL EXECUTIVO, 2018). Ele é presidido pelo Ministro da Justiça e
Segurança Pública e formado por representantes de outros Ministérios do
Governo Federal, representantes de agências policiais federais, estaduais e
municipais, representantes do Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria
Pública e Ordem dos Advogados do Brasil, e pessoas com notórios
conhecimentos na área de políticas de segurança pública e defesa social (artigo
35). O Decreto prevê ainda que o Conselho se reunirá semestralmente ou
mediante convocação extraordinária.

Atendidas as regras legais previstas, sobretudo nos artigos 19 e 20 da Lei


nº 13.675, cada Estado, o Distrito Federal, e cada Município deve estruturar seu
respectivo Conselho, que, ressalvadas as definições editadas por cada ente,
possuirão as mesmas funções do CNSP. Assim como ocorre com a edição dos
Planos, há diferentes estágios de implementação dos Conselhos de Segurança
Pública e Defesa Social no Brasil, resultado que creditamos à recente
implementação do Susp e à necessária maturidade institucional a ser alcançada.

3.5 Financiamento do SUSP: Fundo Nacional de Segurança Pública e Fundo


Penitenciário Nacional

Seguindo a metodologia de explorar as três bases que dão estrutura ao


Susp (Plano/Conselho/Financiamento), passamos agora a estudar como se dá
a alocação de recursos orçamentários para a consecução das políticas de
segurança pública, a partir das normas que definem o assunto.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 197

Para isso, vamos falar dos Fundos que a Lei nº 13.675/18 contemplou em
seu texto: o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo
Penitenciário Nacional (Funpen)*. É por meio deles que, somados a outras fontes
orçamentárias, o Governo Federal busca promover uma articulação que envolva
os entes federativos. Muito embora os Estados sejam quem empenha a maior
parte dos recursos investidos no Brasil em Segurança Pública, em torno de 80%
do total, os valores gerenciados pela União, por volta de 11% do total, contribuem
significativamente para as políticas públicas de segurança. Em 2017, foram
empenhados aproximados 95 bilhões de reais, dentre os quais 11 bilhões
tiveram como origem o Governo Federal (FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, p. 15).

Saiba mais
Por uma limitação de objeto de análise, não discutiremos o Fundo
de Direitos Difusos e o Fundo Nacional Antidrogas. Indicamos as normas
que disciplinam tais temas, que são a Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho
de 1985, e a Lei Federal nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986,
respectivamente.

O FNSP é regulado pela Lei nº 13.756 e se destina a apoiar projetos,


atividades e ações nas áreas de segurança pública e de prevenção à violência.
As ações contempladas incluem construção, reforma e melhoria de unidades
policiais, melhoramentos logísticos e tecnológicos e programas de prevenção à
violência e redução da criminalidade. Segundo previsão legal, entre 10 e 15%
dos recursos do FNSP devem ser destinados a programas habitacionais e para
a melhoria da qualidade de vida dos profissionais do Susp (artigo 5º, § 1º).

Com o objetivo de atender a Política Nacional de Segurança Pública e


Defesa Social, recentes publicações do Ministério da Justiça e da Segurança
Pública buscaram conferir maior adesão dos investimentos financiados pelo
FNSP aos princípios e diretrizes nela contidos, bem como materializar as
concepções do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social
(FIGUEIREDO; MATTOS, 2023). Assim, por meio da Portaria MJSP nº 440
(BRASIL EXECUTIVO, 2023a) e da Portaria MJSP nº 439 (BRASIL
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 198

EXECUTIVO, 2023b), ambas de 4 de agosto de 2023, buscou-se aplicar um


pensamento sistêmico aos processos de segurança pública no Brasil, de modo
a potencializar, por um lado, uma maior articulação entre os atores do SUSP e,
por outro, uma capacidade de governança maior sobre os fins a que os recursos
se destinam. Itens elegíveis de aquisição, planos de ação que contemplem
metas e indicadores de processos e resultados, e dotações especificamente
dedicadas a determinados problemas públicos (mortes violentas intencionais,
violência contra a mulher e melhoria da qualidade de vida dos profissionais da
Segurança Pública), previstos nas Portarias citadas, procuram estabelecer
esforços coordenados.

O Funpen é previsto na Lei Complementar n.º 79, de 7 de janeiro de 1994


(BRASIL (LEGISLATIVO), 1994) e tem por finalidade proporcionar recursos e
meios para financiar e apoiar as atividades e programas de modernização e
aprimoramento do sistema prisional, tais como construção, reforma e ampliação
dos estabelecimentos penais, formação e especialização de servidores e
elaboração e execução de projetos voltados à reinserção dos presos e egressos
(artigo 3º).

3.6 Sistemas do Susp

Seguindo a metodologia de explorar as três bases que dão estrutura ao


Susp (Plano/Conselho/Financiamento), passamos agora a estudar como se dá
a alocação de recursos orçamentários para a consecução das políticas de
segurança pública, a partir das normas que definem o assunto.

A Lei do Susp prevê o funcionamento de alguns sistemas que devem dar


sustentação ao desenvolvimento das políticas estabelecidas. Falaremos sobre
cada um deles.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 199

SINAPED:

O Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas


de Segurança Pública e Defesa Social (SINAPED) tem como função realizar
o monitoramento do alcance das metas indicadas no Plano Nacional de
Segurança Pública e Defesa Social, sob o ponto de vista do acompanhamento
dos indicadores de resultado (metas) e dos indicadores de processo (avaliação
de planos de ação, gestão dos programas, ações, atividades e projetos em curso
e acompanhamento financeiro-orçamentário). É por meio do SINAP que o Plano
Nacional deve ser avaliado, sobretudo ao final de sua vigência, não obstante a
existência de avaliações periódicas e de acompanhamento. Conforme o artigo
29, o processo de avaliação das políticas deve contar com a participação de
representantes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério
Público, da Defensoria Pública e dos Conselhos de Segurança Pública e Defesa
Social, em cuja composição há integrantes da sociedade.

SINESP:

O Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de


Rastreabilidade de Armas e munições, de Material Genético e de Drogas
(SINESP) tem a finalidade de armazenar, tratar e integrar dados e informações
para auxiliar na formulação, implementação, execução, acompanhamento e
avaliação das políticas de segurança pública e defesa social. O SINESP se
coloca como um banco de dados que permite fazer a gestão do SUSP, além de
ser uma base de informações para a atuação operacional das corporações, a
interface do sistema mais conhecida pelos profissionais da segurança pública no
Brasil. Mais do que uma ferramenta de apoio às ações de ponta-de-linha, o
SINESP se coloca como o repositório que oferece aos gestores informações
para a tomada de decisão, mas também para a elaboração e avaliação das
políticas em curso.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 200

Segundo o texto legal já citado, o SINESP tem por objetivos:

I - proceder à coleta, análise, atualização, sistematização, integração


e interpretação de dados e informações relativos às políticas de segurança
pública e defesa social;

II - disponibilizar estudos, estatísticas, indicadores e outras


informações para auxiliar na formulação, implementação, execução,
monitoramento e avaliação de políticas públicas;

III - promover a integração das redes e sistemas de dados e


informações de segurança pública e defesa social, criminais, do sistema
prisional e sobre drogas;

IV - garantir a interoperabilidade dos sistemas de dados e


informações, conforme os padrões definidos pelo conselho gestor.

SIEVAP:

O Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional (SIEVAP)


volta-se aos profissionais do Susp. Este sistema atua na gestão das áreas de
formação e capacitação pessoal e das políticas de valorização, atenção
psicossocial e saúde. No que se refere à educação, o SIEVAP tem como
instrumentos de concretização das políticas a Rede Nacional de Altos Estudos
em Segurança Pública (Renaesp), formada por instituições de ensino e pesquisa
para a produção de difusão de conhecimento nessa área, a matriz curricular
nacional, instrumento pelo qual se pretende conferir diretrizes comuns na
capacitação desse público e a Rede EaD-Senasp , por meio da qual oferece
cursos de formação continuada aos profissionais do SUSP de todo o Brasil,
sobretudo pela oferta de cursos à distância. Já quanto à atenção às condições
de saúde e valorização, o SIEVAP atua por meio do Programa Nacional de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 201

Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-Vida), que tem


por objetivo fazer a governança dos “programas de atenção psicossocial e de
saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social, bem
como a integração sistêmica das unidades de saúde dos órgãos que compõem
o Susp”, conforme o artigo 42 da Lei 13.675/18.

CONCLUSÃO

Como os profissionais do Susp podem defender a democracia?

Todo poder emana do povo. Essa afirmação de princípios abre não


apenas a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo primeiro, mas uma nova
era na história política de nosso país. Uma era em que o princípio da soberania
popular substitui à força das armas como fonte do poder político e da autoridade.
Nesse sentido, a carta magna de 1988, também conhecida como a “Constituição
Cidadã”, inaugura a própria democracia brasileira. O século XX viu a democracia
se tornar um dos pilares do mundo moderno ocidental. Em uma democracia, o
povo é soberano e exerce seu poder na participação direta no processo político,
por meio do sufrágio universal e da gestão de políticas públicas, e também na
participação indireta através de seus representantes eleitos. A participação
efetiva dos cidadãos, entretanto, deve se dar em condições de igualdade,
princípio constitucional que visa garantir que nenhuma pessoa seja tratada de
maneira desigual com base na sua classe, sexo, raça, origem social, orientação
sexual ou filiação religiosa.

O princípio da igualdade implica que as leis e políticas públicas sejam


aplicadas de forma imparcial e justa. É nesse sentido que a realização prática
daquele princípio enfrenta o desafio permanente das desigualdades que existem
de fato na nossa sociedade. A política pública é o principal instrumento do
governo para a promoção da justiça social, ou seja, para a redução das
assimetrias de poder e de acesso a recursos. É nesse sentido que o
funcionamento das instituições de governo é crucial. Por meio do ciclo das
políticas públicas, os governos podem influenciar as dinâmicas de distribuição
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 202

de riqueza e poder na sociedade. Dentre as instituições de governo existentes,


a polícia desempenha um papel fundamental ao contribuir com as condições de
previsibilidade e segurança necessárias ao pleno usufruto dos direitos
constitucionais. Seu mandato e sua localização na estrutura do Estado fazem
dela um ator estratégico na defesa do Estado Democrático de Direito.

A democracia depende da segurança e da ordem pública para funcionar


eficazmente e a polícia possui um papel fundamental nisso. Vejamos como:

Em primeiro lugar:

A segurança pessoal é um requisito para poder exercer todos os outros


direitos que o Estado de Direito e os direitos humanos reconhecem ao indivíduo.
Se a vida, a integridade e a propriedade das pessoas não estiverem garantidas,
não será possível usufruir o resto dos direitos.

Em segundo lugar:

É a polícia que garante a celebração de eleições livres, impedindo aqueles


que eventualmente tentem tomar o poder pela força e coibindo os crimes
eleitorais.

Em terceiro lugar:

Num sentido mais amplo, a ausência de segurança e a prevalência de


crimes tendem a criar um ambiente de medo e incerteza que mina a confiança e
a legitimidade do Estado. No limite, sem que sejam asseguradas a liberdade e a
vida, constituintes originárias da noção de cidadania, é o próprio Estado de
Direito que se vê questionado. Nessa tensão, as formas de participação política
democrática, assumidas como as que melhor atendem à sociedade, tendem a
ser esvaziadas, reproduzindo e aprofundando formas não democráticas e
violentas de exercício do poder.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 203

Para refletir
Com isso, pretendemos dizer que a segurança pública vai muito além do
enfrentamento a crimes: ela tem como função prover condições para
exercer todos os outros direitos, entre eles os direitos políticos, longe de
constrições autoritárias.

A polícia constitui o principal instrumento da política de segurança,


atuando no ponto de encontro entre o “mundo das leis” e as “leis do mundo”.
Entretanto, para que a política de segurança pública possa contribuir com a
construção de condições efetivas de igualdade ela precisa ser guiada por
princípios democráticos, como o dever de transparência e a justiça
procedimental. Nesse diapasão, a polícia precisa ser gerenciada e percebida
como um serviço público essencial, focado na promoção da segurança em
sentido amplo, como bem-estar e tranquilidade pública. A proteção do cidadão e
de seus direitos deve ser o seu objetivo maior e o consentimento público precisa
ser o fundamento de sua autoridade. A cidadania precisa ser percebida pela
polícia como sua clientela, cuja satisfação com o serviço deve ser um dos
parâmetros do sucesso institucional. Para que isso aconteça, algumas condições
precisam ser atendidas.

A primeira delas se refere ao abandono de velhos arquétipos como o do/a


policial “guerreiro/a”, focado/a exclusivamente no combate ao crime por meio de
ações repressivas, marcadas por níveis elevados de violência e letalidade e
inspiradas por uma mentalidade de combate e extrema militarização. Todas as
polícias democráticas possuem forças táticas especiais responsáveis por
situações graves com alta probabilidade de confronto armado. Entretanto, no
âmbito das relações cotidianas de negociação da ordem pública, no contato
direto com a população, a ideologia do policial guerreiro não oferece ferramentas
adequadas para que esses agentes trabalhem com foco nas demandas dos
cidadãos. Se considerarmos que boa parte do trabalho da polícia se concentra
em ocorrências de trânsito, conflitos do cotidiano e chamados de natureza
assistencial, fica claro que o bom uso do armamento, apesar de importante, não
é uma competência que ofereça respostas sobre como lidar com aquilo que de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 204

fato a polícia é demandada a maior parte do tempo. Esse tipo de trabalho,


desvalorizado sob o paradigma do policial guerreiro, mostra-se na realidade
crítico para a construção da legitimidade e da imagem pública da polícia e do
próprio Estado.

Neste curso, propusemos algumas imagens alternativas em relação


àquele paradigma como, por exemplo, a do/a “policial guardião/a” (ver Aula 3 do
Módulo I), dentro da mudança de foco de uma “polícia de Estado” para uma
polícia protetora dos cidadãos. Uma polícia de Estado renuncia à busca da
legitimidade social e do consentimento público como princípios basilares da
atuação policial. Ao servir ao Estado, a polícia corre o risco de ser reduzida a
mero instrumento da vontade personalista do governante. Num regime
democrático pautado pelo Estado de Direito, a polícia tem como missão a
proteção do regime, isto é, da própria democracia, mas nunca a preservação do
governo de turno.

Para que a polícia seja um instrumento efetivo de proteção da democracia,


ela precisa realizar o seu potencial de administração dos conflitos que
caracterizam a ordem pública em sociedades complexas. Nesse sentido
propusemos uma imagem alternativa do trabalho policial como um trabalho de
mediação (ver Aula 2 do Módulo III) e de promoção da justiça de forma ampla.
Não apenas no enfrentamento do crime e da impunidade, mas na proteção
efetiva de direitos por meio de um trabalho de mediação entre a lei e suas
condições materiais de aplicação. Ao levar em consideração as diferentes
moralidades presentes na sociedade, a polícia desenvolve uma melhor
compreensão sobre a natureza e a motivação dos conflitos sobre os quais ela é
chamada a intervir. Seu trabalho de mediação deve sempre ter como limite último
a lei. Dentro desse limite, a polícia deve promover a proteção dos direitos das
pessoas e o fortalecimento da legitimidade institucional. Quanto maior a
legitimidade, menor será a necessidade do emprego da força pela polícia para
produzir a obediência às leis.

Mas se afirmamos que a polícia é fundamental para a defesa da


democracia, buscamos mostrar que esta é também importante para a polícia e
para os/as policiais. Por um lado, a gestão democrática da segurança pública e
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 205

das polícias se beneficia da implementação de estruturas de governança


transparentes e participativas que reduzam o risco de instrumentalização política
das polícias.

Apenas num regime democrático pautado pelo Estado de Direito é que os


policiais poderão procurar proteção contra interferências políticas ou
manipulação por parte do governo de turno. Ao contrário, em regimes autoritários
não há limites quanto ao que o poder executivo pode exigir das polícias, que
serão arrastadas à ilegitimidade junto com o sistema político e acabarão
enfrentadas aos cidadãos que deveriam proteger.

O uso da polícia a serviço de interesses de grupos políticos e elites


econômicas não é apenas prejudicial à saúde da democracia, como também
produz um ambiente de trabalho que é prejudicial à saúde do/a próprio/a policial.
Quando as regras de funcionamento da organização policial são cooptadas por
essas lógicas, os direitos, para essa categoria de trabalhadores, que deveriam
ser garantidos em razão da importância da sua função, ficam mais suscetíveis à
patronagem e a troca de favores.

Por fim, argumentamos que uma mudança de paradigma importante para


a consolidação de uma polícia defensora da democracia é o entendimento do/a
policial enquanto um/a “trabalhador/a da segurança pública”. Essa abordagem
segue no sentido oposto de muitos cursos de formação policial, que promovem
um distanciamento entre o/a policial e a sociedade, da qual seria preciso afastar-
se para se tornar um policial eficiente. A imagem do/a policial enquanto
trabalhador/a não só aproxima a polícia da sociedade, mas permite que o/a
policial possa expressar demandas sobre condições de trabalho e conflitos
institucionais por meio de canais e procedimentos estabelecidos. Isso significa
que a situação de trabalho da polícia não pode ser vista de forma separada de
suas finalidades. A consequência lógica desse entendimento é que apenas uma
polícia que vive uma democracia em seu ambiente laboral poderá reforçá-la na
prática.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 206

Finalizando....

Neste módulo você aprendeu:

✓ Neste módulo, você estudou alguns dos problemas nacionais que se


localizam em nossa constituição histórica como sociedade e como eles se
conectam com a oferta de segurança pública no Brasil hoje. Revisamos,
então, as formas encontradas na Constituição Federal para enfrentar
esses e outros problemas na atuação do Estado e, nesse percurso,
buscamos dar ênfase a como o texto constitucional tratou a segurança
pública. A partir daí, explicamos como estabelecer níveis mais elevados
de governança em segurança pública pode contribuir para avanços nessa
área, tratando, em especial, do Sistema Único de Segurança Pública.

✓ Concluímos que a consolidação do Estado de Direito, instrumento capaz


de promover cidadania, inclusive na oferta da segurança enquanto direito,
requer, além de medidas punitivas, uma visão de segurança enquanto
uma política pública que inclua também a prevenção. Assim, é possível
contemplar as percepções da sociedade e promover avanços gerenciais
que melhorem a prestação do serviço público da segurança.
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
e os Profissionais do Sistema Único de Segurança Pública 207

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