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ESTUDO DE

ESTUDO DE CASOS
CASOS
EM DIREITO
EM DIREITO MEDICO
MEDICO EE DA
DA SAUDE
SAUDE
Organizadores:

| GABRIELA SADY | LUCAS MACEDO |

Autores:

• Ana Maria Silva Souza • Isabela Maria Silva Oliveira


• Daniel Silva Vitor Bento • Jemyma Jandiroba Ferreira
• Daniela Brito Mercuri • Luana Reis Ferreira
• Diogeano Marcelo de Lima • Lucas Funghetto Lazzaretti
• Érica Baptista Vieira de Meneses • Lucas Macedo Silva
• Fernanda Moura Silva • Mariane Heberlê Hurtado
• Flávia Mendes Moreira Plácido
de Andrade Mélo • Matheus Athayde
• Flávia Sulz Campos Machado • Monalisa Barbosa Pimentel
• Gabriela Silva Sady Pinheiro
• Paula Carolina Araújo da Silva
• Henrique Costa Princhak
• Hugo Leonardo Cunha Roxo

ESTUDO DE CASOS EM DIREITO


MÉDICO E DA SAÚDE
Doutrina, jurisprudência e estratégias

Salvador, Bahia,
Brasil – 2021
Conselho Editorial
• Antonio Francisco Costa
• Gilson Alves de Santana Júnior
• Nelson Cerqueira
• Rodolfo Pamplona Filho
• Wilson Alves de Souza

Produção gráfica:
Couto Coelho – E-mail: editorapagine@gmail.com

Capa:
Maitê Coelho – E-mail: maitescoelho@yahoo.com.br

Editoração eletrônica:
Cendi Coelho – E-mail: cendicoelho@gmail.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Estudo de casos em direito médico e da saúde : doutrina, jurisprudência


e estratégias / organizadores Gabriela Sady, Lucas Macedo. – Sal-
vador, BA : Editora Paginæ, 2021.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-89459-12-5

1. Direito à saúde 2. Médicos – Leis e legislação – Brasil 3. Médicos


– Responsabilidade profissional 4. Responsabilidade (Direito) I. Sady,
Gabriela. II. Macedo, Lucas.

21-82024 CDU-347.56:61

Índices para catálogo sistemático:


1. Médicos : Responsabilidade : Direito civil
347.56:61
Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427
Sumário

Mensagem do presidente da OAB/BA.................................................... 11


– Fabrício de Castro Oliveira

Mensagem da Comissão Especial de Direito Médico


e da Saúde da OAB/BA.................................................................................... 13
– René Viana

Mensagem da Escola Superior da Advocacia..................................... 15


– Thaís Bandeira

Nota editorial....................................................................................................... 17
– Os organizadores

Capítulo I
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional
português e brasileiro: direito à vida ou dever de viver
sob qualquer circunstância?....................................................................... 19
– Daniel Silva Vitor Bento
1. Introdução ....................................................................................................... 19
2. Conceito e classificações de suicídio assistido e eutanásia........ 20
3. O suicídio assistido e a eutanásia no direito comparado............. 22
4. Análise do Decreto n.º 109/ XIV/2021 da Assembleia
da República Portuguesa – Lei João Semedo..................................... 26
4. Definições normativas e jurisprudência brasileira........................ 35
6. Considerações finais.................................................................................... 39
Referências............................................................................................................. 41

Capítulo II
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise
do direito à informação do paciente e do ônus probatório...... 43
– Daniela Brito Mercuri
– Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro
1. Introdução ....................................................................................................... 43
2. Considerações sobre dano iatrogênico................................................ 45
6 Estudo de casos em direito médico e da saúde

3. Dever de informação e aspectos principialistas bioéticos ......... 48


3.1. Princípio da autonomia e o dever de informação................. 51
3.3. Termo de consentimento informado.......................................... 53
3.3. Da boa fé objetiva recíproca .......................................................... 55
4. Conclusão......................................................................................................... 57
Referências ............................................................................................................ 58

Capítulo III
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica:
uma análise a partir do entendimento jurisprudencial
acerca da disposição sobre o próprio corpo.................................. 63
– Érica Baptista Vieira de Meneses
– Lucas Macedo Silva
1. Introdução 63
2. O conceito de vida digna no ordenamento jurídico
brasileiro........................................................................................................... 65
3. Conformação da autonomia privada no contexto
da disposição sobre o próprio do corpo.............................................. 70
4. O exercício do direito de recusa a tratamento médico................. 73
5. Considerações finais.................................................................................... 81
Referências............................................................................................................. 83

Capítulo IV
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade
civil em casos de procedimentos estéticos: uma análise
acerca das expectativas criadas nos pacientes
e a vinculação de resultados....................................................................... 87
– Fernanda Moura Silva
– Gabriela Silva Sady
1. Introdução.......................................................................................................... 88
2. Breves considerações acerca da publicidade médica
e da responsabilidade civil do médico................................................. 88
2.1. A publicidade médica em tempos de redes sociais.............. 92
2.2. A responsabilidade civil do médico em procedimentos
estéticos: novos paradigmas?........................................................ 94
3. Análise do caso concreto: o posicionamento do Conselho
Federal de Medicina .................................................................................... 97
Sumário 7

3.1. A judicialização da matéria e o atual posicionamento


do CFM..................................................................................................... 98
3.2. Expectativas criadas nos pacientes e a vinculação de
resultados como critério para uma possível configuração
de responsabilidade objetiva ou culpa presumida............... 100
4. Conclusão ........................................................................................................ 103
Referências............................................................................................................. 104

Capítulo V
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica
ao aplicativo e os limites da ética na publicidade.......................... 109
– Mariane Heberlê Hurtado Plácido
– Paula Carolina Araújo da Silva
1. Introdução 109
2. Publicidade médica: legislação e adequação à era digital........... 111
3. Redes sociais: o uso das redes sociais como meio
de divulgação de serviço............................................................................ 114
3.1. Aderência dos profissionais da saúde às regras
de publicidade...................................................................................... 115
3.2. A pandemia do covid-19 e as mídias sociais:
a viralização do TikTok..................................................................... 118
4. Análise de caso concreto: decisão do cremesp de interdição
cautelar de cirurgiã plástica por publicidade indevida................ 122
5. Conclusão......................................................................................................... 127
Referências............................................................................................................. 129

Capítulo VI
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional
de Saúde Suplementar sob a ótica do Superior Tribunal
de Justiça................................................................................................................ 133
– Lucas Funghetto Lazzaretti
1. Introdução ....................................................................................................... 133
2. Considerações sobre a Lei nº 9.656/98, a Agência Nacional
de Saúde Suplementar e o setor de saúde suplementar.............. 134
3. O rol da ANS sob a ótica do superior tribunal de justiça............. 143
4. Conclusão ........................................................................................................ 147
Referências............................................................................................................. 148
8 Estudo de casos em direito médico e da saúde

Capítulo VII
Envelhecimento populacional e planos de saúde:
a (i)legitimidade dos reajustes por faixa etária
dos novos idosos................................................................................................ 151
– Ana Maria Silva Souza
– Matheus Athayde
1. Introdução ....................................................................................................... 151
2. O envelhecimento populacional............................................................. 153
2.1. Envelhecimento ativo e novos idosos......................................... 154
2.2. Acesso à saúde para os idosos....................................................... 155
3. Saúde suplementar, planos de saúde e o enquadramento
por faixa etária............................................................................................... 157
3.1. Reflexões acerca das normas infralegais
regulamentadoras............................................................................... 159
3.2. Reajustes por faixa etária na visão do STJ................................ 163
4. Considerações finais ................................................................................... 166
Referências............................................................................................................. 168

Capítulo VIII
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência
das patentes farmacêuticas como forma de assegurar
a função social e o direito à saúde........................................................... 171
– Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo
– Henrique Costa Princhak
1. Introdução ....................................................................................................... 172
2. Breve exame sobre o contexto de registro de patentes
na área da saúde e a assistência farmacêutica................................. 173
3. Uma análise da ADI 5529 do STF: a não prorrogação
da vigência das patentes farmacêuticas como forma
de assegurar a função social e o direito à saúde.............................. 180
4. Considerações finais.................................................................................... 192
Referências............................................................................................................. 194

Capítulo IX
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos
provenientes da vacinação ........................................................................ 199
– Luana Reis Ferreira
– Daniela Brito Mercuri
Sumário 9

1. Introdução ....................................................................................................... 199


2. Breve histórico acerca da vacinação no Brasil................................. 201
3. Reflexões bioéticas acerca da vacina compulsória......................... 206
4. Responsabilidade civil do Estado ......................................................... 209
5. Compensação de danos decorrentes da vacinação........................ 212
6. Conclusão ........................................................................................................ 214
Referências............................................................................................................. 215

Capítulo X
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária.. 221
– Hugo Leonardo Cunha Roxo
1. Introdução ....................................................................................................... 221
2. O direito à saúde e a pandemia de covid-19...................................... 222
2.1. Uma breve noção de saúde.............................................................. 222
2.2. O direito à saúde e a legislação correlata.................................. 223
2.3. O caos: um pouco do contexto pandêmico............................... 225
3. O que fazem as empresas privadas e os governos:
imunização, geopolítica e soberania sanitária................................. 233
3.1. A teoria do sistema-mundo: um rápido esboço..................... 233
3.2. Imunização e geopolítica................................................................. 234
3.3. Autonomia/soberania sanitária e direito à saúde................ 245
4. Considerações finais.................................................................................... 248
Referências............................................................................................................. 248

Capítulo XI
A alocação de recursos de saúde em face da escassez
de Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s) decorrente
da pandemia ocasionada pela covid-19............................................... 251
– Diogeano Marcelo de Lima
1. Introdução........................................................................................................ 251
2. Da eleição de critérios para alocação de vagas em unidades
de terapia intensiva (UTI’S)...................................................................... 253
3. Da impossibilidade de se multiplicar os recursos de saúde
através da via judicial.................................................................................. 256
4. Breve histórico sobre o surgimento da bioética.............................. 261
4.1. Da bioética principialista ............................................................... 264
4.2. Da aplicabilidade do princípio bioético da justiça
na distribuição de vagas de UTI’S................................................. 271
10 Estudo de casos em direito médico e da saúde

5. Considerações finais.................................................................................... 272


Referências............................................................................................................. 274

Capítulo XII
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos:
estudo de caso do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia....... 277
– Flávia Sulz Campos Machado
1. Introdução ....................................................................................................... 277
2. Estudo de caso do tribunal de Justiça do Estado da Bahia.......... 278
3. Direito à saúde e escassez de recursos................................................ 284
4. A dificuldade do judiciário de enfrentar o problema
dos custos do direito à saúde................................................................... 288
5. Considerações finais.................................................................................... 293
Referências............................................................................................................. 294

Capítulo XIII
O sistema de precedentes do CPC e a importância
da bioética nas decisões judiciais: uma análise
da fundamentação do AI 0088052-64.2020.8.21.7000,
oriundo do TJRS ................................................................................................ 297
– Isabela Maria Silva Oliveira
– Jemyma Jandiroba Ferreira
1. Introdução ....................................................................................................... 298
2. O sistema de precedentes brasileiro..................................................... 299
3. Agravo de instrumento n. 0088052-64.2020. 8.21. 7000,
da comarca de Gaurama. Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul (TJRS). Sétima Câmara Cível........................ 306
4. O caso concreto e o conflito de regras e princípios sobre
a (não)obrigatoriedade da vacinação infantil ................................. 308
4.1. Breve histórico sobre a implantação da vacinação
obrigatória no Brasil e a origem do pensamento anti-vacina
a partir da tecnologia da (des)informação........................................ 310
4.2. Análise temática à luz da bioética ............................................... 311
5. Conclusão......................................................................................................... 316
Referências............................................................................................................. 317
Mensagem
do presidente da OAB/BA

Apesar do cenário que infelizmente ainda se faz presente em nossa


sociedade, a OAB da Bahia segue cumprindo o seu papel institucional.
Nesse sentido, a iniciativa da Comissão Especial de Direito Médico e da
Saúde da nossa Seccional é de grande valia, uma vez que a produção e
disseminação do conhecimento nunca se mostrou tão importante na
nossa história como nos tempos atuais.
Essa nova edição da coletânea fruto dos ciclos de debates sobre
Direito Médico e da Saúde durante a Pandemia chega para fortalecer
os valores cultivados em nossa instituição e dar voz àqueles que têm se
debruçado sobre um tema tão relevante.
Sabemos que a ciência salva vidas e que uma sociedade forte é aquela
que tem o investimento em educação entre os seus mais altos pilares.
Assim, esse trabalho se configura também como uma contribuição da
Ordem para essa sociedade ainda tomada por medos, incertezas e dú-
vidas que nasceram com a chegada da covid-19.
Os tempos são difíceis, mas seguiremos firmes em defesa dos valores
constitucionais, lutando pelo fortalecimento do Estado Democrático de
Direitos e fazendo tudo o que estiver ao alcance da Ordem para preser-
var a vida.

Fabrício de Castro Oliveira


Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil
– Seccional Bahia
Mensagem da Comissão Especial de
Direito Médico e da Saúde da OAB/BA

Nos idos de 2013, a Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde


da OAB Bahia foi instituída com o propósito de instigar a imersão da
advocacia em temáticas relativamente novas, que demandavam estrei-
tamento dos diálogos entre o Direito, a Saúde e a Medicina. Recordo,
cristalinamente, da preparação do projeto, feito a seis mãos, que justifi-
cava a importância de sua criação para o desenvolvimento dos debates.
Juntamente com Itana Viana e Érica de Meneses, pensamos as ideias
embrionárias destes temas importantes para o protagonismo da OAB
Bahia no campo das novas conquistas de direitos e planejamos seu de-
senvolvimento, ansiando despertar o entusiasmo de outros colegas para
o propósito da Comissão, sobretudo, pelos estudos do Direito à Saúde
e do Direito à Médico.
Recordando essa trajetória, é grande a alegria ao ver as ideias ges-
tadas adentrarem à fase frutífera. O presente trabalho transpassou os
limites do território baiano e reuniu autores de diversos estados brasi-
leiros para o desenvolvimento de estudos e produção de conteúdo que
se destaca por sua qualidade.
Em que pese o elevado propósito dos trabalhos jurídicos, afirmo
aos leitores que a intenção neste vai além. Mais do que servir de fonte
de conteúdo para consultas jurídicas, representa mais um importante
passo na construção de pontes para o estreitamento dos diálogos entre
o Direito, a Saúde e a Medicina, assim como para a multiplicação de
conhecimento e estímulo ao surgimento de novos encantamentos no
mister da advocacia.
Se nos perguntarmos para onde uma jornada imersa no Direito à
Saúde e no Direito à Médico pode nos levar, a resposta é: partamos, pois
mais importante do que a chegada é caminhada; é a construção de um
mundo melhor, propiciando a oportunidade de participação a todos os
interessados nos temas abordados.
René Viana
Presidente da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA
Mensagem da Escola Superior
da Advocacia

A obra “Estudo de Casos em Direito Médico e da Saúde” já surgiu


com um conceito inovador: foi fruto de um trabalho debatido entre os
participantes do Grupo “Estudo de Casos em Direito Médico e da Saúde”,
um projeto realizado pela Comissão Especial de Direito Médico e da Saú-
de em parceria com a Escola Superior da Advocacia – ESA, da OAB/BA.
É sempre muito gratificante ver a ESA – Bahia envolvida em projetos
tão exitosos como esse! Nos orgulha muito fazer parte dessa história e
contribuir para que debates de alto nível cheguem à classe da advocacia.
Essa é a verdadeira missão da ESA!! Fomentar diálogos, reflexões e
buscar sempre o aperfeiçoamento da classe.
Parabéns a todos os autores e autoras dos textos. Vocês merecem
todas as nossas homenagens.

Thaís Bandeira
Diretora da ESA/BA
Nota editorial

A obra que ora apresentamos ao leitor é resultado do profícuo traba-


lho realizado ao longo do primeiro semestre do ano de 2021 pelo grupo
de pesquisa “Estudo de Casos em Direito Médico e da Saúde – Doutrina,
Jurisprudência e Estratégias”, promovido pela Comissão Especial de
Direito Médico e da Saúde da OAB/BA, com o apoio da Escola Superior
da Advocacia da OAB/BA – ESA/BA. O grupo contou com a coordena-
ção dos professores e advogados Gabriela Sady e Lucas Macedo e com
a participação de professores convidados, membros da Comissão e os
aprovados no processo seletivo.
A partir das intensas e desafiadoras reflexões coletivas, emergiu
a ideia de convidar os integrantes do grupo de pesquisa a, em prol de
discussões inovadoras e pioneiras, lançarem-se à produção de artigos
sobre as temáticas estudadas.
Assim é que os 12 artigos que compõem a presente obra abarcam
temáticas recorrentes acerca das mais variadas e recentes discussões
em Direito Médico e da Saúde – tais como vacinação, saúde suplementar,
publicidade médica, escassez de recursos, relação paciente-médico, entre
outros – por novas perspectivas.
Apesar de os artigos terem sido produzidos a partir das discussões
concebidas nos encontros coletivos, cada trabalho reflete a opinião
individual do(s) seu(s) respectivo(s) autor(es). A estes, à Comissão
Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA e à ESA/BA, o nosso
muito obrigado por acreditarem nesse projeto especial.

Os organizadores
CAPÍTULO I

Suicídio assistido e eutanásia


à luz do direito Constitucional
português e brasileiro: direito à vida
ou dever de viver
sob qualquer circunstância?

Daniel Silva Vitor Bento*

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito e classificações de suicídio assistido e eu-


tanásia; 3. O suicídio assistido e a eutanásia no direito comparado; 4. Análise do
decreto n.º 109/XIV/2021 da Assembleia da República Portuguesa – Lei João
Semedo; 5. Definições normativas e jurisprudência brasileira; 6. Considerações
finais; Referências.
Palavras-chave: suicídio assistido; eutanásia; direito à vida; dignidade humana

1. INTRODUÇÃO
Esse artigo investiga o suicídio assistido e a eutanásia em Portugal
e no Brasil, com enfoque nas suas respectivas Constituições e jurispru-
dências. Trata-se de um tema relevante e nada pacífico, que acarreta
em discussões com argumentos religiosos, filosóficos, socioeconômicos,
políticos, jurídicos e bioéticos.
A partir da década de 1980 alguns países passaram a admitir a
prática da morte assistida, com fundamentações e critérios legais dife-
rentes, tendo em vista a sua própria estrutura constitucional, de modo

(*) Mestre em Políticas Sociais e Cidadania, Universidade Católica do Salvador, pesqui-


sador bolsista FAPESB. Graduado em Direito, Universidade Católica do Salvador. Ad-
vogado.
20 Daniel Silva Vitor Bento

que se encontra previsão legal expressa em alguns casos, enquanto em


outros observa-se a interpretação da legislação existente. Portugal, que
possui os laços culturais e semelhanças jurídico constitucionais, recen-
temente enfrentou a questão, com o Decreto n.º 109/XIV e o Acórdão n.º
123/2021 do Tribunal Constitucional. O suicídio assistido e a eutanásia
articulam as suas fundamentações legais a partir dos princípios consti-
tucionais de proteção à vida e dignidade humana, que estão presentes
na Constituição da República Portuguesa de 1976 e na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Os referidos princípios colidem
quando a proteção à vida é interpretada como absoluta e se sobrepõe
aos demais, o que acarreta na proibição e criminalização da prática. Este
artigo visa amadurecer o entendimento e a discussão em ambos países,
com abordagem jurídica, para investigar a possível articulação dos prin-
cípios citados, sem olvidar das fundamentações das demais ciências que
enfrentam a questão, por meio de uma investigação teórica com revisão
bibliográfica e documental. Diante de tudo o que foi dito formulou-se
o seguinte problema de pesquisa: o suicídio assistido e a eutanásia
poderiam ser constitucionalmente admitidos no Brasil, articulando os
princípios da proteção à vida e da dignidade humana?
Para tanto, o presente trabalho tem como objetivo verificar se há
possibilidade constitucional da alteração da legislação brasileira para se
admitir a prática do suicídio assistido e da eutanásia, à luz dos princípios
da proteção à vida e da dignidade humana, desdobrando-se nos seguintes
objetivos específicos: revisar os conceitos e classificações de suicídio
e eutanásia; identificar os países que permitem o suicídio assistido e
a eutanásia; analisar o processo em Portugal; e avaliar as definições
normativas e a jurisprudência brasileira sobre o tema.

2. CONCEITO E CLASSIFICAÇÕES
DE SUICÍDIO ASSISTIDO E EUTANÁSIA
Albert Camus (2010, p. 19), afirmava que só existe um problema
filosoficamente sério: o suicídio. Segundo Durkheim (2010, p. 14), o
suicídio é todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de
um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima com a ciência
que surtirá esse resultado.
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 21

A eutanásia, de acordo com o dicionário etimológico de Antenor


Nascentes (1955, p. 204), vem do grego euthanasia, significando morte
bela ou feliz, inicialmente utilizada por Francis Bacon. Segundo Dworkin
(2009, p. 1), é ato de matar deliberadamente uma pessoa por razões de
benevolência. Por outro lado, o termo eutanásia foi desvirtuado, atribuin-
do conotação negativa, a partir da promulgação do Aktion T4, em 1939,
do Estado Nazista, utilizada para se referir a práticas que levaram a morte
mais de 100 mil pessoas, entre judeus, ciganos e negros, contudo a defi-
nição contemporânea de eutanásia pode ser entendida como emprego
ou abstenção de procedimentos que permitem apressar ou provocar o
óbito de um doente incurável, a fim de livrá-lo dos extremos sofrimentos
que o assaltam (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2005, p. 2 e 3)
A eutanásia ativa, direta ou autêntica é a provocação intencional da
morte a determinado indivíduo que sofre de enfermidade extremamente
degradante e incurável, visando privá-lo dos suplícios decorrentes da
doença (PORTUGAL, 2016, p.9).
Ao passo que ortotanásia, ou eutanásia passiva ou por omissão,
entende-se como a prática pela qual se deixa de prolongar, através de
meios artificiais, a vida de um doente incurável ou em sofrimento into-
lerável, especialmente, nos casos de recusa de modernos medicamentos
ou equipamentos médicos para garantir um prolongamento precário e
penoso da vida em estado terminal (PORTUGAL, 2016, p.9).
Sendo exatamente o contrário a distanásia, também conhecida como
eutanásia indireta ou eventual ou tratada como obstinação terapêutica,
trata-se de prolongar, através de meios artificiais, a vida de um enfermo
incurável a qualquer custo, mesmo que o doente esteja em sofrimento e
não queira continuar a viver (PORTUGAL, 2016, p.9 e 10).
Nas hipóteses de eutanásia ativa e ortotanásia, o ato pode ser clas-
sificado como voluntário, quando o paciente expressa a sua vontade ou
involuntário quando não se conhece a vontade do enfermo. Na hipótese
de distanásia a vontade do paciente, conhecida ou não, não é levada em
consideração.
O suicídio assistido é o auxílio a alguém, prestado por um médico
para terminar com a vida daquele. É o próprio paciente, ao contrário do
que ocorre na eutanásia ativa, que ingere ou injeta medicamentos letais
22 Daniel Silva Vitor Bento

previamente prescritos pelo médico. Na eutanásia direta é uma terceira


pessoa que executa o ato, ao passo que no suicídio assistido é o próprio
doente que provoca a sua morte, ainda que para isso disponha da ajuda
de terceiro (PORTUGAL, 2016, p. 9).
Por fim, a morte assistida é uma expressão que por vezes é utilizada
como sinônimo de suicídio assistido e a morte medicamente assistida
abarca os conceitos de eutanásia ativa e suicídio assistido.

3. O SUICÍDIO ASSISTIDO E A EUTANÁSIA


NO DIREITO COMPARADO
Em síntese, é possível encontrar três grandes tendências:
i) a tolerância relativamente ao suicídio assistido, sem que lhe seja
conferida uma regulação legal expressa como na Alemanha, Itália
e Suíça;
ii) a despenalização e a regulação expressa da eutanásia ativa e, ou,
do suicídio assistido, como na Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Ca-
nadá, alguns Estados dos Estados Unidos da América, Colômbia,
Estado australiano da Victoria e Nova Zelândia; e
iii) a proibição da eutanásia ativa e do suicídio assistido como na
França e Reino Unido (PORTUGAL, 2021, p. 30).
O Código Penal suíço prevê, em seu artigo 115.º/1, pena de prisão
até 5 anos ou multa para quem, por motivos egoístas, incitar ou ajudar
alguém a cometer ou tentar cometer suicídio. Com base na interpretação
deste preceito, que só pune a ajuda ao suicídio se o agente for movido
por razões egoístas, aliada à interpretação judicial branda da lei, tem
sido entendido que o suicídio assistido se encontra descriminalizado nos
casos em que o suicida seja um doente terminal condenado a morrer em
virtude da doença ou lesão que o afete. Também não há previsão legal
expressa acerca da eutanásia, porém o artigo 114.º/1 do Código Penal
suíço, define que homicídio a pedido da vítima é punível, com pena de
prisão até 3 anos ou multa quem, por motivos atendíveis, designada-
mente compaixão pela vítima, provoque a morte de outra pessoa, a seu
pedido genuíno e insistente. Entre outras, duas organizações conhecidas
de natureza associativa – a Dignitas e a Exit – dedicam-se a ajudar doentes
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 23

terminais a suicidar-se, desde que o paciente tenha discernimento e pos-


sa manifestar a sua vontade consciente e livremente, o seu pedido seja
sério e reiterado, a sua doença se revele incurável, o sofrimento físico
ou psíquico que o atinja seja intolerável e o prognóstico do desfecho
da doença seja a morte ou uma incapacidade grave. A associação Exit
só aceita pacientes nacionais ou domiciliados na Suíça, ao passo que a
Dignitas acolhe nacionais e estrangeiros (PORTUGAL, 2016, p. 44).
O serviço tem atraído número considerável de pacientes para o país,
chamados de turistas do suicídio. O termo “going to Switzerland” tor-
nou-se eufemismo para suicídio assistido na Inglaterra. O atendimento
a pessoas com doenças mentais também é permitido, mas a Suprema
Corte exige relatório psiquiátrico declarando que o desejo de suicídio
do paciente foi autodeterminado e bem considerado, e não faz parte de
sua desordem mental. Os médicos que prescrevem o medicamento são
responsáveis pelo processo, devendo sempre informar o paciente sobre
sua condição e possíveis alternativas (CASTRO et al, 2016, p. 361).
A Colômbia é o único país da América Latina onde a eutanásia é
permitida. Em 1997, foi descriminalizada pelo Tribunal Constitucional
e somente com o advento da Resolução 12.116/2015, do Ministério
da Saúde e Proteção Social, a prática foi regulamentada. Até essa data
era classificada como “homicídio por piedade” de acordo com o artigo
326 do Código Penal, onde a falta de critérios bem estabelecidos para
sua realização, somados à legislação controversa, gerava ambiguidade,
conflitos de interpretação e incertezas sobre o assunto (CASTRO et al.,
2016, p. 357).
Segundo Ávila e Alipio (2019, p. 226), a tese de disponibilidade rela-
tiva da própria vida na Colômbia encontrava fundamento em inúmeras
jurisprudências da Corte Constitucional, que de maneira tácita tem consi-
derado esta possibilidade pela via da eutanásia. É possível falar em uma
faculdade jurídica intrínseca no direito a vida que permite aos indivíduos
terminarem com sua própria existência, sempre que este estiver dentro
dos pressupostos estatais, pois se trata de uma disponibilidade relativa
e não absoluta. Em contraste, apenas na figura do suicídio se encontra
a disponibilidade do direito a própria vida, pois é um fenômeno social
que escapa ao ius punidendi do Estado colombiano e, por outro, não pode
ser sancionado. Por outro lado, o direito a morrer dignamente encontra
24 Daniel Silva Vitor Bento

suporte no princípio da dignidade humana, o livre desenvolvimento da


personalidade e da autonomia do indivíduo, que é plenamente livre
para tomar decisões personalíssimas que, em princípio, não deveriam
interessar ao Estado.
Nos Estados Unidos o estado Oregon foi o primeiro a legalizar
o suicídio assistido, em 27 de outubro de 1997, com a aprovação do
Death with Dignity Act, “Ato de morte com dignidade” que permitiu que
adultos, maiores de 18 anos, capazes de expressar conscientemente sua
vontade, residentes no estado, com doenças terminais e expectativa de
vida menor que seis meses, recebessem medicações em doses letais, por
meio de autoadministração voluntária, expressamente prescrita por um
médico para essa finalidade. De acordo com o Ato, a autoadministração
desses medicamentos letais não é considerada suicídio, mas morte com
dignidade (CASTRO et al., 2016, p. 358).
Segundo Albuquerque (2006, p. 301), a Holanda passou a permitir
em abril de 2002, mas para que a prática da eutanásia seja considerada
lícita, devem ser observados uma série de requisitos:
i) médico deve estar convencido de que se trata de “uma solicitação
voluntária e bem pensada do paciente”;
ii) também deve estar convencido de que as dores do paciente são
“sem perspectiva e insuportáveis”;
iii) o paciente deve ter sido esclarecido sobre “a situação na qual ele
se encontrava e sobre suas perspectivas”;
iv) deve-se chegar à conclusão de que “não havia outra solução
razoável” para o paciente;
v) deve-se consultar ao menos “um outro médico independente”;
vi) este deve ver o paciente e ter redigido seu parecer sobre a ne-
cessidade de eutanásia;
vii) eutanásia deve ser executada “cuidadosamente sob o ponto de
vista médico”.
São previstas três modalidades de eutanásia na Holanda, sob o ponto
de vista de faixa etária: pacientes que têm dezesseis anos ou mais que
não podem mais expressar sua vontade, mas que, anteriormente, decla-
raram a sua autorização; pacientes que têm entre dezesseis e dezoito
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 25

anos de idade que solicitaram sua eutanásia, desde que seus pais ou
tutores tenham participado da tomada desta decisão; e os menores de
idade entre doze e dezesseis anos, desde que seus pais ou tutores tenham
concordado com sua eutanásia (ALBUQUERQUE, 2006, p. 301).
A eutanásia ativa passou a ser permitida na Bélgica com a entrada
em vigor da lei sobre a matéria em 28 de maio de 2002. Esta lei sofreu
alterações para estender a possibilidade da eutanásia a menores de
idade, por outra lei em 28 de fevereiro de 2014. Nos termos do artigo 2.º
prevê eutanásia como o ato praticado por alguém que intencionalmente
põem termo à vida de outra pessoa, a pedido desta. Para ser legítima,
a eutanásia tem que obedecer determinadas condições e só pode ser
praticada por médicos, sendo irrelevante a distinção das modalidades
de eutanásia. De acordo com o artigo 3.º da referida lei, na redação de
2014, o médico que pratique a eutanásia não comete infração se ele
se tiver assegurado de que: o paciente seja maior de idade ou menor
emancipado capaz ou ainda menor de idade dotado de capacidade de
discernimento e que esteja consciente no momento do pedido; o pedido
deve feito de forma voluntária e refletida, repetidamente, sem qualquer
pressão externa; e o paciente deve se encontrar em situação médica sem
saída e em sofrimento físico e/ou psíquico constante e insuportável sem
possibilidade de ser aliviado, causados por lesão ou patologia grave e
incurável (PORTUGAL, 2016, p. 17).
Eutanásia e suicídio assistido foram legalizados em Luxemburgo,
em 16 de março de 2009, e atualmente são regulados pela Comissão
Nacional de Controle e Avaliação. A lei abrange adultos competentes,
portadores de doenças incuráveis e terminais que causam sofrimen-
to físico ou psicológico constante e insuportável, sem possibilidade
de alívio. O paciente deve solicitar o procedimento por meio de suas
disposições de fim da vida, um documento escrito, obrigatoriamente
registrado e analisado pela Comissão Nacional de Controle e Avaliação.
Este documento permite que o paciente registre as circunstâncias em
que gostaria de se submeter à morte assistida, que será realizada por
médico de confiança do requerente. A solicitação poderá ser revogada
pelo paciente a qualquer momento. Antes do procedimento, o médico
deve consultar outro especialista independente, a equipe de saúde do
paciente, e uma pessoa de confiança apontada por ele; após sua realiza-
26 Daniel Silva Vitor Bento

ção, o óbito deve ser comunicado à Comissão em até oito dias (CASTRO
et al, 2016, p. 360).
Na Inglaterra pune-se a eutanásia como qualquer homicídio em
geral, ainda que a pena concreta a aplicar possa ser atenuada. O Homi-
cide Act 1957, combinado com o Offences Against the Person Act 1861,
continuam a ser os atos legislativos, embora bastante alterados, em que
se baseia a punição do homicídio. Com o Suicide Act 1961, a própria ten-
tativa de suicídio deixou de ser crime na Inglaterra e no País de Gales.
De acordo com a mesma lei, mas emendada pelo Coroners and Justice
Act 2009, encorajar ou prestar auxílio ao suicídio constitui crime e faz
incorrer o autor numa pena de prisão até 14 anos (PORTUGAL, 2016,
p. 42). Diversas propostas foram apresentadas, como o Assisted Dying
Bill, elaborado por Lord Falconer, que foi rejeitada pela Câmara Baixa
em setembro de 2015. A proposta baseava-se na legislação de Oregon
e visava a legalização apenas do suicídio assistido para pacientes com-
petentes, com mais de 18 anos, com expectativa de vida menor que seis
meses (CASTRO et al., 2016, p. 361).

4. ANÁLISE DO DECRETO N.º 109/XIV/2021


DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA PORTUGUESA
– LEI JOÃO SEMEDO
Suicídio assistido e eutanásia são discutidos em Portugal há décadas.
Numa breve linha do tempo, tem-se como marco inicial, no ano de 1995,
o Parecer 11/CNEV/95, do Conselho Nacional de Ética para Ciências da
Vida, sobre aspectos éticos dos cuidados de saúde relacionados com o
final da vida. No âmbito acadêmico observa-se a construção do conceito
do direito fundamental à disposição do próprio corpo, que de acordo
com Luísa Neto (2004, p. 245), as questões levantadas pelo aborto e
eutanásia envolvem decisões que afetam o próprio sujeito titular do
direito em causa. Fazer uma pessoa morrer de uma maneira que outros
aprovam, mas que ele mesmo acredita ser uma terrível contradição na
sua vida, é uma forma de tirania devastadora e odiosa, precisamente
porque a dignidade de uma pessoa é normalmente relacionada com a
capacidade de auto respeito. A liberdade do corpo humano sofre cada
vez mais limitações de índole científica: vacinações, despistagens,
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 27

tratamentos de todos os tipos, precauções contra as epidemias, mostram


que o homem não é mais o seu verdadeiro dono. No fundo, o direito à
disposição sobre o corpo, que admitíamos que existisse, se aproxima
mais de uma liberdade que de um direito.
Ainda no âmbito acadêmico e também político, destaca-se a Prof.
Dra. em Filosofia da Educação, Laura Ferreira dos Santos, autora dos
livros: “Ajudas-me a morrer? A morte assistida na cultura ocidental do
século XXI”, publicado em 2009 e “Testamento vital, o que é? Como ela-
borá-lo?”, de 2011. Posteriormente, em 2015, a referida professora foi a
fundadora do movimento Direito a Morrer com Dignidade, que defende
a despenalização da eutanásia em Portugal.
Destaca-se, no âmbito político, o médico e deputado João Semedo,
do Bloco de Esquerda, que colocou a questão no campo legislativo. Com
efeito, o amadurecimento da discussão sobre o tema em Portugal, o au-
mento do número de países que passaram permitir a prática e a luta pelo
direito à morte assistida do deputado João Semedo e seu falecimento em
2018, desencadearam projetos de lei que originaram o Decreto n.º 109/
XIV da Assembleia da República, que recebeu o seu nome.
Foram apresentados cinco projetos de lei sobre a questão. Em sínte-
se, o Projeto de Lei n.º 4/XIV/1.ª, apresentado pelo Bloco de Esquerda
(BE), visava definir e regular as condições em que a antecipação da morte
por decisão da própria pessoa – com lesão definitiva ou doença incurável
e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável – quando praticada ou
ajudada por profissionais de saúde, como não punível (artigos 1.º e 8.º, n.º
2). O Projeto de Lei n.º 67/XIV/1.ª, do partido Pessoas-Animais-Natureza
(PAN), tinha por objeto regular o acesso à morte medicamente assistida:
eutanásia e suicídio medicamente assistido (cf. artigos 1.º e 12.º). O
Projeto de Lei n.º 104/XIV/1.ª, apresentado pelo Partido Socialista (PS),
tinha como objeto regular as condições especiais em que a prática da
eutanásia não é punível (artigo 1.º), abrangendo no conceito de eutanásia
a prática e a ajuda à antecipação da morte: considerando a eutanásia não
punível a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em
situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável
e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde (artigo
2.º, n.º 1). O Projeto de Lei n.º 168/XIV/1.ª, apresentado pelo Partido
Ecologista “Os Verdes” tinha como objetivo regular as condições e os
28 Daniel Silva Vitor Bento

procedimentos específicos a observar nos casos de morte medicamente


assistida e alterar o Código Penal para despenalizar a morte medicamente
assistida (artigo 1.º, n.º 1), definindo a morte medicamente assistida
na administração de fármacos por médico ou pelo próprio doente sob
vigilância médica, configurando este caso o suicídio medicamente as-
sistido (artigo 3.º, n.º 2, alíneas a e b). Por fim, o Projeto de Lei n.º 195/
XIV/1.ª, apresentado pelo deputado único da Iniciativa Liberal (IL),
visava definir e regular as condições em que a antecipação da morte por
decisão consciente e expressa, manifestando vontade atual, livre, séria
e esclarecida da própria pessoa que, padecendo de lesão definitiva ou
doença incurável e fatal, esteja em sofrimento duradouro e insuportável,
quando praticada ou assistida por profissionais de saúde, não é punível
(artigo 1.º), mediante autoadministração ou administração por médico
de fármaco letal (artigo 8.º, n.º 2).
Esses projetos de lei ensejaram pareceres das organizações da área
de saúde (Ordem dos Enfermeiros, Conselho Nacional de Ética para as
Ciências da Vida e Ordem dos Psicólogos Portugueses; da Ordem dos
Advogados e do Ministério Público.
A própria Assembleia da República solicitou pareceres às organiza-
ções da área de saúde, de onde se extrai os seguintes argumentos contra
e a favor da questão.
Em primeira análise conclui-se que os argumentos desfavoráveis
prevaleceram. Visualiza-se argumentos contrários alinhados com os
códigos éticos das categorias profissionais, como a contradição face à
missão dos médicos. Observa-se a preocupação com a “rampa deslizan-
te1”. Observa-se, também, argumentos contrários, de cunho político, como
que os partidos políticos não teriam legitimidade eleitoral para legislar
sobre a matéria; que houve a pressa para legislar; e maior necessidade
de debate para definição de conceitos. Estes não devem prosperar, pois

1. Rampa deslizante e estratégia de pequenos passos, segundo Renaud (2016, p. 7),


são metáforas que surgem no debate social com conotação política, como na lega-
lização da eutanásia, com intuito de alertar sobre os riscos de ampliações futuras,
tendo como exemplo o que ocorreu na Bélgica, que uma vez legalizada a eutanásia,
aprovou-se a seguir a eutanásia infantil (com ou sem pedido do menor), e está em
discussão a eutanásia por motivos psiquiátricos.
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 29

não há vedação constitucional sobre o processo legislativo. Por sua vez,


argumentos contrários sobre a forma do procedimento indicado como
burocrático, sem a presença de profissionais de saúde além dos médi-
cos e a autonomia da decisão ficar atribuída à decisão discricionária do
médico, de fato, mereceriam melhor estruturação. Visualiza-se, também,
dois argumentos jurídicos contrários, a proibição prevista no Código
Penal e o direito à vida consagrado na Constituição, sendo este último
o ponto de tensão com a dignidade humana, quando se trata da morte
assistida. Essas duas últimas questões serão tratadas a seguir, na análise
do acórdão do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, os argumentos favoráveis foram: respeito pela auto-
nomia e vontade do doente; evitar tratamentos inúteis e ineficazes que
por vezes causam ainda mais sofrimento; e definição clara dos contextos
dos pedidos de eutanásia nos projetos de lei. Os dois primeiros estão
alinhados com os princípios jurídicos da autonomia da vontade e da dig-
nidade humana e último é um contraponto ao risco da rampa deslizante.
Em que pese a relevância de todos argumentos apresentados pelas
organizações da área de saúde, a permissão ou vedação das condutas
de suicídio assistido ou de eutanásia, mesmo obedecendo o rito do pro-
cesso legislativo, carecem de análise constitucional. A Constituição da
República Portuguesa (CRP) prevê, logo no seu artigo primeiro, como
princípio fundamental, que Portugal é uma República soberana, baseada
na dignidade da pessoa humana. Por sua vez, prevê também, em seu art.
24, o direito inviolável à vida, dentro do rol dos direitos, liberdades e
garantias. Diante disso, desdobram-se duas questões a serem analisadas:
i) há conflito aparente das referidas normas constitucionais, de
modo que o direito à vida previsto seria absoluto e se sobreporia
à dignidade humana;
ii) a legitimidade do legislador sobre a matéria.
Segundo parecer da Ordem dos Advogados (2018, p.2), sobre o
Projecto de Lei nº 773/XIII/3ª, que autoriza a morte medicamente
assistida, o art. 24º da CRP consagra o direito à vida em lugar cimeiro
de todo ordenamento jurídico, pois dele deriva a dignidade da pessoa, a
República e o Estado Democrático e social português. A vida humana é
disponível pelo próprio e indisponível por terceiros, como resultado da
30 Daniel Silva Vitor Bento

priorização do direito, liberdade e garantia, por isso sujeito ao forte re-


gime de proteção aos direitos fundamentais, previsto no art. 18º da CRP.
Por outro lado, ainda segundo a Ordem dos Advogados (2018, p.
2), observou-se uma relativização iniciada hermenêutica juris consti-
tucional na matéria de punição do aborto, arts. 141º e 142º do Código
Penal Português, bem como nas diretivas antecipadas de vontade, mais
conhecidas como testamento vital e, também, chamou-se a atenção
para possibilidade da não punição de todas as formas de eutanásia de-
sencadear um “efeito escalada”, em outra perspectiva economicista, no
desinvestimento nos cuidados continuados.
O testamento vital português é trazido na Lei nº 25/2012, que o
define, no seu art. 2º, nº 1, como as diretivas antecipadas de vontade, sob
a forma de testamento vital, o documento unilateral e livremente revo-
gável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de
idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia
psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e
esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber,
ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar in-
capaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente. A seguir,
a Lei nº 25/2012, define o que pode constar do documento de diretivas
antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara
e inequívoca do outorgante:
a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções
vitais;
b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado
no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profis-
sionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte
básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais
que apenas visem retardar o processo natural de morte;
c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu
direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por
doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma
terapêutica sintomática apropriada;
d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase
experimental;
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 31

e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investiga-


ção científica ou ensaios clínicos. (PORTUGAL, 2012, p. 1).
Após a publicação do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da Repúbli-
ca, no dia 12 de fevereiro de 2021, o Presidente da República portuguesa
encaminhou ao Tribunal Constitucional o requerimento de fiscalização
preventiva da constitucionalidade. As normas em causa foram especifi-
cadas na parte inicial do requerimento nos seguintes termos:
A norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que define
antecipação da morte medicamente assistida não punível como a
antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em
“situação de sofrimento intolerável”', – a norma constante do n.º 1
do artigo 2.º, na parte em que integra no conceito de antecipação da
morte medicamente assistida não punível o critério “lesão definitiva
de gravidade extrema de acordo com o consenso científico; – Con-
sequentemente, as normas constantes dos artigos 4.º, 5.º e 7.º, na
parte em que deferem ao médico orientador, ao médico especialista
e à Comissão de Verificação e Avaliação a decisão sobre a reunião
das condições estabelecidas no artigo 2.º; – Consequentemente, as
normas constantes do artigo 27.º, na parte em que alteram os artigos
134.º, n.º 3, 135.º, n.º 3 e 139.º, n.º 2 do Código Penal (PORTUGAL,
2021, p. 1).
A Relatora inicial do requerimento de fiscalização prévia de consti-
tucionalidade era a Dra. Maria José Reis Rangel de Mesquita, contudo,
posteriormente, coube ao Dr. Pedro Machete a relatoria do acórdão,
que no dia 15 de março o Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão
n.º 123/2021, pronunciando-se pela inconstitucionalidade da norma
constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia
da República, que regula as condições em que a morte medicamente
assistida não é punível e altera o Código Penal e, em consequência, pela
inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e
27.º do mesmo Decreto:
Pelo exposto, o Tribunal decide, com referência ao Decreto n.º 109/
XIV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia
da República, Série II -A, n.º 76, de 12 de fevereiro de 2021, e enviado
ao Presidente da República para promulgação como lei:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do
seu artigo 2.º, n.º 1, com fundamento na violação do princípio de
determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do
32 Daniel Silva Vitor Bento

Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar,


decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165,
n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por
referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo
24.º, n.º 1, do mesmo normativo; e, em consequência,
b) Pronunciar -se pela inconstitucionalidade das normas constantes
dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º do mesmo Decreto.
Lisboa, 15 de março de 2021 (PORTUGAL, 2021, p. 56).
Ressalta-se que, a inconstitucionalidade do Decreto n.º 109/XIV
da Assembleia da República, pronunciada no acórdão analisado, teve
votação acirrada, sete votos a favor e cinco contra. Votaram a favor: João
Pedro Caupers, Pedro Machete, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino
Rodrigues Ribeiro, José Teles Pereira, Joana Fernandes Costa e Maria
José Rangel de Mesquita. Votaram contra: Mariana Canotilho, José João
Abrantes, Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro e Fernando
Vaz Ventura. Exceto o presidente João Caupers, todos apresentaram
fundamentação dos seus votos, que se passa a analisar.
A fundamentação do acórdão foi elaborada e apresentada obede-
cendo e seguinte ordem:
a) Delimitação do objeto material da apreciação da constituciona-
lidade pedida pelo requerente;
b) O horizonte problemático da antecipação da morte medicamente
assistida prevista no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV;
c) O sentido e alcance da morte medicamente assistida regulada no
Decreto n.º 109/XIV;
d) A compatibilidade da antecipação da morte medicamente assis-
tida com a inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1, da
Constituição);
e) A insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos
dos critérios de acesso à morte medicamente assistida questio-
nados pelo requerente face ao princípio da legalidade criminal;
f) A insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos
dos critérios de acesso à morte medicamente assistida questio-
nados pelo requerente face ao princípio da determinabilidade
das leis;
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 33

g) A insuficiente densificação normativa do conceito “em situação


de sofrimento intolerável”;
h) A insuficiente densificação normativa do conceito “lesão definitiva
de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”; e
i) As normas sindicadas a título de inconstitucionalidade constantes
dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º do Decreto n.º 109/XIV.
O acórdão iniciou destacando se tratar de matéria muito sensível,
mas que nos termos da Lei Fundamental, cabe ao legislador permitir ou
proibir a eutanásia, de acordo com o consenso social, em cada momento;
e que não era objeto do requerimento ao Tribunal Constitucional se saber
se a eutanásia é ou não conforme a Constituição (PORTUGAL, 2021, p. 8).
A seguir, o acórdão pontuou a insuficiente densificação normativa
sobre o conceito de sofrimento intolerável, lesão definitiva e gravidade
extrema de acordo com o consenso científico. Acerca do conceito de
sofrimento intolerável, considerou que não foi minimamente definido
e que, nos termos do decreto, seriam preenchidos pelo médico orienta-
dor e pelo médico especialista. Sobre os conceitos de lesão definitiva e
consenso científico, considerou que o legislador não forneceu ao médico
interveniente na morte assistida um quadro legislativo seguro que pu-
desse guiar sua atuação (PORTUGAL, 2021, p. 9).
O art. 112, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, veda ao
legislador a delegação de integração da lei em atos com natureza não
legislativa, de modo que conceitos indeterminados – ademais em ma-
téria de direitos, liberdades e garantias – que remete sua definição aos
médicos orientador e especialista, viola a Carta Constitucional. Sendo o
presente decreto o único instrumento normativo analisado no momento,
carecendo das insuficiências apontadas, a sua constitucionalidade não
pode ser sanada com a expectativa de um regime futuro, cujo conteúdo
se desconhece. (PORTUGAL, 2021, p. 9).
Em oposição, a declaração de voto conjunta de Maria Canotilho, João
José Abrantes, Assunção Raimundo e Fernando Vaz Ventura, pontuou que
o acórdão: violou o princípio do pedido; fez uma leitura errônea da norma
constante no art. 24, nº 1, da CPR (a vida é inviolável); ignorou a relevân-
cia do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (nº 1º, do art.
26º, da CPR), e sua densificação no quadro das questões especificamente
34 Daniel Silva Vitor Bento

em causa; estabeleceu um standard de determinabilidade, em sede de


legislação penal que se afigura não só divergente do que até então tem
sido aceito como constitucionalmente conforme. Apontaram, também,
conceitos igualmente indeterminados que não mereceram censura,
por entender que são determináveis, na prática, como nas alíneas a),
b) e c), do art. 142º, do Código Penal, que prevê a não punibilidade da
interrupção da gravidez, por médico, com consentimento da gestante,
com o conceito de: “grave e irreversível/duradoura lesão para o corpo
ou par saúde física ou psíquica da mulher grávida”. Por fim, afirmaram
que o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o
consenso científico, apesar de indeterminado não é indeterminável e sua
abertura é adequada ao contexto clínico que será aplicado por médicos
(PORTUGAL, 2021, p. 75-83).
José João Abrantes, acrescentou à sua declaração de voto conjunta,
que a conclusão principal da decisão é de que, em abstrato, o art. 24º, nº
1, da CRP, não veda o legislador de introduzir na ordem jurídica causas
de justificação atendíveis em sede de auxílio ao suicídio ou homicídio a
pedido da vítima, pois a Constituição outorga uma margem de discussão
nesta matéria, para se encontrar soluções que efetivem a concordância
prática entre os direitos fundamentais e valores jurídico-constitucionais
em tensão (PORTUGAL, 2021, p. 83).
Após a publicação do Acórdão n.º 123/2021, que se pronunciou pela
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto
n.º 109/XIV da Assembleia da República, observando desconformidade
com o princípio da determinabilidade da lei, o Presidente da República
definitivamente o vetou.
Em síntese, o suicídio assistido e a eutanásia não foram declarados
inconstitucionais. Ademais, a legitimidade do legislador sobre a matéria
foi reconhecida. Contudo, observou-se que a inconstitucionalidade do
decreto foi fundamentada na desconformidade com o princípio deter-
minabilidade da lei, por considerar indeterminado o conceito de lesão
definitiva de gravidade extrema. O direito à vida está no patamar mais
alto do ordenamento jurídico português, entretanto não em caráter
absoluto, como já se observa na relativização na questão do aborto e no
testamento vital, de modo que não há conflito entre o direito à vida e a
dignidade humana. Portanto, o tema não está encerrado, porém caberá
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 35

ao legislador iniciar novamente o processo legislativo, sanando o que


foi apontado no acórdão como insuficiente densificação conceitual,
observando o princípio da determinabilidade da lei.

4. DEFINIÇÕES NORMATIVAS
E JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
O suicídio, em sentido estrito, é um ato, comissivo ou omissivo,
realizado exclusivamente pelo próprio agente, consciente de que resul-
tará em sua própria morte. É uma conduta não tipificada na legislação
brasileira, portanto não se trata de crime punível. Por outro lado, os
atos de indução, instigação ou auxílio ao suicídio estão previstos no art.
122 do Código Penal brasileiro, com a pena de 6 meses a 2 anos; se de
algum dos referidos atos resultar em lesão corporal de natureza grave
ou gravíssima, pena de 1 a 3 anos; e se resultar em morte, pena de 2 a
6 anos. Não há previsão expressa do suicídio assistido no ordenamento
jurídico brasileiro, entretanto, a conduta de fornecer medicamentos ou
informações para finalidade de suicídio, caracteriza-se, também, como
em auxílio ao suicídio.
O ordenamento jurídico brasileiro vê no suicídio um fato imoral e
socialmente danoso, que deixa de ser penalmente indiferente quando
concorrer com a atividade da vítima outra energia individual provinda
da manifestação da vontade de outro ser humano. Segundo a teoria da
acessoriedade limitada, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro,
a punibilidade da participação em sentido estrito, que é uma atividade
secundária, exige que a conduta principal seja típica e antijurídica. A
despeito dessa correta orientação político-dogmática, as legislações
modernas, considerando a importância fundamental da vida humana,
passaram a prever uma figura sui generis de crime, quando alguém, de
alguma forma, concorrer para realização do suicídio (BITENCOURT,
2011, p. 124 e 125).
De igual forma não há previsão expressa do termo eutanásia no
ordenamento jurídico brasileiro, contudo a conduta é proibida e classi-
ficada como homicídio privilegiado, também conhecido como homicídio
piedoso, cuja pena é diminuída de um sexto a um terço, segundo o art.
121, §1º do Código Penal.
36 Daniel Silva Vitor Bento

O tema não é pacífico na doutrina jurídica constitucional brasileira.


Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 203), não caracteriza a consu-
mação da morte por desligamento de aparelhos, que artificialmente
mantém o paciente vivo, mas clinicamente morto como eutanásia, pois
a vida não existiria mais, senão vegetação mecânica, ressalvado a culpa
ou o dolo na apreciação do estado do paciente. O citado autor se refere
à ortotanásia ou eutanásia passiva.
A Constituição Federal não estabelece parâmetros diretos sobre o
suicídio assinado e a eutanásia, mas em homenagem ao princípio da
dignidade da pessoa humana e da liberdade individual, o reconhecimento
de morrer com dignidade não pode ser desconsiderado. Do contrário o
direito à vida seria um dever de viver sob qualquer circunstância e a sua
condição de direito subjetivo restaria funcionalizada em detrimento de
sua dimensão objetiva (SARLET, 2008, p. 538 e 539).
Ainda segundo Sarlet (2008, p. 539), criminalizar todas formas de
eutanásia a pretexto de salvaguardar um caráter absoluto do direito à
vida, esbarra em contradições de ordem lógica e prática. Quem estiver
em condições de causar a própria morte, se assim quiser, não pode ser
impedido ao passo que alguém, em virtude de seu sofrimento e deses-
pero, mas encontrando-se enfermo e sem, por sua própria força, chegar
ao resultado, restando-lhe a se submeter ao que o Estado considera o
mais adequado.
Tornou-se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os
direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo ab-
solutos. Tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer
limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional,
inclusive outros direitos fundamentais (MENDES, 2008, p. 240).
Uma diferença separa a norma legal de um princípio. A primeira é
uma norma desenvolvida em seu conteúdo e precisa em sua normativi-
dade: acolhe e perfila os pressupostos de sua aplicação, determina com
detalhe o seu mandato, estabelece possíveis exceções; o princípio, pelo
contrário, expressa a imediata e não desenvolvida derivação normativa
dos valores jurídicos: seu pressuposto é geral e seu conteúdo normativo
é tão evidente em sua justificação como não concreto em sua aplicação.
É aqui que o princípio, ainda quando legalmente formulado, continua
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 37

sendo princípio, necessitado por isso de desenvolvimento legal e de


determinação casuística em sua aplicação judicial (BONAVIDES, 2005,
p. 291).
Mesmo que possamos sentir que nossa própria dignidade está em
jogo nas atitudes que os outros tomam diante da morte, e que às vezes
possamos desejar que os outros ajam como nos parece correto, uma
verdadeira apreciação da dignidade argumenta decisivamente na direção
oposta: em favor da liberdade individual, não da coerção; em favor de um
sistema jurídico e de uma atitude que incentive cada um de nós a tomar
decisões sobre a própria morte (DWORKIN, 2009, p.342).
Sobre o suicídio assistido e a eutanásia, o Código de Ética Médica, em
seu art. 41, prevê que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente,
mesmo que a pedido deste ou de seu representante legal. A seguir, no
parágrafo único, define que em casos de doença incurável e terminal,
o médico deve oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem
empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas,
levando em consideração a vontade expressa do paciente ou do seu
representante legal (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2018, p. 8).
No Brasil não há legislação específica sobre o testamento vital, en-
tretanto não é inválido, pois também encontra fundamento na dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, CF 1988), no princípio da autonomia,
implícito no art. 5º da CF e proibição do tratamento desumano (art. 5º,
III CF 1988).
De acordo com Dadalto (2013, p. 63), testamento vital no Brasil é
uma espécie do gênero de diretivas antecipadas, um termo geral que se
refere a instruções feitas por uma pessoa sobre futuros cuidados médicos
que ela deseja receber quando estiver incapaz de expressar sua vontade.
Acerca das diretivas antecipadas de vontade, o Conselho Federal de Me-
dicina (2012, p.1), na Resolução 1.995/2012, valorizando o princípio da
autonomia do paciente, dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade,
assegurando sua prevalência sobre qualquer outro parecer não médico,
inclusive sobre os desejos dos familiares. As diretivas são definidas pela
resolução como o conjunto de desejos, prévia e expressamente mani-
festados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não,
receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e
autonomamente, sua vontade.
38 Daniel Silva Vitor Bento

Este estudo buscou jurisprudência brasileira sobre suicídio assistido


e eutanásia, no Supremo Tribunal Federal, encontrando apenas a recente
decisão o Supremo Tribunal Federal do Agravo Regimental no Mandado
de Injunção MI 6825 DF:
AGRAVO REGIMENTAL NO MANDADO DE INJUNÇÃO. DIREITO
À MORTE DIGNA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE
LACUNA TÉCNICA. INEXISTÊNCIA DE EFETIVO IMPEDIMENTO
DO EXERCÍCIO DO DIREITO ALEGADO. INADMISSIBILIDADE DO
WRIT. DESPROVIMENTO DO AGRAVO. 1. O cabimento do mandado
de injunção pressupõe a existência de omissão legislativa relativa
ao gozo de direitos ou liberdade garantidos constitucionalmente
pelas normas constitucionais de eficácia limitada stricto sensu e a
existência de nexo de causalidade entre a omissão e a inviabilidade
do exercício do direito alegado. 2. In casu, não restando demonstrada
a existência de lacuna técnica quanto ao descumprimento de algum
dever constitucional pelo legislador no tocante ao direito à morte
digna, bem como ante a inexistência da efetiva inviabilidade do gozo
do direito pleitado, impõe-se o não conhecimento do mandado de
injunção. 3. Agravo regimental desprovido.
(MI 6825 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado
em 11/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-110 DIVULG 24-05-
2019 PUBLIC 27-05-2019)
Com efeito, o Mandado de Injunção, não seria a via processual ade-
quada para pleitear o direito à morte digna, pois não há lacuna técnica
legislativa, tendo em vista que a interpretação e a articulação do direito
à vida previsto no art. 5º e da dignidade da pessoa humana do art. 1º, III,
da Constituição Federal de 1988 respondem a questão. O Relator, Minis-
tro Edson Fachin, afirmou na sessão: “percebam, ínclitos Ministros, que
não é factível sustentar a ideia de absolutização do direito fundamental
à vida quando, ao próprio Estado, é permitido”. Na sequência o Ministro
Luís Roberto Barroso, ponderou que “Mas essa é uma matéria sobre a
qual o legislador ordinário deveria pronunciar-se. Não creio que haja
impedimento constitucional.
Com o mesmo entendimento, Sarlet (2008, p. 540), destaca que
a Constituição Federal, ao consagrar tanto o direito à vida quanto a
dignidade da pessoa humana, assegura o legislador e os órgãos encar-
regados da interpretação e da aplicação do direito margem suficiente
para definir as possibilidades e os limites da eutanásia, desde que não
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 39

tenha finalidade eugênica, mas que se limite a assegurar às pessoas que


estejam em determinadas circunstâncias, a possibilidade de uma morte
com dignidade.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao identificar os países que admitem o suicídio assistido e a eu-
tanásia observou-se que as soluções normativas para permissão do
suicídio assistido e da eutanásia foram diferentes. Apenas por decisões
jurisprudenciais, como inicialmente na Colômbia; sem previsão expressa
e através de interpretações do Código Penal, como na Suíça; através de
lei própria, como na Bélgica; e por meio de confirmação de Tribunal
Constitucional, como atualmente na Colômbia e na Espanha.
Ao analisar o suicídio assistido e a eutanásia em Portugal, obser-
vou-se que a questão vem sendo debatida desde a década de 1990,
avançou significativamente nos últimos anos, chegando a aprovação
do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República. Após a publicação
do referido decreto, o Presidente da República portuguesa encaminhou
ao Tribunal Constitucional o requerimento de fiscalização preventiva
da constitucionalidade, que publicou no dia 15 de março de 2021, o
Acórdão n.º 123/2021, pronunciando-se pela inconstitucionalidade
da norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, ob-
servando desconformidade com o princípio da determinabilidade da
lei. Diante disso, o decreto foi vetado, por inconstitucionalidade, pelo
presidente.
Analisou-se que Constituição prevê no seu artigo primeiro, como
princípio fundamental, que Portugal é uma República soberana, ba-
seada na dignidade da pessoa humana. Por sua vez, prevê também,
em seu art. 24, o direito inviolável à vida, dentro do rol dos direitos,
liberdades e garantias. Diante disso, desdobram-se duas questões,
que foram analisadas: se haveria conflito aparente das referidas
normas constitucionais, de modo que o direito à vida previsto seria
absoluto e se sobreporia à dignidade humana; e a legitimidade do
legislador sobre a matéria. Em síntese, o suicídio assistido e a eutaná-
sia não foram declarados inconstitucionais. Ademais, a legitimidade
do legislador sobre a matéria foi reconhecida. Contudo, verificou-se
40 Daniel Silva Vitor Bento

que a inconstitucionalidade do decreto foi fundamentada na descon-


formidade com o princípio determinabilidade da lei, por considerar
indeterminado o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema.
O direito à vida está no patamar mais alto do ordenamento jurídico
português, entretanto não em caráter absoluto, como já se observava
na relativização na questão do aborto e no testamento vital, de modo
que não há conflito entre o direito à vida e a dignidade humana. Por-
tanto, o tema não está encerrado, porém caberá ao legislador iniciar
outro processo legislativo, sanando o que foi apontado no acórdão
como insuficiente densificação conceitual, observando o princípio da
determinabilidade da lei.
Da demonstração das definições normativas brasileiras sobre o
suicídio e a eutanásia extrai-se que o suicídio uma conduta não tipi-
ficada na legislação brasileira, logo não se trata de crime punível. Por
outro lado, os atos de indução, instigação ou auxílio ao suicídio estão
previstos no art. 122 do Código Penal brasileiro, com a pena de 6 meses
a 2 anos; se de algum dos referidos atos resultar em lesão corporal
de natureza grave ou gravíssima, pena de 1 a 3 anos; e se resultar em
morte, pena de 2 a 6 anos. De igual forma não há previsão expressa
do termo eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro, contudo a
conduta é proibida e classificada como homicídio privilegiado, também
conhecido como homicídio piedoso, cuja pena é diminuída de um sexto
a um terço, segundo o art. 121, §1º do Código Penal. Demonstrou-se,
também, que o testamento vital não é vedado no Brasil. Verificou-se
que se há possibilidade constitucional da alteração da legislação bra-
sileira para se admitir a prática do suicídio assistido e da eutanásia, a
luz dos princípios da proteção à vida, dignidade humana e autonomia
da vontade.
Por fim, conclui-se que, embora o determinante para validação da
norma seja matéria constitucional, nomeadamente a articulação do di-
reito à vida e a dignidade humana, o debate transborda para questões
políticas, de modo que ter sólida fundamentação bioética, conceituações
precisas e cuidadosa redação do projeto de lei, tanto em Portugal quanto
no Brasil, poderá resultar em maiores chances da permissão do suicídio
assistido e da eutanásia.
Suicídio assistido e eutanásia à luz do direito Constitucional português e brasileiro... 41

REFERÊNCIAS
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solicitação e suicídio assistido e a Constituição holandesa.
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cao-consolidada/-/lc/34520775/view> Acesso em 03 jul 2021;
42 Daniel Silva Vitor Bento

PORTUGAL. Lei nº 25/2012. Regula as diretivas antecipadas de vontade, de-


signadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procura-
dor de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital
(RENTEV). Diário da República n.º 136/2012, Série I de 2012-07-16. Dis-
ponível em: <https://dre.pt/pesquisa/-/search/179517/details/normal?
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lo: Malheiros Editores, 2005
CAPÍTULO II

Dano iatrogênico à luz da boa fé


objetiva, uma análise do direito
à informação do paciente
e do ônus probatório

Daniela Brito Mercuri*,


Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro**

Sumário: 1. Introdução; 2. Dano iatrogênico; 3. Dever de informação e aspectos


principialistas bioéticos; 3.1. Princípio da autonomia e o dever de informação;
3.2. Termo de consentimento informado; 3.3. Da boa fé objetiva 4 conclusão
referências.
Palavras-chave: Iatrogenia. Bioética. Termo de Consentimento. Boa fé objetiva.

1. INTRODUÇÃO
A reflexão acerca do dano iatrogênico, e sua repercussão na esfera
da responsabilidade civil, são de extrema relevância tanto no campo jurí-
dico, pois pouco se conhece o termo dentro de uma perspectiva civilista,
quanto na seara médica, vez que, muitos profissionais não sabem a im-
portância de tomar alguns cuidados informacionais durante sua atuação.

(*) Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
– UFMS. Especializanda em Direito Médico pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais – PUC Minas. Integra o grupo de pesquisa “Estudo de Casos em Direito
Médico e da Saúde” promovido pela OAB/BA. E-mail: dbmercuri@gmail.com.
(**) Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana
– UEFS. Formada em Direito Médico pelo Instituto Paulista de Direito Médico. Es-
pecialista em Direito Médico pela Faculdade de Minas – FACUMINAS. E-mail: mona-
lisapimentel.adv@gmail.com.
44 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

Segundo dados do CNJ, de 2009 a 2019, o Brasil teve aumento


de 230,98% de processos judiciais em saúde na primeira instância
envolvendo alegação de erro médico (SOUZA, 2021). Acontece que,
nesse cenário, duas situações são bastante verificadas: ações em que o
requerente (paciente) não sabe o que é um dano iatrogênico e termina
por confundir com o erro médico, resultando muitas vezes em pedidos
improcedentes, bem como dano iatrogênico comprovado, porém sem
o devido cumprimento informacional, resultando em condenações aos
profissionais da medicina.
Diante desse cenário, que vem se apresentando de maneira agressiva,
principalmente nos últimos anos, o trabalho apontará a diferença entre
iatrogenia e erro médico, bem como discorrerá sobre a obrigatoriedade
de informação, que se faz bilateral.
É nesse contexto que se urge o questionamento quanto a equiparação
do dano iatrogênico ao erro médico, uma vez o paciente sendo informado
sobre os possíveis desdobramentos do procedimento através de termo
de consentimento livre e esclarecido, aliado a uma conduta diligente,
prudente e perita do profissional médico.
Assim, o tema proposto busca analisar as características particulares
de um dano oriundo de iatrogenia, diferenciando-o do erro médico, tendo
como enfoque a boa-fé objetiva, que também se cobra ao paciente, no que
tange ao direito de informação, bem como o cabimento do ônus proba-
tório, com base no estudo de casos, na doutrina e na legislação vigente.
Na primeira seção preocupou-se com a conceituação do dano Ia-
trogênico e posterior diferenciação do conceito doutrinário e jurispru-
dencial, diferenciando-o do erro médico. Em um segundo momento, foi
elucidada a relevância do dever de informação, perpassando-se pela
fundamentação dos princípios bioéticos e verificando o entendimento
dos tribunais com relação à imprescindibilidade do Termo de Consen-
timento Livre e Esclarecido e, por fim, a obrigação bilateral do cumpri-
mento do princípio da boa-fé objetiva com análise da incumbência do
ônus probatório.
A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, possuindo fi-
nalidade básica estratégica de objetivo exploratório, com abordagem
qualitativa, realizada com análise jurisprudencial de estudo de casos.
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 45

Ao final, conclui-se ter alcançado os objetivos com a demonstração


da imprescindibilidade do atendimento ao dever de informação, con-
firmado a hipótese, tendo em vista a necessidade do estabelecimento
de uma normatização clara e específica para a formalização do termo
de consentimento.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE DANO IATROGÊNICO


Importante, desde já, salientar que o termo Iatrogenia ainda é pouco
difundido no mundo jurídico, tanto doutrinário quanto jurisprudencial,
além do termo dano iatrogênico causar muitos embaraços na ceara mé-
dica, o que muitas vezes pode ser confundido com erro médico, gerando
uma medicina defensiva.
A palavra iatrogenia, na sua perspectiva etimológica, deriva do grego:
o radical iatro ("iatrós"), significa médico, remédio, medicina; geno (gen-
náo), aquele que gera, produz; e "Ia", uma qualidade (TAVARES, 2007).
O professor José Carlos Maldonado de Carvalho ensina que iatrogenia
significa “as manifestações decorrentes do emprego de medicamentos
em geral, atos cirúrgicos ou quaisquer processos de tratamento feitos
pelo médico ou por seus auxiliares”. (CARVALHO, 2009, p.3, apud ABREU,
2015, p.7). Da mesma forma, Alberto Ríu preleciona que a iatrogenia é
uma “síndrome não punível, caracterizada por um dano inculpável, no
corpo ou na saúde do paciente, consequente de uma aplicação terapêu-
tica isenta de responsabilidade profissional.” (RÍU, 1981, p.50, apud
BREU, 2015, p.7).
Parte dos Tribunais brasileiros, já vêm entendendo o dano iatrogêni-
co como consequência inerente a condição do paciente, não constituindo
ilícito e por isso não repercutindo em conduta punível. É o que se verifica
no voto da Relatora, Desa. Elisa Carpim Corrêa da 6ª Câmara Cível do
Estado do Rio Grande do Sul, votando pelo não provimento da apelação
em que a Autora busca a indenização por suposto erro médico:
Nem todos os pacientes têm a mesma conformação morfológica, o
que alerta para o maior risco de lesão iatrogênica descrito na litera-
tura [...] A iatrogenia, prevista e informada, se amolda à excludente de
responsabilidade civil denominada de estado de necessidade, pois,
sacrifica-se um direito (o da integridade física) para salvaguardar
46 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

outro de maior valor (a vida sadia) [...] Posto isso, voto pelo não
provimento do apelo. (TJ-RS – AC: 70060930609 RS, Relator: Elisa
Carpim Corrêa,Data de Julgamento: 09/10/2014, Sexta Câmara
Cível, DJe: 22/10/2014)
Assim, iatrogenia e erro médico podem ser compreendidos como
conceitos inconciliáveis e excludentes. Dano iatrogênico seria aquela
previsível, decorrente de procedimento necessário e realizado pelo mé-
dico de maneira diligente, não gerando responsabilidade em nenhuma
de suas esferas. Aqui, o médico adota conduta consciente e deliberada,
direcionada a um determinado resultado, qual seja a melhoria do estado
de saúde de seu paciente. (MEIRELES; BARBOSA).
Com isso, deve-se compreender que a essência do exercício da prá-
tica médica já compreende uma margem de risco, ainda mais presente
e potencializado com a evolução de equipamentos e medicamento, téc-
nicas desenvolvidas nas pesquisas e práticas do exercício profissional.
Além disso, a própria especificidade de cada organismo, ao responder
de maneira peculiar aos tratamentos conduzidos pelos profissionais,
evidencia que mesmo sendo provocado um dano, não há que se falar em
responsabilidade médica (MEIRELES; BARBOSA, 2017)
Por fim, cabe destacar que os riscos conhecidos e, portanto, previ-
síveis no campo da literatura médica, imprescindivelmente, devem ser
comunicados aos pacientes através do Termo de Consentimento Informa-
do, devendo este ser livre e esclarecido para não haver uma imputação
de responsabilidade civil ao médico, garantindo assim, a fidelidade ao
princípio da autonomia e dever informacional, assunto que será melhor
exposto no tópico 3 deste artigo.
Divergências doutrinárias e jurisprudenciais trazem consigo a
dificuldade em se atribuir uma diferenciação entre erro médico e
iatrogenia. Parte da doutrina entende ser o dano iatrogênico espécie
do erro médico, enquanto outra parcela afirma serem conceitos to-
talmente desconexos. Tal desencontro, de um lado, inviabiliza muitos
advogados a atuarem nas demandas judiciais envolvendo suposto erro
médico, e por outro, fomenta uma medicina cada vez mais defensiva,
estando o profissional de saúde atuando, diariamente, com receio de
estar cometendo ato ilícito.
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 47

Ensina Genival Veloso de França, que o erro médico encontra amparo


na forma de conduta profissional inadequada que supõe uma inobser-
vância técnica, sendo possível produzir um dano à vida ou à saúde do
paciente. Tal dano pode ser caracterizado como imperícia, negligência
ou imprudência do profissional médico, no exercício de suas atividades
profissionais (FRANÇA, 2021).
Analisando o erro médico no campo da culpa, tem-se que, impru-
dente é o profissional que age sem a cautela necessária, havendo um ato
descuidado, intempestivo ou precipitado, sendo sempre ato comissivo. A
negligência, por sua vez, caracteriza-se pela inércia, passividade, desídia
e inação, faltando sempre a observância aos deveres que o cenário exige,
apresentando-se como ato omisso. Já a imperícia é a falta de observação
às normas, falta de habilidade com a profissão, insuficiência de conheci-
mentos técnicos, incompetência e ignorância (MENEZES,2010).
Já a lesão ou dano iatrogênico poderia ser entendido como situação
previsível, proveniente de conduta necessária onde o profissional médico
utilizou-se dos meios necessários visando a melhora do paciente, agin-
do de maneira diligente e respeitando os preceitos éticos e legais, não
gerando, desse modo, qualquer responsabilidade em nenhuma de suas
esferas. Em contraponto, as falhas no exercício profissional, adentram
no âmbito da ilicitude e, consequentemente, da responsabilidade civil,
uma vez o profissional agindo com culpa (MEIRELLES; BARBOSA, 2017).
Muitos Tribunais vêm acolhendo a ideia de que o dano iatrogênico e
o erro médico são definições que não se convergem, como pode ser ob-
servado no voto do Relator, Desembargador Federal, Poul Erik Dyrlund,
considerando que “há a lesão previsível, a iatrogenia, ou dano iatrogênico,
que corresponde ao dano necessário e esperado daquele atuar, afastando
a responsabilidade civil respectiva, ipso jure o designado erro médico”
(DYRLUND, 2011).
No mesmo diapasão, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
decidiu, conforme voto do Relator, Des. Alvaro Ciarlini, que o dano ia-
trogênico, diferente do erro médico, são lesões previsíveis, decorrente
de risco natural, bem como derivado de condições pessoais do paciente
(CIARLINI, 2019)
48 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

[...] a iatrogenia pode ocorrer no caso em que as lesões são previsí-


veis, mas curialmente não esperadas, decorrendo do risco natural
existente em qualquer procedimento médico, situação que se ajusta
à hipótese examinada nos autos. A ocorrência de consequências
pós-cirúrgicas, em decorrência de condições pessoais do autor ou
da própria modalidade de cirurgia, indicadas em perícia judicial,
sem que tenha havido a demonstração de negligência, imprudência
ou imperícia pelo hospital, não configura a ocorrência de ilícito
a ensejar danos morais. (TJ-DF 20160110805152 DF 0022854-
57.2016.8.07.0001, Relator: ALVARO CIARLINI. Data de Julgamento:
06/02/2019, 3ª TURMA CÍVEL, Publicado no DJe: 13/02/2019 .
Pág.: 363/368)
Mais uma vez, demonstra-se aqui parte do entendimento jurispru-
dencial que diferencia erro médico de iatrogenia, quando a Relatora
Jaqueline Lima Montenegro vota no sentido de responsabilizar o mé-
dico ao verificar que estava presente a culpa diante da imprudência e
imperícia do profissional.
RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. NEGLIGÊNCIA E IMPE-
RÍCIA CONFIGURADAS. DANO MORAL. 1. Deslocamento de retina
ocorrido no pós-operatório de cirurgia de catarata. Demora no diag-
nóstico por parte dos prepostos do Apelado. Imperícia. 2. Ausência
de conduta do Apelado, quando ainda lhe era possível agir para
evitar o dano irreversível, qual seja, a perda da visão. Negligência
configurada. 3. Contrato de mútuo que não guarda relação causal
com a conduta geradora do dano indenizável. Descabimento do
dever de restituição. 4. Dano moral grave e evidente. Compensação
devida. 5. Provimento parcial do recurso. (TJ-RJ–15ª Câmara Cível
AC: 00135326420138190007 – Relator: Des(a). JACQUELINE LIMA
MONTENEGRO – DJ – 05/11/2019).
Outrossim, verifica-se que não existe razão para confundir dano
iatrogênico com o erro médico, uma vez que aquele ocorre diante a
previsibilidade do dano e a necessidade de sua produção, enquanto este
advêm de um não cumprimento das normas técnicas e éticas exigidas,
dando ensejo a um ato ilícito imprudente, negligente ou imperita no
exercício da atuação médica.

3. DEVER DE INFORMAÇÃO
E ASPECTOS PRINCIPIALISTAS BIOÉTICOS
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 49

Após a exposição quanto a distinção entre os dois termos, erro


médico e Iatrogenia, insta exaltar o fator essencial para distinção entre
eles, qual seja o dever de informação. Para tanto, é primordial, que se
entenda a origem do dever de informação, e é o que se fará neste tópico.
O dever de informação é uma obrigação do médico em atendimento
ao princípio da autonomia do paciente, um corolário da Bioética (KFOURI
NETO, 2019, posição 1116).
Em decorrência desse fator, far-se-á uma breve contextualização
acerca da bioética e da teoria principialista.
É cediço que a bioética é a ciência responsável pelo estudo da evo-
lução tecnológica e dos valores da vida, dentre elas, humana, animal e
ambiental (DIAS, 2017, p. 79-80).
O surgimento da Bioética pode ser visto como uma resposta à crise
da Ética hipocrática, baseada no denominado princípio da sacrali-
dade da vida, que vigorou até a metade do século IX, começando a
decair a partir na década de 1960, com o advento do princípio da
qualidade de vida. Foi importante também, nesse contexto de mu-
dança de paradigma ético, o processo de constituição da profissão
médica, com sua legitimidade científica e social. A medicina adota
a racionalidade científica moderna, alcançando um suposto sucesso
terapêutico. Além disso, obtêm a proteção legal do Estado, ganhando
autonomia técnica e autorregulação Ética (DIAS, 2017, p 79).
Insta salientar que pesquisadores reconheceram como um relevante
marco histórico para o estudo da bioética a obra Bioética: uma Ponte
para o Futuro, publicada em 1971, com autoria de Van Rensselaer Potter
(DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 7).
Na obra, metaforicamente, Potter aponta que a bioética é a ponte
capaz de encaminhar o desenvolvimento científico para o futuro, disci-
plinando e acompanhando a ciência de forma ética (DINIZ; GUILHEM,
2017, p. 8).
Foi entre 1960 e 1970, com o surgimento de grandes dilemas mo-
rais relacionados à prática médica, que a consolidação acadêmica da
bioética teve fundamental importância, sendo que como resultado do
aprofundamento dos estudos sobre a matéria, adveio o Relatório Belmont
(DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 20). “[...] Neste documento, três princípios
50 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

foram identificados, sendo: a) respeito pela pessoa; b) beneficência e;


c) justiça” (LEITE, 2018, p. 21).
No contexto de incertezas éticas que dominava a pesquisa científica
do período, a divulgação do Relatório Belmont representou um
verdadeiro divisor de águas para os estudos de ética aplicada. A
estruturação mínima proposta pelo relatório, representada pela
eleição dos três princípios éticos, foi o pontapé inicial que a bioética
necessitava para sua definitiva organização nos centros universi-
tários e acadêmicos. Foi então, a partir da publicação do relatório
que teve início a formalização definitiva da bioética como um novo
campo disciplinar (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 22).
Mais adiante, a bioética principiológica ganhou mais espaço, tendo
como marco “[...] a publicação de Princípios da Ética Biomédica, de
autoria do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, em
1979[...]” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 24).
Beauchamp, que participou da Comissão Nacional que elaborou o
Relatório Belmont, e Childress desenvolveram uma teoria ética que
procurou abarcar não só a experimentação com seres humanos, mas
também a prática médica e assistencial. Afora os princípios da au-
tonomia, beneficência e justiça, já constantes no Relatório Belmont,
os autores acrescentaram um quarto que foi o da não-maleficência
(LEITE, 2018, p. 22).
Nas palavras de Maria Clara Dias, “a proposta teórica de Beauchamp e
Childress seguia a trilha aberta pelo Relatório Belmont alguns anos antes,
defendendo a ideia de que os conflitos morais poderiam ser mediados
pela referência a algumas ferramentas morais, os chamados princípios
éticos” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 24), sustentando a epstemologia dos
debates bioéticos da época.
Por isso:
[...] durante quase vinte anos a bioética demonstrou sua fraqueza em
enfrentar a crueldade inerente aos conflitos morais, aos interesses
e desejos das pessoas. Na verdade foi mais do que isso: a disciplina
que havia surgido para ampliar nosso horizonte do possível havia
se confortado com a tranquilidade de certas verdades instituídas, os
sagrados princípios éticos (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 33).
No Brasil, a implementação bioética aconteceu durante a década
de 1980, porém a ordenação prática só ocorreu na década 1990 (DIAS,
2017, p. 82), demonstrando um “certo atraso na adoção da perspectiva
crítica da teoria principialista” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 45).
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 51

Dessa forma, com a devida inserção dos princípios bioéticos no país,


grandes avanços alcançaram o sistema jurídico brasileiro, no que tange
aos casos voltados para área médica.
A atuação principiológica se dá em dois planos: o plano da justifi-
cação e o plano da aplicação. No primeiro, os princípios auxiliam a
interpretação do Direito, justificando a formação e aplicação das
normas. São intermediários que norteiam todo o sistema jurídico.
No plano da aplicação, os princípios assumem seu papel impositivo,
sendo aplicados diretamente para a solução de um caso (SÁ; NAVES,
2021, p.41-42).
Entretanto, para o presente estudo, focar-se-á no princípio da auto-
nomia, devido a pertinência com o tema proposto.

3.1. Princípio da autonomia e o dever de informação


A Associação Médica Mundial, em 1964, publicou a Declaração de
Helsinque, trazendo em seu escopo, princípios éticos em relação a pes-
quisas envolvendo seres humanos (ASSOCIAÇÃO MÉDICA MUNDIAL,
1964). Mas foi em 1981, com a Declaração de Lisboa, que os direitos à
autonomia do paciente referente a qualquer tratamento médico foram
reconhecidos (SIQUEIRA, 2019, p. 54).
Assim, “o princípio da autonomia pode ser entendido como o reco-
nhecimento de que a pessoa possui capacidade para se autogovernar”
(SÁ; NAVES, 2021, p.65), proporcionando o usufruto da capacidade de
escolha inerente ao ser humano, também, na relação médico paciente
(SÁ; NAVES, 2021, p.65).
A relação médico-paciente sofre substancial transformação com a
consideração desse princípio. A relação de autoridade perde espaço
para a consideração do paciente como sujeito partícipe do processo
de tratamento. Para tanto, o processo de intervenção deve ser trans-
parente, permitindo que o paciente tenha o máximo de informações
antes de decidir. Daí a exigência do consentimento livre e esclarecido
(SÁ; NAVES, 2021, p.64).
Além disso, “o princípio da autonomia baseia-se nos pressupostos
de que a sociedade democrática e a igualdade de condições entre os
indivíduos são os pré-requisitos para que as diferenças morais possam
coexistir” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 28).
52 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

Isto posto, é importante ressaltar que é:


[...] o direito de o paciente obter todas as informações sobre seu caso,
em letra legível, e cópias de sua documentação médica: prontuários,
exames laboratoriais, raios X, anotações de enfermagem, laudos di-
versos, avaliações psicológicas etc. Em caso de recusa do médico ao
fornecimento desses dados, o habeas data é remédio jurídico eficaz
para compelir o profissional a conceder tais informações (KFOURI
NETO, 2019, posição 893).
Ainda, complementa Kfouri Neto que é estabelecida uma relação
de natureza contratual entre o médico e o paciente (KFOURI NETO,
2019, posição 918), e como relação contratual, deve haver o dever de
informar.
No direito do consumidor, o dever de informação é um princípio
basilar nas relações de consumo. Ele está consubstanciado no artigo 6º,
inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, onde se lê:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III – a informação
adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de quantidade, características, composição,
qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos
que apresentem; (BRASIL, 1990)      
Por meio desse princípio, pode-se entender o dever de transparência
de um fornecedor de produtos e serviços, devendo informar todas as
particularidades daquele produto ou serviço (BRASIL, 1990).
Logo, o detalhamento do produto ou serviço são determinantes
ao consumidor, no momento do acordo, devendo a informação, vir de
forma clara e objetiva.
No direito médico o dever de informação é instrumentalizado por
meio do Termo de Consentimento Informado, sendo considerado “a
saída formal encontrada para que se pudesse garantir os interesses e a
proteção dos pacientes, tanto em situações de pesquisa como de aten-
dimento clínico” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 29).
Isto porque o consentimento informado, para a Bioética, é um pro-
cesso e não a simples assinatura de um termo (DINIZ; GUILHEM, 2017,
p. 29). Este processo é construído na relação de confiança estabelecida
entre o médico e o paciente, sendo um elemento indispensável nessa
relação, que poderá vir ou não acompanhado de um termo assinado
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 53

(DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 29), o qual é constantemente denominado


de termo de Consentimento Informado.

3.3. Termo de consentimento informado


Em que pese não haver legislação específica que trate sobre o consen-
timento informado, existem diferentes normas gerais que proporcionam
fundamento jurídico ao tema.
Nesse sentido, o artigo 104 do Código Civil de 2002, estabelece que
para validade do negócio jurídico, é necessário que o agente seja capaz,
que o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável e que
possua estrutura prescrita ou não (BRASIL, 2002).
Sobre o mesmo aspecto, o art. 107 do referido instituto, estabelece
que a declaração de vontade é, salvo disposição legal em contrário, de
forma livre (BRASIL, p. 2002). Logo, é possível entender que, devido a
inexistência de lei específica, o consentimento pode ser obtido de qual-
quer forma, inclusive a oral.
Porém, em detrimento das discussões embrionárias sobre o tema,
ainda é o entendimento dos tribunais que o termo de consentimento deve
vir na forma escrita, e devidamente assinado pelo paciente, pautando-se
artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor.
Em detrimento dos números de processos judiciais associados ao
consentimento informado, torna-se possível afirmar que em breve, será o
ponto central acerca das discussões sobre responsabilidade civil médica
(KFOURI NETO, 2019, posição 1116).
Na opinião de Beauchamp e Childress, para que fosse possível reco-
nhecer a validez de um consentimento livre e esclarecido, era preciso
que o indivíduo demonstrasse: competência para decidir; domínio
de informações detalhadas a respeito do seu caso e das diferentes
possibilidades terapêuticas a ele relacionadas; capacidade para
compreender as informações recebidas para que pudessem embasar
o processo de tomada de decisões; e oportunidade para escolher
livre e voluntariamente a opção mais adequada para o seu caso, sem
estar submetido à coerção de outras pessoas ou instituições (DINIZ;
GUILHEM, 2017, p. 29).
54 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

Nessa perspectiva, o artigo 15 do Código Civil, estabelece que nin-


guém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico, com
risco de vida (BRASIL, 2002). Logo, percebe-se que para proteger a
autonomia do paciente, é preciso que ele consinta com o tratamento.
Nesse contexto, Kfouri Neto define:
Consentimento é o comportamento mediante o qual se autoriza a
alguém determinada atuação. No caso do consentimento para o ato
médico, uma atuação na esfera físico-psíquica do paciente, com o
propósito de melhoria da saúde do próprio enfermo ou de terceiro
(KFOURI NETO, 2019, posição 1137).
Logo, trazendo para a prática, pode-se verificar que, para que o
médico consiga provar que informou corretamente, é necessário a apre-
sentação do Termo de Consentimento devidamente assinado.
Isso posto, vale mencionar que a medicina não pode ser juridicamen-
te considerada obrigação de resultado, mas sim de meio, entretanto é
essencial que nada seja ocultado do paciente, para que assim ele exerça
o efetivo poder decisório (KFOURI NETO, 2019, posição 1184).
Diante de todo o exposto, é importante ressaltar que a ausência do
termo acarreta a inobservância do dever de informar (KFOURI NETO,
2019, posição 1184-1249)
Além disso, o Código Civil estabelece, no artigo 927, a responsabi-
lização civil daquele que causar danos a outrem (BRASIL, 2002). Logo,
a mera assinatura do termo de consentimento informado não implica
na isenção da responsabilidade civil do profissional de saúde, em rela-
ção aos danos supervenientes por erro médico (KFOURI NETO, 2019,
posição 1184-1249).
Por outro lado, a existência do termo ressalta a observância do dever
de informar, podendo ser forte ferramenta instrutiva, não bastando ape-
nas a assinatura, mas também que o documento atenda alguns requisitos
(KFOURI NETO, 2019, posição 1184-1249).
O médico deve informar ao paciente o diagnóstico, prognóstico,
riscos e objetivos do tratamento. Haverá, também, de aconselhá-lo,
prescrevendo cuidados que o enfermo deverá adotar. O inadimple-
mento desse dever conduzirá à obrigação de indenizar (KFOURI
NETO, 2019, posição1225).
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 55

Como já exposto no tópico anterior, o artigo 6º, inciso III, o Código


de defesa do Consumidor determina que a informação deve ser clara e
adequada, contendo os riscos inerentes ao tratamento (BRASIL, 1990).
Logo, o termo de consentimento dotado de termos técnicos e de difícil
compreensão, não está cumprindo o dever de informação.
Também, é certo que “o ônus de provar a obtenção do consentimento
informado cabe ao médico” (KFOURI NETO, 2019, posição 1225), de-
tendo ele a obrigação de guardar os documentos do paciente (KFOURI
NETO, 2019, posição 1226).
Dessa forma, conclui-se que o Termo de Consentimento é o docu-
mento de valor inestimável para a proteção dos médicos no tocante às
ações judiciais. Na assinatura do termo devidamente munido do aten-
dimento dos seus requisitos, o paciente demonstra concordância com
a realização do procedimento, aceitando os termos e riscos. Trata-se
de uma declaração escrita, e de boa-fé do profissional, assumindo a
responsabilidade conjunta da escolha do tratamento (KFOURI NETO,
2019, posição 1116-1226).

3.3. Da boa fé objetiva recíproca


Quando se fala em boa-fé objetiva no direito médico, instintiva-
mente se é conduzido a pensar nas obrigações de lealdade, informação,
confiança e responsabilidade que o médico deverá proceder com o seu
paciente. De acordo com o Código Civil pátrio, no seu artigo 113, deve-se
haver a interpretação dos negócios jurídicos de maneira tal que seja
resguardado a expectativa das partes e a confiança recíproca por elas
mantida (BERGSTEIN, 2012).
Com isso, tem-se o questionamento: a boa-fé objetiva seria uma
obrigação unilateral? Uma vez analisada a relação médico-paciente, teria
o profissional, exclusivamente, o dever de agir com transparência com
o seu paciente, sem essa obrigação ser recíproca?
O termo “relação médico-paciente” denota uma via de mão dupla,
afinal, o paciente uma vez assumindo o papel de beneficiário direito
da prestação de serviço médico contratado, também se submete a
obrigações específicas no curso da relação contratual (DANTAS, 2021).
56 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

Depreende-se, portanto, que da mesma forma como o médico deve vigiar


suas condutas, o paciente é compelido a cumprir sua parcela contratual
nos ditames da boa-fé recíproca.
Existe ainda, fazendo uma leitura consistente no Código Civil, a fun-
ção supletiva da boa-fé entre as partes, responsável pelo preenchimento
de lacunas contratuais, criando deveres jurídicos acessórios que incidirão
no contrato mesmo que não haja previsão expressa, o que acaba impondo
um comportamento de lealdade, transparência e de mútua colaboração
(BERGSTEIN, 2012).
Imperioso analisar como os Tribunais vêm atribuindo relevância a
boa-fé objetiva do paciente quando frente à alegação de erro médico.
Conforme se depreende, a Relatora Desa. Lira Ramos de Oliveira, do
Tribunal de Justiça do estado do Ceará negou provimento ao recurso que
pretendia compelir ao médico a responsabilização por erro profissional:
Desse modo, não há nos autos nenhuma prova de que a perfuração
no intestino da apelante tenha decorrido de erro médico quando
do exame de colonoscopia, tendo os médicos especialistas ouvidos
em audiência, afirmado a possibilidade de perfuração natural do
intestino em razão de condições preexistentes, tal como o prévio
tratamento com quimio e radioterapia, conforme o caso concreto.
Assim, a sentença deve ser mantida no ponto, ante a não verificação
de nexo de causalidade entre o exame de colonoscopia e dano sofrido
pela apelante. (TJ-CE – AC: 01669596220138060001, Relator: LIRA
RAMOS DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 14/10/2020, 3ª Câmara
Direito Privado, Data de Publicação DJe: 14/10/2020)
Conforme se observa no trecho do julgado, a Desembargadora
entendeu que não houve erro no exercício da medicina e ainda men-
cionou o fato de que o autor, ora apelante, por condições preexistentes,
e não relacionadas ao procedimento em si, desencadeou complicações
no exame de colonoscopia, não havendo nexo causal entre o exame e o
dano sofrido.
Tem-se, para que os pilares da boa-fé sejam atendidos, quais sejam:
obrigação de informar, de colaborar e de seguir as instruções médicas,
que o paciente não pode omitir informações questionadas pelo profissio-
nal e que este tenha condições de traçar a melhor conduta terapêutica,
com base na história clínica do paciente (DANTAS, 2021). Ensina Gilberto
Bergstein, que “o agir com lealdade deve ultrapassar o agir egoístico da
Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 57

defesa dos interesses individuais e levar em consideração o outro (a


alteridade)” (BERGSTEIN, 2012, p. 93).
Não obstante, se faz necessário ponderar quais situações, de fato,
merecem e são amparadas juridicamente, afim de ser evitado aventuras
jurídicas e indo de encontro com o conceito de boa-fé. Inegável afirmar
que a boa-fé objetiva deve pautar, sempre, a conduta do médico ao expor
as melhores vias de tratamento ao seu paciente, assim como os riscos e
prognósticos, porém, o paciente não está excluído de expor com clareza
e sinceridade, possíveis enfermidades que o acomete e fornecendo ao
profissional todos os dados e exames que possam ajudar o médico a
traçar um tratamento mais eficaz, cumprindo assim também sua parcela
de dever de cumprimento a boa-fé objetiva na relação com o profissional
(BERGSTEIN, 2021).
Assim, consoante ensinamento do professor Eduardo Dantas: “O
dever de informação é – pois – permanente e bilateral, ao longo de
toda a relação contratual” (DANTAS, 2021, p. 205). Dessa forma, evi-
dente se mostra que o princípio da boa-fé objetiva, por não ser unila-
teral, é a base para a relação médico paciente e é o elemento impres-
cindível ao desenvolvimento de um vínculo saudável necessário entre
as partes.

4. CONCLUSÃO
Ao analisar as características particulares de um dano oriundo de
iatrogenia, diferenciando-o do erro médico, a presente pesquisa atende
ao objetivo geral na reflexão quanto aos aspectos do dever de informar.
Verificando-se a essencialidade do termo de consentimento informado,
como instrumento do dever de informação, com ressalva à boa-fé objetiva
e ônus probatório.
Em atendimento ao objetivo geral, foi demonstrado o conceito de
dano iatrogênico, indicando-se a distinção com o erro médico, verifican-
do-se o entendimento dos tribunais com relação a imprescindibilidade
do dever de informação.
Ainda, elaborou-se uma reflexão quanto aos aspectos principia-
lista da bioética referentes ao dever de informação, adentrando-se à
58 Daniela Brito Mercuri e Monalisa Barbosa Pimentel Pinheiro

essencialidade do termo de consentimento informado do paciente, como


instrumento da autonomia e do dever de informação.
Por fim, adentrou-se à exposição de alguns aspectos que validam
o termo de consentimento informado, bem como a incubência do ônus
probatório deste documento. Sendo elaborada, ao final, uma reflexão
referente a boa-fé objetiva, devida a ambas as partes envolvidas na re-
lação médico-paciente, ressaltando a incumbência do ônus probatório.
Dessa forma, foi atendido o objetivo de se questionar quanto a equi-
paração do dano iatrogênico ao erro médico, com base no entendimento
dos tribunais. Esteado nos referidos entendimentos, pode-se extrair a
ideia de previsibilidade e necessidade inerente ao dano iatrogênico. Não
podendo ser confundido, portanto com o não cumprimento das normas
técnicas exigidas, as quais ensejam um ato ilícito imprudente, negligente
ou imperito no exercício da atuação médica.
Ademais, insta salientar a confirmação da hipótese da pesquisa,
quando demonstrada a necessidade de estabelecimento de uma normati-
zação clara e específica para a formalização do termo de consentimento.
Esse fator deve-se, principalmente, ante a inexistência de regulamenta-
ção específica referente ao termo de consentimento informado, sendo-se
extraída ideias esparsas na legislação civil e consumerista, como foi
corroborado no desenvolvimento da pesquisa.
Posto isso, a pesquisa buscou demonstrar a necessidade da bilatera-
lidade da boa-fé, uma vez atendido o requisito do dever de informação.
Ou seja, a boa-fé não deve apenas estar presente no dever de informar
do médico, mas também, na atitude do paciente devidamente informado,
de não obstar o assentimento desse conhecimento.
Assim, a pesquisa demonstrou a relevância da discussão do tema,
principalmente em cenários atuais, onde o tema ainda é embrionário
e muito pouco se vê sobre o assunto, ainda que as demandas judiciais
sejam crescentes.

REFERÊNCIAS
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Dano iatrogênico à luz da boa fé objetiva, uma análise do direito à informação... 59

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CAPÍTULO III

Parâmetros para o exercício seguro da


recusa terapêutica: uma análise a partir
do entendimento jurisprudencial acerca
da disposição sobre o próprio corpo

Érica Baptista Vieira de Meneses*


Lucas Macedo Silva*

Sumário: 1. Introdução; 2. O conceito de vida digna no ordenamento jurídico


brasileiro; 3. Conformação da autonomia privada no contexto da disposição sobre
o próprio do corpo. 4. O exercício do direito de recusa a tratamento médico; 5.
Conclusão.
PALAVRAS-CHAVE: recusa terapêutica; dignidade da pessoa humana; disposição
sobre o próprio corpo.

1. INTRODUÇÃO
A partir da revolução tecnológica, a todo momento emergem
novas modalidades de tratamento e novas perspectivas de cura para
enfermidades, o que constantemente enseja modificações na relação

(*) Professora de Ética Médica da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Pós-
-graduada em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia e em Direito
Médico, Bioética e Biodireito pela Universidade Católica do Salvador. Mestranda
em Direito Público com ênfase em Ciências Criminais pela UFBA. Foi Presidenta
da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA (2019-2020). Servidora do
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. E-mail erica.meneses@gmail.com..
(**) Pós-graduado em Direito Público pela Faculdade Baiana de Direito e em Direito
Processual Civil pela Faculdade Damásio. Graduado em Direito pela Universidade
Salvador (UNIFACS). Membro da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde
da OAB/BA no triênio 2019/2021. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Estudo de
64 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

médico-paciente. Diante desse cenário, há a necessidade de se confor-


mar os valores jurídicos relativos à autonomia privada, considerando os
paradigmas adotados pela Constituição Federal de 1988. São diversos
os temas que geram controvérsia, dentre os quais se encontra o direito
do exercício da recusa terapêutica, o qual enfrenta o debate sobre os
limites à disposição sobre o próprio corpo.
O presente capítulo destina-se à análise do direito de recusa a
tratamento médico, verificando a sua posição dentro do ordenamento
jurídico pátrio e os termos pelos quais seria viabilizado o exercício desse
direito. A abordagem será recortada pela influência da autonomia pri-
vada na relação médico-paciente e pelo entendimento jurisprudencial
sedimentado acerca da matéria.
A Constituição Federal de 1988 institui o princípio da dignidade
da pessoa humana como epicentro de todo o ordenamento jurídico
nacional, orientando que a hermenêutica normativa tenda sempre à
máxima satisfação da expressão dessa dignidade. Na grande maioria
das situações, o indivíduo possui autonomia para guiar e comandar os
atos da sua vida privada sem intervenção estatal, desde que tal conduta
não interfira na esfera pessoal de outrem. A discussão se acirra no mo-
mento em que se chocam direitos fundamentais garantidos pela Carta
Magna e um deles sofrerá uma derrogação inevitável para a melhor
satisfação do outro.
Quando se fala em direito de recusa a tratamento médico, entram
em conflito, no mínimo, dois direitos fundamentais, que podem vir a ser
o direito à vida e o direito à liberdade ou o direito à saúde e a dignidade
da pessoa humana, por exemplo. Em se tratando de normas-princípio,
a aplicabilidade de cada um deles será averiguada no caso concreto, o
que se torna ainda mais difícil diante da ausência de normas específicas
sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro. Por isso, a questão
central é a de se haveria efetivamente um direito de recusa a tratamento
médico soberano, o qual o paciente poderia exercer de modo irrestrito e

Casos em Direito Médico e da Saúde”. Advogado associado do Advocacia Mendonça


e Elbachá. Integrante do grupo de pesquisa “JusBioMed”. E-mail: contato@lucas-
macedo.adv.br.pecialista em Direito Médico pela Faculdade de Minas – FACUMI-
NAS. E-mail: monalisapimentel.adv@gmail.com.
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 65

injustificado, embasado pelo seu direito à liberdade e pela sua concepção


de vida digna.
Já adentrando no campo majoritariamente dogmático, outras
questões guiarão o presente trabalho. Uma delas é a relativa à inter-
pretação do art.15 do Código Civil, se ele representaria, de fato, a tutela
da liberdade do indivíduo ou se teria um caráter de proteção à vida em
caso de risco de morte. A Constituição Federal de 1988 apresentou,
em seu art.5°, caput, a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade,
dentro do capítulo em que trata dos direitos fundamentais. Esses dois
direitos circundam intimamente a relação existente entre o profissional
da medicina e o paciente, razão pela qual se discute constantemente
qual deles deve prevalecer em caso de conflito. Longe de se extrair uma
solução una aplicável a todos os casos, há que se extrair dos próprios
princípios constitucionais e da legislação infraconstitucional os limites
ao exercício da liberdade, o qual, in casu, é representado pela disposição
sobre o próprio corpo.
Muito embora não intente o esgotamento da matéria, o capítulo
busca sistematizar o conhecimento já produzido acerca dos assuntos
correlacionados e introduzi-los dentro dos paradigmas contemporâneos
que regem a relação médico-paciente. Cumpre salientar que o tema ain-
da está em construção doutrinária e jurisprudencial, de modo que esse
trabalho intenta fomentar o aprofundamento na temática. As posições
doutrinárias apresentadas, entretanto, não vinculam a pesquisa à adoção
de alguma delas como absoluta ou correta, servindo, em verdade, como
fontes instigadoras para a melhor apresentação do tema.

2. O CONCEITO DE VIDA DIGNA


NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Considerando que a vida é o fenômeno jurídico que representa
o valor mais primário da sociedade, é natural que os ordenamentos
jurídicos traduzam, em sua disciplina normativa, as tendências sociais
no tocante a tal fenômeno. O que não pode ser olvidado, desde logo, é
que a acepção contemporânea não comporta mais a visão arcaica de
um complexo de reações fisiológicas componentes de um corpo anima-
do. A vida humana passou a ser tratada também com uma dimensão
66 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

psicológica e social, levando em conta as variantes relativas à maneira


como o indivíduo se enxerga e como quer ser inserido dentro da socie-
dade. O fenômeno jurídico da vida é o que possibilita toda a construção
dogmática e científica.
Sendo um bem jurídico de maior relevância, no arcabouço norma-
tivo brasileiro, a vida é protegida pela própria Constituição Federal, em
seu art.5°, caput, que apresenta a inviolabilidade da vida como direito
fundamental, ao lado da liberdade, da igualdade, da segurança e da
propriedade (BRASIL, 1988).
Para entender o efeito dessa opção constituinte, faz-se necessária a
conceituação de direito fundamental, objetivando evidenciar qual o seu
papel dentro do ordenamento jurídico. Para a realização do presente
estudo, tomou-se como parâmetro o conceito formulado por José Afonso
da Silva (2011, p.178), qual seja o de direitos fundamentais como:
[...] princípios que resumem a concepção do mundo e informam a
ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para
designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e insti-
tuições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna,
livre e igual de todas as pessoas.
Quando se fala na Constituição Federal de 1988, aponta-se a dignida-
de da pessoa humana como seu núcleo essencial, sendo os direitos funda-
mentais os princípios jurídicos que dariam concretude a esse epicentro
normativo (CUNHA JR., 2011). Em se tratando de princípio, Robert Alexy
(2011) destaca que eles representam mandados de otimização, podendo
ser satisfeitos em diferentes níveis a depender das possibilidades fáticas
e jurídicas. A preponderância de um direito fundamental em detrimento
do outro seria decidida por meio de uma ponderação, observando os
princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Não há uma classi-
ficação apriorística que defina qual direito deva prevalecer em caso de
conflito, sendo obtida a solução em cada caso concreto (ALEXY, 2011).
Apesar de uno, o direito à vida pode ser desdobrado em algumas
vertentes, quais sejam o direito à existência, o direito à integridade
física e o direito à integridade moral. Todos eles existem de modo con-
comitante, sendo mais uma subdivisão teórica do que prática. O direito
à existência corresponde ao permanecer vivo, sendo vedada a interrup-
ção não natural do processo vital, inclusive possuindo tutela da ultima
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 67

ratio dada a sua relevância. O direito à integridade física diz respeito à


questão da agressão ao corpo humano, sendo previsto expressamente na
Constituição esse direito em relação aos presos, no inciso XLIX, do art.5°,
mas sendo aplicável a qualquer indivíduo. Por último, haveria o direito
à integridade moral, que estaria mais associado à seara valorativa, às
questões morais, buscando-se proteger a honra da pessoa (SILVA, 2011).
Analisar o valor da vida sob a perspectiva exclusiva do art.5° da
Constituição Federal pode transmitir a falsa ideia de que a vida deve
ser considerada isoladamente, devendo ser protegida a todo e qual-
quer custo, independente das circunstâncias. A partir daí, é possível se
encontrar, dentro do ordenamento jurídico pátrio, diversas disposições
que visam dar efetividade ao direito fundamental à vida, previsto na
Constituição Federal.
A tutela protetiva mais forte nesse sentido é a penal, sendo reser-
vado todo o capítulo I do título I da parte especial do Código Penal para
a tipificação de condutas que ponham em risco a vida humana (GRECO,
2012). Não há dúvidas de que essa proteção é absolutamente necessária
e coerente diante de uma vida em sociedade. Nesses casos, a vida seria
um valor considerado potencialmente absoluto, mas tão somente porque
se trataria de uma atitude injustificada, carente de algum outro direito
fundamental que pudesse amparar a prática do ato. O que se pretende
evitar e punir com a tutela penal é a interrupção de uma vida por um
terceiro.
A grande finalidade de apresentar os casos em que o legislador pátrio
possibilitou a relativização é a de mostrar que a aplicação do direito à
vida não é de todo absoluta. Tal mitigação seria possível no momento
em que ele se pusesse em confronto com outro direito fundamental que
devesse preponderar no caso concreto, com vistas a atender, de modo
mais pleno, os próprios ideais constitucionais.
A primeira situação se encontra no próprio texto constitucional, no
art.5°, inciso XLVII, o qual possibilita a aplicação de pena de morte no
país, em caso de guerra declarada (TAVARES, 2013). A segunda hipótese
decorre do art.128 do Código Penal, se referindo aos casos nos quais a
conduta do aborto é impunível pela lei penal. O aborto sentimental, aque-
le derivado de gravidez oriundo de estupro (MARQUES, 1999). Ainda que
68 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

em nome da vida, o Estado não possui o condão de obrigar a gestante


a levar adiante uma gravidez oriunda de estupro, principalmente em
virtude dos danos psicológicos permanentes que isso poderia gerar.
Há também o aborto terapêutico, que seria a interrupção da gravidez
em virtude do alto risco à vida da gestante (GRECO, 2012). Muito embora
não haja ainda previsão legal, com a Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 54, colocou-se à apreciação judiciária a possibilidade
de se interromper a gravidez de feto anencefálico. A decisão proferida
pelo Supremo Tribunal Federal foi a de garantir o poder de escolha da
gestante de feto anencefálico em prosseguir ou finalizar antecipadamente
a gravidez, independente de decisão judicial anterior (TAVARES, 2013).
Ainda na seara penal, existe outra hipótese em que se relativiza a
inviolabilidade da vida, que é o caso da legítima defesa, prerrogativa
que o legislador confere ao particular para defender a própria vida ou
de terceiro quando ameaçadas nas situações que o Estado não pode
intervir (TAVARES, 2013).
Diante de todas essas possibilidades nas quais o ordenamento ju-
rídico pátrio, a despeito do disposto no art.5°, caput, da CRFB, permite
a relativização do direito à vida quando confrontado com outro direito
fundamental, resta evidente que a sua inviolabilidade é passível de
ponderação no caso concreto. De fato, a regra é a de preservação da vida
sempre que for possível, porém não representa uma finalidade cega da
Constituição. Se a vida, que se apresenta em um patamar tão importante
no sistema jurídico, pode vir a sofrer mitigações a depender do suporte
fático, o mesmo ocorre com os demais direitos fundamentais.
Muito embora exista o direito de continuar vivo e de ter a sua vida
biológica protegida de interferências externas indesejadas, o direito à
vida também deve ser encarado do ponto de vista social. Esse viés de
observação parte da premissa de que é necessário, além da mera exis-
tência física, ser assegurado um nível mínimo de vida, condizente com
a dignidade humana (TAVARES, 2013).
Por essa concepção, para se garantir a vida digna, é necessário pri-
meiro averiguar o modo como a pessoa se autodetermina, para extrair
o sentido da dignidade humana para ela de modo singular. Com a “indi-
vidualização” da dignidade, poder-se-ia partir para a leitura dos direitos
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 69

fundamentais no caso concreto. Nesse sentido, entende Ana Carolina


Brochado Teixeira (2010, p.125), que afirma:
Concretizar a dignidade é atribuir a cada pessoa a ampla liberdade
para que ela construa a própria vida, realize suas necessidades, faça
suas escolhas e “adone-se” de sua existência, dirigindo-a da forma
como entender que lhe traga maior realização, pois as concepções
de cada um devem ser consideradas, uma vez que todos os valores
são possíveis no Estado Democrático de Direito, que, como visto,
tem o pluralismo como um dos pilares fundamentais.
Ao se adotar a expressão “vida digna”, não se objetiva a instituição
estática de um modelo social de vida que deva se sobrepor aos outros,
mas sim à adequação do ideal de vida escolhido pela pessoa aos pres-
supostos de dignidade também considerados por ela. Só assim seria
possível atingir a subjetividade humana, não sendo um conceito tendente
a uma conduta imperialista.
A integridade física, conforme visto, representa um dos desdobra-
mentos do direito à vida, ou seja, além do aspecto de proteção relativa
à permanência da existência, há a integridade física como bem jurídico
tutelado pelo diploma constitucional. Tal proteção decorre do enten-
dimento de que a agressão ao corpo humano seria uma forma de se
agredir a vida, considerando que o corpo é a forma física que permite a
realização da vida. Sendo assim, o direito à integridade física constitui
um direito fundamental (SILVA, 2011).
A priori, o principal ponto a ser destacado é o de que a integridade
física é um direito fundamental e, como tal, não é absoluto, podendo
sofrer derrogações quando conflitado com outro direito fundamental,
com vistas a satisfazer, de maneira mais plena, a dignidade da pessoa
humana. Essa é uma premissa essencial para se questionar a possibili-
dade e os limites à disposição sobre o próprio corpo nas hipóteses de
recusa a tratamento médico. Além dela, também é preciso que se tenha
como pressuposto o conceito mais abrangente de corpo, para considerar
que a psique o integra e merece ser protegida.
70 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

3. CONFORMAÇÃO DA AUTONOMIA PRIVADA


NO CONTEXTO DA DISPOSIÇÃO
SOBRE O PRÓPRIO DO CORPO
A partir da Constituição Cidadã, a autonomia passou a ser tratada em
sua acepção positiva, no sentido de, sobretudo nas situações existenciais,
dar o poder de escolha ao próprio indivíduo (TEIXEIRA, 2010). Sendo
assim, a eficácia da liberdade, aqui tomada em sua acepção de autonomia
privada, estaria dependente não mais de uma conduta abstencionista,
mas de uma atitude positiva no sentido de proporcionar formas para
que a pessoa possa alcançar a sua dignidade.
Discorrendo sobre a possibilidade de limitação voluntária de um
direito da personalidade, Anderson Schreiber (2011, p.26) afirma
que:
A vontade individual, por si só, não é um valor. Trata-se de um vetor
vazio. Ao jurista compete verificar a que interesses a vontade atende
em cada situação concreta. A ordem jurídica não é contra ou a favor
da vontade. É simplesmente a favor da realização da pessoa, o que
pode ou não corresponder ao atendimento da sua vontade em cada
caso concreto. Se a dignidade humana consiste, como se viu, no
próprio “fundamento da liberdade”, o exercício dessa liberdade por
cada indivíduo só deve ser protegido na medida em que corresponda
a tal fundamento.
Quando se fala em direito de recusa a tratamento médico, o bem
jurídico tutelado é a vida ou a integridade física do indivíduo, motivo
pelo qual se diz que a situação jurídica é existencial e não patrimonial.
Outrora, dado o tratamento diferenciado entre tais espécies de situações
jurídicas, o papel do médico e do Estado na seara individual nos casos
envolvendo saúde era bastante autoritário, dando pouca ou nenhuma
margem de escolha para o paciente.
No caso do paciente que pretende se valer da sua autonomia para
recusar determinado tratamento médico que considere atentar contra
a sua dignidade, ele dependerá, para a sua concretização, da atuação do
médico nesse sentido. A interpretação do exercício da autonomia privada
nesses casos deve ser a de que a situação existencial tem como mote a
realização da dignidade da pessoa humana, epicentro normativo de todo
o sistema jurídico. Para que se possa afirmar a eficácia dessa dignidade, é
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 71

preciso respeitar o arcabouço pessoal de cada um, incluindo seus valores,


seus objetivos e seu modo de viver (TEIXEIRA, 2010).
Destaca-se que o ato de respeitar referido não pode se esgotar em
uma conduta negativa, no sentido de se abster de fazer algo contra, de-
vendo ser possibilitados meios pelos quais a pessoa possa efetivamente
realizar livremente a sua personalidade (TEIXEIRA, 2010). O elemento
principal dentro da autonomia, sob a perspectiva civil, é a vontade, a
intenção subjetiva do indivíduo que o leva a realizar determinado fato
relevante para o Direito (MELLO, 2010, p.146).
Quando se busca enxergar a relação jurídica entre médico e paciente
acima dos pressupostos éticos, parte-se para uma análise técnica da
natureza propriamente dita dessa relação e os impactos no exercício
da autonomia. A autonomia privada é um verdadeiro poder jurídico
de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias. Quando
se trata de auto-regulamentação, que é a situação em que o indivíduo
declara a sua vontade para a produção de efeitos na sua esfera jurídica,
é possível alocar a recusa a tratamento médico dentro do âmbito parti-
cular (BORGES, 2007).
Diante disso, considerando a autonomia privada, deve-se lembrar
de que toda a construção normativa pátria deve estar atenta ao vetor
principal do princípio da dignidade da pessoa humana. O direito à in-
tegridade física se relaciona fortemente com o direito ao uso do corpo,
representando ambos direitos físicos da personalidade. O direito de
dispor sobre o próprio corpo abrangeria os atos autônomos que não
resultassem em redução permanente do corpo.
Essa é a regra geral tratada pelo art.13 do Código Civil, quando afirma
que “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio
corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física,
ou contrariar os bons costumes”. Em uma interpretação a contrario
sensu, estaria se permitindo o ato de disposição corporal quando não
originasse redução permanente, no exercício da autonomia privada
(FARIAS; ROSENVALD, 2013).
Com a leitura do parágrafo único do dispositivo normativo ora es-
tudado, percebe-se que se excetua da indisponibilidade corporal para
lesões permanentes a situação de transplante de órgãos, atribuindo o
72 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

poder regulamentar a uma lei especial. É uma obediência clara ao art.199,


§4°, da Constituição Federal, o qual possibilita a remoção de órgãos, te-
cidos e substâncias humanas com a finalidade de transplante, pesquisa
ou tratamento, assim como a coleta, o processamento e a transfusão
de sangue. Regulamentando a matéria em questão, foi editada a Lei
n°9.434/97, que instituiu os requisitos e os parâmetros para o exercício
desse direito (BORGES, 2007).
A permissão da doação de órgãos, tecidos ou substâncias para
transplante representa uma típica hipótese de prevalência da autonomia
privada. Ressalte-se, desde logo, que a doação post mortem também é
chancelada, desde que a pessoa tenha se manifestado nesse sentido
quando em vida. De qualquer modo, faz-se necessário o preenchimento
de determinados requisitos para a validade desse ato de disposição do
próprio corpo (FARIAS; ROSENVALD, 2013). Vê-se que há uma abertura
condicionada para o exercício da autonomia privada, dando ao indivíduo
o poder de escolha e de autodeterminação em relação ao próprio corpo.
Também há que se classificar a cirurgia de transgenitalização em
razão da sua efetiva função para o indivíduo, qual seja o de adequar o
sexo biológico ao gênero do indivíduo. A redução permanente não teria
natureza “mutilatória ou destrutiva, mas de índole corretiva, garanti-
dora do livre desenvolvimento da personalidade do ser humano” (SÁ;
NAVES, 2011, p.268). Também se enxerga o direito à disposição sobre
o próprio corpo nos casos relacionados com gestação em substituição,
quando alguém, por ato solidário e gratuito, se predispõe a desenvolver a
gravidez provinda de um óvulo fecundado in vitro pertencente a outrem
(BORGES, 2007).
Em todas as hipóteses apresentadas, o que se pode extrair é a von-
tade do constituinte e do legislador de garantir o livre desenvolvimento
da personalidade, de modo que cada indivíduo possua a autonomia ne-
cessária para a realização do seu projeto de vida. A orientação máxima
vem sempre pela luz emanada da dignidade da pessoa humana, dando
à pessoa maior autonomia e retirando do ente estatal uma ingerência
excessiva na esfera jurídica dos particulares, sobretudo nas situações
jurídicas existências. Desse modo, apresentado o contexto geral e os seus
reflexos no exercício autonomia privada, pode-se partir para o direito
de recusa a tratamento médico propriamente dito.
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 73

4. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE RECUSA


A TRATAMENTO MÉDICO
O direito de recusa tratamento médico é observado, dentro do con-
texto constitucional, como sendo uma vertente do direito à liberdade
direcionado à satisfação do direito à saúde. Toda essa mudança para-
digmática deriva da nova concepção de corpo, na qual ele passa a ser
um instrumento de manifestação das concepções próprias do indivíduo.
Quando se diz que o corpo passou a estar relacionado diretamente com o
livre desenvolvimento da personalidade, é que se ingressa a autonomia
privada como instrumento de efetivação das garantias fundamentais
(CICCO, 2013).
Uma das hipóteses possíveis é exatamente a recusa a tratamento
médico, caso em que o paciente nega a submissão ao tratamento suge-
rido por considera-lo ofensivo à sua dignidade. O impacto dessa decisão
pode ser, inclusive, à condução à morte, de modo que é necessário que
se ponha em xeque a própria vida como direito fundamental absoluto
(CICCO, 2013). Pela gravidade das consequências da decisão de recusa,
sobretudo nos casos de afronta ao direito à vida, o seu exercício não pode
ser permitido injustificadamente, devendo ser obedecidos determinados
requisitos para a sua validade.
A abertura legislativa na qual se ampara a defesa do direito de
recusa a tratamento médico se encontra no art.15 do Código Civil,
incluído no capítulo que trata dos direitos da personalidade, o qual
dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco
de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica” (BRASIL,
2002). O grande fundamento do dispositivo acima transcrito é a auto-
nomia, princípio que rege a bioética e orienta no sentido da liberdade
individual do paciente.
Aplicável ao caso, diz-se que o paciente teria autonomia para negar
a submissão a um tratamento médico, pois só a ele caberia dizer o que
seria melhor para si. Do mesmo modo, a sociedade, pelo princípio da al-
teridade, deve respeitar a decisão pessoal, mesmo que ela vá de encontro
com o senso de aceitação majoritário. Com a junção de tais princípios,
negar a recusa a tratamento médico poderia ser considerada uma ofensa
à dignidade do indivíduo (BORGES, 2007).
74 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

No entanto, para que se possa exercer o direito previsto no art.15 do


Código Civil, a vontade deve partir de uma análise consciente, sabendo
o paciente de todos os riscos da recusa, e deverá ser exteriorizada, só
podendo ela ser feita substitutivamente nos casos de incapacidade do
titular. É dentro do âmbito da manifestação da vontade que se engran-
dece a importância do consentimento livre e esclarecido, já que ele
vai munir o paciente das informações necessárias para a sua decisão
(BELTRÃO, 2005).
Quando o dispositivo afirma que, com risco de vida, um indivíduo
não pode ser obrigado a se submeter a uma dada intervenção médica,
a partir de uma interpretação a contrario sensu, infere-se que, não se
encontrando o risco, poderia haver o constrangimento à submissão ao
tratamento, o que é destituído de qualquer sentido. Em que pese seja
visível a má redação do dispositivo, esta não pode obstar a utilização do
direito nele proclamado. Afirmar a possibilidade de uma intervenção
esfera individual de saúde do indivíduo sem o seu consentimento seria
defender uma volta aos modelos paternalistas e de pouca participação
do paciente, o que não condiz com a realidade contemporânea, nem com
as garantias constitucionais (SCHREIBER, 2011).
O que o legislador chama de “risco de vida” seria a probabilidade
significativa de que o paciente pudesse vir a óbito. Sendo assim, perce-
be-se a opção legislativa em se proteger a vida em conformidade com
as convicções próprias do paciente, dado que ele, motivado pelo medo
da morte associado aos riscos do procedimento, teria o legítimo direito
de se recusar a submissão. Ultrapassando essa análise fria e exegeta,
recomenda-se que haja uma ampliação no campo de decisão do pa-
ciente para a admissão da escolha em relação a todas as situações em
que a saúde, em caráter geral, tiver envolvida desde que o titular esteja
munido de todas as informações necessárias para embasar a sua opção
(TEIXEIRA, 2010).
Tal interpretação obtida sistematicamente indica que, havendo ou
não o risco de vida, a pessoa não pode ser compelida a se submeter a
uma intervenção médica de modo autoritário, sem a observância da sua
vontade, salvo as exceções em que o Estado interfere para proteger um
interesse coletivo, tal como evitar a propagação de uma epidemia. Outra
hipótese de intervenção sem o consentimento seria quando o paciente
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 75

chega ao médico, correndo risco de vida e em estado que inviabilize a


manifestação da sua vontade, considerando que se adotará o princípio
da preservação à vida. Nessas situações, a conduta médica não se sub-
sumirá com o tipo penal de constrangimento ilegal nem representará
ilícito civil, na medida em que há uma previsão expressa no art.146, §3°,
I, do Código Penal, que a apresenta como uma excludente de ilicitude.
Seriam as hipóteses taxativas nas quais o consentimento seria dispen-
sado, devendo, nas demais, ser plenamente satisfeito (BORGES, 2007;
SCHREIBER, 2011).
Um aspecto acerca do consentimento livre e esclarecido que pos-
sui bastante pertinência é a sua constante revogabilidade. A qualquer
momento, o paciente poderá mudar a sua vontade e revogar a sua ma-
nifestação anterior, recusando a submissão ao tratamento. Além disso,
o consentimento deve ser obtido de modo repartido para cada procedi-
mento a ser executado pelo profissional da medicina, não sendo possível
uma aceitação geral dando plenos poderes de intervenção. Isso se dá
para que o paciente possa exercer o seu direito em plenitude, de modo
a recusar os tratamentos que julgar contra a sua dignidade e aceitar os
que lhe convierem (SCHREIBER, 2011; TEIXEIRA, 2010).
Todo o parâmetro hermenêutico para a interpretação do art.15
do Código Civil deve partir das disposições constitucionais. Por isso, a
expressão “tratamento médico ou cirúrgico”, inclusa no texto do dispo-
sitivo normativo, deve ser lida de forma a abranger o maior número de
situações possíveis envolvendo a intervenção do médico no corpo e na
saúde do paciente (TEIXEIRA, 2010).
Muito embora a eficácia dos direitos da personalidade, dentre os
quais se enquadra o direito de recusa a tratamento médico contido no
art.15 do Código Civil, não necessite de justificativa para o seu exercício,
recomenda-se a conceituação de “risco de vida” a partir de uma objeção
de consciência do paciente. Essa objeção seria importante para que o
indivíduo apresentasse as suas razões de recusa, cujos argumentos serão
obtidos por meio do consentimento livre e esclarecido. Desse modo,
haveria o pleno exercício da liberdade e da autodeterminação corporal.
Há que se admitir que a exigência da arguição da objeção de consciên-
cia, em que pese não possa ser um requisito para o exercício do direito,
76 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

representa uma boa forma de se averiguar o devido cumprimento do


consentimento livre e esclarecido e, ao mesmo tempo, de favorecer a
compreensão da sociedade em relação à escolha do paciente. Da mesma
forma, como a recusa a tratamento médico, na maioria das vezes, se
apresenta como uma relativização do direito fundamental à vida e/ou
à integridade física, seria importante que houvesse uma justificativa do
paciente, para evitar as posições libertárias e ocasionar a ineficácia da
proteção constitucional.
Juntamente com o dever de zelo para com a saúde do enfermo, o
médico possui, em uma interpretação sistemática do art.15 do Código
Civil, o dever de informar sobre todo o tratamento a ser realizado, com
vistas a obter o seu consentimento livre e esclarecido para o início do
procedimento (CAVALIERI FILHO, 2014). O cumprimento do dever de
informar eximirá o médico da responsabilidade. Isto posto, depreende-
-se que, com a plena realização do consentimento livre e esclarecido, o
médico definirá a sua postura a partir da autonomia do paciente, não
podendo ser responsabilizado por uma decisão de recusa ou que con-
trarie o que socialmente se entende cabível.
Não significa que o médico deva se abster de aconselhar o paciente
acerca das melhores opções, o que não pode haver é uma imposição de
um tratamento contra a vontade do próprio indivíduo. A autonomia do
paciente é superior às razões médicas, de modo que há liberdade para
se rejeitar o tratamento, ainda que a sua ausência possa ocasionar a
morte (FABIAN, 2002, p.135). Ainda que o médico esteja amparado pela
justificativa de proteção da vida, não se mostra cabível a interferência
na saúde do paciente de modo imperativo, considerando que pode re-
presentar uma afronta à sua concepção de saúde e de vida digna. Desse
modo, o descumprimento fatalmente poderá resultar na aplicação de
sanções ético-disciplinares, cíveis e penais.
Ao se adentrar de modo específico no exercício da autonomia
privada com a recusa a tratamento médico, o médico deve se resignar
perante a decisão do paciente, deixando de realizar o tratamento ou
interrompendo-o. Se dentro dos requisitos do consentimento escla-
recido, a responsabilidade profissional será afastada e o médico não
poderá sofrer punições, uma vez que agiu pelo julgamento autônomo
do próprio paciente.
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 77

Ressalte-se que a vontade do paciente não deve prevalecer quando


ela for manifestamente contra disposição legal, situação em que o mé-
dico deverá agir sob pena de responsabilidade. É o caso, por exemplo,
do pedido para o desligamento dos aparelhos em pacientes em estado
terminal, cuja prática configuraria eutanásia. O médico, ainda que com
o aval do paciente, não poderá respeitar à autonomia individual, já que
a lei representa um dos limites para o seu exercício.
Em que pese a construção teórica seja de fundamental importância,
também se apresenta necessário se analisar de que modo os tribunais
brasileiros têm se comportado quando confrontados com uma contro-
vérsia por conta da recusa a tratamento médico. O grande destaque
jurisprudencial fica por conta das ações interpostas por Testemunhas de
Jeová para não serem submetidos a transfusões sanguíneas, sobretudo
nos casos em que se trata de um incapaz. Para uma análise completa,
serão utilizados os fundamentos de cada decisão judicial para aplicá-los
analogicamente às demais espécies de tratamento.
A princípio, cumpre ressaltar que a jurisprudência é majoritariamen-
te tendenciosa à defesa do direito à vida e à integridade física como limi-
tadores do exercício da autonomia privada, o que justificaria a conduta
médica interventiva sem o consentimento. No tocante às Testemunhas de
Jeová, situação em que se confrontam a vida com a liberdade religiosa, a
grande massa de demandas judiciais aponta para a prevalência da vida,
tal como a apelação cível julgada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, cuja emenda será transcrita abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA-DE-
-JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece
de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito
de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se
submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção
judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo imi-
nente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias
ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento
dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. (TJRS, Ap. Cív. N.
70020868162, 5ª CC, Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado
em 22/08/2007).
Percebe-se que o Judiciário brasileiro ainda trata a relação médi-
co-paciente como paternalista, na medida em que afirma que o médico
78 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

possui o dever de intervenção diante do risco de morte. O paciente mal


é citado como um sujeito de direitos, sendo tratado efetivamente como
um mero objeto da ciência médica. O teor decisório ainda afirma ser
desnecessária a propositura de ação judicial para que seja realizada a
transfusão sanguínea, considerando que o próprio médico teria esse
dever. É uma posição extremamente temerosa que retoma aos moldes
tradicionais e não respeita a autonomia privada nem condiz com as
garantias da Constituição de 1988.
Também concordando com a realização do procedimento sem o
consentimento do paciente, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:
TESTEMUNHAS DE JEOVÁ – Necessidade de transfusão de sangue
sob pena de risco de morte, segundo a conclusão do médico que
atende o paciente. Recusa dos familiares com apoio na liberdade de
crença. Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos. Sentença
autorizando a terapêutica recusada. Recurso desprovido.” (TJSP, Ap.
Cív. 132.720-4/9, 5ª CDPriv., Rel. Des. Boris Kauffmann, Julgado em
26/03/2003).
O conteúdo das decisões acima mencionadas sugere que o Judiciário
já possui uma resposta apriorística para todas as situações de recusa
a tratamento médico que envolvam o direito à vida, qual seja a de que
esse direito é superior a todos os outros. Com a devida vênia aos ilustres
desembargadores relatores, tais decisões não se encontram em conso-
nância com os ditames da Constituição Federal de 1988, uma vez que
não é nem citada a dignidade da pessoa humana como fundamento dos
exercícios dos direitos individuais. Há a adoção de uma postura autori-
tária, ainda que dotada de boas intenções.
A vontade do paciente é completamente desconsiderada, de modo
que nem se toca no consentimento esclarecido do paciente, o qual prova
que o médico forneceu, de forma acessível, todas as informações para a
formação da sua decisão de recusa. O ideal seria o de que esse consen-
timento fosse o liame entre a licitude e a ilicitude da conduta médica
para a permanência ou a extinção da responsabilidade profissional. O
consentimento deve ser aceito de diversas formas, considerando que o
mais importante é a manifestação e o respeito da vontade, não sendo
exigida uma forma específica que possa limitar o exercício da autonomia
privada. Essa é a posição do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que
decidiu:
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 79

RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZATÓRIA – LIGADURA DE


TROMPAS – SENTENÇA REFORMADA – A LAQUEADURA DE TROM-
PAS SOMENTE É FEITA PELO MÉDICO COM O CONSENTIMENTO DA
PACIENTE, CONTUDO, NÃO É NECESSÁRIO QUE SEJA DADO POR
ESCRITO, ADMITINDO-SE QUE O SEJA VERBAL – NADA HÁ QUE O
IMPONHA SOB A FORMALIDADE DA LITERALIDADE – O PROCE-
DIMENTO DO MÉDICO NÃO SE MOSTRA DESVIADO DA MORAL E
DA ÉTICA – AUSENTE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. O que parece
ter ocorrido foi arrependimento do ato, mas, lastimavelmente, a
Autora deveria ter pensado melhor antes de autorizar a ligadura
das suas trompas, prevendo, inclusive, todas as consequências, por
mais funestas que pudessem ser. Recurso de apelação provido para
julgar improcedente o pedido, invertendo-se os ônus sucumbenciais.
Recurso adesivo prejudicado (TJ-RJ – Ap. Cív. 2006.001.67409 – 15ª
CC – Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, Julgado em 13/02/2007).
Ainda que não se estivesse tratando especificamente de recusa a
tratamento médico, o disposto da decisão serve para se analisar os mol-
des que o consentimento esclarecido assume dentro do ordenamento
jurídico brasileiro. Mostra-se acertada a decisão acima ementada, na
medida em que ela procura dar efetividade ao exercício da autonomia
privada e, ao mesmo tempo, dá ao profissional de saúde a segurança
jurídica necessária para que ele possa fazer valer a vontade do paciente
sem temer responsabilidade posterior.
De todo modo, também existem julgados que afirmam ser possível
a recusa a transfusão sanguínea, em respeito à dignidade humana e à
liberdade religiosa. É dessa forma que se posicionou o Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, quando foi confrontado com a situação de um paciente
adepto da Igreja Testemunhas de Jeová e houve a recusa, nos moldes da
ementa abaixo transcrita:
PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTE-
LA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE
EM TRATAMENTO QUIMOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE.
DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE
DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. – No contexto confronto entre o
postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de
consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião
denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido
pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimio-
terápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas
80 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. –


Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições
de autodeterminar-se estando em alta hospitalar. (TJMG, Agr. Ins.
1.0701.07.191519-6/001, 1ª CC, Rel. Des. Alberto Vilas Boas, Julgado
em 14/08/2007).
Essa decisão é a que melhor se coaduna com os ideais do presente
trabalho, considerando que a dignidade humana foi tomada como pre-
missa central da análise do tema. Além disso, o julgador teve a sensibi-
lidade de perceber que a recusa de tratamento médico não representa
uma negativa da permanência da vida, sugerindo a adoção de meios
alternativos que pudessem levar ao resultado vida sem a violação à dig-
nidade do indivíduo. O requisito da capacidade também foi observado,
tendo o julgador a preocupação em avaliar se o conteúdo da vontade
pode ser válido para a produção dos efeitos desejados.
É certo que esse posicionamento ainda não representa a posição
majoritária dos tribunais. Ocorre que, em 2014, a 6ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça isentou de responsabilidade os pais pela morte da
filha adolescente de 13 anos, que, por conta de pertenceram à religião
das Testemunhas de Jeová, impediram a transfusão sanguínea para a
menor. A decisão dos pais foi acatada pelo profissional de saúde, o que
acabou por ocasionar a morte da adolescente. Os pais foram categóricos
ao afirmarem que preferiam a filha morta à “impura”, de modo que os
médicos acabaram aceitando a decisão parental (CAPRIGLIONI, 2014).
Se por um lado, a decisão representou um avanço para a prevalência
da autonomia privada e da liberdade perante a vida, por outro, ela pecou
na responsabilização dos médicos pela morte da paciente. Afirmou-se
que os médicos descumpriram o dever ético de proteção à vida, tendo
ouvido os pais da menor, e, por isso, seriam responsabilizados. Os pais,
que não concederam a autorização para a realização da transfusão, foram
considerados isentos de responsabilidade. É um completo absurdo culpar
os médicos pelos resultados da vontade manifestada pelos particulares,
desconsiderando aqui que o paciente era incapaz.
Também se mostra interessante um julgado do Tribunal de Justiça
de Santa Catarina que versa sobre a situação de um tuberculoso que,
durante quatro anos, recusou o tratamento. Acontece que a tuberculose
é uma doença infectocontagiosa e a negligência do paciente oferecia
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 81

risco à saúde pública, motivo que levou o Tribunal a determinar que


a Polícia Militar levasse compulsoriamente o indivíduo para o posto
de saúde do seu bairro diariamente para o recebimento da medicação
indicada (TEIXEIRA, 2010). É uma decisão acertada, no momento
em que parte de um interesse público superior ao exercício da auto-
nomia privada. Nesse caso, a decisão do paciente ultrapassava a sua
própria esfera jurídica, podendo prejudicar outros, o que não pode
ser aceito.
Como se percebe, ainda não há um posicionamento jurisprudencial
consolidado acerca do direito de recusa a tratamento médico e os im-
pactos dele decorrentes na responsabilidade do médico. De todo modo,
faz-se importante a análise dos fundamentos das decisões já existentes
para que se possa analisar o rumo que irá tomar o Judiciário nesse tema.
A tendência é a de que se aceite cada vez mais a autonomia privada
como direção para a submissão aos tratamentos médicos, em respeito
à dignidade e à liberdade

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, restaram apresentados os direitos constitucionalmente
protegidos como fundamentais à vida e à integridade física, os quais
adquirem um papel extremamente relevante para a pesquisa por serem
os direitos potencialmente mitigados pelo direito de recusa a tratamento
médico. Como a Constituição Federal garante a inviolabilidade da vida,
supõe-se que há a eficácia absoluta desse princípio sobre os outros. Essa
prevalência, entretanto, não é absoluta, situação admitida amplamente,
sobretudo pela existência de hipóteses que o legislador relativizou o
direito à vida.
Pela Constituição atualmente vigente, também se extrai que o concei-
to de vida não se apresenta mais como meramente biológico, destituído
de qualquer análise valorativa. Há que se pensar no termo “vida digna”
como o real bem a ser protegido pelo ordenamento jurídico como um
todo. Essa seria uma ascensão de uma perspectiva qualitativa, que faz
com que o indivíduo possua o direito de viver conforme as próprias
convicções sem interferências autoritárias externas para o livre desen-
volvimento da sua personalidade.
82 Érica Baptista Vieira de Meneses e Lucas Macedo Silva

Já em relação à integridade física como direito fundamental, apli-


ca-se a mesma discussão sobre a possibilidade de mitigação em nome
de outro direito, qual seja o da saúde, como sendo um desdobramento
do direito à liberdade. Muito embora a autonomia tenha permanecido
como pressuposto, passou-se a valorizar o aspecto da exteriorização
da vontade, chegando ao que se denominou de autonomia privada. No
entanto, para o livre exercício da autonomia, é necessário que haja o
pleno discernimento do paciente acerca da própria situação.
Quando se fala na recusa a tratamento médico propriamente dita,
é importante que se coloque a dignidade da pessoa humana como pre-
missa para a possibilidade de utilização desse direito. Como o exercício
de tal direito seria uma vertente do direito à liberdade, não poderia ser
dado uma amplitude irrestrita sob pena de se aceitar posições libertá-
rias. Desse modo, a dignidade humana seria o ponto de equilíbrio para
o exercício do direito de recusa a tratamento médico e o direito à vida
e à integridade física.
A norma contida no art.15 do Código Civil indica para a possibilidade
de o paciente recusar um tratamento médico que possa vir a ocasionar
a sua morte. Essa disposição possui como premissa a ideia de que o
temor do fenômeno da morte pode fazer com que alguém não deseje se
submeter a um determinado procedimento, o que seria um típico ato
de autonomia privada.
É, com o choque entre direito à vida e o à liberdade, que se apresenta
a maior problemática circundante ao tema. Não se aceita uma posição
apriorística como resposta universal para todas as controvérsias, de-
vendo haver um juízo de ponderação de interesses para se determinar
qual deles dele prevalecer no caso concreto. O fiel da balança deve ser a
dignidade da pessoa humana, valor que deve ser satisfeito no mais alto
grau possível.
O dever ético primordial do médico é o de cuidar do paciente,
depreendendo todos os seus esforços para a garantia da sua saúde.
Só que essa saúde deve ser vista sob a perspectiva do paciente e não
obtida por uma análise puramente técnica. Por isso, o médico possui
o dever de respeitar a decisão do paciente, ainda que discorde da
posição escolhida.
Parâmetros para o exercício seguro da recusa terapêutica: uma análise... 83

Como se viu, o tema é amplamente social, de modo que não se intenta


esgotar o debate em torno dele. O objetivo central foi o de sistematizar o
conteúdo já produzido e sugerir novas formas de se enxergar conceitos
tradicionais para que o paciente possa ter mais espaço decisório no
que toca à própria saúde. Esse aumento de poder da autonomia privada
não é defendido para que haja uma completa possibilidade de descarte
da vida, mas para que cada um possa construir a sua vida nos moldes
que julga pertinente para que exerça a sua personalidade. O direito
de recusa a tratamento médico possui caráter fundamental e deve ser
visto como uma forma de se alcançar a tão contemplada dignidade da
pessoa humana.

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CAPÍTULO IV

A publicidade médica nas redes sociais


e a responsabilidade civil em casos
de procedimentos estéticos:
uma análise acerca das expectativas
criadas nos pacientes e a vinculação
de resultados

Fernanda Moura Silva*


Gabriela Silva Sady**

Sumário: 1. Introdução; 2. breves considerações acerca da publicidade médica


e da responsabilidade civil do médico; 2.1. A publicidade médica em tempos de
redes sociais; 2.2. A responsabilidade civil do médico em procedimentos estéticos:
novos paradigmas? 3. Análise do caso concreto: o posicionamento do conselho
federal de medicina; 3.1. A judicialização da matéria e o atual posicionamento do
CFM 3.2. Expectativas criadas nos pacientes e a vinculação de resultados como
critério para uma possível configuração de responsabilidade objetiva ou culpa
presumida; 4. Conclusão; 5. Referências
Palavras-chave: Publicidade Médica, Responsabilidade Civil, Redes Sociais,
Procedimentos Estéticos.

(*) Advogada. Pós-graduada em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Di-
reito. Membro efetivo da Comissão Especial de Direito Médico e de Saúde da OAB/
SP.
(**) Advogada. Pós-graduada em Direito Público pelo CEJAS. Pós-graduanda em Direito
Médico e Hospitalar pelo CPJUR. Integra a Comissão Especial de Direito Médico e
da Saúde da OAB/BA. Coordenadora de Grupos de Pesquisa em Direito Médico e da
Saúde promovidos pela OAB/BA.
88 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo central analisar a publicidade
médica de procedimentos estéticos nas redes sociais e sua influência
sobre a natureza da obrigação e da responsabilidade civil dos médicos,
ante a criação de expectativas nos pacientes. A importância do trabalho
mostra-se irrefragável, considerando a necessidade de orientação destes
profissionais quanto às consequências de seus anúncios.
O artigo emprega o método hipotético-dedutivo, partindo de fun-
damentos teóricos e práticos para alcançar a solução específica. Foram
utilizadas referências bibliográficas nacionais e estrangeiras, levando
em consideração trabalhos reconhecidos na área para verticalizar a
discussão. Em que pese não tenha a intenção de exaurir o debate, este
artigo pretende enriquecer a discussão no sentido de pensar o tipo de
obrigação e a responsabilidade de médicos que veiculam propaganda
de procedimentos estéticos com o intuito de convencer os pacientes de
seus resultados.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA PUBLICIDADE


MÉDICA E DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
No ano de 2020, a demografia médica no Brasil registrou 500.000
médicos, número que tende a crescer significativamente nos próximos
anos (SCHEFFER, 2020). Em meio a esta oferta cada vez mais farta no
mercado de trabalho, médicos têm investido na divulgação de seus
serviços para se diferenciarem de seus concorrentes e, assim, pela
lógica comum de mercado, atraírem mais pacientes. Todavia, anúncios
de serviços médicos não se submetem às estratégias mais comuns de
marketing, uma vez que, antes disso, devem obedecer às normativas
legais e éticas específicas da medicina.
A legislação brasileira acerca da publicidade médica compreende,
atualmente, normas legais e éticas, reunidas no Decreto n. 20.931/32,
no Decreto-lei n. 4.113/42, na Lei n. 3.268/57, no Código de Defesa
do Consumidor (CDC), na Resolução n. 1974/11 do Conselho Federal
de Medicina (CFM) e no Código de Ética Médica (CEM). As primeiras
previsões sobre o tema surgiram com o Código de Moral Ética de 1929,
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 89

primeira prescrição deontológica adotada no Brasil, quando ainda não


havia conselhos profissionais nos moldes atuais, tendo sido aprovado
pelo VI Congresso Médico Latino-Americano (MONTE, 2009).
Antes disso, a conduta dos médicos brasileiros era regida pelo jura-
mento de Hipócrates e pelo então Código de Ética da Associação Médica
Americana, adotado pelo Brasil em 1867 (MONTE, 2009). Contudo, na
época em questão, era impensável a publicidade médica nos moldes em
que atualmente é compreendida, motivo pelo qual suas orientações mais
significativas diziam respeito apenas ao sigilo médico.
O Código de 1929 estabelecia vedações à garantia de resultado de
cura, a relatos de casos ou tratamentos especiais em publicações não
médicas e a se vangloriar publicamente, além de estabelecer que a oferta
pública de serviços deveria se limitar à indicação de dados pessoais e
profissionais, como nome, títulos científicos e especialidade dedicada,
endereço, dias e horas de consultas. A divulgação de qualquer outro
dado seria considerada charlatanismo ou industrialismo e, portanto,
ato atentatório à ética profissional (CFM, 2021).
Sistematicamente, não havia capítulo dedicado à publicidade médi-
ca, estando estes preceitos no capítulo dos deveres de manutenção da
dignidade profissional. Tais previsões foram repetidas no Códigos de
Deontologia Médica de 1931 (CFM, 2021) e reforçadas pelo então pre-
sidente, Getúlio Vargas, no Decreto n. 20.931, de 11 de janeiro de 1932,
que observou expressamente a obrigação de mencionar, nos referidos
anúncios, somente os títulos científicos e especialidade, e a proibição
de anunciar a cura de doenças consideradas incuráveis (BRASIL, 1932).
Em 1942, o Decreto-Lei n. 4.113 regulou especificamente a pro-
paganda de médicos e cirurgiões, dentre outras profissões (BRASIL,
1942). Nas disposições para médicos, merecem destaque a proibição
de anunciar agradecimentos manifestados por clientes que atentem
contra a ética médica e a permissão ao anúncio do preço da consulta. A
versão do Código de 1945, por sua vez, manteve as mesmas previsões
e acrescentou a vedação ao oferecimento público de serviços por meio
de publicações tendenciosas e, em 1953, passou a ser adotado o Código
de Ética da Associação Médica Brasileira, contendo as primeiras seme-
lhanças com edições mais recentes, mas, ainda assim, mantendo muito
dos códigos anteriores (CFM, 2021).
90 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

As previsões de publicidade permaneciam sem capítulo próprio, po-


rém, agora em seção dedicada às normas fundamentais, antes chamada
de “da dignidade profissional”. Manteve-se, por outro lado, a vedação à
publicidade imoderada, ao anúncio de garantia de resultado (a exem-
plo do emprego de métodos infalíveis) e a divulgação de observações
clínicas na imprensa leiga. Passados quatro anos, surge o grande marco
regulatório da fiscalização médica. A Lei n. 3.268, de 30 de setembro de
1957, dispõe sobre os Conselhos de Medicina, atribuindo-lhes compe-
tência à supervisão e fiscalização da ética profissional da classe médica
(BRASIL, 1957).
Por sua vez, em 1965, após reunidos em congresso, os Conselhos Re-
gionais aprovaram novo código de ética, com pequenas, mas relevantes,
alterações. O código anterior, de 1953, proibia o médico de anunciar o
preço de consultas. Este, por seu turno, passou a permitir, harmonizan-
do-se com o Decreto-lei n. 4.113/43 (CFM, 2021)
Após quase vinte anos neste formato, o Código Brasileiro de Deon-
tologia Médica, de 1984, apresentou nova estrutura, trazendo, pela
primeira vez, capítulo próprio dedicado à publicidade, ainda que em
conjunto com publicação de trabalhos científicos. Diferentemente de
seu antecessor, suprimiu muitos detalhes e deixou as vedações mais
genéricas, proibindo o médico de fazer publicidade em desacordo com
a legislação vigente e com as normas do CFM. Quanto às disposições
anteriores, resumiu-as na proibição de divulgar assuntos médicos que
pudessem causar sensacionalismo (CFM, 2021).
Foi somente em 1988 que o Código de Ética Médica passou a apresen-
tar disposições similares às atuais. Dispôs que é vedado ao profissional
participar da divulgação de assuntos médicos, em qualquer meio de
comunicação em massa, sem que a finalidade seja estritamente educativa
(a abrangência desta redação, por si só, já incluiria as novas tecnologias
relativas a redes sociais). Outra novidade foi a proibição de divulgar
informações médicas, além de sensacionalistas, de forma promocional
ou inverídica (CFM, 2021),
Alguns anos depois, outro marco normativo surge na legislação
brasileira. O Código de Defesa do Consumidor, de 1990, elenca como di-
reito básico a proteção contra publicidade enganosa e abusiva (BRASIL,
1990). No aspecto ético, foi só com o Código de 2009 que a publicidade
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 91

médica ganhou e nomeou capítulo exclusivo. Nele também apareceu,


pela primeira vez, a exigência de inclusão do número de inscrição no
Conselho Regional de Medicina (CRM) nos anúncios profissionais de
qualquer natureza, bem como o nome e registro no CRM do diretor
técnico, para estabelecimentos de saúde (CFM, 2009). O intuito desta
previsão era permitir a correta identificação dos profissionais e faci-
litar a fiscalização.
Neste ínterim, os anos 2000 trouxeram criações revolucionárias no
meio digital, especialmente com a criação das chamadas redes sociais.
Diante do rápido crescimento desse novo meio, o CFM se viu compelido
a adequar sua regulamentação sobre o tema publicidade médica (CFM,
2011). As regras éticas, que até então limitavam-se a cerca de três a cinco
artigos sobre o assunto, passaram a ter resolução própria a respeito. A
Resolução CFM n. 1.974, de 14 de julho 2011, batizada de Manual de
Publicidade Médica (CFM, 2011), avocou as regras pertinentes ao tema,
motivo pelo qual no Código de Ética Médica de 2018, atualmente vigente,
manteve-se o mesmo, à exceção do art. 114, que se referia a “consultar,
diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa”
(CFM, 2009), o qual foi suprimido e transferido para a letra “m” do item
5 do referido Manual.
Com isso, é possível notar que as primeiras balizas normativas so-
bre publicidade médica, que datam de 1929, época em que divulgações
publicitárias se davam, mormente, em meios físicos, como panfletos,
revistas, jornais e placas, preocupavam-se mais com a postura pro-
fissional do que com os efeitos gerados no público. A partir dos anos
1980, houve a percepção de que a relação médico-paciente-sociedade
deveria acontecer através de princípios, de modo que cada caso merecia
tratamento próprio, o que significava a mudança do discurso médico
tradicional, de base hipocrática, e sua gradual transformação de acordo
com as exigências econômicas e sociais (FRANÇA, 2019).
Hoje, portanto – principalmente com o advento do CDC – a consi-
deração com a coletividade atingida pelos anúncios perfaz o outro lado
da publicidade médica, aperfeiçoando a exigência social de um Estado
Democrático de Direito, sobretudo em tempos de redes sociais, campo
relativamente novo e que, dada sua rápida mutabilidade, desafia os
mecanismos reguladores e fiscalizadores.
92 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

2.1. A publicidade médica em tempos de redes sociais


Como dito, o mercado de trabalho para profissionais de saúde está
cada vez mais concorrido, inclusive para médicos e médicas. Com o
passar dos anos a medicina mudou, de modo que, atualmente, não basta
a conclusão da graduação e a realização de especializações para que a
inserção no mercado de trabalho esteja garantida (COLTRI; DANTAS,
2020). Essa recente realidade fez surgir uma crescente onda de investi-
mento em marketing e publicidade para divulgação de serviços médicos.
Diante de um novo tipo de relação médico-paciente, notadamente com a
expansão e abrangência das redes sociais, evidenciou-se a necessidade de
esclarecer como esses profissionais devem se portar nesses novos meios
de comunicação, sem perder o profissionalismo (SOUZA, et al, 2017).
Em recente pesquisa realizada por Schmidt et al (2021) apurou-se
que, dos cerca de 300 médicos participantes, a maioria (60,5%) declarou
nunca ter tido contato com o tema “publicidade médica” na graduação,
enquanto 62,9% declarou já ter enfrentado alguma dificuldade por falta
de conhecimento sobre o tema. Apesar disso, somente 14,9% afirmou já
ter realizado consulta à Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos
(CODAME) do respectivo conselho para sanar a dificuldade. Verifica-se,
desse modo, que há um movimento comum, por parte da maioria dos
profissionais médicos, de iniciar a propagação pública de seus trabalhos,
nas redes sociais, sem a prévia verificação das regras pertinentes.
Entende-se por anúncio médico toda e qualquer comunicação ao
público, por meio de divulgação de atividades profissionais, seja por
iniciativa, participação e/ou anuência do médico. Desse modo, quando
a publicidade profissional é realizada dentro dos limites de discrição e
comedimento – notadamente, diferenciando-se dos exageros contidos
ordinariamente nas propagandas comerciais – não há discussão quanto à
sua licitude. Os profissionais da área médica, portanto, podem, de forma
legítima e ética, anunciar os seus serviços, desde que sempre de maneira
sóbria, discreta e verídica (VELOSO, 2019).
Contudo, em decorrência das mencionadas transformações na forma
como o profissional médico se relaciona com a sociedade e divulga seu
trabalho, nasceu o conceito de saúde 2.0, espécie de medicina em rede,
caracterizada por amplo acesso a dados sobre saúde e interação entre
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 93

médico e paciente no meio virtual (SOUZA, et al, 2017). Realmente, com


a massificação das relações virtuais, emergiram novos caminhos em
vários setores sociais, permitindo o acesso fácil, eficiente e barato a uma
enorme variedade de informações distribuídas globalmente (NOVAES;
GREGPRES, 2007).
Nesse contexto, as redes sociais podem ser conceituadas como
agrupamentos complexos instituídos por interações sociais apoiadas em
tecnologia de comunicação, que são definidas por um conjunto de dois
elementos, os atores – pessoas, instituições ou grupos – e suas conexões
– interações ou laços sociais (RECUERO, 2009). A conexão surgida entre
os profissionais médicos e seus seguidores nas redes sociais, desse modo,
assume uma relevância cada vez maior também no que tange à promoção
da saúde, em consequência da crescente divulgação de informações sobre
produtos e serviços que têm o potencial de melhorar, mas também de
causar danos e prejuízos, à saúde das pessoas (CREMESP, 2006).
Nesse diapasão, os profissionais que atuam nas redes sociais têm
a obrigação de se revelarem fidedignos, proporcionando conteúdo de
alta qualidade, protegendo a privacidade dos usuários e aderindo às
normas de melhores práticas para o comércio e os serviços voltados
ao cuidado com a saúde (CREMESP, 2006). Desse modo é que toda a
disciplina ético-jurídica da matéria de publicidade médica também deve
ser aplicável quando se trata de anúncio em redes sociais, tais como:
Instagram, Facebook, Twitter, YouTube e WhatsApp.
Justamente buscando normatizar e regular essa veiculação de publi-
cidade ao quanto disposto no Capítulo XIII do CEM, é que, como visto, o
CFM publicou a Resolução nº 1.974/2011, instituindo alguns critérios
para participação de médicos nas redes sociais, estabelecendo, em seu
preâmbulo, que a publicidade médica deve obedecer exclusivamente
a princípios éticos de orientação educativa, não sendo comparável à
publicidade de produtos e práticas meramente comerciais. Nesse cená-
rio, também ganha relevância a Resolução nº 2.126/2015 do CFM, que
disciplina a vedação ao médico de publicação nas mídias sociais de au-
torretrato (selfie), imagens ou áudios que caracterizem sensacionalismo,
concorrência desleal ou autopromoção, bem como a proibição expressa
de veiculação de imagens de “antes e depois” de procedimentos. É essa
última que possui maior relevância para o presente estudo.
94 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

Isso porque, em que pese o inegável objetivo regulatório em


favor da profissão e da proteção desses profissionais, muitos médicos
vêm se mostrando descontentes com a orientação dada pelo conselho
de classe à matéria, chegando a buscar a intervenção do Poder Judiciário
para discutir a autorização de veiculação de publicidades nos moldes de
“antes e depois”, como ocorreu nos casos que serão analisados minun-
ciosamente nos tópicos futuros.

2.2. A responsabilidade civil do médico


em procedimentos estéticos: novos paradigmas?
É precisamente no campo dos procedimentos estéticos que a ve-
dação de publicização de fotos de “antes e depois” pelos profissionais
médicos em redes sociais se torna juridicamente relevante. Isso porque,
a esmagadora maioria dos estudos dedicados à responsabilidade civil do
médico versa acerca da clássica distinção entre a assunção de obrigações
de meios e de resultado.
Segundo a celebre lição doutrinária, nos contratos que regulam
obrigações de meios, o contratado apenas se vincula a desenvolver
toda a sua habilidade e perícia para desempenhar uma certa atividade,
de maneira diligente e prudente, empregando os meios necessários e
possíveis para a obtenção de um determinado efeito, sem se vincular,
contudo, à consecução de um resultado prático previamente acordado
(VARELA, 2011). Nas precisas palavras de Nancy Andrighi (2006, p.02)
“o contrato não se considera descumprido meramente porque o fim
almejado não foi atingido. O inadimplemento contratual somente ocorre
se o profissional não empregou na execução da atividade contratada a
melhor técnica possível”.
Por sua vez, nas obrigações de resultado, o contratado fica vincula-
do não somente ao desenvolvimento cuidadoso, atencioso e diligente da
obrigação, mas à concreta obtenção de um determinado resultado em
favor daquele que contrata, de modo que o inadimplemento se verifica
automaticamente pela não obtenção do resultado (ANDRIGHI, 2006).
Desse modo, nos casos em que assumida uma obrigação de resultados,
o devedor responderá pelo descumprimento contratual, caso o efeito
prático desejado não seja obtido, enquanto que, na obrigação de meios,
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 95

o devedor se compromete, única e exclusivamente, a empenhar toda a


sua diligência na execução da obrigação visando a um resultado (VAZ,
2018).
Segundo as lições de Miguel Kfouri Neto (2019, p. 302), a obrigação
assumida pelo profissional médico é “de fazer, em regra infungível, que
pressupõe atividade do devedor, energia de trabalho, material ou inte-
lectual, em favor do paciente (credor). Implica diagnóstico, prognóstico
e tratamento: examinar, prescrever, intervir, aconselhar”. É cediço que
a atividade médica, de um modo geral, é considerada como obrigação
de meio, na medida em que não se promete cura, mas sim o tratamento
que melhor se adeque ao caso, segundo as normas de perícia, diligên-
cia e prudência, em favor da melhora no estado de saúde do paciente
(DANTAS, 2021).
Contudo, especificamente no que tange aos procedimentos cirúrgicos
de cunho estético embelezador, há uma diferenciação feita por parte da
doutrina, ainda majoritária, no sentido de que a obrigação do profissional
médico, nesses casos, seria de resultado. Nos procedimentos estéticos,
o objetivo do paciente seria de melhorar sua aparência, corrigindo
uma imperfeição física, situações nas quais, segundo esta corrente, o
médico se comprometeria a proporcionar ao paciente este resultado
pretendido (CAVALIERI, 2014). Assim, ainda predomina na doutrina e
na jurisprudência pátria, no que tange à atividade do cirurgião plástico,
que a execução defeituosa da obrigação, isto é, a frustração do resultado
esperado, equivale, juridicamente, à inexecução total do contrato, que
ensejaria o dever de indenizar (KFOURI, 2019).
Esse enquadramento, todavia, apresenta controvérsias, ressoando
de forma não pacificada. Desse modo, parte minoritária da doutrina
moderna vem se manifestando no sentido de que, mesmo nos casos
de procedimentos estéticos embelezadores, a obrigação assumida
pelo profissional médico seria sempre de meio, na medida em que “a
atividade médica, por definição, está sujeita ao acaso, ao imprevisível
comportamento da fisiologia humana, que por vezes insiste em desafiar
o senso comum, os prognósticos mais acurados e às expectativas mais
prováveis” (DANTAS, 2021, p. 171/172). Corroborando esse mesmo en-
tendimento, manifestou-se o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito no
julgamento do Recurso Especial 81.101-PR (STJ, 1999), no sentido de que
96 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

Pela própria natureza do ato cirúrgico, cientificamente igual, pouco


importando a subespecialidade, a relação entre o cirurgião e o
paciente está subordinada a uma expectativa do melhor resultado
possível, tal como em qualquer atuação terapêutica, muito embora
haja possibilidade de bons ou não muito bons resultados, mesmo
na ausência de imperícia, imprudência ou negligencia, dependente
de fatores alheios, assim, por exemplo, o próprio comportamento
do paciente, a reação metabólica, ainda que cercado o ato cirúrgico
de todas as cautelas possíveis, a saúde prévia do paciente, a sua
vida pregressa, a sua atitude somatopsíquica em relação ao ato
cirúrgico.
O profissional médico que atua na realização de procedimentos de
cunho estético embelezador, portanto, não estaria obrigado a obter um
resultado satisfatório para o paciente, mas somente a empregar todas as
técnicas e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para o
melhor resultado da intervenção solicitada (ANDORNO, 1993).
A relevância da discussão reside nas implicações práticas atinentes
à responsabilização civil e às regras de ônus probatório aplicáveis. Isso
porque, ocorrendo violação a uma obrigação de meio, o paciente que
alega tal ocorrência de conduta culposa precisa prová-la, incidindo as
regras de responsabilidade subjetiva. Já nas obrigações de resultado,
ao contrário, a simples frustração do resultado esperado conduz, ine-
xoravelmente, ao dever de indenizar, ainda que o paciente não prove a
culpa do profissional, incidindo as regras de responsabilidade objetiva
(KFOURI, 2019).
Filiamo-nos, por fim, ao posicionamento adotado por Genival Veloso
de França (2001, p. 213) quando afirma que
Qualquer que seja a forma de obrigação de meios ou de resultado,
diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando
em conta principalmente o grau de culpa, o nexo de causalidade e a
dimensão do dano, ainda mais diante de indenizações por perdas e
danos. Aquelas formas de obrigação apenas definem o ônus da prova.
No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa
aquiliana, e, em consequência, a existência de uma obrigação de meio
ou uma obrigação de resultado, parece-nos, em determinados ins-
tantes, apenas um detalhe. Na prática, o que vai prevalecer mesmo é
a relação entre a culpa e o dano, pois até mesmo a evidencia do ônus
probandi já tem remédio para a inversão do ônus da prova, qualquer
que seja a modalidade de contrato. Hoje, mesmo em especialidades
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 97

consideradas obrigadas a um resultado de maneira absoluta, como


a cirurgia plástica puramente estética, já se olha com reservas esse
conceito tão radical de êxito sempre, pois o correto é decidir pelas
circunstâncias de cada caso.
É nesse diapasão que o uso da publicidade de “antes e depois” – ou
melhor, a sua vedação pela norma ético-profissional – também se mostra
relevante no aspecto jurídico atinente à matéria de responsabilidade civil,
pois a divulgação dessas imagens como publicidade constituirá prova
em desfavor do profissional. Ora, se o próprio médico divulga e vende
resultados em suas redes sociais, não poderá, posteriormente, alegar em
sua defesa a tese de obrigação de meio, requerendo que o autor/paciente
faça prova da culpa, abrindo margem para uma eventual aplicação de
responsabilidade objetiva.
Nas célebres palavras do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito,
no julgamento do Recurso Especial 81.101-PR (1999, p. 09), é preciso ter
em mente que “não se pode presumir, como parece vem sendo admitido
pela jurisprudência, que o cirurgião plástico tenha prometido maravi-
lhas ou que não tenha prestado as informações devidas ao paciente,
configurando o contrato de resultado certo e determinado”. Realmente,
nas ações de responsabilidade civil, o paciente/autor deve provar que a
promessa de resultado ocorreu e é nesse contexto que as publicações de
“antes e depois” servirão muito mais em desfavor do médico, ensejando
a aplicação da responsabilidade objetiva, ou, minimamente, fazendo
prova em favor do paciente.

3. ANÁLISE DO CASO CONCRETO: O POSICIONAMENTO


DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Feita uma breve análise acerca da regulamentação da publicidade
médica e da responsabilidade civil do profissional médico que rea-
liza procedimentos de cunho estético embelezador, cumpre, agora,
demonstrar a possibilidade de a exposição de resultados nas redes
sociais figurar como critério para a configuração de responsabilidade
objetiva do médico, em razão da criação de expectativas irreais nos
pacientes, não sem antes apresentar o atual posicionamento do CFM
sobre a temática.
98 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

3.1. A judicialização da matéria


e o atual posicionamento do CFM
Recentemente, ganharam ampla divulgação na mídia nacional alguns
Mandados de Segurança (MS) impetrados por médicos contra atos atri-
buídos ao Presidente do CFM, nos quais fora pleiteada a concessão de
ordem para reconhecer a nulidade total, ou, eventualmente, apenas do
art. 3º, inciso g, da Resolução nº 1.974/11 do CFM, em razão da proibi-
ção de veiculação de imagens de pacientes, em divulgação de técnica,
método ou resultado.
Dentre os casos mencionados, merecem destaque o MS preventivo
tombado sob o número 5002355-04.2019.4.04.7203/SC (TRF4, 2020)
e o MS tombado sob o número 1016872-29.2019.4.01.3400/DF (TRF1,
2019). Neste último, discute-se, ainda, a possibilidade de anulação do
procedimento administrativo instaurado no âmbito do Conselho Re-
gional de Medicina, com base no mesmo dispositivo da Resolução nº
1.974/11 do CFM, que dispõe sobre os critérios norteadores da propa-
ganda em Medicina.
Em síntese, em ambos os casos, o que buscam os profissionais impe-
trantes é que seja declarada nula ou inaplicável a Resolução n. 1974/11
do CFM, para que lhes seja possibilitada a publicação dos seus trabalhos
nas redes sociais, inclusive mostrando imagens de "antes e depois". Ar-
gumentam os médicos em questão que, segundo as suas pretensões, nas
publicações seriam preservadas as identidades dos pacientes, bem como
seriam obtidas permissões para divulgação dos resultados, por meio de
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Ao final, requerem
que, contra essas condutas, não fossem adotadas quaisquer medidas
regulatórias pelos Conselhos, tais como a abertura de sindicâncias ou
de processos administrativos.
Tudo isso porque, de acordo com o entendimento esboçado nos
referidos Mandados de Segurança, a Resolução n. 1.974/11 estaria limi-
tando, quando não maculando, os direitos ao exercício da profissão e à
liberdade de expressão pelos médicos, previstos no artigo 5º, incisos IV
e XIII, da Constituição Federal (CF). Aduzem, por fim, que a vedação de
dar ampla publicidade aos resultados de seus trabalhos nas redes sociais
seria ilícita, na medida em que a norma proibitória foi criada por meio
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 99

de uma Resolução do próprio Conselho, instrumento que entendem ser


inapto para criar direitos ou obrigações.
Assim sendo, segundo a lógica dos impetrantes, a legislação de
referência da publicidade médica – Decreto n. 20.931/32, Decreto-lei
n. 4.113/42 e CDC – não possuiria proibição expressa à realização
de comparação de imagens de pacientes para divulgar o trabalho do
médico, levando à compreensão de que a resolução, ato administrativo
hierarquicamente inferior à lei em sentido estrito, não poderia fazê-lo.
A fragilidade das alegações de ilicitude e ilegalidade desta norma,
contudo, reside no fato de que as restrições a que se referem baseiam-se,
principalmente, no dever ético de sigilo da relação médico-paciente e nos
direitos fundamentais deste à privacidade e imagem. Ademais, a vedação
visa também coibir a prática de autopromoção e sensacionalismo pelo
profissional da medicina, consideradas formas de mercantilizá-la, um
dos focos principais das campanhas fiscalizatórias do CFM.
Por outro lado, há ainda que se analisar o aspecto formal da regra,
aparentemente ignorado pelos impetrantes. A ilicitude do ato admi-
nistrativo apenas poderia se caracterizar se presente abuso do poder
delegado pelo Estado à Administração Pública, na modalidade excesso
de poder (DI PIETRO, 2019). Na prática, seria necessário verificar-se
exorbitância, pelo CFM, dos limites da competência regulamentar que
lhe foi concedida pela Lei n. 3.268/57.
Ocorre que a referida norma não minuciou os conteúdos de com-
petência deste Conselho, determinando apenas que lhe cabia zelar pelo
perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito
da profissão. Desse modo, ao disciplinar a proibição de publicidade mé-
dica na forma “antes e depois” – modalidade que implica exposição do
paciente e pode acarretar autopromoção e sensacionalismo – o CFM está
zelando pelo desempenho ético, prestígio e bom conceito da medicina.
Dessa forma é que, em contraponto às pretensões apresentadas pelos
médicos, o CFM buscou demonstrar nos referidos processos, dentre ou-
tros pontos, que a previsão normativa visa preservar a ética profissional
100 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

do exercício da Medicina1, bem como que são sabidamente conhecidos os


possíveis dissabores e malefícios causados com a divulgação da imagem
de pacientes nas redes sociais.

3.2. Expectativas criadas nos pacientes e a vinculação de


resultados como critério para uma possível configuração
de responsabilidade objetiva ou culpa presumida
Como mencionado, a obrigação do médico não compreende apenas
o uso de sua técnica para alcançar o resultado pretendido, mas também
se compõe pelo dever de informar o paciente de maneira plena, clara e
adequada, para que este possa exercer de forma legítima sua autonomia
e consentimento (FACCHINI NETO; EICK, 2015). A publicidade médica de
serviços estéticos, através da divulgação de imagens, especialmente de
resultados de procedimentos, é feita pela escolha de fotos dos melhores
resultados, omitindo os maus e evidenciando os sucessos (CFM, 2001).
A confiança passada aos futuros pacientes é, portanto, errônea, des-
cumprindo o dever de informação honesta e fidedigna desde o anúncio.
Nesse sentido, Lima (2011) aponta que a interferência na autonomia
das pessoas vai de encontro ao direito de consentimento livre e esclare-
cido e abre espaço, nestes casos, à certeza de resultado. Complementa
que o poder de sedução da mídia sobre as pessoas as conduz, de forma
temerária, a uma legítima expectativa de satisfação do serviço médico,
que, por consequência, passa a ter obrigação de resultado.
Também para Tartuce (2018), é dever dos médicos informar e es-
clarecer o paciente, diante do princípio da boa-fé objetiva, pois o não
atendimento desse dever pode ocasionar responsabilização ou mesmo
agravá-la. Destarte, a publicidade médica antiética de procedimentos
estéticos, mormente com divulgação de imagens, macula o princípio

1. Considerando as suas funções fiscalizadora e disciplinadora, concedidas pela Lei n.


3.268/57, e considerando que a limitação de anúncios do tipo “antes e depois” diz
respeito à publicidade médica e tem por escopo proteger o paciente e evitar a mer-
cantilização da medicina, finalidades precípuas do CFM, afigurando-se legítima não
só a regra do art. 3º, inciso g, da Resolução n. 1.974/11, como a prerrogativa de bali-
zar a própria publicidade médica.
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 101

da boa-fé objetiva, pois a informação padece de clareza e transparência


e causa em seu destinatário efeito apelativo, que o desvia do exercício
racional de sua autodeterminação.
Este entendimento se harmoniza com o quanto disposto nos artigos
30 e 31 do CDC, dos quais se depreende que toda informação ou publica-
ção veiculada nas mídias sociais, deve conter informações claras, corretas
e suficientemente precisas, além de obrigarem o médico anunciante e
integrarem o contrato que vier a celebrar com o paciente, vinculando-o
ao resultado anunciado.
A respeito da responsabilidade civil, o art. 14, §4º, do CDC a define
como subjetiva, devendo ser apurada mediante verificação de culpa.
Assim, tratando-se de procedimentos estéticos, ainda que se considere
que o médico teria obrigação de resultado, o eventual descumprimento
deverá ser aferido, via de regra, pela responsabilidade subjetiva. Ocorre
que, profissionais cuja obrigação seja de resultado podem responder por
culpa presumida, que se infere iuris tantum, ou de forma objetiva, a qual
decorre de lei (TARTUCE, 2018). Em ambas, é garantida a inversão do
ônus da prova em desfavor do profissional.
Para Tartuce (2018), a responsabilidade dos profissionais médicos,
nos termos do Código Civil e do CDC, é subjetiva e não objetiva, pois não
haveria como enquadrá-los na primeira parte do art. 927, parágrafo úni-
co, do Código Civil. Ainda, esclarece que há dúvidas sobre a subsunção
de profissionais que desenvolvem obrigação de resultado à cláusula
geral de responsabilidade objetiva. Isso porque, para o referido autor,
a iniciativa do risco não é do profissional, mas do paciente, posto que é
este quem procura o médico para se submeter ao risco, para satisfação
pessoal. Justifica seu posicionamento porque a intervenção médica não
seria um ato “normal”, como enuncia literalmente o art. 927, parágrafo
único, do Código Civil.
Com o máximo respeito por este entendimento, não se afigura razoá-
vel imputar ao paciente o risco, da mesma forma que não o seria atribuir
ao passageiro o risco de decidir contratar o serviço de uma companhia
aérea para viajar. Parece mais adequado que a “atividade normalmente
desenvolvida” do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, refira-se à
atividade habitualmente desempenhada pelo eventual autor do dano.
102 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

Assim, trazendo a teoria à prática, a atividade desenvolvida pelo


médico, como já dito, não se compõe somente da prática de técnicas
para obtenção do resultado, mas também do dever de informar prévia
e integralmente o paciente. A falta de transparência de publicações
sensacionalistas aumenta a vulnerabilidade do paciente-consumidor,
impelindo-o com maior facilidade ao risco oferecido pela atividade
habitualmente desenvolvida pelo médico.
Tendo em vista esse efeito, afigura-se o caso de invocação da res-
ponsabilidade objetiva do profissional, pois, conforme lição de Farias,
Rosenvald e Netto (2018),
[...] a partir do momento em que a teoria objetiva liberta o acesso à
reparação de danos do filtro da culpa, delibera por aceitar a ideia de
que mesmo se o caso concreto não demonstrar a prática do compor-
tamento antijurídico, em certas circunstâncias será socialmente mais
justo atribuir o pagamento da indenização àquele que administra
o risco da atividade.
Ora, quem administra o risco da atividade não é o paciente ao guar-
dar-se de se submeter a procedimentos estéticos, disponíveis no mercado
justamente para serem utilizados, mas sim o profissional médico, que
detém o saber dos riscos dos procedimentos por ele oferecidos, e que, em
divulgação nas redes sociais, prefere ocultá-los para melhor influenciar
a decisão de seu público-alvo.
Verifica-se, portanto, que há no ordenamento jurídico pátrio funda-
mentos suficientes que sustentam a reprovabilidade da publicidade mé-
dica ostensiva de procedimentos estéticos nas redes sociais, mormente
por fotos de “antes e depois”, dado omitirem os riscos e desacertos em
prol de evidenciar os bons resultados, o que configura violação do dever
informacional e do princípio da boa-fé objetiva por gerar no público
expectativas de resultados irreais. Tal conduta, a priori, confirmaria a
obrigação do médico, nesses casos, como de resultado, fazendo prova em
seu desfavor e ensejando a responsabilização objetiva, restando a seu
cargo o ônus probatório de que o resultado prometido não foi alcançado
por motivo de força maior, caso fortuito ou fato exclusivo do paciente.
Por fim, oportuno evidenciar o estudo realizado por Martorell, Nasci-
mento e Garrafa (2016, p. 21), o qual concluiu que “as publicações feitas
em redes sociais não proporcionam fundamentação razoável para que
A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 103

profissionais de saúde relativizem seu dever de respeito à privacidade


e confidencialidade com relação aos seus pacientes”.

4. CONCLUSÃO
A pesquisa realizada possui a intenção de fomentar a discussão a
respeito da divulgação de imagens de “antes e depois” nas redes sociais
de médicos, para fins de publicidade, notadamente de procedimentos de
cunho estético embelezador, revelando sua influência sobre a natureza
da obrigação e da responsabilidade civil desses profissionais, ante a
criação de expectativas nos pacientes.
Ao final da pesquisa, percebe-se que o regramento jurídico vigente
acerca das matérias discutidas embasa a vedação da publicidade médica
ostensiva de procedimentos estéticos nas redes sociais, sobretudo por
fotos de resultados finais. A reprovabilidade de tal meio de publicidade se
justifica, seja por omitir os riscos, percalços e desacertos eventualmente
ocorridos, apenas oferecendo destaque aos bons resultados; seja por
configurar evidente violação ao dever informacional e ao princípio da
boa-fé objetiva, gerando no público-alvo, isto é, nos pacientes, expecta-
tivas de resultados irreais.
Além do mais, a divulgação explicita e ostensiva de resultados, atra-
vés do formato “antes e depois”, se mostra apta a configurar a obrigação
do médico como de resultado, ensejando uma possível aplicação da
responsabilidade objetiva, restando a seu cargo o ônus probatório de
que o resultado prometido não foi alcançado por motivo de força maior,
caso fortuito ou culpa exclusiva do paciente.
Nesse cenário, o desafio inicial é levar ao conhecimento desses
profissionais, preferencialmente ainda em seu processo de graduação,
informações que possibilitem a compreensão da importância e relevância
de se levar a cabo apenas meios éticos de publicidade – absolutamente
possíveis – inclusive como forma de mitigar futuras condenações não
apenas na esfera administrativa/ético-profissional, como também na
esfera cível. Soma-se a isso a imperiosidade de ser cada vez mais defen-
dida a atuação regulatória e fiscalizatória do Conselho Federal de Medi-
cina e seus Regionais, cujas orientações se revelam, ao longo dos anos,
104 Fernanda Moura Silva e Gabriela Silva Sady

bastante assertivas na defesa da classe médica e da saúde da população,


notadamente ao evitar a mercantilização da profissão.

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A publicidade médica nas redes sociais e a responsabilidade civil em casos... 107

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CAPÍTULO V

TikTok e a publicidade médica:


a adesão da classe médica ao aplicativo
e os limites da ética na publicidade

Mariane Heberlê Hurtado Plácido*


Paula Carolina Araújo da Silva**

Sumário 1. Introdução; 2. Publicidade médica: legislação e adequação à era digital


3. Redes socias: o uso das redes sociais como meio de divulgação de serviço: 3.1.
A aderência dos profissionais da saúde às regras da publicidade; 3.2. A pandemia
do covid-19 e as mídias sociais: viralização do tiktok; 4. Análise do caso concreto:
decisão do cremesp de interdição cautelar de cirurgiã plástica por publicidade
indevida; 5. Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO
A vida social mudou. Com a pandemia do Sars-Cov 2019 assolando
o país no primeiro trimestre de 2020, a forma de comunicação e traba-
lho também mudaram. E assim, a sociedade evoluiu, inevitavelmente,
talvez com mais pressa para um diálogo por meio de vídeo, além dos já
consagrados escrita e áudio.
As videochamadas, as reuniões via diversos aplicativos de vídeo,
as aulas, congressos, audiências e os despachos com os juízes, o encon-
tro com a família e a forma de se expressar, tudo isso foi amplificado,

(*) Advogada, pós graduada em Processo Civil, pós graduanda em Direito Médico.
(**) Advogada, Pós-Graduanda em Direito Médico pelo CERS e em Direito Civil e Proces-
sual Civil pela Faculdade Legale, membro do Grupo de Pesquisa Estudos de Casos
em Direito Médico e da Saúde da OAB/BA, e-mail: paulacaroliina.adv@gmail.com
110 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

tornando-se real e pungente, mesmo aos mais céticos, a mudança. E


tem funcionado, para alguns o “novo normal” é mais rápido e produtivo.
Nesse cenário, algumas redes sociais, inicialmente usadas de forma
recreativa, tornaram-se ferramentas de trabalho, postagens de fotos pes-
soais foram substituídas por posts educativos, com layout padronizado,
a identidade pessoal do usuário foi alterada para identidade digital e a
pessoa física que usava aquela determinada conta transformou-se em
uma empresa, visando lucro e atenção dos usuários.
Além do Instagram, o Tiktok também ganhou a atenção do público.
Esse aplicativo só permite a reprodução de vídeos, ou seja, sem grandes
textos e mais aproximação com o usuário e, diferente do Instagram, com
uma tendência mais humorística e leve, o que gerou maior identificação
e “humanizou” marcas e empresas que antes se conectavam menos com
o público, um aplicativo no qual as pessoas não usam filtro e nem fazem
poses. Ali, a vida é mais próxima do real e não da perfeição.
Logo iniciou-se o movimento de coreografias e dublagens do Tik-
tok, ou as “dancinhas”, como ficou apelidado. Contudo, como em outras
plataformas, as coisas começaram a fugir do controle ético para o uso
profissional.
Alguns profissionais da medicina, entrando no tom da brincadeira,
fugiram do Código de Ética Médica e da Resolução 1.974/2011 e chega-
ram a sofrer interdição cautelar, sofrendo processo ético profissional na
seara administrativa, o que levantou o questionamento sobre os limites
e deveres que profissionais da saúde devem obedecer ao utilizar suas
próprias redes sociais.
O objetivo do presente trabalho é a análise do caso concreto de
Aviso de Penalidade publicado no D.O.U (Diário Oficial da União) em
12/04/2021, Edição: 67, Seção: 3, Página: 152 e qual a influência do caso
na publicidade médica. O artigo contém 3 capítulos, onde no primeiro
deles será feito um panorama da legislação que temos hoje sobre publi-
cidade médica e como essa legislação precisou evoluir para acompanhar
a velocidade com que a comunicação, da sociedade contemporânea, se
modifica.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 111

Também será traçado um histórico da evolução das redes sociais


como vetor de transformação da relação médico-paciente, para eviden-
ciar o motivo da grande aderência da classe médica ao mundo digital e
a oferta de serviços por meio de mídias sociais.
No terceiro capítulo será abordado a utilização das redes sociais
como meio de divulgação de serviços e como a pandemia transformou
e intensificou o tempo de uso de redes sociais, e ainda, o movimento
dos médicos, quase forçado de saída do mundo analógico e ingresso
no mundo digital. Será analisada a aderência ou não dos profissionais
médicos às regras que limitam e regulamentam a publicidade médica.
No quarto capítulo, será analisado o caso concreto, onde a profis-
sional teve suspensão cautelar por publicidade indevida, abordando a
justificativa do pedido de suspensão e a decisão que autoriza a suspen-
são cautelar. Igualmente, serão sugeridas alternativas que podem esses
profissionais da saúde que gostam e querem ter essa plataforma como
via de propaganda, nos termos das atuais regras, além de sugerir quais
mudanças podem haver para que sejam respeitadas todas as formas de
comunicação, dentro de um mínimo de respeito, ética e moral com o
nosso semelhante.

2. PUBLICIDADE MÉDICA:
LEGISLAÇÃO E ADEQUAÇÃO À ERA DIGITAL
A relação médico-paciente foi alterada com o passar dos anos, pois
a forma como a sociedade se comunica é alterada conforme a tecnologia
avança. Logo, a atitude de esperar por pacientes dentro de um consul-
tório/clínica não satisfaz mais o profissional médico e nem mesmo
prospecta pacientes como o esperado.
A necessidade da prova social1 sempre foi latente na medicina, e este
foi o ponto de partida para que médicos começassem a tornar público
seus feitos, títulos e competências e tal necessidade foi de encontro à
vedação de mercantilização da medicina, ou seja, como divulgar seus
serviços sem mercantilizar a profissão?

1. Prova social é uma evidência utilizada para mostrar que outras pessoas compraram
seu produto/serviço, provando o quão popular ou bom ele é.
112 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

Com a preocupação de balizar a divulgação do trabalho do médico,


o Conselho Federal de Medicina emitiu várias Resoluções voltadas à
propaganda médica, mas mesmo com ao menos 06 Resoluções sobre o
assunto, os profissionais médicos ainda possuem muita dificuldade em
se adequar às regras de propaganda, seja por não ter conhecimento ou
por escolha consciente resolve ignorar as regras de propaganda do CFM.
Quanto à legislação sobre a atividade médica, a Constituição Federal
de 1988 assegura em seu art. 5º, XIII que “é livre o exercício de qualquer
trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que
a lei estabelecer”, ressalta-se que a liberdade do exercício profissional
será interpretada pelas balizas trazidas por Lei Federal, conforme asse-
vera o art. 22, XVI, da Constituição Federal.
Corroborado ao texto constitucional, temos a Lei nº 3.268 de 1957
que dispõe sobre os conselhos de Medicina, e em seu artigo 2ª, especifi-
ca que os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores
da ética profissional, ou seja, o exercício profissional médico é legis-
lado pela Constituição Federal e regulamentado pela Lei nº 3.268/57
que atribui tal função ao Conselho Federal de Medicina, e entre suas
atribuições está a criação e alteração do Código de Deontologia Médica
(art. 5º, alínea d).
Já a Publicidade Médica, propriamente dita, foi regulamentada pela
Resolução CFM Nº 1.974/11 e define como publicidade médica: “En-
tender-se-á por anúncio, publicidade ou propaganda a comunicação ao
público, por qualquer meio de divulgação, de atividade profissional de
iniciativa, participação e/ou anuência do médico”.
Como órgão supervisor da ética profissional, o CFM está sempre
regulando o labor médico e se adequando aos novos meios de comuni-
cação, motivo pelo qual muito tem se falado sobre publicidade indevida e
“atraso” do CFM quanto a determinadas ferramentas do meio digital e a
regulamentação vem através das Resoluções do Conselho, sendo as prin-
cipais a Resolução CFM nº 1974/2011 e a Resolução CFM nº 2.126/2015.
A Resolução nº 1.974/2011 preocupou-se com os critérios nortea-
dores da propaganda, trazendo o conceito de anúncios, sensacionalismo,
autopromoção e algumas proibições, dentre elas, é vedado ao médico o
anúncio de aparelhagem de forma a lhe atribuir capacidade privilegiada,
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 113

utilização de técnicas exclusivas e divulgação de técnica/ método que


não tem autorização expressa pelo CFM.
Já a Resolução nº 2.126/2015 veio alterar alguns itens descritos na
Resolução nº 1.974/11 e incluiu no art. 13 da Resolução CFM nº 1.974/11
o dever de obediência às resoluções normativas e ao Manual da Comissão
de Divulgação de Assuntos Médicos (CODAME) e nomeou, no seu art. 2º,
o que são consideradas mídias sociais: “sites, blgos, Facebook, Twitter,
Instagram, Youtube, WhatsApp e similares”.
Também incluiu os parágrafos seguintes, no art. 13, com a redação
abaixo:
§2º É vedada a publicação nas mídias sociais de autorretrato (selfie),
imagens e/ou áudios que caracterizem sensacionalismo, autopro-
moção ou concorrência desleal.
§3º É vedado ao médico e aos estabelecimentos de assistência
médica a publicação de imagens do “antes e depois” de procedi-
mentos, conforme previsto na alínea “g” do artigo 3º da Resolução
CFM nº 1.974/11.
§4º A publicação por pacientes ou terceiros, de modo reiterado e/
ou sistemático, de imagens mostrando o “antes e depois” ou de
elogios a técnicas e resultados de procedimentos nas mídias so-
ciais deve ser investigada pelos Conselhos Regionais de Medicina.
Apesar das duras críticas que o CFM sofre por parte da classe mé-
dica, a justificativa do órgão é que todo o aparato de legislação sobre
publicidade busca promover a liberdade profissional e a divulgação de
serviços profissionais por meio de mídias sociais com ética, ou seja, sem
incidir em mercantilização da profissão, sem autopromoção e com total
rechaço ao sensacionalismo.
É sabido que os médicos devem ter um decoro inerente à profissão,
conforme transcrição abaixo (LIMA, 2010):
A publicidade médica deve ser socialmente responsável, discreta,
verdadeira, e reverente à intimidade e à privacidade dos indivíduos.
É imprescindível que não tenha ingerência na autodeterminação
do paciente para decidir o que lhe parece ser mais conveniente.
A sociedade espera do médico uma comunicação honesta e não
dirigida à conquista de mercado. Estas considerações vinculam-se
diretamente às normas ético-disciplinares direcionadas à boa con-
duta publicitária.
114 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

Sendo assim, diante de todas as normas de publicidade e do CODAME


à disposição da classe médica, é verificado através de pesquisas (SOUZA,
et al, 2017; SCHMIDT, et al, 2021) que não há um conhecimento, desde
a faculdade, sobre profissionalismo, ética e mídias sociais, aprofunda-
do da classe médica, os quais são merecedores de atenção para evitar
consequências gravosas e irreparáveis.

3. REDES SOCIAIS: O USO DAS REDES SOCIAIS


COMO MEIO DE DIVULGAÇÃO DE SERVIÇO
As redes sociais sempre foram um atrativo para as pessoas que
gostam de se comunicar através de variadas formas, os mais jovens têm
mais facilidade e geralmente, em sua grande maioria, utilizam-se dos
meios digitais para expressar suas opiniões, conectar-se com pessoas
de diferentes regiões do país e do mundo, mas o público mais adulto
viu nas redes sociais uma oportunidade de divulgação de trabalho
mais rápida e eficaz, nascendo então a prática de empreendedorismo
digital.
As redes sociais ou mídias sociais, são plataformas projetadas para
permitir que pessoas compartilhem conteúdo de forma rápida e em
tempo real (DANTON, 2020), gerando a sensação de conexão e ao mesmo
tempo despertando o interesse por mais conteúdos, o que antes era feito
em 2 dias, através de um computador ou necessitava de reunião presen-
cial, hoje pode ser feito com um smartphone, em questão de minutos e
não raro através de uma reunião virtual. As mídias sociais mudaram a
forma como a sociedade consome roupas, comidas, conteúdos e princi-
palmente a forma como fazem negócios.
No Brasil, não demorou para que o Instagram fosse usado como vi-
trine de produtos, serviços, habilidades e por óbvio a nova forma de con-
sumir conteúdo digital não passou despercebida pela classe médica, os
usuários pararam de usar a rede social de forma recreativa e começaram
a usar como ferramenta de negócios, mas as redes sociais são dinâmicas,
cada rede possui seu próprio meio de produção e consumo de conteúdo
e de tempos em tempos novas redes são criadas, viralizam e mais uma
vez o profissional/empresário se vê “obrigado” a adequar-se ao novo.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 115

Nesse cenário, o médico sentiu a necessidade de estar no digital, pois


viu uma forma de anúncio gratuito (podendo ser patrocinado também)
mais eficaz para aumento de clientela e mais fácil de exibir sua expertise
a alguém que esteja em busca de auxílio médico, então começa-se a ver
um movimento não presenciado antes, a “mostra” de rotina, cirurgias,
compartilhamentos de feedbacks de pacientes e também vídeos/fotos
com cunho educativo para a população ficou comum no meio médico e
em outras profissões, essa prática, por si só, já incomodou uma parte da
classe médica mais “analógica”, o que acabou chamando a atenção dos
Conselhos Regionais de Medicina.
Antes, para uma propaganda ser feita, era custosa, com contratação
de diversos profissionais, atualmente, com a própria câmera do celular,
é possível fazer filmagem e tirar fotografias e publicar em tempo real. A
televisão e o outdoor estão na palma da mão, nos celulares. Não é neces-
sária uma grande equipe de marketing, com alguns aplicativos a própria
pessoa cuida da sua rede social de cunho profissional, deixa-se claro
que não se descarta a necessidade de assessoria, marketing, produção
de conteúdo e conhecimento das permissões legais, o que se quer dizer
é que está mais fácil do que outrora a propaganda.
Veja-se que, a exposição do paciente é veementemente proibida,
conforme previsão na Constituição Federal, no Código Civil e no Código
Penal e também é tratada na Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 e na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de
2005 (MARTORELL; NASCIMENTO; GARRAFA; 2016). Ademais, “não é
porque uma imagem seja veiculada de modo a não identificar determi-
nada pessoa que tal ação não possa ser considerada como uma afronta à
privacidade da mesma” (MARTORELL; NASCIMENTO; GARRAFA; 2016).

3.1. Aderência dos profissionais da saúde


às regras de publicidade
Apesar de ser extremamente importante que os profissionais da
medicina tenham conhecimento das regras bioéticas, da relação médi-
co-paciente e do fato de que, acima de qualquer honorário, está a saúde
e o bem-estar do paciente, estamos diante de uma grande concorrência,
cada vez mais médicos sendo formados, cada vez mais oferta.
116 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

Para um profissional ser lembrado, precisa ser visto, conforme ditado


popular. E tendo as redes sociais como aliadas, é preciso se adaptar ao
ambiente de cada rede social, e por isso é percebido que o Tiktok con-
segue trazer leveza aos assuntos e profissões mais engessados, porém
é bem verdade que os profissionais com menos timidez que aderem às
danças e paródias do Tiktok são criticados massivamente por quem
entende que a profissão exige decoro e seriedade.
A questão seria o médico se preocupar com a informação que está
passando, o conteúdo que disponibiliza (mesmo sem ter uma triagem se
está correto ou atual, eis que é impossível tal verificação), pois as pes-
soas cada vez mais estão procurando as informações através das mídias
sociais, somado ao jargão “quem não é visto não é lembrado” atualmente
poderíamos incluir “quem não tem muitos seguidores, é competente?”.
Infelizmente, é o que vem acontecendo, se o profissional não é ativo
nas redes sociais e/ou não tem muitos seguidores, pode criar uma falsa
ideia de não ter muito trabalho, não ter experiência e, portanto, não ser
reconhecido ou não ser bom.
Um ótimo médico pode não ter tempo de publicar em redes sociais,
não gostar de redes sociais e eventualmente, ser engolido por quem
talvez não tenha tanto conhecimento, mas tenha disposição de promover
o assunto através de conteúdo divertido, cômico e irreverente, ainda a
indicação e o boca-a-boca são muito utilizados, com as redes socias, a
pesquisa pelo profissional também está mais acurada e exigente, com o
Google, conhecer o currículo e a formação, há inúmeras possibilidades
de conhecer o possível profissional que se quer contratar.
Sendo assim, para que as regras de publicidade médica sejam efica-
zes no plano prático, além do senso moral interior, a longo prazo deve-se
pensar em conscientização sobre ética e publicidade ainda nas cadeiras
da graduação para ter mudança no comportamento, aliado a diversos
fatores. Essa é a forma idealista, e necessária, mas que não dispensa
uma maior fiscalização (aqui não irá aprofundar se há efetivo pessoal
e estrutura para que isso ocorra, como é a realidade e o que deve ser
adequado para que funcione) e uma sanção.
Sendo assim, mexer “no bolso”, pagar uma quantia pelo erro, é muito
efetivo atualmente. Aumentar o número de congressos e informativos,
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 117

tornar obrigatória na grade curricular matéria sobre o assunto, palestras


para os profissionais e suas empresas de marketing, divulgar as sanções e
principalmente, ter uma normativa clara, sem termos abertos a interpre-
tações, pois cada pessoa interpreta o que lê, escuta e sente de uma foram
diferentes (devido a diversos fatores, como sua infância, sua cultura, seu
ambiente familiar, seus medos e traumas, etc) e podem gerar dúvidas.
A norma deve ser exemplificativa, de acordo com o que se vive hoje
e tentar alcançar um futuro previsível, mas ser absolutamente fácil de
entender, sem necessitar interpretar com conceitos abertos, mas através
principalmente de exemplos, é um modo eficaz, de ser mais efetiva. É
assim que as coisas funcionam, seguir as regras, o contrato, o acordo, ou
seja, o médico irá entender o que está escrito que ele não pode fazer e o
que ele pode fazer, simples. Infringiu a norma, sofrerá as consequências.
Ressalta-se que aqui não se está tentando impor nenhuma solução,
é um trabalho para fomentar as possíveis soluções para a eficácia de
uma norma que precisa existir. Importante pensarmos juntos sobre
as possibilidades de as pessoas entenderem o porquê das proibições,
acolhê-las para então, naturalmente, cumpri-las. Contudo, há quem
não tem esse interesse, discorda e até levantar as críticas e chegar a um
consenso do que deve ou não ser alterado nas regras de propaganda e
publicidade médicas, deve-se seguir o que está vigente, que sempre é
motivo de discussão, basta uma pesquisa nos pareceres dos Conselho
Federal de Medicina e os Conselhos Regionais.
Assim, o CODAME (Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos)
tem por finalidade justamente auxiliar o médico nessas questões, veja-se:
A Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos (CODAME) é res-
ponsável por supervisionar a divulgação (individual ou coletiva)
de assuntos específicos pelos meios de comunicação. A comissão
orienta os médicos quanto à divulgação de matéria que eventual-
mente os envolva, evitando a autopromoção ou a exposição de seus
pacientes. (CREMEB, 2015)
A sociedade está mudando, as novas gerações tem pensamentos
diferentes das antigas, a “televisão” e a propaganda estão literalmente
na palma da mão através dos celulares, então cada pessoa faz seu pró-
prio programa, sendo assim, o Tiktok está revolucionando aplicativos
como o Instagram (tentando copiar a ideia de valorizar os vídeos curtos
118 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

através do reels) e daqui a pouco será outro aplicativo, com outro en-
foque e lá estarão muitas pessoas (ou muitos possíveis clientes) e logo
os profissionais de diversas áreas estarão também, tentando ser vistos
para serem lembrados.
Contudo, faz-se necessário estudo e constante atualização por parte
dos médicos para que esse profissional que está ativo nas redes sociais
observe a deontologia médica (MARTORELL; NASCIMENTO; GARRAFA,
2016):
[...] sempre prudente o profissional interessado considerar o contex-
to ético e legal relacionado com a especificidade de cada situação e
com as circunstâncias onde esta prática será executada, no sentido
de estar proporcionando uma ação realmente útil e necessária aos
seus pacientes e ao bem-estar societário, em consonância com o
respeito aos direitos humanos universais.
Ou seja, o conhecimento da Bioética e dos seus princípios é essencial
para quem quer fazer uso das redes sociais dentro da ética e dos preceitos
legais e observar esses princípios será uma situação mais provável se
esse profissional tiver contato desde as cadeiras da graduação.

3.2. A pandemia do covid-19 e as mídias sociais:


a viralização do TikTok
Mesmo com as resoluções sobre publicidade médica do CFM, a prá-
tica de divulgação por meio digital incomodava bastante parte da classe
médica que alegava exageros e principalmente autopromoção, mas foi
em 2020 com a pandemia do COVID-19 que a situação de publicidade
médica ganhou a atenção da população no geral.
A pandemia de Covid-19 fez com que a população mundial ado-
tasse protocolos de quarentena e restrição de circulação, shoppings,
lojas, estabelecimentos de comida, órgãos públicos tiveram que parar
o funcionamento físico e quem já estava no mundo virtual estava com
vantagem, quem não tinha se adequado ao mundo digital teve que fazer
adaptação às pressas ou então ficaria para trás, isso pois, como o brasi-
leiro estava em lockdown dentro de casa, o consumo de mídias sociais
saltou consideravelmente e toda e qualquer nova contratação de serviços
seria feita pelo meio digital.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 119

Justamente nesse período, o CFM regulamentou a Telemedicina e a


teleconsulta por meio da Portaria nº 467/MS/GM, apesar de ser medida
em caráter emergencial, foi muito aproveitado por vários médicos, que
investiram massivamente no Instagram para continuar os atendimen-
tos e para conseguir novos pacientes, foi então que outra rede social,
inicialmente com o uso massivo por adolescentes, viralizou no Brasil e
no mundo, o TikTok.
O TikTok é uma rede social de compartilhamento de vídeos curtos,
ficou popular pelos amplos recursos para edição que fornece ao usuário,
realizar dublagens de vídeos com teor humorístico e pelos desafios ou
“challenges” que os usuários se propõem a realizar, isso inclui imitação
de pessoas famosas, coreografias e não demorou até que os empreen-
dedores digitais utilizassem a plataforma para compartilhar vídeos e
reproduzir as “trends” (tendências) do Tiktok aos seus negócios, modi-
ficando para sua realidade.
De acordo com a Forbes, o Tiktok teve 850 milhões de downloads
em 2020, no mundo, ficando em primeiro lugar no ranking de aplicati-
vos mais baixados e também foi o aplicativo que mais faturou em 2020,
faturando US$ 540 milhões (KOETSIER, 2021).
Médicos, advogados e dentistas estão massivamente presentes no
aplicativo, fazendo conteúdos com teor humorístico, como coreografias
e dublagens que satirizam certas práticas de clientes/pacientes e isso
tem feito os perfis destes profissionais liberais triplicarem o número de
seguidores, o que torna o alcance muito maior e traz clientela inclusive
de outros estados.
Veja-se que o brasileiro ocupa o 3º lugar do mundo em média de
permanência nas suas redes sociais, ficando em torno de 3 horas e 42
minutos (site Linka , 2021).
Como era de se esperar, a adesão dos médicos ao TikTok não foi
bem vista por alguns Conselhos Regionais. O Conselho Regional de
Medicina de Rondônia emitiu um “Alerta Ético” em seu Instagram, no
dia 10 de setembro de 2020, com o seguinte texto: “Constitui falta ética,
anúncios em redes sociais onde médicos, utilizando-se da condição de
médico aparecem em situações indecorosas, apresentando danças ou
simulações”
120 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

O alerta do CREMERO ganhou grande repercussão, pois em setembro


de 2020 se estava no auge da viralização do TikTok, e o Instagram, ten-
tando controlar a concorrência, havia lançado a nova ferramenta Reels
que basicamente “imita” o Tiktok e está dentro da rede social Instagram,
o que gerou uma aderência ainda maior da classe médica.
Dois dias depois do CREMERO – em 12 de setembro de 2020 – o
CRM-PR também emitiu um “alerta ético” sobre os vídeos feitos por
médicos em mídias sociais, onde o órgão vai um pouco mais além que o
CREMERO e afirma que apurará cada caso:
Considerado as recentes veiculações de vídeos de médicos, em todos
os meios de comunicação, em especial mídias sociais; alertamos para
que os preceitos éticos sobre publicidade e as normas da Resolução
1974/2011 sejam cumpridos.
Orientamos observar as proibições sobre sensacionalismo e
autopromoção, bem como situações que se utilizem da profissão
para quebrar o decoro ou ridicularizar a Medicina.
O CRM-PR apurará as situações e tomará as providências cabí-
veis a cada caso. (CRM-PR, 2020
Diante disso, é nítido que os CRMs estão observando a movimentação
da classe médica nas mídias sociais e que a preocupação primeira é com
o teor da publicação. Assiste razão aos Conselhos, vez que as publicações
feitas no TikTok/Reels em sua maioria retratam “antes e depois” de
pacientes em procedimentos operatórios, prática que é expressamente
vedada pelo art. 3º da Resolução 1.974/2011.
Outro tipo de postagem bastante corriqueira é evidenciando marca
dos aparelhos utilizados na clínica/consultório atrelando ao equipamen-
to poder de eficiência maior e induzindo o seguidor/paciente a acreditar
que o profissional “X” é o melhor profissional pelo equipamento que
possui, prática também vedada.
Apesar de existirem profissionais que produzem conteúdo de forma
ética, com cunho educativo e voltado à informação da população, ainda
existe grande parcela de profissionais que utilizam de autopromoção e
sensacionalismo para produzir conteúdo e acabam por mercantilizar a
profissão.
De acordo com a Resolução 1.974/11 entende-se por sensacionalis-
mo a divulgação de procedimentos feita de forma exagerada, a divulgação
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 121

de métodos sem reconhecimento cientifico, a adulteração de dados


estatísticos dentre outras coisas. (CFM, 2011)
Já a autopromoção é a prática de utilizar meios de comunicação,
publicações de artigos e entrevistas com a intenção de angariar clien-
tela, concorrência desleal, ou seja, de utilizar títulos e conhecimento
que possui para obter vantagem indevida sob os demais colegas de
profissão.
Assim, é percebido, com a pandemia e a viralização de um aplicativo
mais voltado ao humor, que o profissionalismo e o decoro da profissão,
por aqueles que possuem uma veia mais cômica ou que querem viralizar
na web, estão deixando de observar as regras da publicidade que, possi-
velmente, não foram tratadas de forma robusta na faculdade.
Sobre o profissionalismo, SOUZA, et al, 2017 , diz que:
Apesar de ainda não existir consenso sobre o conceito de “profis-
sionalismo”, muitas das publicações na literatura concordam em
que o profissionalismo se trata do compromisso com a competência
profissional, confidencialidade com o paciente, integridade, luta
pelo bem-estar do paciente e promoção da justiça social. (...) mé-
dicos ou estudantes de Medicina, os quais, muitas vezes, podem
se comportar de forma ética e profissional no relacionamento
médico-paciente face a face, a despeito de apresentarem compor-
tamentos antiprofissionais no ambiente virtual. Devido a isso, pode
ser útil que os estudantes de Medicina e médicos sejam alertados
quanto ao “fenômeno da desinibição on-line” para que sejam mais
conscientes e críticos quanto a suas ações on-line.
E é justamente neste cenário de sensacionalismo e autopromoção,
onde verificam-se várias infrações éticas e o transpasse das normas
regulamentadoras do CFM, que o Conselho Regional de Medicina do
Estado de São Paulo resolveu por interditar cautelarmente o exercício
profissional de uma cirurgiã plástica pelo prazo de 06 meses, caso que
será analisado no próximo capitulo.
122 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

4. ANÁLISE DE CASO CONCRETO: DECISÃO DO CREMESP


DE INTERDIÇÃO CAUTELAR DE CIRURGIÃ PLÁSTICA
POR PUBLICIDADE INDEVIDA
De acordo com Aviso de Penalidade feito pelo CREMESP (Conse-
lho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) publicado no DIÁRIO
OFICIAL DA UNIÃO em 12/04/2021, Edição: 67, Seção: 3, Página: 152,
diz que:
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, no uso
das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268/57, regulamentada
pelo Decreto nº 44.045/58, bem como pela Resolução do CFM nº
2145/2016, decidiu, na 5014ª Sessão Plenária realizada no dia 08 de
abril de 2021, INTERDITAR CAUTELARMENTE O EXERCÍCIO PRO-
FISSIONAL da médica Dra. C.T.G – CRM/SP –, denunciada nos autos
do Processo Ético-Profissional nº 15.935-182/21, pelo prazo de 6
(seis) meses, contado da data da aprovação plenária, constituindo
medida de natureza preventiva com o objetivo de evitar prejuízos
à população.2
O caso teve grande repercussão, pois a médica citada, cirurgiã plás-
tica, mostrava no aplicativo Tiktok, vários pedaços de pele humana e
gordura recém retirados de seus pacientes, muitas das postagens eram
feitas dentro do centro cirúrgico, onde se era possível ver sangues e res-
tos de materiais biológicos, além de exibir o material biológico retirado
do paciente, a médica aparecia nos vídeos dançando e referindo-se aos
materiais como “troféus” (Redação Veja São Paulo, 2021).
Tal atitude não teve boa receptividade na área médica e tal conduta
está sendo investigada através de processo ético, tanto que, enquanto
não é finalizado e prolatada decisão final, a médica em questão foi cau-
telarmente interditada por 6 (seis) meses.
De acordo com a Resolução CFM nº 1789/2006, o seu art. 2º diz que:
A interdição cautelar ocorrerá desde que exista prova inequívoca do
procedimento danoso do médico e verossimilhança da acusação com
os fatos constatados, ou haja fundado receio de dano irreparável ou
de difícil reparação, caso o profissional continue a exercer a Medicina.

2. Apesar de serem públicos os dados, aqui foi retirado o nome completo da médica e
seu CRM.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 123

Há quem defenda que tal medida é extrema ante a pena máxima


aplicada e que em casos de publicidade indevida nem sempre a pena
máxima é aplicada, veja-se (MASCARENHAS; COSTA; DANTAS, 2020):
Em verdade, medidas cautelares não possuem natureza punitiva, na
medida em que visam evitar novos danos de natureza irreparável
ou de difícil reparação ao paciente, à população e ao prestígio e
bom conceito da profissão, caso ele continue a exercer a Medicina.
Ocorre que, na contemporaneidade, a interdição cautelar tem
sido utilizada como uma antecipação da pena em grau mais gravoso
que a suspensão profissional trazida na alínea "d" do art. 22 da lei
3268. E pior: sem a possibilidade de rediscussão no Judiciário, na
medida em que se trata de mérito administrativo.
[...]
Diante dessa disparidade condenatória, o CFM/CRMs tem uti-
lizado a interdição cautelar como mecanismo condenatório anteci-
pado e agravador da pena de suspensão tradicional, na medida em
que pode perdurar por 06 meses, prorrogáveis por igual período,
nos termos do art. 31 do Código de Processo Ético Profissional. Ou
seja, é uma medida que pode perdurar por até 01 ano.

A interdição cautelar, é uma medida que tem o cunho educativo e


mira na inibição de repetição de conduta, justamente por esse motivo,
o Código de Processo Ético-Profissional (CPEP) define em seus arts. 25
e 26 os elementos necessários para a aplicação de interdição, veja-se:
Art. 25. O pleno do CRM, por maioria simples de votos e respeitando
o quórum mínimo, poderá interditar cautelarmente o exercício
profissional de médico cuja ação ou omissão, decorrentes do
exercício de sua profissão, esteja notoriamente prejudicando
seu paciente ou à população, ou na iminência de fazê-lo. (grifo
nosso)
Art.26 A interdição cautelar ocorrerá desde que existam nos autos
elementos de prova que evidenciem a probabilidade da autoria e
da materialidade da prática do procedimento danoso pelo médico,
a indicar a verossimilhança da acusação, e haja fundado receio de
dano irreparável ou de difícil reparação ao paciente, à popula-
ção e ao prestígio e bom conceito da profissão, caso ele continue
a exercer a medicina. (grifo nosso).
Da leitura do dispositivo acima, é questionável se a aplicação de
interdição cautelar seria a medida mais correta – e não a ultima ratio
124 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

– no caso em tela, vez que no caso em comento a médica não está sendo
acusada de pôr em risco algum paciente e não é possível vislumbrar, a
priori, qual seria o risco de dano irreparável ao paciente, visto que não
existe queixa de pacientes sobre a conduta da médica, ou seja, a decisão
foi tomada tendo como objeto jurídico digno de defesa o “bom prestígio
da profissão” e questiona-se se não seria mais acertada a aplicação de
outra punição mais branda ou mesmo a assinatura do TAC, antes da
interdição cautelar.
Sem se aprofundar no tema da interdição cautelar, essa pode ser
positiva também no sentido em que serve de exemplo, como forma de
inibição da conduta. Ainda, em sendo o médico um risco à população
(CALLEGARI, 2009) há quem entende ser perfeitamente aplicável, para
que o médico seja impedido de trabalhar durante o processo.
O ponto em questão é que a inobservância dos ditames de publici-
dade não se comparam à prática de erro médico grave com resultado
morte ao paciente, mas às duas condutas são aplicadas a mesma punição,
a interdição cautelar, não sendo possível verificar a proporcionalidade
da punição à conduta do agente.
Conforme (MASCARENHAS; DANTAS; COSTA, 2021):
Apesar de existir no bojo das interdições causas de denúncias de
supostos assédios sexuais, homicídios, lesões corporais graves e
outros tipos, que são considerados pelo próprio CFM como graves,
e de inexistir uma hierarquia formal entre os 117 deveres médicos,
denota-se uma série de interdições em razão de publicidade e/ou
outras infrações, que, apesar de deverem ser enfaticamente repu-
diadas, não podem ser equiparadas às demais figuras.
(...)
A conduta imediata, até para que não haja a reprodução do
conteúdo ilícito, não pode ser impedir a atuação profissional, visto
que essa medida não possui correlação imediata com o dano. A
promoção de informação e educação são alternativas mais efetivas
e eficazes aos casos analisados, jamais a simples interdição cautelar,
que supera em muito a penalidade de suspensão, prevista na Lei
3.268/1957 (LGL\1957\21).
Ainda que verificado que o caso em comento transcende a relação
médico-paciente e atinge a sociedade como um todo pela exposição e o
choque à demonstração de peles humanas e material biológico, é preciso
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 125

salientar que a aplicação de uma mesma punição a condutas diametral-


mente opostas – no quesito gravidade – traz atecnia e excesso de discri-
cionariedade, o que chama atenção para a necessidade de normas que
conceituem e norteiem as decisões que aplicam as sanções aos médicos,
pois não se trata de garantir impunidade, mas de punir na medida exata
de sua atitude, levando em consideração a falta de ética, respeito, bom
senso, sensibilidade, além das infrações ao Código de Ética Médica.
Com relação ao aplicativo Tiktok, para que haja uma participação
ética dos profissionais da saúde, deve-se levar em conta a boa-fé, a ver-
dade, o caráter informativo e sempre de acordo com as Resoluções que
definem o que é permitido e vedado ao médico fazer.
Sendo assim, é possível fazer uma dança sem que essa seja autopro-
mocional, sensacionalista a fim de atrair atenção. Mas como? Pois para
uns, o simples fato de dançar já é indecoroso e para outros, que estão se
aproveitando da utilização de uma plataforma de grande alcance onde
seu meio de comunicação é através de vídeos com coreografias, estar
dentro desse mundo e ser respeitado, é possível.
O art. 112 do Código de Ética Médica e a Resolução CFM nº
2.217/2018, diz que é vedado ao médico: “Divulgar informação sobre
assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo
inverídico.”
Por sensacionalismo, a Resolução CFM nº 1.701/03 define que:
Art. 9º Por ocasião das entrevistas, comunicações, publicações de ar-
tigos e informações ao público, o médico deve evitar sua autopromo-
ção e sensacionalismo, preservando, sempre, o decoro da profissão.
§ 2º Entende-se por sensacionalismo:
a) a divulgação publicitária, mesmo de procedimentos consagrados,
feita de maneira exagerada e fugindo de conceitos técnicos, para
individualizar e priorizar sua atuação ou a instituição onde atua
ou tem interesse pessoal;
b) a utilização da mídia, pelo médico, para divulgar métodos e meios
que não tenham reconhecimento científico;
c) a adulteração de dados estatísticos visando beneficiar-se indivi-
dualmente ou à instituição que representa, integra ou o financia;
d) a apresentação, em público, de técnicas e métodos científicos que
devem limitar-se ao ambiente médico;
126 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

e) a veiculação pública de informações que causem intranqüilidade


à sociedade. (grifo nosso)
Sobre esse assunto, o livro Ética em publicidade médica (CREMESP,
2006) ensina que:
O sensacionalismo constitui-se em forma de concorrência absolu-
tamente desleal, impondo o que seria um enorme paradoxo com os
princípios deontólogicos que afastam a Medicina como atividade
mercantilista.
De fato, o que se verifica ao longo dos anos é que em que pese
a Medicina ser uma atividade humanística em sua essência, tendo
como princípio deontológico máximo a atenção do médico ao pa-
ciente, não há como se negar que sua atuação envolve profissionais
que também dela dependem e, por vezes, têm que se adequar às
regras do mercado.
Neste ponto é que se nota uma pequena modificação no conceito
de sensacionalismo formado ao longo dos anos, em que a única preo-
cupação da Medicina era o próprio paciente; a partir de agora, tam-
bém o médico passa a ser alvo de proteção desta mesma Medicina.
Sendo assim, há que se ter em mente que, ao utilizar o Tiktok,
além das já consagradas vedações do Capítulo XIII do CEM e da Resolução
CFM nº 1.974/11 o médico deve observar as regras previstas para sua
profissão, pois muitas vezes entende o aplicativo não como forma de
publicidade expressa, então não observa os preceitos legais para tanto,
mas, uma vez que você utiliza seu perfil profissional (e também pessoal
juntos, se assim preferir), está aparecendo como médico.
No caso, o médico ao fazer coreografias, danças, dublagens, ce-
nários e roteiros com situações de cunho humorístico ou qualquer outra
forma, dentro de sua rede social, pode fazê-lo, desde que observado o
decoro, o não-sensacionalismo e o caráter informativo.
Se, para alcançar uma parcela mais jovem da população, atrair
seu interesse para uma situação importante, como relata o médico
italiano Carlo Sposito em sua entrevista, que consegue informar para
esse público sobre prevenção de DSTs com sucesso através do Tiktok
(FRANZELLITTI, 2020), talvez seja o momento de aceitar e analisar como
fazer parte desse universo (se for da vontade do profissional) dentro dos
limites éticos e de publicidade vigentes, da profissão.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 127

O médico deve observar, no seu uso do Tiktok, as já citadas


Resoluções que são de fácil acesso, disponíveis nos sites do CRM e do
CFM e de acordo com o livro do Ética em publicidade médica (CREMESP,
2006), vê-se que:
As informações médicas veiculadas nos sites devem ser estritamente
educativas e de esclarecimento da coletividade. Os médicos estão
obrigados a seguir a regulamentação legal no que concerne à publi-
cidade e marketing definidos no Manual da Codame.
Poderá ser punido pelo CRM o médico que utilizar a Internet
para autopromoção no sentido de aumentar sua clientela; fazer
concorrência desleal, como promoções no valor de consultas e
cirurgias; pleitear exclusividade de métodos diagnósticos ou tera-
pêuticos; fazer propaganda de determinado produto, equipamento
ou medicamento, em troca de vantagem econômica oferecida por
empresas ou pela indústria farmacêutica.

Ou seja, se não forem observadas as regras legais, poderá sofrer


sanções preventivas, como interdição cautelar do exercício da profissão
até uma sanção disciplinar de cassação do exercício profissional, nos
termos do art. 22 da Lei 3.268/57.
Isto posto, não é brincadeira nem diversão um médico, identifi-
cando-se como tal e portanto, fazendo uso desse rótulo, usar qualquer
meio de comunicação sem observar as regras de publicidade, podendo
e sofrendo sanções, como ocorreu no caso concreto em análise.

5. CONCLUSÃO
O novo amedronta certa parcela da população e incentiva outra
parcela, a área médica é uma das mais conservadoras quando o assun-
to é publicidade, comportamento social e em ambientes sem o jaleco,
profissionais geralmente exaustos pelos diversos vínculos trabalhistas
e plantões, que são vistos como heróis numa profissão com tamanha
seriedade, o zelo pelo decoro da medicina surge como justificativa para
ausência de profunda análise sobre as novas mídias sociais que surgem
diariamente.
Pesa-se que, mesmo antes da viralização do Tiktok, as regras de pu-
blicidade (ou propaganda) já não eram observadas, mas essas ganhavam
128 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

um caráter mais de concorrência desleal, de permuta com celebridades,


comprar seguidores, fotos de antes e depois (proibidas) mas agora, as
infrações éticas cometidas elevaram seu status para um novo tipo: o de
envergonhar a classe médica!
Conforme verificado, a legislação sobre publicidade médica foi
evoluindo conforme o caminhar da sociedade, mas ainda assim não
tem legislação específica para o tratamento e comportamento diante
de aplicativos que mostram não só a atividade médica, mas se confunde
com a vida particular daquele profissional médico.
O Tiktok, em especial, tem a característica de ser mais voltado à
descontração, comédia, que parece não encaixar na figura do médico3,
o que tem trazido várias discussões sobre o limite ao que é postado em
redes sociais.
Em análise ao caso concreto, foi percebido que apesar da médica
não ter cometido falha grave no exercício da medicina, foi alvo de puni-
ção gravosa, por colocar em xeque a credibilidade da classe médica e o
decoro, mas, ainda que a punição não seja a mais adequada ao caso, é
imperioso salientar que as regras estão em constante mudanças, ade-
quando-se, amoldando-se à realidade, eis que tentar encaixar as pessoas
nas regras é cada vez mais difícil.
A profissão exige um comportamento diferenciado, é assim por
muitos anos, e ainda que o mundo digital seja um novo caminho e futu-
ramente talvez se torne o único caminho possível, a era digital não pode
servir para infrações éticas e a mercantilização da profissão.
Este trabalho não tem o objetivo de esgotar o tema, visto que a pró-
pria rede social Tiktok é nova e o julgado sobre o tema ainda está em
trâmite na seara administrativa, mas sim de trazer à voga que a limitação
por limitar não solucionará a questão e que a sanção por mais gravosa
que seja, não inibirá que mais e mais profissionais aderem ao digital e
transformem inclusive a forma como vemos a medicina, contudo irá tra-
zer uma reflexão, também pelo caráter pedagógico da punição, servindo
de exemplo para que outros profissionais não façam o mesmo.

3. Durante o artigo, usou-se médico para se referir à classe médica, ou seja, médicos e
médicas.
TikTok e a publicidade médica: a adesão da classe médica ao aplicativo... 129

Diante disso, importante se pensar no futuro, o médico deve anali-


sar se deseja fazer parte dessa tendência e se o fizer, deverá seguir as
normas e regras. Se o médico não concordar com o que está vigente,
com as limitações e regras impostas, importante se manifestar, estudar,
pesquisar, criticar e questionar tais Resoluções, veja-se que a lição
de John Maynard Keynes é muito atual e cabe nessa reflexão: “A ver-
dadeira dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas escapar das
antigas”.

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130 Mariane Heberlê Hurtado Plácido e Paula Carolina Araújo da Silva

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CAPÍTULO VI

O setor de saúde suplementar


e o rol da Agência Nacional de Saúde
Suplementar sob a ótica
do Superior Tribunal de Justiça

Lucas Funghetto Lazzaretti*

Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações sobre a Lei nº 9.656/98, a Agência


Nacional de Saúde Suplementar e o setor de saúde suplementar; 3. O rol da ANS
sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça; 4. Conclusão; Referências.
Palavras-chave: Lei nº 9.656/98; Agência Nacional de Saúde Suplementar;
Saúde Suplementar; Rol; Superior Tribunal de Justiça.

1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa abordar a Lei nº 9.656/98, conhecida como
a lei dos planos de saúde, as funções da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), os critérios utilizados pelo setor de saúde suple-
mentar ao praticar a saúde privada no país e, por fim, será explorado o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o rol da ANS
ter caráter taxativo ou exemplificativo.
Na primeira etapa do estudo serão abordas as disposições norma-
tivas referentes à Lei nº 9.656/98, a função da ANS como autarquia

(*) Advogado. Professor. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processual do Tra-


balho pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul. Pós-graduado em Direito
Médico e da Saúde pela Faculdade CERS. Presidente da Comissão da Saúde da OAB/
RS, Subseção de Canoas. Vice-Presidente Interino da Comissão Especial da Saúde
da OAB/RS. Moderador do Grupo de Estudos em Direito e Saúde da Escola Superior
da Advocacia do Rio Grande do Sul.
134 Lucas Funghetto Lazzaretti

responsável por elaborar o rol de procedimentos, bem como a análise do


setor de saúde suplementar, abrangendo o direito fundamental à saúde
e a sua aplicação no setor privado.
Ressalta-se a relevância do estudo do direito fundamental à saúde
e a sua aplicabilidade na saúde suplementar, sendo este um direito fun-
damental de segunda dimensão, vinculado ao princípio da igualdade,
tendo o Estado, e tão somente este, o dever de promover a saúde ao
indivíduo de forma ilimitada.
Por sua vez, na segunda parte do trabalho, serão expostos os princi-
pais julgados do STJ que se referem ao rol da ANS, através de uma análise
crítica sobre o entendimento da Terceira e Quarta Turma do referido
Colegiado, as quais possuem entendimento diverso sobre a temática.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEI Nº 9.656/98,


A AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR
E O SETOR DE SAÚDE SUPLEMENTAR
A Lei nº 9.656/98, vigente desde 03 de junho de 1998, surgiu no
ordenamento jurídico pátrio com o intuito de regular os planos e seguros
privados de assistência à saúde. Dentre suas disposições, restou elen-
cado o rol de coberturas mínimas a serem ofertadas aos beneficiários
de planos de saúde, a partir do qual as operadoras de planos de saúde
passaram a ter de se adequar e remodelar os contratos ofertados no
âmbito da saúde suplementar.
Posteriormente, com o advento da Lei nº 9.961/2000, criou-se a
ANS, uma autarquia federal com autonomia administrativa, financeira
e patrimonial, vinculada ao Ministério da Saúde, responsável por nor-
matizar, controlar, regular e fiscalizar a assistência suplementar à saúde.
O objetivo principal da ANS é manter o equilíbrio econômico dinâmi-
co, evitando a ocorrência de medidas desproporcionais que comprome-
tam a sustentabilidade do setor como um todo já que, nesse segmento, os
interesses envolvidos são não apenas múltiplos, mas interdependentes
(CECHIN, LEAL, 2012, p. 29).
Assim igualmente prevê o artigo 2º, do Decreto nº 3.327/00:
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 135

A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do in-


teresse público na assistência suplementar à saúde, regulando as
operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com pres-
tadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das
ações de saúde no País”. As suas atribuições são de caráter prepon-
derantemente técnico, com incentivo à participação da sociedade nos
processos decisórios. Desse modo, esse órgão constitui-se na mais
alta autoridade para incluir e excluir procedimentos e determinar
a observância desses parâmetros por todos os planos de saúde vi-
gentes no país. Tal esclarecimento faz-se necessário também para
que se visualize a cadeia hierárquica estabelecida por lei para o
funcionamento do setor e para que, assim, compreenda-se que, com
efeito, existe uma gama limitada de exigências que podem ser feitas
pelo beneficiário ao plano de saúde.
Nesta senda, segundo Ziroldo, Gimenes e Castelo Júnior:
Com a criação da ANS, o mercado da Saúde Suplementar ganhou um
marco regulatório importante para que a integração acima descrita
pudesse ser estabelecida. Com a necessidade indubitável de regular
e regulamentar um setor da mais alta importância como a Saúde, a
regulação veio para normatizar coberturas assistenciais e formas
de atendimento visando garantir à população pertencente à Saúde
Suplementar seus direitos e estabelecer deveres para as empre-
sas participantes do setor. Tal regulação tornou-se fundamental
para determinação de alguns parâmetros administrativos e fi-
nanceiros que ao longo dos anos que se seguiram começaram a se
apresentar como verdadeiros obstáculos no processo administra-
tivo do segmento. (ZIROLDO, GIMENES, CASTELO JÚNIOR, 2013,
p. 219)
Conforme se extrai do artigo 4º, da Lei nº 9.961/2000, são algumas
das competências da ANS:
Art. 4º Compete à ANS:
II – estabelecer as características gerais dos instrumentos contra-
tuais utilizados na atividade das operadoras;
III – elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que
constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei
no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades;
IX – normatizar os conceitos de doença e lesão preexistentes;
X – definir, para fins de aplicação da Lei no 9.656, de 1998, a seg-
mentação das operadoras e administradoras de planos privados de
assistência à saúde, observando as suas peculiaridades;
136 Lucas Funghetto Lazzaretti

XVII – autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniá-


rias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério
da Fazenda; (grifo nosso)
Destaca-se, conforme o inciso III acima grifado, que uma das
funções da ANS é a elaboração do rol de procedimentos em eventos e
saúde, constituindo referência básica para a Lei nº 9.656/98. Atual-
mente, o rol de procedimentos possui previsão na Resolução Normativa
(RN) nº 465/21, que estabelece, no seu artigo 2º, ser esse de caráter
taxativo, vejamos:
Art. 2º Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Proce-
dimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e
seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde
oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou
mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao
plano privado de assistência à saúde.
Na saúde suplementar, a incorporação de novas tecnologias em
saúde, bem como a definição de regras para sua utilização, regulamen-
tada pela RN nº 439/2018, é definida pela ANS por meio dos sucessivos
ciclos de atualização do rol de procedimentos e eventos em saúde,
que ocorrem a cada dois anos. Conforme se depreende das informa-
ções prestadas pela ANS, o ciclo de atualização do Rol se inicia com
ato de deliberação da Diretoria Colegiada da autarquia, que define
um cronograma, fixando prazo para apresentação das propostas de
atualização, mediante o preenchimento do formulário eletrônico
(BRASIL, 2021):
Art. 3º Os ciclos de atualização do Rol ocorrerão a cada dois anos e
terão como finalidade a revisão da Resolução Normativa que esta-
belece a cobertura assistencial mínima obrigatória.
Art. 4º O processo de atualização periódica do Rol observará as
seguintes diretrizes:
I – a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde,
de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde
no país;
II – as ações de promoção à saúde e de prevenção de doenças;
III – o alinhamento com as políticas nacionais de saúde;
IV – a utilização dos princípios da avaliação de tecnologias em
saúde – ATS;
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 137

V – a observância aos princípios da saúde baseada em evidências


– SBE; e
VI – a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor.
Em suma, a ANS edita, periodicamente, uma lista de procedimentos
que passam, de forma automática, a ser de cobertura obrigatória pelas
operadoras de planos de saúde. Assim, na prática, para o beneficiário
usufruir das coberturas do contrato, este deve sempre procurar a rede
credenciada do plano de saúde, em que estão disponíveis todos os pro-
cedimentos previstos no rol de procedimento ora debatido, portanto,
cobertos contratualmente.
Conforme Duarte (2001, p. 367), “o sistema de atenção médica suple-
mentar cresceu a passos largos durante a década de 80, de tal modo que,
em 1989, cobria 22% da população total do país. Somente no período
1987/89 incorporaram-se a esse subsistema 7.200.000 beneficiários”.
Atualmente, o número de usuários registrados na ANS é de aproxima-
damente 47,6 milhões de beneficiários no total de vínculos a planos de
assistência médica com ou sem odontologia e planos exclusivamente
odontológicos (ANS, 2020).
Nessa toada são os ensinamentos de Candice Lavocat Galvão Jobim
e Ramiro Nóbrega Sant´Ana:
Dessa forma, o setor privado segue o seu “processo de autonomi-
zação em relação ao setor público”, contudo, é “inegável que todo
esse processo já representa um patamar muito mais civilizado do
que o cenário no qual os planos de saúde eram comercializados
como simples mercadorias de consumo opcional”. A observação
dessa tensão à luz do texto constitucional permite perceber que
ora se faz valer a cláusula de livre iniciativa do caput do artigo 199,
ora se dá primazia ao controle estatal previsto no caput do artigo
197, que define serem de “relevância pública as ações e serviços de
saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre
sua regulamentação, fiscalização e controle”.
A segmentação da função do Poder Público de regular a saú-
de, por meio da atribuição da regulação do setor suplementar à
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tem despertado
todo tipo de controvérsia, que vai desde a percepção de cooptação
da regulação governamental pelos interesses dos grupos privados
até críticas à excessiva regulação (v.g., rol de coberturas mínimas
obrigatórias que conduziriam ao aumento do preço dos planos
138 Lucas Funghetto Lazzaretti

de saúde). O desdobramento dessa tensão tem consequências na


organização do setor.
O acentuado avanço da saúde suplementar é muito bem retra-
tado pelos dados divulgados periodicamente pela ANS. Nos últimos
15 anos, o aumento do número de usuários de planos de saúde foi
superior a 60%: um salto de 30 milhões de usuários em 2000 para
um pico de 50 milhões entre 2014 e 2015. No período que coincide
com a recente crise econômica, o número de segurados sofreu dis-
creta redução e, em março de 2020, chegou à marca de 47.113.437
de usuários. Os números correspondem a uma cobertura de quase
¼ (um quarto) da população brasileira. (JOBIM, SANT´ANA, 2020,
p. 159 e 160)
Neste sentido, referente ao direito à saúde propriamente dito, este
tem seus traços fundamentais delineados nos artigos 196 a 200 da
Constituição da República. O artigo 196 dispõe que a “saúde é direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e eco-
nômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação” (BRASIL, 1988). Através da leitura do referido
artigo, supostamente se entende que o Estado tem o dever de promover
a saúde ao indivíduo de forma ilimitada (BORGES, 2011, p. 112-116).
Contudo, na seara do direito à saúde, os problemas de efetivação
podem assumir dimensão muitas vezes trágica, de modo que a falta
das prestações materiais acarretaria na perda da vida dos titulares do
direito (SARLET, 2018, p. 253).
Igualmente, Germano Schwartz (2001, p. 52) ensina que a saúde
“é um dos principais componentes da vida, seja como pressuposto
indispensável para sua existência, seja como elemento agregado à sua
qualidade. Assim, a saúde se conecta ao direito à vida”. O referido autor
também destaca:
Adotando o critério da proporcionalidade e da harmonização
dos valores em jogo estabelecidos por Alexy, o papel da eficácia e
aplicabilidade do direito à saúde é essencial, de vez que é variante
elementar do princípio fundamental da pessoa e do respeito à dig-
nidade humana, que é princípio que norteia e permeia a totalidade
da nossa Lei Fundamental, e ‘sem o qual ela própria acabaria por
renunciar à sua humanidade, perdendo até mesmo sua razão de ser.
(SCHWARTZ, 2001, p. 67.)
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 139

Na mesma linha é o entendimento de Ayeza Schmidt (2014, p. 107):


Nesse particular, nos contratos de plano de saúde, definir no caso
concreto qual atitude afronta o direito à saúde e de tal forma impede
a existência de uma vida digna é relevante para definir os novos
contornos desse contrato, em face das necessidades existenciais
do bem contratado, para o fim de garantir o mínimo existencial ao
usuário de plano de saúde.
Nesta linha de raciocínio, o mínimo existencial, amparado na cláusula
geral da dignidade humana, constitui um parâmetro para realiza-
ção da ponderação entre a liberdade contratual das operadoras de
planos de saúde e as necessidades existenciais dos seus usuários.
Pois, a essencialidade do bem “saúde” no contrato plano de saúde
enseja um tratamento jurídico diferenciado dos contratos com
objeto meramente patrimonial, e a consequente eficácia do direito
fundamental à saúde.
Neste viés, o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal, define que “as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata”. Entende Ingo Sarlet (2002, p. 9) que, através de uma interpre-
tação teleológica e sistemática da Constituição, a norma do artigo 5º, §
1º, “para além de aplicável a todos os direitos fundamentais, apresenta
caráter de norma-princípio, impondo aos órgãos estatais a tarefa de
reconhecerem e imprimirem às normas de direitos e garantias funda-
mentais a maior eficácia e efetividade possível”.
Ainda, conforme o professor Ingo Sarlet (2012, p. 283), é de enten-
dimento unânime na doutrina e jurisprudência brasileiras com relação à
aplicabilidade dos direitos fundamentais que se dirigem diretamente aos
particulares. Vejamos os apontamentos de Ingo Sarlet (2018, p. 336-337):  
Mesmo assim, basta uma leitura superficial dos dispositivos perti-
nentes (arts. 196 a 200) para que se perceba que nos encontramos,
em verdade, no que diz com a forma de positivação, tanto em face de
uma norma definidora de direito, quanto diante de normas de cunho
programático (impositivo), enunciando (no art. 196) que a saúde é
direito de todos e dever do Estado, além de impor aos poderes públi-
cos uma série de tarefas nesta seara (como a de promover políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos, além de estabelecer o acesso universal e igualitário
às ações e prestações nesta esfera). Num segundo momento, a Cons-
tituição remete a regulamentação das ações e serviços de saúde ao
legislador (art. 197), além de criar e fixar as diretrizes do sistema
140 Lucas Funghetto Lazzaretti

único de saúde (art. 198), oportunizando a participação (em nível


complementar) da iniciativa privada na prestação da assistência à
saúde (art. 199), bem como estabelecendo, em caráter exemplifica-
tivo, as atribuições (nos termos da lei) que competem ao sistema
único de saúde (art. 200).
Portanto, é possível que agentes privados prestem serviços de saúde,
conforme dispõe o artigo 199, da Constituição da República (BRASIL,
1988). Destaca o Ministro Marco Aurélio Mello (2020, p. 145) que “essa
natureza híbrida – implementação por particulares em atendimento a
interesse público – acarreta controvérsias quanto à aplicação de normas
cogentes e dispositivas”.
Nessa toada são os ensinamentos do Ministro Marco Aurélio Buzzi
(2020, p. 203):
O princípio básico do direito à saúde, enquanto objeto de política
pública, é a sobrevalorização das medidas preventivas, todavia, sem
prejuízo dos serviços assistenciais. Para tanto, o Estado instituiu
entidades públicas, criando mecanismos de cooperação entre estas e
o setor privado, objetivando uma execução de suas políticas voltadas
à sua garantia, de maneira mais igualitária e universal, observadas
as diferenças regionais e sociais existentes no país.
Após análise do direito fundamental à saúde, adentra-se ao estudo
do setor de saúde suplementar e a abrangência das coberturas das
operadoras de planos de saúde, em relação aos seus beneficiários,
destacando que as operadoras estão obrigadas a fornecer, nos planos
de saúde contratados após a vigência da Lei nº 9.656/98 ou que a esta
foram adaptados, as coberturas e procedimentos incluídos no rol da ANS,
sendo que, qualquer ampliação das coberturas estabelecidas somente
será devida caso haja expressa contratação neste sentido. O referido
entendimento é ratificado pela professora Angélica Carlini, vejamos:
A partir de 1998, no entanto, a entrada em vigor da lei 9.656 e das
medidas provisória que a modificaram; bem como o início do fun-
cionamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar, em 2000,
criaram uma outra situação para os contratos de saúde suplementar,
que se alinharam, entre os mais regulados em todo o país.
Basta lembrar que é uma das poucas relações econômicas em
que tem lugar um plano de referência com coberturas mínimas
obrigatórias para todas as operadoras e, em que existe um rol
de procedimentos que são determinados pelo órgão regulador e
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 141

atualizados a cada dois anos. Em termos de liberdade de iniciativa


esta é, seguramente, uma das menos livres em que pese o fato de
que isso se justifica, como já afirmado aqui, pela peculiaridade do
objeto do contrato que é o acesso a meios de prevenção e manu-
tenção da saúde.
[...]
Com essa caraterística de forte presença do Estado na constru-
ção dos contratos e no acompanhamento de suas consequências para
os usuários, cabe perguntar se a interpretação constitucional a ser
aplicada a esses contratos não deveria, em boa medida, ser calibrada
para a realidade em que eles se inserem. Em outras palavras, quando
o Poder Judiciário decide conflitos decorrentes de contratos de saúde
suplementar está, de alguma forma, determinando se a regulação
estatal é ou não eficiente. No entanto, quando a decisão é contrária
a operadora de saúde e, até punitiva com a determinação de paga-
mento de danos morais, por exemplo, não se aplica nenhuma punição
ao Estado que, por vezes, foi o único mentor da cláusula contratual
ou da restrição imposta ao usuário (CARLINI, 2014, p. 128 e 129).

Nessa seara, e nos termos do alegado na peça contestatória do pro-


cesso nº 5016672-80.2021.8.21.0008, nos casos em que há uma injusta
ampliação da cobertura contratada por força de decisão judicial, essa
condenação é calculada para fins do próximo reajuste da mensalidade a
ser quitada por todos os beneficiários desta mesma relação contratual.
Para se manter o equilíbrio atuarial do contrato, é imprescindível que
não se amplie o risco de maneira desproporcional aos prêmios cobrados,
sob pena de inviabilizar a sustentabilidade da relação contratual.
Ainda, nos mesmos autos da supracitada ação, restou destacado:
Significa também estabelecer a possibilidade de que todos os demais
beneficiários venham a formular pretensões semelhantes judicial-
mente, inviabilizando o funcionamento do setor como um todo.
Deve-se ter em vista que o segmento econômico das operadoras de
planos de saúde suplementar opera com base em mutualismo. Em
síntese, é a reunião de um grupo de segurados expostos a riscos
semelhantes e realizando contraprestações compatíveis com esses
riscos que possibilita o funcionamento do setor.
Isto posto, o plano de saúde nada mais é, em verdade, do que
uma espécie muito particular de contrato de seguro, que, por suas
características, merece a atenção do Estado através de uma agência
reguladora. Com efeito, a importância do objeto do contrato de plano
142 Lucas Funghetto Lazzaretti

de saúde enseja a regulamentação estatal do setor, que é dada pela


ANS, mas isso não permite que se despreze a autonomia da vontade
das partes e a liberdade de contratação, chancelando-se a formulação
de ilimitadas exigências contra as operadoras de planos de saúde,
especialmente quando a autonomia da vontade das partes e a liber-
dade de contratação tenham sido exercidas nos limites dados pelo
Estado, como no caso concreto (2011, Evento 13, CONT1, Página 15)

De forma semelhante descreve Antônio Penteado Mendonça (2010,


p. 51, 55 e 58):
A grande injustiça não são as sentenças obrigarem os planos a
pagarem o que não está coberto. A grande injustiça é penalizar a
totalidade da sociedade, em função do desequilíbrio do mútuo, de
onde saem os recursos, obrigando-o a suportar as indenizações sem
cobertura. (...) Ao estender conceitos e ampliar responsabilidades
para forçar o pagamento de uma indenização que sob sua ótica
deveria ser paga, invariavelmente apenas porque ele imagina que a
seguradora é rica e o segurado é pobre, o juiz não está beneficiando
um pobre diabo desamparado, bem fazendo generosidade com o
chapéu da seguradora. Ao fazer isso, ainda que em casos tristes ou
nos quais alguém pode perder tudo, a sentença está criando um
desarranjo jurídico em função do qual milhares de outros segurados
acabarão pagando um sinistro não coberto.

Outrossim, é digno de nota que a vinculação ao rol da ANS, cuja


matriz é essencialmente técnica, é ratificada pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), conforme os seguintes Enunciados, provenientes da 3ª
Jornada Nacional da Saúde, ocorrida em 18 de maio de 2019:
Enunciado 21: Nos contratos celebrados ou adaptados na forma da
Lei n° 9.656/98, recomenda-se considerar o rol de procedimentos
de cobertura obrigatória elencados nas Resoluções da Agência Na-
cional de Saúde Suplementar, ressalvadas as coberturas adicionais
contratadas;
Enunciado 23: Nas demandas judiciais em que se discutir qualquer
questão relacionada à cobertura contratual vinculada ao rol de
procedimentos e eventos em saúde editado pela Agência Nacional
de Saúde Suplementar, recomenda-se a consulta pela via eletrônica
ou expedição de ofício, a esta agência Reguladora, para os esclareci-
mentos necessários sobre a questão em litígio.
Destarte, conclui-se que o rol da ANS é, sim, um mecanismo fun-
damental para, com segurança jurídica, mitigar as assimetrias de
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 143

informação, de modo a garantir o acesso a medidas essenciais de saúde


por meio de uma lista de procedimentos que necessariamente deverão
ser cobertos pelas operadoras nos contratos de plano de saúde que
comercializam (BINENBOJM, 2020, p. 71).

3. O ROL DA ANS SOB A ÓTICA


DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Destrinchado o setor de saúde suplementar, passamos à análise ju-
risprudencial do entendimento adotado pelo STJ nos casos que envolvam
o rol de procedimentos da ANS.
Até dezembro de 2019 o entendimento do STJ pautava-se, de forma
majoritária, no sentido de o rol de procedimentos ter caráter exempli-
ficativo, ou seja, seriam de cobertura mínima as disposições elencadas
pela agência reguladora do setor de saúde suplementar.
A Terceira Turma do Colegiado definia que “o fato de o procedimento
não constar no rol da ANS não significa que não possa ser exigido pelo
usuário, uma vez que se trata de rol exemplificativo” (AgInt no AREsp
1442296/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, jul-
gado em 23/03/2020, DJe 25/03/2020; AgRg no AREsp 708.082/DF, Rel.
Min. João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 16/02/2016,
DJe 26/02/2016; AgInt no REsp 1929629/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro,
Terceira Turma, julgado em 25/05/2021, DJe 28/05/2021).
O entendimento da 3ª Turma é acompanhado pela maioria dos Tribu-
nais Estaduais, especialmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que
editou a Súmula 102, determinando que “havendo expressa indicação
médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob
o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no
rol de procedimentos da ANS”.
Neste sentido, como dito acima, até dezembro de 2019 a Quarta
Turma do STJ mantinha entendimento semelhante, afirmando:
Consolidou a jurisprudência do STJ o entendimento de que é abusi-
va a negativa de cobertura para o tratamento prescrito pelo médico
para o restabelecimento do usuário de plano de saúde por ausência
de previsão no rol de procedimentos da ANS, em razão de ser ele
144 Lucas Funghetto Lazzaretti

meramente exemplificativo. (AgInt no REsp 1682692/RO, Rel.


Min. Maria Izabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 21/11/2019,
DJe 06/12/2019).
Contudo, a Quarta Turma do STJ, em dezembro de 2019, através de
um overruling (alteração do precedente), passou a adotar entendimento
contrário, consolidando o entendimento que o rol da ANS não teria mais
o caráter exemplificativo, mas sim taxativo. O divisor de água sobreveio
através da decisão emanada no REsp 1.733.013/PR, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020:
3. A elaboração do rol, em linha com o que se deduz do Direito
Comparado, apresenta diretrizes técnicas relevantes, de inegável e
peculiar complexidade, como: utilização dos princípios da Avalia-
ção de Tecnologias em Saúde – ATS; observância aos preceitos da
Saúde Baseada em Evidências – SBE; e resguardo da manutenção
do equilíbrio econômico-financeiro do setor.
4. O rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em
saúde constitui relevante garantia do consumidor para pro-
piciar direito à saúde, com preços acessíveis, contemplando a
camada mais ampla e vulnerável da população. Por conseguinte, em
revisitação ao exame detido e aprofundado do tema, conclui-se que
é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo
e de que a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações
definidas. Esse raciocínio tem o condão de encarecer e efetivamente
padronizar os planos de saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a forne-
cer qualquer tratamento prescrito, restringindo a livre concorrência
e negando vigência aos dispositivos legais que estabelecem o plano-
-referência de assistência à saúde (plano básico) e a possibilidade
de definição contratual de outras coberturas.
5. Quanto à invocação do diploma consumerista pela autora desde
a exordial, é de se observar que as técnicas de interpretação do
Código de Defesa do Consumidor devem reverência ao princípio da
especialidade e ao disposto no art. 4º daquele diploma, que orienta,
por imposição do próprio Código, que todas as suas disposições
estejam voltadas teleologicamente e finalisticamente para a conse-
cução da harmonia e do equilíbrio nas relações entre consumidores
e fornecedores.
6. O rol da ANS é solução concebida pelo legislador para har-
monização da relação contratual, elaborado de acordo com
aferição de segurança, efetividade e impacto econômico. A
uníssona doutrina especializada alerta para a necessidade de não
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 145

se inviabilizar a saúde suplementar. A disciplina contratual exige


uma adequada divisão de ônus e benefícios dos sujeitos como parte
de uma mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso
tem de ser observado tanto em relação à transferência e distribuição
adequada dos riscos quanto à identificação de deveres específicos
do fornecedor para assegurar a sustentabilidade, gerindo custos
de forma racional e prudente. 7. No caso, a operadora do plano de
saúde está amparada pela excludente de responsabilidade civil do
exercício regular de direito, consoante disposto no art. 188, I, do
CC. É incontroverso, constante da própria causa de pedir, que a ré
ofereceu prontamente o procedimento de vertebroplastia, inserido
do rol da ANS, não havendo falar em condenação por danos morais.
(grifo nosso)
Assim, após análise do supracitado acórdão paradigma, pode-se
concluir:
1) que o respeito à legislação, mais especificamente a Lei nº
9.656/98, artigo 10, § 4º, que trata sobre a amplitude das cober-
turas, deverá ser definida por normas editadas pela ANS;
2) o rol de procedimentos segue diretrizes técnicas relevantes,
fazendo-se valer da utilização dos princípios da ATS (Avaliação
de Tecnologia e Saúde), bem como da observância dos princípios
da saúde baseada em evidências;
3) o rol mínimo garante o direito à saúde com preços acessíveis. Não
há como as operadoras de planos de saúde fornecerem tudo e
continuarem ofertando a atual faixa de valores de mensalidades
aos seus beneficiários e;
4) por fim, a necessidade de não inviabilizar a saúde suplementar,
eis que, se o rol fosse exemplificativo, o setor de saúde suplemen-
tar correria sérios riscos de não mais existir, sobrecarregando o
Sistema Único de Saúde e inviabilizando o acesso à saúde tanto
na esfera privada, como na seara pública.
As decisões proferidas posteriormente pela Terceira Turma do STJ
não reconheceram o overruling, mantendo o posicionamento anterior
(AgInt no REsp 1.829.583/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino,
julgado em 22/06/2020, DJe 26/06/2020). O entendimento da referida
Turma pauta-se pelos seguintes fatores:
146 Lucas Funghetto Lazzaretti

1) princípio da função social do contrato;


2) atribuição ao médico assistente para a indicação de tratamento à
doença que acomete o seu paciente, portanto, a seguradora não
deve discutir o tratamento, apenas custeá-lo;
3) o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cober-
tura, mas não o tipo de procedimento e;
4) a morosidade da atualização do rol (bienal).
Referente ao quarto ponto supracitado, vale destacar ser este o prin-
cipal gerador de insatisfação dos operadores do direito que abordam a
presente temática. O Conselho Federal de Farmácia, como amicus curiae
do REsp 1.733.013/PR, declarou que “O prazo de atualização do Rol
seguido pela ANS é condizente com o exigido pelo Ministério da Saúde
para atualização de outras normativas”, citando a Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais e a Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias em Saúde. Por conseguinte, a atualização do Rol atenderia
os critérios exigidos pelas principais autoridades sanitárias do Brasil.
Percebe-se, portanto, que o não reconhecimento, pela Terceira
Turma, da decisão emanada pela Quarta Turma, invalida a criação de
um precedente jurídico no tocante à taxatividade ou não do rol de pro-
cedimentos da ANS.
Elucida-se. Ao analisarmos o precedente judicial percebe-se que este
é oriundo de uma decisão judicial, contudo, não é qualquer decisão judi-
cial que gerará um precedente. Para criá-lo, é necessário enfrentar, como
por exemplo, o point of law, que é a matéria do direito. Isto é, nem toda
decisão judicial gera um precedente, mas todo precedente tem origem
em decisões judiciais. Ademais, o precedente não pode ser confundido
com a jurisprudência ou súmulas, seja ela persuasiva ou vinculante. As
súmulas fazem parte de uma linguagem na qual é descrita as decisões,
ou seja, um enunciado acerca das decisões não tem as mesmas garantias
de um precedente. Nas palavras de Marinoni (2011, p. 217):
Para que existe precedente não basta apenas um enunciado acerca
de questão jurídica, mas é imprescindível que este enunciado tenha
sido elaborado em respeito à adequada participação em contradi-
tório dos litigantes e, assim, tenha surgido como um resultado do
processo judicial, ou melhor, como um verdadeiro resultado do
O setor de saúde suplementar e o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar... 147

debate entre as partes. É certo que se poderia dizer que o enuncia-


do da súmula provém das decisões judiciais, fruto da participação
em contraditório. Acontece que a súmula, só por isso, é diferente,
carecendo de igual legitimidade, ao menos quando se pensa na sua
observância obrigatória ou na sua incidência sobre a esfera jurídica
de outros jurisdicionados.

Tal dissonância entre as turmas acarreta em insegurança jurídica,


pois o destino dos casos, no momento, é questão de sorte(io). A Corte se
afasta de sua função de Corte de Precedentes, que é a de dar unidade ao
Direito mediante a formação de precedentes e o subsequente respeito
ao precedente formado.
Devido a divergência entre a Turmas de Direito Privado do STJ, a
Terceira Turma afetou o REsp 1.867.027/RJ e a discussão foi levada à
Segunda Seção do Tribunal, colegiado que reúne os ministros dessas
duas turmas e uniformiza as teses de Direito Privado. A título elucidativo,
o procedimento de afetação de um recurso à Seção ocorre quando há
posições diferentes sobre um mesmo assunto. O julgamento, que estava
previsto para o dia 28 de abril de 2021, foi retirado de pauta, devido ao
falecimento da recorrida e, posteriormente, realizado acordo entre as
partes, tendo o caso transitado em julgado em 20 de maio de 2021, sem
ter firmado, definitivamente, entendimento uníssono do STJ em relação
ao caráter exemplificativo ou taxativo do rol de procedimentos da ANS.

4. CONCLUSÃO
Através do presente estudo foi possível notar que a limitação dos
riscos no âmbito da saúde suplementar, isto é, a sua predeterminação,
é elementar e fundamental, já que é com base nesta que o valor dos
prêmios e contraprestações é calculado. Contraprestações estas que
visam, essencialmente, haja vista a nevrálgica incidência do princípio
do mutualismo, a formação de um fundo, verdadeira poupança, capaz
de custear, caso ocorram, os riscos pré-determinados.
Ainda, através da abordagem crítica dos dois entendimentos contrá-
rios exarados do STJ, referente ao rol da ANS, restou cristilano a evidente
da insegurança jurídica que tal fato acarreta aos operadores do direito,
majorando a importância da busca dos meios autocompositivos antes
148 Lucas Funghetto Lazzaretti

do ingresso judicial e, em caso de judicialização, faz-se necessário trazer


a posição da respectiva Turma, a fim de contrapor a ideia da existência
de precedente ou jurisprudência consolidada no ponto.
Portanto, para além de possibilitar o entendimento e a aplicabilidade
das normas consumeristas ao campo da saúde suplementar, a presente
pesquisa serviu ao estudo da natureza híbrida dos agentes privados pres-
tarem serviços de saúde, além daqueles já disponibilizados pelo Estado.

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CAPÍTULO VII

Envelhecimento populacional e planos


de saúde: a (i)legitimidade dos reajustes
por faixa etária dos novos idosos

Ana Maria Silva Souza*


Matheus Athayde**

Sumário: 1. Introdução; 2. O envelhecimento populacional: 2.1. Envelhecimento


ativo e novos idosos; 2.2. Acesso à saúde para os idosos; 3. Saúde suplementar,
planos de saúde e o enquadramento por faixa etária; 3.1. Reflexões acerca das
normas infralegais regulamentadoras; 3.2. Reajustes por faixa etária na visão do
STJ; 4. Considerações finais. Referências
Palavras-chave: plano de saúde; envelhecimento populacional; faixa etária;
novos idosos.

1. INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por objetivo precípuo traçar um panorama
do envelhecimento populacional, os seus efeitos para com a saúde suple-
mentar e, por sua vez, analisar o abalo financeiro dos reajustes por faixa
etária nos planos de saúde num contexto em que os idosos constituirão,
em breve futuro, cerca de 30% (trinta por cento) dos beneficiários, ao
passo que a legislação não acompanhou o avanço populacional.

(*) Advogada. Mestre em Ciências do Trabalho e Relações Laborais. Especialista em


Direito Médico e da Saúde. Membro da Comissão Especial de Direito Médico e da
Saúde da OAB/BA.
(**) Advogado. Pós-graduado em Direito Médico e da Saúde. Membro da Comissão Es-
pecial de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA.
152 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

É sabido que o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) promoveu


diversas políticas de proteção ao idoso, entre elas a proibição da dis-
criminação em virtude de cobranças diferenciadas por conta da idade.
No mesmo particular, normas regulamentadoras da saúde suplementar
implementaram faixas etárias excluindo as últimas duas que previam
outrora a possibilidade de reajuste nos planos de saúde dos idosos. No
entanto, não existe um controle efetivo a ponto de garantir que o idoso
não sofra com aumentos abusivos ou mesmo que o reajuste aplicado à
última faixa etária não se desenhe como uma antecipação dos custos.
Quer se dizer que o órgão regulador cuidou tão somente de não infringir
a literalidade da lei.
Noutro plano, discutir-se-á como se dá o envelhecimento popu-
lacional, a fim de se entender quem são os idosos do séc. XXI e, mais
ainda, quem são os novos idosos, ou seja, aqueles que ingressam na
casa sexagenária. Certamente, os idosos do contexto histórico da
promulgação do Estatuto do Idoso não são os mesmos idosos dos
tempos atuais, afinal de contas tanto o Estatuto quanto as normas re-
gulamentadoras têm pelo menos 18 anos de vigência e, nesse ínterim,
a população brasileira envelheceu na proporção em que a expectativa
de vida aumentou.
O critério etário na definição da pessoa idosa não pode ser ana-
lisado de forma exclusiva sem levar em conta questões biológicas,
comportamentais e sociológicas, as quais levam a crer que, nos dias de
hoje, o idoso tem melhor qualidade de vida, considerando os avanços
nas técnicas de medicina, vida social e laboral ativa, além de adoção de
práticas mais saudáveis.
Portanto, as causas do envelhecimento ativo repercutem diretamente
na saúde suplementar, uma vez que o custo per capita do idoso num plano
de saúde é infinitamente superior ao custo das faixas etárias inferiores,
mas o mesmo não acontece com os novos idosos.
Dito isso, considerando o envelhecimento populacional, as normas
regulamentares merecem revisão, notadamente porque a permanência
de jovens e idosos nos planos de saúde se mostrará em curto espaço de
tempo como uma desvantagem, a ponto de desequilibrar o fundo mútuo
e colapsar o mercado de planos de saúde.
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 153

2. O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a população
idosa no mundo seja superior a 1 bilhão. No Brasil, esse contingencial é
de quase 30 milhões de pessoas. De acordo com o Instituto de Estudos de
Saúde Suplementar (IESS), o fenômeno ocorre em função da diminuição
da natalidade em contrapeso ao expressivo aumento da longevidade
(CARNEIRO et al., 2013).
Segundo Renato Veras (2009, p. 549), o Brasil é um “jovem país de
cabelos brancos”. Isso se deve ao fato de que anualmente a população
idosa ganha 650 novos membros. Além disso, o autor enfatiza que viver
mais é uma aspiração das sociedades, contudo, isso se transmuta em
benefício apenas se houver um compasso concomitante com a qualida-
de de vida, o que é um grande desafio frente às questões estruturais e
sociais brasileiras.
Nessa lógica, envelhecimento é conceituado como um “fenômeno
natural inerente ao processo de vida e que acarreta mudanças biop-
sicossociais especificas associadas a passagem do tempo, variando de
indivíduo para individuo” (FERREIRA et al., 2010, p. 357).
No livro “Os Novos Idosos Brasileiros: Muito Além dos 60?”, as auto-
ras, ao discutirem o conceito de idoso, reconhecem haver muitos critérios
para delimitação do termo, sendo o mais usual o etário. Nesta esteira, o
envelhecimento não está diretamente ligado à idade do indivíduo, mas às
alterações de suas condições biológicas, comportamentais e psicológicas
(CAMARANO; PASINATO, 2004). Assim, do ponto de vista social não se
pode agrupar os idosos a partir de um único critério.
Pois bem. Seja “viver mais” ou “envelhecer”, o relevante é o processo
de crescimento da população em atividade, resultado de um amadureci-
mento social. Uma das formas de se medir o envelhecimento populacional
é calcular a velocidade da duplicação da população idosa. Na França e
Estados Unidos, por exemplo, o processo de envelhecimento e duplicação
da população idosa demorou 120 e 70 anos, respectivamente. Por outro
lado, esse processo no Brasil ocorrerá em tão somente 20 anos, entre
2011 e 2032 (CARNEIRO et al., 2013).
Por fim, de acordo com as projeções da Organização Pan-Americana
de Saúde (OPAS), em 2050, a população idosa chegará a 2 bilhões de
154 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

pessoas, representando 20% da população mundial, o que merece atua-


lizações no âmbito legislativo e comportamental (OPAS, 2005).

2.1. Envelhecimento ativo e novos idosos


O termo “ativo”, empregado pela Organização, tem um sentido mais
amplo por estar correlacionado à participação contínua nas questões
sociais, econômicas, culturais, espirituais e civis, entre outras, e não
somente à capacidade de estar fisicamente ativo ou de fazer parte da
força de trabalho. O conceito é inclusivo, no sentido de que aqueles
que estão fora da atividade de trabalho ou com alguma incapacidade,
são considerados ativos à medida que participam de outras dimensões
referenciadas.
A sociedade civil deve ter como meta o envelhecimento ativo, ga-
rantindo aos idosos as oportunidades potenciais para contribuir com o
desenvolvimento sustentável. Para a OMS, a abordagem do envelheci-
mento ativo se baseia no reconhecimento dos direitos humanos a serem
assegurados aos indivíduos com mais de 60 anos, estando lastreados
nos princípios de independência, participação, dignidade, assistência e
autorrealização (OPAS, 2005, p. 14).
Em seus estudos sobre o significado da velhice, Ferreira et al. (2010,
p. 6), conclui que o idoso ativo é uma pessoa responsável que tem ener-
gia, ajuda o próximo e está bem conectado com a própria vida. Segundo
o Autor, já se “evidencia o surgimento de uma nova identidade para o
idoso ancorada em novos conceitos”.
No mesmo sentido, Campos, Ferreira e Vargas (2015, p. 2) pontua
que estudos demonstram que conceitos e dogmas relacionados à velhice
estão sendo desmontados:
Os novos estudos sobre envelhecimento apontam desafios voltados
para a compreensão das condições associadas à possibilidade de
assumir o envelhecimento como um processo positivo e a velhice
como uma etapa da vida que pode ser acrescida de saúde, bem-estar,
prazer e qualidade de vida.
Essa nova identidade, baseada não só em critérios biológicos, mas
autonomia, possibilidades de realizações, satisfação e bem-estar geral,
tem sido denominada pelo termo “novos idosos”. Trata-se de uma figura
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 155

que se opõe a figura de velho, com limitações e perdas. Pode-se dizer


que se trata de um novo paradigma, baseado em conceitos de qualida-
de de vida, através do qual os novos idosos são cada vez estimulados a
se manterem ativos e saudáveis, cultivando bons hábitos de saúde e a
elevada autoestima.
Tais transformações dos conceitos tiveram origem, sem dúvida, na
Constituição Federal de 1988 (CF/1988), a qual implementou políticas de
garantias aos cidadãos, entre eles os idosos, e, por sua vez, no processo
hermenêutico de materialização da própria constituição, repercutindo
no contexto social.
Nesse sentido, merecem destaque os art. 1º – princípio da dignidade
da pessoa humana; art. 3º – vedação a práticas que levem a discrimi-
nação; art. 5º – isonomia material e formal dos indivíduos; art. 203
– políticas de assistência social. Nota-se que a norma constituinte se
preocupou com garantias e proteções legais aos indivíduos da terceira
idade e políticas de assistências com direcionamentos específicos para
a pessoa idosa. Cabe ainda ressalva ao art. 230: “a família, a sociedade
e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida” (BRASIL, 2020).
Assim sendo, conclui-se que o reconhecimento acerca da impor-
tância do idoso para as transformações sociais estimulou a sua efetiva
participação, ao tempo em que possibilitou a quebra de paradigma do
“velho” idoso.

2.2. Acesso à saúde para os idosos


Com o avanço do envelhecimento populacional, conforme já dis-
cutido anteriormente, questões relacionadas à assistência à saúde e o
consequente financiamento do setor são cada vez mais cruciais, princi-
palmente com a tendência de aumento na razão de dependência idosa
(CARNEIRO et al, 2013). Vale salientar que esse aumento não necessa-
riamente significa custos com doenças, mas com à saúde propriamente
dita, já que está relacionada a hábitos e cuidados desenvolvidos ao
longo da vida. Nesse passo, cabe perfeitamente a reflexão de Camarano
e Pasinato (2004, p. 8), as quais expressam:
156 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

Cuidar de uma população idosa saudável é diferente de cuidar de


uma população doente. Os paradigmas de saúde ou os modelos
institucionais são outros determinantes importantes dos custos
de saúde. Portanto, o envelhecimento pode ser visto como uma
conquista ou um problema social, dependendo da maneira como a
sociedade escolhe lidar com ele.

Em que pese os avanços na saúde e medicina, os benefícios advindos


ainda são extensivos apenas para uma parcela da população. Nessa linha,
vale observar que a CF/1988 elegeu a seguridade social como modelo
na busca por um estado de bem-estar social, definindo no art.º 196 que
a saúde é um direito de todos e dever do estado.
No entanto, o constituinte, já sabendo das dificuldades estruturais
brasileiras e com o objetivo de descentralizar o acesso à saúde, autori-
zou a inciativa privada a complementar o serviço por meio de entidades
filantrópicas e sem fins lucrativos (saúde complementar) e empresas
privadas (saúde suplementar).
O serviço suplementar, foco do presente estudo, oferece planos de
saúde coletivos, empresariais e individuais, remunerados mensalmente
pelos particulares. Nesse diapasão, incluem-se ainda aqueles que pagam
pelos serviços de modo particular mediante utilização direta (CAMARA-
NO; PASINATO, 2004).
O setor de saúde suplementar, no Brasil, até março de 2020, registra-
va um total de 47 milhões de beneficiários, cerca de 25% da população.
Desses, 6,6 milhões são idosos com mais de 60 anos, o que corresponde
a 14% do total. No que se refere ao total de idosos, 52% estão na faixa
dos 60 a 69 anos; 30% estão entre 70 e 79 anos e 18% possuem idade
acima de 80 anos (MINAMI, 2020).
Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), quan-
do comparados dados de 2019 e 2020, verifica-se um aumento de 125,4
mil beneficiários com 60 anos ou mais neste último ano. O processo de
transição demográfica, já abordado em capítulo anterior é claramente
perceptível nos planos de saúde. Verifica-se uma prevalência de ido-
sos (MINAMI, 2020), o que se justifica em razão da estrutura etária
dos planos de saúde ser comumente mais envelhecida que a da po-
pulação.
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 157

3. SAÚDE SUPLEMENTAR, PLANOS DE SAÚDE


E O ENQUADRAMENTO POR FAIXA ETÁRIA
Os fatos dão conta de que o indivíduo com mais idade tem grande
impacto financeiro quando atingida a faixa etária de idoso nos contratos
de plano de saúde. Ao longo da vida, o valor despendido em faturas de
planos de saúde só tende a aumentar e, nesse ponto, o indivíduo idoso é
quem mais sofre com os aumentos. No entanto, para entender o porquê
isso acontece é necessário ter conhecimento das regulamentações no
âmbito da saúde suplementar e, notadamente, dos reajustes por faixa
etária. Em tese, justifica-se que os reajustes são necessários para a ma-
nutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Pois bem. Até 1998, o reajuste por faixa etária era previsto, ou pelo
menos deveria, no próprio contrato firmado entre as partes, o que dava,
de certa forma, carta branca às operadoras para impor reajustes que não
chegavam a ser efetivamente comprovados.
O referido ano é marcado pela promulgação da Lei de Planos de
Saúde nº 9.656/1998 (LPS 9656/98), que regulamentou o setor de saúde
suplementar no Brasil. Daí as primeiras limitações a essa atividade sur-
giram.1 Dentre elas, o estabelecimento de faixas etárias com a definição
de grupos de indivíduos por idade pautadas em riscos assumidos pela
operadora, considerando a maior probabilidade de utilização dos servi-
ços médico-hospitalares (GOMES, 2020). No mesmo sentido, acrescenta
Daniel de Macedo Alves Pereira (2020, p. 260-261):
A finalidade de se instituir valores distintos em cada faixa etária é
trazer equilíbrio financeiro ao fundo administrado pela operadora de
plano de saúde, considerando que tanto os jovens quanto os idosos

1. Veja-se o que previa a redação original dos artigos 14 e 15 da Lei: “Art. 14. Em razão
da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, nin-
guém pode ser impedido de participar de planos ou seguros privados de assistência
à saúde. Art. 15. É facultada a variação das contraprestações pecuniárias estabele-
cidas nos contratos de planos e seguros de que trata esta Lei em razão da idade do
consumidor, desde que sejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os per-
centuais de reajuste incidentes em cada uma delas, conforme critérios e parâmetros
gerais fixados pelo CNSP. Parágrafo único. É vedada a variação a que alude o caput
para consumidores com mais de sessenta anos de idade, se já participarem do mes-
mo plano ou seguro, ou sucessor, há mais de dez anos.”
158 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

têm que pagar um valor compatível com os seus perfis de utilização


dos serviços de saúde. Neste sentido, quando um beneficiário muda
de faixa, o valor da sua contraprestação pecuniária é ajustado à sua
nova faixa de risco.
Após a LPS 9656/1998, o Conselho Nacional de Saúde (CONSU)
editou a Resolução nº 06/1998, que estabeleceu 7 faixas etárias, sendo
a última a de 70 anos: I – 0 a 17 anos; II – 18 a 29 anos; III – 30 a 39 anos;
IV – 40 a 49 anos; V – 50 a 59 anos; VI – 60 a 69 anos; VII– 70 anos ou mais.
A Resolução 06/1998 permaneceu vigente até 2003, oportunidade
em que, após grande influência internacional de políticas de proteção
ao Idoso, foi promulgada a Lei 10.741/2003, o Estatuto do Idoso. Den-
tre as demais proteções, o art. 15, parágrafo 3º, previu expressamente
a vedação a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança
de valores diferenciados em razão da idade:
Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por inter-
médio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso
universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações
e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da
saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferen-
cialmente os idosos. (...) § 3º É vedada a discriminação do idoso nos
planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão
da idade. (BRASIL, 1998b).
A cobrança diferenciada por conta do atingimento da faixa etária
de idoso (60+), portanto, passou a ser considerada discriminatória ou
o reajuste seria discriminatório apenas se aplicasse percentuais desar-
razoados? O questionamento será discutido mais à frente.
Para evitar um colapso, a Agência Nacional de Saúde (ANS) editou a
Resolução Normativa nº 63/2003 (RN 63/2003) aumentando de 7 para
10 faixas etárias, sendo que a última seria de 59 anos, além de criar o
regramento de que a última faixa etária não poderia ser superior a seis
vezes o valor da primeira faixa etária. E, não foi só, a variação entre a
7 e 10ª, de igual sorte, não poderia ser superior à variação acumulada
entre a 1ª e 7ª faixas:
Art. 2º Deverão ser adotadas dez faixas etárias, observando-se a
seguinte tabela: I – 0 (zero) a 18 (dezoito) anos; II – 19 (dez enove)
a 23 (vinte e três) anos; III – 24 (vinte e quatro) a 28 (vinte e oito)
anos; IV – 29 (vinte e nove) a 33 (trinta e três) anos; V – 34 (trinta
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 159

e quatro) a 38 (trinta e oito) anos; VI – 39 (trinta e nove) a 43 (qua-


renta e três) anos; VII – 44 (quarenta e quatro) a 48 (quarenta e
oito) anos; VIII – 49 (quarenta e nove) a 53 (cinqüenta e três) anos;
IX – 54 (cinqüenta e quatro) a 58 (cinqüenta e oito) anos; X – 59
(cinqüenta e nove) anos ou mais.
Art. 3º Os percentuais de variação em cada mudança de faixa etária
deverão ser fixados pela operadora, observadas as seguintes con-
dições: I – o valor fixado para a última faixa etária não poderá ser
superior a seis vezes o valor da primeira faixa etária; II – a variação
acumulada entre a sétima e a décima faixas não poderá ser superior
à variação acumulada entre a primeira e a sétima faixas. (BRASIL,
2003)
O aumento das faixas etárias, a priori, criou um equilíbrio e uma
diluição dos riscos no âmbito do mútuo, como também passou a não
mais infringir, pelo menos, literalmente, o Estatuto do Idoso, em seu
o art. 15, parágrafo 3º, segundo o qual “É vedada a discriminação do
idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em
razão da idade”.
Questiona-se, portanto, se a RN 63/2003 não se trata de uma burla
legislativa em que a ANS se utilizou do seu poder regulamentar para abu-
sar do direito ou apenas uma redistribuição do ônus e risco subjetivo em
razão da proibição do reajuste em contratos de planos de saúde de idosos.

3.1. Reflexões acerca das normas infralegais


regulamentadoras
As normas infralegais que regulamentam os reajustes por faixa etária
no âmbito da saúde suplementar tem, pelo menos, 18 anos de vigência.
Além disso, apenas controlam cerca de 20% dos contratos de planos de
saúde em vigência no Brasil:
Tais números, até o mês de março de 2018, demonstram que os
planos de saúde individuais representam 19,6% (dezenove vírgula
seis por cento) do mercado, e os planos coletivos representam
80,4% (oitenta vírgula quatro por cento) do mercado. (...) Tais dados
refletem, em números e em outras palavras, que a ANS somente re-
gula atualmente 19,60% (dezenove vírgula sessenta por cento) do
mercado de saúde suplementar em termos de preço, de regulação
dos reajustes anuais.” E continua mais a frente na p. 65: “Nesta linha
160 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

de raciocínio, observa-se uma aparente grave falha de regulação. A


ANS regula o setor de saúde suplementar, mas, não sabe o preço, o
impacto causado no mercado em sua vertente mais visível, que seria
o preço do produto (TOSTES, 2019, p. 55).

Noutro plano, em 2003, o Brasil tinha expectativa de vida de 71,7


anos (BRASIL, 2005), enquanto no ano de 2019 (data dos últimos dados)
esse número cresceu para 76,6 (IBGE, 2020).
Naturalmente, a primeira impressão que dá é que o novo idoso
ganhou aproximadamente 5 anos de mão de obra ativa, tendo mais
qualidade de vida, de modo que não deveria suportar o ônus do reajuste
abrupto do plano de saúde quando atingida a condição da última faixa
etária, justamente por utilizar menos. Ou seja, antes do Estatuto, aquele
que completava 60 anos sofria um reajuste e ainda passaria por mais
outro aos 70 anos. Com a vedação do art. 15, parágrafo 3º, houve uma an-
tecipação dos custos. Leia-se: uma antecipação do sofrimento financeiro.
A RN 63/2003 da ANS, numa evidente burla legislativa, adequou as
faixas etárias ao objetivo do Estatuto do Idoso, que era proteger os idosos
de reajustes discriminatórios. Simples: o reajuste, antes previsto aos 60,
passou a ser aplicado aos 59. Além de recuar um ano, igualou todos os
indivíduos de 59 ou mais apenas em uma faixa etária. Quer se dizer com
isso que o idoso de 80 anos paga o mesmo valor do plano do idoso de 60.
Hipoteticamente, um indivíduo que completasse 60 anos em 2002
teria o seu plano reajustado em 50% e 10 anos depois, aos 70 anos, em
mais 50%. Após a RN 63/2003 da ANS, um indivíduo que completa 59
anos em 2021 tem o seu plano reajustado em 100%, não sofrendo mais
reajustes por faixa etária.
Sobre o assunto, desde 2004 já se discutia a respeito da possibilidade
de a RN 63/2003 ser abusiva. O Dep. José Aristodemo Pinotti, já falecido,
relator da MPV 148/2003, proferiu o seguinte parecer:
[...] Consideramos abusiva a RN nº 63/2003, quando ela define que
os valores pagos pela última faixa etária sejam seis vezes maiores
que os da primeira, concedendo um aumento de 500%, sobre o
qual ainda haverá correção monetária anual. O que ocorreu foi,
além de tudo, um uso inadequado do Estatuto do Idoso. Antes dele,
esses aumentos eram praticados de forma mais suave até idades
superiores (mais de setenta anos). Depois dele, esses aumentos,
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 161

ao invés de serem eliminados a partir dos 60 anos, foram prensa-


dos e concentrados para até 59 anos, com o agravante de serem
praticados em dobro nas três últimas faixas etárias. Isso agrava,
concretamente, o que já está ocorrendo, ou seja, a inadimplência
dos idosos e sua fuga dos planos de saúde. Entendemos que esse
percentual não pode ser superior a 400% e que os percentuais
de variação em cada mudança de faixa etária devem ser fixados
de forma eqüitativa e equilibrada pela operadora. Propomos que
a variação permitida da primeira para a última faixa etária seja
distribuída de modo a não comprometer financeiramente as últi-
mas faixas. Estaria sendo mantido assim o pacto de solidariedade
intergeracional, recaindo as variações igualmente sobre os consu-
midores de todas as idades. Essa regra além de evitar a penalização
do idoso, garantirá às prestadoras de serviço e operadoras boa dose
de flexibilidade para administrarem através de cálculos atuariais
a concentração de sinistralidade em determinadas faixas etárias
(BRASIL, 2004, p. 14).
No contexto atual, o parecer se mostra totalmente apropriado. Afinal
de contas, impor ao novo idoso um reajuste que pode dobrar ou triplicar
o valor originário e lhe equiparar ao custo do idoso de 80+, aparente-
mente, não corrobora com a solidariedade intergeracional. Isso porque
a OMS observou a partir de estudos científicos que os gastos com saúde
se elevam significativamente apenas no último ou dois últimos anos de
vida de uma pessoa (OMS, 2015). Partindo desse pressuposto e da expec-
tativa de vida, os custos de indivíduos entre 59 e 65 anos para os planos
de saúde são infinitamente mais baixos do que aqueles maiores de 80.
Para as operadoras de planos, o aumento no valor do prêmio é justi-
ficado com estudos técnicos que demonstram que o custo per capita dos
indivíduos com mais de 59 anos é praticamente o dobro dos indivíduos
da penúltima faixa etária, por exemplo (COSTA, 2019). No entanto, tal
aumento não pode acontecer de forma acintosa, caso contrário, o idoso
perderia totalmente o interesse em permanecer naquele fundo mútuo.
Assim, pontua Josiane Gomes (2020, p. 343):
[...] tendo em vista que o risco assistencial aumenta com o avanço da
idade, os valores das mensalidades são estabelecidos de acordo com
a faixa etária, sendo, assim, inconteste que haverá o seu aumento ao
longo da vida do beneficiário.
Contudo, tal raciocínio, por si só, levaria à exclusão dos idosos
dos contratos de plano de saúde, por não conseguirem arcar com o
162 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

valor das mensalidades. Por isso, há a sua modulação pelo princípio


da solidariedade intergeracional, que impõe aos contratantes mais
jovens o custeio de parte dos gastos gerados pelos mais velhos, o
que viabiliza a permanência do vínculo contratual com pessoas
pertencentes aos dois extremos etários.
Nas últimas décadas, a população idosa do mundo e do Brasil
envelheceu mais a ponto de se prever que em 2030 a população idosa
deve ultrapassar o número de crianças de 0 a 14 anos (IBGE, 2021),
ocorrendo uma “virada populacional”. Certamente, os 70 não são
os novos 60, porém os 65, provavelmente, sim. A discussão gira em
torno, portanto, da legitimidade ou não do reajuste aplicado na úl-
tima faixa etária numa realidade em que os novos idosos, cada vez
mais vívidos, integram a mesma faixa de todos idosos, em que pese a
heterogeneidade.
Sendo assim, a regulamentação estudada não evita aumentos
abruptos na última faixa etária e merece a devida análise, pois o en-
velhecimento populacional acarretará diversas consequências para os
planos de saúde:
1) os jovens pagarão mais proporcionalmente para se manter no
plano de saúde;
2) sendo maior parte dos beneficiários, os idosos serão cobrados
em dobro;
3) o plano de saúde será tão caro que apenas privilegiados poderão
contratar2;
4) o fundo mútuo não encontrará equilíbrio, uma vez que será
desvantajoso aos jovens e idosos.

2. Nesse sentido, pontua Barletta, 2010, p. 203: “Observe-se que pessoas que se assegu-
ram contra a doença por planos privados de saúde podem ser pobres ou ricas. Con-
tudo, as que discutem cláusulas abusivas ou impedimentos lesivos levantados pelo
plano em momentos dramáticos de suas vidas, precisando da tutela do Judiciário
para usufruir um direito, não são ricas. Essas pagam pelo serviço de saúde e depois
decidem acerca de se restituírem ou não pela via do Judiciário. São os contribuintes
pobres ou os que não possuem condições de arcar com o tratamento do qual neces-
sitam, que morrem ou sofrem demasiadamente ao aguardar uma posição favorável
do órgão jurisdicional”.
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 163

3.2. Reajustes por faixa etária na visão do STJ


Diversos são os julgados no Superior Tribunal de Justiça a respeito da
possibilidade de aumento dos planos de saúde quando o indivíduo atinge
a última faixa etária3, e a controvérsia ainda é existente. Em alguns casos,
os consumidores buscam guarida na justiça alegando que o Estatuto do
Idoso deveria retroagir aos contratos firmados antes de 2004, noutros,
o objeto da lide diz respeito ao requerimento de revisão e nulidade do
reajuste por faixa etária com base no art. 51, IV, do Código do Direito do
Consumidor (CDC), por se tratar da aplicação de percentuais desarra-
zoados e sem qualquer comprovação atuarial de como a operadora de
plano de saúde encontrou o percentual aplicado.
Por outro lado, as operadoras de plano de saúde argumentam que
cumprem rigorosamente a Lei 9.656/1998, a Resolução 06/1998 e a
RN 63/2003 e os percentuais aplicados estão devidamente previstos
no contrato, assim como a lei não deve retroagir sob o risco de gerar
insegurança jurídica, ofendendo o art. 5º, XXXVI, da CF/1988.
Para o presente estudo, analisar-se-á o REsp 1.568.244/RJ, de Re-
latoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 19/12/2016, que
fixou a tese nº 952 do STJ:
O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar
fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde
que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas
expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não
sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, con-
cretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o
consumidor ou discriminem o idoso.
Dentre os argumentos lançados no acórdão, merecem ênfase:
1) a necessidade de previsão clara em contrato das faixas etárias e
percentual aplicado, sob pena de ser passível de revisão;
2) o plano de saúde é um fundo mútuo e deve ter equilíbrio dos
custos com pagamentos proporcionalmente maiores dos mais

3. Destacam-se os REsp 809.329, REsp 889.406, REsp 866.840, REsp 989.380, REsp
1.280.211, AgRg no AREsp 257.898, AgRg no AREsp 95.973, AgRg nos EDcl no REsp
1.231.015, REsp 1.299.481, REsp 1.381.606 e o REsp 1.568.244.
164 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

jovens e diluição dos custos entre todas as faixas etárias de


beneficiários, o que consubstancia o princípio da solidariedade
intergeracional;
3) o risco assistencial dos idosos é superior ao dos jovens, de modo
que é necessário que o valor cobrado seja compatível com o perfil
de utilização;
4) o único fator para categorização dos consumidores de planos
de saúde é a idade – faixas etárias. Demais fatores, a exemplo de
gênero, endereço, hábitos e profissão são vedados;
5) deve-se evitar a seleção adversa, isto é, processo de aumento
demasiado do valor cobrado aos consumidores que teoricamente
tem o custo mais baixo, tendo por consequência a saída do mútuo;
6) as normas regulamentares da ANS devem ser respeitadas;
7) o lucro predatório deve ser rechaçado;
8) o percentual aplicado no reajuste por faixa etária deve possuir
base atuarial idônea.
Por último, o STJ entendeu que o art. 15, parágrafo 3º, da Lei nº
10.741/2003, veda a discriminação desproporcional, ou seja, aquele
reajuste sem pertinência alguma, que só vise o lucro.
O texto de lei, segundo o STJ, não sugere que o reajuste aplicado em
razão da idade do indivíduo seja exclusivamente discriminatório, mas
tão somente se o reajuste não tenha base atuarial e seja desarrazoado.
Veja-se:
É que a norma do art. 15, § 3º, da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do
Idoso) apenas inibe o reajuste que consubstanciar discriminação
desproporcional ao idoso, ou seja, o reajuste baseado no simples fato
de a pessoa ser idosa, sem pertinência alguma com o incremento do
risco assistencial acobertado pelo contrato.
No mesmo sentido, o voto do Min. João Otávio de Noronha, quando
do julgamento do REsp nº 1.381.606/DF:
O aumento da idade do segurado implica a necessidade de maior
assistência médica. Em razão disso, a Lei n. 9.656/1998 assegurou
a possibilidade de reajuste da mensalidade de plano ou seguro de
saúde em razão da mudança de faixa etária do segurado.
Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 165

Essa norma não confronta o art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso, que
veda a discriminação consistente na cobrança de valores diferen-
ciados em razão da idade. Discriminação traz em si uma conotação
negativa, no sentido do injusto, e assim é que deve ser interpretada
a vedação estabelecida no referido estatuto.
Na hipótese dos autos, o aumento do valor do prêmio decorreu
do maior risco, ou seja, da maior necessidade de utilização dos servi-
ços segurados, e não do simples advento da mudança de faixa etária.
O Min. Raul Araújo, em outro julgado simbólico, manifestou-se sobre
o tema da seguinte forma:
[...] não se extrai de tal norma interpretação que determine, abs-
tratamente, que se repute abusivo todo e qualquer reajuste que se
baseie em mudança de faixa etária, como pretende o promovente
desta ação civil pública, mas tão somente o reajuste discriminante,
desarrazoado, que, em concreto, traduza verdadeiro fator de dis-
criminação do idoso, justamente por visar dificultar ou impedir
sua permanência no plano. (STJ. AgRg no REsp: 1228862 Relator:
Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Publicação: DJ 11/02/2014)
Veja-se que não é uma novidade o STJ enfrentar a matéria. No
entanto, respondendo a questionamento anterior, a discussão que
envolve a “discriminação”, citada no art. 15, § 3º, do Estatuto do Idoso,
apresentou-se de forma vazia, superficial. Dizer que o reajuste não é
aplicado por conta do advento da mudança de faixa etária, mas sim
porque o indivíduo carrega um risco subjetivo maior, é dizer o mesmo
com outras palavras.
Ora, se o indivíduo completa 59 anos e, por consequência, lhe é
aplicado um reajuste é justamente porque ele atingiu uma faixa etária
do contrato que, com base em estudos atuariais, utiliza-se mais do plano
de saúde. No entanto, o enquadramento desconsidera por completo a
heterogeneidade dos idosos e, notadamente, os novos idosos, aqueles
que acabam de ingressar na faixa dos sessenta. Logo, para compensar
todos os custos de uma faixa etária que pode ir dos 59 a 100 anos, por
exemplo, há uma sobrecarga dos novos idosos, o que torna tão discri-
minatório quanto cobrar valores sem base atuarial.
Por outro lado, também não se chegou a plenário a discussão que
envolva a burla da regulamentação da ANS na RN 63/2003 quando an-
tecipou o último reajuste por faixa etária, dos 60 para 59. Ou seja, não
166 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

se sabe ao certo se a antecipação e a criação de outras 3 faixas etárias


indicam um maior equilíbrio do mútuo, afinal de contas se fosse o con-
trário a judicialização de processos dessa natureza não teria aumentado
em mais de 130% nos últimos anos (CNJ, 2019).
Sobre a questão processual, importante ressaltar que a revisão
contratual depende do interesse individual do beneficiário em ingressar
judicialmente, pois na visão do STJ a abusividade deve ser analisada em
cada caso concreto. Assim, pontuou Pereira (2020, p. 265):
[...] a abusividade dos aumentos das mensalidades de plano de
saúde por inserção do usuário em nova faixa de risco, sobretudo
de participantes idosos, deverá ser aferida em cada caso concreto.
A razoabilidade ou abusividade do percentual de reajuste passa,
necessariamente pela demonstração por intermédio de prova
pericial atuarial com laudo subscrito por perito com formação em
ciência atuarial.
No que tange especificamente os planos de saúde coletivos, o STJ
afetou seis recursos especiais e ainda estão pendentes de julgamento.
A Corte decidirá se estende os efeitos do Tema nº 952 aos contratos
coletivos, validando ou não os reajustes por faixa etária e o ônus da
prova da base atuarial4.
A discussão que teve início em 2006 ainda permeia no STJ e, muito
embora exista uma tese firmada e outra em formação, não se levou em
consideração que os idosos constituirão, num breve futuro, grande fatia
do bolo dos planos de saúde, enquanto os novos idosos terão a maior
participação em que pese o risco subjetivo seja menor.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, o avançar da idade cria para o plano de saúde uma maior
probabilidade da sua utilização, confirmando o risco subjetivo inerente
a pessoa idosa, o que não acontece com os novos idosos. Nesse sentido,
o regime instaurado pela CF/88 e por todo arcabouço legislativo que
foi tratado aqui, deve nortear o tratamento digno ao idoso, o qual figura

4. ProAfR no REsp 1.716.113/DF.


Envelhecimento populacional e planos de saúde: a (i)legitimidade... 167

como vulnerável na relação entre fornecedor e consumidor, atraindo


para si, inclusive, revisões legislativas no âmbito da saúde, haja vista o
aumento da expectativa de vida.
Vale ressaltar, portanto, a tramitação do Projeto de Lei 5383/2019,
que tem por objetivo alterar a legislação vigente para que as pessoas
sejam consideradas idosas a partir dos 65 anos de idade, e não mais 60.
O texto propõe alteração na Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e
a Lei nº 10.048/2000 (Prioridade de Atendimento) e está aguardando
votação na Câmara dos Deputados.
A medida legislativa se inspira, inclusive, na Reforma da Previdência
(PEC 06/2019), que entrou em vigor em março de 2020, alterando a
idade da aposentadoria de 65 anos para homens e de 62 para mulheres.
Toda a argumentação construída para a reforma da previdência levava
em conta o aumento da expectativa média de vida da população brasileira
e o contexto de que a visão sob o envelhecimento havia se modificado em
todo o mundo, como já discutido no presente estudo. Todavia, a mesma
reflexão que subsidiou a reforma da previdência e o referido projeto
de Lei não subsidia as ações da ANS e decisões dos Tribunais de Justiça
quando se discute reajustes por faixa etária.
Em face do exposto, a estratégia de agrupamento por faixa etária
atualmente vigente é inadequada e desproporcional para os novos idosos,
já que se baseia num risco subjetivo inexistente. As análises demostram
que os valores praticados nos reajustes possuem caráter de antecipação
de risco e não se coadunam com o novo perfil populacional.
Assim, a presença de indivíduos que possuem entre 59 e 65 anos no
grupo da última faixa etária, na qual se encontram os demais idosos, é
no mínimo injustificável. Caso não revisada, abusividades continuarão
a ser cometidas contra os novos idosos, ocasionando um desinteresse
em permanecer no plano de saúde, pois a única tendência possível é
de uma curva ascendente nos preços, considerando o envelhecimento
populacional nos próximos anos.
Logo, a regulamentação estudada merece revisão a fim de adequar
o envelhecimento populacional aos fundos de planos de saúde, sob pena
de colapsar o mercado.
168 Ana Maria Silva Souza e Matheus Athayde

REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO VIII

Uma análise da ADI 5.529:


a não prorrogação da vigência
das patentes farmacêuticas como forma
de assegurar a função social
e o direito à saúde

Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo*


Henrique Costa Princhak**

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve exame sobre o contexto do registro de paten-


tes na área da saúde e a assistência farmacêutica; 3. Uma análise da ADI 5529
do STF: a não prorrogação da vigência das patentes farmacêuticas como forma
de assegurar a função social e o direito à saúde; 4. Considerações finais; 5.
Referências.
Palavras-chave: Patentes; Direito à saúde; Função social.

(*) Advogada. Pós-graduanda em Direito Médico, Bioética e Direito à Saúde (2020) e


Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (2013), ambas pela
Faculdade Baiana de Direito. Mediadora Judicial inscrita no Cadastro Nacional de
Justiça (CNJ TJBA) (2017). Vice-presidente da Comissão de Direito Médico e da
Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, Subseção de Vitória da
Conquista (2019 – 2021). Vice-presidente da Comissão de Conciliação, Mediação
e Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, Subseção de Vitória
da Conquista (2019 – 2021). Membro do Comitê Jurídico da Associação de Pessoas
com Doenças Inflamatórias Intestinais – DII Brasil. Integrante de grupos de pesqui-
sa nas áreas de direito médico, direito à saúde, direito sanitário, métodos adequa-
dos de resolução de conflitos, na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Bahia, no
GEDISA/USP, entre outros.
(**) Advogado. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Católica do Salvador (PPGD/UCSAL), na linha de pesquisa Bioética,
Alteridade e Meio Ambiente Social, vinculada à área de concentração Alteridade
172 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

1. INTRODUÇÃO
Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.529/
DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a inconstitucionali-
dade do parágrafo único do art. 40 da Lei 9.279/1996, a chamada Lei de
Propriedade Industrial (LPI), a qual permitia a extensão dos prazos de
patentes para invenção e utilidade, ao estabelecer que, a contar da data da
concessão, o prazo de vigência não poderia ser inferior a sete anos para
a patente de modelo de utilidade e dez anos para a patente de invenção.
A decisão foi proferida com modulação de efeitos, no dia 12 de maio
de 2021, passando a valer a partir da publicação da ata do julgamento,
exceto para as ações judiciais propostas até o dia 7 de abril de 2021 e
para patentes com extensão de prazo relacionadas a produtos e proces-
sos farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde,
tendo a decisão, para ambas as situações, efeito retroativo, perdendo
todas as extensões de prazo concedidas com base no parágrafo único
do art. 40 da LPI.
Houve o reconhecimento de que o Estado não pode transferir para a
sociedade a responsabilidade e consequências de sua ineficiência, pois
o consumidor seria o principal lesado. Em relação às patentes ligadas
à área de saúde, constatou-se que a extensão tinha grande incidência
em razão da complexidade, que acarretava grande mora, e da grande
quantidade de requerimentos, tendo reflexos na efetivação deste direito
fundamental social, na medida em que dificultava a adoção de melhores
políticas públicas e o acesso ao tratamento adequado em virtude dos
altos preços cobrados por aqueles detentores da proteção patentária.
Desse modo, o presente artigo busca analisar os efeitos da decisão
da ADI nº 5.529/DF no que diz respeito às patentes relacionadas a
saúde, tendo em vista que essa temática possui relevância tanto para o
Direito quanto para sociedade. Cabe adiantar que se entende que a não

e Direitos Fundamentais. Especializando em Direito Médico, da Saúde e Bioética


pela Faculdade Baiana de Direito. Bacharel em Direito pela Faculdade Baiana de
Direito (2020). Integrante do Grupo de Pesquisa JUSBIOMED – Direito, Bioética e
Medicina (UNEB/CNPq), do VIDA (UFBA) e da Comissão Especial de Direito Médico
e da Saúde da OAB/BA. Pesquisador CAPES.
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 173

prorrogação da vigência de patentes farmacêuticas consiste em uma


ferramenta essencial para assegurar a função social da propriedade
intelectual e para garantir, de modo efetivo, o direito à saúde.
Foi utilizada, na construção deste trabalho, pesquisa predominan-
temente bibliográfica, por meio de livros, artigos, periódicos, textos
normativos, pareces de órgãos da administração pública e de diversas
outras instituições, assim como jurisprudência. Ademais, vale destacar
a natureza quantitativa da pesquisa, uma vez que foi buscada uma ava-
liação e interpretação do objeto pretendido, e que o método utilizado
consistiu no hipotético-dedutivo, por meio do falseamento de hipóteses
para verificação de sua autenticidade.

2. BREVE EXAME SOBRE O CONTEXTO DE REGISTRO


DE PATENTES NA ÁREA DA SAÚDE
E A ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA
O direito de propriedade intelectual consiste no conjunto de “atri-
butos jurídicos que delimitam o campo de atuação do sujeito frente às
suas criações”, configurados como bens jurídicos incorpóreos. Dentre as
categorias de propriedade intelectual existentes é perceptível a proprie-
dade industrial, que envolve patentes e marcas. A patente diz respeito a
uma descoberta, a invenção de um produto, bem como ao seu processo
de fabricação ou aperfeiçoamento. Seria um título de propriedade
provisória de exploração de um bem, que permite que se recupere o
que foi investido na pesquisa e desenvolvimento, e que eventualmente,
se obtenha lucro, por própria conta e risco, durante um certo período
(ARANHA, 2016, p. 56-57).
Para as empresas farmacêuticas multinacionais, o direito à patente
é uma ferramenta importante, pois, ao possibilitar a exclusividade de
exploração temporária, dificulta que outros competidores entrem no
mercado e, dessa forma, possibilita que o titular da patente detenha o
poder de definição dos preços dos fármacos durante o tempo em que
estiver protegido por este instituto (CHAVES, 2006, p. 09). Ressalta-se
que a patente é temporária, e segundo a Lei de Propriedade Industrial,
a de invenção possui o prazo de vinte anos, enquanto a de modelo e
174 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

de utilidade, o prazo é de quinze anos, contados da data de depósito


(BRASIL, 1996).
Todavia, evidencia-se que a patente possui também uma função
social: a sua contribuição para o enriquecimento do conhecimento
compartilhado e a possibilidade de a sociedade usufruir os benefícios
desta nova invenção (ARANHA, 2016, p. 57). Isto é, a patente se sub-
mete aos ditames da função social, que possuem o objetivo de evitar
que a propriedade represente um fim a si mesmo, realizando apenas
os interesses de um único sujeito. Assim, a propriedade representa um
dever de seu titular e que deve ser utilizado de acordo com o bem-estar
de toda a sociedade. No caso da patente de medicamentos, a sua função
social é cumprida quando o patenteamento se direciona para as práticas
de defesa do direito à saúde, pois estes bens são fundamentais para o
tratamento médico dos indivíduos (BEZERRA, 2018).
O interesse na patente de medicamentos surgiu no Pós Segunda
Guerra Mundial, partindo da indústria farmacêutica norte-americana,
que se fortaleceu durante esse período e visava uma maior expansão de
seu mercado de consumo, sendo motivado pelo interesse nacional de
proteger seus produtos de violações por terceiros. Ao longo dos anos,
o patenteamento de medicamentos tornou-se mais rigoroso com o fito
de garantir uma maior segurança acerca dos seus efeitos, o que tornou
também esse procedimento mais caro, pois exige-se uma maior capaci-
dade econômica para que se possa sustentar todas as fases de pesquisa
até a autorização e comercialização do produto (BEZERRA, 2018, p. 103).
Observa-se que o registro de requisições da patente de um medi-
camento ocorre muito tempos antes de ocorrer o teste clínico, ou seja,
da droga ser testada em seres humanos, logo que se estabelece uma
expectativa de que um novo composto ou um novo uso possa ser paten-
teável (LEMMENS; BOUCHARD, 2009, p. 53). Muitas vezes, é perceptível
que os laboratórios desejam viabilizar os ensaios clínicos o mais rápido
possível, para que possa ocorrer logo a comercialização do novo medi-
camento, e não seja perdido o tempo de exclusividade sobre aquele bem
(DE LUCCIA, 2010, p. 338).
Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994,
foram assinados diversos acordos multilaterais que dizem respeito às
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 175

áreas distintas do comércio internacional. Dentre estes, vale destacar o


Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Rela-
cionados ao Comércio – Acordo ADPIC ou acordo TRIPS – que estipulou
regras mínimas que devem ser adotadas por todos os países membros
da OMC, como o Brasil, sobre os direitos de propriedade intelectual.
Uma das consequências desse Acordo, foi a obrigação, que todos os
membros passaram a ter, de reconhecer patentes para todos os campos
tecnológicos, inclusive produtos e processos farmacêuticos (CHAVES,
2006, p. 14-15).
Ressalta-se que este sistema instituído pelo Acordo TRIPS, com o
fito de promover a inovação tecnológica, permite que os países membros
adotem em suas legislações algumas medidas necessárias para proteger
a saúde pública e assegurar a promoção do interesse público em certos
setores importantes para o desenvolvimento econômico e tecnológico.
Logo, é possível a inclusão de flexibilidades ou salvaguardas com o objeti-
vo de mitigar o impacto da patente em determinados bens considerados
essenciais, como por exemplo, a licença compulsória1, prevista no artigo
31 do texto do Acordo (CHAVES et al, 2008).
Pode-se argumentar que esses mecanismos de salvaguardas se-
riam capazes de influenciar de maneira negativa a pesquisa científica,
sobretudo no que diz respeito às patentes no campo da saúde, vindo a
ser, inclusive, um desestímulo à construção de conhecimento científico,
uma vez que muitos medicamentos são desenvolvidos por empresas
privadas que almejam lucro (DE LUCCIA, 2010, p. 338-339).
Todavia, deve ser lembrado que, embora o direito de patentes te-
nha se desenvolvido para assegurar um incentivo à pesquisa, o objeto
envolvido na patente de medicamentos consiste na saúde, o maior bem

1. A utilização do instituto do licenciamento compulsório pelo Estado, também conhe-


cido como “quebra de patente”, possui a finalidade de garantir o cumprimento da
função social da propriedade e evitar o uso abusivo do bem. Nestes casos, há uma
intervenção estatal que implica na ruptura, ou desconstituição, do direito de explo-
ração exclusiva do produto conferida pela patente (BEZERRA, 2018, p. 111-112). Em
outras palavras, o licenciamento compulsório seria uma autorização, concedida pela
autoridade nacional a um terceiro, para que este possa explorar o objeto protegido
por uma patente, sem a necessidade de obter o consentimento do titular (NOGUEI-
RA, 2013, p. 35).
176 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

do ser humano, que deve receber uma atenção priorizada e se sobrepor


às disposições políticas, econômicas e ideológicas. Flexibilizar patentes
da área da saúde consiste em uma ferramenta importante para garantir
o acesso a medicamentos. Nos países em desenvolvimento, até mesmo
os fármacos que são básicos não estariam ao alcance para a maioria da
sociedade, sendo um dos maiores empecilhos os preços em razão dos
custos envolvidos na fabricação (ARAÚJO et al, 2009, p. 186-188).
Ademais, em novembro de 2001, ocorreu a Conferência Ministerial
da OMC, em Doha, para discutir pontos controversos do Acordo TRIPS,
sendo elaborada a “Declaração sobre TRIPS e Saúde Pública”. Reconhe-
cendo o problema de saúde pública dos países em desenvolvimento,
foi determinada que a assinatura do Acordo não deve impedir que
um país promova políticas para assegurar o acesso a medicamentos.
Cada país tem o direito de determinar o que seria uma situação de
“emergência” e quando que se pode declarar a licença compulsória.
Também se enfatizou a necessidade de ser protegida a propriedade
intelectual para que sejam desenvolvidos novos fármacos (OLIVEIRA;
MORENO, 2007, p. 207-208).
Diversos fatores influenciaram a elaboração da Declaração sobre
TRIPS e Saúde Pública. Dentre eles seria possível destacar: a posição
dos países em desenvolvimento que trabalharam de forma conjunta,
operando em bloco; o interesse de alguns países membros da OMC, como
os EUA e o Canadá, em não serem “prisioneiros” do sistema de patente
que eles mesmo criaram, pois desejava-se quebrar patente de determi-
nados medicamentos em certas circunstâncias; e as pressões realizadas
pelo crescente e ativo movimento internacional das Organizações Não
Governamentais (ONGs) que garantiram que a questão das patentes
tivesse uma alta visibilidade (T’HOEN, 2002, p. 42-43).
Evidencia-se a importância da Declaração de Doha, ao apontar a
saúde pública e o acesso a medicamentos como as principais questões
que necessitam de uma atenção especial na implementação do TRIPS,
pois foi reforçado que os produtos farmacêuticos precisam ser tratados
de forma diferente dos demais produtos, no que diz respeito à proteção
da propriedade intelectual. Não obstante, também foi ressaltado que a
proteção da propriedade, em verdade, serve ao interesse público, não
apenas ao setor comercial (T’HOEN, 2002, p. 45).
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 177

Cabe reforçar que o direito à saúde, previsto no rol de Direitos Sociais


da Constituição Federal, possui tanto uma vertente de natureza negativa
que compreende o direito de exigir do Estado, ou terceiros, que se abste-
nha de qualquer ato que prejudique a saúde de outrem, quanto uma de
natureza positiva, consistente no direito às medidas e prestações estatais
com o fito de prevenir doenças, assim como assegurar seu tratamento
(BERGESTEIN, 2013, p. 41). A saúde, conforme a Constituição, é um
“direito de todos e dever do Estado” que deve ser “garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1998).
Ademais, as ações e serviços públicos de saúde “integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. O Siste-
ma Único de Saúde (SUS) é financiado com recursos orçamentários da
Seguridade Social de todos os entes federativos, além de outras fontes,
e é organizado com base na descentralização, atendimento integral e
participação comunitária (BRASIL, 1998). A Lei 8.080/90, norma infra-
constitucional reguladora do Sistema Único de Saúde, ao estabelecer o
campo de atuação do SUS, destaca a “formulação da política de medica-
mentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse
para a saúde e a participação na sua produção” (BRASIL, 1990).
Deste modo, impende salientar que foi aprovada em 1998, a Política
Nacional de Medicamentos (PNM) que possui como diretrizes principais:
a) o estabelecimento da relação de medicamentos essenciais;
b) a reorientação da assistência farmacêutica;
c) o estímulo à produção de medicamentos; e
d) a sua regulamentação sanitária (MS, 1998). Vale destacar que
assistência farmacêutica abrange um conjunto de atividades que
se relacionam ao acesso e ao uso racional de medicamentos.
Isto é, suas ações se destinam a complementar e apoiar as ações de
atenção à saúde, sendo assim, parte integrante e essencial em todos os
seus níveis de complexidade (MEDEIROS, 2018, p. 25).
Acrescenta-se que a Lei 12.401/2011 buscou definir de que
modo ocorreria a assistência farmacêutica integral (BRASIL, 2011).
178 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

A assistência farmacêutica integral, enquanto direito de todos os


cidadãos, envolve a dispensação de medicamentos e produtos de
interesse em saúde, conforme as diretrizes terapêuticas definidas em
protocolo clínico e com base nas relações de medicamentos instituídas
pelos gestores federais do SUS, assim como, a oferta de procedimen-
tos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, de
acordo com as tabelas elaboradas pelo gestor federal do Sistema Único
(MEDEIROS, 2018, p. 25).
Os medicamentos são essenciais para garantir a efetivação do
direito à saúde, na medida em que possibilita que vidas sejam salvas
e que haja uma melhoria na condição de saúde dos sujeitos. Levando
em consideração que determinados fármacos consistem no único meio
para o tratamento de certas enfermidades e que, apesar dos avanços
dos Sistema de Saúde, ainda existem obstáculos no que diz respeito ao
acesso à produtos farmacêuticos, destacam-se a adoção de flexibilidade
às patentes, como o licenciamento compulsório, como alternativa que
possibilita a competição no mercado, e consequentemente, a redução
de preço (CHAVES, 2006, p. 09-14).
Ressalta-se que o papel do Estado, em relação às políticas sanitárias
de acesso a medicamento, não deve se esgotar com a entrega material
dos medicamentos para quem necessita. É preciso ir além e garantir que
seja assegurado a qualidade destes medicamentos através de ferramen-
tas de controle apropriadas, bem como, o seu uso racional por meio de
políticas informativas e de educação e intervir na fixação dos preços dos
medicamentos para que o seu custo elevado não seja um óbice para o
acesso da população (BERGEL, 2006, p. 147-149).
As desigualdades na área da saúde estariam diretamente relacio-
nadas com as desigualdades sociais, logo, ações efetivas com o objetivo
de proporcionar um acesso mais igualitário aos serviços de saúde são
relevantes para reduzir as diferenças que existem entre os grupos so-
ciais e se relacionam ao adoecer e ao morrer. Assim, o reconhecimento
da existência de necessidades diferentes para os indivíduos que são
também “diferentes” é essencial para atingir uma igualdade de direitos
(COBUCCI; DUARTE, 2013, p. 63).
Ao serem implementadas políticas públicas sanitárias, como a de
incentivo à produção de medicamentos genéricos, por exemplo, que
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 179

possui como finalidade a redução de custos, e o acesso à fármacos por


meio dos programas de assistência farmacêutica, devem prevalecer os
princípios da beneficência e da justiça. Isto é, deve-se buscar a promoção
do bem-estar e melhoria na qualidade de vida dos indivíduos e serem
priorizados metas e programas com critérios éticos, levando em conta
a equidade na distribuição dos recursos em saúde (ARAÚJO, et al, 2009,
p. 184-188).
Ou seja, tendo em vista que a aplicação de flexibilidades às patentes
é um tema que merece ser objeto de análise da Bioética, ética aplicada
que possibilita uma reflexão prática acerca das moralidades no campo
da saúde, proporcionando, através de suas ferramentas teóricas e meto-
dológicas, impactos significativos nas discussões dos problemas éticos,
devem ser observados a beneficência e a justiça: princípios essenciais
da ética biomédica (GARRAFA, 2005, p. 125-126).
O princípio da beneficência consiste na obrigação moral de agir em
benefício do outro, que envolve tanto a propiciação de benefícios, quanto
a sua ponderação, em relação a possíveis desvantagens. Já o princípio da
justiça compreende o conceito de justiça distributiva: de uma distribui-
ção justa, equitativa e apropriada dentro de uma sociedade, por meio de
normas que possibilitam a cooperação social (BEAUCHAMP; CHILDRESS,
2002, p. 281-351). O ideal de justiça deve ser ajustado ao conceito de
equidade que “busca que os iguais sejam tratados de forma igual e os
desiguais, de forma desigual” (BERGEL, 2006, p. 153).
Devem também prevalecer nas políticas sanitárias de acesso à me-
dicamentos, os valores da responsabilidade e da solidariedade. A ética
da responsabilidade envolveria a definição de prioridades nos investi-
mentos estatais, isto é, na alocação de recursos dirigidos a um setor. O
Estado diante de situações que representam verdadeiros dilemas éticos,
possui a responsabilidade de acompanhar as mudanças tecnológicas e
aplica-las de maneira adequada, de forma a contemplar o ser humano
integralmente (ARAÚJO et al, 2009, p. 184-186).
Ademais, devem ser comprometidos todos os esforços dirigidos ao
alcance de uma solidariedade entre os povos e nações na luta por um
acesso universal a medicamentos (BERGEL, 2006, p. 160). A solidarie-
dade evidencia a existência de uma realidade social que diz respeito à
180 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

interdependência de todos os homens. Deste modo, cada um dos indi-


víduos “é sempre devedor do outro em cada uma das suas realizações”
(NEVES, 2009, p. 03).
Neste sentido, impende ressaltar que embora o direito a patentes
seja um instrumento relevante pois garante um incentivo à pesquisa
científica e ao desenvolvimento, o que é importante, principalmente na
área da saúde, no que diz respeito a criação de novos medicamentos,
destaca-se que a patente pode dificultar o acesso a certos tratamentos
tendo em vista que as empresas multinacionais farmacêuticas visam,
principalmente auferir lucro, o que impacta no preço dos produtos.
Assim, deve-se atentar para a função social das patentes, que no caso
dos medicamentos, estaria sendo cumprida quando o patenteamento é
voltado para as práticas de defesa ao direito à saúde. Evidencia-se que
cabe ao Estado garantir o acesso a medicamentos através de políticas
públicas para assegurar o direito à saúde, o que envolve também a sua
intervenção na fixação dos preços para que estes não sejam um obstá-
culo para a efetivação deste direito fundamental. É essencial que sejam
observados princípios da Bioética como a justiça e a beneficência, e os
deveres de responsabilidade e solidariedade, para que não haja um óbi-
ce na aplicação de políticas públicas sanitárias em razão das patentes.

3. UMA ANÁLISE DA ADI 5529 DO STF:


A NÃO PRORROGAÇÃO DA VIGÊNCIA DAS PATENTES
FARMACÊUTICAS COMO FORMA DE ASSEGURAR
A FUNÇÃO SOCIAL E O DIREITO À SAÚDE
Em 18.05.2016 a Procuradoria Geral da República (PGR) distribuiu
perante o Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade nº 5.529, contra o parágrafo único, do art. 40, da Lei nº 9.2792, de
14 de maio de 1996, que procura regular direitos e obrigações relativos

2. Lei nº 9.279/96, art. 40. A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos
e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito.
Parágrafo único. O prazo de vigência não será inferior a 10 (dez) anos para a patente
de invenção e a 7 (sete) anos para a patente de modelo de utilidade, a contar da data
de concessão, ressalvada a hipótese de o INPI estar impedido de proceder ao exa-
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 181

à propriedade industrial. O dispositivo combatido prevê a hipótese de


vigência diferida para patentes ao estabelecer que, ao contar da data da
concessão, o prazo de vigência não poderia ser inferior a sete anos para
a patente de modelo de utilidade e dez anos para a patente de invenção,
o que, em sua conclusão, poderia assegurar uma patente perene a partir
da inoperância do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI)
em detrimento do interesse público (BRASIL, 2016).
Como fundamento do pedido de inconstitucionalidade da extensão
do prazo de patentes, foi arguido que a Constituição Federal assegura
a temporariedade da proteção patentária, tendo em vista o interesse
social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; a segurança
jurídica e isonomia entre todos, sem distinção de qualquer natureza; a
obrigação do Estado em assegurar a ordem econômica, a liberdade de
concorrência e, ao mesmo tempo, a existência digna, a justiça social e
a defesa do consumidor; E ainda deveria ser assegurado, em âmbito
administrativo e judicial, a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação; e que o Estado deveria respon-
der objetivamente pelos danos que causar a terceiros, em desobediência
aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência (BRASIL, 2016).
Tal situação decorre da grande quantidade de requerimentos de
concessão de patentes, associado, algumas vezes, à participação de tercei-
ros no tramite do processo administrativo – como é o caso das patentes
farmacêuticas –, à demora para análise desses pedidos e às limitações
humanas e materiais dos órgãos de concessão, o que acarreta o chamado
backlog, ou seja, o congestionamento das solicitações.
A PGR arguiu que o represamento de requerimentos de proteção
intelectual é uma situação a nível mundial – estando presente nos Estados
Unidos, na Europa, entre outros –, não sendo uma situação exclusiva do
Brasil, que possui uma legislação que incentiva as empresas a fazerem
muitos protocolos de patentes de invenção ou utilidade como ferramenta
estratégica, já que conseguem a proteção patentária provisória durante

me de mérito do pedido, por pendência judicial comprovada ou por motivo de força


maior (BRASIL, 1996).
182 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

toda a tramitação do processo administrativo de concessão – sendo ga-


rantido até mesmo indenização pela exploração indevida do objeto da
patente durante essa fase3, assegurando, assim, mercados, efetuando,
muitas vezes, a cobrança de valores exorbitantes por seus produtos, e,
muitas vezes, ao final da análise, esses requerimentos são concluídos
como não patenteáveis (BRASIL, 2016).
Registra-se que, antes da referida ação, a temática foi levada ao STF
através da ADIN nº 5.091/DF, de autoria da Associação Brasileira das
Indústrias de Química Fina, Biotecnologias e suas Especialidades (ABI-
FINA), e relatoria do Ministro Luiz Fux. Todavia, a referida ação não foi
conhecida em virtude de concluir-se pela ilegitimidade ativa da entidade
classista para propor ações de controle de constitucionalidade, na forma
do art. 103 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2013).
Com o fim de dar continuidade à discussão, a entidade de classe
requereu à Procuradoria Geral da República pedido de ajuizamento de
Ação Direta de Inconstitucionalidade, por conexão à ADIN nº 5.091/DF, o
que resultou na ADI nº 5.596/DF de relatoria do Ministro Dias Toffoli. No
requerimento, a ABIFINA apontou todos os dispositivos constitucionais
que estavam sendo lesados com a vigência do parágrafo único, do art.
40, da LPI – conforme os fundamentos da PGR-, e fez especial destaque
para a manifestação da procuradoria na ADIN nº 5091/DF sobre a in-
constitucionalidade do dispositivo, bem como o aviltamento do Estado
pela maximização dos preços de medicamentos adquiridos com dispen-
sa licitatória para cumprir o art. 196 da CF/88, e o concorrente que é
onerado com a impossibilidade de ingressar no mercado após o prazo
de 20 anos ou 15 anos, a depender do tipo de patente (BRASIL, 2016).
Para embasar o pedido foram colacionados pareceres jurídicos do
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, que em sua
manifestação sobre o tema registrou que – “Por isso, à toda evidência, o
parágrafo único do artigo 40 da lei n. 9.279/96 afronta a Constituição.
Subverte o caráter temporário do privilégio, privilégio temporário de

3. Lei 9.279/96, art. 44. Ao titular da patente é assegurado o direito de obter inde-
nização pela exploração indevida de seu objeto, inclusive em relação à exploração
ocorrida entre a data da publicação do pedido e a da concessão da patente (BRASIL,
1996).
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 183

utilização de patentes, na medida em que torna variável, incerto e inde-


terminável seu prazo de vigência”, e do jurista e professor Denis Borges
Barbosa que sobre o tema registrou que “seria adequado responsabilizar
o INPI pelo retardo indevido, mas nunca a sociedade, que tem retardado
a satisfação do seu interesse em haver a patente em domínio público o
mais adequadamente possível” (BRASIL, 2016).
Ademais, diversos foram os pedidos de habilitação como amicus
curiae por associações ligadas aos ramos potencialmente afetados pela
ADI como, por exemplo, o da Associação Brasileira das Indústrias de
Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades – ABIFINA, autora
da ADIN nº 5091/DF. No caso, os posicionamentos contrários à incons-
titucionalidade do parágrafo único, do art. 40, da LPI, argumentam que
os prazos estabelecidos pelo dispositivo impugnado são determinados,
que seria uma forma alternativa do cálculo do prazo de vigência de uma
patente, que vigorará ou por 20 anos contados do depósito do pedido,
ou por 10 contados de sua concessão para patentes de inovação; ou por
15 anos contados do depósito do pedido ou por 7 anos contados de sua
concessão para patentes de utilidades. Ou seja, defendem que não haveria
indeterminação, e sim, duas formas de se calcular o prazo do privilégio
patentário trazendo solidez e certeza da aplicabilidade do dispositivo,
levando em consideração o seu tempo de vigência (BRASIL, 2016).
Apontaram que a CF/88, art. 5º, XXIX, assegura o privilégio de forma
temporária e que a supressão do parágrafo único, do art. 40, da LPI pos-
sibilitaria que aqueles que investiram dinheiro, conhecimento e tempo
no desenvolvimento da patente nunca sejam recompensados por conta
de um prazo de exclusividade irrisório ou inexistente. Ainda, registram
que o atraso do INPI teria origem no grande crescimento do número
de depósitos de patentes após a edição da Lei nº 9.279/1996, a falta de
autonomia financeira da instituição, que tem seu orçamento vinculado ao
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, que existe a evasão
de examinadores do INPI para cargos com melhores remunerações, e
que inexiste o uso abusivo e intencional do dispositivo (BRASIL, 2016).
Seguindo a análise, a corrente defensora da prorrogação paten-
tária sustentam que, de acordo com informação fornecida pela Or-
ganização Mundial da Saúde, e ao contrário do sustentado pela PGR,
e todas as associações habilitadas como amicus curiae favoráveis à
184 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

inconstitucionalidade da norma, um titular de patente somente consegue


efetivamente usufruir do privilégio obtido por um período estimado de
dez anos, pois as patentes são depositadas geralmente em uma fase muito
inicial do desenvolvimento do produto, quando não é possível ainda a sua
comercialização. Pontuam a necessidade de se transcorrer todas essas
etapas, não somente por imposição legal, mas principalmente para que
a decisão final seja certa e não gere insegurança, inclusive, ressaltam que
poucas decisões do INPI são judicializadas por conta de todo o cuidado
e critérios adotados no processo de concessão (BRASIL, 2016).
No mais, registram que nenhum direito relacionado a uma patente
existe antes de ela ser deferida, por força do disposto no art. 38 da Lei
nº 9.279/96, e que somente quando é concedida a patente, na data e
através de publicação do respectivo ato de expedição da carta-patente,
é que surgem os direitos de seu titular. Assim, informam que a ninguém
interessa mais um exame rápido do pedido de patente do que ao titular
do direito patentário, concluindo que aqueles que questionam a norma
pretendem se valer do investimento alheio, copiando as informações
que foram objeto destes investimentos, tempo e conhecimento para ser
desenvolvido (BRASIL, 2016).
Como reflexo natural do reconhecimento da inconstitucionalidade,
a corrente contrária aponta que haveriam menos investimentos em
conhecimento e tecnologia, o que contrariaria os termos do inciso XXIX
do artigo 5°, da CF/88 que resguarda, além dos interesses sociais, "o
desenvolvimento tecnológico e econômico do País", além de poder ter
como reflexos inúmeras demandas judicias, contrariando o inciso IV
do artigo 1°, inciso II do artigo 3°, caput, incisos III, IV e IV e parágrafo
único, do inciso V, do artigo 170 e art. 219 da CF/88.
Por fim, apontam a necessidade de modulação dos efeitos de uma
eventual decisão favorável à inconstitucionalidade, em atenção ao
princípio constitucional da segurança jurídica e se valendo da prerro-
gativa prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/99, o qual determina que
a decisão tenha efeito apenas após o trânsito em julgado, não afetando
quaisquer pedidos de patente já apresentados no Brasil ou no exterior,
por meio do Sistema Internacional de Patentes – PCT, e que a inobser-
vância disso poderia acarretar a quebra de confiança nas instituições
(BRASIL, 2016).
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 185

Por outro lado, além dos fundamentos arguidos pela PGR, a corrente
que apoia a inconstitucionalidade argumenta que a proteção patentária
estabelecida no dispositivo impugnado vai contra o interesse social por
estender o monopólio sobre uma tecnologia, afetando a concorrência, a
capacidade do SUS e os consumidores individuais de arcar com os custos
da compra de medicamentos. Assim, ratificam a visão de violação da
temporalidade da norma, da lesão à segurança jurídica e transferência
do ônus da ineficiência da administração pública à população (BRASIL,
2016).
No caso das patentes farmacêuticas, registram-se que a concessão
da prorrogação da patente dificulta a efetivação de políticas públicas na
área da saúde, além de restringir o acesso ao tratamento adequado para
grande parte da população, em razão dos altos preços cobrados pelo de-
tentor da patente, pois impede o efeito de redução de preços provocado
pela livre concorrência entre companhias de referência e produtores de
genéricos, além de impedir a produção direta por laboratórios públicos.
Assim, o período de vigência da patente não deve ultrapassar o estabe-
lecido em acordos de âmbito internacional, não devendo ser permitido
qualquer tipo de extensão, visto que tal situação incide nas realidades
individuais de pacientes e no orçamento empenhado para a aquisição
de medicamentos.
Sobre o tema, apesar da incidência teórica do art. 40, parágrafo
único, da Lei nº 9279/96 ser aplicável a qualquer seara tecnológica de
fato, até pela própria complexidade e agentes envolvidos, vê-se que são
as patentes farmacêuticas/agroquímicas as que geram a maior mora
administrativa na análise do pedido de concessão patentária.
Também, é importante destacar que, do protocolo do pedido de
concessão das patentes é efetuado o exame formal preliminar e, se devi-
damente instruído, será protocolizado considerando a data de depósito
a da sua apresentação; após, será mantido em sigilo durante 18 meses
contados da data de depósito ou da prioridade mais antiga, quando
houver, e decorrido o referido prazo será publicado o pedido, sendo que
esta publicação pode ser antecipada a requerimento do depositante.
Com a publicação, e até o final do exame, que não ocorrerá antes
de decorridos 60 dias da publicação do pedido, os interessados podem
186 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

apresentar documentos e informações para subsidiarem o exame. Ade-


mais, o depositante ou qualquer interessado possuem o prazo de 36
meses para requerer o exame do pedido de patente, contados da data
do depósito, sob pena do arquivamento do pedido.
Em virtude da Portaria nº 736, de 2 de maio de 2014, e conforme o
art. 229-C da Lei nº 9.279/96, os produtos ou processos farmacêuticos
considerados de interesse para as políticas de medicamentos ou de as-
sistência farmacêutica no âmbito do SUS deverão passar por exame de
prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Assim, realizado o exame formal pelo INPI o procedimento passa para
a concessão da prévia anuência da ANVISA (BRASIL, 2014).
Assim, a ANVISA emitirá decisão consubstanciada em parecer à luz
da saúde pública, identificando os pedidos de patente de produtos ou
processos farmacêuticos de interesse para as políticas de medicamentos
ou de assistência farmacêutica no âmbito do SUS. E, conforme Portaria
nº 736, de 2 de maio de 2014, para fins do exame de prévia anuência, de
acordo com o art. 229-C da Lei nº 9.279/96, são considerados de inte-
resse para as políticas de medicamentos ou de assistência farmacêutica
no âmbito do SUS os produtos ou processos farmacêuticos que com-
preendam ou resultem em substância constante da Portaria nº 2.888/
GM/MS, de 30 de dezembro de 2014 e suas atualizações, conforme os
grupos definidos abaixo:
I. antivirais e antirretrovirais;
II. doenças negligenciadas;
III. doenças degenerativas (Alzheimer / Parkinson );
IV. imunossupressores;
V. doenças mentais (antipsicóticos / anticonvulsivantes);
VI. produtos obtidos por rotas biológicas;
VII. vacinas e soros; VIII – hemoderivados; e
IX. produtos oncológicos.
Ainda, o parágrafo único, do art. 1º, da Portaria nº 736, de 2 de maio
de 2014 registra que, quando o objeto do pedido de invenção não constar
na lista de substâncias da referida portaria, deverá ser considerado de
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 187

interesse para as políticas de medicamentos ou de assistência farmacêu-


tica no âmbito do SUS, para fins do exame de prévia anuência, aqueles
relacionados aos grupos definidos no "caput" deste artigo (MS, 2014).
A Portaria Conjunta nº 1/MS/ANVISA, de 12 de abril de 2017, es-
tabelecia que, quando a análise da ANVISA concluir pela não anuência,
o pedido seria encaminhado ao INPI que publicaria a denegação da
anuência e o arquivamento definitivo do pedido. Tal situação causava
um conflito entre as instituições sendo também uma das causas para a
demora na análise dos pedidos de concessão de patentes (MS, 2017).
Assim, com o fito de dirimir os conflitos existentes foi publicada a
Portaria Conjunta nº 2, de 20 de outubro de 2017, instituindo o Grupo
de Articulação Interinstitucional (GAI) com atribuições de analisar e
sugerir o estabelecimento de mecanismos, procedimentos e possíveis
instrumentos formais necessários à articulação entre a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA) e o Instituto Nacional da Propriedade
Industrial (INPI); e analisar e sugerir entendimentos comuns sobre a
interpretação das condições de patenteabilidade para a harmonização de
entendimentos técnicos, buscando minimizar divergências na avaliação
de pedidos de patentes farmacêuticos que sejam de interesse para as
políticas de medicamentos e de assistência farmacêutica no âmbito do
Sistema Único de Saúde – SUS (MS, 2017).
Com o exame de prévia anuência pela ANVISA, o pedido de patente
vai para a fase de exame técnico do pedido quando o INPI verificará se
a matéria reivindicada atende aos requisitos de patenteabilidade esta-
belecidos nos arts. 8º, 9º, 10, 11, 13, 14, 15 e 18 da LPI; bem como se
atende às condições estabelecidas nos arts. 22 a 25 da LPI.
Todavia, esse exame somente pode ser realizado pelo INPI se for
requerido pelo depositante, ou seja, há um prazo de até três anos entre
o depósito de um pedido e o requerimento de exame técnico. Nos autos
da ADI nº 9.279/96/DF, a instituição se manifestou no sentido de que
não lhe deve ser associada a uma ineficiência durante esse período,
visto que sua atuação somente pode ocorrer após provocação. Por essa
razão, o INPI, como medida para evitar o represamento de pedidos,
vem adotando o “Plano de Combate ao Backlog de Pedidos de Patente”,
procurando atuar de forma diligente na análise daqueles pedidos em
188 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

que o exame técnico foi requerido pelo depositante e que ainda não
estão decididos, de forma a não computar o prazo legal previsto para o
requerimento de exame (ME, 2019).
Ademais, seguindo com a análise da ADI Nº 9279/DF, em 24 de
fevereiro de 2021, o Procurador-Geral da República apresentou pedido
de Tutela Provisória de Urgência requerendo a suspensão imediata
dos efeitos do parágrafo único, do art. 40, da Lei nº 9.279/1996. Em
seu pedido de urgência, arguiu fato superveniente em virtude da crise
sanitária ocasionada pela pandemia de COVID-19 e o impacto direto da
ação no direito fundamental à saúde com o impedimento da indústria
farmacêutica produzir medicamentos genéricos contra o novo corona-
vírus e suas atuais e futuras variantes (BRASIL, 2021).
Em 07 de abril de 2021, o Ministro Relator Dias Toffolli proferiu
decisão conhecendo a procedência da ação e votando no sentido de que
fosse declarada a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40
da Lei nº 9.279/1996, reconhecendo-se o estado de coisas inconstitu-
cional no que tange à vigência das patentes no Brasil. No que se refere
à modulação dos efeitos, considerando que o parágrafo único do art.
40 da LPI estaria vigente há 25 anos e já produziu amplos efeitos, por
razões de segurança jurídica e interesse social, propôs a modulação dos
efeitos conferindo a ela efeito ex nunc, ou seja, a partir da publicação da
ata deste julgamento (BRASIL, 2021).
No caso, não seriam atingidas pela declaração de inconstitucionali-
dade as patentes já deferidas e ainda em vigor em virtude da extensão
prevista no preceito questionado. Contudo, para as ações judiciais em
curso que eventualmente tenham como objeto a constitucionalidade do
parágrafo único do art. 40 da LPI e sobre as patentes concedidas com
extensão de prazo relacionadas a produtos e processos farmacêuticos e
a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde, propôs efeito ex tunc,
esclarecendo que não implicaria em queda de patentes visto que estaria
assegurado a vigência da exclusividade pelo período previsto no caput
do art. 40 (BRASIL, 2021).
Entre outras coisas, em seu voto, registrou que, até que o exame
técnico seja requerido, o INPI não pode proceder com a análise de
patenteabilidade da matéria pleiteada e, em geral, os pedidos somente
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 189

são realizados perto do fim desse prazo, de forma que, por até três anos
o processo fica paralisado no INPI. Destacou que, com a expedição da
carta-patente, surge para o titular o direito de obter indenização pela ex-
ploração indevida do objeto patenteado, inclusive, em relação ao período
entre a publicação do pedido e a concessão da patente, como preceitua
o art. 44 da Lei nº 9279/96. Assim, a proteção patentária conferida re-
troagiria ao momento inicial do processo, o que seria um impeditivo aos
concorrentes que porventura cogitem explorar indevidamente o objeto
protegido durante a tramitação do pedido (BRASIL, 2021).
Sobre o parágrafo único do art. 40 da LPI, objeto da ação de incons-
titucionalidade, registrou a problemática do dispositivo na medida em
que acaba por tornar o prazo de vigência das patentes variável e, não se
sabendo o prazo final da vigência de uma patente no Brasil até o momento
em que esta é efetivamente concedida (BRASIL, 2021).
Ao seu ver, tal indeterminação, por si só, gera a violação da seguran-
ça jurídica da temporariedade patentária, do princípio da eficiência da
administração pública, dos princípios da ordem econômica e do direito à
saúde, tendo como consequência a ausência de limitação temporal para a
proteção patentária no Brasil ultrapassando os limites da razoabilidade
destacando, de forma negativa, o Brasil, quando se trata de proteção
da propriedade industrial, e muito frequentemente as proteções aqui
vigentes já estão em domínio público no exterior e com preços muito
mais acessíveis (BRASIL, 2021).
No caso das patentes de produtos e processos farmacêuticos, re-
gistrou que, em levantamento efetuado pelo TCU, entre 2008 e 2014, a
quase totalidade dos pedidos incidiu na previsão do parágrafo único do
art. 40 da LPI. E, em razão de tal incidência, o poder público é onerado
por ser grande comprador para fornecimento dos produtos por meio de
suas políticas de saúde (BRASIL, 2021).
Concluiu-se que, o INPI opera em situação precária, com processos
de trabalho ineficazes, defasagem tecnológica e carência de recursos
humanos, o que o posiciona em patamar inferior aos seus equivalentes
no plano internacional, e que tal situação seria um contrassenso já que se
trata de um órgão estatal cuja função é impulsionar o desenvolvimento
tecnológico e a inovação no país (BRASIL, 2021).
190 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

Ademais, após todos os esclarecimentos prestados pelo INPI e as


manifestações da PGR, do Presidente da República, do Senado, da AGU,
e das associações habilitadas como amicus curiae de ramos potencial-
mente afetados pela ação de inconstitucionalidade, a ADI nº 5596/DF
foi levada ao plenário do STF, em 06 de maio de 2021, que entendeu
por declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da
Lei nº 9.279/1996, nos termos do voto do Relator Ministro Dias Toffolli
(BRASIL, 2021).
Em 12 de maio de 2021, houve a modulação dos efeitos da decisão
de declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 40 da
LPI, conferindo-se efeitos ex nunc, a partir da publicação da ata deste
julgamento, de forma a se manter as extensões de prazo concedidas
com base no preceito legal, mantendo, assim, a validade das patentes já
concedidas e ainda vigentes em decorrência do aludido preceito, exceto
para as ações judiciais propostas até o dia 7 de abril de 2021 e as paten-
tes que tenham sido concedidas com extensão de prazo relacionadas a
produtos e processos farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de
uso em saúde, tendo a decisão para essas situações ex tunc, resultando na
perda das extensões de prazo concedidas com base no parágrafo único
do art. 40 da LPI, respeitado o prazo de vigência da patente estabelecido
no caput do art. 40 da Lei 9.279/1996.
A decisão do STF sinaliza um olhar mais humanizado e menos mer-
cantilista da saúde e que “sem patente, as vacinas contra a Covid-19
deixariam de ser mercadorias e voltariam a ser soluções de conheci-
mento e técnicas, disponíveis e reprodutíveis em qualquer território”
(GURGEL apud MAÇULO, 2021). Nesse sentido, o medicamento reveste-
-se de essencialidade à promoção da vida, e a proteção da propriedade
intelectual merece o sopesar dos valores conflitantes quando se está
diante de situações que tornam necessário o acesso ao medicamento,
mas inacessível materialmente.
Não podemos deixar de considerar que, conforme sinalizado em
parecer do jurista Denis Borges Barbosa na ADI nº 5.529, que na Lei
nº 9.279/96 existiam dois dispositivos que se voltavam a tutelar os
interesses do depositante da patente durante o período anterior à con-
cessão, que seriam a possibilidade de indenização pelo uso indevido
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 191

do invento durante a proteção patentária provisória, e o prazo mínimo


após a concessão, a despeito da sociedade. E, nas palavras de Nuno Pires
de Carvalho, jurista português integrante da Organização Mundial da
Propriedade Intelectual, seria uma “armadilha” contra os países que
garantem extensão real do período o qual os direitos de patente podem
ser aplicados e retroação (DE CARVALHO, 2010).
A extensão prevista no parágrafo único do art. 40 da LPI é medida que
não encontra nenhuma justificativa (CERQUEIRA, 2010), na medida que
inexiste qualquer prejuízo decorrente do atraso na avaliação realizada
pelo INPI (Brasil, 2013) pela possibilidade de retroação.
Segundo pesquisas efetuadas pelo Instituto de Economia da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) verificou que, entre 2013 e
2016, a extensão da patente de apenas nove medicamentos ampliou os
gastos em saúde em aproximadamente 2 bilhões de reais (PARANHOS,
2016). Assim, no atual contexto onde são efetuados inúmeros ataques
ao direito à saúde, com o seu subfinanciamento – em especial devido à
Emenda Constitucional nº 95/2016 (BRASIL, 2016), e o preço insusten-
tável dos novos medicamentos – implicando em crescente participação
desses na totalidade dos gastos em saúde – fazem com que questões
estruturais, como a propriedade intelectual, sejam temas importantes no
cumprimento dos direitos fundamentais previstos em nossa constituição
(ANDRADE et al, 2021).
Então, a decisão proferida pelo STF, por sua modulação de efeitos di-
ferente para as patentes farmacêuticas, apesar de ter efeitos sobre todos
os tipos de registros de patentes efetuados no Brasil, procurou corrigir
falhas do legislador brasileiro nos processos estruturais de tratamento
das propriedades industriais no Brasil que expressavam conflitos fun-
damentais para a saúde pública, e com consequências diretas na oferta
da prestação dos serviços em saúde (FISS, 2017). Isto é, busca-se com
esta decisão garantir o acesso a medicamentos mais baratos e, desta
forma, a efetivação ao direito à saúde.
192 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso em questão, percebeu-se a importância do sistema de pro-
teção patentária para o desenvolvimento tecnológico e econômico, visto
que devem ser estabelecidas todas as garantias para aquele que investe
na elaboração da tecnologia. Contudo, ressalta-se que a patente também
a sua função social, isto é, deve atender não apenas interesses indivi-
duais, mas ser utilizado de modo a proporcionar o bem-estar para toda
a sociedade. Isto é, deve atender não apenas interesses individuais, mas
ser utilizado de modo a proporcionar o bem-estar para toda a sociedade.
O presente trabalho evidenciou que, contrariamente aos objetivos do
Acordo TRIPs da OMC, no Brasil, não houve um maior número de pedidos
de patentes feitos por nacionais ou mesmo estrangeiros residentes no
país, quer por meio de investimento direto de capital estrangeiro, quer
por meio de difusão de tecnologia supostamente propiciada pela conces-
são de patentes, e a proteção estaria funcionando como mecanismo de
transferência de renda no fluxo inverso do estipulado por seus objetivos.
Com a pandemia do coronavírus, houve o aumento da pressão sobre
os sistemas de saúde de forma global, elevando a demanda por insumos
em toda a cadeia de atendimento no intuito de amenizar os sintomas
da doença e para o tratamento de suas complicações. A pandemia evi-
denciou a necessidade premente de reavaliação do dispositivo que por
anos vem fomentando distorções, abusos, e altos gastos do Estado que
– no caso dos medicamentos-, é obrigado a adquiri-los por altos valores
daqueles que estão protegidos pela extensão da proteção patentária,
quando poderia tê-los adquiridos de empresas concorrentes por valores
menores, ou participado do processo de produção, protegendo interesses
da Administração Pública e da sociedade ao buscar a economicidade e a
vantajosidade, considerando-se preços, qualidade, tecnologia e benefí-
cios sociais, e fomentando o desenvolvimento tecnológico e o intercâmbio
de conhecimentos para a inovação no âmbito das instituições públicas
e das entidades privadas.
Registre-se que grande parcela da população não possui recursos
para aquisição de medicamentos nas farmácias, sendo dependente do
sistema público de saúde. O direito à saúde também é prestado pelo
Estado através da assistência farmacêutica, devendo participar do
Uma análise da ADI 5.529: a não prorrogação da vigência das patentes... 193

processo de produção reduzindo a dependência produtiva e tecnológica


para atender as necessidades de saúde da população brasileira a curto,
médio e longo prazos, seguindo os princípios constitucionais do acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços de saúde.
De fato, das informações e dados prestados pelo INPI nos autos
da ADI 5596 vê-se que nos últimos anos vem adotando projetos como
ferramentas de combate ao backlog, através da informatização e dis-
ponibilização do sistema e-patentes, o trâmite prioritário abrangendo
diversas modalidades e custos, inclusive, com modalidade de trâmite
prioritário de pedidos de patente relacionados a produtos e processos
farmacêuticos e a equipamentos e/ou materiais de uso em saúde, para
o diagnóstico, profilaxia e tratamento da COVID-19, e já vem se obser-
vando uma crescente redução da aplicabilidade do parágrafo único, do
art. 40, da LPI.
Na interpretação do STF, e de algumas manifestações ocorridas
nos autos da ADI nº 5596/DF, o parágrafo único do art. 40 da LPI teria
sido instituído com o objetivo de compensar o acúmulo de pedidos
de patentes, contudo, a situação ocorre desde a instituição da Lei nº
9.279/1996, e mesmo que o INPI venha a superar o atraso crônico na
análise dos pedidos de patentes a inconstitucionalidade da norma que
continuaria a existir dando margem para condutas de retardamento do
processo administrativo, retroalimentando o backlog, em direta afronta
aos princípios da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CF),
da eficiência administrativa (art. 37, caput, CF), dificultando a adoção
de melhores políticas públicas e o acesso ao tratamento adequado em
virtude dos altos preços cobrados por aqueles detentores da proteção
patentária.
Assim, o STF corrigiu uma falha das políticas brasileiras de proteção
à propriedade industrial garantindo ao SUS a possibilidade de acesso
a medicamentos mais baratos, o que significa aumentar as chances de
atender mais necessidades em saúde.
194 Flávia Mendes Moreira de Andrade Mélo e Henrique Costa Princhak

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CAPÍTULO IX

Responsabilidade civil do Estado


em casos de danos provenientes
da vacinação

Luana Reis Ferreira*


Daniela Brito Mercuri**

Sumário: 1. Introdução; 2. Breve histórico acerca da vacinação no Brasil; 3. Refle-


xões bioéticas acerca da vacina compulsória; 4. Responsabilidade civil do Estado;
5. Compensação de danos decorrentes da vacinação. 6. Conclusão; Referências.
Palavras-chave: Vacinação. Bioética. Responsabilidade Civil. Compensação de
danos.

1. INTRODUÇÃO
Com os benefícios advindos do desenvolvimento e avanço tecno-
lógico da Ciência para a vida e saúde, merece destaque os atinentes à
vacinação. Com alto potencial imunizante e grande probabilidade de
erradicação de doenças infecciosas, a vacinação pode ser considerada
um dos maiores instrumentos profiláticos no combate a doenças infec-
tocontagiosas.

(*) Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade UNIME de Ciências Jurídicas. Espe-
cialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito. Especializan-
da em Direito Médico, da Saúde e Bioética pela Faculdade Baiana de Direito. Integra
a Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA. Integra o grupo de
pesquisa “Estudo de Casos em Direito Médico e da Saúde” promovido pela OAB/BA.
E-mail: luanareis.adv@gmail.com.
(**) Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
– UFMS. Especializanda em Direito Médico pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais– PUC Minas. Integra o grupo de pesquisa “Estudo de Casos em Direi-
to Médico e da Saúde” promovido pela OAB/BA. E-mail: dbmercuri@gmail.com.
200 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

Conquanto, ainda que irrisório comparado aos benefícios prove-


nientes, existe um risco de dano. Logo, eleva-se a imprescindibilidade
da reflexão acerca das consequências jurídicas no que tange a possíveis
reações adversas decorrentes da vacina.
Nesse contexto, urge o debate do tema quanto a obrigatoriedade ou
não, vislumbrando-se a recomendação do Ministério da Saúde acerca do
Programa Nacional de Imunização, e da legislação pertinente, a exemplo
dos casos da vacinação infantil compulsória, estabelecida no Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Assim, devido a vacinação compulsória, nos casos recomendados
pelo Ministério da saúde e da legislação pertinente, bem como acerca
da ausência de lei ou política de compensação de danos decorrentes
da vacinação no Brasil, torna-se necessária a reflexão jurídica quanto
aos direitos fundamentais e soberania Estatal, como também acerca
da compensação de danos para aqueles que venham a sofrem reações
adversas da vacinação.
Dessa maneira, o tema proposto busca ponderar sobre aspectos da
responsabilidade civil do Estado incitando a consideração de possíveis
danos provenientes da vacinação.
Para tanto, foi elaborado uma investigação reflexiva, teórica e valo-
rativa de conceitos conectados ao tema. Esteada pela legislação nacional
vigente no que concerne aos limites de atuação do Estado e respeito aos
direitos fundamentais, tal qual acerca da sua responsabilidade quanto
aos danos que venha causar aos administrados, a pesquisa tenta de-
monstrar a necessidade de análise e reflexão acerca das imposições da
vacinação compulsória em prol da coletividade e da responsabilidade
civil nos casos de danos provenientes da vacinação.
Primeiramente, foi elaborado uma breve contextualização histórica
da evolução do processo de vacinação no Brasil, trazendo para o atual
contexto dentro da realidade pandêmica COVID-19. Continuamente,
intentou-se levantar a reflexão quanto a questão da obrigatoriedade
da vacinação, trazendo ao debate os limites da soberania Estatal e os
direitos constitucionais fundamentais e bioéticos.
Em seguida, foi explanado aspectos teóricos da responsabilidade civil
do Estado, nos casos de danos decorrentes da vacinação, com estudo de
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 201

casos levados à Corte Superior, considerando a ausência de uma previsão


legal acerca da compensação de danos para aqueles que sofrem reações
adversas à vacinação.
Na última seção, dialogando com todo o conteúdo exposto, foi obje-
tivado demonstrar a necessidade na elaboração de uma normatização
e/ou políticas de compensação quanto a possíveis danos decorrentes
da vacinação.
Por conseguinte, a pesquisa apresenta como hipótese a necessidade
de uma previsão legal e/ou políticas de compensação capazes de indeni-
zar aqueles que venham sofrer danos decorrentes de reações adversas
da vacinação, sem que para isso necessite buscar o poder judiciário.
A metodologia utilizada possui finalidade básica estratégica de ob-
jetivo descritivo, com abordagem qualitativa, sob o método hipotético
indutivo, realizada com procedimentos bibliográficos por meio de livros,
legislações, artigos científicos, jurisprudência e estudo de casos.
Por fim, conclui-se ter alcançado os objetivos e confirmado a hi-
pótese, tendo em vista a imprescindibilidade do respeito aos direitos
individuais e o estabelecimento de normatização mais específica, que
proporcione maior celeridade no processo de compensação de danos.

2. BREVE HISTÓRICO ACERCA DA VACINAÇÃO NO BRASIL


Por muitos séculos o mundo foi assolado pela Varíola, doença terrível
e mortal, que causava muitos problemas de saúde, e para aqueles que
se recuperavam dessa terrível doença sofria com muitas sequelas como
deformidades, cegueira e cicatrizes. O que levou os povos a buscarem a
descoberta de meios de prevenção, através da observação daqueles que
eram contaminados e pela forma como eram contaminados. (DUMARD,
2017)
Por conseguinte, foi percebido que pessoas contaminadas com a
varíola das vacas, raramente tinham a varíola. A partir daí, os estudiosos
começaram a inocular em seus filhos a secreção das pústulas dos úberes
das vacas doentes, surgindo a primeira vacina no mundo, inoculadas
nos braços das crianças. Com destaque Edward Jenner, que demonstrou
202 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

um processo de proteção superior e promoveu a causa da vacina. Era


o “início” de uma grande descoberta científica que beneficiaria a saúde
no mundo, a vacina. (DUMARD, 2017)
Ademais, no início do século XIX, havia um grande fluxo do processo
migratório para o Brasil, o que colaborava com a disseminação de doen-
ças infectocontagiosas entre os povos e entre elas a varíola. E ainda no
início do século XIX, no ano de 1804, chegava a primeira vacina, vinda
da França, a vacina contra a varíola inoculadas em braços de negros
escravos. (BUSS; TEMPORÃO; CAVALHEIRO, 2005)
O Brasil sofria com os sérios problemas na saúde pública no início no
século XX, com doenças como a peste bubônica, febre amarela e a varíola.
Muitas vidas foram perdidas. E no ano de 1904, houve uma campanha de
saneamento coordenada por Oswaldo Cruz, devido as epidemias no Rio
de Janeiro, capital, na qual foi imposta a vacinação compulsória contra
a varíola, decretado pelo Governo Federal, tendo sido logo revogado,
tendo em vista a grande comoção da população provocada pela impo-
sição da vacinação, chamada de Revolta da Vacina. (BUSS; TEMPORÃO;
CAVALHEIRO, 2005)
Por outro lado, foi também o início da aceitação da vacina no Brasil,
tendo em vista a situação de crise sanitária que acometia o País, o que
levou as pessoas a buscarem a vacinação. (BUSS; TEMPORÃO; CAVA-
LHEIRO, 2005)
Importa ressaltar, que na segunda metade do século XX, a doença
que assolou o mundo foi erradicada. A vacina venceu a doença que
massacrou os habitantes do mundo por séculos. (DUMARD, 2017)
Com base na descoberta da primeira vacina, foram desenvolvidas
muitas outras, que vinham sendo introduzidas no Brasil para prevenir
outras doenças infecciosas, e posteriormente, passando a ser também
produzida no país. (BUSS; TEMPORÃO; CAVALHEIRO, 2005)
Em 1973, foi criado o PNI, Programa nacional de imunizações,
responsável pelas campanhas de vacinação do País para controle e
erradicação de doenças. Desde a primeira vacina doenças foram er-
radicadas, como a febre amarela, a varíola e a poliomielite, e outras
doenças controladas como o sarampo, o tétano neonatal, a tuberculose
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 203

nas suas formas graves, a difteria, o tétano acidental, a coqueluche, bem


como foram implementadas medidas para o controle de outras doenças
infecciosas. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2003)
Acerca da obrigatoriedade da vacinação no Brasil, além do Decreto
Federal, logo revogado, acerca da vacinação compulsória da varíola em
1904 que gerou a revolta da vacina, o Direito Brasileiro dispõe acerca da
vacinação obrigatória desde 1975, conforme dispõe a Lei nº 6.259/1975,
acerca do Programa Nacional de Imunizações no artigo 3º, Parágrafo
único:
Art 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Na-
cional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de
caráter obrigatório.
Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de
modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas,
bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Gover-
nos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.
(BRASIL, 1975, p. 1)
O tema também é prelecionado no Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, Lei nº 8.069/90, no artigo 14, Parágrafo 1º:
Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assis-
tência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades
que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de
educação sanitária para pais, educadores e alunos.
§ 1 º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados
pelas autoridades sanitárias. (BRASIL, 1990)
Desse modo, inicialmente é possível verificar a grande importância
e benefícios advindos da descoberta da vacina e do seu desenvolvimento
para a vida e saúde da humanidade, como também se verifica que já na
primeira vacina no Brasil, houve uma tentativa de imposição do Governo
de tornar a vacinação compulsória, tentativa logo frustrada devido a
revolta da população com a obrigatoriedade da vacina. Todavia, desde
1975, é prevista a possibilidade da vacinação compulsória, como no
caso da vacinação de crianças, conforme recomendação do Ministério
da Saúde acerca do Programa Nacional de Imunização e o Estatuto da
Criança e do adolescente.
Atualmente, o mundo tem sofrido com a Pandemia do COVID-19,
com registro dos primeiros casos em meados mês de dezembro de 2019
204 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

na China, em Wuhan, capital e maior cidade da província de Hubei e no


mês de janeiro de 2020 a COVID-19 já havia chegado a outros países.
(MARQUES; SILVEIRA; PIMENTA, 2020)
Em 03 de fevereiro de 2020, o Ministério da saúde do Brasil baixou
a Portaria nº 188 declarando a Emergência em Saúde Pública Nacional
do Corona vírus, seguida da instituição da Lei nº 13.979, em 06 de feve-
reiro de 2020, que dispõe acerca das medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública decorrente do corona vírus.
Dados até 09 de julho de 2021, no Brasil, segundo divulgação no
Site covid.saúde.gov.br, que divulga o Painel de casos de doença pelo
COVID-19 no Brasil pelo Ministério da Saúde, já contam com 531.688
óbitos por COVID-19 no país. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2021)
Acerca da vacinação contra a COVID -19, em dezembro de 2020, foi
publicada a primeira edição do Plano Nacional de Operacionalização da
Vacinação, e em janeiro de 2021 iniciou-se a Campanha de Vacinação dos
grupos prioritários. (MINISTERIO DA SAUDE et al, 2020)
Ressalte-se que, em 10 de março de 2021, foi publicada a Lei nº
14.125 que dispõe sobre a responsabilidade civil da União, Estados,
Distrito Federal e os Municípios acerca de eventuais reações adversas
pós-vacinação contra a Covid-19, bem como acerca a aquisição e distri-
buição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado, conforme
dispõe o artigo 1º da Lei:
Art. 1º  Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Im-
portância Nacional (Espin), declarada em decorrência da infecção
humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir
vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos
termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas
celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que
a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha concedido
o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial.
(BRASIL, 2021, p. 1)

A Lei nº 14.125 de 10 de março de 2021, ainda dispõe acerca da pos-


sibilidade da vacinação compulsória contra a COVID-19, conforme segue:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de
importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 205

poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as


seguintes medidas:
(...)
III – determinação de realização compulsória de:
(...)
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou. ((BRASIL, 2021, p. 1)
Ademais, acerca da possibilidade da vacinação compulsória contra a
COVID-19, prevista na Lei 14.125, o STF, na Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade nº 6.586, ajuizado pelo Partido Democrático Trabalhista, julgou
que a vacinação compulsória é legítima, todavia, não pela vacinação
forçada mas pela implementação de medidas de limitações. Conforme
segue em trecho do Acórdão.
Feitas tais considerações, volto a assentar que, sob o ângulo estrita-
mente constitucional, a previsão de vacinação obrigatória, excluída
a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde que as
medidas a que se sujeitam os refratários observem, em primeiro
lugar, os critérios que constam da própria Lei 13.979/2020, espe-
cificamente nos incisos I, II, e II do § 2º do art. 3º, a saber, o direito
à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e, ainda,
ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberda-
des fundamentais das pessoas.” E, como não poderia deixar de ser,
assim como ocorre com os atos administrativos em geral, precisam
respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
(BRASIL, 2021)
Assim sendo, diante do histórico apresentado, é notória a impor-
tância da vacinação. Todavia, também é notório que desde a primeira
vacina no Brasil o Governo atua na ideia da obrigatoriedade da vacinação.
Outro ponto muito importante, foco principal desse trabalho, é acerca
da Responsabilidade Civil do Estado em Casos de Danos Provenientes
da Vacinação.
Conforme o artigo 3º, inciso III, alínea d, da Lei 14.125, já referido,
prevê que a União, os Estados, Distrito Federal e os Municípios assumirão
os riscos referentes à responsabilidade civil, em caso de reações adversas
da vacina do COVID – 19. Questiona-se, será que o Estado (União, os Esta-
dos, Distrito Federal e os Municípios) é responsável apenas pelas reações
adversas da vacina do COVID-19? E quando a vacinação compulsória,
206 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

será esta a forma ideal? Como ficam os direitos individuais do cidadão


previstos no art. 5º da Constituição Federal? As referidas questões serão
desenvolvidas nos capítulos a seguir.

3. REFLEXÕES BIOÉTICAS
ACERCA DA VACINA COMPULSÓRIA
Ultrapassado o breve contexto histórico da vacinação no Brasil,
nesta seção busca-se elaborar uma reflexão quanto a perspectiva da
compulsoriedade da vacinação, para alguns casos.
Como já visto no tópico 2 do presento artigo, a vacinação no Brasil
pode ser obrigatória ou não, a depender da recomendação do Ministério
da Saúde, conforme determina o PNI (BRASIL, 1975, p. 1). Em que pese
ser mundialmente essencial para erradicação de doenças infecciosas
(DUMARD, 2017), insta imprescindível refletir acerca da compulsorieda-
de sob uma perspectiva bioética, sobre até que ponto o Estado deve in-
tervir na vida dos cidadãos sem que viole os seus direitos fundamentais.
Assim, torna-se necessário destacar a teoria principialista, instituí-
da por Beauchamp e Childress, consubstanciada “[...] nos princípios da
autonomia, beneficência e justiça, já constantes no Relatório Belmont,
os autores acrescentaram um quarto que foi o da não-maleficência”
(LEITE, 2018, p. 22).
Para o desenvolvimento do raciocínio, é preciso destinar atenção
especial ao princípio da autonomia bioética, pela sua pertinência com
o tema. Isso é devido, pois o princípio da autonomia “[...] sugere que o
pré-requisito para o exercício das moralidades é a existência de uma
pessoa autônoma” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p. 28).
Por autonomia, entende-se uma liberdade, direito este já devida-
mente tutelado pela Constituição Federal (CF) vigente, quando trata dos
direitos e garantias individuais e coletivas, e conhecido como direito de
1ª geração.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988,
grifo nosso).
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 207

Os direitos de 1ª geração podem ser “delineados como ‘poder de agir’,


esses direitos individuais foram estruturados como direitos objetivos”
(FIGUEIREDO, 2007, p. 21, grifo do autor).
Por serem repressores do poder estatal, os direitos fundamentais
de primeira geração são reconhecidos como direitos negativos,
liberdades negativas ou direitos de defesa do indivíduo frente ao
Estado. (ALEXANDRINO; PAULO, 2012. p. 102)
Logo, percebe-se a importância do direito à liberdade, podendo
ser equiparado à ao princípio da autonomia bioética. Ainda, é possível
condicionar o direito à liberdade ao direito fundamental da dignidade
da pessoa humana, atrelando-se o direito de poder exercer sua liberdade
de escolhas ao exercício da dignidade humana.
Os direitos fundamentais de primeira geração surgiram em razão
das ações abusivas do poder, atuando como instrumentos de ações in-
submissas contra a esfera pessoal do homem, criando assim, obrigações
de não fazer, de não intervir sobre aspectos pessoais de cada indivíduo.
(BRANCO, 2012. p.155).
Portanto, conclui-se que nos direitos de primeira geração são direitos
à liberdade, à segurança, à uma vida via digna (QUEIROZ, 2001, p. 42),
sendo de competência do Estado a vigília quanto ao respeito de tais
direitos, e sanção a infração de tais direitos.
É nesse cenário que urge destacar o surgimento bioético intervencio-
nista, o qual emerge dos fundamentos constantes na Declaração Univer-
sal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), da UNESCO, publicada
em 2005 e homologada por 191 países (UNESCO, 2005).
Destarte, é evidente a expansão de valores arraigados ao conceito
bioético na linha de pensamento de Beauchamp e Childress.
Essa perspectiva culminou, em 2005, com a aprovação, pela Orga-
nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Huma-
nos109. Ela estabelece, no artigo 3º, entre seus princípios, que “1.
A dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades funda-
mentais devem ser respeitados em sua totalidade”110. Também
estabelece, em seu artigo 10º, que “A igualdade fundamental entre
todos os seres humanos em termos de dignidade e de direitos deve
ser respeitada de modo que todos sejam tratados de forma justa e
equitativa” (DIAS, 2017, p. 83)
208 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

Assim sendo, é possível a afirmação de que a bioética de intervenção


é o instrumento capaz de estudar e interpretar, intervindo nos conflitos
contemporâneos, com o fim de promover o bem-estar coletivo (GAR-
RAFA, 2005).
“A consideração do bem-estar dos agentes como foco da igualdade é
marca registrada do utilitarismo[...]” (DIAS, 2017, p. 45), e tais preceitos
servem como embasamento para o eixo do fundamento bioético atual,
qual seja o combate contra as vulnerabilidades individuais e coletivas
(GARRAFA, 2005).
Percebido o conflito entre os princípios dentro da mesma ciência,
vale ressaltar que “o princípio da autonomia baseia-se nos pressupostos
de que a sociedade democrática e a igualdade de condições entre os
indivíduos são os pré-requisitos para que as diferenças morais possam
coexistir” (DINIZ; GUILHEM, 2017, p.28).
Nesse sentido, decidiu em sede de repercussão geral o ministro
Roberto Barroso:
Direito constitucional. Recurso extraordinário com agravo. Obriga-
toriedade de vacinação de menores. Liberdade de consciência e de
crença dos pais. Presença de Repercussão geral. 1. Constitui questão
constitucional saber se os pais podem deixar de vacinar os seus
filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas,
morais e existenciais. 2. Repercussão geral reconhecida.
(STF – ARE: 1267879 SP 1003284-83.2017.8.26.0428, Relator:
ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 27/08/2020, Tribunal
Pleno, Data de Publicação: 23/10/2020)
Percebe-se que no caso de uma criança, incapaz de decidir, pode
existir a necessidade de intervir do Estado na tutelar pela saúde e bem
estar do vulnerável. (DINIZ; GUILHEM, 2017, p.28).
Nesse sentido, vale apontar que “a Constituição Brasileira de 1988
potencializou e implementou ao máximo o papel do Judiciário e do Direi-
to, fundando um novo paradigma: o do Estado Democrático de Direito”
(DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2008, p. 43). Entretanto, ao mesmo
tempo que se espera do Estado prestações positivas em atendimento
ao interesse de todos, almeja-se prestações negativas, limitando a não
invasão da ação estatal aos direitos individuais.
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 209

A Constituição Federal de 1988, no Capítulo II, Dos Direitos Sociais,


prevê a saúde como um direito, e não como um dever (BRASIL, 1988).
A partir do momento que o Estado impõe a vacinação esta deixa de ser
um direito e passa a ser uma obrigação. Assim sendo, observa-se que o
Estado impor a obrigatoriedade da vacina não parece ser o meio mais
adequado para a sociedade. Na verdade, a imposição parece ser o ca-
minho mais fácil, do que aquele de convencer os cidadãos de maneira
clara, acerca dos riscos individuais e coletivos de não serem imunizados.

4. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO


Haja vista a inquestionável urgência da vacinação, bem como sua
obrigatoriedade indireta também é inquestionável a necessidade de se
positivar critérios quanto a responsabilidade civil acerca de possíveis
danos provenientes de reações adversas da vacinação.
Sabe-se que a regra geral, no direito brasileiro, é a de que, no silêncio
da lei, a responsabilidade é subjetiva. É o que determina o artigo 927,
parágrafo único, do Código Civil, in verbis: “Haverá obrigação de re-
parar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados
em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor
do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”
(PIETRO, 2018, posição 32149).
Sendo assim, a Constituição Federal de 1988, disciplinou a respon-
sabilidade civil do Estado no artigo 37, § 6º, com a seguinte redação: “as
pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadores
de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa
qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra
o responsável nos casos de dolo ou culpa” (BRASIL, 1988)
Importa destaque, a fala do Ilustre Sergio Cavalieri Filho, acerca da
Responsabilidade Objetiva:
Na última fase dessa evolução proclamou-se a responsabilidade
objetiva do Estado, isto é, independentemente de qualquer falta ou
culpa do serviço desenvolvida no terreno próprio do Direito Público.
Chegou-se a essa posição com base nos princípios da equidade e da
igualdade de ônus e encargos sociais. Se a atividade administrativa
do Estado é exercida em prol da coletividade, se traz benefícios
para todos, justo é, também, que todos respondam pelos seus ônus
210 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

a serem custeados pelos impostos. O que não tem sentido, nem am-
paro jurídico, é fazer com que uns ou apenas alguns administrados
sofram todas as consequências danosas da atividade administrativa.
(CAVALIERI FILHO, 2014, p. 286)
Conforme o dispositivo em análise, o Estado só responde objetiva-
mente pelos danos que causarem a terceiros. Logo, percebe-se que a
responsabilidade objetiva do Poder Público é condicionada ao dano que
seus agentes causarem (TEPEEDINO; TERRA; GUEDES. 2021).
Dito isso, é possível perceber, no caso julgado de relatoria do ministro
Edson Fachin.
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRA-
VO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ART. 37, § 6º, DA CF. NEXO DE
CAUSALIDADE. COMPROVAÇÃO NA ORIGEM. INDENIZAÇÃO POR
DANO MORAL. CONDUTA LÍCITA. IRRELEVÂNCIA. REEXAME DE
MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 279 DO STF. PRECEDENTES. TEMA 810
DA REPERCUSSÃO GERAL. INAPLICABILIDADE. 1. Inaplicável, na
hipótese, o Tema 810 da repercussão geral, visto que não foi debatido
em sede de apelação o índice de correção monetária (TR). Razões
do apelo extremo dissociadas do acórdão recorrido. Súmula 284
do STF. 2. A responsabilidade objetiva se aplica às pessoas jurídicas
de direito público pelos atos comissivos e omissivos, independen-
temente da licitude ou não do comportamento do agente público,
nos termos do art. 37, § 6º, do Texto Constitucional. Precedentes. 3.
O Tribunal de origem assentou a responsabilidade do Recorrente a
partir da análise do contexto probatório dos autos, concluindo pela
ocorrência do dano e pela presença do nexo de causalidade. Assim,
eventual divergência de tal entendimento demandaria o reexame de
fatos e provas da causa, providência inviável nos termos da Súmula
279 do STF. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. Inapli-
cável o art. 85, § 11, do CPC, em virtude da sucumbência recíproca
reconhecida na instância de origem.
(STF – ARE: 1249452 DF 0020024-04.2015.8.07.0018, Relator:
EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 08/06/2021, Segunda Turma,
Data de Publicação: 15/06/2021)

Nesse sentido, cumpre destacar que a responsabilidade civil do Es-


tado resta configurada no momento em que o agente público em função
do Estado causa um dano, conforme o mandamento constitucional do
artigo 37, § 6º, da CF/88 (BRASIL, 1988). A única forma de afastamento
do dever de indenizar, então, se daria da exclusão do nexo de causalidade
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 211

por fato exclusivo da vítima, caso fortuito ou força maior (TEPEEDINO;


TERRA; GUEDES. 2021).
Entretanto, a doutrina diverge quanto a questão da teoria aplicada
a responsabilização do Estado, como pode ser percebido no julgado
em 2019, no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, pelo relator Sérgio
Rocha.
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. REAÇÃO À VACINA H1N1.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. INDENIZAÇÃO POR
DANO MORAL DEVIDA. DANO ESTÉTICO NÃO COMPROVADO.
PENSÃO MENSAL VITALÍCIA DEVIDA AO MENOR. PARCELA ÚNICA.
NÃO CABIMENTO 1. Há responsabilidade civil objetiva do Estado
por ato lícito (Teoria do Risco Administrativo) decorrente de reação
pós-vacinal previsível, devendo o Estado assumir os riscos de sua
atividade (CF 196 e 37 § 6º). 2. Presentes os requisitos ensejadores
da responsabilidade civil, devida indenização por danos morais de
R$ 70.000,00 para cada parte. 3. O dano estético abrange cicatrizes,
deformidades, amputações, entre outras alterações corporais per-
manentes ou duradouras que agridem a visão e causam desagrado e
sentimento de inferioridade, devendo ser comprovados. 4. Indevida
indenização por danos materiais se não demonstrados os prejuízos
alegados (CC 949). 5. Cabível o pagamento de pensão mensal vitalícia
ao menor, em razão doatraso cognitivo e na linguagem causados pela
reação da vacina, prejudicando seu desempenho escolar e seu futuro
desenvolvimento profissional. 6. Indevido o recebimento da pensão
em parcela única, pois além de ser menos gravoso ao pagador, é mais
benéfico ao menor, protegendo-o de eventual má administração da
quantia recebida, o que comprometeria sua subsistência. 7. Deu-se
parcial provimento ao apelo dos autores.
(TJ-DF 20150110814440 DF 0020024-04.2015.8.07.0018, Relator:
SÉRGIO ROCHA, Data de Julgamento: 23/01/2019, 4ª TURMA CÍVEL,
Data de Publicação: Publicado no DJE: 30/01/2019. Pág.: 459/461)
É importante destacar aqui, ressalvas acerca da Teoria do Risco
Administrativo quanto as noções de risco administrativo e risco integral
(TEPEEDINO; TERRA; GUEDES. 2021).
No risco administrativo o Estado responde pela atividade, ainda
que sem culpa pelo dano acometido, sendo necessária comprovação
do nexo causal (TEPEEDINO; TERRA; GUEDES. 2021) De outro lado, o
risco integral obriga a Administração a indenizar todo e qualquer dano
suportado por terceiros, ainda que seja por culpa da vítima (TEPEEDINO;
TERRA; GUEDES. 2021).
212 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

Dessa maneira, o ordenamento jurídico brasileiro instituiu algumas


possibilidades de aplicação da teoria do risco integral, no caso de danos
causados por acidentes nucleares disciplinados pela Lei nº 6.453/77 e
de atentados terroristas, nos termos das Leis n.º 10.309/01.
Percebe-se, portanto, que é notória a responsabilidade civil do
Estado, para os danos provenientes de efeitos adversos do processo
imunizante.

5. COMPENSAÇÃO DE DANOS DECORRENTES


DA VACINAÇÃO
Conforme já aduzido, a vacinação no Brasil pode ser obrigatória ou
não, a depender da recomendação do Ministério da Saúde acerca do
Programa Nacional de Imunização e a legislação vigente. Todavia, apesar
de muito benéfica, a vacina pode provocar reações adversas com danos
graves e irreversíveis. O risco de dano é bem ínfimo, se comparado aos
benefícios decorrentes da vacinação. Todavia, essa minoria também
merece a atenção do Estado. (LESSA; DÓREA, 2013)
De acordo com LOOKER e KELLY, artigo publicado em 2011, foram
identificados 19 países com sistema de compensação por reações adver-
sas da vacina. sendo eles: Alemanha, França, Áustria, Dinamarca, Japão,
Nova Zelândia, Suíça, Suécia, Reino Unido, China (Taiwan), Finlândia,
Estados Unidos, Canadá, Itália, Noruega, Coreia do Sul, Hungria, Islândia
e Eslovênia. (LOOKER; KELLY, 2011)
Importa ressaltar que não existe legislação ou política de compensa-
ção no Brasil para aqueles que sofrem danos decorrentes da vacinação,
com exceção do previsto na recente Lei acerca da vacina da COVID-19.
Os cidadãos que sofrem danos decorrentes de reações adversas da
vacinação em geral, necessitam recorrer ao judiciário na tentativa de
serem compensados pelos danos, inclusive para os casos de vacinação
obrigatória infantil.
Ademais, pelo fato de não existir Lei ou política de compensação de
danos, essa minoria fica sujeita a análise do judiciário, e muitos tem o
pedido indeferido, alguns sob o argumento de caso fortuito, decorrente
do que é extraordinário e por se tratar de atividade lícita do Estado não
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 213

há o dever de indenizar. Conforme a seguinte decisão publicada em 05


de maio de 2017, pela Quinta Turma Cível do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal, tendo como Relator Angelo Passareli:
[...] A partir de detida análise do conjunto fático-probatório dos
autos, constata-se que o procedimento de vacinação ocorreu ade-
quadamente e, bem assim, não havia defeito ou irregularidade no
lote vacinal. Observa-se que o dano sofrido pelo Autor não decorre
da prestação do serviço público médico-hospitalar, tratando-se
de reação imunológica rara e inesperada decorrente de evento
secundário a uma reação adversa à vacinação. 4 – A reação adversa
à vacina amolda-se à denominada lesão iatrogênica strito sensu,
ou seja, consequência danosa extraordinária e excepcional, alheias
à vontade e à ação do médico ou do Hospital, decorrente de fatores
individuais e próprios do pacientee não de falha na prestação de
serviços médicos. 5 – Verifica-se a ocorrência de caso fortuito, causa
excludente da responsabilidade civil do Estado, uma vez que a reação
adversa rara observada não era prevista nas Normas de Vacinação
do Ministério da Saúde, sendo ainda controversa a sua existência na
literatura médica, consubstanciando fato isolado e inesperado afeto
às condições pessoais do Autor, não havendo falha na prestação de
serviços por parte do ente público. 6 – Ante a ocorrência de caso
fortuito apto a afastar o nexo de causalidade entre o dano e a atuação
do Estado, incabível a condenação do ente público ao pagamento de
indenização por danos materiais e morais, tampouco ao pagamento
de pensão vitalícia. Remessa Necessária e Apelação Cível do Réu
providas. Apelação Cível do Autor prejudicada. (BRASIL, 2017)
O Estado por vezes impõe a vacinação, mas não prevê um programa
de compensação para aqueles que venham a sofrer reações adversas da
vacina, sofrendo por vezes graves danos e irreparáveis. Se o cidadão se
sujeita à vacinação, em prol não só da sua saúde individualmente, mas
também em prol da coletividade, porque não ser reparado pelo dano
proveniente dessa vacinação?
Ainda que uma quantidade ínfima de pessoas possa sofrer danos
decorrentes da vacinação, comparando com os benefícios que traz para
a sociedade, estas devem ser compensadas pelos danos sem que neces-
sitem ajuizar ação em face do estado.
Essa minoria que sofre graves danos decorrentes da vacinação, se
arrisca em prol da coletividade, que no geral a maioria é decorrente da
vacinação obrigatória, ou seja, o Estado até impõe a vacinação, mas não
214 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

se preocupa com uma previsão de uma compensação de danos, para os


casos de reações adversas da vacinação. Essa minoria, independente-
mente de ter sofridos danos da vacinação obrigatória ou não, merece a
atenção e ação do Estado, que tem o dever de indenizar essas pessoas
pelos danos causados sem que necessitem se submeter a análise do
judiciário. (CAMPOS; DÓREA, SÁ, 2017).
Pelo senso de justiça e equidade, aqueles que são vítimas de reações
adversas da vacina, merecem a devida atenção do Estado para estabe-
lecer um programa ou sistema de compensação administrativo para
indenizar aqueles que sofrem danos decorrentes de reações adversas
da vacinação, considerando que o Estado é Responsável pelos danos que
causar aos seus administrados.

6. CONCLUSÃO
Da análise do estudo em comento, através de um breve histórico
da vacina, verificou-se a sua grande importância desde a descoberta
até os dias hodiernos, inclusive acerca da atual Pandemia de COVID-19,
tendo em vista o seu triunfo com a erradicação e controle de doenças
infectocontagiosas no Brasil e no mundo. Em contrapartida, também se
verificou que apesar de muito benéfica, a vacina pode causar reações
adversas graves, inclusive óbitos.
Ademais, foi abordado aspectos bioéticos, ressaltando a bioética de
intervenção como mecanismo ensejador para a vacinação compulsória
no Brasil. Entretanto, também foi levantada a reflexão sobre até que
ponto o Estado deve intervir na vida dos cidadãos sem que viole direitos
fundamentais e bioéticos.
Destarte, ventilou-se acerca da Responsabilidade Civil do Estado nos
casos de danos decorrentes das reações adversas da vacina. Para tanto,
foi apontado a legislação vigente e casos práticos de danos decorrentes
da vacinação, não restando dúvidas da necessidade do estudo sobre um
sistema de compensação para aqueles que sofrem os danos.
Ainda que notório o benefício da vacinação para a erradicação e
controle de doenças infectocontagiosas, o presente artigo busca refletir
sobre a imposição, no intento de demonstrar a inadequação do meio
Responsabilidade civil do Estado em casos de danos provenientes da vacinação 215

para o cidadão, uma vez que ainda são insuficientes alicerces jurídicos
no que tange a compensação de danos.
Atualmente, aqueles que sofrem danos decorrentes da vacinação,
necessitam buscar a análise do judiciário, e passam anos na busca de
uma decisão de mérito, até que haja o trânsito em julgado, além do risco
de sofrer com a improcedência.
Logo, a imposição demonstra ser o caminho mais fácil, em que pese
o convencimento, respeitando a autonomia do cidadão, informando
claramente sobre os riscos individuais e coletivos quanto à imunização
demonstre ser o meio mais adequado.
Ressalte-se que, em que pese o Estado impor a vacinação, inexiste
um sistema de compensação de danos, onde aprecie-se de maneira clara
a responsabilidade pelos danos que porventura vier a acontecer.
Assim sendo, conclui-se que a ferramenta adequada para levar os
cidadãos à vacinação é através da informação, do convencimento, e
não da obrigatoriedade. Com base na Constituição Federal de 1988, a
saúde é um direito, e não como um dever. A partir do momento em que
o Estado impõe a vacinação, esta deixa de ser um direito e passa a ser
uma obrigação.
Portanto, o trabalho buscou corroborar a reflexão de que ao invés
de se impor a vacina, os cidadãos devem ser convencidos a usufruir
desse direito, por meio da informação de maneira clara e objetiva, sendo
alertados, inclusive, quanto aos riscos.
Ademais, a pesquisa tentou demonstrar a imprescindibilidade da
observação quanto a questões de reparação de danos daqueles que
sofrem com reações adversas. Muitos desses danos podem ser graves e
irreversíveis, logo, insta essencial o estabelecimento de um programa ou
sistema de compensação administrativo indenizatório, daqueles que se
vacinam em prol de um benefício não somente individual, mas também
em atendimento a um dever coletivo.

REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descompli-
cado. 20ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
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216 Luana Reis Ferreira e Daniela Brito Mercuri

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CAPÍTULO X

Geopolítica da vacina,
direito à saúde e soberania sanitária

Hugo Leonardo Cunha Roxo*

Sumário: 1. Introdução; 2. O direito à saúde e a pandemia de covid-19: 2.1. Uma


breve noção de saúde; 2.2. O direito à saúde e a legislação correlata; 2.3. O caos: um
pouco do contexto pandêmico; 3. O que fazem as empresas privadas e os governos:
imunização, geopolítica e soberania estatal: 3.1. A teoria do sistema-mundo: um
rápido esboço; 3.2. Imunização e geopolítica; 3.3. Autonomia/soberania sanitária
e direito à saúde; 4. Considerações finais. Referências.
Palavras-chave: Direito à saúde. Vacinas. Geopolítica. Soberania estatal.

1. INTRODUÇÃO
O debate acerca da efetivação do direito à saúde durante o transcur-
so da pandemia de COVID-19, doença causada por mutações do vírus
SARS-COV-2, enfrenta uma série de obstáculos no Brasil, sejam eles no
âmbito individual ou no âmbito coletivo. 
Sem adentrar nos meandros do subfinanciamento e do desfinancia-
mento do SUS, que não é o propósito direto do presente artigo, muito
menos escarafunchar as tortuosas sendas percorridas pelas decisões do
Poder Executivo federal no combate ao patente caos sanitário, é óbvio
que as empresas privadas multinacionais, detentoras das patentes da
maioria das vacinas anti-COVID, bem como os governos que financiaram
órgãos públicos para encontrar soluções vacinais para suas populações

(*) Advogado, consultor e professor. Atua em direito sanitário, direito administrativo,


direito financeiro e direito do trabalho. E-mail: hugo@roxo.adv.br.
222 Hugo Leonardo Cunha Roxo

e que mantêm sob sua guarda a produção dos insumos necessários para
a produção, causaram mudanças na configuração política do mundo.  
A busca pela vacina e pela decorrente imunização evidenciou uma
determinada linha de atuação de empresas e governos nos últimos tem-
pos. O jogo geopolítico tornou-se mais complexo, o que permite levantar
a hipótese de que mais dificuldades do que facilidades se colocam para
a efetivação do direito à saúde daqui para a frente.  
Tratar esquematicamente, de forma sintética, do desenho desta
nova geopolítica e das dificuldades encontradas para efetivar o direito
à saúde, utilizando como referencial teórico a teoria do sistema-mundo,
de Immanuel Wallerstein, é o escopo do presente artigo, ainda que muito
longe de esgotar tema tão denso.

2. O DIREITO À SAÚDE E A PANDEMIA DE COVID-19

2.1. Uma breve noção de saúde


Para a exata compreensão do que dispõe o art. 196, bem como o
art. 6º, ambos da Constituição Federal brasileira, se utilizará o conceito
de saúde apoiado nas críticas elaboradas por Cristophe Dejours (1986)
àquilo que se encontra cristalizado no preâmbulo da Constituição da
Organização Mundial de Saúde – OMS, que fora introduzida no ordena-
mento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 26.042/1948.
A OMS, em definição já clássica, consigna, desde 1946, que saúde
seria o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausên-
cia de doença. Dentre os vários autores que tecem críticas a semelhante
definição, opta-se por utilizar a noção estabelecida a partir das consi-
derações elaboradas por DEJOURS (1986), o qual, em síntese, assevera
que este estado estático de saúde não existe, é uma mera idealização e,
como tal, difícil de alcançar.
Saúde é dinâmica e é busca, é caminho, é transcurso; não está na
margem, fincada, mas passa com o rio. São as condições dadas para seja
feita perenemente esta travessia.
Portanto, em matéria conceitual – sempre muito difícil, ao se con-
siderar o paradigma da objetificação da relação cognoscitiva –, saúde
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 223

seria a busca incessante pelo bem-estar físico, mental e social. É a partir


dessa noção que a compreensão hermenêutica da legislação referente
ao direito à saúde deve ser construída.

2.2. O direito à saúde e a legislação correlata


A saúde consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, no artigo XXV, que define que todo ser humano tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar-lhe e a sua família, saúde e bem-es-
tar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis.  Ou seja, o direito à saúde é indissociável
do direito à vida, que tem por inspiração o valor de igualdade entre as
pessoas.
O reconhecimento do direito à saúde está positivado, também,
no artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais – PIDESC, da Organização das Nações Unidas – ONU, de 1966.
Em âmbito nacional, além de insculpido no Texto Constitucional, com
roupagem de direito fundamental, nos arts. 6º e 196, o direito à saúde
também está registrado na Lei Federal nº 8080/90, em seus arts. 2º e 3º,
com duas importantes ressalvas: a) o dever do Estado em prover as con-
dições indispensáveis ao seu exercício e b) a saúde possui determinantes
e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento
básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade
física, o transporte, o lazer e o acesso a bens e serviços essenciais; em
outras palavras, é um direito de natureza absolutamente transversal.
Neste sentido, para MULLER (2014, p. 10),
[...] o direito à saúde é um direito multidimensional, já que seu pleno
exercício implica a realização de vários níveis (de direitos) relaciona-
dos à qualidade de vida física, mental etc. Por isso, é um direito que
se tende a ampliar, pois a evolução tecnocientífica vem elevando os
patamares mínimos de exigibilidade para o que se deva considerar
uma vida digna para todo cidadão. O direito à saúde, segundo a
autora, também abrange a saúde individual e a coletiva e, por essa
razão, deva ser considerada como bem social, bem de toda a huma-
nidade, direito constitucional fundante e personalíssimo, na medida
em que possibilita a existência de todos os demais direitos, além
de prestacional, já que é uma prestação exigível em face do Estado.
224 Hugo Leonardo Cunha Roxo

Veja-se que existem características atribuídas à jurisdificação da


saúde, portanto. O direito à saúde é multidimensional, implicando a
realização de vários níveis de direitos; abrange a saúde individual e a
coletiva; é direito fundamental, fundante e personalíssimo e é presta-
cional, sendo dever do Estado a sua concretização.
Neste aspecto, enquanto direito individual, o direito à saúde está
voltado mais para a liberdade em sua acepção mais alargada. De outro
lado, enquanto direito coletivo, o direito à saúde privilegia a igualdade,
em sua concepção mais voltada às condições de exigência e garantia de
que todos usufruam de vida digna.
Ora, resta patente a percepção das inúmeras fragilidades para
garantir o direito à saúde, em face das dificuldades apresentadas para
conceituação de saúde e delimitação jurídica do respectivo direito. É
exatamente no limiar entre liberdade e igualdade que reside a garantia
ao direito à saúde.
Justamente por conta disto, a necessidade premente de se edificar
um sistema, uma organização institucionalizada, que apreenda toda a
realidade multifacetada da área da saúde, com suas vicissitudes e idios-
sincrasias, suas fragilidades e dificuldades, seus objetivos e finalidades.
E mais. A necessidade de que seja eminentemente um sistema público,
complementado por entidades privadas, com o controle da legislação e
dos órgãos competentes, bem como pela participação popular, na exata
medida da fundamentalidade da saúde para a consecução dos demais
direitos elencados no rol de direitos exigidos para a concepção de uma
vida digna.
O sistema de saúde que sustenta o direito fundamental à saúde deve,
assim, ser capaz de traduzir toda a sua complexidade, mas também de
apresentar ferramentas, meios e mecanismos sempre a postos a corrigir
eventuais desvios.
Não à toa a Lei Federal nº 8080/90 dispõe sobre as condições para
promoção, proteção e recuperação da saúde, mas também sobre a orga-
nização e o funcionamento dos serviços correspondentes, ou seja, dispõe
sobre o sistema único de saúde, o SUS.
Assim impõe a prestacionalidade estatal acerca do direito à saúde,
como já visto. Tais premissas servem de esteio para a interpretação do
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 225

quadro fático relacionado à pandemia de COVID-19. Faça-se um breve


esboço.

2.3. O caos: um pouco do contexto pandêmico


É de conhecimento público que o primeiro caso por infecção pelo
vírus SARS-COV-2 no território brasileiro foi registrado e notificado em
São Paulo, em 26/02/2020, com os primeiros casos aparecendo na China,
na cidade de Wuhan, em dezembro do ano anterior.
Em 11/03/2020, apenas cerca de duas semanas após o surgimento
oficial do primeiro caso no Brasil, a OMS declara estado de pandemia
mundial para o coronavírus e a doença provocada pelo patógeno, a CO-
VID-19. No dia seguinte, 12/03/2020, o Brasil apresenta oficialmente
sessenta casos confirmados. Mais quatro dias depois, 16/03/2020, o
número já chega a 234 casos confirmados, um aumento de mais de
100% por dia, o que leva a crer que o vírus já circulava no país muito
antes da primeira confirmação oficial. Neste período, a recomendação
do ministério da saúde – MS é que a testagem para coronavírus seja feita
apenas em casos graves. Nos demais casos, será levado em consideração
o critério clínico epidemiológico: se o paciente é jovem, cuidou dos pais
com coronavírus e apresentou sintomas, o médico pode notificar como
caso de coronavírus1.
Em 17/03/2020 ocorre a primeira notificação de morte por CO-
VID-19 no Brasil. O MS registra naquela data 291 casos confirmados e
8.819 casos suspeitos em cerca de vinte estados e no Distrito Federal.
Às 17h do mesmo dia, o MS já confirma 621 casos, num crescimento
exponencial dos números em rapidez fulminante, sem quaisquer pre-
cedentes na realidade sanitária brasileira.

1. Informações obtidas em: DIE WELT – DW. Cronologia da COVID-19 no Brasil.


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navírus no Brasil. Disponível em: https://www.sanarmed.com/linha-do-tempo-do-
-coronavirus-no-brasil. Acesso em: 05/07/2021.
226 Hugo Leonardo Cunha Roxo

Finalmente, em 20/03/2020, quase um mês após a ocorrência do


primeiro caso no Brasil, o MS declara reconhecimento de transmissão
comunitária do novo coronavírus, ou seja, admite que o Brasil já enfren-
tava uma pandemia de COVID-19. São 904 casos confirmados e onze
óbitos até então. No mesmo dia é publicado o Decreto Legislativo nº
06/2020, o qual reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública
referente à emergência de saúde pública de importância internacional
ao coronavírus.
Em 23/03/2020, os casos já chegam a 1.891, com 34 óbitos.
No dia seguinte, 24/03/2020, o MS informa que dispõe de apenas
22,9 milhões de testes para diagnosticar contaminação por coronavírus.
A pasta também convocou empresas para adquirir um milhão de frascos
de álcool em gel de 500 ml, 200 milhões de máscaras cirúrgicas três
camadas e 120 milhões de luvas. Ainda não se fala em imunizantes nem
pelos governos nem pela Big Pharma.
À noite, naquele mesmo dia, o presidente da República critica
em pronunciamento o pedido para que as pessoas fiquem em casa,
contrariando o que especialistas e autoridades sanitárias de todo o
mundo têm recomendado. Bolsonaro culpou os meios de comunicação
por espalharem o que chamou de sensação de pavor e disse que, caso
ele mesmo contraia o vírus, seria apenas uma “gripezinha”. É o selo na
porta que levará ao caos sanitário que assombrará o país pelos meses
seguintes.
Em abril de 2020, o governo do Reino Unido formou uma força-ta-
refa de vacina contra a covid-19 para estimular os esforços por meio
de colaborações múltiplas. As iniciativas de desenvolvimento de vacinas
da Universidade de Oxford e do Imperial College de Londres foram
financiadas com £ 44 milhões.
No mesmo mês, a OMS lança a iniciativa denominada Covax Facility,
que tem como objetivo auxiliar para que todas as nações tenham acesso
as vacinas de forma justa e igualitária independente de sua condição
financeira.
Em 15/05/2020, vários jornais do mundo noticiam que o governo
dos EUA anunciou financiamento federal para um programa acelerado
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 227

chamado Operação Warp Speed, que tem como objetivo ambicioso


colocar diversos candidatos a vacinas em ensaios clínicos até o outono
(norte-americano) de 2020 e fabricar 300 milhões de doses de uma
vacina licenciada até janeiro 2021. Em junho, a equipe da Warp Speed
disse que trabalharia com sete empresas desenvolvendo candidatas à
vacina covid-19: Moderna, Johnson & Johnson (Janssen), Merck, Pfizer
e Universidade de Oxford, em colaboração com a AstraZeneca, além de
duas outras.
No início de julho/2020, o governo chinês anuncia que deu início
ao seu programa massivo de vacinação, mesmo sem confirmação dos
testes de terceira fase da vacina Sinovac, primordialmente em militares
e pessoal da saúde, sendo o primeiro país do mundo a vacinar contra
o coronavírus.
Em 22/07/2020, o Brasil bate novo recorde em notificação de novos
casos: foram 65.339 diagnósticos do novo coronavírus em 24 horas, com
1.293 mortes em um dia, o que atualiza para 82.890 o total de óbitos
decorrentes da doença até então.
Já em 04/08/2020, o governo federal anuncia que planeja editar
Medida Provisória para viabilizar 100 milhões de doses da vacina de
Oxford/AstraZeneca (respectivamente, uma universidade inglesa al-
tamente prestigiada e uma empresa farmacêutica anglo-sueca), ainda
em fase de testes, contra o coronavírus, por meio da FIOCRUZ, órgão
federal ligado ao SUS. A iniciativa é da ordem de R$ 1,9 bilhão. No dia
seguinte, 05/08/2020, o Instituto Butantan, órgão vinculado ao SUS
paulista, em parceria com a Sinovac, empresa estatal chinesa, informa
que tem planos de produzir e distribuir a vacina chinesa ainda em ou-
tubro daquele ano, que mais tarde ficará conhecida como “coronavac”.
Até o fim do mês de agosto, o Ministério da Saúde havia distribuído 6,3
milhões de testes RT-PCR (biologia molecular) e 8 milhões de testes
rápidos (sorologia), totalizando mais de 14,3 milhões de testes para
diagnósticos da Covid-19.
Em 11/08/2020, a Rússia anuncia que se tornou o primeiro país a
oficialmente registrar um imunizante contra o coronavírus, produzida
pelo Instituto Gamaleya, um órgão oficial das Forças Armadas russas,
que ganhará o mundo posteriormente com o nome de “Sputnik V”. Em
228 Hugo Leonardo Cunha Roxo

31/12/2020, a China anuncia a vacina produzida pela gigante estatal


farmacêutica Sinopharm.
No início de setembro/2021, a vacina da Janssen-Cilag, empresa
subsidiária da gigante Johnson & Johnson, de dose única e utilizan-
do tecnologia similar à da Oxford/AstraZeneca, chega à fase três de
testes. O imunizante terá sua aprovação emergencial pela FDA em
28/02/2021.
Em 25/09/2020, o país ultrapassa a marca de 140 mil óbitos por
COVID-19. Sete meses depois do primeiro caso e após muitas críticas
da população, o governo federal adere ao plano Covax Facility, com a
liberação de R$2,5 bilhões para integrar o programa global de vacinas,
que permitirá o acesso a nove vacinas em desenvolvimento. 
Em 15/11/2020, o Brasil bate o recorde mundial de mortes por
COVID-19, com onze mil mortes diárias, número acumulado de casos
em cerca de 5,8 milhões e óbitos totais em 166 mil. Em pelo menos vinte
estados da federação, a taxa de contágio da COVID-19 está acima de 1, o
que significa doença sem controle de transmissão, anunciando a chamada
segunda onda. Em paralelo, diversos órgãos de imprensa noticiam que
fabricantes das vacinas mundo à fora estimam que a vacinação em ter-
ritório brasileiro deve ter início até o fim de janeiro de 2021, em virtude
do atraso do governo federal em negociar a compra dos imunizantes em
comparação com outros países.
Em 30/11/2020, a empresa Moderna solicita ao órgão norte-a-
mericano FDA2 a autorização de uso emergencial da vacina, chamada
mRNA-1273, a qual teve ajuda de desenvolvimento do Instituto Nacional
de Alergia e Doenças Infecciosas. A Autoridade de Pesquisa e Desenvol-
vimento de Avanço Biomédico dos Estados Unidos, conhecida pela sigla
BARDA, apoiou os testes clínicos em estágio final e ajudou a aumentar
a produção.
No dia 08/12/2020, o Reino Unido se tornou o primeiro país
do Ocidente a aplicar a vacina contra o coronavírus, sendo utilizado
imunizante da parceria entre a americana Pfizer e a alemã BioNTech.

2. Food and Drugs Administration, órgão regulador estadunidense nos setores de ali-
mentação e medicamentos.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 229

No dia seguinte, a população russa já era vacinada com a Sputnik V.


Entre os dias 26 a 29/12/2020, vinte e seis países da Europa já tinham
iniciado a sua vacinação com o uso das vacinas da Pfizer/BioNTech e
da Moderna.
Somente em 15/12/2020, o governo federal lança o rascunho do
plano nacional de vacinação contra o coronavírus, apresentando a imu-
nização em quatro etapas, com previsão de início da vacinação no Brasil
girando em torno de 20/01/2021 a 10/02/2021. 
Em 24/12/2020, os primeiros países da América Latina iniciam seu
programa de imunização contra a COVID-19, México, Costa Rica e Chile.
A Argentina, no mesmo dia, recebe o primeiro carregamento de (300 mil
doses) da vacina russa Sputnik V.
Logo no início de janeiro/2021, em representação ao caos sanitário
que vive o país, a cidade de Manaus chega ao limite de disponibilização
de insumos, como O2, e superlotação de hospitais públicos e privados.
O início da segunda quinzena de janeiro foi marcado por uma deci-
são importantíssima para o País. A Anvisa concedeu aprovação para
uso emergencial de duas vacinas, a CoronaVac e a Vacina de Oxford. Fi-
nalmente, esse momento tão esperado chegou. Um dia seguinte após
a aprovação, que aconteceu no dia 17 de janeiro, aviões da força aérea
brasileira já decolavam para distribuir as vacinas pelo país e, na mesma
semana, cada estado já iniciava a campanha de vacinação. Inicialmente,
6 milhões de doses da CoronaVac encontravam-se já em solo brasileiro,
e mais 2 milhões de doses da Vacina de Oxford seriam trazidas da Ín-
dia. A previsão, até aquele momento, era que a FioCruz produzisse 100
milhões de doses da Vacina de Oxford até o primeiro semestre de 2021,
e mais 100 milhões até o fim do ano. Já o Instituto Butantan pretendia
produzir 86 milhões de doses da CoronaVac até o fim do ano. Havia ainda
a possibilidade do Brasil receber 42,5 milhões de doses de vacinas por
fazer parte do Covax Facility.
No dia 04/02/2021, o Senado Federal aprovou a Medida Provisória
nº 1.003/20203 que permite o Brasil integrar a Covax Facility. Como

3. Posteriormente promulgada, com alguns vetos, como a Lei Federal nº 14.121/21.


230 Hugo Leonardo Cunha Roxo

resultado da adesão com o consórcio, no dia 21 de março de 2021


o Brasil recebeu o primeiro lote de vacina contra a covid-19. Foram
adquiridas no primeiro momento 1.002.400 doses da Oxford/Astra-
Zeneca, sendo totalizado 9,1 milhões de unidades a serem entregues
até maio de 2021.
Em 10/03/2021, é publicada a Lei Federal nº 14.124/21, que au-
toriza estados, DF e municípios a adquirirem, distribuírem e aplicarem
vacinas registradas na ANVISA e insumos contra a COVID-19. Até então,
dois mapas elaborados pelo MS demonstram claramente que a segunda
onda tem força muito maior do que a primeira:

Fonte: Ministério da Saúde, Brasil, 2021.


Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 231

Fonte: Ministério da Saúde, Brasil, 2021.

Em 28/04/2021, o governo federal publica a sexta versão do Plano


Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19, que fora
publicado na primeira versão em 16/12/20204.
Dados mais atuais do MS, de 10/07/2021, mostram que até a pre-
sente data o Brasil registra 19 milhões de casos de COVID-19 e ainda
532 mil óbitos, com São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande Sul,
Bahia e Santa Catarina sendo os seis primeiros estados neste ranking,
em números absolutos.
Enfim, todo o quadro é estarrecedor, principalmente dado o número
de vidas ceifadas.
Lenir Santos (2021) proporciona um arremate que abrange, com
sobras, todas as questões que importa tratar no item seguinte:
O direito à saúde, art. 196 da Constituição, pressupõe duas medidas
estatais fundamentais para a sua efetivação: a adoção de políticas pú-
blicas que evitem o risco de agravos à saúde e a garantia de serviços
públicos assistenciais de acesso universal e igualitário, a cargo dos
entes federativos integrados em rede interfederativa, no âmbito do

4. CONASEMS. Confira todas as edições do Plano Nacional de Operacionalização


da Vacinação contra a Covid-19. Disponível em: https://www.conasems.org.br/
coronavirus/confira-todas-as-edicoes-do-plano-nacional-de-operacionalizacao-da-
-vacinacao-contra-a-covid-19/. Acesso em 15/06/2021.
232 Hugo Leonardo Cunha Roxo

Sistema Único de Saúde (SUS), (Lei n° 8.080, de 1990). O princípio


da segurança sanitária impõe dever ao Estado de preservação da
saúde das pessoas que não devem adoecer por motivos evitáveis,
ação estatal prioritária, conforme determinação constitucional (arts.
196; 198, II; art. 200 CF).
[...]
No presente momento, a redução do risco de contágio da
Covid-19 exige medidas preventivas como a vacinação coletiva
da população, que se afigura como relevante e impõe deveres aos
agentes públicos, em especial ao Ministério da Saúde, como diri-
gente nacional do SUS (art. 9°, I, Lei 8.080) e coordenador do Plano
Nacional de Imunização (PNI), (Lei n° 6.259, de 1975).
[...]
A vacina não é um ato médico nem um tratamento de enfermi-
dade, mas um ato antecedente à doença, para evitá-la, ação sanitária
prioritária na atenção à saúde, conforme inciso II do artigo 198 da CF
que fixa como diretriz do SUS o atendimento integral, com prioridade
para as atividades preventivas.
[...]
O país está em mora em seus deveres procedimentais para a
aquisição da vacina, que não se iniciou, estrategicamente, no tempo
oportuno.
A atitude do governo federal face ao projeto de lei orçamentaria
anual da saúde (PLOA-2021) demonstra tal mora por não ter previsto
recursos para a aquisição de vacinas na PLOA-2021 encaminhada
ao Congresso Nacional em agosto de 2020.
Em 2020, houve negociações, com recursos de créditos extraor-
dinários no valor de mais ou menos R$ 4,5 bilhões, entre os meses de
agosto e setembro, com a Fiocruz, a AstraZeneca/Oxford e a Covax
Facility, em doses que não atendem nem 3% da população. A aqui-
sição de vacinas pelo Ministério da Saúde, coordenador do PNI, em
2020, foi de penúria. Somente em final do ano de 2020, em dezembro,
foi editada Medida Provisória com recursos de R$ 20 bilhões para
a sua aquisição, com autorização de sua execução orçamentária em
2021, tendo em vista o princípio da anualidade orçamentária.
Não se deve deixar de completar que, num caso extremo como o
atual, de absoluto caos sanitário, a tutela coletiva do direito à saúde,
visando a concretização deste direito fundamental, é medida que se
impõe com inequívoca prioridade, a ser satisfeita, em primeiro lugar,
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 233

com a efetivação do direito à vacina, cumpridas as exigências sanitárias


regulatórias.

3. O QUE FAZEM AS EMPRESAS PRIVADAS


E OS GOVERNOS: IMUNIZAÇÃO, GEOPOLÍTICA
E SOBERANIA SANITÁRIA
Em face do cenário apontado, a efetivação do direito à saúde, por
óbvio resta prejudicado em todas as suas dimensões, mormente por
conta de um jogo político complexo na produção/distribuição da solu-
ção para tal: a vacina. É a teoria de Immanuel Wallerstein que ajudará
nesta compreensão.

3.1. A teoria do sistema-mundo: um rápido esboço


Immanuel Wallerstein, autor de obra vasta e profunda, desenvolveu
um corpo teórico interessante como categoria analítica quando se trata
de discorrer sobre a sociedade global em suas relações sócio-político-
-econômicas, especialmente a assimetria na divisão internacional do
trabalho e suas consequências para a concretização de direitos nos
diversos países do mundo.
Partindo do conceito de divisão internacional do trabalho decorrente
da sociedade capitalista, Wallerstein estabelece que a sociedade global
se estrutura a partir de uma clivagem hierárquica básica, dividindo os
países em três estamentos: centro, periferia e semi-periferia.
A circulação de bens, pessoas, ideias e serviços entre as três ordens é
assimétrica na medida em que os países centrais se ocupam da produção
de alto valor agregado, os periféricos fabricam bens e serviços de baixo
valor e fornecem commodities e matérias-primas para a produção de
alto valor dos países centrais e, por fim, os países da semiperiferia, ora
comportam-se como centro para a periferia, ora como periferia para os
Estados centrais, tendo um papel intermediário. Esse padrão de troca
desigual cria uma relação de dependência entre os países periféricos e
os do centro, acentuando essa diferença econômica e fazendo com que
esses Estados periféricos se tornem dependentes de empréstimos e de
ajuda financeira e humanitária dos países centrais.
234 Hugo Leonardo Cunha Roxo

As relações internacionais, entre Estados, na visão wallersteiniana,


de sua vez, são arrimadas em condições de exploração daquilo que elas
mesmas podem oferecer a cada um dos três estamentos: poder e valor
agregado.
Não à toa, a teoria wallersteiniana serve de referencial teórico no
presente artigo.
Ora, a partir da compreensão de que os países centrais são os donos
dos fluxos de pesquisa e desenvolvimento no mundo, ainda mais no
setor farmacêutico, e que alguns insumos são produzidos nos países
semi-periféricos, mas sem o domínio de toda a cadeia de produção, bem
como os países periféricos dependem da concertação mundial da Covax
Facility, da OMS, é que se pode inferir que a produção/distribuição da
vacina, enquanto solução disponível para a pandemia de COVID-19,
causa imensas dificuldades à concretização do direito à saúde num país
como o Brasil.
É o que se chama de geopolítica da vacina.

3.2. Imunização e geopolítica


Antes de prosseguir, deve-se deixar consignado algo que não pode
passar despercebido para o objetivo desta análise. Reitere-se: a vacina
é o único meio disponível e seguro até agora conhecido para solução da
pandemia de COVID-19.
Dito isto, outra proposição deve assomar: a vacina é um bem dentro
do mercado capitalista. E ainda que sofra regulação temporária severa
em período de crise, como o pandêmico atual, ela é um bem, repise-se,
e como tal está ofertada aos compradores dentro de todas as regras do
capital na divisão internacional do trabalho.
Os governos produtores da vacina anti-COVID-19 até então são China
e Rússia. Já as empresas privadas, com fortíssimo investimento público,
pertencem a Estados Unidos, França, Alemanha, Suécia e Reino Unido.
Por último, os grandes produtores de insumos imunizantes são Índia e
novamente a China5.

5. PLADSON, Kristie. De onde vêm e para onde vão as vacinas contra a COVID– 19?
Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/deutsche-welle/2021
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 235

Todos estes países, à exceção da Índia (ainda semiperiférica), sob


a ótica da teoria do sistema-mundo, compõem o seleto grupo de países
centrais.
Como exemplo clássico de país semi-periférico se encontra o Brasil.
Importador de insumos imunizantes para produção da vacina anti-
-COVID-19 em seu parque econômico-industrial (FIOCRUZ e Instituto
Butantan) sem o domínio do ciclo de produção/distribuição em sua
integralidade. Vale dizer que 95% dos insumos utilizados para produzir
vacinas no Brasil são importados. Os Estados Unidos, por exemplo, im-
portam 70% dos insumos da indústria chinesa, mas em uma pandemia,
eles possuem um aparato tecnológico capaz de reagir6. Não é o caso do
Brasil.
Quando a produção de insumos está condicionada ao fornecimento
externo, há questões também contratuais, o que agrava a dependência e
a falta de protagonismo na resolução interna desses problemas, inclusi-
ve em relação aos custos das vacinas estabelecidos pelos fornecedores
estrangeiros.
Na distribuição da vacina acontece o mesmo. Os países centrais
concentram a distribuição e consequente aplicação das vacinas. Daisy
Ventura e Rossana Reis asseveram que (2021, p. 17):
O fato é que, no início de 2021, os países mais ricos, que representam
apenas 16% da população mundial, possuem 60% das vacinas que já
foram vendidas. Alguns já dispõem de um estoque maior do que sua
própria população, outros colocam barreiras à exportação, de modo
que é provável que 90% das pessoas em quase 70% dos países de
baixa renda não venham a ser vacinadas em 2021. Em fevereiro, na
abertura da reunião do Conselho de Segurança, o secretário-geral
da ONU, António Guterrez, chamou a atenção para o fato de que,
até aquele momento, apenas 10 nações haviam aplicado 75% das
doses de vacina existentes, e enfatizou os riscos dessa situação para
a saúde global e a economia mundial.

/01/06/de-onde-vem-e-para-onde-vao-as-vacinas-contra-a-covid-19.htm. Acesso
em 14/06/2021.
6. CNN. 95% dos insumos utilizados para produzir vacinas no Brasil são impor-
tados. https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/05/26/95-dos-insumos-utiliza-
dos– para-produzir-vacinas-no-brasil-sao-importados, acessada em 10/07/2021.
236 Hugo Leonardo Cunha Roxo

O acesso às vacinas, portanto, está sujeito a todas as regras do mer-


cado e da divisão internacional do trabalho. Ora, no caso das empresas
privadas, o investimento corporativo e a necessidade de gerar valor
para os acionistas são os guias. Já no caso dos governos, o soft power é
a chave. Recorde-se que valor agregado e poder são os sustentáculos
das relações internacionais, segundo a teoria do sistema-mundo, de
Wallerstein.
Exemplos não faltam. Governos e empresas privadas dos países
centrais estão trabalhando juntos. O investimento público para que
empresas produzam e comercializem a vacina em larga escala ocorreu
na escala de bilhões de dólares. Por outro lado, as doações de vacinas a
países da África e do Sudeste Asiático não são pura benevolência. Está
por trás o desejo de futuros negócios.
A vacina Pfizer recebeu um vultoso investimento do governo ale-
mão, por meio da BioNTech, parceira da farmacêutica americana. Em
setembro do ano passado, a farmacêutica recebeu 375 milhões de euros
(aproximadamente R$ 2,4 bilhões) do Ministério Federal da Educação
e Pesquisa para aplicar na pesquisa do imunizante.
A farmacêutica Moderna, que também desenvolveu uma vacina
contra a covid-19 baseada na tecnologia de RNAm, tem um contrato
de mais de um bilhão de dólares com a Biomedical Advanced Research
and Development Authority (BARDA), uma divisão do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos7. Conforme um co-
municado divulgado neste mês pela empresa americana, o valor dos
repasses para financiar licenciamento, estudos clínicos e aceleração da
produção foi recentemente aumentado em US$ 235 milhões, levando
o total à cifra de US$ 1,25 bilhão (cerca de R$ 6,7 bilhões). A pesqui-
sa também recebeu apoio de uma série de entidades públicas, entre
elas o National Institute of Allergy and Infectious Diseases e o National
Center for Advancing Translational Sciences, que são parte do National

7. VERAS MOTA, Camila. Vacinas: sem o Estado, não haveria Big Pharma. Disponí-
vel em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/vacinas-sem-o-estado-nao-haveria-
-big– pharma/. Acesso em 09/07/2021.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 237

Institute of Health (NIH, o Instituto Nacional de Saúde), uma agência


do Departamento de Saúde dos Estados Unidos8.
A vacina da anglo-sueca AstraZeneca, por sua vez, foi largamente
financiada com recursos públicos ou de entidades filantrópicas. Estima-
tivas apontam que 97% do financiamento veio dessas fontes.
Do total de US$ 13,9 bilhões, aproximadamente R$ 70 bilhões de
reais, investidos mundialmente para desenvolver os imunizantes, cerca
de US$ 8,6 bilhões, ou R$ 43 bilhões, foram oferecidos pelos Estados-na-
ção, enquanto as farmacêuticas entraram com US$ 3,4 bilhões (R$ 17
bilhões) e as ONGs com US$ 1,9 bilhão (R$ 9,5 bilhões), de acordo com
levantamentos independentes.
Considerando que existem 7,7 bilhões de pessoas no mundo, seriam
necessárias cerca de 15 bilhões de doses de vacinas para imunizar todo
o planeta. Usando um valor médio de US$ 15 por dose (R$ 75), seria
necessário desembolsar US$ 225 bilhões, ou mais de um R$ 1 trilhão,
para a imunização total – o que representa 70% do que os cinco maiores
multimilionários do mundo obtiveram no último ano9.
Mesmo iniciativas como a Covax Facility, da OMS, possuem suas pró-
prias assimetrias: quais vacinas compartilham da cesta? Por quê? Para
quais países? Quais os critérios? Quem decide? E, principalmente, quando
se trata de uma pandemia de tamanha mortalidade: em quanto tempo?
Além disso, há sérios receios de que os programas de desenvolvi-
mento rápido – como o plano Warp Speed Operation, dos Estados Uni-
dos – tenham escolhido candidatos a vacina principalmente por suas
vantagens de fabricação (para adiantar o cronograma) e venda (quanto
mais cara a produção, mais caro o valor final), em vez da tecnologia de
vacina mais promissora em termos de segurança e eficácia.

8. Informação obtida na publicação do relatório preliminar do imunizante no The New


England Journal of Medicine, em 14/07/2020: JACKSON, Lisa A. et al. An mRNA Vac-
cine against SARS-CoV-2 – Preliminary Report. Disponível em https://www.nejm.
org/doi/full/10.1056/NEJMoa2022483. Acesso em 05/07/2021.
9. DE MELLO, Michele. Entenda por que apenas 10 países dominam a vacinação
contra a covid-19. https://www.brasildefato.com.br/2021/03/26/panorama-mun-
dial-entenda-por-que-vacinacao-se-concentra-nos-10-paises-mais-ricos. Acesso em
05/07/2021.
238 Hugo Leonardo Cunha Roxo

Outra coisa. A distribuição preferencial de vacinas para países espe-


cíficos, (denominada “soberania vacinal”, parte da soberania sanitária) é
uma crítica a algumas das parcerias de desenvolvimento de vacinas. No
caso da Oxford/AstraZeneca, por exemplo, os Estados Unidos fizeram
um adiantamento de US$ 1,2 bilhão para garantir 300 milhões de doses
de vacina.
Os EUA são o segundo maior fabricante de vacinas contra a COVID-19,
perdendo o primeiro posto para a China, mas até maio/2021 não tinham
compartilhado nem 1% das doses produzidas no país com o resto do
mundo – em contraste com China, Índia e Rússia, que se tornaram impor-
tantes fornecedores do produto a nível global, exportando grande parte
da sua produção. Apenas em julho/2021, há notícias de que o governo
estadunidense estuda a operacionalização de grande plano de doação
de vacinas pelo mundo, principalmente para os países periféricos10.
Está em todos os jornais.
O investimento anunciado tem um carácter geopolítico evidente e
sinaliza três variáveis de uma suposta abordagem comum: reforçar os
recursos de soft power e a capacidade de coordenação da Organização
Mundial da Saúde; articular uma estratégia euro-atlântica alargada a
Japão, Índia, Coreia do Sul e Austrália; e arrepiar caminho perante o
avanço da China e da Rússia na diplomacia da vacina.
Outro exemplo. Em junho, o Serum Institute of India – um grande
fabricante de vacinas globais – recebeu um pedido antecipado da As-
traZeneca por 100 milhões de doses de vacina e indicou que as doses
fabricadas na Índia podem ir primeiro para os cidadãos indianos, con-
forme exigido pelo governo indiano.
É interessante a divulgação de um dado que agrega informação
aqui: as vacinas produzidas o são pelas empresas que estão entre as
quinze maiores multinacionais da indústria farmacêutica, a chamada
Big Pharma. São elas: Johnson & Johnson (vacina Janssen), a Pfizer e a

10. CNN. Plano dos EUA de distribuição global de vacina pode ser apresentado nes-
ta quinta. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/06/03/pla-
no-dos-eua-de-distribuicao-global-de-vacina-pode-ser-apresentado-nesta-quinta.
Acesso em 10/07/2021.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 239

AstraZeneca (vacina Oxford). Outras estão em desenvolvimento, como


a Roche a Sanofi. A única empresa que produziu vacina anti-COVID-19
e não está na lista é a Moderna. Não demorará muito.
A lista das maiores empresas farmacêuticas do mundo, segundo a
Forbes11, inclui:
1. Johnson & Johnson (EUA)
2. Pfizer (EUA)
3. Novartis (ALE)
4. Merck (EUA)
5. Roche (SUÍ)
6. Sanofi (FRA)
7. Bayer (ALE)
8. GlaxoSmithKline – GKS (ING)
9. Amgen (EUA)
10. McKesson (EUA)
11. Gilead Sciences (EUA)
12. Teva Pharmaceuticals Inds (ISR)
13. AstraZeneca (ING/SUE)
14. Abbott Laboratories (EUA)
15. Eli Lilly & Co. (EUA)
A divisão internacional do trabalho e a teoria do sistema-mundo
também auxiliam na compreensão das tecnologias utilizadas pelas
diversas empresas e governos no desenvolvimento das vacinas e ainda
a questão da quebra de patentes e os obstáculos logísticos por detrás.
A tecnologia do mRNA (RNA mensageiro) é a mais recente, de
terceira geração. É a utilizada pela Pfizer/BioNTech e pela Moderna e
trabalha com a aplicação de partes do RNA (material genético) do vírus

11. FORBES. 15 maiores empresas farmacêuticas do mundo. Disponível em: https://


forbes.com.br/listas/2015/07/15-maiores-empresas-farmaceuticas-do-mundo/#-
foto1. Acesso em 09/07/2021.
240 Hugo Leonardo Cunha Roxo

no paciente. Faz uso de baixíssimas temperaturas para a conservação


do imunizante, o que inviabiliza sua disseminação em massa em muitas
regiões do planeta, principalmente aquelas periféricas. Inicialmente a
venda/aplicação das vacinas que utilizam esta tecnologia se concentrou
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.
Já as tecnologias de segunda geração são aquelas utilizadas por va-
cinas que usam vírus vetores: no caso, um ou mais adenovírus, humano
ou de animal, via manipulação em laboratório, recebe estruturas gené-
ticas do coronavírus, sobretudo ligadas a sua cápsula, de modo a ativer
o sistema imunológico contra estruturas presentes no agente causador
da covid-19. Essa é a tecnologia, entre outras, das vacinas AstraZeneca/
Oxford (Reino Unido), Sputnik V (Rússia) e Janssen, da Johnson&Johnson
(Estados Unidos). Estas vacinas têm feito parte em menor número das
cestas dos países centrais, se concentrando nos países semi-periféricos,
à exceção do Brasil, que somente em junho/2021 teve acesso a elas.
Por fim, a vacina mais tradicional, de primeira geração, utiliza a
tecnologia clássica do próprio vírus (mitigado) da doença. É o caso da
Coronavac (Sinovac-China/Butantan-Brasil), Sinopharm (China) e Sobe-
rana II (Cuba), vacinas aplicadas em larga escala nos países periféricos.
Note-se o forte componente geopolítico na produção/distribuição
das vacinas quanto à tecnologia utilizada para sua concepção, sendo os
Estados Unidos o grande financiador das vacinas de terceira geração e
a China o grande investidor das vacinas de primeira geração.
Assim, para a indústria farmacêutica ligada aos Estados Unidos
(com fábricas e laboratórios não necessariamente sediados lá), pode-se
dizer que a prioridade foi desenvolver tecnologias e obter royalties que
renderão economicamente muito no futuro, ainda que outras estratégias
tenham sido também adotadas, com menos urgência. Também se concen-
trou em vacinas que forçam o consumo de produtos de ponta, como as
geladeiras especiais, produzidas ou pelo país ou por empresas transna-
cionais com capital norte-americano. Essas vacinas criam uma situação
de “venda casada” muito interessante para o conjunto da indústria.
Finalmente, os Estados Unidos indicaram por meio da vacinação
quem seus aliados preferenciais, sem adotar qualquer política distri-
butiva que priorizasse o controle global da pandemia ou a vacinação de
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 241

países mais pobres. Se tomarmos a lista dos países que mais vacinaram,
proporcionalmente, sua população, é possível identificar uma correlação
clara entre esse sucesso relativo e uma relação de aliança prioritária dos
Estados Unidos para com eles.
China, Rússia, Índia e Brasil figuram como países-chave na produção
e distribuição de vacinas. China e Rússia como desenvolvedores e pro-
dutores de algumas das principais iniciativas de vacinação (Sinophar-
ma, Sinovac/Coronavac, Sputnik V, entre outras) e Índia e Brasil como
grandes centros de fabricação (Coronav pelo Butantã, AstraZeneca pelo
Serum indiano e pela FioCruz no Brasil). Provavelmente sem condições
de disputar uma corrida rápida nas vacinas de mRNA com os norte-a-
mericanos, a China apostou em diferentes projetos vacinais de primeira
e segunda geração para os anos de 2020 e 2021, estabelecendo ligações
com laboratórios de todo o mundo e usando a vacina como meio de apro-
ximação ou retaliação política. Ainda que numa posição menos relevante
que a China, a Rússia atuou de forma decisiva para a construção de uma
vacina bastante sofisticada, entre as de segunda geração, recorrendo a
dois tipos de adenovírus como vetores das características do coronavírus.
Inicialmente, houve várias acusações de que os russos estariam roubando
tecnologia britânica do projeto da AstraZeneca, mas ao fim ficou claro
que o projeto russo era mais sofisticado do que o concorrente britânico
capitaneado, cientificamente, pela Oxford. Argentina, Venezuela, Pales-
tina e uma série de outros países estão vacinando já com a Sputnik V,
aparentemente com resultados positivos. Essa ação comercial tem como
resultado o fortalecimento das relações diplomáticas e econômicas da
Rússia com países da América Latina, por exemplo, o que enfraquece
relativamente o domínio comercial norte-americano.
O caso da União Europeia, até o momento, é especialmente signifi-
cativo. Embora conte com algumas das mais importantes indústrias far-
macêuticas do mundo e participe de consórcios de produção de vacinas
como a da Pfizer, a vacinação na região fica aquém do que a condição de
um dos centros econômicos e políticos do mundo. Dados do Our World
in Data indicavam que o bloco administrou 6,8 doses de vacinas por 100
pessoas, contra 29 para cada 100 habitantes do Reino Unido e 20,6 nos
Estados Unidos. É possível perceber que a ausência de controle públi-
co sobre essas empresas privadas e a relativa dependência do capital
242 Hugo Leonardo Cunha Roxo

europeu em relação ao norte-americano faz com que a velocidade da


vacinação na região fique muito aquém da que acontece no Reino Unido,
por exemplo. Houve atrasos na produção das vacinas Pfizer e Moderna
para a Europa, mas esses atrasos não impactaram significativamente o
Reino Unido e os Estados Unidos12.
Precisamente quanto à distribuição/aplicação, o quadro abaixo, da
plataforma Our World in Data, coordenada pela Universidade de Oxford,
mostra a distribuição das doses de vacina administradas para cada 100
habitantes de cada país. Os países em azul escuro possuem mais de duas
doses do imunizante em estoque para cada habitante13.

Fonte: Official data Collated by Our World in Data – Last updated 9 Abril, 10:40 (London time)
OurWorldinData.org/coronavirus • CCBY

12. ALEXANDRAKIS, Fredy. Os EUA entre o nacionalismo e a diplomacia da vacina.


Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/05/30/Os-EUA-
-entre-o-nacionalismo-e-a-diplomacia-da-vacina. Acesso em 10/07/2021.
13. SUÑE, Rodrigo; DEL PRETE, Giovani. Geopolítica da vacina e luta anti-imperialis-
ta. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/04/15/artigo-geopoliti-
ca-da-vacina-e-luta-anti-imperialista. Acesso em 08/07/2021.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 243

Outra situação a ser considerada é a do valor da vacina por dose.


Para efeito de comparação, veja-se o valor aplicado ao Brasil, país se-
mi-periférico, e a outros países, sejam do centro ou da periferia. Muito
provavelmente, o preço aplicado ao Brasil é decorrente da crise pandê-
mica. Passado caos, os preços correntes devem ser aqueles aplicados aos
países centrais, o que encarecerá sobremaneira a vacina.

Fonte: Folha de São Paulo, 09/06/2021


244 Hugo Leonardo Cunha Roxo

Fonte: Folha de São Paulo, 09/06/2021

Para acelerar a produção e distribuição do imunizante pelo mundo,


África do Sul e Índia apresentaram uma proposta de ruptura das patentes
dos medicamentos, difundindo sua fórmula de maneira livre para des-
centralizar sua produção em outros países. O documento foi apresentado
em outubro do ano passado à Organização Mundial do Comércio (OMC)
e apoiado por 100 países. Brasil, Estados Unidos, Reino Unido e União
Europeia se opuseram a quebrar patentes para a fabricação das va-
cinas em larga escala. Até agora não houve aprovação.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 245

A conclusão a que se chega disso tudo é simples: a divisão inter-


nacional do trabalho permaneceu sem fissuras durante a pandemia
de COVID-19, trazendo inúmeros obstáculos à consecução do direito à
saúde no Brasil.

3.3. Autonomia/soberania sanitária e direito à saúde


A vacinação coletiva da população, enquanto atividade essencial-
mente preventiva e garantidora do direito à saúde, é a premissa para a
saída da pandemia.
Porém, os entraves geopolíticos para disseminar a vacinação em
massa não oferecem um cenário positivo à efetivação do direito funda-
mental à saúde.
Mesmo as vacinas que estão sendo desenvolvidas no país, com
tecnologia própria, como a Butanvac, pertencem à primeira geração,
ainda com sérias dúvidas sobre a taxa imunizante, bem como com baixo
índice de penetração na participação do país no mercado mundial de
vacinas.
Ademais, as transferências de tecnologia entre a Sinovac (China) e o
Instituto Butantan, bem como entre a Oxford/AstraZeneca e a FIOCRUZ,
não parecem ser transferências ponta a ponta, ou seja, se classificam
como fornecimento de produção do IFA sem qualquer quebra de pa-
tentes.
Ainda, o acesso às vacinas mais eficazes tende a ficar cada vez mais
caro, à medida que a vacinação da população fecha o primeiro ciclo e se
aproxima o pós-pandemia.
A soberania sanitária, portanto, no que tange ao direito à saúde,
está em jogo.
O controle do acesso à vacina continua sendo feito, no bojo da di-
visão internacional do trabalho, pelos países centrais, seus governos e
empresas privadas.
Há, sem dúvidas, possíveis alternativas para o impasse geopolítico
e a garantia do direito à saúde. Passam, entretanto, por sólidas políticas
públicas de saúde que incluam justamente a capacidade de produção de
246 Hugo Leonardo Cunha Roxo

tecnologias preventivas, sem dependência de qualquer ordem no ciclo


produtivo, porém com manutenção de fortes diálogos internacionais
para eventuais atividades complementares.
É justamente aquilo que conceitua TEIXEIRA (2017, p. 179) como
soberania sanitária:
A soberania sanitária se expressa em duas dimensões, uma interna
e outra externa, que são complementares e se retroalimentam. Na
dimensão interna, que se expressa no âmbito do Estado nacional,
a soberania sanitária é a capacidade de definir políticas públicas a
partir da concepção de que a saúde é um direito humano e de que
as necessidades das pessoas devem ser atendidas por sistemas de
saúde sustentáveis. Na dimensão externa, que se expressa no âmbito
regional e se fortalece a partir da integração entre os países, a sobe-
rania sanitária é a capacidade de defender os interesses em saúde
de sua população em espaços multilaterais e frente aos interesses
transnacionais mercadológicos. A soberania sanitária estabelece um
mecanismo regional de resistência à medida que reforça a indepen-
dência e a autonomia em saúde dos Estados.
O Estado brasileiro, com vistas a concretizar o discurso constitu-
cional previsto nos arts. 6º e 196, não pode renunciar à sua soberania
sanitária e ao direito à saúde de sua população. Se o cenário externo é
de obstáculos, deve-se voltar ao fortalecimento do cenário interno.
Para buscar uma atuação na redução de danos, após a morte de quase
600 mil brasileiros, é óbvio que o orçamento destinado à saúde e ao SUS
deve ser fortalecido, já que não há imunidade de rebanho que justifique
a compra tardia e insuficiente de vacinas, bem como ausência de inves-
timentos públicos na produção do próprio imunizante; ainda, o teto de
despesas primárias não se sustenta na continuidade do enfrentamento da
pandemia em 2021 e em 2022. Não se fazem direitos sem custos, como
se depreende do voto do ministro Benjamin Zymler constante dos autos
do TC 014.575/2020-5, que tramita no Tribunal de Contas da União14:
1) A despeito de ter tido uma dotação autorizada de R$69,88 bi-
lhões no âmbito da ação 21C0, dos quais R$63,74 bilhões foram

14. PINTO, Élida Graziane. E se a CPI da Covid-19 no Senado investigasse o caos fis-
cal do SUS? Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-17-ju-
nho-2021. Acesso em 10/07/2021.
Geopolítica da vacina, direito à saúde e soberania sanitária 247

destinados ao Ministério da Saúde para o enfrentamento espe-


cificamente sanitário da epidemia, o SUS efetivamente só contou
com R$41,75 bilhões, porque o Governo Federal deixou de executar
praticamente o expressivo saldo de R$22 bilhões em relação aos
créditos extraordinários abertos no Orçamento de Guerra (Emenda
106/2020) no ano passado;
2) A escolha em negar plena e adequada execução orçamentária ao
SUS agravou a capacidade de resposta do Ministério da Saúde na
transição de 2020 para 2021. Isso porque, dos R$21,75 bilhões
transpostos de 2020 para 2021, R$19,9 bilhões se referem a va-
cinas e a margem restante (R$1,65 bilhão) é insuficiente para as
demais demandas a cargo da pasta no enfrentamento da Covid-19
no presente exercício financeiro;
3) O Governo Federal simplesmente não previu qualquer centavo para
a ação 21C0 (relativa ao enfrentamento sanitário da epidemia) no
projeto de lei orçamentária de 2021. Vale lembrar que tal ação
recebera em 2020 R$63,74 bilhões e que o PLOA-2021 teve sua
aprovação no Congresso apenas em 25 de março deste ano, o
que permitiria que o Executivo federal tivesse enviado mensa-
gem modificativa do projeto para corrigir a omissão diante do
agravamento da calamidade sanitária em país se encontra desde
dezembro de 2020;
4) A unidade técnica do Tribunal de Contas da União, responsável pela
fiscalização da política pública de saúde federal, não teve acesso a
planos e documentos afins que atestassem a existência formal de
estratégia de enfrentamento da Covid-19 pelo Ministério da Saúde;
5) Foi retomada a conclusão do Acórdão TCU 2817/2020 – Plenário
de que falta uma estratégia nacional de enfrentamento da epide-
mia no país. (grifos nossos)
Por fim, não se olvide que a tardia e insuficiente oferta de vacinas no
país não se deve tão-somente ao contexto externo, ao seu elevado custo,
nem à falta de recursos orçamentários no cenário interno, mas à falta
de prioridade atribuída à vacinação massiva com soberania sanitária,
para garantir o direito à saúde da população brasileira numa resposta
sanitária eficaz.
Soberania sanitária é escolha; soberania sanitária é política.
248 Hugo Leonardo Cunha Roxo

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente texto, sob a égide da teoria do sistema-mundo, de Imma-
nuel Wallerstein, angariou a hipótese de que a geopolítica da vacina
anti-COVID-19 trouxe, e ainda traz, dificuldades para a efetivação do
direito à saúde, uma vez que a soberania sanitária resta comprometida
num cenário onde há intensa concentração no acesso e no controle ao
acesso aos imunizantes realizado pelos países centrais.
No caso específico do Brasil, a ausência de soberania sanitária não
se ateve apenas ao vetor externo, mas também ao vetor interno, já que
o orçamento da saúde não previu a compra de imunizantes nem fora
executado todo o programa financeiro destinado ao Ministério da Saúde,
sem quaisquer justificativas plausíveis.
A pandemia de COVID-19 trouxe à tona a geopolítica da vacina como
complicador na efetivação do direito à saúde para os países periféricos
e semi-periféricos.
Há saídas. Mas precisam de decisões políticas. Mais uma vez resta
patente que não há direito fundamental à saúde sem a concretização de
políticas públicas sólidas para se evitar a morte de tantos brasileiros.

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250 Hugo Leonardo Cunha Roxo

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WALLERSTEIN, Immanuel. World-systems analysis: an introduction. Duke
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ponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/vacinas-sem-o-es-
tado-nao-haveria-big-pharma/. Acesso em 09/07/2021.
CAPÍTULO XI

A alocação de recursos de saúde


em face da escassez de Unidades
de Terapia Intensiva (UTI’s) decorrente
da pandemia ocasionada pela covid-19

Diogeano Marcelo de Lima*

Sumário: 1. Introdução; 2. Da eleição de critérios para alocação de vagas em


unidades de terapia intensiva (uti’s); 3. Da impossibilidade de se multiplicar os
recursos de saúde através da via judicial; 4. Breve histórico sobre o surgimento da
bioética: 4.1. Da bioética principialista; 4.2. Da aplicabilidade do princípio bioé-
tico da justiça na distribuição de vagas de unidades de terapia intensiva (UTI’s).
Considerações finais. Referências.
Palavras-chave: Bioética principialista. Justiça. Alocação de recursos escassos.
Unidades de terapia intensiva.

1. INTRODUÇÃO
O cenário brasileiro nunca escondeu a realidade do caos que aflige
o serviço de saúde pública, sendo costumeiro a repercussão de matérias
jornalísticas que mostram a sua precarização com a falta de leitos, de
remédios e a longa lista de espera para se marcar uma consulta com um
médico especialista ou realizar algum procedimento médico.
Em nosso verdadeiro normal, já convivemos com a escassez diária
de recursos, onde os investimentos aplicados no Sistema Único de Saúde
nunca são suficientes para acompanhar a demanda dos mais de 150

(*) Especialista em Direito Processual Civil pelo instituto Luiz Flávio Gomes e Pós-Gra-
duando em Direito Médico pela Faculdade CERS.
252 Diogeano Marcelo de Lima

milhões de brasileiros que necessitam do serviço público de saúde, pois


se de um lado temos a letalidade de uma enfermidade, do outro temos a
maioria da população em evidente estado de fragilidade social e econô-
mica que a torna totalmente dependente dos serviços públicos de saúde.
Com a pandemia ocasionada pela COVID-19, este cenário já caótico
se mostrou ainda mais delicado, uma vez que a insuficiência de leitos
hospitalares e a inoperância do Sistema Único de Saúde (SUS) em lidar
com o aumento gigantesco da demanda por leitos em um curto espaço
de tempo, ou seja, a ausência de atendimento, vem se mostrando mais
letal que a própria COVID-19.
Diante disso, é improvável atender a toda a demanda por Unidades de
Terapia Intensiva (UTI’s) e objetivando que o maior número de pessoas
infectadas sobreviva a pandemia, os órgãos governamentais que admi-
nistram os serviços de saúde e os profissionais clínicos que atuam na
linha de frente desta batalha contra a COVID-19 são obrigados a adotar
regras que definam critérios objetivos para que haja uma justa alocação
dos recursos de saúde.
Por outro lado, a desproporção entre a demanda por leitos de Uni-
dade Intensiva (UTI) e a oferta de vagas tem provocado a judicialização
dos critérios adotados para a distribuição das escassas vagas disponi-
bilizadas, o que exige um debate mais amplo e interdisciplinar sobre o
tema, para se buscar fora do ordenamento jurídico subsídios capazes de
nortear a administração pública a realizar a escolha com o maior grau
de acerto possível, como é o caso da adoção da bioética principialista.
No entanto, como esses critérios devem ser adotados para que se
evite a discriminação de grupos da população? Como escolher qual pa-
ciente tem o direito de viver ou de morrer? Como garantir uma assistên-
cia médica efetiva sem que haja desperdício de recursos sem atropelar
umas das características mais importantes do SUS que é a solidariedade?
O presente estudo tem como objetivo responder a essas questões,
contribuindo para o necessário e urgente debate sobre a alocação de
recursos escassos, em especial os leitos de Unidade de Terapia Inten-
siva (UTI’s), a luz dos princípios da bioética principialista, mostrando
as limitações do Poder Judiciário em retirar da administração pública a
competência para eleger os critérios adotados.
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 253

2. DA ELEIÇÃO DE CRITÉRIOS PARA ALOCAÇÃO DE


VAGAS EM UNIDADES DE TERAPIA INTENSIVA (UTI’S)
A necessária alocação de recursos de saúde se torna imperiosa a par-
tir do momento em que os mesmos se tornam insuficientes para atender
a toda a demanda, e quando opta-se pelo tratamento de um paciente
está ao mesmo tempo, negando o mesmo tratamento a outro paciente. E
diante deste cenário os profissionais de saúde são obrigados a enfrentar
a escolha de Sofia, devendo escolher os pacientes com maiores chances
de sobreviver, como um meio não apenas de salvar o maior número de
pessoas, mas também para evitar o desperdício de recursos de saúde.
A distribuição de leitos na UTI já se encontrava regulada pelo Conse-
lho Federal de Medicina – CFM, quando estabeleceu critérios de admissão
e alta de pacientes em unidades de terapia intensiva através da Resolução
nº. 2.156/2016 (CFM, 2016). A referida Resolução estabelece em seu
artigo 6º os seguintes critérios para se definir quais pacientes teriam
prioridade a vagas na UTI:
Art. 6ºA priorização de admissão na unidade de tratamento intensivo
(UTI) deve respeitar os seguintes critérios:
§ 1º – Prioridade 1: Pacientes que necessitam de intervenções de
suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhu-
ma limitação de suporte terapêutico.
§ 2º – Prioridade 2: Pacientes que necessitam de monitorização
intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e
sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.
§ 3º – Prioridade 3: Pacientes que necessitam de intervenções de
suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com
limitação de intervenção terapêutica.
§ 4º – Prioridade 4: Pacientes que necessitam de monitorização
intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata,
mas com limitação de intervenção terapêutica.
§ 5º – Prioridade 5: Pacientes com doença em fase de terminalidade,
ou moribundos, sem possibilidade de recuperação. Em geral, esses
pacientes não são apropriados para admissão na UTI (exceto se
forem potenciais doadores de órgãos). No entanto, seu ingresso
pode ser justificado em caráter excepcional, considerando as pecu-
liaridades do caso e condicionado ao critério do médico intensivista.
(CFM, 2016).
254 Diogeano Marcelo de Lima

No entanto, os critérios adotados pela Resolução CFM nº. 2.156/2016


são apropriados para as situações de emergência do dia a dia dos hos-
pitais públicos, sendo insuficiente para responder às questões atuais
trazidas pela COVID–19, pois todos os pacientes estão na mesma situação
de urgência, sendo classificadas como prioridade 1, sem que haja leitos
para todas eles, necessitando de atendimento intensivo com o uso de
respiradores para não morrerem sufocados.
Destaque-se que a referida resolução fora confeccionada e publi-
cada ainda sob a égide de nosso antigo “normal”, não tendo como os
conselheiros à época se prepararem para situações ainda não vividas na
escala e com a mesma proporção de informações que temos hoje, capaz
de trazer os subsídios técnicos e éticos necessários, uma vez que a teoria
principialista abordada por BEAUCHAMP e CHILDRESS (2002) nasceu
na década de 70, sendo, portanto, uma matéria ainda jovem.
Em razão desta nova problemática, profissionais de saúde, filósofos,
comitês de ética e diversas instituições vêm debatendo e propondo di-
retrizes para uma alocação de recursos de saúde que sejam técnicos e
éticos, em que diante da impossibilidade de oferecer leitos hospitalares
para todos, haja uma escolha equânime.
No Brasil, foi publicado um documento sobre o tema pela Associação
de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), na data de 27 de março de 2020,
o qual se intitula “Princípios de Triagem em Situações de Catástrofes e as
Particularidades da Pandemia COVID-19” (AMIB, 2020). Posteriormente,
a mesma associação publicou um novo documento atualizando o anterior,
em 12 de abril, intitulado “Recomendações da Associação de Medicina
Intensiva Brasileira para a Abordagem do COVID-19 em Medicina Inten-
siva” (AMIB, 2020), adotando para alocação de recursos basicamente três
critérios: gravidade, maior grau de sobrevida e capacidade do paciente.
No primeiro quesito da referida recomendação, há uma justificação
da adoção das medidas defendidas com base nos seguintes princípios
éticos legais:
O desenvolvimento de um protocolo de triagem, que identifique
quais pacientes teriam prioridade na alocação de recursos em
esgotamento devido a pandemia de COVID-19, não é um projeto
meramente técnico. Ao contrário, elementos técnicos dever ser uti-
lizados, apenas, quando traduzem, a beiro-leito, princípios éticos e
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 255

legais que guiam a relação entre indivíduos e, ainda, entre o Estado


e os cidadãos. Princípios éticos e legais devem, fundamentalmente,
guiar esse processo. A presente sugestão de protocolo deve, portanto,
antes de descrever os procedimentos e critérios propostos, indicar,
claramente, quais são os princípios éticos e legais adotados para o
seu embasamento. (AZEVEDO et al., 2020).
Embora os documentos não sejam conclusivos e se tratem apenas de
recomendações, não tendo, portanto, caráter vinculativo, é inegável que
prioridades devem ser estabelecidas, uma vez que o sistema público de
saúde está colapsando na maioria dos estados brasileiros, o que exige a
tomada de decisões pelos profissionais de saúde que estão na linha de
frente, como já vem ocorrendo em outros países como a Itália, Espanha
e Estados Unidos, por exemplo, para que os escassos recursos de saúde
sejam usados da melhor forma possível, permitindo a recuperação do
maior número possível de pessoas (AZEVEDO et al., 2020).
Nesse sentido é essencial que os critérios a serem adotados sejam
equânimes e aplicados de forma imparcial a todos os pacientes, enquanto
perdurar a situação de excepcionalidade ocasionada pela pandemia.
Nesse sentido:
Durante a situação de excepcionalidade, as diretrizes devem ter como
principal objetivo maximizar o salvamento de vidas individuais, de
forma equitativa, por meio de uma utilização eficaz dos recursos
imediatamente disponíveis. A proposta é “equitativa” porque todas
as demandas serão igualmente consideradas. Ninguém será deixa-
do de fora sem que a sua demanda seja comparada à demanda de
outras pessoas que também precisam dos recursos das UTI's. Mas a
natureza da situação colocada pela pandemia é tal que os recursos
não poderão ser distribuídos igualmente entre todas as pessoas que
necessitam de tratamento. Por essa razão, uma equipe de triagem
terá de tomar a decisão sobre quem será admitido para tratamento
na UTI, e quem não será admitido. Essa não é uma decisão fácil para
as equipes de triagem. Deve ser inclusive do interesse dos profis-
sionais de saúde que essa decisão, em última instância, possa ser
compartilhada com a sociedade como um todo. O estabelecimento
de diretrizes amplamente debatidas retira dos profissionais de
saúde uma parte do peso dessas difíceis escolhas morais. (AZEVEDO
et al., 2020).
Por outro lado, os critérios a serem adotados devem estar em con-
sonância com as normas constitucionais, em especial ao rol de direitos
256 Diogeano Marcelo de Lima

e garantias fundamentais, não devendo ser cogitada a prática de dis-


criminações de gênero, por idade, orientação sexual, étnicas, raciais,
econômicas e sociais, em nome de uma suposta melhor alocação das
vagas de UTI (AZEVEDO et al., 2020).
Tem-se adotado como critério principal a alocação de recursos e
Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s) para os pacientes que possuem
maiores chances de sobrevivência, por terem uma recuperação mais
rápida permitindo que o leito hospitalar fique disponível mais rápido
para outros pacientes. O que coloca como ponto principal os critérios
adotados para definir quais os pacientes possuem maiores chances de
recuperação (AZEVEDO et al., 2020).
Em todo caso, é essencial que haja transparência sobre os critérios
adotados, devendo tanto o paciente como os seus familiares serem
informados sobre a decisão tomada pela equipe de triagem, de forma
esclarecida. Por sua vez, a negativa da equipe de triagem, não implica o
abandono total do paciente, pois mesmo que não exista possibilidade
de internamento em uma UTI, todas as medidas paliativas devem ser
adotadas para minorar o sofrimento do paciente (AZEVEDO et al., 2020).
Observe-se que, no tocante à alocação de vagas na UTI, não se deve
priorizar somente os pacientes infectados pela COVID-19, mas todo e
qualquer paciente que necessita da utilização da UTI independente da
patologia que o acomete, pois assim estaríamos privando dos trata-
mentos médicos diversos pacientes que padecem de patologias graves
diversas, como por exemplo o câncer terminal (AZEVEDO et al., 2020).

3. DA IMPOSSIBILIDADE DE SE MULTIPLICAR
OS RECURSOS DE SAÚDE ATRAVÉS DA VIA JUDICIAL
Recentemente tem aumentado o número de ações promovidas por
pessoas que buscam a efetivação do seu acesso ao pleno exercício do
direito a saúde pública (MORAIS, 2021). Essa realidade materializa-se,
cotidianamente, com o aumento exponencial da quantidade de ações plei-
teando o acesso ao Direto à Saúde, conforme restou demonstrado através
de pesquisa encomendada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça),
entre os anos de 2008 e 2017, na qual ficou caracterizado o aumento de
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 257

130% de ações cujo tema era o acesso à saúde. Desse total, o percentual
de 8,76% diz respeito a tratamento médico-hospitalar e fornecimento
de medicamentos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2019):
Entre 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde
registrou um aumento de 130%, conforme revela a pesquisa “Judicia-
lização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas
de solução”. O estudo, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa
(Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que, no
mesmo período, o número total de processos judiciais cresceu 50%.
O levantamento foi divulgado nesta segunda-feira (18/3) durante a
III Jornada de Direito da Saúde, em São Paulo.
O crescimento exponencial das ações distribuídas no âmbito do
Poder Judiciário pode nos trazer duas conclusões imediatas: o quanto
o acesso pleno ao direito à saúde é uma realidade distante no nosso
cenário brasileiro e o quanto o Poder Judiciário tem assumido posição
de destaque para garantir a efetividade do acesso à saúde pública no
Brasil (MORAIS, 2021).
No entanto, embora seja função importante do Poder Judiciário
garantir o acesso à saúde, especialmente nos casos de inércia do Poder
Público, e que esta seja atribuição garantida pelo texto constitucional,
especialmente porque vem adotando a doutrina da efetividade dos
direitos fundamentais, não se deve fechar os olhos para as limitações
materiais do fornecimento de serviços que não podem ser multiplicados
via liminar (MORAIS, 2021).
No cenário pandêmico que se instalou no Brasil em decorrência
da Covid-19 ocorreu, sem dúvidas, a sobrecarga do Sistema Único de
Saúde, em especial no que se diz respeito a disponibilização de vagas
de leitos de Unidade de Terapia Intensiva para as pessoas infectadas
por Covid-19, haja vista que, a gravidade da doença exigia, em muitos
casos, o atendimento intensivo e o uso de respiradores para garantir a
sobrevivência e recuperação do paciente (MAGENTA, 2021).
A medida em que o número de contaminados fora aumentado, o
aumento da demanda por leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI’s)
cresceu vertiginosamente de forma desproporcional a capacidade do Es-
tado de ofertar novos leitos, haja vista que, a pandemia deu início a uma
corrida pelos mais diversos recursos de saúde, sejam eles medicamentos,
258 Diogeano Marcelo de Lima

ao mais simples, como máscaras cirúrgicas descartáveis, de modo que


todos os países estavam, ao mesmo tempo, em busca dos mesmos re-
cursos em uma quantidade jamais antes imaginada, o que culminou no
fenômeno da escassez (MAGENTA, 2021).
A grande busca por vagas de Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s)
gerou e ainda vem gerando uma longa lista de espera, e diversas pessoas,
movidas pelo próprio anseio de sobreviver, acabaram ingressando com
ações perante o Poder Judiciário para conseguir, através de medidas
liminares, que o Estado fosse obrigado a lhes garantir uma vaga em uma
Unidade de Terapia Intensiva (MORAIS, 2021).
Em diversas decisões de primeira instância foram concedidas medi-
das liminares no sentido de obrigar o Estado a garantir vagas de Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) a quem as pleiteasse via tutela jurisdicional.
No entanto, a eficácia de todas as liminares foi cassada por decisão do
próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2021):
No caso, a questão de fundo refere-se à lesão ao Sistema de Saúde
do Município de Cuiabá, que, em razão de diversas liminares ju-
diciais que determinaram a internação de pacientes acometidos
por covid-19 em leitos de UTI, vê, prestes a colapsar ainda mais,
a deficitária estrutura existente para combater a pandemia que se
mantém em estado de gravidade.
Com relação às decisões por mim proferidas no que diz respeito
à pandemia de covid-19, entendo que não se pode permitir que seja
retirada dos atos administrativos do Poder Executivo a presunção da
legitimidade ou veracidade, sob pena de se desordenar a lógica de
funcionamento regular do Estado na prestação do serviço de saúde.
Tratando-se ainda de leitos de UTI, o requerente informou que,
na data de 8/4/2021, existiam 115 pacientes na fila de espera por
leito de UTI-COVID no Estado de Mato Grosso. Sabe-se que a regu-
lação dos leitos de UTI é realizada pelo Poder Executivo de modo
a atender as prioridades clínicas estabelecidas pelo corpo médico
das Secretarias de Saúde.
Considerando os prejuízos à saúde ocasionados por decisões
liminares que, em razão da sua natureza unipessoal, não consideram
os fatores gerais que interferem no Sistema de Saúde como um todo,
o Conselho Nacional de Justiça editou recentemente a Recomenda-
ção n. 92/2021 com o objetivo de orientar os magistrados, à luz da
independência funcional, a atuar na pandemia de covid-19, de forma
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 259

a fortalecer o sistema brasileiro de saúde, com observância à isono-


mia e em atenção aos preceitos veiculados pela Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro.
Por seu turno, o art. 22 da LINDB é claro ao estabelecer que,
em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato,
deverão ser consideradas pelo julgador as circunstâncias práticas
que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente
administrativo.
No caso, a falta de leitos de UTI, que justificou as referidas me-
didas liminares, não se deu por má gestão da administração pública,
e sim pelo notório reconhecimento do infeliz colapso dos leitos de
UTI atualmente presenciado em diversos estados da Federação.
Por melhor que sejam as intenções do magistrado, existe uma grave
incongruência entre o instrumento adotado (que é a tutela jurisdicional)
para combater o mal atacado (o colapso da insuficiência de vagas em
UTI’s), haja vista que ante um cenário de escassez de recursos não é uma
liminar que conseguirá fazer surgir do nada novos leitos, desconsideran-
do diversos fatores materiais que são essenciais para a disponibilização
de uma vaga de UTI, além da própria vontade discricionária do gestor
público (MORAIS, 2021).
Foi com essa preocupação que o próprio Conselho Nacional de
Justiça – CNJ, editou a Recomendação nº 92, citada na decisão acima, a
qual recomenda aos magistrados que levem em consideração as conse-
quências de suas decisões liminares, que o descumprimento das mesmas
não tenha como pena caráter pessoal (pena de prisão por exemplo), e
que sejam levados em consideração os protocolos de classificação de
risco, senão vejamos:
Art. 1º Recomendar aos magistrados com atuação nas demandas
envolvendo o direito à saúde no contexto pandêmico que, à luz
da independência funcional que lhes é assegurada, observem as
seguintes diretrizes:
I – que as decisões judiciais proferidas atentem às consequências
práticas que ensejarão, nos termos da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/1942);
II – que se reconheça a relevância do sistema e-NatJus e, sempre
que possível, que ele seja utilizado previamente à decisão judicial,
na medida em que representa instrumento de auxílio técnico para
os magistrados com competência para processar e julgar ações que
260 Diogeano Marcelo de Lima

tenham por objeto o direito à saúde. Esse sistema é composto pelos


NatJus estaduais e pelo NatJus nacional, este último disponibiliza du-
rante 24 (vinte e quatro) horas e 7 (sete) dias por semana, o serviço
de profissionais de saúde que avaliarão as demandas de urgência
usando protocolos médicos e, com base nas melhores evidências
científicas disponíveis, fornecerão o respaldo técnico necessário
para a tomada de decisão, nos termos do Provimento no 84/2019
expedido pela Corregedoria Nacional de Justiça;
III – que as decisões judiciais relativas às internações hospitalares
levem em consideração, sempre que possível, os protocolos de clas-
sificação de risco emanados das autoridades sanitárias e executados
pelas Centrais de Regulação de Internação Hospitalar ou órgãos
equivalentes, devendo os Comitês de Saúde dos estados e do Distrito
Federal auxiliar os magistrados, sempre que necessário, a acessar
as informações mencionadas; e
IV – que se evite, na medida do possível, a realização de intimações
com a fixação de sanções pessoais, como a de multa e de prisão,
dirigidas aos gestores da Administração Pública do Ministério da
Saúde e das Secretarias de Saúde Estaduais, do Distrito Federal e
Municipais, assim como a imposição de multas processuais aos entes
públicos e o bloqueio judicial de verbas públicas, notadamente nas
situações em que haja elevada probabilidade de, em curto prazo,
impossível cumprimento da obrigação contida na medida judicial, em
virtude da ampla e reconhecida escassez de recursos, por exemplo,
de leitos, de oxigênio e de vacinas. (CNJ, 2021)
A cassação das liminares não significa afastar a importância e a
autoridade do Poder Judiciário sobre o controle das políticas públicas,
em especial as voltadas para a garantia do acesso à saúde pública, pelo
contrário, apenas visa assegurar a higidez do sistema na medida em que
o Poder Judiciário assume que não pode alterar a realidade com base
em uma sentença (MORAIS, 2021).
Embora seja da vontade geral de que todos tivessem acesso, não
apenas a vagas na UTI, mas também a todo e qualquer recurso de saúde
necessário para a cura de sua enfermidade, não se pode percorrer o
caminho da ilusão, ou pior, atropelando critérios objetivos adotados por
quem está na linha de frente, incorrendo no erro de retirar de dentro de
uma UTI alguém em estado de saúde mais grave somente para disponi-
bilizar a sua vaga para atender a liminar concedida por um juiz que esta
equidistante da realidade de um centro especializado de atendimento a
Covid-19 (MORAIS, 2021).
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 261

4. BREVE HISTÓRICO SOBRE O SURGIMENTO


DA BIOÉTICA
Os registros históricos nos mostram que, os períodos de maior evo-
lução da humanidade foram antecedidos por seus maiores retrocessos,
chegando até a assustar o quanto muitas vezes é necessário o ser humano
enfrentar o pior do seu gênero para entender qual a direção certa pela
qual a humanidade deve ser guiada. Não é por menos que a bioética nasce
justamente quando o ser humano se rebaixa à indiferença, chegando ao
ponto de desconhecer a humanidade em seus próprios semelhantes, os
quais julga como desprovidos de autonomia e de direitos ou de qualquer
valor, como descartáveis e inúteis (GOLDIM, 2006).
Sem sombra de dúvidas, a bioética pode ser considerada não apenas a
ética do comportamento humano aplicada à ciência da pesquisa científica
ou à medicina, mas também um resgate de nossa própria humanidade
a salva-nos de nossa própria indiferença e a própria história de ser no-
vamente manchada por atrocidades (ARAUJO, 2012).
Não é à toa que o termo bioética significa a ética aplicada à vida, mas
a primeira vez em que foi usada, pelo menos até onde se tem registro na
história, foi em uma publicação datada de 1927, de autoria do teólogo
alemão Paul Max Fritz Jahr na revista Kosmos, onde em seu artigo propõe
a bioética como um imperativo categórico moral, aduzindo que devemos
nos preocupar com outras formas de vida (animais, plantas, etc.) como
se vidas humanas fossem (GOLDIM, 2006).
Assim, o termo bioética, possuía uma dimensão mais limitada da que
encontramos hoje, e o autor da época demonstrava uma preocupação
com outras formas de vida da natureza, algo comparável a preocupação
que os ambientalistas demonstram com a flora e a fauna, e que vem
ganhando tantos adeptos em especial ao direito dos animais (GOLDIM,
2006).
No entanto, apesar de o primeiro registro histórico do uso do termo
bioética ter sido na Alemanha, foram ideias como a eugenia, que ganha-
ram força no início do século XX no referido país, junto com a ascensão
do nazismo, que ocasionaram a Segunda Guerra Mundial, além de in-
contáveis perdas de vidas humanas (ARAUJO, 2012).
262 Diogeano Marcelo de Lima

Após a queda de Hitler, a humanidade tomou conhecimento da


extensão dos crimes humanitários praticados pelo nazismo, que não se
limitaram ao extermínio em massa de etnias julgadas como inferiores
à chamada raça pura ariana, mas também aos inúmeros experimentos
científicos realizados em pessoas, sem seu consentimento, ou sem com-
provação dos benefícios das pesquisas realizadas, em grande maioria
nos judeus (ARAUJO, 2012).
Não é à toa que, dos vinte e três acusados do Tribunal de Nurem-
berg, vinte eram médicos, denunciados por cometerem atrocidades com
presos, pela condução de pesquisas clínicas em humanos abstendo-se
da utilização de qualquer método científico, ou de qualquer método
humanizado no cuidado com as pessoas que eram tratadas apenas como
cobaias, indignas do direito a autonomia (ARAUJO, 2012).
As atrocidades demonstradas no Julgamento de Nuremberg, cha-
maram a atenção dos países vencedores da guerra para a criação de
um código que traçasse diretrizes éticas para a condução de pesquisas
com seres humanos, nascendo assim o Código de Nuremberg em 1947,
tornando-se, portanto, o primeiro Código Internacional de Ética para
pesquisas com seres humanos (ARAUJO, 2012).
O Código de Nuremberg inovou no âmbito da pesquisa clínica, pois
começou a exigir que o experimento, para ser eticamente aceitável,
deveria apresentar resultados que de fato fossem vantajosos para a
humanidade e que não pudessem ser alcançados por outros métodos,
buscando sempre reduzir o sofrimento ou o risco para a vida dos parti-
cipantes da pesquisa (ARAUJO, 2012).
Por outro lado, passou a exigir que antes da realização dos testes
clínicos em humanos, primeiro teria que ocorrer a experimentação
em animais. Trouxe ainda a necessidade de que os participantes do
experimento tivessem acesso às informações que fossem essenciais
a respeito da pesquisa realizada, bem como, deveriam participar da
pesquisa apenas pessoas que dessem o seu consentimento voluntário
para participar da pesquisa, podendo se retirar, mesmo após dar o seu
consentimento (ARAUJO, 2012).
Fato é que, desde a primeira Revolução Industrial, o desenvolvimento
científico acelerou de forma extraordinária, tendo no século XX havido
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 263

o surgimento de diversos tratamentos e medicamentos, surgindo novos


campos do saber como é o caso da genética. Nesse sentido Cruz, Oliveira
e Portilo (2010, p. 93-107) comentam que:
As grandes questões éticas colocadas em função do avanço científico
e tecnológico não se referem às potencialidades do ser humano, mas
em suas responsabilidades. As pesquisas podem seguir, teoricamen-
te, em diversas direções, mas, na prática, nem todos os caminhos
trazem benefícios para a humanidade ou os trazem de forma imedia-
ta, criando porém, a possibilidade de haver consequências custosas
em longo prazo. Dessa forma, o problema não está em rejeitar a
utilização de novas tecnologias por não serem moralmente aceitas
pela sociedade, mas, antes, no controle ético que deve ser exercido.
No entanto, a humanidade possui uma forte resistência em apren-
der com os próprios erros, e aquilo que parecia próprio de regimes
totalitários, volta a se repetir em um grau reduzido em democracias
consolidadas, como ocorreu nos Estados Unidos da América na pesquisa
Beecher e o caso de Tuskegee, por exemplo (MINAHIM; PETERSEN, 2021).
Na pesquisa Beecher, pessoas com deficiência intelectual foram
inoculadas intencionalmente, por pesquisadores, pelo vírus da hepatite,
com o intuito de acompanhar a etiologia da doença. Em outra situação,
dentro da mesma pesquisa, pacientes idosos e senis recebiam uma
injeção com células cancerígenas vivas, com o objetivo de acompanhar
as respostas imunológicas do organismo do paciente, sendo que, em ne-
nhum momento, os pacientes foram comunicados a respeito da pesquisa
(MINAHIM; PETERSEN, 2021).
No caso de Tuskegee, pacientes negros portadores da sífilis não eram
tratados da enfermidade, apesar de haver medicamentos eficazes para
a cura da sífilis, com o intuito de acompanhar a evolução da doença.
Novamente, nenhum deles fora informado a respeito da pesquisa, não
tendo, portanto, como dar o seu consentimento. A pesquisa durou de
1932 a 1971, tendo a maior parte dos participantes da pesquisa falecido
em razão da sífilis (MINAHIM; PETERSEN, 2021).
Esses e outros casos chamaram a atenção da mídia americana, tendo
repercutido socialmente, o que levou a presidência dos Estados Unidos
a propor uma comissão multidisciplinar para a criação de um relatório
que fundamentaria uma legislação para traçar os princípios éticos da
264 Diogeano Marcelo de Lima

pesquisa biomédica em seres humanos, sendo gerado o relatório Belmont


(MINAHIM; PETERSEN, 2021).
Destaque-se que, o termo bioética veio surgir novamente apenas
em 1970 na obra de Van Resselear Potter, autor dos livros “Bioética,
a ciência da sobrevivência”, publicado em 1970 e “Uma ponte para
o futuro”, escrito em 1971, no qual trata a bioética como uma ponte
entre as ciências, reconhecendo o caráter multidisciplinar da bioética,
trazendo, inclusive, a preocupação com a poluição e a explosão demo-
gráfica. Nesse sentido Cruz, Oliveira e Portilo (2010. p. 93-107) afirmam
que:
Há cerca de 30 anos, o médico estadunidense Van Rensselaer Pot-
ter já percebera que a sobrevivência da humanidade poderia estar
sendo ameaçada. Criou, então, o neologismo bioética para designar
a necessidade de uma área científica que se dedicasse a buscar o
conhecimento e a sabedoria. Segundo ele, a sabedoria representaria
o conhecimento necessário para a administração do próprio conhe-
cimento, objetivando o bem social.
Chama a atenção que nas pesquisas mencionadas (Pesquisa Beecher
e caso de Tuskegee), ocorreu o total desrespeito ao Código de Nurem-
berg, uma vez que as pessoas que participaram da pesquisa não tinham
o pleno conhecimento a respeito dos riscos da referida pesquisa, tendo
recebido um tratamento de meras cobaias, em razão de se tratarem de
pessoas tidas como inúteis à sociedade (idosos, senis e pessoas com
deficiência), ou por questões raciais (negros americanos).

4.1. Da bioética principialista


Entre os integrantes da comissão que gerou o relatório de Belmont
estavam Tom Beauchamp e James Childress (2002), que após a conclusão
do relatório se juntaram e escreveram o livro intitulado “Princípios da
Ética Biomédica” em 1979, trazendo os quatro princípios da bioética:
autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça, sendo considerados
os pais da teoria Principialista da Bioética.
O princípio da autonomia, traz para o campo da pesquisa clínica o
respeito às decisões alheias, assegurando ao indivíduo o respeito aos
seus próprios pontos de vista, realizar as suas próprias escolhas e agir de
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 265

acordo com o seu sistema de valores e crenças pessoais. A esse respeito


(ÁLVARES e FERRER 2003, p. 123):
A autonomia pessoal refere-se à capacidade que têm as pessoas
para se determinar, livres tanto de influências externas que as
controlem, como limitações pessoais que as impeçam de fazer a
genuína opção, como poderia sê-lo a compreensão inadequada do
objeto ou das circunstâncias da escolha. O indivíduo autônomo
age livremente em conformidade com um plano de ação que ele
mesmo escolheu. Por outra parte, as ações de uma pessoa cuja
autonomia está diminuída são controladas, pelo menos, em parte,
por outras pessoas, assim como o sujeito moral não pode, pelas
razões que forem, deliberar ou atuar em conformidade com seus
desejos e planos.
O princípio da autonomia reconhece o indivíduo como detentor não
apenas de direitos, mas também de vontades, validando as suas crenças,
independentemente de quais sejam os seus valores ou de quão diferente
seja a sua cultura, merecendo o mesmo respeito deferido a qualquer
semelhante, como demonstra Minahim e Petersen (2021, p. 57):
Como diz Becky White20, a capacidade para consentir requer uma
série de outras competências, que podem ser agrupadas em quatro
categorias: capacidade cognitiva e afetiva, capacidade de absorver
a informação que lhe é prestada, capacidade para fazer escolhas
e capacidade para reconstruir o próprio processo decisório. Para
aceitar uma manifestação de vontade como efetiva concretização
de autonomia, o pesquisador ou o médico teriam que conferir
todos esses atributos, o que é uma tarefa muito difícil, sem um
padrão uniforme.
A validação da autonomia do indivíduo frente ao excesso de paterna-
lismo estatal visa coibir a suposta inovação científica calcada a qualquer
preço, desprezando os valores humanitários básicos e as lições históricas
aprendidas ao longo dos tempos para no fim validar a máxima de que
os “fins justificam os meios”. Novamente, nos coloca Álvares e Ferrer
(2003, p. 125):
O autoritarismo e o paternalismo consistem, precisamente, em ne-
gar às pessoas autonomas o direito de agir segundo seus próprios
valores e decisões. O respeito pela autonomia exige, pelo menos,
que se reconheça o direito do sujeito moral (ou seja, da pessoa que
é capaz de decidir autonomamente):
1) de ter os seus próprios pontos de vista,
266 Diogeano Marcelo de Lima

2) de fazer suas próprias opções e


3) de agir em conformidade com seus valores e crenças pessoais.

No entanto, o princípio da autonomia não se resume a apenas o


agir respeitoso, ou seja, não basta apenas que o pesquisador ou médi-
co apenas respeite a autonomia do paciente, assumindo uma posição
de inércia frente a decisão daquele indivíduo, o respeito a autonomia
exige também uma atuação ativa do médico/pesquisador, para que o
paciente seja amplamente informado sobre o tratamento ou pesquisa
a ser desenvolvido, sendo-lhe facultado desistir de participar quando
bem entender. A esse respeito nos ensinam Álvares e Ferrer (2003,
p. 125 – 126):
A obrigação de respeitar a autonomia exigirá de nós, em muitas
ocasiões, que atuemos positivamente em favor da autonomia alheia.
Não basta, em todo caso, uma atitude respeitosa que se abstêm
de interferir nas decisões autônomas de outras pessoas. Por isso,
Beauchamp e Childress destacam que o respeito pela autonomia
alheia exige ações e não só atitudes. O respeito exige que façamos
o que está a nosso alcance para potenciar a autonomia dos seres
pessoais. Por isso, os profissionais da saúde estão obrigados a dar
a seus pacientes a informação necessária, tanto sobre o diagnóstico
como sobre as opções terapêuticas disponíveis. A informação deve
ser comunicada de tal maneira que o paciente compreenda do que
se trata e possa decidir com conhecimento de causa, em pleno
exercício de sua autonomia pessoal. Somente então fica respeitada
a autonomia da pessoa do paciente e se cumprem as exigências do
consentimento informado.

Embora o princípio da autonomia vise maximizar a vontade do


paciente, afastando a interferência de fatores externos, sejam eles oriun-
dos de pessoas de sua própria família, interesses privados de grandes
empresas farmacêuticas ou até mesmo do próprio estado, é inegável a
justificação de intervenções de índole paternalista quando ao indivíduo
tem a sua autonomia diminuída ao ponto de não conseguirem decidir
de forma autonomia.
O princípio da beneficência informa que é obrigação do pesquisador,
ou do médico, se for o caso, sempre buscar fazer o bem ao paciente,
trata-se de uma obrigação moral de agir em benefício do outro. Como
pontuam Álvares e Ferrer (2003, p. 132 – 133):
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 267

Segundo Beauchamp e Childress, a palavra “beneficência” refere-se,


em seu uso corrente na língua inglesa, à realização de atos de mi-
sericórdia, bondade e caridade. Os autores classificam como “be-
neficência” qualquer ação humana levada a cabo para beneficiar a
outra pessoa. A beneficência está relacionada com a “benevolência”
e com o princípio ético de beneficência. Por benevolência se estende
o traço de caráter ou a virtude que dispõe a agir beneficamente
em favor de outros, ao passo que o princípio de beneficência se
refere à obrigação moral de agir para beneficiar os demais. Embora
muitos atos de beneficência sejam supererrogatórios, os autores
de Principles afirmam que existe uma obrigação geral de ajudar os
demais a promover seus interesses legítimos e importantes. Ou seja,
a beneficência nem sempre é supererrogatória, embora admita que
em muitas ocasiões o seja.
O princípio da beneficência direciona o profissional na área da saúde
a sempre agir, ter uma atitude positiva frente ao paciente, no sentido de
lhe evitar qualquer dano desnecessário ou inconveniente durante o tra-
tamento que possa ser evitável, até mesmo minorando todo e qualquer
desconforto que possa vir a surgir. Nesse sentido, lecionam Álvares e
Ferrer (2003, p. 132):
Além de respeitar os demais em suas decisões autônomas e de nos
abster de lhes causar dano, a moralidade também exige que con-
tribuamos com o seu bem-estar. A beneficência exige que façamos
atos positivos para promover o bem e a realização dos demais.
Beauchamp e Childress examinam dois princípios sob o título de
beneficência: o princípio da beneficência positiva e o princípio da
utilidade. A beneficência positiva obriga-nos a agir beneficamente
em favor dos demais. A utilidade nos obriga, a seu lado, a contraba-
lançar os benefícios e os inconvenientes, estabelecendo o balanço
mais favorável.
Infelizmente, nem todo tratamento é inócuo a custos e riscos,
devendo sempre o profissional da área da saúde está realizando o con-
trabalanceamento entre os efeitos colaterais e os benefícios produzidos
sejam suficientes para justificar a intervenção do profissional da área
de saúde.
O princípio da não-maleficência, traz, por outro lado, a obrigação
do pesquisador ou do médico não fazer o mal, em outras palavras, não
causar danos ao paciente, expondo-o a pesquisas ou tratamentos clínicos
que tragam mais prejuízos que benefícios como é o caso de uma suposta
268 Diogeano Marcelo de Lima

cura que pode agravar o seu estado clínico ou causar dor e sofrimento.
A este respeito, mencionam Álvares e Ferrer (2003, p. 128):
O princípio de não-maleficência afirma, essencialmente, a obrigação
de não causar dano intencionalmente. Costuma ser relacionado com
a máxima “primum non nocere” de Hipocrates. Na verdade, Diego
Garcia sustenta que o princípio da não-maledicência é o fundamento
da ética médica. Nós nos atreveríamos a dizer mais: provavelmente
a não-maleficência seja o princípio básico de todo o sistema moral.
Podemos encontrá-lo no primeiro princípio da ordem moral da
tradição medieval: “faz o bem e evita o mal”. O mais fundamental na
vida moral e o que nos vincula de modo mais rigoroso é a obrigação
de evitar o mal.
Embora haja muita semelhança entre os princípios da benefi-
cência e da não-maleficência, tendo alguns autores agregados ambos
os conceitos em um único princípio, como meio de facilitar o estudo, o
princípio da não-maleficência diferencia-se do princípio da beneficência
na medida em que este proíbe o profissional da área de saúde de causar
dano aos direitos e interesses fundamentais das pessoas (MINAHIM e
PETERSEN, 2021).
Em outras palavras, enquanto o princípio da beneficência exige
uma conduta positiva do profissional da área da saúde, o princípio da
não maleficência exige uma conduta negativa, ou seja, é um não agir,
para que não venha a causar dano. Nesse sentido MINAHIM e PETERSEN
ensinam que (2021, p. 59):
Propondo uma equivalência relativa entre as virtudes e os prin-
cípios, operam a transformação destes em quatro, distinguindo
beneficência e não-maleficência que se referem respectivamente
à ideia: de realizar ações que beneficiem os outros e abster-se de
ações que causem lesões às pessoas. No que diz respeito aos sujeitos
da pesquisa, referem-se à obrigação, por exemplo, de não causar
danos, para tanto utilizando procedimentos de baixo risco –não
maleficência -e de, por outro lado, àquela de prestar auxílio a quem
foi lesado no decorrer da pesquisa -beneficência. A não maleficência
preponderaria sobre a beneficência, embora os autores alertem que
não é possível estabelecer por antecedência a prioridade de um,
sobre outro princípio.
A título de exemplo, enquanto no primeiro, o profissional da área
de saúde deve optar pelo melhor tratamento possível, ou na ausência
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 269

de um tratamento eficaz, agir para minorar a dor e o sofrimento do pa-


ciente, ministrando medicações para minorar a dor, embora não possam
curar a enfermidade em si, o princípio da não-maleficência preza que
o paciente seja protegido de ser exposto a tratamentos excessivamente
agressivos e inócuos.
Por fim, temos o princípio da justiça que está atrelado basicamente
à distribuição equânime de recursos escassos em face das múltiplas
necessidades que vão surgindo e estas necessidades, infelizmente,
costumam avançar mais rapidamente que a capacidade humana de
produzir soluções.
A insuficiência de recursos, consequentemente, faz surgir problemas
de distribuição demandando a criação de critérios para organizar a sua
distribuição de maneira justa visando garantir que os recursos escassos
disponíveis cheguem a maior quantidade de indivíduos possível, evitando
o desperdício de qualquer material ou insumo considerado essencial a
manutenção da saúde coletiva.
Para que isso ocorra, é essencial a eleição de prioridades e estas
podem variar de acordo com a legislação de cada país, que, por sua vez,
poderá variar de acordo com o contexto social, época, ou situação vivida,
podendo ter que adaptar-se de acordo com as demandas que surgirem,
como é o caso em que, os critérios de distribuição de recursos podem
variar em tempos normais para uma situação de pandemia. Aduzem
Álvares e Ferrer (2003, p. 140 – 141):
Os critérios materiais são necessários porque identificam as pro-
priedades ou características relevantes para ter direito a participar
de uma determinada distribuição de benefícios ou de responsabi-
lidades (ou encargos). A identificação dessas propriedades contém
uma série de dificuldades, tanto de índole teórica como prática. Em
alguns contextos, as propriedades relevantes foram estabelecidas
pela tradição. Assim, por exemplo, os troféus esportivos são distri-
buídos de acordo com o mérito, determinado pelas regras de cada
esporte, ao passo que as sentenças de prisão são impostas somente
àquelas pessoas consideradas culpadas de cometer um delito, em
conformidade com as normas do direito penal e processual. Todavia,
em muitas situações não existem critérios materiais estabelecidos e
aceitos, por exemplo, deveria ser concedido a cidadãos estrangeiros,
que não são residentes em um país, o direito de ser incluídos nas
270 Diogeano Marcelo de Lima

listas de espera para a recepção de órgãos procedentes de cadáver


para transplante? A permissão de residência é uma qualidade rele-
vante para participar justamente da distribuição desses órgãos numa
determinada sociedade? São perguntas difíceis que não tem uma
resposta única e definitiva aceita pela sociedade. Como se tomadas
decisões relativas à determinação das qualidades relevantes de si-
tuações inéditas? Está claro, pelo menos, que qualquer distribuição
de benefícios ou encargos seria injusta se fizesse distinção entre
pessoas que são iguais quanto às características determinadas como
relevantes para a situação em questão. Também seria injusto deixar
de fazer distinções de rigor quando se apresentasse a desigualdade
quanto às propriedades relevantes, ou seja, quando casos desiguais
não recebessem tratamento desigual.
Além da adoção de critérios para a distribuição de recursos escassos,
o principio da justiça tem sido invocado nos debates sobre a o comparti-
lhamento das inovações científicas entre todas as populações, de forma
que favoreçam as populações mais vulneráveis que não possuem capa-
cidade tecnológica de desenvolver os próprios tratamentos e insumos,
Segundo MINAHIM e PETERSEN (2021, p. 59):
O quarto princípio, o da justiça, pode ser, abreviadamente, com-
preendido como um tratamento justo para todas as pessoas na área
de saúde. Como esse trabalho não comporta uma teoria da justiça,
pode-se apenas lembrar um dos possíveis sentidos que lhe foi atri-
buído, o de equidade, cujo uso, mesmo se pensando em recursos
escassos, permitiria cada pessoa partilhar das conquistas científicas
No entanto, embora a Bioética Principialista tenha sido a mais
adotada, em especial nos países de primeiro mundo, tendo os referidos
princípios como suficientes para responder a todos os problemas a
respeito da aplicação da bioética na prática, a referida teoria enfrenta
diversas críticas em especial pelo fato de muitos autores entenderem
que os quatro princípios elencados são insuficientes para responder a
todas as questões bioéticas.
Pode-se dizer que, a teoria principialista não leva em considera-
ção o contexto cultural em que o indivíduo se encontra inserido, pois
pressupõe uma bioética com valores universais, ignorando os valores
pessoais dos indivíduos envolvidos, e, por fim, não faz distinção entre
a autonomia e vulnerabilidade, o que faz surgir diversas novas outras
teorias sobre bioética.
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 271

4.2. Da aplicabilidade do princípio bioético da justiça


na distribuição de vagas de UTI’S
Como visto no tópico anterior, a Justiça compõe um dos quatro
princípios elementares da bioética principialista formulada por de BEAU-
CHAMP e CHILDRESS (2002), assim como os princípios da autonomia, da
beneficência e da não-maleficência. No entanto, por tratar-se justamente
sobre a divisão equânime de recursos, é o que encontra melhor aplica-
bilidade sobre a eleição de critérios para distribuição de Unidades de
Terapia Intensiva (UTI’s). Sobre esse aspecto ensina Rocha (2013, p. 61):
Na Bioética, o princípio da justiça se refere à obrigação de garantir
uma justa, equitativa e universal distribuição de bens e serviços em
saúde. Referentemente ao Direito à saúde, o princípio bioético da
justiça se traduz na previsão constitucional de equidade no acesso,
que esbarra nas inumeráveis dificuldades de exercício do referido
direito, especialmente, quando se choca na questão da limitação
de recursos destinados à saúde pública, o que torna fundamental
refletir sobre a sua alocação.
Embora o Poder Judiciário tenha encontrado subsídios dentro da
própria ordem jurídica para decidir, acertadamente, pela impossibilidade
de magistrados interferirem na eleição dos critérios para distribuição de
leitos em UTI’s, exceto quando restar comprovado que a falta de leitos de
UTI ocorreu pela má gestão da administração pública, ainda é irrisória
a aplicabilidade dos princípios bioéticos na construção dos argumentos
jurídicos que dizem respeito sobre o tema.
O fato de ainda não ser comum a aplicação da bioética como tese
argumentativa em decisões judiciais se dá especialmente pelo fato de que
se trata de uma ciência ainda jovem e que seu estudo ainda se encontra
restrito a pós-graduação, sendo introduzida recentemente nos tribunais
superiores, em especial no STF, graças à figura do Amicus Curiae, o que
não implica dizer que se trate de uma ciência de relevância inferior.
Pela sua própria construção história, percebe-se que a bioética nasce
justamente em favor dos vulneráveis, desde o julgamento de Nuremberg
passando pelo dilema ético que envolveu as mais diversas pesquisas
científicas, observa-se que, sempre existiram aqueles cuja existência era
tida como sem importância e que, portanto, deveriam servir, ao menos,
como experimentos (ARAUJO, 2012).
272 Diogeano Marcelo de Lima

A proteção desses indivíduos, a base de toda bioética, está em conso-


nância com o princípio da dignidade da pessoa humana tão largamente
apregoado por nossa Constituição Federal de 1988. Logo, a utilização dos
princípios da bioética principialista, em especial o princípio da Justiça,
traria um reforço, uma luz de fora do próprio ordenamento jurídico,
capaz de reforçar o sistema jurídico.
Conforme demonstrado no tópico anterior, desde a concepção da
bioética principialista, resta caracterizada a preocupação com a escassez
de recursos de saúde, já que desde a publicação da obra de BEAUCHAMP
e CHILDRESS (2002) na década de 70, aponta-se a preocupação com a
necessária eleição de critérios para distribuir os escassos recursos da
maneira mais equânime possível, de forma a favorecer ao maior número
de pessoas.
Por outro lado, o Poder Judiciário está tendo que aprender a como
fazer essa distribuição durante um processo doloroso, jamais vivenciado
antes, que é durante a pandemia ocasionada pela Covid-19, o que tem
levado muitos juízes a tomarem decisões emotivas, embora sejam bem
intencionadas e fundamentadas.
Sem sombra de dúvidas, o direito é uma ciência que a cada dia deve
lidar com situações cada vez mais complexas, especialmente em face da
inserção de novas tecnologias na rotina das pessoas, o que exige que,
não apenas o Poder Judiciário, mas também a própria administração
pública esteja aberta a novas cadeias de informações, adotando-se uma
postura interdisciplinar.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente, tema tão espinhoso desafia os nossos conceitos do


que é justo e o natural sentimento de solidariedade para com o outro
que está agonizando na espera de um leito que lhe permita lutar pela
extensão de sua existência, especialmente quando é impossível separar
desta decisão o fato de que os critérios a serem adotados devem ser
aplicados às pessoas com as quais temos laços de afinidade e paren-
tesco.
A alocação de recursos de saúde em face da escassez de Unidades de Terapia... 273

O fato é que demanda por leitos de UTI ocasionada pela COVID-19


exige dos profissionais de linha de frente a adoção de critérios para
a melhor alocação de recursos para garantir a recuperação do maior
número possível de pessoas, uma vez que a alocação de recursos
para pessoas com baixíssima chance de recuperação retira o direito
ao leito de UTI daqueles pacientes que possuem maior probabilidade
de recuperação, o que efetivamente salvará um maior número de
pessoas.
Independente dos critérios adotados, é essencial a manutenção
do direito de informação dos pacientes e familiares, devendo a equipe
médica comunicar ao paciente e aos seus familiares de forma escla-
recida o motivo da negativa de uma vaga de UTI. Por outro lado, por
menor que sejam as probabilidades de recuperação, o paciente não deve
ser abandonado à própria sorte, tendo direito ao acompanhamento
clínico e medicamentoso necessário para minorar os sintomas de sua
enfermidade.
Por outro lado, embora o Poder Judiciário tenha ganhado
posição de destaque nos últimos anos na consolidação na garantia ao
acesso ao direito à saúde, a tutela jurisdicional é limitada para a elei-
ção de critérios na distribuição de UTI’s, haja vista que o magistrado
não está na linha de frente, o que o impede de ter acesso a todos os
subsídios necessários para decidir quem deve ou não ficar com o leito
de UTI.
Apesar de os tribunais superiores estarem decidindo acertadamente,
reconhecendo a limitação do próprio Poder Judiciário em adotar critério
para alocação de recursos escassos, observa-se que somaria ao debate a
adoção de uma postura interdisciplinar utilizando-se de outras ciências,
como é o caso da bioética principialista, que possui, desde o seu nasce-
douro, estrita preocupação com a eleição de critérios para alocação de
recursos escassos.
O presente trabalho não teve como objetivo central apontar os cri-
térios definitivos a serem adotados pelos profissionais de saúde para
escolher qual paciente deve continuar a lutar pela vida, ou não, no caso
de insuficiência de leitos de UTI. Mas sim iniciar um debate que invoca
a participação de toda a sociedade.
274 Diogeano Marcelo de Lima

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021-Por-ser-de-competencia-do-municipio--STJ-suspende-liminares-em-
-Cuiaba-sobre-internacoes-de-pacientes-com-Covid/SLS%202918.pdf.
Acesso em: 07 jul. 2021.
CAPÍTULO XII

Judicialização da saúde e escassez de


recursos públicos: estudo de caso do
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

Flávia Sulz Campos Machado*

Sumário: 1. Introdução; 2. Estudo de caso do Tribunal de Justiça do Estado da


Bahia; 3. Direito à saúde e escassez de recursos; 4. A dificuldade do judiciário
de enfrentar o problema dos custos do direito à saúde; 5. Considerações finais;
referências.
Palavras-chave: Judicialização da saúde. Escassez. Decisões judiciais.

1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88)
situa o direito à saúde como direito fundamental de cunho social no
ordenamento jurídico brasileiro. No plano internacional, o direito à
saúde é mencionado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948 (artigo XXV), no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais de 1966 (artigo 12), sendo tratado especificamente
em documentos como a Carta de Ottawa de 1986 e a Declaração de
Alma-Ata de 1978, que representaram o ápice do crescimento de uma

(*) Advogada. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de


Direito da Universidade Federal da Bahia (PPGD/UFBA), no âmbito da linha de pes-
quisa “Análise Econômica do Direito”. Especialista em Direito Processual Civil pelo
Instituto Damásio de Direito (2019). Graduada em Direito pela Universidade Esta-
dual de Feira de Santana (2017). Membro do Grupo de Estudos “Direito, Linguagem
e Produção do Conhecimento” (CNPq).
278 Flávia Sulz Campos Machado

preocupação com a melhoria da promoção de saúde a nível mundial,


ocorrido a partir da década de 19601.
De indubitável caráter fundamental, nos termos da constituição, a
comunidade jurídica brasileira refletiu em diversas perspectivas quanto
ao alcance normativo do direito à saúde, destacando-se a questão da sua
exigibilidade através da mobilização do Poder Judiciário e a intervenção
deste nas esferas de atuação da Administração Pública.
A partir da década de 1990, tornam-se frequentes as decisões ju-
diciais condenando o Estado brasileiro ao fornecimento de fármacos,
tratamentos de saúde e procedimentos médicos. Tratava-se da gênese
da judicialização da saúde no país, com o crescimento exponencial das
decisões que deferiam os pleitos formulados individualmente pelos
jurisdicionados.
Atualmente a jurisprudência brasileira demonstra dificuldade em
tratar as questões atinentes ao custo e à escassez dos recursos no de-
bate sobre os direitos fundamentais, nomeadamente o direito à saúde.
Inobstante, a escassez e o caráter trágico das escolhas são evidenciados
nesta seara, calcando-se tal posicionamento insustentável.
O presente artigo, através de pesquisa de natureza quantitativa,
coletou dados de acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
em demandas de direito à saúde movidas contra o Estado e/ou Municí-
pios durante o ano de 2019, com o objetivo de verificar se o problema
do custo ao erário público com a judicialização da saúde foi enfrentado
pelos magistrados na fundamentação dos julgados. Além disso, a fim de
apresentar um estudo de caso, fora escolhido um acórdão para análise
dos pontos essenciais da jurisprudência do tribunal baiano sobre o tema.

2. ESTUDO DE CASO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


DO ESTADO DA BAHIA
Para a investigação proposta neste artigo, foram analisados acórdãos
acessados através do sistema de buscas do repositório de jurisprudência

1. Conforme mencionam Menicucci (2007, p.158) e Carlos Neto, Dendask e Oliveira


(2016, p.6).
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 279

do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA)2, no período circuns-


crito entre 01 de janeiro de 2019 a 31 de dezembro de 20193. Com a
utilização dos termos “direito saúde e SUS”, filtrando pelas classes “ape-
lação”, “reexame necessário” e “apelação / reexame necessário”, sendo
inicialmente encontrados 458 resultados.
Dos 458 resultados apresentados pela ferramenta de busca, 181
acórdãos foram descartados, por tratarem de demandas não relaciona-
das ao objeto da investigação proposta, como: ações ajuizadas contra
planos de saúde, acórdãos decorrentes de apelações cuja discussão
cingia-se à condenação do réu ao pagamento de honorários sucumben-
ciais ou a questões meramente processuais, como a existência de prova
pré-constituída para concessão de liminar em Mandados de Segurança,
dentre outros.
Nesse sentido, foram mantidos 277 acórdãos, que para análise
sucinta, sendo relevante que se tratasse de decisões exaradas no bojo
de processos cuja pretensão autoral fosse no sentido da concessão de
procedimentos, medicamentos ou outros tratamentos médicos, com
fundamentação que versasse sobre o direito à saúde, mantendo ou re-
formando decisão anterior, condenando ou não o ente público.
A partir dos 277 acórdãos que restaram, foi possível verificar que
as demandas são movidas individualmente pelos interessados, mesmo
aquelas propostas por intermédio do Ministério Público ou da Defensoria
Pública. Prevaleceu, em todas as decisões, a condenação do ente público
para a concessão do pleito de saúde, com fundamento nas disposições
constitucionais, nomeadamente no direito à saúde, no direito à vida e
na dignidade da pessoa humana, sendo comumente mencionados os
entendimentos do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal
de Justiça (STJ) e do próprio TJBA.

2. O sistema de busca está disponível em: <https://jurisprudencia.tjba.jus.br/>. Acesso


em: 10 jul. 21.
3. A respeito do recorte temporal apresentado, a intenção fora buscar o retrato do posi-
cionamento do Tribunal sem a interferência das demandas que passaram a ser pro-
postas a partir de meados de 2020, com o advento da pandemia do vírus Sars-CoV-2,
ainda em curso no Brasil.
280 Flávia Sulz Campos Machado

Em decorrência da competência da Justiça Comum baiana, as de-


mandas ajuizadas são contra Municípios e/ou Estado da Bahia, sendo
observado que, com frequência, é tratado o tema da responsabilidade
solidária, com base no caráter descentralizado do SUS, nas disposições
constitucionais e nos entendimentos do STJ e STF.
As questões sobre os custos ou os impactos para o orçamento pú-
blico dos comandos judiciais não são enfrentadas nos acórdãos, sendo
completamente ignoradas em alguns casos e, em outros, mencionadas
de forma superficial. Em números, foram 108 acórdãos (39%) que não
mencionaram as questões atinentes aos custos dos pleitos autorais para
o erário público, enquanto 169 acórdãos (61%) mencionam superficial-
mente, em regra colocando nos motes de “reserva do possível”, “limita-
ções orçamentárias”, “limitações financeiras”, “escassez”, que sempre são
preteridos na discussão, prevalecendo os direitos à vida e à saúde, bem
como o postulado da dignidade da pessoa humana.
Com base nos padrões examinados, a fim de realizar estudo de
caso, fora escolhido o acórdão proferido pela Primeira Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, na Apelação n. 509599-
34.2013.8.05.0001, com relatoria da Desembargadora Pilar Celia Tobio
de Claro. O recurso teve como origem ação individual movida por porta-
dor de tumor cerebral com risco de morte, o qual pleiteou o fornecimento
do medicamento Temodal (temozolimida), 75mg/m2 (120mg via oral).
O juízo de primeiro grau havia julgado procedente a pretensão
autoral para determinar o fornecimento do medicamento. O Estado da
Bahia, enquanto réu, interpôs recurso alegando, preliminarmente, a ile-
gitimidade passiva e, no mérito, desrespeito às previsões orçamentárias
e ao princípio da igualdade, além da impossibilidade de interferência
judicial sobre a Administração Pública:
Insatisfeito com o decisum, o Estado da Bahia interpôs recurso de
apelação, às pgs. 141/154, SUStentando preliminar de ilegitimidade
passiva, por ser da competência exclusiva do Município o forneci-
mento do tratamento de saúde indicado, visto que é “encargo do
Estado apenas coordenar as atividades, ficando a execução ao encargo
dos Municípios”.
No mérito, arguiu, em síntese, que a sentença primeva desres-
peita o limite orçamentário destinado à seguridade social, no âmbito
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 281

do SUS, além de contrariar o princípio da igualdade, uma vez que


beneficia um cidadão em detrimento da coletividade, ferindo, assim,
o interesse público, afirmando, portanto, que o dever constitucional
do Estado de garantir a saúde aos cidadãos não está associado ao
atendimento individualizado de um paciente.
Registrou, ainda, a impossibilidade jurídica de interferência do
judiciário na gestão de competências constitucionais exclusivas do
Estado (BAHIA, 2019a, p.2).
Considerando o teor das outras decisões analisadas, o acórdão esco-
lhido para o estudo de caso é exemplificativo em relação ao afastamento
da preliminar de ilegitimidade passiva em razão da responsabilidade
solidária, com fundamento na descentralização do SUS e referência a
decisões do STF e do STJ:
[...] o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma instituição descentrali-
zada, não se podendo estabelecer, para sua atuação, núcleos com
competências diferenciadas nos diversos entes federativos, sob pena
de se obstar a concretização do direito à saúde, mormente nos casos
de urgência, e, tendo em vista este caráter descentralizado, torna-se
solidária a responsabilidade pela saúde, alcançando, assim, a União,
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) aduz ter
assentado sua jurisprudência, “reafirmada no julgamento do RE
855.178-RG, Rel. Min. Luiz Fux, no sentido de que constitui obrigação
solidária dos entes federativos o dever de fornecimento gratuito de
tratamentos e de medicamentos necessários à saúde de pessoas
hipossuficientes” (ARE 894.085 AgR, Rel(a). Min. Roberto Barroso,
Primeira Turma, DJe 16/02/2016).
No mesmo caminho, encontra-se a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), que afirma especificamente tratar-se de
“obrigação solidária decorrente da própria Constituição Federal,
razão pela qual a divisão de atribuições feita pela Lei n. 8.080/1990,
que constituiu o Sistema Único de Saúde – SUS –, não afasta a res-
ponsabilidade do ora demandado de fornecer medicamentos e/
ou tratamentos médicos a quem deles necessite”. (AgRg no REsp
1574021/PI, Rel. Min. Gurgel De Faria, Primeira Turma, julgado em
26/04/2016, DJe 12/05/2016).
Conclui-se que tratando-se de responsabilidade solidária, a parte
necessitada não é obrigada a dirigir seu pleito a todos os entes da
federação ou a um deles somente, podendo, portanto, direcioná-lo
àquele que lhe convier e que, no caso, foi inserido o Estado da Bahia
no polo passivo da demanda. (BAHIA, 2019a, p.3)
282 Flávia Sulz Campos Machado

Ainda no que tange à responsabilidade solidária, as decisões encon-


tradas assinalaram um distanciamento de discussões pragmáticas quanto
a qual ente federativo caberia o cumprimento do comando judicial,
inclusive no acórdão estudado. Houve exceção apenas em um acórdão,
na Apelação n. 0961642-59.2015.8.05.0146, na qual foi determinada
a condenação do Estado da Bahia em razão de ser o ente com maior
capacidade econômica para realizar a ordem judicial4.
Em relação ao mérito, o acórdão destaca que o acometimento de
saúde da parte autora oferece risco de morte, sendo a medicação temo-
zolomida imprescindível para a manutenção de sua vida. Em seguida,
também seguindo o padrão verificado nas demais decisões, é mencionada
a fundamentabilidade do direito à saúde e sua íntima relação com a vida
e com a dignidade da pessoa humana, com fundamento nos artigos 6º
e 196 da CRFB/88.
O direito à saúde ostenta elevadíssimo patamar hierárquico no orde-
namento jurídico brasileiro, pois constitui-se em direito fundamental
de segunda dimensão, que remonta às origens do cognominado
estado do Bem-Estar Social, encontrando-se intimamente interli-
gado com o próprio direito à vida e à dignidade da pessoa humana.
É um dever do Estado e um direito do cidadão, estando tal
prerrogativa consignada no Texto Constitucional vigente em vários
de seus dispositivos, tal qual o seu art. 5º, que garante ao cidadão,
primordialmente, dentre inúmeros outros, o direito à vida, bem como
o seu art. 6º [...]. Já o art. 196 da Constituição Federal, norma provida
de eficácia plena e revestida de aplicabilidade direta, imediata e total,
por sua vez, consagra o princípio acima citado [...].
Importante salientar que o dever do Estado de prestar integral
assistência à saúde, encontra-se associado tanto à política de gestão
pública como um todo quanto ao atendimento individualizado dos
pacientes. Portanto, não faz o menor sentido argumentar, in abstrac-
to, que o foco do Estado é a gestão universal e igualitária da saúde
pública, deixando, in concreto, o cidadão que necessita de tratamento
de urgência à margem da real efetivação dos direitos fundamentais à
vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana (BAHIA, 2019a, p.3-4).

4. Conforme a ementa da decisão mencionada: “A OBRIGAÇÃO FIXADA DEVE SER SU-


PORTADA PELO ESTADO DA BAHIA, ENTE PÚBLICO COM MAIOR CAPACIDADE ECO-
NÔMICA PARA EFETIVAR A ORDEM JUDICIAL” (BAHIA, 2019b, p.1).
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 283

No caso do acórdão em análise, houve alegação de limitação orça-


mentária no recurso interposto pelo Estado da Bahia, sendo mencionada
na decisão de forma superficial, isto é: sem abordagem dos impactos da
concessão do medicamento ao erário público, tampouco de entraves
legais em razão do orçamento público ser definido em lei. A conclusão
do juízo é no sentido de que o custo não pode impor limites ao exercício
do direito constitucional à saúde pela parte autora:
Assim sendo, as alegações do Estado recorrente de que a autori-
zação/custeio do medicamento prescrito causará ônus ao erário,
não pode impedir a sua obrigatoriedade, uma vez que não se pode
admitir que as normas burocráticas obstem o tratamento adequado
ao paciente, mormente quando reste evidenciado o caráter impres-
cindível do fornecimento do fármaco para o não agravamento da
enfermidade e preservação da saúde da autora/apelada, equivalendo
sua restrição à imposição de limites ao direito constitucionalmente
assegurado à saúde (BAHIA, 2019, p.4).
Em seguida, o acórdão afirma a consonância do entendimento ex-
posto com os posicionamentos do TJBA, do STJ e STF:
APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL. NECESSIDADE DE FORNECIMENTO DE
MEDICAÇÃO, CONFORME PRESCRIÇÃO MÉDICA. RESPONSABILI-
DADE SOLIDÁRIA ENTRE OS ENTES FEDERADOS. JURISPRUDÊNCIA
DO STF NESSE SENTIDO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 855178,
EM REPERCUSSÃO GERAL (TEMA 793), REAFIRMOU A SOLIDA-
RIEDADE DOS ENTES PÚBLICOS. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROTEÇÃO À SAÚDE. DIREITO
CONSTITUCIONALMENTE CONSAGRADO. ART. 196, DA CF/88.
RECURSO NÃO PROVIDO.
I – A assistência à saúde é direito de todos garantido constitu-
cionalmente, devendo o Poder Público custear os medicamentos
e tratamentos aos necessitados. Inteligência do art. 196, da CF.
Havendo prova inequívoca da necessidade de uso do medicamento
prescrito pelo médico, não se justifica qualquer obstáculo para o
seu fornecimento.
II – RECURSO NÃO PROVIDO”. (TJBA – Apelação 0323509-
49.2012.8.05.0001, Relatora Desa. Maria de Lourdes Pinho Medauar,
Primeira Câmara Cível, Publicado em: 31/03/2017).
O STJ afirma que “o direito fundamental, nestes casos, prevalece
sobre as restrições financeiras e patrimoniais contra a Fazenda
Pública”. (AgRg no AREsp 420.158/PI, Rel. Min. Humberto Martins,
Segunda Turma, julgado em 26/11/2013, DJe 09/12/2013).
284 Flávia Sulz Campos Machado

Conclui-se que o princípio da dignidade da pessoa humana pode, e


deve, diante do caso concreto, sobrepor-se a qualquer norma jurídi-
ca, seja de natureza legal ou contratual, quando restarem ameaçados
direitos fundamentais, principalmente aqueles inerentes à saúde
e, consequentemente, à vida, essenciais ao exercício dos demais
direitos e garantias, assegurados no ordenamento jurídico pátrio
(BAHIA, 2019, p.4-5).
De forma emblemática, a ementa de decisão estudada afirma a “IM-
POSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO DE LIMITES ORÇAMENTÁRIOS” (BAHIA,
2019a, p.1), afastando quaisquer dúvidas quanto ao distanciamento das
consequências fáticas da decisão para o erário público.
As decisões do TJBA apresentam consonância com as tendências da
jurisprudência brasileira em geral, principalmente o posicionamento das
cortes superiores, como a própria decisão estudada destaca em seu teor.
No tópico seguinte será abordada a relação entre o direito fundamental à
saúde e a escassez de recursos, a fim de lançar luzes sobre a problemática
que envolve o conteúdo das decisões observadas.

3. DIREITO À SAÚDE E ESCASSEZ DE RECURSOS


No ordenamento jurídico brasileiro a saúde consta como direito
fundamental, de cunho social (MENDES, BRANCO, 2014), previsto no-
meadamente nos artigos 6º e 196 da CRFB/88, também responsável
pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Sarlet (2013) observa que a explicitação do direito fundamental à
saúde no texto constitucional de 1988 e o advento do SUS resultaram da
evolução de sistemas de proteção estabelecidos na legislação ordinária
anterior, nomeadamente através da Lei n. 6.229 de 1975, que criou o
Sistema Nacional de Saúde, e do Decreto n. 94.657 de 1987, que criou
o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde. Além disso, teriam
inspirado os constituintes de 1988 as reinvindicações do Movimento
de Reforma Sanitária e a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada
em 1986 (Cf. PAIM, 2009).
Nos termos do artigo 196 da CRFB/88, o direito à saúde é previsto
como direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante po-
líticas sociais e econômicas visando a redução do risco de doença e de
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 285

outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para


sua promoção, proteção e recuperação. No que tange ao SUS, a CRFB/88
desenha um sistema de saúde descentralizado, com atendimento inte-
gral e participação da comunidade, a ser financiado com recursos do
orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, Distrito Federal
e Municípios, além de outras fontes, consoante o artigo 198.
Acerca da integralidade do atendimento mencionado no artigo 198
da CFRB/88, Sarlet (2013) elucida que tratar-se-ia da determinação
de uma cobertura com a maior amplitude possível pelo SUS, o que não
afastaria, contudo, a existência de limites técnicos e científicos calcados
em critérios de segurança e eficácia do tratamento que, em última aná-
lise, reportam-se a noções de economicidade5. Portanto, embora o texto
constitucional vise integralidade ao atendimento ofertado pelo SUS, este
encontra balizas, incluídas as de ordem econômica.
Kilner (1990), de forma mais abrangente, afirma que em qualquer
sistema de saúde, mesmo aqueles considerados prósperos economica-
mente, é improvável que existam recursos financeiros disponíveis para
atender todas as necessidades médicas da sociedade. A observação de
Kilner coaduna com um dos postulados fundamentais da economia: a
escassez dos recursos6.
Mathis (2009) explica que a escassez se refere à disparidade entre
a totalidade dos bens disponíveis e as necessidades da sociedade. Para

5. A noção de integralidade, contudo, não se limita a tais considerações, consoante


abordam Paim e Silva (2010, não paginado): “A integralidade, como noção polissê-
mica, pode ser vista como imagem-objetivo ou bandeira de luta, como valor a ser
sustentado e defendido, como dimensão das práticas e como atitude diante das for-
mas de organizar o processo de trabalho. Aparece, também, como categoria gené-
rica capaz de englobar diversas dimensões do cuidado (acesso, qualidade, relações
interpessoais) e até mesmo das pessoas, como autonomia. Outros autores admitem
que os sistemas de serviços de saúde, organizados na perspectiva da integralidade
da atenção, adotariam as seguintes premissas: a) primazia das ações de promoção
e prevenção; b) garantia de atenção nos três níveis de complexidade da assistência
médica; c) articulação das ações de promoção, prevenção, cura e recuperação; d) a
abordagem integral do indivíduo e famílias”.
6. Nesse sentido, Gico Jr. (2010, p.22) esclarece que o método econômico se baseia em
alguns postulados, consistindo o primeiro na ideia de que os recursos da sociedade
são escassos: “não fossem escassos, não haveria problema econômico”.
286 Flávia Sulz Campos Machado

Mankiw (2005), a escassez traduz a natureza limitada dos recursos da


sociedade e, consequentemente, a sua incapacidade de produzir todos
os bens e serviços desejados, cabendo à economia estudar como a so-
ciedade administra a distribuição dos recursos7.
Administrar recursos escassos, por seu turno, implica em fazer
escolhas alocativas. Nesse sentido, Gico Jr. (2010) ressalta que é jus-
tamente a escassez dos bens que impõe à sociedade a realização de
escolhas entre alternativas possíveis e excludentes entre si. Ao decidir
entre possibilidades que se excluem, as escolhas alocativas revelam os
custos de oportunidade (trade off), ou seja, a utilidade sacrificada da
opção preterida, em favor da opção escolhida. Mathis (2009) exempli-
fica, numa situação hipotética, o custo de oportunidade da utilização
de uma hora destinada ao lazer, que poderia corresponder à renda
que alguém teria ganho naquela mesma hora, caso a dedicasse para
o trabalho.
Holmes e Sunstein (2019) advertem que, no debate sobre a efeti-
vidade dos direitos fundamentais, dentre os quais se insere o direito à
saúde, as restrições orçamentárias e, logo, a questão da escassez, devem
ser consideradas. Desta forma, garantir direitos implicaria em decidir
entre alternativas de utilização dos recursos disponíveis.
E, especificamente no acesso à saúde, a escassez se põe de maneira
especial (Cf. AARON, SCHWARTZ, 1984), seja em razão de sua conexão
estrita com o direito à vida (CUNHA JR., 767)8, seja pela amplitude da
escassez na área, a qual engloba, para além das questões financeiras:
órgãos para transplante, profissionais especializados, equipamentos,
dentre outros, em quantitativo aquém das necessidades totais da socie-
dade (Cf. AMARAL, 2010).

7. Compete pontuar, conforme observação de Mathis (2009), que, no entanto, a econo-


mia se destacaria por um método, e não pelo objeto ao qual se dedica.
8. A despeito da relação entre direito à saúde e vida, convém mencionar, consoante
observação de Sarlet (2013), que a tutela da saúde apresenta diversas interconexões
com a proteção de outros bens fundamentais, além da vida: a moradia, o trabalho, a
privacidade, o ambiente, proteção do consumidor, da família, das crianças e adoles-
centes, dos idosos, o que, para o autor, reforça a ideia de interdependência entre os
direitos fundamentais.
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 287

Dentre os fatores relevantes para o aumento dos custos com a saúde


no mundo, podem ser apontadas o contínuo progresso da tecnologia
médica (Cf. KILNER, 1990), o envelhecimento da população (AARON,
SCHWARTZ, 1984), o crescimento da urbanização, o incremento de
doenças crônico-degenerativas, a medicalização da sociedade e a uni-
versalização dos cuidados de saúde (Cf. FORTES, 2008).
Galdino (2005) observa que, sob o prisma econômico, os bens
poderão ser classificados como bens livres ou bens econômicos, sendo
os primeiros aqueles sobre os quais a escassez não projeta efeitos e os
segundos bens dotados de utilidade e que sofrem os efeitos da escassez.
Assim, o autor destaca que a qualificação dos bens, naqueles termos, é
marcada pela transitoriedade, tendo em vista que a utilidade e a escassez
de um bem dependem do contexto histórico e econômico analisados.
Por outro lado, a escassez afeta os bens em maior ou menor grau
de acordo com a capacidade ou não de produção da sociedade daquele
bem para suprir suas necessidades. Nesse sentido, Jon Elster (1992)
classifica a escassez em natural severa, natural suave, quase-natural ou
artificial. A escassez natural severa ocorreria quando não há o que ser
feito para aumentar a oferta, enquanto a suave seria quando mesmo os
esforços de aumento da oferta não são capazes de atender a demanda
em sua totalidade. São citados os exemplos, no primeiro caso, de obras
de arte de um artista que já faleceu e, no segundo, da disponibilização
de órgãos de cadáveres para transplante. A escassez quase-natural, por
seu turno, ocorreria quando a oferta pode ser aumentada, inclusive a
ponto de satisfazer totalmente a demanda, apenas através de condutas
não coativas dos cidadãos. É citado o exemplo de crianças para adoção.
A escassez artificial, afinal, representaria as situações em que o governo
pode, se assim decidir, tornar o bem acessível a todos, a ponto de satis-
fazer a demanda, sendo os exemplos do filósofo norueguês a dispensa
do serviço militar e a oferta de vagas no jardim de infância.
Com efeito, além da transitoriedade, que revela que a escassez
afeta os bens de forma diversa a depender dos contextos apresentados,
verifica-se que a escassez também está relacionada à capacidade da
sociedade de produzir em medida que atenda às necessidades sociais,
conforme o conceito de Mankiw (2005) e classificação de Elster (1992),
mencionados atrás.
288 Flávia Sulz Campos Machado

Destarte, o acesso à saúde é afetado ordinariamente pela limitação


de recursos, de forma que o afastamento da questão da escassez pelos
tribunais no âmbito da judicialização da saúde representa, no mínimo,
uma dissociação com a realidade.

4. A DIFICULDADE DO JUDICIÁRIO DE ENFRENTAR O


PROBLEMA DOS CUSTOS DO DIREITO À SAÚDE
Os acórdãos do TJBA coadunam com uma perspectiva de que quando
a vida e a saúde estão em questão, referências a custos seriam repug-
nantes ou imorais (Cf. AMARAL, 2001). Todavia, como já mencionado, a
escassez se põe de maneira especial no acesso à saúde, de modo que a
indiferença do judiciário ao problema da escassez calca-se insustentável.
No âmbito de uma argumentação tradicional acerca da efetivação
dos direitos sociais (Cf. AMARAL, 2001), construções teóricas sobre ge-
rações de direitos, assim como fragmentos da teoria dos status de Georg
Jellinek9, consubstanciaram a ideia de que as liberdades individuais não
representariam custos orçamentários para o Estado, ao contrário dos
direitos sociais. Respectivamente, tais direitos poderiam ser divididos
entre direitos negativos e direitos positivos ou prestacionais, restando
comprometida a eficácia jurídica dos últimos10, consideradas normas
programáticas11 (Cf. BONAVIDES, 2011).
Contudo, a dicotomia estabelecida entre direitos negativos e positi-
vos, com fulcro na distinção entre situações de abstenção ou de atuação

9. Originalmente a teoria de Jellinek diferencia “quatro status: o status passivo ou status


subiectionis, o status negativo ou status libertatis, o status positivo ou status civitatis e
o status ativo ou status da cidadania ativa” (ALEXY, 2008, p.255).
10 Amaral anota que “Como corolário dessa visão, os direitos da liberdade seriam sem-
pre eficazes, já que não dependeriam de regulamentação. Conquanto fosse admitida
a regulação das liberdades, o gozo das mesmas decorreria da própria constituição,
não do trabalho do legislador inferior. Os direitos sociais, via de regra, voltam-se não
a uma abstenção do Estado, mas a uma ação, o que lhes dá a característica de positi-
vos” (2001, p.57).
11. Sobre normas designadas como programáticas, Bobbio, a respeito da Constituição
da República de 1947, explica que “as normas que se referem a direitos sociais foram
chamadas pudicamente de “programáticas”. Será que já nos perguntamos alguma vez
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 289

do Estado e, por conseguinte, na associação de que apenas direitos sociais


representariam custos ao erário público, demonstrou-se insuficiente ao
tratamento dos direitos fundamentais. Com efeito, na obra The cost of
rights: Why liberty depends on taxes, originalmente publicada em 1999,
Stephen Holmes e Cass R. Sunstein argumentam que todos os direitos
fundamentais dependem do dispêndio de recursos financeiros, sejam
direitos sociais ou liberdades individuais12. Assim, a eficácia dos direitos
fundamentais não estaria relacionada a existência ou não de custos de
natureza orçamentária, visto que o consumo de recursos tratar-se-ia de
uma característica geral destes direitos.
No Poder Judiciário brasileiro, todavia, à exemplo da jurisprudên-
cia baiana referida neste trabalho, as temáticas atinentes aos custos, à
escassez e às escolhas alocativas estão distantes do cerne do debate da
judicialização da saúde.
Sarmento (2010) aponta que, até meados da década de 1980, pre-
dominava no discurso jurídico brasileiro a ideia de que o direito à saúde,
sendo um direito social, possuiria natureza programática ou de baixa
normatividade. Nesse cenário, a regra era o indeferimento de pleitos para
a condenação do Estado. Com fundamento no respeito à separação dos
poderes, o Judiciário não estaria legitimado para intervir na atuação do
Legislativo ou do Executivo para implementação de medidas à efetivação
de direitos sociais, incluindo o direito à saúde.
Entendia-se [...] que a Constituição enunciava um programa de ação,
uma política pública, e que o destinatário da norma constitucional
– geralmente os Poderes Legislativo e Executivo – teria apenas a fa-
culdade (e não o dever) de efetivar os direitos fundamentais sociais.
O judiciário, igualmente, chancelava tal posição, entendendo que não
poderia ingressar no mérito da decisão administrativa, portanto o
administrador e o legislador estavam protegidos pela cláusula da

que gênero de normas são essas que não ordenam, proíbem ou permitem hic et nunc,
mas ordenam, proíbem ou permitem num futuro indefinido e sem um prazo de ca-
rência claramente delimitado?” (2004, p.37).
12. Através de decisões da Suprema Corte norte-americana e de dados com gastos para
proteção de direitos fundamentais nos Estados Unidos, a obra enfatiza que os custos
dos direitos vão desde a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário para reivindica-
ções sobre lesão ou ameaça, até especificamente às medidas práticas para garantir o
exercício do direito (Cf. HOLMES, SUNSTEIN, 2019).
290 Flávia Sulz Campos Machado

discricionariedade e pela liberdade de conformação. O Judiciário


atuava, assim, em deferência e em respeito aos demais Poderes
(SHCULZE; GEBRAN NETO, 2019, p.40).
A partir da década de 1990, no entanto, há uma mudança de enten-
dimento, relacionada ao advento da epidemia da AIDS/HIV. Colocava-se
aos magistrados, então, o poder-dever de decidir sobre o fornecimento
de remédios indispensáveis para a sobrevida de pessoas com identidade
identificada no processo (AMARAL, 2001).
Com o aumento destas demandas individuais, formava-se a gênese
do fenômeno comumente designado como judicialização13 da saúde. O
Judiciário, por seu turno, passou a reiteradamente proferir decisões de
provimento aos pleitos, a partir da interpretação de dispositivos legais
numa perspectiva integral e universal do direito à saúde.
Com efeito, a quantidade expressiva de provimentos gerou impactos
na política pública de saúde, originalmente destinada e projetada para
atender à coletividade, conforme anotam Delduque e Marques:
Estudos [...] demonstram que o número de ações judiciais que
demandam medicamentos para o Estado vem crescendo de forma
exponencial no Brasil. E que as reiteradas decisões judiciais que se
seguem [...] acabam por conferir àqueles que acessam o Judiciário
as mais diferentes prestações de saúde focadas nas necessidades
individuais postas nos autos. Essas decisões judiciais, por conse-
guinte, acabam por incidir, de forma reflexa, na política de saúde,
destinada a garantir o direito social à saúde sob a perspectiva coletiva
e distributiva (2009, p.121-122).
Ao decidir uma demanda individualizada, determinando que o Esta-
do arque com o custo para a efetivação do direito à saúde de um cidadão,
sem mensurar as implicações para a coletividade daquela alocação de
recurso, o magistrado julga sob a ótica da microjustiça ou justiça do

13. A expressão judicialização da política possui diversos significados. Nesse sentido,


Maciel e Koerner esclarecem que “A expressão passou a compor o repertório da ciên-
cia social e do direito a partir do projeto de C. N. Tate e T. Vallinder (1996), em que
foram formuladas linhas de análise comuns para a pesquisa empírica comparada do
Poder Judiciário em diferentes países. ‘Judicialização da política’ e ‘politização da jus-
tiça’ seriam expressões correlatas, que indicariam os efeitos da expansão do Poder
Judiciário a política, segundo esses autores, é valer-se dos métodos típicos da decisão
judicial na resolução de disputas e demandas nas arenas políticas” (2002, p.114).
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 291

caso concreto. Amaral (2001) esclarece que a microjustiça consiste em


julgamentos nos quais não são considerados os custos reais das deter-
minações judiciais, sendo ignoradas as consequências orçamentárias
que tais decisões geram para a coletividade, que representaria o plano
da macrojustiça. O autor ilustra que a condenação do Estado em uma
única demanda de saúde, tomada isoladamente, não aparenta suplan-
tar o erário público. O problema é evidenciado, no entanto, na medida
em que admitimos que se tratam de inúmeras ações, cujo montante
das condenações gera impactos significativos no orçamento dos entes
federativos, afetando a distribuição dos recursos previstos inicialmente
para o custeio da saúde coletiva.
Análise realizada por Galdino (2006) aponta que a abordagem do
tema dos custos dos direitos fundamentais calca-se deficitário perante
a comunidade jurídica brasileira, sendo ora ignorado, ora tratado ina-
dequadamente. Com base na doutrina brasileira, Galdino destaca cinco
teorias, as quais seriam as mais dominantes e influentes das últimas
décadas14, quais sejam: o modelo teórico da indiferença, o modelo teó-
rico do reconhecimento, o modelo teórico da utopia, o modelo teórico
da verificação da limitação dos recursos e o modelo teórico dos custos
dos direitos, conforme sintetiza o autor:
(I) modelo teórico da indiferença: o caráter positivo da prestação
estatal e o respectivo custo são absolutamente indiferentes ao pen-
samento jurídico.15
(II) modelo teórico do reconhecimento: a produção intelectual
funda-se no reconhecimento institucional de direitos a prestações
(ditos sociais), o que implica reconhecer direitos positivos; ao mesmo
tempo afasta-se a pronta exigibilidade desses novos direitos.

14. “O estudo que se segue, contudo, tem seu objeto restrito à produção de ideias tal
como difundidas no Brasil (rectius: a partir da produção de autores brasileiros) nos
últimos quarenta anos aproximadamente [...] estando longe dos escopos do autor,
e mais ainda de suas possibilidades reais, elaborar a história circunstanciada das
ideias jurídicas no país sobre os direitos fundamentais. Assim, o objetivo [...] é ape-
nas inventariar algumas teorias mais influentes, de molde a evidenciar as tendências
e ideias dominantes” (GALDINO, 2006, p.179-180).
15. A respeito do primeiro modelo teórico, cumpre advertir, conforme esclarecimento
do autor que “Salvo melhor juízo, é possível afirmar que a produção acadêmica na-
cional de que se trata neste estudo não alcança este momento histórico, ingressando
292 Flávia Sulz Campos Machado

(III) modelo teórico da utopia: a crítica ideológica da crença em


despesas sem limite iguala direitos negativos e positivos, a positi-
vidade dos direitos sociais permanece reconhecida, mas o elemento
custo é desprezado.
(IV) modelo teórico da verificação da limitação dos recursos: o custo
assume caráter fundamental, de tal arte que, mantida a tipologia
positivo/negativo, tem-se a efetividade dos direitos sociais como
sendo dependente da reserva do possível.
(V) modelo teórico dos custos dos direitos: revela a superação dos
modelos anteriores; tem-se por superada essa tradicional tipologia
positivo/negativo dos direitos fundamentais (2006, p.181).
Até meados da década de 1980, a jurisprudência brasileira apre-
sentaria discursos inseridos entre o modelo teórico da indiferença e
o modelo teórico do reconhecimento. Já partir da década de 1990, as
decisões circundariam os modelos teóricos da utopia e da verificação
da limitação dos recursos, sendo ainda raras as decisões que alcancem
o modelo teórico dos custos dos direitos (GALDINO, 2006).
Dos acórdãos do TJBA observados na presente pesquisa, o posicio-
namento do referido tribunal estaria situado entre os modelos teórico
da utopia e da verificação da limitação de recursos, conforme proposta
teórica de Galdino (2006), tendo em vista a tendência de considerar os
custos financeiros como absolutamente externos ao conceito do direito,
sendo a eficácia dos direitos subjetivos analisada em vista dos textos
normativos – especialmente dos artigos 6º e 196 da CRFB/88, sem
avaliação das possibilidades reais para sua efetividade.
Galdino (2006) esclarece que a partir do modelo utópico não há uma
afirmação expressa de que os recursos seriam inesgotáveis. Todavia, ao
ignorar o problema dos custos e da escassez, o discurso utópico acaba
por deixar transparecer a ideia de que os recursos seriam infinitos. É o
que ocorre no acórdão estudado, em que o juízo baiano de 2º grau afirma
expressamente a impossibilidade de arguição de limites orçamentários
(BAHIA, 2019a, p.1), sendo certo que estes limites não irão desaparecer

no debate quando este modelo já encontrava praticamente superado, encontrando


eco apenas pela voz de célebres autores europeus cujas obras traduzidas desfrutam
de grande prestígio e colheram grande influência, bem como de alguns autores na-
cionais, hoje considerados clássicos” (GALDINO, 2006, p.182-183).
Judicialização da saúde e escassez de recursos públicos: estudo de caso... 293

do plano fático tão somente por terem sua discussão vetada no mundo
dos autos. Consoante ressalta Bahia (2019c), ao comentar o modelo
teórico da utopia, nota-se uma crença de que a mera previsão do direito
no texto constitucional seria suficiente à sua justiciabilidade.
No segundo modelo teórico proposto por Galdino (2006), da veri-
ficação da limitação de recursos, o autor explica que há uma tímida in-
clusão da dimensão da realidade e da limitação material das prestações
públicas. A orientação normativista ainda é predominante e os custos
dos direitos permanecem como externalidades, agora considerados
meros óbices à observância dos direitos fundamentais que demandem
prestações. A partir deste modelo, verificam-se alocações de recursos
para contemplar pretensões individuais, numa perspectiva de microjus-
tiça, sem atenção aos efeitos coletivos das decisões. Conforme observa
Bahia (2019c), entende-se que, se há recurso financeiro, este pode
ser utilizado independentemente da escolha política, ignorando-se
que a somatória das condenações individuais representa efeitos alar-
mantes.
No modelo da utopia ou no modelo da verificação da limitação de
recursos (GALDINO, 2006), a jurisprudência brasileira tende a ignorar a
questão da escassez e dos custos dos direitos, “seja presumindo que haja
recursos, seja tendo por imoral qualquer consideração orçamentária”
(AMARAL, 2001, p.173).
Dentro de uma perspectiva de microjustiça, no cerne de um modelo
utópico ou da verificação da limitação de recursos, a jurisprudência
do TJBA analisada no recorte de pesquisa ora proposto demonstra um
tratamento insuficiente dos custos, da escassez e das escolhas alocativas
ao decidir sobre a tutela da saúde.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa proposta no presente artigo pretendeu encontrar os
posicionamentos recorrentes nos acórdãos do Tribunal de Justiça do
Estado da Bahia, especialmente a fim de verificar se havia ou não o
enfrentamento do problema da escassez de recursos públicos para
concessão do direito à saúde.
294 Flávia Sulz Campos Machado

A partir da análise de 277 decisões, restou destacada a prevalência


de demandas de natureza individual, bem como do posicionamento fa-
vorável do Tribunal à condenação dos entes públicos (Estado da Bahia
e/ou Municípios) no âmbito da judicialização da saúde.
Seguindo tendências da jurisprudência nacional, as decisões do
Tribunal de Justiça baiano demonstraram o distanciamento do debate
acerca dos custos e da escassez de recursos na área da saúde, retratan-
do uma perspectiva de microjustiça e correspondendo aos modelos
teóricos da utopia e da verificação da limitação de recursos, dentro da
classificação proposta por Galdino.
Isto porque as questões sobre os custos ou os impactos para o
orçamento público dos comandos judiciais não foram enfrentadas nos
acórdãos do tribunal baiano, sendo completamente ignoradas em 39%
das decisões e, em 61% dos acórdãos, mencionadas de forma superficial,
através de expressões como “reserva do possível”, “limitações orçamen-
tárias”, “limitações financeiras” ou “escassez”, as quais sempre restavam
preteridas em suposto privilégio dos direitos à vida e à saúde, bem como
o postulado da dignidade da pessoa humana.
O cenário calca-se preocupante porquanto, conforme elucidado
no presente trabalho, além da escassez dos recursos se tratar de uma
realidade inevitável, as decisões somadas acarretam impactos orçamen-
tários que irão desaguar diretamente na distribuição da saúde pública.
Sendo assim, a indiferença dos tribunais com a questão da escassez dos
recursos não importa necessariamente na prevalência dos direitos à vida
e à saúde, consoante suas fundamentações, posto que potencialmente
representam a negativa destes direitos à coletividade.

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CAPÍTULO XIII

O sistema de precedentes do CPC


e a importância da bioética
nas decisões judiciais: uma análise
da fundamentação do AI 0088052-
64.2020.8.21.7000, oriundo do TJRS

Isabela Maria Silva Oliveira*


Jemyma Jandiroba Ferreira**

Sumário: 1. Introdução; 2. O sistema de precedentes brasileiro; 3. Agravo de


Instrumento n. 0088052-64.2020.8.21.7000, da Comarca de Gaurama, Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), Sétima Câmara Cível; 4. O caso
concreto e o conflito de regras e princípios sobre a (não)obrigatoriedade da vaci-
nação infantil: 4.1. Breve histórico sobre a implantação da vacinação obrigatória
no Brasil e a origem do pensamento anti-vacina a partir da tecnologia da (des)
informação; 4.2. Análise temática à luz da bioética 5. Conclusão; Referências.

(*) Advogada. Bacharelada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).


Advogada Colaborativa capacitada pelo Instituto Brasileiro de Práticas Colabora-
tivas (IBPC). Mediadora e Negociadora Extrajudicial. Especialista em Direito Mé-
dico e Bioética pela Universidade Salvador (UNIFACS). Pós-graduanda em Gestão
de Conflitos e Mediação pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Membro
da Comissão de Práticas Colaborativas da OAB/BA. Integrou o grupo de pesqui-
sa “Diálogos sobre Advocacia Consensual em Direito Médico” e integra o grupo de
pesquisa “Estudos de Casos em Direito Médico e da Saúde”, ambos promovidos pela
Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA em parceria com a Escola Supe-
rior de Advocacia da Bahia (ESA/BA). E-mail: isabelaoliveira.adv@outlook.com.br
(**) Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão; e em
Enfermagem pela Faculdade Unime. Pós-graduanda em Direito Médico pela Facul-
dade Cers; e em Licitações e Contratos Administrativos pela Faculdade Baiana de
298 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

Palavras-chave: Sistema de precedentes; Código de Processo Civil; Fundamen-


tação das decisões judiciais; Bioética; Recusa vacinal; Vacinação infantil.

1. INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, em vigor desde 16 de
março de 2016, instaurou um verdadeiro sistema de respeito aos pre-
cedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Os precedentes judiciais,
como normas que são, devem ser observados não somente pelos juízes
no ato decisório, mas também pelos jurisdicionados e por aqueles que
trabalham diuturnamente com o Direito, como os advogados.
Certamente se trata de um sistema incipiente, o qual espera-se que,
aos poucos, vá se consolidando na prática forense, sobretudo levando-
-se em consideração a necessidade de os cidadãos sentirem-se seguros
quanto à interpretação e aplicação das leis.
Ocorre que há demandas que são tão específicas que carecem de
uma análise aprofundada, não apenas no sentido legalista, mas sim con-
siderando as peculiaridades morais e anseios dos indivíduos que dela
fazem parte como requerente ou requerido, bem como a principiologia
oriunda da bioética. Para fins deste trabalho, enfatiza-se a peculiaridade
das demandas que envolvem saúde.
O Poder Judiciário está cada vez mais sendo demandado acerca de
controvérsias que versam sobre a medicina e a saúde, o que se denomina
de judicialização da medicina e judicialização da saúde, respectivamen-
te. Acontece que, de modo geral, não se observa nas decisões judiciais
uma fundamentação que envolva uma análise do caso sub judice sob a
perspectiva de princípios bioéticos.
Diante de um ordenamento jurídico que visa a segurança jurídica,
a isonomia e a previsibilidade, através de um sistema de precedentes
judiciais, se questiona neste trabalho qual seria a importância da bioética

Direito e Gestão. Integrou o grupo de pesquisa “Diálogos sobre Advocacia Consen-


sual em Direito Médico”, e integra o grupo de pesquisa “Estudos de Casos em Direi-
to Médico e da Saúde”, ambos promovidos pela OAB/BA. E-mail: jemymaferreira@
gmail.com
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 299

na fundamentação das decisões judiciais que envolvam o Direito Médico


e da Saúde.
Por isso, o presente capítulo deste livro destina-se à análise de um
caso concreto envolvendo direito à saúde, mais especificamente com
relação à obrigatoriedade ou não da vacinação infantil, considerando-
-se a importância de o juiz observar fundamentos bioéticos na tomada
de decisão, e assim formar precedentes cuja ratio decidendi possa ser
utilizada para casos futuros e semelhantes.
Justifica-se esta pesquisa ante à manifesta necessidade de funda-
mentação adequada das decisões judiciais que versam sobre saúde,
mormente numa ordem jurídica que confere autoridade normativa aos
precedentes judiciais.
Para tanto, este trabalho possui uma visão geral acerca do sistema
de precedentes brasileiro; um apanhado do caso concreto em análise,
com os principais argumentos das partes, o dispositivo da decisão a quo,
a fundamentação ad quem, bem como o dispositivo do acórdão; e uma
análise da temática da recusa de genitores em vacinar seus filhos, sob o
viés da bioética principialista.
Assim, objetiva-se analisar a relevância da fundamentação das deci-
sões judiciais na formação de precedentes, levando-se em consideração
a importância da bioética em demandas que envolvam autonomia,
poder familiar e saúde, tais como a que neste trabalho é analisada.
Espera-se, portanto, contribuir juridicamente para que os sujeitos
processuais se atentem à importância da abordagem principiológica da
bioética para a solução de demandas que tenham por objeto o Direito
Médico e da Saúde.

2. O SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO


Conforme depreende-se do art. 5º, caput e inciso II da Constituição
da República Federativa do Brasil (CRFB/88), o Brasil tem na lei a sua
principal fonte do direito, sendo, portanto, considerado um país de
tradição civil law. Contudo, obviamente a norma jurídica não advém
somente da legislação.
300 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

A ordem jurídica objetiva a sumarização dos ritos, a duração razoável


do processo, o tratamento isonômico às partes e a segurança jurídica.
Por isso, é cada vez mais notável a necessidade de se conferir maior
atenção às decisões judiciais como fonte de norma jurídica (BREITEN-
BACH, 2016, p. 46).
Ademais, é preciso considerar que vivemos num Estado Democrático
de Direito, e quando da aplicação do texto legal ao caso concreto, a so-
ciedade espera que as decisões que envolvam situações fático-jurídicas
semelhantes possuam decisões semelhantes, sob pena de a ordem jurí-
dica se mostrar incoerente, injusta e irracional. As decisões devem ser
previsíveis, sobretudo em razão da necessidade de o cidadão sentir-se
seguro “para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavel-
mente a sua vida” (BREITENBACH, 2016, p. 124).
Na realidade, os precedentes judiciais possuem especial relevância
em todos os ordenamentos jurídicos, e não somente naqueles de tradição
common law. Aliás, não é possível falar-se em modelos puros de tradi-
ção romano-germânica ou anglo-saxônica, pois devido à globalização,
é inafastável a interferência entre as mais diversas culturas jurídicas,
somente podendo-se observar a predominância de uma ou outra tradição
(FAGUNDES, 2018, p. 34).
O Brasil, apesar de predominantemente possuir uma tradição civil
law, certamente confere importância aos precedentes judiciais, uma vez
que o CPC positivou um sistema de precedentes, com a obrigatoriedade
de observância aos precedentes e a possibilidade de atribuir-se efeito
vinculante a eles, visando a coerência da ordem jurídica brasileira como
um todo, bem como a isonomia, a previsibilidade e, por conseguinte, a
segurança jurídica, que por sua vez é um valor fundamental previsto no
art. 5º, caput, da CRFB/88 (BREITENBACH, 2016).
O sistema de precedentes brasileiro é uma verdadeira inovação
trazida pelo CPC, em observância às competências atribuídas pela Carta
Magna aos tribunais pátrios. Isto porque compete ao Supremo Tribu-
nal Federal (STF) a guarda da Constituição Federal de 1988, dizendo o
sentido e alcance desta, inclusive com “efeito vinculante em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública” (art. 102 e
103-A, da CRFB/88), ao passo que ao Superior Tribunal de Justiça (STJ)
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 301

cumpre orientar a interpretação da legislação infraconstitucional federal,


e unificar a jurisprudência pátria (art. 105, da CRFB/88).
Os precedentes do STF e do STJ “devem ser considerados obrigató-
rios, especialmente em razão das atribuições que lhes foram conferidas
pela CRFB/88”, de modo que o sistema judiciário seja uniforme, organi-
zado e integrado, refutando-se quaisquer contradições entre os órgãos
que o compõem, competindo aos Tribunais Superiores assumirem um
papel interpretativo, proclamando precedentes vinculantes para se-
rem aplicados em todo o território nacional. Destaca-se ainda que os
precedentes dos Tribunais de Justiça também devem ser considerados
obrigatórios e vinculantes, pois são de suma importância para a solução
de demandas locais (BREITENBACH, 2016, p. 99 e 124).
A norma em que se constitui o precedente é uma regra. Por isso,
o sistema de precedentes deve ser observado pelos tribunais numa
perspectiva horizontal e numa perspectiva vertical. No plano horizontal
significa que, apesar de os tribunais serem divididos em vários órgãos,
em verdade é uma unidade, devendo adotar uma posição una sobre
uma mesma questão fático-jurídica. Já o plano vertical significa que há
a necessidade de conferir racionalidade às decisões judiciais, igualdade
entre os litigantes e de haver previsibilidade e efetividade nas decisões
(DIDIER JR., 2016, p. 456; BREITENBACH, 2016, p. 125).
O CPC, consoante disposição de seu art. 926, impõe aos tribunais
os deveres de uniformização da jurisprudência e de manutenção da
estabilidade, integralidade e coerência de suas decisões. Ademais, em
seu art. 927, o CPC enumera um rol não taxativo de decisões que, por si
só, possuem força vinculante. Com isso, nota-se que há necessidade de
universalização, visando a isonomia e a segurança jurídica. Dito isso, não
se pode cometer o erro de se considerar que somente a lei pode conferir
eficácia vinculante às decisões judiciais emanadas de determinado tribu-
nal, pois o sistema de precedentes do CPC é aplicável a todo e qualquer
tribunal que componha o sistema judiciário brasileiro (BREITENBACH,
2016, p. 112 e 125)
Diante de tamanha importância conferida pelo ordenamento pátrio
ao precedente judicial, importa conceituar e saber como identificá-lo
na decisão.
302 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

De modo geral, precedente “é a decisão judicial tomada à luz de um


caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para
o julgamento posterior de casos análogos”. Em toda decisão judicial, o
magistrado precisa resolver um caso concreto, e para tanto deve funda-
mentar, demonstrando assim que a solução do problema possui respaldo
no ordenamento (DIDIER JR., 2016, p. 455).
Ao decidir, o juiz, invariavelmente, cria duas normas, quais sejam:
uma norma geral, resultado da interpretação dos fatos em conformida-
de com o Direito positivo, que lhe serve de base para a solução do caso
concreto; e uma norma individual, que é a solução específica para o
caso em exame naquele processo. É na fundamentação da decisão que
se encontra o precedente, ou seja, este é a norma geral construída pelo
órgão julgador a partir da análise de um caso, e que servirá de modelo
para a solução de casos futuros semelhantes (DIDIER JR., 2016, p. 456).
Apesar de frequentemente se dizer que o precedente possui eficácia
obrigatória ou persuasiva, deve-se atentar que em realidade é a ratio
decidendi que pode ter caráter obrigatório ou persuasivo. Segundo Didier
Jr. et al. (2016, p. 455), “a ratio decidendi – ou, para os norte-americanos,
a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a
opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria
sido proferida como foi”.
Assim, a ratio decidendi é a tese jurídica oriunda da fundamentação
constante no julgado, que afeta diretamente o comando decisório final,
se desprende do caso específico, e pode ser aplicada em outras situações,
desde que haja similitude. É com base nela que o juiz chegará à solução,
no dispositivo, da questão em apreço (DIDIER JR., 2016, p. 456 e 462).
Segundo Breitenbach (2016, p. 126), a ratio decidendi possui uma
hipótese fática abstrata, mas dotada de flexibilidade, pois se amolda
a cada caso. Para aplicar um precedente, é preciso aprioristicamente
analisar o contexto fático-jurídico em que ele foi formado. De acordo
com Didier Jr. (2016, p. 463), “a ratio decidendi deve ser buscada a partir
da identificação dos fatos relevantes em que se assenta a causa e dos
motivos jurídicos determinantes” que conduzem à conclusão.
Daí que o relatório da decisão também tem relevância, uma vez que
a análise do contexto fático serve para a correta interpretação de um
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 303

precedente e para a correta identificação de sua ratio decidendi. Aliás,


o CPC expressamente atribui uma grande relevância “às circunstâncias
fáticas dos precedentes” na edição de súmulas, consoante disposição
do seu art. 926, § 2º.
Percebe-se que não se pode dissociar o precedente do seu caso adja-
cente, ou seja, o contexto fático do caso paradigma é de suma importância.
Sempre que se invoca um precedente judicial, é preciso demonstrar que
o caso é semelhante àquele que deu origem ao precedente, confrontan-
do-os. Frise-se que isso não significa que os fatos devem ser idênticos
em absoluto, senão inviabilizaria e inutilizaria o instituto. Em realidade,
os fatos devem ser similares de tal forma que seja suficiente para atrair
a aplicação da mesma norma jurídica constante do precedente (DIDIER
JR., 2020; FAGUNDES, 2018, p. 124).
Este é, inclusive, o teor do Enunciado n. 59 da I Jornada de Direito
Processual Civil, do Conselho da Justiça Federal (CJF), nos seguintes ter-
mos: “não é exigível identidade absoluta entre casos para a aplicação de
um precedente, seja ele vinculante ou não, bastando que ambos possam
compartilhar os mesmos fundamentos determinantes”. Percebe-se que
a fundamentação tem papel central num precedente.
Ao juiz foi conferido o dever constitucional de fundamentar ade-
quadamente as suas decisões, consoante disposição do art. 93, IX, da
CRFB/88. O CPC implementou tal dever, através do quanto disposto
em seu art. 489, §1º, com exigências procedimentais para a adequada
fundamentação jurisdicional, cujo objetivo é garantir a integridade e a
coerência do Direito brasileiro (TOMAZ, 2018).
O magistrado, ao se ver diante de determinada questão, deve ob-
servar que não está decidindo apenas aquele caso concreto, e sim que
o caso julgado servirá como base para todo e qualquer peticionário que
esteja em situação jurídica semelhante. Além disso, para haver um pre-
cedente, há de se observar as técnicas adequadas para a sua formação,
identificação, distinção e superação (BREITENBACH, 2016).
Porém, o dever de fundamentar, apesar de em tese ser indelével,
ainda não se mostrou suficiente na realidade forense brasileira.
O nosso ordenamento é permeado de princípios como fonte do di-
reito, que podem servir de base para o magistrado decidir livremente,
304 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

o que não mais se coaduna com o CPC, em vigor desde 2016. Por isso,
além de fundamentada, a decisão judicial deve ser coerente, em sintonia
com situações fático-jurídicas semelhantes, observando-se desta forma
os ideais de igualdade de tratamento aos jurisdicionados e de universa-
lização dos seus fundamentos (BREITENBACH, 2016, p. 124).
Na realidade, o sistema brasileiro de precedentes ainda é incipiente.
Tomaz (2018, p. 171) assevera que não se pode esperar a implantação de
um sistema de precedentes de uma hora para outra, através da simples
importação de uma teoria, e sua positivação através da promulgação
de um novo código. Até porque, um sistema de precedentes possui uma
“bagagem procedimental, consubstanciada em exigências de funda-
mentação adequada, que o fortalecimento da natureza vinculante dos
provimentos jurisdicionais exige”.
Em países de tradição civil law, historicamente os precedentes comu-
mente são vistos como secundários, e sua força vinculante praticamente
em nada se assemelha ao common law. O uso dos precedentes como
fonte do direito em países de civil law acaba, por vezes, a se mostrar
como uma “válvula de escape” para a solução de problemas concretos,
equivocadamente “invocando-se a autoridade do tribunal superior”, sem
analisar suas convergências e divergências fático-jurídicas. Ou seja, dife-
rentemente do que ocorre no common law, muitas vezes não se invoca
“a própria autoridade normativa do precedente”. Assim, como no civil
law a lei ocupa um papel central como fonte do direito, a jurisprudência
é utilizada, muitas vezes, de maneira irrefletida, por mera subsunção
(TOMAZ, 2018, p. 170).
Acerca dessa problemática, Tomaz (2018, p. 171 e 173) aduz que:
A fundamentação adequada (coerente e íntegra) das decisões judi-
ciais, em constante diálogo com o caso concreto a ser julgado, é um
passo absolutamente essencial e basilar para que se possa pensar
na construção de um sistema de precedentes ou, de maneira mais
modesta e realista, de um sistema jurisprudencial minimamente fun-
cional e adequado ao art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988. [...]
Por consequência, a fundamentação das decisões judiciais atua
como um fator discursivamente racionalizante do processo judicial,
na medida em que (i) obriga o juiz a sempre se reportar ao Direito,
mantendo-se a diferenciação funcional do sistema jurídico e a inte-
gridade de seu código binário; e (ii) proporciona às partes litigantes
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 305

segurança jurídica e garantia de imparcialidade (enquanto conside-


ração e pronunciamento do magistrado sobre todas as pretensões
declinadas), de maneira a que a decisão final seja aceita por todos,
até mesmo pela parte sucumbente, na medida em que foi tomada
juridicamente (não mediante influências contraditórias do respecti-
vo ambiente, para se dizer com Luhmann, ou mediante argumentos
de política, na visão de Dworkin) e com consideração de todas as
vicissitudes e peculiaridades daquele caso concreto específico que
está sendo julgado, respeitando-se, assim, a característica central
dos juízos de aplicação (Günther).

Certamente, ao fundamentar adequadamente as decisões, trazendo


todos os fundamentos plausíveis, os juízes contribuem para o fortale-
cimento do sistema de precedentes positivado pelo CPC, tornando-o
eficaz, e, por conseguinte, o Judiciário brasileiro tornar-se-á cada vez
mais confiável.
Ademais, não se pode olvidar que o precedente possui caráter
normativo, e como tal deve necessariamente ser observado pelos
juízes na fundamentação das decisões, bem como pelos advogados e
pelos jurisdicionados, evitando-se, inclusive, o ajuizamento de de-
mandas temerárias que possam lograr êxito baseadas em julgados
dissonantes.
Note-se que se o magistrado não se cercar de todos os fundamentos
possíveis para apreciar a problemática levada a juízo, haverá uma incom-
pletude na fundamentação do precedente, e a depender da argumentação
trazida pelas partes em um caso futuro, aquele precedente não poderá
ser aplicado como um paradigma, havendo, portanto, grandes chances
de superação do precedente anteriormente firmado (overrulling). Um
exemplo dessa possibilidade é a inobservância de princípios bioéticos
em demandas que envolvem o Direito Médico e da Saúde.
A Juíza de Direito Maria Vilardo (2013, p. 36), aduz que demandas
que envolvem a saúde possuem “algo além da subsunção do caso con-
creto à lei vigente”. Em tais casos, o Poder Judiciário “se depara com a
dimensão conferida à vida do indivíduo por ele mesmo”.
Diante das diferentes moralidades dos sujeitos processuais (reque-
rente, juiz, parquet e demais participantes), assevera Vilardo (2013, p.
36), que deve haver uma discussão
306 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

[...] equalizada, através da argumentação e da dialética equilibrada


[...]. A concepção de justiça deve ser forjada na dimensão daquele que
a busca junto à autoridade externa, não significando a desconsidera-
ção dos anseios de uma comunidade, mas a legitimação dos desejos
e interesses do indivíduo que compõe essa mesma comunidade que
lhe deve respeito [...].
Assim, observa-se que a bioética tem especial relevo na condução e
resolução de controvérsias na área da saúde que são levadas ao Judiciá-
rio, não sendo, portanto, suficiente um enfoque meramente legalista do
caso em espeque. Considerar fundamentos bioéticos, além de respeitar
a individualidade e a autonomia do jurisdicionado, confere legitimidade
às decisões judiciais, e, por consequência, a segurança jurídica à ordem
social, uma vez que não se descuida da repercussão social do que for
decidido (VILARDO, 2013, p. 30 e 35).
Por fim, como se demonstrará adiante, não se pretende o uso da
bioética nas decisões judiciais para conseguir determinado resultado que
se considere mais justo. Até porque uma decisão que seja denegatória,
mas adequadamente fundamentada, cumpre um dos papéis do Judiciário,
qual seja, o de pacificar controvérsias.

3. AGRAVO DE INSTRUMENTO
N. 0088052-64.2020. 8.21. 7000, DA COMARCA
DE GAURAMA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL (TJRS). SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MP/RS), após
ter ciência de que os genitores de uma criança de 02 (dois) meses de
idade optaram por não o vacinar por motivos de religião e ideologia
de vida, ajuizou uma demanda no juízo da Comarca de Gaurama/RS,
requerendo medida de proteção.
O pleito promovido pelo MP/RS teve como argumentação a prepon-
derância do melhor interesse do menor; a obrigatoriedade de vacinação
das crianças conforme o Programa Nacional de Imunizações (PNI),
do Ministério da Saúde; a ideologia de vida dos genitores não pode se
sobrepor às políticas de saúde pública utilizadas há longos anos; e os
genitores estariam sendo “omissos e negligentes nos cuidados”, tornando
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 307

a criança propensa a contrair doenças, devendo, portanto, obrigá-los a


vacinar o filho, independentemente de suas vontades.
Os genitores, assistidos pela Defensoria Pública, alegaram que a
medida protetiva foi ajuizada quando o menor tinha pouco mais de 02
meses de idade, sendo que ao tempo da defesa, já tinha 01 (um) ano de
idade e sempre foi saudável. Alegam ainda que não desejam usar vacinas
alopáticas no filho; e que, se houver necessidade, utilizarão homeopa-
tia no tratamento da criança. Asseveram que os genitores são pessoas
extremamente esclarecidas, não são parte do Movimento Antivacina, e
que desejam cuidar do filho com a chamada medicina vanguardista e
homeopatia.
Afirmam ainda que seria brutal uma busca e apreensão do menor
para injetar substâncias químicas, sobretudo de forma extemporânea.
Juntaram ainda laudo médico que atestou a eficácia da homeopatia e os
riscos das vacinas.
O Juízo a quo prolatou decisão determinando que os genitores pro-
cedessem à vacinação do menor, em conformidade com o PNI, sob pena
de medidas coercitivas. Inconformados, M.B e C.P.R, genitores do menor,
interpuseram agravo de instrumento.
Quando do julgamento, o relator votou pela improcedência do re-
curso, destacando que houve reconhecimento de caráter constitucional
e repercussão geral do tema “saber se os pais podem deixar de vacinar
os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas,
morais e existenciais” pelo STF, no ARE 1267879, de 28.08.2020.
O Juízo ad quem considerou que as vacinas não são novas, nem
experimentais, e foram testadas por anos. Em tais circunstâncias, os
pais não podem deixar de vacinar os seus filhos. Ademais, a vacinação
de crianças foi considerada uma “norma cogente”, cabendo aos pais ou
responsáveis cumprir o calendário vacinal estipulado pelo Ministério da
Saúde, que por sua vez é uma política pública de erradicação em massa
de doenças. Outrossim, preponderou no caso o melhor interesse do
menor e a doutrina da proteção integral, albergados pela Constituição
Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, resguardando-se
plenamente o direito à saúde do infante.
308 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

O Tribunal considerou ainda que, no caso de conflito aparente


de normas, este deveria ser resolvido pela superioridade do direito
da criança ainda sem discernimento, assentando-se ainda que não se
trata de imputar conduta negligente aos pais, nem os reputar como
maus pais.
No caso sub judice, o Tribunal destacou que o menor não possui qual-
quer contraindicação à vacinação. Frisou que o laudo do Departamento
Médico Judiciário, constante nos autos, afirmou que a probabilidade de
a pessoa adoecer por uma patologia evitável pela vacina é maior que
pela própria vacina, sendo os riscos superados, e muito, pelos benefícios.
Afirmou ainda que as vacinas possuem o melhor custo-benefício.
Diante de tais fundamentos, determinou-se que o infante deveria
ser submetido a uma consulta pediátrica, para elaboração de calendá-
rio personalizado de vacinação, devendo os pais vacinarem o menor e
exibirem, mensalmente, a caderneta de vacinação. Em caso de descum-
primento, determinou-se que se adotassem medidas coercitivas, dentre
as quais multa e busca e apreensão, para que a criança seja submetida
compulsoriamente aos procedimentos de vacinação.
Por fim, o agravo de instrumento foi conhecido, mas desprovido à
unanimidade.

4. O CASO CONCRETO E O CONFLITO DE REGRAS


E PRINCÍPIOS SOBRE A (NÃO)OBRIGATORIEDADE
DA VACINAÇÃO INFANTIL
No julgado há um evidente conflito de ideias, regras e princípios.
No caso em comento, os pais do menor C. zelam pela saúde de seu
filho, no sentido de protegê-lo dos eventos adversos que poderiam ser
produzidos pela vacinação, ou melhor, pela multivacinação devido ao
atraso do preenchimento do calendário de vacinas da criança. Além disso,
eles têm uma rotina de vida diferenciada voltada ao naturalismo e, como
dito, seguem a medicina vanguardista e homeopata, o que significa dizer
que eles entendem a importância da proteção à saúde, porém acreditam
que seu filho não precisa ser submetido à vacinação alopática, nos mol-
des estabelecidos pelo PNI, vez que, para eles e de acordo com laudos
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 309

médicos que apresentaram, C. é uma criança saudável e ser submetido a


substâncias como alguns conservantes e ativos químicos presentes nas
vacinas colocará em risco a manutenção da saúde de seu filho.
Em contrapartida, o Ministério Público acredita e defende que toda
criança deve ser submetida ao PNI desde o seu nascimento, sendo de
responsabilidade dos pais, ou responsáveis legais, a obrigação de com-
pletar o calendário de vacinação de seus filhos sem questionamentos, em
razão da defesa de sua saúde e bem-estar, como também da coletividade.
O Ministério Público ainda aduz que a vacinação em massa, sobretudo
a vacinação infantil, por ser o ponto de partida da imunização coletiva
na maioria dos casos, protege a população contra o alastramento de
doenças infectocontagiosas fazendo com que elas sejam controladas e
até mesmo erradicadas. O órgão afirma que é de total responsabilidade
do indivíduo e de seus representantes legais, em casos de incapacidade
civil, se submeterem às vacinas listadas no PNI.
No julgamento do caso concreto se observa que somente foi levado
em consideração o conflito “recusa dos pais versus interpretação en-
gessada da lei e do princípio do melhor interesse do menor e direito à
proteção integral”, o Colegiado deixou de fora da balança a análise cri-
teriosa sobre os princípios da Bioética: não-maleficência, beneficência,
autonomia e justiça.
Seria necessário, de igual modo, voltar a atenção para o nível de
entendimento dos pais em relação a importância da vacinação como um
todo. Levar em consideração as crenças desses pais bem como a fonte
de informação sobre as vacinas, que eles tiveram acesso, seria de suma
importância, porque se permitiria discutir sobre a alteração ética das
vacinas, considerando que elas, nos dizeres de Sérgio de Castro Lessa
et al (2013, p. 227), “são, por vezes, administradas compulsoriamente
a crianças saudáveis sem a devida percepção do risco epidêmico ou de
questões morais relacionadas, por exemplo, à autonomia e vulnerabi-
lidade”.
A análise nua e crua da legislação – art. 14, §1º, do Estatuto da Criança
e do Adolescente; art. 3º, caput e parágrafo único, da Lei nº 6.259/75; art.
29 do Decreto nº 78.231/76; e arts. 5º e 196, da Constituição da República
Federativa do Brasil, de 1988 –, como fizera o Juízo a quo, seguido pelo
310 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

ad quem, no caso concreto, reafirmando as máximas dos princípios do


melhor interesse do menor e da proteção integral, e do direito coletivo à
saúde e bem-estar, acarreta uma sensação, frente à Justiça, de anulação
dos interesses da parte que sucumbe ao que é imposto pelo Estado.
Vislumbra-se que o bojo da fundamentação decisória deveria traçar
uma relação entre a legislação mencionada no parágrafo anterior sobre
a obrigatoriedade da vacinação infantil e os princípios da Bioética.
Contudo, antes de adentrar à análise da temática sob o aspecto
principialista bioético, faz-se imperioso traçar uma linha do tempo
sobre a implantação da vacinação compulsória da população no Brasil,
sobretudo para que se tenha uma melhor compreensão do ponto de
vista dos pais do menor C.

4.1. Breve histórico sobre a implantação da vacinação


obrigatória no brasil e a origem do pensamento
anti-vacina a partir da tecnologia da (des)informação
De acordo com Succi (2017, p. 02), a vacinação obrigatória chegou
ao Brasil no final do século XVIII, visando combater uma epidemia de
varíola. Esse primeiro contato da população com o imunizante não foi
de total e pacífica aceitação, por causa do autoritarismo do governo que
impôs a aplicação das vacinas sem nem mesmo explicar a importância
delas. Por isso, o povo, em sua maioria pobre e carente de instruções,
se negou a tomar as vacinas e tal recusa ficou historicamente conhecida
como o movimento da “Revolta da Vacina”. (NOBRE, 2020, p. 238)
Como explica Nobre (2020, p. 238):
[...] alguns chegavam a acreditar que a injeção desse líquido poderia
ser um “veneno”, devido a forma brutal e a tática militarista que as
vacinas eram aplicadas. Essa resistência à vacinação continuou sendo
perpetuada ao longo dos anos, pois a população por muito tempo
vivenciou a ausência de informações pertinentes para a desmistifi-
cação da temida vacina.

Assim, pela precariedade de informações claras e concretas, co-


meçavam as ideias antivacinais no Brasil, que cresceram com o passar
dos séculos permanecendo atualmente por conta do vasto e, por vezes
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 311

perigoso, alcance da comunicação com o uso da tecnologia, como as


redes sociais e sites de busca e afins dentro da internet.
Nobre (2020, p. 239) chama atenção sobre essa disseminação peri-
gosa das informações armazenadas em rede:
O movimento antivacina contemporâneo surge não apenas aliado a
propagação de desinformação, mas junto às notícias falsas acerca do
tema. Com o advento da internet, a popularização das redes sociais
e as diversas transformações que esse espaço virtual inseriu nas
relações sociais, as opções de divulgação de informação/desinfor-
mação em massa tornou-se acessível para qualquer pessoa. Apesar
dos benefícios que esse acesso trouxe, os malefícios andam junto
daqueles que têm más intenções para serem disseminadas.
Surgem também as chamadas pseudociências, que trazem expli-
cações, baseadas no estudo empírico, não inserido na literatura mé-
dico-científica, sobre métodos alternativos de imunização, bem como
a propagação de “fake news” sobre os riscos das vacinas; pesquisas
infundadas sobre a ocorrência de doenças e/ou graves transtornos
relacionados à vacinação, entre outros fatores como o medo dos eventos
adversos, as crenças filosóficas e religiosas e a falta de incentivo por
parte de profissionais de saúde, que por vezes assumem uma postura
antivacinal.

4.2. Análise temática à luz da bioética


A partir da análise do caso concreto – AI 0088052-64.2020.8.21.7000
(TJRS), percebe-se justamente a existência de argumentos fundados na
filosofia de vida, na inserção da medicina vanguardista que traz como
método alternativo as vacinas homeopáticas e o medo dos eventos ad-
versos relacionados à vacinação, por parte dos pais do menor C.
Na decisão sobre a temática prevaleceu o entendimento que coaduna
com o que diz o Estado: a vacinação deve ser obrigatória. Sequer foram
considerados os estudos, laudos médicos e demais conhecimentos tra-
zidos pelos pais da criança, que tiveram a sua recusa tratada como se
fizessem parte de algum movimento antivacina organizado, o que não é
o caso, visto que eles não são contra a vacinação da população, mas sim
defenderam a ideia de que a liberdade individual para decidir, ou seja
312 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

a sua autonomia da vontade sobre a administração de medicamentos e


vacinas, deveria ser respeitada.
Sobre o caso, tanto o juízo a quo quanto o juízo ad quem foram falhos
no que diz respeito às pesquisas e consultas técnicas que geraram a
fundamentação sobre direitos individuais em detrimento dos coletivos
em relação ao tema de repercussão geral “saber se os pais podem deixar
de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas,
religiosas, morais e existenciais”.
Poderia se estabelecer quais critérios devem ser utilizados à luz
da bioética para formar um precedente que atenda aos interesses de
todas as partes sem trazer os pais como verdadeiros “vilões” em rela-
ção a seus filhos. O primeiro passo seria avaliar a incidência da Bioética
Principialista.
Sobre isso, as palavras de Lessa et al (2013, p. 230) validam a ideia
de que:
[...] a bioética pode ser considerada como uma ferramenta legí-
tima e eficiente para a análise crítica da moralidade das práticas
vacinatórias contemporâneas e como auxílio para as tomadas de
decisão, eticamente justificadas, por ações de saúde que garantam
a distribuição equânime tanto dos benefícios quanto dos eventuais
riscos da vacinação.
Ações preventivas como o PNI estão atreladas ao princípio da
não-maleficência, uma vez que a vacinação compulsória visa o não ofe-
recimento de danos/malefícios para a população por conta de doenças
imunopreveníveis. Ao mesmo passo, está presente o princípio da bene-
ficência, já que tal vacinação busca estabelecer uma proteção em massa
em benefício à saúde e bem-estar de todos.
No entanto, a atitude dos pais de C., que é a mesma de outros pais
que deixam de vacinar os seus filhos em razão de convicções filosóficas,
religiosas, morais e existenciais, estaria baseada nos mesmos princípios
bioéticos?
Apesar desses pais justificarem que não vacinam para proteger os
seus filhos de malefícios que as doses dos imunizantes podem causar, é
observado que eles se apegam muito mais aos fundamentos básicos do
princípio da autonomia da vontade do que aos princípios da não-male-
ficência e da beneficência.
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 313

Isso acontece por inúmeros fatores, mas o principal deles é a equí-


voca interpretação sobre o poder familiar, fazendo com que os pais acre-
ditem que a vontade deles sobre a condução da vida de suas crianças é
absoluta e inquestionável. Contudo, é possível afirmar que a autonomia
não se aplica às crianças, mas sim os direitos.
As crianças são detentoras de direitos justamente porque são pes-
soas em desenvolvimento, que não têm completo discernimento para
poderem expressar plenamente e por si sós a sua vontade. A obrigação
de respeito à autonomia, segundo Lessa et al (2013, p. 231), portanto,
não se aplica a pessoas não autônomas, devido ao seu grau máximo de
vulnerabilidade, como as crianças.
Por essa razão, há de se dizer que a vontade dos pais sobre a con-
dução da saúde de seus filhos menores de idade deve resultar em signi-
ficantes benefícios a essas crianças para poder prevalecer.
De acordo com Lessa et al (2013, p. 231):
Neste caso, em que há uma evidente tensão entre o interesse indi-
vidual e o coletivo, a autonomia perde valor frente aos interesses
de imunidade da coletividade. Na ótica principialista, atender ao
princípio da autonomia, que faculta ao indivíduo tomar ou não a
vacina, se opõe ao princípio da não maleficência de pôr em risco a
coletividade.
Succi (2017, p. 06) complementa:
Do ponto de vista da relação médico-paciente, parentes que se
opõem à vacinação de seus filhos podem prejudicar seriamente
essa relação, o que pode ser suficiente para permitir que o médico
deixe de atender esse paciente (Código de Ética Médica - artigo 36)
[...] podemos ter situações de médicos que se recusam a atender
pacientes, juízes que determinam a perda do poder familiar e res-
ponsabilizam pais por crime de abandono e omissão no caso de
crianças que adoecem em consequência de recusa vacinal.
Foi exatamente o que aconteceu no caso em análise. Os pais de C.
sofreram a ameaça de haver a busca e apreensão do menor para que a
vacinação dele pudesse ser realizada, mesmo que em sua decisão, o Juízo
de 1º Grau tenha afirmado não fazer sentido discutir se os pais eram
“bons” ou “maus”, e tão somente saber se haveria espaço para a recusa
vacinal por eles defendida.
314 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

É perceptível que o princípio bioético da justiça distributiva não


foi devidamente observado e atendido em nenhuma das instâncias que
julgaram o caso concreto. Isso porque, os genitores do bebê foram coa-
gidos legal e judicialmente perante decisões que visivelmente apenas
reforçaram o pedido do Ministério Público como que uma imposição,
sem a possibilidade de entendimento sobre os fatores que causaram a
preocupação dos pais em razão da aplicação de vacinas a seu filho.
Há desequilíbrio quando nas decisões é ocultado que existem, de
fato, riscos de ocorrerem, por exemplo, eventos adversos pós-vacinação
(EAPV) por conta de algumas substâncias adicionadas às vacinas ou
até mesmo por causa da reação orgânica de cada indivíduo; inclusive o
parecer emitido pelo Departamento Médico Judiciário se mostrou um
tanto quanto mecânico por não responder aos questionamentos dos
pais do bebê.
Relacionado a isso, é importante citar o que observa Lessa et al
(2013, p. 232):
O Brasil, a despeito de ter um dos mais bem-sucedidos programas
de imunização do mundo, não possui nenhuma iniciativa para com-
pensar ou atender de forma diferenciada as crianças acometidas
com EAPV, criando um grupo de “desassistidos” do sistema oficial
de saúde pública, restando apenas a “via crucis” do Judiciário como
única alternativa para a busca por justiça.
Se os pais de C. não encontraram respostas médico-científicas sobre
se há mesmo uma segurança em submeterem o seu filho à multivacina-
ção para completar o calendário de imunização obrigatória do PNI. Se
o bebê pode sim ser acometido com eventos adversos pós-vacinação e
se o Estado Brasileiro apenas protege das doenças imunopreveníveis,
mas não possui proteção alguma para a ocorrência de EAPV, como falar
de justiça distributiva à luz do direito à vida, à saúde e ao bem-estar?
Aliás, como falar, neste caso, de respeito à proteção integral e ao melhor
interesse do menor, já que, segundo a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da
Criança e do Adolescente, o Estado também figura como garantidor dos
direitos das crianças?
No Brasil, as jurisprudências tendem a reconhecer a irresponsa-
bilidade do Estado (no sentido não-obrigacional) quando as pessoas
acometidas por eventos adversos pós-vacinação buscam amparo. Os
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 315

tribunais sustentam o entendimento de que quando o indivíduo é va-


cinado, ele se submete a um risco que é próprio da imunização, a qual,
por lei, é obrigatória, a exemplo da Apelação cível nº 639.645-5/6-SP.
Além disso, em recente julgamento do STF sobre o tema de reper-
cussão geral nº 1103 - Possibilidade de os pais deixarem de vacinar os
seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas,
morais e existenciais – nota-se que a postura do Judiciário em relação à
temática continua sem considerar os princípios da Bioética:
Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão
geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade
da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção
filosófica. [...] 3. A liberdade de consciência é protegida constitucio-
nalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa
tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal
de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto,
encontrando seus limites em outros direitos e valores constitu-
cionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser
ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196),
bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente
(art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigato-
riedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas
leis vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa
Nacional de Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança
e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional.
Mais recentemente, a Lei nº 13.979/2020 (referente às medidas de
enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder
Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor
o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de
vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-cien-
tífico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o
Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo
contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vaci-
nação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo
legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de
terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar
não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem
em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor
interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário
com a fixação da seguinte tese: “É constitucional a obrigatoriedade
de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vi-
gilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de
316 Isabela Maria Silva Oliveira e Jemyma Jandiroba Ferreira

Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada


em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito
Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em
tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e
de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao
poder familiar”. (ARE 1267879, Relator(a): ROBERTO BARROSO,
Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO
REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-064 DIVULG 07-04-2021
PUBLIC 08-04-2021)
Portanto, confirmando o que já afirmara Sérgio de Castro Lessa et al
(2013, p. 232), “as atuais políticas de imunização infantil não atendem
plenamente aos princípios da equidade, universalidade e integralidade
na assistência à saúde”.
Para que o sistema de precedentes do CPC traga um entendimento
acertado sobre o tema “saber se os pais podem deixar de vacinar os seus
filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais
e existenciais”, deve ser feita uma análise criteriosa à luz da Bioética e
não somente dos ditames legais que tornam obrigatória a vacinação.
Além disso, o próprio Estado pode investir em políticas públicas de
informação clara sobre as vacinas como um todo – importância e eficácia
da proteção, e riscos –, investindo também em programas de apoio e
tratamento dos imunizados acometidos por efeitos adversos.
Tal mudança de olhar e comportamento do Estado irá atender ao
total e pleno interesse da coletividade e trará harmonia em relação ao
cumprimento de obrigações legais, como é o caso da adesão, por parte
da população, ao Programa Nacional de Imunização.

5. CONCLUSÃO
O presente capítulo deste livro buscou demonstrar a importância
da utilização da Bioética na fundamentação das decisões que compõem
o sistema de precedentes do CPC, através da análise do Agravo de
Instrumento n. 0088052-64.2020.8.21.7000, da comarca de Gaurama,
oriundo da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, sobre o tema “saber se os pais podem deixar de vacinar os seus
filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais
e existenciais”.
O sistema de precedentes do CPC e a importância da bioética... 317

A partir da definição sobre os precedentes, percebeu-se a impor-


tância de sua obrigatoriedade e vinculação aos casos de demandas
repetitivas, com a finalidade de manter a uniformidade, a organização
e a integralidade do sistema judiciário brasileiro. Para isso, as decisões
devem ter fundamentações robustas, de forma que garantam a isonomia
e a segurança jurídica.
Contudo, notou-se que o julgado objeto de análise deste trabalho foi
omisso em relação a alguns aspectos que vão além da legislação e dos
princípios que justificaram a decisão: (i) o histórico sobre a obrigatorie-
dade da vacinação no Brasil; (ii) o acesso à informação em rede e a sua
influência na recusa vacinal; (iii) os motivos da escusa de consciência
dos pais em submeter o seu filho à vacinação; e (iv) se haviam fundadas
razões, com base nos princípios bioéticos da não-maleficência, benefi-
cência, autonomia e justiça.
A fundamentação que justificou o julgamento quedou-se enfra-
quecida, justamente por não seguir, sobretudo, o objetivo de garantir
segurança jurídica para quem mais precisa do amparo da Justiça nessa
situação. Com respeito, a fundamentação pareceu mecânica e tenden-
ciosa, o que se reitera nos Tribunais do País.
Torna-se indispensável que o Judiciário aponte claramente que a
responsabilidade não deve ser apenas dos pais, mas também do Estado,
que além de garantir a aplicação das vacinas para as crianças, deve infor-
mar sobre a importância, a eficácia dos imunizantes e os seus possíveis
riscos, promovendo apoio e tratamento dos imunizados acometidos por
efeitos adversos oriundos da vacinação.
Além disso, os Tribunais podem criar varas especializadas em de-
mandas que envolvam Direito Médico e da Saúde; e no caso de questões
relevantes, de grande impacto, como a do presente tema, é importante
a presença do amicus curiae, para fornecer subsídios às decisões dos
Tribunais.

REFERÊNCIAS
BRASIL. ARE 1267879 – Tema de Repercussão Geral 1103: Possibilidade dos
pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convic-
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