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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Vol. 4

Organizadores

Prof. Dr. Orides Mezzaroba


Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr

Coordenadores

Profª. Drª. Norma Sueli Padilha


Prof. Dr. Celso Antonio Pacheco Fiorillo
Profª. Drª. Livia Gaigher Bosio Campello

DIREITO AMBIENTAL I

2014 Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
D597
Direito ambienta I
Nossos Contatos Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
São Paulo Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
Rua José Bonifácio, n. 209, / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Norma Sueli Padilha /Celso Antonio
cj. 603, Centro, São Paulo – SP Pacheco Fiorillo/ Livia Gaigher Bosio Campello.
CEP: 01.003-001 Título independente - Curitiba - PR . : vol.4 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
538p. :
Acesse: www. editoraclassica.com.br
ISBN 978-85-99651-92-6
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EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira Luiz Eduardo Gunther
Alexandre Walmott Borges Luisa Moura
Daniel Ferreira Mara Darcanchy
Elizabeth Accioly Massako Shirai
Everton Gonçalves Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Fernando Knoerr Nilson Araújo de Souza
Francisco Cardozo de Oliveira Norma Padilha
Francisval Mendes Paulo Ricardo Opuszka
Ilton Garcia da Costa Roberto Genofre
Ivan Motta Salim Reis
Ivo Dantas Valesca Raizer Borges Moschen
Jonathan Barros Vita Vanessa Caporlingua
José Edmilson Lima Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Juliana Cristina Busnardo de Araujo Vladmir Silveira
Lafayete Pozzoli Wagner Ginotti
Leonardo Rabelo Wagner Menezes
Lívia Gaigher Bósio Campello Willians Franklin Lira dos Santos
Lucimeiry Galvão

Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 15

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE MEIO AMBIENTE E DE SAÚDE COMO GARANTIA DE


QUALIDADE DE VIDA IDENTIFICADOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 (Nicolau
Cardoso Neto) ............................................................................................................................................. 21

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 22

PRINCÍPIOS NO DIREITO ........................................................................................................................... 23

OS TERMOS MEIO AMBIENTE, SAÚDE, VIDA E QUALIDADE DE VIDA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


BRASILEIRA DE 1988 ................................................................................................................................. 27

PRINCÍPIOS DO MEIO AMBIENTE E DA SAÚDE E SUA EQUIVALÊNCIA QUANTO AO OBJETIVO DE


PROPOSIÇÃO DE QUALIDADE DE VIDA PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA ............................................ 33

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 37

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 38

O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO NO DIREITO AMBIENTAL: CONCILIANDO PROPRIEDADE


PRIVADA E PROTEÇÃO AMBIENTAL (Marcelo Farina de Medeiros) ........................................................ 40

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 41

DIREITO COMO SISTEMA JURÍDICO ......................................................................................................... 45

PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO ................................................................................................... 47

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 58

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 59

O PRINCÍPIO NEMINEM LAEDERE E A PREVENÇÃO DOS DANOS AMBIENTAIS (CARLOS EDUARDO


SILVA E SOUZA) ........................................................................................................................................... 62

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 63

O PRINCÍPIO NEMINEM LAEDERE1 E A SUA PRESCRIÇÃO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA .............. 63

O PRINCÍPIO DO NEMINEM LAEDERE E A PREVENÇÃO DE DANOS AMBIENTAIS ................................. 66

A EVOLUÇÃO DOS PARADIGMAS NA SOCIEDADE DE MASSA E OS EFEITOS DESSA RELAÇÃO NA


SEARA AMBIENTAL ................................................................................................................................... 68

OS REFLEXOS DO PRINCÍPIO DO NEMINEM LAEDERE NA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL .... 70

A RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NO BRASIL ............................................................................. 72

CONCLUSÕES ARTICULADAS .................................................................................................................... 74

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 75
O PROJETO DE ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO: PROJEÇÕES E IMPLICAÇÕES NA ORDEM
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA (Rafaela Emilia Bortolini e Patryck de Araújo Ayala) ............................... 78

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 79

CONCEITUAÇÃO E ELEMENTOS DEFINIDORES DE UM ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO .......... 84

A PROTEÇÃO DO AMBIENTE NESSE MODELO ESTATAL .......................................................................... 91

OS DEVERES ESTATAIS DE PROTEÇÃO ...................................................................................................... 93

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E A TUTELA DO MEIO AMBIENTE ............................... 94

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 96

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 97

O DEVER DE MITIGAR A PERDA NO DANO AMBIENTAL QUANDO A VÍTIMA DO DANO AMBIENTAL


NO ÂMBITO PARTICULAR TEM RESPONSABILIDADE PELO RESULTADO FATÍDICO QUE PODERIA
EVITAR OU ATENUAR SE TIVESSE AGIDO COM BOA-FÉ (Elcio Nacur Rezende e Bruno Torquato de
Oliveira Naves) ............................................................................................................................................ 101

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 102

“DUTY TO MITIGATE THE LOSS” ............................................................................................................... 103

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 116

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 116

A RETÓRICA DOS MÉTODOS NA TEORIA DO PROCESSO AMBIENTAL: CONFLITO DE INTERESSE,


PRETENSÃO E LIDE NO MEIO AMBIENTE (Fernando Joaquim Ferreira Maia) ........................................ 119

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 120

A RETÓRICA DOS MÉTODOS ENQUANTO LINGUAGEM CONSTITUTIVA DA REALIDADE AMBIENTAL


NA COMUNICAÇÃO HUMANA ................................................................................................................. 121

A RELAÇÃO RETÓRICA ENTRE O BEM DA VIDA AMBIENTAL E O INTERESSE DIFUSO ............................... 125

O CONFLITO DE INTERESSES E A PRETENSÃO NA LIDE AMBIENTAL COMO UMA SITUAÇÃO


RETÓRICA E AS CRISES JURÍDICAS .......................................................................................................... 128

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 134

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 136

A SADIA QUALIDADE DE VIDA COMO FATOR PREPONDERANTE PARA A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE


DA VIDA HUMANA É CAPAZ DE PREVALECER ANTE A DISCRIMINAÇÃO POR IDADE EM RAZÃO DA
REVOLUÇÃO DA INFORMÁTICA? (Patrícia Dittrich Ferreira Diniz e Regina Maria Bueno Bacellar) .......... 139

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 140

A SADIA QUALIDADE DE VIDA NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO COMO FATOR PREPONDERANTE


PARA A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA VIDA HUMANA ......................................................................... 142

A REVOLUÇÃO DA INFORMÁTICA E O SEU IMPACTO NA QUALIDADE DE VIDA DOS TRABALHADORES


NÃO JOVENS, SEM VIVÊNCIA TECNOLÓGICA ......................................................................................... 150

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 159


REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 161

ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE E INTEGRIDADE DO


PATRIMÔNIO GENÉTICO FACE ÀS PESQUISAS E MANIPULAÇÃO DO GENOMA HUMANO (Taísa
Villa Furlanetto e Lucélia Simioni Machado) ............................................................................................... 164

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 165

COMPREENDENDO OS CONCEITOS DE BIODIVERSIDADE, BIOÉTICA, ÉTICA AMBIENTAL E


BIODIREITO ............................................................................................................................................... 166

PROJETO GENOMA HUMANO: LIMITES ÉTICOS E JURÍDICOS QUE CERCAM A SUA MANIPULAÇÃO
E AS INTERVENÇÕES NO MEIO AMBIENTE – RISCO DE EUGENISMO E COISIFICAÇÃO DO CORPO
HUMANO SOB O PARADIGMA DO ESTADO SOCIOAMBIENTAL ............................................................. 174

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 182

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 184

BIODIVERSIDADE: USO INCLUSIVO E SUSTENTÁVEL DO AMBIENTE (Fernanda Luiza Fontoura de


Medeiros e Selma Rodrigues Petterle) ........................................................................................................ 186

UMA PEGADA ECOLÓGICA E A INCLUSÃO COMO UM DIREITO DEVER FUNDAMENTAL .......................... 186

UMA VIRADA PARA ALÉM DO ANTROPOCENTRISMO ........................................................................... 189

UMA ÉTICA AMBIENTAL NUM ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL MAPEANDO O SENTIDO DE


DIGNIDADE ................................................................................................................................................ 192

A EXTENSÃO E INTENSIDADE DA DIGNIDADE NUMA PERSPECTIVA ECOLÓGICA ................................ 195

DIGNIDADE DA VIDA ................................................................................................................................. 196

PROTEÇÃO DO ANIMAL NÃO HUMANO E DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................. 198

VIVER O OUTRO-EM-MIM COMO PRESSUPOSTO À INCLUSÃO DAS DIFERENÇAS ............................... 202

OS INTRAVES NESSA EXPERIMENTAÇÃO DESUMANA ........................................................................... 203

FAZENDO ACONTECER .............................................................................................................................. 213

O DESAMPARO JURÍDICO DO CERRADO – UMA PESQUISA EMPÍRICA (Lucimarta Guedes Vieira de


Barros) ........................................................................................................................................................ 216

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 217

METODOLOGIA ......................................................................................................................................... 225

JUSTIFICATIVA ........................................................................................................................................... 228

ALGUNS RESULTADOS ............................................................................................................................... 229

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 233

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 234

O REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO DO BIOMA MATA ATLÂNTICA E SUA APLICAÇÃO NOS


PROCESSOS DE EXPANSÃO URBANA (Marcela Vitoriano e Silva) ........................................................... 241
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 242

A TUTELA CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE ................................................................................ 244

A IMPORTÂNCIA DO BIOMA MATA ATLÂNTICA E SEU QUADRO GERAL DE DEVASTAÇÃO ....................... 246

O REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO DO BIOMA MATA ATLÂNTICA APLICÁVEL AOS LOTEAMENTOS


E EDIFICAÇÕES URBANAS ......................................................................................................................... 248

A NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL PARA INTERVENÇÃO NO


BIOMA MATA ATLÂNTICA ......................................................................................................................... 254

A FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS AMBIENTAIS NA APLICAÇÃO DO REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO DO


BIOMA MATA ATLÂNTICA ......................................................................................................................... 257

O DESENVOLVIMENTO URBANO E A PROTEÇÃO DO BIOMA MATA ATLÂNTICA ................................... 260

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 263

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 266

CONFISCO DE TERRAS: CONSIDERAÇÕES ACERCA DE SUA ATUAL CONFIGURAÇÃO NO DIREITO


AGROAMBIENTAL BRASILEIRO (Guilherme Martins Teixeira Borges) ..................................................... 268

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 269

O CONFISCO .............................................................................................................................................. 269

O CONFISCO DE TERRAS NO DIREITO AGROAMBIENTAL BRASILEIRO .................................................. 274

A POLÊMICA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE “GLEBAS” NA CONFISCAÇÃO AGRÁRIA ............................... 279

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 286

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 288

REFORMA AGRÁRIA NO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO (Luciana Monduzzi Figueiredo) ..... 290

O ESTADO SOCIOAMBIENTAL ................................................................................................................... 292

REFORMA AGRÁRIA: CONCEITO, REGIME JURÍDICO, FINALIDADE E INSTRUMENTOS ............................ 295

REFORMA AGRÁRIA NO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO: O COMPONENTE AMBIENTAL ...... 300

REFORMA AGROAMBIENTAL: REALIDADE ATUAL? ................................................................................ 303

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 305

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 307

A MINERAÇÃO EM TERRITÓRIO QUILOMBOLA: REFLEXÕES A PARTIR DO CASO DO QUILOMBO


KALUNGA (Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega e Rodolfo Nunes Franco) .............................................. 309

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 310

ABORDAGEM NORMATIVA DA MINERAÇÃO .......................................................................................... 314

O NOVO MARCO REGULATÓRIO .............................................................................................................. 318

EXTRAÇÃO MINERAL EM TERRITÓRIO QUILOMBOLA: O CASO KALUNGA ........................................... 319


CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 324

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 326

O ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) COMO INSTRUMENTO DO DIREITO AMBIENTAL


URBANÍSTICO BRASILEIRO: UM DEVER DO MUNICÍPIO E DOS CIDADÃOS NA SUA EFETIVAÇÃO
(Marcelo Vanzella Sartori) .......................................................................................................................... 329

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 330

DIREITO AMBIENTAL URBANÍSTICO ........................................................................................................ 331

ESTATUTO DA CIDADE ............................................................................................................................... 333

ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) ........................................................................................... 334

O EIV E AS TERMINOLOGIAS URBANÍSTICAS, ADMINISTRATIVAS E AMBIENTAIS ................................ 339

SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV) E ESTUDO DE


IMPACTO AMBIENTAL (EIA) ...................................................................................................................... 342

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 345

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 347

O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO DE TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL (Allan Carlos


Moreira Magalhães) ................................................................................................................................... 349

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 350

A CULTURA E O PATRIMONIO CULTURAL ................................................................................................ 351

O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO DE TUTELA DO PATRIMONIO CULTURAL ............................... 357

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO MARCO CONSTITUCIONAL NORTEADOR DA TUTELA


DO PATRIMONIO CULTURAL .................................................................................................................... 361

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 363

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 364

PARQUES PÚBLICOS NO MUNICÍPIO DE SALVADOR: REFLEXÕES ACERCA DO DIREITO


CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO NO AMBIENTE
URBANO (Rafaela Campos de Oliveira e Juliana Campos de Oliveira) ........................................................ 366

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 368

A CIDADE E O DIREITO DE TODOS AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO PARA A


SADIA QUALIDADE DE VIDA ..................................................................................................................... 369

O CASO DE SALVADOR: PLANO DIRETOR E PARQUES PÚBLICOS ........................................................... 371

SEGREGAÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL EM SALVADOR .................................................................................. 373

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 377

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 378

O CONTROLE BIOPOLÍTICO E O DIREITO URBANÍSTICO E AMBIENTAL CONTEMPORÂNEO: UMA


ANÁLISE DO PROJETO BEIRA RIO EM FOZ DO IGUAÇU (Angela Cassia Costaldelo E Júlio César Garcia) 382

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 383

O CONTROLE BIOPOLÍTICO ...................................................................................................................... 384

ASPECTOS DA ORDENAÇÃO TERRITORIAL DO DIREITO URBANÍSTICO-AMBIENTAL BRASILEIRO ....... 385

O CONTROLE BIOPOLÍTICO DAS CIDADES ............................................................................................... 387

O PROJETO “BEIRA FOZ” ........................................................................................................................... 389

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 393

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 395

INFRAÇÕES POR ACUMULAÇÃO E POLUIÇÃO AMBIENTAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA TUTELA


PENAL (Daiane Ayumi Kassada e Érika Mendes de Carvalho) ..................................................................... 397

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 397

INFRAÇÕES POR ACUMULAÇÃO COMO CRIMES DE PERIGO ABSTRATO-CONCRETO .............................. 400

MECANISMOS DE LIMITAÇÃO DO JUÍZO DE IDONEIDADE LESIVA DA CONDUTA E


ADMINISTRATIVIZAÇÃO DO DIREITO PENAL DO AMBIENTE ................................................................. 406

CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 409

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 412

PROCESSO ADMINISTRATIVO E CONSTITUIÇÃO DE MULTAS AMBIENTAIS (Luiz Gustavo Levate) ..... 414

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 415

A COBRANÇA DE MULTAS AMBIENTAIS PELO IBAMA NO TRIÊNIO DE 2008 A 2010. ANÁLISE E


SUGESTÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO ................................................................................. 417

A PROCESSUALIZAÇÃO DA FUNÇÃO EXECUTIVA E O DIREITO FUNDAMENTAL À PROCESSUALIZAÇÃO 420

A PREVISÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO ....................................................................................... 429

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 439

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 440

O REDIMENSIONAMENTO DO ÔNUS DA PROVA NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL


E PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DO MEIO AMBIENTE (Marcelo Antonio Theodoro e Luize Calvi
Menegassi Castro) ...................................................................................................................................... 443

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 444

A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE ........................................................................... 445

A SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL .............................................................................................................. 448

O PROCESSO JUDICIAL (CONSTITUCIONAL) AMBIENTAL COMO MEIO DE ACESSO À JUSTIÇA


AMBIENTAL ............................................................................................................................................... 452

O REDIMENSIONAMENTO DO ÔNUS DA PROVA .................................................................................... 454


CONCLUSÕES ............................................................................................................................................ 463

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 465

FOIE GRAS1: UMA VISÃO ANALÍTICA DO CÓDIGO DE SAÚDE E SEGURANÇA DA CALIFÓRNIA


(ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA) FRENTE À SILENTE LEGISLAÇÃO BRASILEIRA (Pedro Arruda
Junior e Kiwonghi Bizawu) .......................................................................................................................... 467

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 468

MEIO AMBIENTE: NOTAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................................... 469

PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA .............................................................................................................. 472

ALIMENTAÇÃO FORÇADA DE ANIMAIS: ÉTICA AMBIENTAL E FOIE GRAS ............................................. 476

CÓDIGO DE SAÚDE E SEGURANÇA DA CALIFÓRNIA ............................................................................... 478

A LACUNA DA LEGISLAÇAO CIVIL E A DESPROPORCIONALIDADE DA LEI PENAL .................................. 482

CONSIDERAÇOES FINAIS .......................................................................................................................... 486

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 487

TUTELA AMBIENTAL: A PROTEÇÃO ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988 E AS


DISCUSSÕES ACERCA DA SUA CONCRETIZAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL (Renata Mayumi
Sanomya e Laeti Fermino Tudisco) .............................................................................................................. 489

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 489

AMBIENTE ................................................................................................................................................. 490

PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL ...................................................................................................... 494

INSTRUMENTOS JURÍDICO-AMBIENTAIS ................................................................................................ 498

TUTELA DO AMBIENTE NO DIREITO INTERNACIONAL ........................................................................... 500

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 508

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 509

BIOCOMBUSTÍVEIS: INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO


AMBIENTE (Alexandre Walmott Borges e Mário Ângelo de Oliveira Júnior) .............................................. 511

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 513

DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ............................................................................................... 514

MATRIZ ENERGÉTICA BRASILEIRA E A INSERÇÃO DOS BIOCOMBUSTÍVEIS ......................................... 520

BIOCOMBUSTÍVEIS E POLÍTICA ENERGÉTICA NACIONAL ...................................................................... 523

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 526

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 527

CONCRETIZANDO O SOCIOAMBIENTALISMO: O SISTEMA DE PAGAMENTO POR SERVIÇOS


AMBIENTAIS COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E REDUÇÀO DAS
DESIGUALDADES SOCIAIS (Daniela Lopes de Faria) ................................................................................. 529

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 531

ECONOMIA ECOLÓGICA: INSTRUMENTOS ECONÔMICOS VS. COMANDO E CONTROLE ........................ 531

PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS (PSA) .................................................................................... 534

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 545

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 546


COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Direito Ambiental I, do XXII Encontro


Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI),
realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias 29 de maio e 1º
de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,


tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os


programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de


programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira


Presidente do CONPEDI

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Apresentação

O presente livro reúne os artigos selecionados no XXII Encontro Nacional do


CONPEDI/UNICURITIBA e apresentados no Grupo de Trabalho de Direito Ambiental I que
tivemos a honra de coordenar. Os autores trazem temas de importância fundamental para o
aprofundamento da pesquisa acadêmica na área ambiental, colaborando sobremaneira com o
debate das diversas dimensões que congregam a diversidade e multidisciplinaridade do Direito
Ambiental e seus inúmeros desafios de implementação.

Os artigos compilados no GT de Direito Ambiental I do CONPEDI/UNICURITIBA,


dada a qualidade de seus autores e da pesquisa empreendida por cada qual, transformam a
presente obra em um contributo inestimável para aqueles que pretendem se aprofundar na
compreensão da complexidade da proteção jurídica do meio ambiente em seus mais diversos
aspectos e dimensões. Neste contexto a obra apresenta pesquisas referentes a diversos aspectos
decorrentes da Constitucionalização do meio ambiente como direito fundamental e seus efeitos
no ordenamento jurídico nacional, além de pesquisas sobre regimes jurídicos específicos do
meio ambiente natural e artificial, a proteção penal, o processo administrativo e aspectos da
tutela judicial.

Nesse contexto, na qualidade de coordenadores do GT de Direito Ambiental I,


apresentamos em breve síntese os 25 artigos que compõem a presente obra com a certeza de
sua contribuição para a evolução dos estudos jurídicos na área ambiental.

O autor Nicolau Cardoso Neto apresenta o artigo intitulado “Princípios constitucionais


de meio ambiente e de saúde como garantia de qualidade de vida identificados na Constituição
Federal brasileira de 1988”, cujo objetivo geral é identificar a vinculação dos princípios
constitucionais do Meio Ambiente e da Saúde questionando a equivalência entre os mesmos
quanto à intenção de proposição de qualidade de vida da população.

Marcelo Farina de Medeiros apresenta o artigo intitulado “O princípio da proibição de


excesso no direito ambiental: conciliando propriedade privada e proteção ambiental”

15
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

demonstrando a sistemática constitucional de coexistência entre tais direitos fundamentais e


ressaltando o princípio da proibição de excesso das normas limitadoras de direitos
fundamentais, visando que a garantia de a existência de um não importe na conspurcação do
outro.

Carlos Eduardo Silva e Souza é autor do artigo “O princípio neminem laedere e a


prevenção dos danos ambientais” que objetiva a analisar o princípio do neminem laedere e sua
possível aplicação no ordenamento jurídico brasileiro e, de especial modo, à proteção
ambiental, na perspectiva de prevenção do dano ambiental, ainda que aplicada sob a seara da
responsabilidade civil ambiental.

Rafaela Emilia Bortolini e Patryck de Araújo Ayala apresentam o artigo “O projeto de


estado socioambiental de direito: projeções e implicações na ordem constitucional brasileira”
onde pretende-se demonstrar a incorporação do Estado Socioambiental no texto constitucional
brasileiro de 1988, como um projeto de futuro ainda a ser concretizado, e quais as implicações
dele decorrentes.

“O dever de mitigar a perda no dano ambiental” é o artigo de Elcio Nacur Rezende em


que se procura demonstrar a aplicabilidade do Duty to Mitigate the Loss nas demandas que
tenham por objeto a perquirição da responsabilidade civil ambiental promovida de forma
individualizada (dano individual ambiental ou dano reflexo).

O artigo “A retórica dos métodos na teoria do processo ambiental: conflito de interesse,


pretensão e lide no meio ambiente” de Fernando Joaquim Ferreira Maia apresenta a retórica,
como método, passa pela compreensão do ambiente humano, no caso, a descrição dos
fenômenos ambientais. Envolve o controle público da linguagem do direito processual
ambiental.

Patrícia Dittrich Ferreira Diniz e Regina Maria Bueno Bacellar são autores do artigo “A
sadia qualidade de vida como fator preponderante para a proteção da dignidade da vida
humana é capaz de prevalecer ante a discriminação por idade em razão da revolução da
informática?” no qual apresenta a defesa da sadia qualidade de vida e a preservação do

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

princípio da dignidade dos trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica, no meio
ambiente do trabalho impactado pela Revolução da Informática.

As autoras Lucélia Simioni Machado e Taísa Villa Furlanetto apresentam o artigo


intitulado “Algumas reflexões acerca da proteção da biodiversidade e integridade do
patrimônio genético face às pesquisas e manipulação do genoma humano” que analisa as
questões sobre a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético, face à discussão em
torno do Genoma Humano.

“A biodiversidade: uso inclusivo e sustentável do ambiente” é o artigo das autoras


Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros e Selma Rodrigues Petterle que analisa a extensão dos
direitos e deveres fundamentais envolvendo a proteção da vida aos animais não-humanos, na
defesa de uma visão ética da vida; uma ética que privilegia a compaixão e a solidariedade
como princípios cogentes à sustentabilidade da vida e a manutenção da biodiversidade.

A autora Lucimarta Guedes Vieira de Barros propõe em “O Desamparo Jurídico do


Cerrado – Uma Pesquisa Empírica” uma análise crítica sobre os efeitos do Novo Código
Florestal brasileiro, no intuito de explicitar o retrocesso em relação ao Código anterior. A
autora salienta sua preocupação com as garantias constitucionais de proteção ambiental e
adentra no campo metodológico das ciências sociais, realizando pesquisa de campo e
entrevistas com os “geraizeiros” para identificar nas populações nativas do Cerrado pontos
relacionados aos efeitos da nova legislação.

Em seguida, Marcela Vitoriano e Silva apresenta o artigo “O regime jurídico de


proteção do bioma Mata Atlântica e sua aplicação nos processos de expansão urbana”, no qual
analisa as regras do regime jurídico de proteção do Bioma Mata Atlântica previstas na Lei
Federal nº 11.248/06, especialmente aquelas aplicáveis nas hipóteses de realização de
loteamentos ou edificações urbanas, e os mecanismos e instrumentos jurídicos postos para
impedir que a expansão urbana não leve à devastação de novas áreas do bioma.

Guilherme Martins Teixeira Borges, por sua vez, aborda o “Confisco de terras:
considerações acerca de sua atual configuração no Direito Agroambiental brasileiro”, partindo

17
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

da análise do artigo 243 da Constituição Federal brasileira de 1988, que consolidou a perda da
propriedade rural em favor do Poder Público, sem possibilidade de indenização. Diante desta
inovação constitucional, o autor apresenta uma releitura do instituto do confisco de terras em
relação ao direito fundamental de propriedade e ao direito social de acesso à terra.

Já Luciana Monduzzi Figueiredo estuda a “Reforma agrária no Estado Socioambiental


de Direito”, ressaltando que o meio ambiente não pode ser desprezado na reestruturação
fundiária do Brasil e do seu principal instrumento, a reforma agrária.

No artigo intitulado “A mineração em território quilombola: reflexões a partir do caso


do quilombo Kalunga”, Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1 e Rodolfo Nunes Franco
enfrentam uma questão atual e bastante delicada que é a extração mineral em territórios
indígenas e quilombolas. Com foco no quilombola Kalunga, analisam a Ação Civil Pública
movida pelo Ministério Público Federal para tentar embargar e suspender os procedimentos de
pesquisa e lavra nessa comunidade.

Na sequência, “O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) como instrumento do direito


ambiental urbanístico brasileiro: um dever do município e dos cidadãos na sua efetivação, é
apresentado por Marcelo Vanzella Sartori. Em seu texto, o autor foca a participação cidadã em
face dos impactos gerados pelas atividades urbanas, tendo como base os preceitos
constitucionais e a Lei 10.257/2001, vislumbrando, sobretudo, a efetivação do Estudo de
Impacto de Vizinhança (EIV).

Já Allan Carlos Moreira Magalhães, no artigo intitulado “O plano diretor como


instrumento de tutela do patrimônio cultural” examina a proteção do patrimônio cultural por
intermédio do plano diretor nas esferas social, econômica e ambiental para o desenvolvimento
de cidades ambientalmente sustentáveis.

Em seguida, no texto sobre “Parques Públicos no Município de Salvador: reflexões


acerca do Direito Constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no ambiente
urbano”, as autoras Rafaela Campos de Oliveira e Juliana Campos de Oliveira cuidam das
questões de acesso aos Parques Públicos do Município de Salvador revelando contradições em

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

cotejo com as garantias de concretização da dignidade humana e realização do direito ao meio


ambiente ecologicamente equilibrado.

“O controle biopolítico e o direito urbanístico e ambiental contemporâneo: uma análise


do projeto beira rio em Foz do Iguaçu” é apresentado por Angela Cassia Costaldelo e Júlio
César Garcia, que amparam-se nas reflexões de Michel Foucault como marco teórico para
exame do controle biopolítico e sua relação com os mecanismos de ordenação territorial.

Daiane Ayumi Kassada e Érika Mendes de Carvalho buscam uma compreensão dos
crimes de acumulação em face da poluição ambiental em artigo intitulado “Infrações por
acumulação e poluição ambiental: desafios e perspectivas da tutela penal”. Nesse passo,
oferecem a técnica do reenvio à normativa administrativa ambiental como uma ferramenta apta
a reforçar o objetivo da conduta nos delitos de poluição quando tratarem-se de crimes de
acumulação.

Por sua vez, Luiz Gustavo Levate estuda o “Processo administrativo e constituição de
multas ambientais” focado nos direitos e garantias processuais fundamentais do cidadão na
constituição de multas ambientais como medida realizadora do Estado Democrático de Direito,
defende a necessidade de processo administrativo previsto em lei formal e não por meio de
Decreto.

Por conseguinte, Marcelo Antonio Theodor e Luize Calvi Menegassi Castro


demonstram “O redimensionamento do ônus da prova no contexto da sociedade de risco global
e proteção constitucional do meio ambiente”, dada a conjuntura de uma sociedade globalizada
conduzida por incertezas científicas e tecnológicas.

“Foie gras: uma visão analítica do Código de Saúde e Segurança da Califórnia (Estados
Unidos da América) frente à silente legislação brasileira” é o trabalho de Pedro Arruda Junior e
Kiwonghi Bizawu os quais demonstram legítima preocupação com lacunas legislativas que
permitem que a iguaria conduza a maus-tratos de aves como os patos e gansos.

Em seguida, Renata Mayumi Sanomya e Laeti Fermino Tudisco abordam a “Tutela


ambiental: a proteção assegurada pela Constituição cidadã de 1988 e as discussões acerca da

19
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

sua concretização no cenário internacional” no qual apresentam conceitos, princípios e


instrumentos jurídicos do Direito Ambiental e discutem a questão da efetividade desse direito.

O trabalho intitulado “Biocombustíveis: instrumento de efetivação do direito


fundamental ao meio ambiente” de Alexandre Walmott Borges e Mário Ângelo de Oliveira
Júnior foca na utilização de fontes renováveis de energia como instrumento concretizador do
direito fundamental ao meio ambiente, nos termos da Constituição brasileira de 1988.

Finalmente, Daniela Lopes de Faria em “Concretizando o socioambientalismo: o


sistema de pagamento por serviços ambientais como mecanismo de proteção do meio ambiente
e redução das desigualdades sociais”, baseia-se por uma análise da economia ecológica e
contrapõe os instrumentos de comando e controle com os instrumentos econômicos visando
aferir a eficácia e o custo-benefício.

Sem dúvida, esta obra fornece instrumentos para que pesquisadores e aplicadores do
direito compreendam a dimensão do Direito Ambiental, disseminando, assim, as bases para
que se atinja uma perfeita conjugação entre os planos individual e social na construção de uma
sociedade mais justa e protetora do meio ambiente.

Coordenadoras do Grupo de Trabalho


Professora Doutora Norma Sueli Padilha – UniSantos
Professor Doutor Celso Antonio Pacheco Fiorillo – FMU
Professora Doutora Livia Gaigher Bosio Campello – UNESA

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DE MEIO AMBIENTE E DE SAÚDE COMO


GARANTIA DE QUALIDADE DE VIDA IDENTIFICADOS NA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

CONSTITUTIONAL PRINCIPLES OF ENVIRONMENT AND HEALTH AS A


GUARANTEE OF QUALITY OF LIFE IDENTIFIED IN BRAZILIAN FEDERAL
CONSTITUTION OF 1988
Nicolau Cardoso Neto1

Resumo: A Constituição Federal de 1988 apresenta princípios distintos com a mesma


intenção de oferecer qualidade de vida para a população brasileira, um deles é o meio
ambiente que está vinculado ao Capítulo do Meio Ambiente, o outro princípio é o da saúde
que tem por base a Seção sobre Saúde do Capítulo II. Esta proximidade quanto à intenção de
proposição de qualidade de vida levanta um questionamento, qual seja: é possível identificar
equivalência entre os princípios de meio ambiente e de saúde quanto à intenção de proposição
de qualidade de vida? Assim, o objetivo geral deste estudo é identificar na Constituição
Federal Brasileira de 1988 se os princípios Constitucionais do Meio Ambiente e da Saúde
tutelam qualidade de vida para a população. Para tanto serão identificados os termo Meio
Ambiente e Saúde na CF/88 e analisadas a possibilidade de equivalência quanto ao objetivo
de proposição de qualidade de vida para a população. Esta equivalência torna-se perceptível
na leitura dos artigos 200 e 225 da CF/88 quando é possível entender que é objetivo do meio
ambiente ecologicamente equilibrado e da saúde colaborar na proteção do meio ambiente
como proposição de qualidade de vida para a população brasileira.
Palavras-chaves: Princípios; Princípios Constitucionais; Meio Ambiente; Saúde; Qualidade
de Vida; População; Constituição Federal; Equivalência.

Abstract: Abstract: The Federal Constitution of 1988 has different principles with the same
intent of providing quality of life for the population, one of them is the environment that is
linked to the Environment Chapter, the other principle is health that is based on the Health
Section of Chapter II. This proximity as to the intent of Proposition quality of life raises a
question, which is: it is possible identify equivalence between the principles of environment
and health as the intention to propose quality of life? Thus, the general objective of this study
is to identify in the Brazilian Federal Constitution of 1988 is the Constitutional principles of
Environment and Health oversee quality of life for the population. So will be identified the
term Environment and Health in CF/88 and analyzed the possibility of equivalence
proposition on the goal of quality of life for the population. This equivalence becomes
perceptible in reading the articles 200 and 225 of CF/88 when you can understand that is
objective of ecologically balanced environment and health collaborate in the protection of the
environment as the proposition of quality of life for the Brazilian population.
Keywords: Principles; Constitutional Principles ; Environment ; Health; Quality of Life;
Population; Federal Constitution; Equivalence.

1
Mestre em Engenharia Ambiental pela Universidade de Blumenau – FURB. Especialista em Direito Ambiental
pela Fundação Boiteux – UFSC. Doutorando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS.
Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Professor da Fundação
Universidade de Blumenau – FURB e do SENAI/Blumenau. Advogado. nicolau@scambiental.com.br

21
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

INTRODUÇÃO

Atualmente é possível identificar no sistema jurídico brasileiro duas estruturas de


controle provenientes de políticas públicas distintas de governo que possuem objetivo
semelhante quanto à intenção de oferecer qualidade de vida para a população. Ambas
devidamente apoiadas em princípios extraídos da Constituição Federal brasileira de 1988.
Uma delas deriva da Política Nacional de Meio Ambiente, que se motiva a partir do artigo
225, e a outra, sobre saúde, que tem por base os princípios destacados da Seção sobre Saúde
do Capítulo II da CF/88.
Ambos os sistemas políticos possuem fundamentação específicas e também
equivalentes quanto ao controle ambiental. O ambiental possui competência no que se refere a
proteção, a prevenção e a melhoria da qualidade ambiental, condições estas que acabam,
consequentemente, proporcionando benefícios a qualidade de vida da população brasileira. O
da saúde, por sua vez, procura identificar e deter os riscos e divulgar as informações
referentes aos fatores ambientais que possam provocar doenças e outros agravos à saúde.
Deste modo é possível identificar a existência de uma proximidade técnica entre os
dois sistemas políticos que se apoiam em princípios constitucionais que possuem origem a
partir de competências distintas identificadas na Constituição Federal de 1988, uma vez que
um visa a proteção do meio ambiente, o que proporciona qualidade de vida e o outro procura
identificar problemas ambientais que possam oferecer prejuízos a qualidade de vida. Assim
estes princípios, apesar de serem instituídos por princípios diferentes, Meio Ambiente e
Saúde, possuem pontos de fundamentação equivalentes.
Esta proximidade levanta um questionamento, qual seja: é possível identificar
equivalência entre os princípios de meio ambiente e de saúde quanto a intenção de proposição
de qualidade de vida para a população brasileira na Constituição Federal de 1988?
Assim, o objetivo geral deste estudo será identificar na Constituição Federal
Brasileira de 1988 se os princípios Constitucionais do Meio Ambiente e a Saúde possuem
equivalência quanto a proteção da qualidade de vida para a população brasileira.
Já os objetivos específicos serão o de identificar se na Constituição Federal de 1988
os termo Meio Ambiente e Saúde possuem equivalência quanto ao objetivo de proposição de
qualidade de vida para a população brasileira sendo definidos como princípios de direito.
Para a confecção deste estudo utilizar-se-á o método indutivo na fase da coleta de
dados, de tratamento e relato dos dados bibliográficos recolhidos, com o auxilio das técnicas
do referente e do fichamento. (PASOLD, 2011).

22
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para a composição deste artigo, primeiramente será estudado o que é princípio,


princípio constitucional e depois serão identificados os termos meio ambiente e da saúde na
CF/88. Na sequência será realizado a análise destes dois princípios para avaliar se existe a
possibilidade de identificar a equivalência entre eles a fim de verificar se estes podem
proporcionar de forma conjunta ou apenas separadamente qualidade de vida para a população
brasileira.

Espera-se que o resultado final deste artigo possa ser utilizado para aproximar as
políticas públicas de meio ambiente e de saúde de forma a possibilitar a atuação conjunta
entre estas, com o objetivo supremo de melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro.

1 PRINCÍPIOS NO DIREITO

O objetivo deste capítulo não é exaurir todos os conceitos e doutrinas sobre


Princípios do Direito identificados na Ciência Jurídica, mas sim definir qual será o conceito
utilizado para a realização deste artigo que passa pela necessidade de conceituar esta categoria
de forma a possibilitar a construção da linha de raciocínio necessária para identificar se existe
equivalência entre os princípios de meio ambiente e de saúde, quanto à intenção de
proposição de qualidade de vida para a população brasileira, a partir da Constituição Federal
Brasileira de 1988.
Ressalta-se ainda a necessidade inicial de definir isoladamente o conceito que será
utilizado neste artigo para as categorias Direito e Princípio, também com a intenção de
proporcionar a identificação da linha de condução para que seja atingido o objetivo final deste
trabalho.
Para tanto será utilizado o conceito de Direito definido por Osvaldo Ferreira de Melo
(1998, p.85), quando afirma que Direito é “fenômeno cultural” e “valores que informam os
direitos humanos”, sendo a cultura “a própria consciência da civilização”, com esperança de
“encontrar os necessários caminhos éticos para as relações humanas” por meio de “regras
cada vez mais sensatas”.
Osvaldo Ferreira de Melo (1994, p.81) vai mais além quanto ao conceito de Direito,
pois define que este é visto como ordenamento, já que possui o fim de “estabelecer regras
coativas de convivência e sobrevivência social, postas em vigência pelo Estado, segundo uma
rígida organização” garantida por meio de um conjunto de normas de conduta e
procedimentos judiciais.

23
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Estas regras, segundo Robert Alexy (2011, p.91), são normas que sempre são
satisfeitas ou insatisfeitas; possuem validade e assim devem ser cumprir exatamente como ela
exige, nem mais, nem menos. Estas regras contêm determinações “daquilo que é fática e
juridicamente possível”.
Já o conceito de princípio, para Robert Alexy (2011, p.90), é: “normas que ordenam
que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas
existentes”; são “mandamentos de otimização” que podem ser satisfeitos em graus variados
que não dependem apenas das “possibilidades fáticas, mas também das possibilidades
jurídicas”.
Do conceito de Alexy é possível perceber que a regra deve ser cumprida totalmente
ou descumprida, não existindo a possibilidade de ser respeitada em parte ou em graus, como
acontece com o princípio dentre as possibilidades jurídicas e fáticas existentes.
Já Canotilho (1995, p.534) conceitua princípios como sendo as “normas que exigem
a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e
jurídicas”. Para este autor, os princípios “não proíbem, permitem ou exigem algo em termos
de «tudo ou nada»”; ao contrário, os princípios “impõem a optimização de um direito ou de
um bem jurídico”.
Na mesma linha, José Afonso da Silva (2011, p.92), citando Gomes Canotilho e Vital
Moreira, afirma que os “princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de
normas, são ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens Constitucionais”.

Destes conceitos é possível perceber a abrangência e a amplitude da sua


compreensão, de Alexy foi possível extrair que princípios são normas que ordenam com
possibilidades jurídicas e fáticas existentes, Canotilho, por sua vez, vai um pouco mais longe
ao afirmar que além de serem normas que exigem a realização de algo de acordo com as
possibilidades fáticas e jurídicas, os princípios impõem a otimização de um direito ou de um
bem jurídico. O que vai de encontro com a afirmação de José Afonso da Silva que afirma que
os princípios são ordenações que possibilitam a formação dos sistemas de normas, onde,
destes é possível identificar valores e bens Constitucionais convergirem.
Sobre o mesmo tema, Eros Roberto Grau utiliza a interpretação de Jerzy Wróblewski
(2005, p.142) que lista cinco possibilidades de categorias para os princípios:
a) ‘Principe positif du droit’ c’est la norme explicitement formulée dans le texte du
droit positif, à savoir une disposition légale, soit une norme construite à partir des
éléments contenus dans ces dispositions; b) ‘Principe implicite du droit’: c’est une
règle comme prémisse ou conséquence des dispositions légales ou des normes; c)
‘Principe extrasystémique du droit’: c’est une règle traitée comme principe, mais
quie n’est ni principe positif du droit, ni principe implicite du droit; d) ‘Principe-

24
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

nom du droit’: c’est le nom caractérisant les traits essentiels d’une instituition
juridique; e) ‘Principe-construction du droit’: c’est la construction du législateur
rationnel ou parfait, presupposée dans l’élaboration dogmatique du droit ou dans
l’application et l’interprétation juridique.2

As cinco categorias de Wróblewski são: o princípio de direito positivo, como sendo


aquele em que a norma é formulada e explicitada no texto do direito positivo; o princípio
implícito de direito que aparece a partir da regra como premissa ou consequência das
disposições legais; o princípio extra sistêmico do direito que não é nem princípio positivo do
direito, nem princípio implícito do direito; o princípio nome do direito que é identificado pelo
nome que diferencia as características essenciais de uma Instituição Jurídica; e, o princípio de
construção de direito que acontece a partir da construção por um legislador racional ou
perfeito e pressupõe uma elaboração dogmática do direito, ou na aplicação e interpretação
jurídica.
Neste estudo, o conceito de Princípio que será utilizado como referencia será
aquele definido por Eros Roberto Grau (2005, p.152) que constrói opinião fazendo diferentes
afirmações sobre princípios, como sendo aquele que: “apenas indicam a direção na qual está
situada a regra que cumpre encontrar”; “são pautas orientadoras da normação jurídica que,
mercê de sua força de convicção, podem justificar decisões jurídicas”; “expressam
especificações da idéia de direito”; “o primeiro passo na consecução de uma regulação, passo
ao qual seguimos outros”. O princípio, para Grau, “não é obtido mediante a generalização da
regra”, é necessário um retorno “até os pensamentos que sob ela subjazem e em razão dos
quais a regulação surge como algo dotado de sentido”. Neste sentido, Grau (2005, p.155)
afirma que os princípios gerais do direito são “descobertos no interior de determinado
ordenamento”, isso somente ocorre em virtude de o princípio encontrar-se em estado de
latência.
Melo (1998, p.57), adverte que a “Política do Direito entende que não é
qualquer conteúdo que possa animar uma norma jurídica”. Sendo necessário que o conteúdo
“deve conformar-se com os valores inerentes aos princípios gerais do Direito, os quais, por
sua vez, devem sintonizar-se com os direitos fundamentais do ser humano, dentre eles o
direito de ser tratado com respeito e dignidade pelos agentes do Estado”.

2
“a) ‘Princípio de direito positivo’ é a norma explicitamente formulada no texto do direito positivo, ou seja, uma
disposição legal ou de uma norma construída a partir de elementos contidos nessas disposições; b) ‘princípio
implícito de direito’: é uma regra como uma premissa ou consequência das disposições legais ou de normas; c )
'Princípio extra sistêmico do direito': é uma regra tratada como princípio, mas que não é nem princípio positivo
do direito, nem princípio implícito do direito; d) ‘Princípio nome do direito’: é o nome que caracteriza as
características essenciais de uma Instituição jurídica; e) "Princípio de construção de direito": é a construção de
um legislador racional ou perfeito, pressupõe uma elaboração dogmática do direito ou na aplicação e
interpretação jurídica" (Tradução nossa).

25
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Esta caminhada da construção teórica do conceito de princípio do direito chega a um


ponto onde é possível passar a analisar os princípios gerais de forma a identifica-los como
princípios constitucionais. Paulo Bonavides (2011, p.258) afirma que “os princípios, uma vez
constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo”.
Já José Afonso da Silva (2011, p.95), por sua vez, aponta os princípios como sendo
Constitucionais Fundamentais e Gerais do Direito Constitucional. Onde os primeiros integram
o Direito Constitucional positivo e são traduzidos como “normas fundamentais, normas-
síntese ou normas-matriz que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador
constituinte”. Já os princípios gerais “formam temas de uma teoria geral do direito
Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo
destacado da dogmática jurídico-constitucional”.
Estando os princípios do direito inseridos e passiveis de identificação no corpo da
constituição, o ponto mais alto da escala normativa, em sendo “normas, se tornam, doravante,
as normas supremas do ordenamento”. Assim os princípios, “desde sua constitucionalização”,
“positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria
constitucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei
das Leis”. Convertendo-se assim “em norma normarum, norma das normas.” (BONAVIDES,
2011, p.290).
Paulo Bonavides afirma que depois que os princípios saltam “dos Códigos,
onde os princípios eram fontes de mero teor supletório, para as Constituições”, passam para a
figura de “fundamento de toda a ordem jurídica, na qualidade de princípios constitucionais.”
(2011, p.289).
Conclui Paulo Bonavides que após a “constitucionalização dos princípios
constitucionais outras coisas não representam senão os princípios gerais de Direito, ao darem
estes o passo decisivo de sua peregrinação normativa, que, inaugurada nos Códigos, acaba nas
Constituições.” (2011, p.291).
Eros Roberto Grau (2005, p.158) reconhece que a importância dos princípios é muito
grande, tanto que da sua “inserção no plano constitucional resulta a ordenação dos preceitos
constitucionais segundo uma estrutura hierarquizada. Isso no sentido de que a interpretação
das regras contempladas na Constituição é determinada pelos princípios”.

26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

2 OS TERMOS MEIO AMBIENTE, SAÚDE, VIDA E QUALIDADE DE VIDA NA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Este capítulo irá analisar o corpo do texto legal da Constituição Federal de 1988 com
a intenção de encontrar e destacar referências aos termos meio ambiente, saúde, vida e
qualidade de vida de forma que seja possível identificar e listar as passagens legais que
tenham sido citadas na CF/88. Para tanto foi feito leitura da CF/88 destacando as passagens
dos termos e relacionado-as em tópicos individuais para cada um dos termos objeto desta
pesquisa.

2.1 O TERMO MEIO AMBIENTE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE


1988

O termo meio ambiente é conceituado na Política Nacional de Meio Ambiente –


PNMA (Lei nº 6.938/81) no artigo 3º, I como sendo “o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). O fato da PNMA ter definido um conceito facilita
a interpretação da norma por qualquer pessoa, seja ela uma pessoa comum ou um aplicador do
direito, já que a própria lei define o que entendo por meio ambiente.
Este conceito pode ser visto como muito abrangente e técnico, mas seria muito frágil
se não o fosse, pois as relações que compõe um sistema dinâmico, como o meio ambiente, não
devem ser menosprezadas e individualizadas, ao contrário, devem ser profundamente
analisadas a fim de possibilitar a identificação das interrelações entre os fatores físicos,
químicos e biológicos que proporcionam a vida em suas diferentes formas.
A própria Constituição Federal de 1988 expressa esta preocupação em seu corpo
legal, pois em diferentes momentos é possível identificar o termo “meio ambiente” no seu
texto legal. Aparece tanto no Capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, como
na distribuição de competências entre os entes federados, como função do Ministério Público
e também nos Capítulo dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, da Comunicação
Social e do Meio Ambiente.
Este termo é tratado pela CF/88 como garantia ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado como sinônimo de qualidade de vida, saúde, proteção, preservação ou mesmo
como garantia ao meio ambiente do trabalho e de manutenção de um sistema econômico.
Diante da abertura que a CF/88 oferece para o termo meio ambiente depreende-se que este

27
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

não deve ser analisado apenas com o foco de proteção dos espaços naturais, mas sim como
espaço onde o homem está inserido e dele demanda qualidade para poder ter vida em seus
diferentes espaços sociais, coletivos e mesmo o do trabalho.
Estas relações entre qualidade de vida e em especial a saúde do homem denotam a
possibilidade de identificar relações entre os princípios do meio ambiente e da saúde, pois
possuem objetivos em comum, quais sejam: a qualidade de vida por meio de saúde e meio
ambiente saudável.
Desta afirmação, passasse a analisar a Constituição Federal de 1988 para que sejam
extraídos do seu texto quais são as percepções possíveis de serem ofertadas ao termo Meio
Ambiente.
De início, no artigo 5º da CF/88, que define os direitos e garantias individuais e
coletivas, o termo meio ambiente é apresentado associado a um remédio jurídico, Ação
Popular, que oferta a qualquer cidadão a proposição de ação que tenha como objeto anular ato
lesivo ao meio ambiente.
Os artigos 23 e 24 da CF/88 distribuem competências para atuação quanto ao meio
ambiente entre seus entes federados. O artigo 23 no inciso VI define que é “competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” proteger o meio
ambiente. Já o artigo 24, VI e VIII definem que é competência da União, dos Estados e do
Distrito Federal legislar concorrentemente sobre “proteção do meio ambiente” e
“responsabilidade por dano ao meio ambiente”.
O meio ambiente também é objeto de tutela no capítulo que trata dos Princípios
Gerais da Atividade Econômica, que tem como fundamento a valorização do trabalho humano
por intermédio da “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação (Art. 170, VI da CF/88)” ou mesmo pela proteção do meio ambiente em atividade
garimpeira. (Art. 174, § 3º da CF/88).
A CF/88 ainda define a função social da propriedade rural limitando o conceito de
propriedade quando determina que os recursos naturais disponíveis devam ser utilizados de
forma adequada havendo preservação do meio ambiente. (Art. 186, II CF/88).
Os capítulos da Saúde e da Comunicação Social, por sua vez, determinam que o
meio ambiente seja visto como objeto a ser defendido e preservado. O artigo 200, VIII da
CF/88 vai mais além e estende o conceito de meio ambiente para aquele compreendido como
o meio ambiente do trabalho, como sendo aquele espaço de realização de labor e que também
deve ser preservado a fim de proteger a integridade do trabalhador.

28
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O artigo 220, § 3º, II garante a possibilidade de defesa, da pessoa e da família, de


“propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente”.
A Constituição Federal de 1988 possui capítulo específico para o Meio Ambiente,
com artigo único, mas suficiente para garantir a construção de aparato normativo que
consubstancie a defesa do Meio Ambiente.
Deste artigo é possível identificar diferentes princípios relacionados ao meio
ambiente, que tutelam desde sua proteção até a imposição de defesa e proteção ao poder
público e a coletividade. Somente neste capítulo o termo meio ambiente aparece em sete
momentos, todas aparições tendo o objetivo de expor o termo com o significado que foi
proposto pela PNMA, qual seja, o de que o meio ambiente é visto como “o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas.” (BRASIL, 1981).
Importante ressaltar que o Artigo 225 deixa bem claro que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, ou seja, a vida das pessoas e
de qualquer ser vivo depende de um meio ambiente que esteja ecologicamente equilibrado, o
que demonstra a necessidade de ações que controlem os sistemas de produção que possam
causar impacto ambiental, que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio
ambiente, sempre em beneficio da coletividade.

2.2 O TERMO SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

A Organização Mundial de Saúde – OMS (World Health Organization – WHO)


conceitua Saúde como sendo “Health is a state of complete physical, mental and social, and
not merely the absence of disease or infirmity” 3. O conceito da OMS é claro e objetivo ao
declarar que saúde é a ausência de doença e enfermidade, mas vai muito mais além ao
considerar que saúde é um estado completo de desenvolvimento físico, mental e social.
Já foi o tempo em que a saúde era pensada apenas quando a pessoa estava com
ausência de saúde, ou seja, doente. Atualmente a saúde é tutelada com a clara intenção de se
trabalhar com a promoção, proteção e recuperação da saúde. O artigo 1964 da CF/88 deixa

3
“Saúde é um estado de completo desenvolvimento físico, mental e social, e não meramente a ausência de
doença ou enfermidade." (Tradução nossa).
4
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.

29
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

isso bem claro quando garante a saúde como direito de todos e dever do Estado que deve
garantir, por intermédio de políticas sociais e econômicas, “à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”.
O termo saúde é visto por toda a CF/88. É adotado dentre os textos que garantem os
Direitos Sociais, a Seguridade Social, a Educação, a Cultura, o Desporto e a Comunicação
Social. Possui seção específica no Título Da Ordem Social, no Capítulo da Seguridade Social.
Como o foco deste artigo é perceber equivalências entre os princípios de saúde e
meio ambiente, a seguir são expostos os termos saúde identificados nos artigos da CF/88.
Assim, o primeiro artigo a ser analisado é o artigo 6º da CF/88 que garante a vida
como Direito Social, já o artigo 7º da CF/88 traz a garantia à saúde do trabalhador em seu
meio ambiente do trabalho. Os artigos 23, 24 e 30 definem as competências dos entes
Federados quanto a matéria saúde. O primeiro define como “competência comum da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” o cuidado com a saúde das pessoas
portadoras de deficiência. O artigo 24 da CF/88 define a competência concorrente legislativa
da União, dos Estados e do Distrito Federal sobre proteção e defesa da saúde. O artigo 30
determina a competência aos Municípios para prestar os “serviços de atendimento à saúde da
população”.
O artigo 227 da CF/88, por sua vez, determina como dever da “família, da sociedade
e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem” o direito à vida, saúde,
alimentação, educação, lazer, dentre outras garantias.
Já os artigos 196 a 200, estruturam a seção da Saúde na CF/88, de onde é possível
identificar a estruturação da saúde em um sistema único com diretrizes específicas. A CF/88
garante que a saúde é direito de todos e obrigação do Estado. Para tanto deve o Estado, dentre
outras atribuições, executar políticas e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde.
Também são obrigações, definidas no artigo 200, I e II da CF/88 a execução de
“ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador”, como
também “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a
saúde”.
Em especial, destaca-se a competência definida ao Sistema Único de Saúde, no
artigo 200, VIII da CF/88, de colaborar na proteção do meio ambiente e do meio ambiente do
trabalho. Neste inciso percebesse a ligação entre a necessidade de proteção do meio ambiente

30
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

e do meio ambiente do trabalho, como garantia de saúde para as pessoas.

2.3 O TERMO VIDA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

O termo vida aparece em diferentes momentos no corpo da CF/88, mas antes de


pesquisar o termo na Constituição é importante definir o conceito que será utilizado para esta
palavra. Como a expressão vida tem muitos significados, a fim de evitar choque de conceito,
este artigo fará uso do conceito oferecido pelo Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2000, p. 710),
que afirma que a Vida é o “conjunto de propriedades e qualidades graças as quais animais e
plantas se mantém em continua atividade; existência”. Aqui incluiremos a raça humana como
pertencente a este conceito, uma vez que somos todos animais. O mesmo dicionário
(FERREIRA, 2000, p.44) considera animal como sendo aquele “ser vivo organizado, dotado
de sensibilidade e movimento”.
Como é possível perceber do conceito, tratar do termo vida não é muito simples, pois
determina que ela seja um conjunto de propriedades e qualidades que mantêm os animais e
plantas em continua atividade. Aqui faz-se a ligação ao conceito de meio ambiente, que foi
analisado anteriormente, do qual é possível perceber que a vida seria o grande sentido do
meio ambiente, já que das condições, leis e influencias, sejam de ordem física, química e
biológica, abriga e conduza vida em suas diferentes formas, sejam elas de animais, de
vegetais, ou outros seres que fazem parte ao meio ambiente. Desta ligação é admissível extrair
da CF/88 que a vida seja condicionada e garantida a partir do meio ambiente.
Na CF/88 é possível identificar algumas aparições do termo vida ligados a diferentes
perspectivas como, por exemplo, de Direito Fundamental, Direito do Menor e do Idoso a vida,
convívio em sociedade, entre outros com caráter técnico jurídico. Aqui acentua-se que o termo
a ser analisado é aquele que possui a intenção de oferecer a compreensão de vida como sendo
aquela que tenha qualidade a ser vivida, como é possível perceber no caput do artigo 225 e no
seu inciso V do § 1º.
Este recorte foi necessário, pois do texto legal faz-se a extração do termo vida com
significado de história pregressa ou mesmo relacionada a sistemas financeiros e econômicos
que não fazem menção ao conceito que foi definido no início deste item.
Assim destaca-se o artigo 225 da CF/88 que tutela que a vida dos animais tenha
qualidade e seja sadia, fatores estes que dependem diretamente de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado. No mesmo sentido o inciso V do § 1º deste mesmo artigo procura
tutelar a qualidade de vida e o meio ambiente daqueles riscos inerentes de sistema de

31
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

produção e comercialização com o emprego de técnicas, métodos e uso de substâncias que


comportem risco a vida.

2.4 O TERMO QUALIDADE DE VIDA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


BRASILEIRA DE 1988

O termo Qualidade de Vida aparece em dois momentos na CF/88, em ambos os casos


são citados no artigo 225, sendo um no caput e o outro no inciso V do § 1º. Antes de analisar
o termo na Constituição, faz-se necessário compreender o significado das palavras qualidade e
vida, assim será possível definir qual será o sentido utilizado para o termo qualidade de vida.
Para o termo qualidade será utilizado o conceito definido pelo Dicionário Aurélio
como sendo “superioridade, excelência de alguém ou de algo” (FERREIRA, 2000, p.571). O
termo vida foi deliberado no item anterior, onde foi definido o seu significado para a
qualidade e propriedade de manter continua atividade por animais e plantas.
Assim para este estudo iremos utilizar o significado ao termo qualidade de vida como
sendo a continua atividade de animais e plantas com excelência. Esta percepção, extraída da
junção dos conceitos é suficiente para compreender que o termo encontrado da CF/88 tem
como intenção.
O termo qualidade de vida é encontrado em dois momentos da constituição, ambos
no capítulo do meio ambiente. O primeiro é encontrado no caput quando determina que
“todos tem o direito meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial a sadia qualidade de vida”. Esta citação é muito forte, pois determina direito a vida
a qualquer cidadão brasileiro e estrangeiro residente no país. Faz ligação direta entre a
qualidade de vida e o meio ambiente devidamente equilibrado como condição de qualidade
para a vida das pessoas, ainda resalta que estas têm o direito a sadia qualidade, ou seja, com
saúde.
O caput do artigo impõe ao Poder Público e a coletividade a obrigação de defender e
preservar o meio ambiente com qualidade para as presentes e futuras gerações, abre
prerrogativa para direito difuso futuro. A vida com qualidade dos que hoje vivem e dos que
ainda virão a viver.
A outra aparição do termo qualidade de vida é extraída do inciso V do artigo 225 da
CF/88, que determina de forma coativa ao Poder Público a obrigação de “controlar a
produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem
risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.

32
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

3 PRINCÍPIOS DO MEIO AMBIENTE E DA SAÚDE E SUA EQUIVALÊNCIA


QUANTO AO OBJETIVO DE PROPOSIÇÃO DE QUALIDADE DE VIDA PARA A
POPULAÇÃO BRASILEIRA

A análise dos termos meio ambiente e saúde existentes na Constituição Federal


Brasileira de 1988 possibilitaram a interpretação da existência de uma relação de equivalência
entre seus conceitos e intenções de ação e resultados, uma vez que ambos possuem um
objetivo maior tutelado, qual seja, o bem estar das pessoas, seja por meio da qualidade do
ambiente ou pelo ambiente com qualidade.
Esta constatação permite afirmar que estes termos são princípios constitucionais, pois
estão relacionados diretamente com as proposições oferecidas como direito e garantias
individuais ou coletivas da Constituição Brasileira.
Pelo termo equivalência (FERREIRA, 2000, p.277), entende-se como igualdade de
valor, no peso e na força. Destes termos estudados e trazidos no capítulo anterior, é possível
identificar que existe relação de equivalência, tanto que é possível executar a analise de
ambos os princípios conjuntamente, pois se tivessem conflitos entre suas intenções o
resultado de segurança para conseguir atingir qualidade de vida para a população não seria
alcançado, uma vez que um depende do outro para ser obtido.
Da mídia, de estudos e das doutrinas é possível extrair conteúdo que relacionam que
as modificações ambientais provocadas pela ação do homem, alteram os espaços e os
ambientes naturais, provocando poluição do meio físico, biológico e químico, ou mesmo pelo
consumo dos recursos naturais sem nenhum critério de manutenção do meio. Desta forma é
possível afirmar que estes atos acabam por aumentar o risco a doenças e atuam negativamente
na qualidade de vida da população humana. (PHILIPPI Jr; MALHEIROS, In: PHILIPPI Jr;
ALVES, 2005, p.51).
Um exemplo, que caracteriza muito bem a equivalência entre os termos é o caso de
mau uso dos recursos hídricos que pode comprometer a qualidade e a quantidade de água
disponível para os diferentes usos, esta perda de qualidade da água acaba “aumentando o risco
de ocorrência de doenças de veiculação hídrica, dos custos de tratamento para fins de
abastecimento urbano, além do compromisso de determinados usos”, como também para
atividades de lazer. (PHILIPPI Jr; MALHEIROS, In: PHILIPPI Jr; ALVES, 2005, p.58).
Granziera e Dallari, em seu artigo Direito Sanitário e Meio Ambiente citam a
Conferência de Paris realizada em 1998, para demonstrar a relação direta que existe entre a
satisfação das atividades humanas e os recursos hídricos ao estabelecer que:

33
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Os recursos hídricos são essenciais para a satisfação das atividades humanas, tanto
as básicas como aquelas vinculadas à saúde, à produção de energia e alimentos,
assim com à preservação dos ecossistemas e do desenvolvimento econômico em
todas as suas fases: social, política, etc. (GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI
Jr; ALVES, 2005, p.613).

O recurso natural, água, neste caso, é essencial para as atividades humanas. Sem o
recurso natural água, a execução de práticas como cultivo de alimentos, geração de energia,
ou mesmo o próprio desenvolvimento econômico não existiriam. Estes demandam de recurso
natural em quantidade e em qualidade, pois os sistemas econômicos dependem direta e
indiretamente da água em todos os seus sistemas de produção, a falta dele em qualidade ou
em quantidade pode afetar diretamente o sistema econômico. Como também é possível
afirmar que a falta da água em qualidade afeta diretamente a população pela possibilidade de
veiculação hídrica de doenças, em especial nas regiões onde não existe tratamento da água
para o consumo humano.
Os mesmos autores reforçam a ideia de que “o desenvolvimento econômico deve,
necessariamente, incluir a proteção do meio ambiente, em todas as suas ações e atividades,
para garantir a permanecia do equilíbrio ecológico e da qualidade da vida humana” daqueles
que vivem hoje e daqueles que ainda estão por viver. “Não se pode pensar em qualidade de
vida humana que não preveja a proteção a saúde.” (GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI
Jr; ALVES, 2005, p.614).
Assim é plausível afirmar que a população utiliza “os recursos naturais para atender
às suas necessidades de sobrevivência, desenvolvimento, qualidade de vida e mesmo de
saúde” (GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI Jr; ALVES, 2005, p.614). Esta afirmação
vem de encontro com a intenção de identificar a equivalência entre os termos meio ambiente e
saúde como princípios constitucionais, pois a qualidade de vida e a saúde estão diretamente
relacionadas com a necessidade de sobrevivência e desenvolvimento pelo uso dos recursos
naturais.
Deste modo é possível notar a relação entre o uso dos recursos e a necessidade de
proteção destes para que permaneçam disponíveis para as presentes e futuras gerações, sendo
esta é a base do conceito de Desenvolvimento Sustentável. Esta “noção de desenvolvimento
sustentável não dissocia a proteção ambiental da saúde, pois, ao ter como foco as futuras
gerações, fica implícita a necessidade de manutenção da saúde.” (GRANZIERA; DALLARI,
In: PHILIPPI Jr; ALVES, 2005, p.614).
Esta relação entre o princípio do meio ambiente e da saúde é perceptível na
Constituição Federal/88 nos artigos 200 e 225 o que admite identificar sua correspondência

34
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

quanto ao objeto de proposição de qualidade de vida para a população brasileira. O de meio


ambiente possui competência no que se refere a proteção, prevenção e a melhoria da
qualidade ambiental, condições estas que acabam, consequentemente, proporcionando
benefícios a qualidade de vida da população brasileira. O da saúde, por sua vez, procura
identificar e deter os riscos e divulgar as informações referentes aos fatores ambientais que
possam provocar doenças e outros agravos à saúde.
A proteção do meio ambiente não tem como objeto apenas a proteção dos espaços
naturais, mas sim também o homem e suas relações sociais, de trabalho e de lazer (PRIEUR,
2004, p.04). O que significa a necessidade de haver um comprometimento do Poder Público e
dos cidadãos, já que a proteção do meio ambiente não é condição imposta apenas ao Poder
Público, mas também a coletividade que vive nestes espaços e logo também possui a
obrigação de protegê-los e preserva-los.
Assim, a obrigação, de preservar e proteger, não é conferida apenas ao Poder
Público, mas também ao cidadão que deve participar ativamente na proteção e preservação do
meio ambiente para garantir sua qualidade de vida. Michel Prieur (2004, p.09) afirma que é
uma demanda do cidadão por esta vida com qualidade em um meio protegido, como ele
afirma “il y a de la part des citoyens un besoin de vivre dans un milieu sain et protecteur des
équlibres naturels”5, mas não podemos esquecer que este direito de viver em um ambiente
sadio também lhe trás obrigações e deveres.
O Poder Público, para poder proporcionar qualidade de vida necessita sair da sua
linha fechada de atuação para um mosaico de “conhecimento cientifico de diversos campos,
como engenharia, medicina, biologia, sociologia, direito, entre outros” (PHILIPPI Jr;
MALHEIROS, In: PHILIPPI Jr; ALVES, 2005, p.61), uma vez que é necessário ter a
percepção de diferentes sistemas, como o sociocultural, ambiental e econômico, para, a partir
deste conhecimento buscar soluções para os problemas que levem ao agravo da saúde e da
qualidade de vida da população.
O Poder Público deve tomar consciência de que a “qualidade do meio ambiente se
transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e
revitalização se tornam num imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar
do homem e as condições de seu desenvolvimento.” (SILVA, 2011, p.851).
Diante do exposto, é possível afirmar que o direito fundamental à vida está
diretamente relacionado, por meio das normas constitucionais, ao meio ambiente. Esta

5
“Há por parte dos cidadãos a necessidade de viver em um ambiente saudável e protetor dos equilíbrios
naturais” (Tradução nossa).

35
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

consciência de que o direito à vida “é que há de orientar todas as formas de atuação no campo
da tutela do meio ambiente” como matriz de todos os demais direitos fundamentais do homem
é extraído da CF/88. (SILVA, 2011, p.851).
A relação identificada entre os princípios meio ambiente e saúde extraídos da CF/88,
compreendidos como qualidade do ambiente ou ambiente com qualidade, é um “valor
preponderante, que há de estar acima de quaisquer consideração como as de desenvolvimento,
como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada.” (SILVA, 2011,
p.851).
Apesar destas garantias; desenvolvimento, direito de propriedade e iniciativa
privada; também estarem em evidência na CF/88, mas não podem primar sobre o direito
fundamental vida, “que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio
ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um
valor maior: qualidade da vida humana.” (SILVA, 2011, p.851).
Da mesma forma, que é possível identificar esta relação entre os princípios do meio
ambiente e da saúde como princípios constitucionais, é possível identificar relação dentre leis
infraconstitucionais que estruturam o ordenamento jurídico brasileiro, dentre as quais, pode-se
destacar a Política Nacional do Meio Ambiente - Lei nº 6.938/81, Lei da Saúde - Lei nº
8.080/90, Política Nacional de Recursos Hídricos - Lei nº 9.433/97, Política Nacional de
Saneamento Básico - Lei nº 11.445/07, Política Nacional de Resíduos Sólidos - Lei nº
12.305/10, dentre outras que procuram tutelar o meio ambiente e a saúde de forma a propor
resguardo a qualidade de vida das pessoas, seja por meio de proposições da proteção e
recuperação do meio ambiente ou por projetos e programas de proteção da saúde das pessoas
e do meio ambiente.
Deste mapeamento rápido, sem a intenção de apontar todas as leis ou normas sobre o
assunto, é possível perceber que o direito brasileiro proporciona diferentes instrumentos e
ferramentas para que a “Administração Pública, na condução de duas finalidades, possa
promover a convergência desses temas, que devem ser conjuntamente considerados, na
tomada de decisões, seja sobre saúde, seja sobre o ambiente”, devidamente apoiado em
princípios e bases constitucionais. (GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI Jr; ALVES,
2005, p.641).
Neste momento, há que resaltar que a lei sozinha não faz milagre, desta estrutura
legal denota-se a necessidade de construir sistemas de gestão que possam colocar em prática
os conceitos extraídos do mundo jurídico para o mundo real. “Nesse sentido, embora a
regulamentação tanto da lei ambiental como da lei sobre saúde já esteja muito avançada, nota-

36
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

se ainda uma lacuna: a articulação institucional.” (GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI


Jr; ALVES, 2005, p.641).
Existe a necessidade de uma articulação entre os órgãos e estruturas, federais,
estaduais e municipais, que possibilitem a troca de informações e a busca por soluções em
conjunto. Atualmente estas estruturas atuam de forma isolada, sem que haja muito contato
entre si, no que se refere na forma como ocorrem suas atuações, gestões e projetos. Isso
reflete na impossibilidade da resolução de problemas que poderiam ser resolvidos de forma
cooperada entre si, buscando alcançar os princípios previstos nas normas legais em vigor.
(GRANZIERA; DALLARI, In: PHILIPPI Jr; ALVES, 2005, p.641).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Objetivo deste artigo foi identificar na Constituição Federal de 1988 se os


princípios Constitucionais do Meio Ambiente e da Saúde tutelam qualidade de vida para a
população Brasileira.
A procura por esta equivalência entre os princípios constitucionais do Meio
Ambiente e da Saúde, que garantem qualidade de vida para a população, reconhecidos a partir
da Constituição Federal Brasileira de 1988 foi admissível no momento em que foi possível
extrair da CF/88 os princípios do meio ambiente e da saúde, e destes a sua relação.
Esta relação entre o princípio do meio ambiente e da saúde é perceptível na
Constituição Federal, em especial nos artigos 200 e 225, o que admite identificar sua
correspondência quanto ao objeto de proposição de qualidade de vida para a população
brasileira, apesar de estarem sendo expostos em capítulos diferentes da constituição.
Desta forma, a hipótese de equivalência entre os princípios do Meio Ambiente e da
Saúde foi comprovada. A verificação aconteceu no momento em que foi possível identificar
que é objetivo do meio ambiente ecologicamente equilibrado a sadia qualidade de vida, assim
como é objetivo da saúde colaborar na proteção do meio ambiente.
A equivalência se comprova no princípio do meio ambiente, pois este possui
competência no que se refere a proteção, prevenção e a melhoria da qualidade ambiental,
condições estas que acabam, consequentemente, proporcionando benefícios a qualidade de
vida da população brasileira, pois são essenciais a sadia qualidade de vida. O princípio da
saúde procura identificar e deter os riscos e divulgar as informações referentes aos fatores
ambientais que possam provocar doenças e outros agravos à saúde. Esta tutela procura
garantir saúde às pessoas por meio de um ambiente natural ou artificial devidamente

37
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

protegido.
Espera-se que o resultado final deste artigo possa ser utilizado para aproximar as
políticas públicas de meio ambiente e de saúde de forma a possibilitar a atuação conjunta
entre estas, com o objetivo supremo de melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 31 de agosto de 1981.
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38
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Acesso em 23 de julho de 2012.


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sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO NO DIREITO AMBIENTAL: Conciliando


propriedade privada e proteção ambiental.

THE PROHIBITION OF EXCESS PRINCIPLE IN THE ENVIRONMENTAL LAW:


Harmonizing property and environmental protection.

Marcelo Farina de Medeiros

Sumário: 1. Introdução; 2. O direito como sistema jurídico; 3. Princípio da proibição


de excesso, 3.1. Proibição de excesso e isonomia, 3.2. Proibição de excesso e
proporcionalidade, 3.3. Proibição de excesso e controle de constitucionalidade; 4.
Conclusão.

Resumo: Sabe-se que a pobreza é o grande problema ambiental do planeta e, o crescimento


econômico pode contribuir para extingui-la, ou pelo menos mitigá-la. Apesar da necessidade
de proteção ambiental e, da ciência que a intervenção antrópica é a principal forma de
poluição da natureza, o mundo já conta com mais de 7 bilhões de habitantes e, toda esta gente
precisa se alimentar. A produção rural é uma das bases de sustentação da vida humana. Diante
da necessidade de conciliar produção rural com a preservação dos recursos naturais, também
essenciais à manutenção da vida, a partir da década de setenta, o mundo passou a se atentar
por uma reformulação do processo produtivo, de modo que a produção e o crescimento
econômico não comprometam o meio ambiente ecológicamente equilibrado, o que se
convencionou chamar de desenvolvimento sustentável. No Brasil não foi diferente. O
constituinte da década de oitenta elencou como direitos fundamentais do ser humano tanto o
meio ambiente ecológicamente equilibrado, como o direito individual à propriedade privada,
promovendo uma reformulação do sistema capitalista, onde direitos individuais e coletivos
coexistem. Diante desta sistemática constitucional de coexistência entre direitos individuais e
coletivos é que se ressalta o princípio da proibição de excesso das normas limitadoras de
direitos fundamentais, visando que a garantia de a existência de um não importe na
conspurcação do outro.
Palavras chave: Proibição de excesso; Direitos fundamentais; Propriedade; Meio ambiente.

Abstract: It’s known that poverty is a big global environmental problem, and the economic
growth is important to eliminate or reduce it. In spite of the need for environmental protection
and the science the human intervention is the main problem of nature’s pollution, the world
has more than 7 billion people and all these people have to eat. The agricultural production is
on of the basis that supports life. Considering the need to harmonize the agricultural
production to the preservation of the nature resources, also fundamental to life, from the 70ths
the world turned their attention for reformulation of the productive process, so that the
production and economic growth do not compromise the ecologic balanced environment. In
Brazil it wasn’t otherwise. In the 80ths, the process to do the Federal Constitution listed out as
a fundamental of human rights both the ecologically balanced environment and the
individual’s rights to the private property. Given the systematic constitutional coexistence
between individual and collective rights, is that it points out the principle of prohibition of
excessive rules limiting fundamental rights, in order to guarantee that the protection of
collective rights don’t compromise the individual rights.
Key words: Prohibition of excess; Fundamental human rights; Property; Environment.

Mestrando em direito pela Universidade de Marília – UNIMAR; Especialista em direito público pela
Universidade Potiguar – UNP; Advogado e Consultor Jurídico na área de Direito Empresarial.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1. Introdução
O presente trabalho objetiva inserir o princípio constitucional da proibição de
excesso às normas limitadoras de direito fundamental no direito ambiental, alertando o
intérprete para o fato de que o ordenamento jurídico brasileiro é sistemático e, portanto,
constitucionalmente imposta a coexistência entre direitos individuais e coletivos.
Inexoravelmente, a proteção de um não pode importar no desaparecimento do outro, ou seja,
direitos individuais e coletivos devem coexistir, sem excessos de nenhuma das partes. Trata-
se de um trabalho científico elaborado através do método dedutivo dialético sistêmico,
valendo-se também de dados empíricos, no intuito de demonstrar, a partir do sistema jurídico
vigente, que a proibição de excesso é um instrumento fundamental à conciliação entre
preservação ambiental e proteção ao direito individual de propriedade.
Desde a grande Revolução Francesa que o ser humano luta por direitos individuais
oponíveis à repressão estatal. Da conquista burguesa ao seu declínio, assentou-se, tanto na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como no Código Napoleônico, o direito de
propriedade como sagrado e absoluto.
Tal concepção, entretanto, se mostrou perigosa, e deu ensejo às revolução dos
séculos XIX e XX, sobretudo a Industrial e Russa. A Revolução Russa, entretanto, incidiu no
mesmo erro da burguesia e, privilegiando uma só classe mostrou-se mais perniciosa à
liberdade humana do que o capitalismo selvagem que se propusera abolir.
No campo intermediário entre o liberalismo e o socialismo surge o Estado Social,
que pautado na democracia de Rousseau ressalta os direitos de segunda e terceira geração,
quais sejam, os de igualdade e fraternidade. O modelo de Estado Social foi adotado pelo
constituinte nacional que, renovando o sistema capitalista incorporou aos direitos individuais
uma função social. A função social da propriedade reclama a promoção do bem estar e
preservação ambiental (Arts. 182 e 186, ambos da Constituição Federal).
O bem estar da população está estritamente ligado à preservação do meio ambiente
ecológicamente equilibrado. O equilíbrio climático, o regime de chuvas, a qualidade do solo e
do ar estão todos vinculados ao meio ambiente ecológicamente equilibrado. Em relação ao ar,
“a floresta desempenha o papel de um armazém gigante de carbono, por retirar tal gás da
atmosfera, liberando o oxigênio” 1, através da fotossíntese. É essencial também ao equilíbrio
climático e regime de chuvas, “[...] tanto que na Amazônia a metade da chuva que cai sobre a
vegetação é gerada pela própria floresta” 2.

1
NETO, A.J. de M. Estado de Direito Agroambiental Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2010. P. 31.
2
Op. cit.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Aliás, segundo o Relatório Nosso Futuro Comum, o incêndio de um depósito na Suíça


que despejou produtos químicos no rio Reno matou milhares de peixes e comprometeu o
abastecimento d’água de toda Alemanha e Holanda. O relatório também aponta que
aproximadamente 60 milhões de pessoas, na maioria crianças, morreram por desnutrição, ante
a ingestão de água imprópria ao consumo. Aduz também que a seca na África pôs em risco a
vida de 35 milhões de pessoas, e causou a morte de aproximadamente 1 milhão 3.
Outrossim, pesquisas do Centro de Investigação Científica de Yucatán, no México, e
da Southampton University, no Reino Unido, apontam que uma modesta queda nos índices de
chuva na América Central – redução entre 25% e 40% da chuva anual – foi o suficiente para
que a evaporação d’água superasse a queda da chuva e tornasse o meio ambiente incapaz de
gerar água e alimentos, o que levou o colapso da civilização Maia 4.
No Brasil, segundo noticiado pela revista Veja, hoje há risco real de, caso o
desmatamento e queimada na Amazônia aumente apenas 2%, a floresta se transformar em
savana5, o que fatalmente comprometerá o regime de chuvas de toda a América do Sul e o
clima de todo o planeta.
Por outro lado, é importante lembrar que “a pobreza é uma das principais causas e um
dos principais efeitos dos problemas ambientais no mundo” 6 e, o crescimento econômico “[...]
é absolutamente essencial para mitigar a grande pobreza que se vem intensificando na maior
parte do mundo em desenvolvimento”7. Isto contribuiu para que a Organização das Nações
Unidas criasse uma Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no início
da década de oitenta e, que o constituinte nacional elevasse a objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil o desenvolvimento nacional.
A pobreza gera não só condições sub-humanas de vida, mas também faz com que
países pobres aceitem com louvor a instalação de indústrias altamente poluidoras em seu
território e, até vendam seu território como depósito de lixo estrangeiro, sob pretexto de
crescimento econômico. As consequências são uma população doente, um meio ambiente

3
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Nosso Futuro Comum, 2ª ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 2. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-
Nosso-Futuro-Comum-Em-Portugues. Acesso em 01 dez. 2012.
4
NETO, R.B. Seca moderada foi suficiente para levar os maias ao colapso. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1052840-seca-moderada-foi-suficiente-para-levar-os-maias-ao-
colapso.shtml. Acesso em 20 mar. 2013.
5
ALCÂNTARA, A. O desafio de ser grande, in: Revista VEJA, Edição Especial 2196, São Paulo: Abril,
Dezembro de 2010.
6
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Nosso Futuro Comum, 2ª ed., Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2001, p. 3, in: http://pt.scribd.com/doc/12906958/Relatorio-Brundtland-Nosso-
Futuro-Comum-Em-Portugues. Acesso em 01 dez. 2012.
7
Op. Cit. p. 1.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

inóspito, elevados gastos com saúde pública e, elevada taxa de mortalidade. Urlich Beck
desde 1986 chamava atenção às desigualdades internacionais ocasionadas pela globalização,
ante a transferência das indústrias químicas aos países de terceiro mundo sob pretexto de
criação de empregos, lembrando do acidente tóxico em Bhopal, na Índia 8, onde o vazamento
de gazes tóxicos da Union Carbide teria matado, em apenas três dias, cerca de oito mil
pessoas. O alerta de Beck, entretanto, não surtiu o efeito desejado. A China é o maior
exemplo contemporâneo de crescimento econômico no mundo, entretanto, este crescimento
não se traduz em desenvolvimento, pois,
Um terço dos rios e 75% dos lagos do país estão contaminados. Das vinte
cidades mais poluídas do mundo, dezesseis são chinesas. Mais de 750000
pessoas morrem por ano em decorrência da água e do ar pútridos no país. As
fábricas movidas a carvão criaram vilarejos doentes, nos quais a taxa de
9
tumores malignos é altíssima .
O fato é que mundo já ultrapassou a marca dos 7 (sete) bilhões de habitantes e, até o
ano de 2030 a previsão é que esta marca atinja os 8,3 bilhões 10. Mais grave é que a
industrialização provocou um êxodo rural e alta concentração urbana, sobretudo nos países
subdesenvolvidos. O desenvolvimemnto nacional é imprescindível e impsoto
constitucionalmente.
No Brasil, o crescimento econômico está estritamente relacionado à exploração
econômica dos recursos naturais. De acordo com a Associação do Comércio Exterior do
Brasil, as commodities são responsáveis por mais de 70% (setenta por cento) das receitas de
exportação do país11.
Não há dúvidas quaunto a necessidade de reformulação do modo de crescimento
econômico e, que o direito ambiental é um importante instrumento para o desenvolvimento
sustentável. A função repressiva do direito ambiental, entretanto, tem sido alvo de
interpretações ideológicas, induzindo ao equívoco de que a tutela ambiental poderia esvaziar
o direito individual de propriedade. Tais posições são influenciadas por Organizações Não
Governamentais estrangeiras e brasileiras financiadas com capital internacional. Isto porque o
Brasil é uma potência no agronegócio e, assusta os países desenvolvidos, que gastam alto
dinheiro público com subsídios para se manter no mercado mundial de alimentos.

8
BECK, U. (trad. Sebastião Nascimento). Sociedade de Risco: Ruma a uma outra modernidade, 2ª ed., São
Paulo: Editora 34, 2011, p. 49.
9
CARELI, C. Desenvolvimento, in: Revista VEJA, Edição Especial 2196, São Paulo: Abril, Dezembro de 2010.
10
MCGOURTY, C. Cientista Britânico prevê ‘catástrofe’ em 2030 com aumento da população, in:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2009/03/090319_catastrofe2030_ba.shtml. Acesso em 13 ago. 2012.
11
Associação de Comércio Exterior do Brasil – AEB. Radiografia do Comércio Exterior Brasileiro: Passado,
presente e futuro. Disponível em: http://www.aeb.org.br/userfiles/file/AEB%20-
%20Radiografia%20Com%C3%A9rcio%20Exterior%20Brasil.pdf. Acesso em 14 ago. 2012.

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José Affonso da Silva lembra que os países ricos já tentaram impor limites ao
crescimento dos países pobres ou em desenvolvimento, sob o pretexto de conter o avanço da
poluição mundial12. O Brasil, entretanto, rechaçou oficialmente tal imposição enfatizando que
“não é válida qualquer colocação que limite o acesso dos países subdesenvolvidos ao estágio
de sociedade industrializada, sob pretexto de conter o avanço da poluição mundialmente”13.
Reportagem divulgada pelo jornal Folha do Estado de S. Paulo informa que as
exportações agrícolas norte-americanas à China tiveram queda de 14% no ano fiscal de 2012,
tendo como principal causa desta significativa perda a preferência dos asiáticos pelo mercado
da América do Sul, em especial o brasileiro 14. Segundo o então deputado federal Aldo
Rebelo, ONG’s como a WWF, Greenpeace e o ISA, financiadas por capital dos Estados
Unidos, Alemanha, Bélgica, Inglaterra e Holanda, lideraram movimentos “ambientalistas”
para pressionar a rejeição do projeto de lei que instituiu o atual Código Florestal, revelando
que ao lado – ou acima – do problema ambiental está a guerra comercial entre a agricultura
dos países ricos e a agricultura nacional. Aldo Rebelo destacou também que nos países
europeus e Estados Unidos não existem Áreas de Preservação Permanente ou Reserva Legal
e, que na Holanda, país de origem do Greenpeace, não há sequer um metro de mata ciliar
nativa e, esta ONG não pressiona seu governo local a florestar tais margens 15.
Aliás, “a Europa detinha 7% das florestas do planeta e hoje conta com mísero 0,1%.
Nos Estados Unidos, quase não há mais terras disponíveis para produzir alimentos”16,
enquanto que o Brasil ainda “[...] dispõe de 9% a 12% de terras ociosas para a expansão da
agropecuária”17 e, “entre 1975 e 2009, a produção nacional de grãos aumentou 240%,
enquanto a área plantada cresceu 40%”18.
Não obstante a inquestionável importância da preservação ambiental, o intérprete
deve-se atentar que quando a Constituição Federal assegura a propriedade privada, ela confere

12
SILVA, J.A. da. Direito Ambiental Constitucional, 2ª ed, rev., 2ª triagem, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 7.
13
BRASIL, II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975/1979), p. 73, in:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/anexo/ANL6151-74.PDF. Acesso em 03 jan. 2013.
14
ZAFALON, M. Agronegócio dos EUA perde espaço na China, in:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/maurozafalon/1052696-agronegocio-dos-eua-perde-espaco-na-
china.shtml. Acesso em 16 fev. 2013.
15
REBELO, A. Entrevista ao programa Canal Livre, da rede Bandeirantes de Televisão. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=UytzUHdEgCU. Acesso em 03 jan. 2013.
16
CARELI, C. Desenvolvimento, in: Revista VEJA, Edição Especial 2196, São Paulo: Abril, Dezembro de 2010.
17
SABINO. M.A. O desafio de ser grande, in: Revista VEJA, Edição Especial 2196, São Paulo: Abril, Dezembro
de 2010.
18
Op. cit.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

competência aos indivíduos de serem proprietários e, “[...] as competências, quando


garantidas pela Constituição, limitam a ação do legislador, que não as poderá derrogar”19.
Deve-se ressaltar, outrossim, que “[...] o direito não é norma, mas um conjunto
coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontrará jamais só,
mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo” 20. Isto mostra o
direito como sistema jurídico, no qual direitos individuais e coletivos devem coexistir,
afastando de vez o pensamento de que a realização de um seja a negação do outro.

2. Direito como sistema jurídico


Com a superação do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo jurídico
surgiu o pós-positivismo, reaproximando a justiça do direito e, consagrando, sobre a pilastra
da dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais que coexistem e se conflitam. Luiz
Roberto Barroso destaca que o pós-positivismo soube situar-se na confluência das duas
correntes que haviam dominado o pensamento jurídico e político até seu surgimento, quais
sejam, o jusnaturalismo e o positivismo 21.
Este pós-positivismo integra às normas valores supralegais respaldados num ideal de
justiça e, positiva tais valores através de princípios, que vão não só orientar toda e qualquer lei
que vier a ser elaborada, mas também declarar inconstitucionais aquelas a eles contrárias.
Concentra-se, num documento de hierarquia superior, princípios programáticos e direitos
fundamentais que vão orientar a formação ou recepção de todo ordenamento jurídico
infraconstitucional, formando um sistema jurídico coordenado e coerente.
Norberto Bobbio destaca ser pressuposto de uma sistemática jurídica o
relacionamento de compatibilidade entre suas normas, não com isto querendo dizer que as
normas deveriam se encaixar perfeitamente, mas sim que as incompatibilidades deveriam ser
afastadas22.
Aliás, por força do princípio da unidade da constituição, não se pode simplesmente
optar por uma norma constitucional em detrimento de outra, mas se impõe um raciocínio
complexo sobre a tese e a antítese do caso concreto para se chegar à síntese. Deve-se,

19
BARROS, S. de T. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas
de direitos fundamentais, 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 143.
20
BOBBIO, N. (trad. Maria Celeste C. L. Santos). Teoria do Ordenamento Jurídico, 10ª ed., Brasília:
Universidade de Brasília, 1999, p. 21.
21
BARROSO, L.R., Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil, p. 19, in, http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32007-37579-1-
PB.pdf. Acesso em 02 fev. 2013.
22
BOBBIO, Op. cit. p. 80.

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portanto, conter os excessos das normas restritivas de direitos fundamentais e, aqui entra a
importância do princípio da proibição de excesso na garantia da ordem jurídica constitucional.
Os direitos fundamentais têm como características serem “[...], além de
fundamentais, inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis,
porque participam de um contexto histórico, perfeitamente delimitado” 23, logo, a restrição a
um direito fundamental deve ser feita na estrita medida do necessário, ainda que em
decorrência de outro direito fundamental, haja vista a imperatividade constitucional da
coexistência destes.
O desenvolvimento sustentável, princípio sobre o qual se construiu todo o Código
Florestal, trabalha justamente na composição entre crescimento econômico e sustentabilidade,
ou seja, na conciliação entre o direito de propriedade a o direito ambiental. Devemos lembrar
que o sistema de mercado brasileiro é capitalista, haja vista que a Ordem Econômica se funda
na livre iniciativa e, tem como princípios, dentre outros, a propriedade privada dos meios de
produção24. À propriedade, contudo, visando arrumar os equívocos do liberalismo, foi
imposta uma função social, priorizando o ser humano não só como fundamento da Ordem
Econômica, mas da República Federativa do Brasil25 e, impondo à propriedade um dever de
garantir o bem estar da população e preservar o meio ambiente (artigos 182 e 186, da
Constituição Federal).
É imprescindível, na tarefa da hermenêutica constitucional para compreender a
coexistência entre propriedade privada e preservação ambiental, uma interpretação contextual
sobre a Ordem Econômica. Segundo Eros Grau, a interpretação da Ordem Econômica, onde
coexistem princípios jurídicos constitucionais explícitos e implícitos, deve ser feita pela
ponderação, encartada na interpretação lógico-sistemática26.
José Affonso da Silva ensina que a hermenêutica constitucional deve-se desvendar o
sentido da constituição como um todo, ou seja, a interpretação das palavras revela apenas uma
pré-compreensão constitucional, enquanto que a hermenêutica do espírito procura a idéia
fundante da Constituição, geralmente exposta no preâmbulo, nos princípios constitucionais e,
nos objetivos fundamentais da república 27. Estes valores constitucionais nada mais são do que
os fins da República elencados pelo constituinte, como, por exemplo, a justiça social, o
23
BULOS, U.L. Constituição Federal anotada, 8ª ed., rev. e atual. até a Emenda Constitucional n. 56/2007, São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 106.
24
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, artigos 170, caput, e inciso II.
25
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, artigos 170, caput, e 1º, inciso IV.
26
GRAU, E.R. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 14ª ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 163/164.
27
SILVA, J.A. da. Comentário contextual à Constituição, 6ª ed. atualizada até a Emenda Constitucional 57, de
18.12.2008, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 15/19.

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desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e


regionais, e, os meta-princípios, como a dignidade da pessoa humana, a soberania, a
democracia, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, dentre outros. Isto
modernamente vem sintetizado como desenvolvimento sustentável, ou seja, o crescimento
que promove o desenvolvimento de um Estado, erradicando a pobreza, as desigualdades e, ao
mesmo tempo valoriza o trabalho humano e garante a continuidade da espécie através da
manutenção de condições ambientais para as presentes e futuras gerações.
Na interpretação constitucional não basta, portanto, a análise das normas que tutelam
a propriedade ou o meio ambiente meramente diante do seu fundamento constitucional, mas
antes, quando da conflituosidade entre direitos constitucionais, a interpretação deve ser
sistemática contextual. “[...] Jamais se interpreta um texto normativo, mas sim o direito, não
se interpretam textos normativos constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no
seu todo. Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços” 28.
O instrumento jurídico para que a imprescindível proteção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado não se transvista de ideologia para emperrar o desenvolvimento
nacional, consagrando a coexistência entre a continuidade do processo produtivo, a
preservação do direito individual de propriedade privada e, a proteção ambiental, é o princípio
da proibição de excesso.

3. Princípio da proibição de excesso


Como visto, o discurso de que o direito ambiental teria esvaziado o direito de
propriedade é uma percepção equivocada sobre o sistema jurídico. O surgimento de uma
sociedade de massas alterou substancialmente o consumo de matérias prima e, a exploração
predatória dos recursos naturais tem provocado alterações no meio ambiente, como efeito
estufa, chuvas ácidas, esgotamento de solos, desertificação do Mar de Aral, e etc., elevando a
importância da tutela ambiental.
O direito de propriedade, entretanto, revela uma árdua conquista da humanidade e,
aquilo que se conquista com suor e sangue tende-se a preservar. Assim é que o direito de
propriedade constitui direito individual constitucional insusceptível de revogação (Art. 60, §
4º, IV, Constituição Federal).

28
GRAU, E.R. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 14ª ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 164.

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O princípio da proibição de excesso trabalha na conciliação entre direitos


fundamentais. Ele ressalta o valor do justo, proibindo o excesso nas restrições ou limitações
dos direitos fundamentais do ser humano.
O “[...] princípio da proibição do excesso constitui uma exigência positiva e material
relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer
um ‘limite do limite’ ou uma ‘proibição de excesso’ na restrição de tais direitos”29.
Deve-se lembrar de que “o Direito não é o valor mais alto, mas o que condiciona os
demais; não é a vida, mas a garantia precípua da vida em sociedade” 30, logo, o Direito deve
refletir o justo. Firmada esta premissa, necessário se faz a “[...] objetivação do justo no tempo
[...]”31, ou seja, trazer justiça ao caso concreto, revelando a concepção do Direito como fato
social. Deve-se conferir valor à idéia de justiça, de acordo com uma análise sociológica e
histórica do caso a ser tutelado.
A concepção de princípio revela um ponto de partida para a elaboração e aplicação
das normas, logo, só através da compreensão do fato e do seu valor é que se torna legítimo
limitar um direito fundamental através da normatização, revelando a terceira faceta do
Direito, ou seja, sua concepção como norma jurídica.
O Direito não constitui um sistema positivo autossuficiente como pensado no
positivismo, e até mesmo por isso o direito pós-modernista é dotado de princípios dinâmicos
que lhe permite acompanhar as mudanças sociais.
A Constituição Federal é muito clara ao regular o ordenamento jurídico de modo
sistemático, basta verificar a existência de controle de constitucionalidade das leis e atos
normativos. Assim, dentro desta coerência constitucional os direitos fundamentais devem
coexistir, enaltecendo “o Direito como ciência de normas, ou seja, como compreensão
racional, unitária e lógica, do fato social que denominamos também Direito”32.
A lei, portanto, como instrumento que regula a vida humana, há que ser o mais
compatível possível com os direitos fundamentais do ser humano e, consequentemente, uma
lei que limite direito fundamental desmotivadamente deve ter sua inconstitucionalidade
reconhecida.
Assim é que a célebre Teoria Tridimensional do Direito dispõe que as três faces do
direito – fato, valor e norma – não são coisas distintas, mas ao contrário, pressupostos lógicos

29
BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Suspensão de Tutela Antecipada – STA 233/RS, Decisão da Presidência
Ministro Gilmar Mendes, DJe de 30.04.2009.
30
REALE, M. O Direito e a problemática do seu conhecimento, in: Horizontes do Direito e da História, 3ª ed.
rev. e aum., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 284.
31
Op. cit., p. 285 – grifo do autor.
32
Op. cit., p. 286.

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de se normatizar uma realidade através da realização da função precípua da normatização, que


é o alcance da justiça e estabelecimento da paz social.
Não é o que verificamos, no entanto, na normatização da tutela ambiental. Nos
últimos anos, em especial os anos de 2011 e 2012, quando da discussão e votação do autal
Código Florestal, o que se viu foi uma batalha travada entre ambientalistas e ruralistas. Ao
invés de aperfeiçoar o conhecimento do fato – meio ambiente – e atribuir-lhe a valoração
necessária à sua proteção sem que isto significasse agressão a direito fundamental alheio – o
direito de propriedade –, cada uma dos “lados” tentava privilegiar sua ideologia a qualquer
custo.
O direito é instrumento condicionador de condutas, logo, não pode ser isolado dos
fatores sociais, econômicos e culturais. “[...] Não pode o estudioso do direito quedar-se alheio
aos movimentos econômicos, sob pena de uma insuficiente compreensão do conteúdo e das
condições oferecidas pelas prescrições que compõem a ordem econômica [...]”33, ou seja, é
constitucionalmente imposta a necessidade de se estudar a tutela ambiental em conjunto com
a livre iniciativa e a propriedade privada (Art. 170).
Para se estudar a primeira faceta do Direito – sua concepção como o justo –,
portanto, é necessária a ponderação da norma diante do sistema jurídico, orientado por um
equilíbrio, que se convencionou chamar de princípio da proporcionalidade, razoabilidade ou
proibição do excesso. Segundo Eros Grau, o princípio da proibição do excesso importa em
adequação e proporcionalidade dos atos dos poderes públicos e, reflete, na classificação de
Canotilho, um princípio jurídico fundamental, ou seja, um princípio historicamente
conquistado e inserido progressivamente na cultura jurídica, que fica recepcionado,
implicitamente ou expressamente no texto constitucional34.

3.1. Proibição de excesso e isonomia


O princípio da isonomia pode ser dividido em dois subprincípios: Igualdade na Lei,
destinada ao Poder Público elaborador de uma norma; e, igualdade perante a Lei, destinada ao
interprete na análise do caso concreto.
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao lecionar sobre a igualdade na lei, conclui que o
objetivo fundamental da norma é justamente discriminar situações atribuindo-lhes efeitos
jurídicos. Passo seguinte o autor indaga sobre os limites da lei ao estabelecer tais

33
DERANI, C. Direito Ambiental Econômico, 3ª ed., 2 triagem, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 223.
34
GRAU, E.R. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 14ª ed., rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 157.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

discriminações, ou seja, pesa análise sobre a constitucionalidade das discriminações legais 35,
concluindo que
[...] as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula
igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação
lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a
desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal
correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na
36
Constituição .
O que se extrai do estudo acima é que são vedadas as discriminações legais gratuitas
e ofensivas a direitos constitucionalmente assegurados, sob pena de inconstitucionalidade. Por
discriminações gratuitas entende-se aquelas desnecessárias ao fim almejado pelo direito
tutelado, ou seja, aquela que não for fator determinante, ou que não guarde pertinência lógica
à tutela do direito almejado pela norma.
Conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, para se constatar a
constitucionalidade do disciminem legal deve-se fazer três análises conjuntas: I. Verificar o
fator discriminatório da lei – aquilo que ela impõe fazer ou deixar de fazer; II. Verificar se o
objetivo da lei é constitucional; III. Estabelecer um nexo de causalidade entre o fator
discriminatório e o objetivo da lei37. A ofensa a qualquer destas verificações incorrerá
inevitavelmente em inconstitucionalidade da norma, ou seja, seu fator discriminatório deve
ser essencial à finalidade da Lei e, esta findalidade estar em sintonia coerente e coordenada
com direitos e interesses protegidos pela Constituição Federal.
Conclui-se, portanto, no caso sob análise, pela constitucionalidade das limitações
ambientais ao direito de propriedade, mas, desde que feitas no limite do necessário. Assim, a
normatização de um direito fundamental que colide com outro de igual status, como é o caso
do direito ambiental e o direito de propriedade,
[...] deve ser feita de forma equilibrada e, na justa medida do necessário,
sobretudo quando implicam no desequilíbrio entre os ônus que devem ser
suportados pela coletividade e pelo indivíduo, fazendo com que eles recaiam
majoritariamente sobre o indivíduo, em ‘benefício’ da sociedade38.
A discricionariedade legislativa encontra limites impostos expressa ou
implicitamente pelo próprio texto constitucional.

35
MELLO, C.A.B.de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª ed. 19ª triagem, São Paulo: Malheiros,
2010, p. 13.
36
Op. cit., p. 17 – grifo do autor.
37
Op. cit., p. 21.
38
ANTUNES, P. de B. Áreas Protegidas e Propriedade Constitucional, São Paulo: Atlas, 2011, p. 25.

50
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

3.2. Proibição de excesso e proporcionalidade


O fundamento constitucional do princípio da proporcionalidade é a dignidade da
pessoa humana (Art. 1º), que traz não só a necessidade de reconhecimento de direitos
fundamentais, mas também sua garantia. “O princípio da proporcionalidade, como uma das
várias idéias jurídicas fundantes da Constituição, tem assento justamente aí, nesse contexto
normativo no qual estão introduzidos os direitos fundamentais e os mecanismos da respectiva
proteção”39. Isto porque a própria Constituição Federal assegura a coexistência entre direitos e
garantias constitucionais expressos e implícitos, decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados (Art. 5º, § 2º), logo, além da necessidade de observância da igualdade na lei,
A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder
legislativo a violação ao princípio da proporcionalidade ou da proibição de
excesso (Verhältnismässigkeitspronzip; Übermassverbot), que se revela
mediante contraditoriedade, incongruência, e irrazoabilidade ou inadequação
40
entre meios e fins .
Percebe-se, portanto, que no ato de legislar deve-se levar em conta o objetivo da
norma e os meios necessários para atingi-lo. Por meios necessários deve-se ponderar a
necessidade e adequação da medida buscando a interferência mínima noutros direitos
constitucionais, quiçá quando se tratam de direitos fundamentais. É aqui que o princípio da
proporcionalidade, ou proibição de excesso, autoriza o Poder Judiciário fazer um controle de
constitucionalidade da lei que não atenda a adequação de seus meios à necessidade de seus
fins.
Conclui-se que inexoravelmente o princípio da proporcionalidade deve ser lido em
consonância com o subprincípio da necessidade, dele decorrente, de modo que o princípio da
proibição de excesso ou da proporcionalidade “[...] assumiria, assim, o papel de ‘um controle
de sintonia fina’ (Stimmigkeitskontrolle), indicando a justeza da solução encontrada ou a
necessidade de sua revisão” 41 através do controle de constitucionalidade.

3.3. Proibição de excesso e controle de constitucionalidade


Como visto, o princípio da proibição de excesso decorre diretamente dos princípios
da isonomia e da proporcionalidade, e com eles é confundido, logo, a previsão constitucional
da isonomia e,

39
BARROS, S. de T. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, 2ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 93.
40
MENDES. G. O Princípio da Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Novas
leituras, in: Revista Diálogo Jurídico, ano I, Vol. I, 2001, disponível em
http://www.direitopublico.com.br/pdf_5/DIALOGO-JURIDICO-05-AGOSTO-2001-GILMAR-MENDES.pdf.
Acesso em 16 dez. 2012.
41
MENDES. Op. cit.

51
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

[...] o reconhecimento da normatividade constitucional do princípio da


proporcionalidade legitima-o a figurar como fundamento do recurso
extraordinário, nos termos do inciso III do art. 102 da CF. Em relação à
declaração de inconstitucionalidade, além de viabilizar o controle difuso das
leis, sua inobservância pelo legislador pode ensejar o controle abstrato dos
42
atos legislativos, por meio da ação direta (art. 102, I, a) .
Jellinek apontava que os direitos fundamentais conferem posições aos indivíduos
perante o Estado, às quais denominou de status. Dividiu estes entre status negativo, status
passivo e status positivo. O status negativo trata das liberdades individuais, enquanto que o
status passivo constitui o inverso, pois, trata-se da sujeição individual às obrigações impostas
pelo Estado e, o status positivo, por sua vez, confere aos indivíduos o poder de exigir
comportamentos do Estado, que podem ser positivos, quando o Estado é omisso naquilo que
lhe compete fazer, ou, negativos, visando a abstenção do ente para impedi-lo de ofender seu
status negativo43. É exatamente o status positivo dos direitos fundamentais que legitima o
titular deste a pleitear, com base na proibição de excesso, o reconhecimento da
inconstitucionalidade das leis ou atos normativos que o restringir além do necessário.
O controle de constitucionalidade de leis e atos normativos restritivos de direito
fundamental através da proibição de excesso não é novidade brasileira. Gilmar Mendes
destaca o pioneirismo da decisão do Bundesverfassungsgericht, a Corte Constitucional
Alemã, de 1971, cujo entendimento é no sentido que
Os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à
consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o
evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não
44
dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais .
O Tribunal Constitucional Alemão reconhece o controle de constitucionalidade de
uma lei a partir do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit), ou proibição de
excesso (Übermassverbot), pois, ainda que não expressos na constituição, são
desdobramentos do Estado de Direito e, portanto, norma constitucional não-escrita. Ressalva,
todavia, que “uma lei será inconstitucional, por infringente ao princípio da proporcionalidade
ou da proibição de excesso, diz o Bundesverfassungsgericht, ‘se puder constatar,
inequivocamente, a existência de outras medidas menos lesivas’” 45.

42
BARROS, S. de T. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de
direitos fundamentais, 2ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 91/92 – grifo do autor.
43
Apud BARROS, Op. cit., p. 133.
44
Apud MENDES. G. O Princípio da Proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Novas
leituras, in: Revista Diálogo Jurídico, ano I, Vol. I, 2001, disponível em
http://www.direitopublico.com.br/pdf_5/DIALOGO-JURIDICO-05-AGOSTO-2001-GILMAR-MENDES.pdf.
Acesso em 16 dez. 2012.
45
Op. cit.

52
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A Constituição de Portugal vai além, e reconhece expressamente o limite


constitucional ao poder de legislar diante da proibição de excesso, dispondo, no item 2, do 18º
artigo, que: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”46.
Nota-se, no direito comparado, que seja a proibição de excesso prevista textualmente
na Constituição Federal, seja ela reconhecida como princípio constitucional implícito, o
reconhecimento do direito como sistemático e a coexistência entre direitos concorrentes ou
cumulativos faz com que o Poder Legislativo, ao normatizar de modo a limitar ou restringir
um direito constitucional, deve fazê-lo na justa medida no necessário, ou seja, de modo que
não interfira, ou interfira o mínimo possível, na esfera de outros direitos igualmente
constitucional.
Além do direito comparado, o Brasil admite o controle de constitucionalidade de
uma lei, seja pela via difusa, seja pela concentrada, através do princípio da proibição de
excesso.
Antes mesmo da promulgação da atual constituição, o Supremo Tribunal Federal
declarou a inconstitucionalidade parcial da Lei 383/80, do Estado do Rio de Janeiro,
entendendo que a desproporção entre o fim almejado pela norma e os meios por ela elencados
eram passíveis de controle de constitucionalidade. O caso tratava da cobrança de taxa
judiciária única e, naquela oportunidade o Ministro Moreira Alves entendeu pela
inconstitucionalidade do artigo 18 da citada lei enfatizando que
Embora não se exija que o quantum da taxa corresponda exatamente ao valor
dos serviços prestados, poderá ela disfarçar um verdadeiro imposto quando
sua alíquota estabeleça evidente desproporção. Deve haver, pois, uma
equivalência aproximada entre o valor da taxa e o custo da atividade estatal
desenvolvida 47.
O caso acima é tido como a primeira invocação do princípio da proibição de excesso
ou proporcionalidade para declarar a inconstitucionalidade de uma lei no Brasil.
Sob vigência da atual constituição, o Supremo Tribunal Federal também se
pronunciou sobre a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade com igual
fundamento e, referendando a tese aqui exposta, o julgado cuja ementa está a seguir transcrita
conclui que, seja por ofensa ao princípio da isonomia, seja por ofensa ao princípio da

46
PORTUGAL, Constituição (VII Revisão Constitucional), Artigo 18, 2, disponível em:
http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. Acesso em 17 dez. 2012.
47
BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Representação nº 1.077/RJ, Relator Ministro Moreira Alves, DJ.
28.09.1984 – grifo nosso.

53
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

proporcionalidade, uma restrição legal ao direito de propriedade, ainda que supostamente por
proteção ambiental, pode ser declarada inconstitucional:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL.
PROIBIÇÃO DE PLANTIO DE EUCALIPTO PARA FINS DE
PRODUÇÃO DE CELULOSE. DISCRIMINAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
AFRONTA AOS POSTULADOS DA ISONOMIA E DA
RAZOABILIDADE. DIREITO DE PROPRIEDADE. TEMA DE DIREITO
CIVIL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. 1. Vedação de plantio
de eucalipto no Estado do Espírito Santo, exclusivamente quando destinado
à produção de celulose. Ausência de intenção de controle ambiental.
Discriminação entre os produtores rurais apenas em face da destinação final
do produto da cultura, sem qualquer razão de ordem lógica para tanto.
Afronta ao princípio da isonomia. 2. Direito de propriedade. Garantia
constitucional. Restrição sem justo motivo. Desvirtuamento dos reais
objetivos da função legislativa. Caracterizada a violação ao postulado da
48
proporcionalidade .
No caso acima, a Confederação Nacional da Indústria e a Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil ajuizaram Ação Declaratória de Inconstitucionalidade em
face da Lei 6.780/2001, do Estado do Espirito Santo, que proibia o plantio de eucalipto para
fins de celulose. O objetivo da restrição, segundo a lei, seria proteção ambiental. Ambas
autoras da ação elencaram, dentre as causas de pedir, as teses de inconstitucionalidade por
afronta ao princípio da isonomia e, desrespeito ao princípio da proporcionalidade. Em defesa,
a Assembleia Legislativa daquele estado arguiu pela constitucionalidade da citada lei,
porquanto elaborada para controle de impactos ambientais e, portanto, a discriminação legal
estaria assentada na função social da propriedade. O entendimento unânime do pleno do
Supremo Tribunal Federal, entretanto, assentou que a propriedade particular é direito
fundamental e, como tal fica vedada qualquer limitação alheia aos princípios constitucionais
da isonomia e da proporcionalidade e, que a limitação legal imposta não se mostrava
adequada, tampouco necessária ao fim ao qual se destinava, reconhecendo sua
inconstitucionalidade49.
Aliás, é firme a jurisprudência o Supremo Tribunal Federal sobre a necessidade de
coexistência entre direito de propriedade e preservação ambiental:
A norma inscrita no art. 225, § 4º, da Constituição deve ser interpretada de
modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento
fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5º,
XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas
as suas projeções, inclusive aquela concernente à compensação financeira

48
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2623/ES,
Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 14.11.2003.
49
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2623/ES,
Relator Ministro Maurício Corrêa, DJ 14.11.2003.

54
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

devida pelo Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à


atividade estatal50.
Ressalta-se que, apesar de importantíssima e intimamente relacionada à saúde e à
vida humana, a proteção ambiental nas atividades cotidianas não se revela um projeto
totalmente metafísico, mas em grande parte é passível de conhecimento empírico através de
investigação e pesquisa científica. O Brasil é um país de dimensão continental, logo, ideal
seria um estudo aprofundado de cada ecossistema aqui existente, através de um mapeamento
agroecológico, de modo que a limitação ambiental numa propriedade se restringisse ao
quantum necessário à sua preservação.
O Código Florestal em vigor aponta um avanço neste sentido, ao prever o Cadastro
Ambiental Rural – CAR, que nada mais é senão um mapeamento agroecológico das
propriedades rurais. O Estado de Rondônia é pioneiro, tendo elaborado um acervo técnico de
zoneamento ambiental, georreferenciando todas as propriedades rurais ali situadas e,
identificando a hidrologia, a climatologia, os solos, a geologia, a fauna e a cobertura vegetal
de todo o Estado51.
Não se vê igual avanço, entretanto, nas metragens de limitações para Área de
Preservação Permanente, por exemplo. Não existe nenhum estudo científico que aponte a
necessidade de quinhentos metros de mata intocada para preservar os recursos hídricos e a
estabilidade geológica da borda de um curso d’água com largura de seiscentos e um metros. A
exposição de motivos do Código Florestal nada dispõe sobre a necessidade dos limites ali
previstos, como também não o fez a exposição de motivos do Código Florestal de 1965,
tampouco as Leis 7.511/86 e 7.803/1989. Trata-se de mera liberalidade do legislador que,
como visto, pode ter sua inconstitucionalidade reconhecida, pois, limita direito fundamental
sem demonstrar ser na justa medida no necessário.
O Projeto de Lei 1.876/99, da Câmara dos Deputados, que deu origem ao atual
Código Florestal, estabelecia áreas consideradas de preservação permanente, mas, dispunha
que os limites de tais áreas seriam estabelecidos pelo CONAMA – Conselho Nacional do
Meio Ambiente e, respeitados estes limites, os Estados e Municípios poderiam estabelecer
limitações diferentes para atender suas peculiaridades locais (Art. 2º, §§ 2º e 3º).
Tanto o CONAMA, como o SINIMA – Sistema Nacional de Informações sobre o
Meio Ambiente, onde fica registrado o Cadastro Ambiental Rural – CAR, são órgãos

50
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 134.297/SP, Primeira Turma, relator Ministro
Celso de Mello, Primeira Turma, DJ de 22.09.1995.
51
RONDÔNIA, Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental, Acervo Técnico de Zoneamento, in:
http://www.sedam.ro.gov.br/index.php/acervo-tecnico-zoneamento.html. Acesso em 02 fev. 2013.

55
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

vinculados ao Ministério do Meio Ambiente, logo, a previsão do referido projeto de lei


remetendo a imposição de limites às áreas de preservação ao Ministério do Meio Ambiente –
MMA seria mais coerente, haja vista que este terá informações detalhadas de todos os
imóveis rurais do Brasil, podendo adequar a preservação ambiental a cada região do país, de
modo a promover a melhor harmonia da preservação ambiental ao direito de propriedade e,
consequentemente, ao desenvolvimento nacional sustentável, que é o objetivo fundamental do
Código Florestal (Art. 1-A) e da República Federativa do Brasil (Art. 3º, II, Constituição
Federal).
Não se está aqui pregando que a riqueza produzida pela apropriação econômica da
natureza seja individualizada, ao passo que as externalidades negativas desta produção sejam
dissolvidas pela sociedade. É óbvio que aquele que se apropria economicamente da natureza e
com isso gera externalidades negativas deve ser responsabilizado, entretanto, este ônus deve
ser identificado, de modo que o proprietário rural tenha seu direito de propriedade
resguardado.
Não é justo, no entanto, que todo o ônus da preservação ambiental recaia apenas
sobre uma pequena parcela da população, pelo simples fato de serem proprietários rurais, e
nem é este o papel da Lei. Se o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um interesse
difuso e a todos aproveita, por que sua proteção e prevenção devem recair exclusivamente à
custa do proprietário rural? Isto é uma imposição desarrazoada e, o princípio da proibição de
excesso adimite o reconhecimento de inconstitucionalidade da norma que limite em excesso
injustificado o direito de propriedade. O artigo 225, caput, da Constituição Federal
expressamente impõe a todos o dever de preservar e proteger o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, e não somente aos proprietários rurais. Aliás,
O preceito consubstanciado no ART.225, PAR. 4, da Carta da República,
além de não haver convertido em bens públicos os imóveis particulares
abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas (Mata Atlântica, Serra
do Mar, Floresta Amazônica brasileira), também não impede a utilização,
pelos próprios particulares, dos recursos naturais existentes naquelas áreas
que estejam sujeitas ao domínio privado, desde que observadas as
prescrições legais e respeitadas as condições necessárias a preservação
ambiental. – A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de
propriedade (CF/88, art. 5., XXII)52.
As limitações ambientais, portanto, devem ser pautadas de conhecimento científico
e, se restringirem ao necessário para a proteção do local considerado de relevante interesse
ecológico. O restante – o plus – é perfeitamente possível de ser alcançado através da função

52
BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n. 143.297/SP, Primeira Turma, relator Ministro
Celso de Mello, DJ de 22.09.1995.

56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

promocional do direito, ou seja, incentivos fiscais, desapropriação mediante indenização e,


compensação por serviços ambientais. Isto equilibraria o ônus da proteção ambiental entre o
público e o privado, estabelecendo a paz social.
Não é demais lembrar que, além do problema da inconstitucionalidade, uma norma
que não atenda à proibição de excesso, proporcionalidade ou isonomia será também ilegítima.
Não ilegitimamente formal quanto a elaboração, mas quanto a sua justificação. Norberto
Bobbio lembra que o problema de uma norma não deve se restringir a sua efetividade, mas,
analisar também sua legitimidade, e prega superação da distinção analítica sobre poder
legítimo e ilegítimo através da análise axiológica, lembrando que Sócrates e Rousseau
rejeitam a tese do direito imposto por ato de força53. Vale lembrar a célebre frase de Edmund
Burke: As más leis são a pior espécie de tirania.
Sobre a legitimidade da norma imposta, anote-se que rigorosíssimo Código Florestal
passado, Lei 4.771/65, jamais teve aplicação satisfeita e, quando pressionada a aplicação pelo
Ministério Público surgiu um clima de guerra entre o movimento ambientalista e proprietários
rurais, o que obviamente não coaduna com a finalidade de justiça imposta pela Constituição
Federal à República Federativa do Brasil. Referida Lei já nasceu morta e, foi promulgada
como “perfumaria”, haja vista que ao mesmo tempo de sua promulgação o governo militar
brasileiro instituía o programa integrar para não entregar¸ doando terras na Amazônia sob
condição de desmatamento e produção.
O princípio da proibição de excesso, também conhecido como princípio da isonomia
substancial, ou princípio da proporcionalidade, assinala reconhecidamente um princípio
constitucional e, consequentemente, representa um meio de defesa de direitos fundamentais e
essência de um Estado Democrático de Direito que se pauta numa Constituição sistemática.
Do mesmo modo que o direito é sistemático, e o direito ambiental em especial é tema
transversal, seus princípios norteadores também o devem ser, de modo que a proibição do
excesso fica estritamente vinculada aos princípios da prevenção e desenvolvimento
sustentável.
O princípio da prevenção determina que a incerteza científica das externalidades de
atividades potencialmente poluidoras deve ser interpretada em favor do meio ambiente, logo,
em não se tratando de uma atividade que possa causar risco de danos graves ou irreversíveis
ao meio ambiente, a limitação ambiental deve ser pautada em estudos que demonstrem sua
necessidade, ou seja, ser restrita ao mínimo necessário.

53
BOBBIO, N. (trad. Marco Aurélio Nogueira). Estado, Governo, Sociedade: Para uma teoria geral da política,
9ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 87.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

4. Conclusão
A República Federativa do Brasil constitui um Estado Democrático de Direito, onde
direitos individuais e coletivos coexistem. A Constituição Federal dedica um capítulo próprio
à tutela ambiental, ao mesmo tempo em que consagra a propriedade privada como direito
individual fundamental e, funda a Ordem Econômica na livre iniciativa, tendo como
princípios a propriedade privada e preservação ambiental. Não há outra leitura do texto
constitucional senão pela conciliação entre proteção ambiental e direito a propriedade privada
dos meios de produção.
As normas repressivas do direito ambiental têm como característica a limitação de
direitos individuais, em especial o de propriedade. Esta limitação, entretanto, também
encontra limites. É justamente aqui que reside o princípio da proibição de excesso às normas
restritivas de direitos fundamentais. Os direitos individuais fundamentais, dentre estes o de
propriedade, são considerados cláusulas pétreas, inscusceptíveis de qualquer tendência de
abolição (Art. 60, § 4º, IV, Constituição Federal).
A proibição de excesso aparece com uma igualdade substancial, vedando
discriminações legais gratuitas, assim entendidas aquelas desnecessárias para que a norma
atinja sua finalidade. Trata-se de um controle de sintonia entre direitos coletivos e individuais,
para que a promoção de um não seja a negação do outro.
Ainda que as normas do direito ambiental se destinem à tutela de um macrobem de
interesse difuso, as limitações impostas a direito individuais fundamentais, decorrentes de sua
faceta repressiva, devem se restringir ao estritamente essencial à proteção do local
considerado especial e, o restante ser objeto da sua função promocional, sob pena de
inconstitucionalidade. É possível, portanto, haver controle de constitucionalidade sobre o uso
inadequado de normas restritivas de dieritos fundamentais, ainda que sob pretexto de tutelar
direito social ou coletivo. Isto no intuito de conciliar direitos individuais e coletivos de forma
duradoura e estável, tal qual determinado no texto constitucional, em prol de um
desenvolvimento nacional socioeconômico.

58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

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61
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1

O PRINCÍPIO NEMINEM LAEDERE E A


PREVENÇÃO DOS DANOS AMBIENTAIS

CARLOS EDUARDO SILVA E SOUZA


Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo
Mestre em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso
Coordenador do Curso de Graduação em Direito do Centro Universitário Cândido Rondon
Coordenador do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Cândido Rondon
Coordenador de Cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Cuiabá
Advogado

RESUMO: O presente artigo objetiva a analisar o princípio do neminem laedere e sua possível aplicação
no ordenamento jurídico brasileiro, considerando como ponto de partida a própria
Constituição da República Federativa do Brasil. Admitida a sua prescrição no cenário
jurídico brasileiro, a análise ruma no sentido de se verificar a relação do aludido princípio
com a prevenção de danos ambientais, especialmente considerando-se o paradigma da
segurança e a noção de que se vive em uma sociedade de massa. Admitida essa hipótese são
averiguados os reflexos do princípio neminem laedere na responsabilidade civil ambiental.
Aprecia-se também as características essenciais da responsabilidade civil ambiental no
Brasil. A ideia, portanto, é averiguar o princípio neminem laedere, sua aplicabilidade no
ordenamento jurídico brasileiro e, de especial modo, à proteção ambiental, na perspectiva de
prevenção do dano ambiental, ainda que aplicada sob a seara da responsabilidade civil
ambiental.

ABSTRACT: This article aims to analyze the principle of neminem laedere and their possible application
in the Brazilian legal system, considering as a starting point the Constitution of the
Federative Republic of Brazil. Admitted their prescription in the Brazilian legal scenario,
the analysis heads in order to verify the relationship of the principle alluded to the
prevention of environmental damage, especially considering the security paradigm and the
notion that we live in a mass society. Admitting this hypothesis is investigated are
reflections of principle neminem laedere on environmental liability. It also appreciates the
essential features of environmental liability in Brazil. The idea therefore is to ascertain the
principle neminem laedere, its applicability in the Brazilian legal and special way, to
environmental protection, with a view to preventing environmental damage, even if applied
in the harvest of environmental liability.

PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente. Neminem laedere. Danos ambientais. Sociedade de massa.

KEYWORDS: Environment. Neminem laedere. Environmental damage. Mass society.

SUMÁRIO: Introdução. 1. O princípio neminem laedere e a sua prescrição na ordem jurídica brasileira. 2.
O princípio do neminem laedere e a prevenção de danos ambientais 3. A evolução dos paradigmas na
sociedade de massa e os efeitos dessa relação na seara ambiental 4. Os reflexos do princípio do neminem
laedere na responsabilidade civil ambiental. 5. A responsabilidade civil ambiental no Brasil. Conclusões
articuladas.

CONTENTS: Introduction. 1. The principle neminem laedere and prescribing the Brazilian legal system.
2. The principle of neminem laedere and prevention of environmental damage 3. The evolution of
paradigms in mass society and the effects of this relationship on environmental harvest 4. The reflections of
the principle of neminem laedere on environmental liability. 5. The environmental liability in Brazil.
Conclusions articulated.

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Introdução

O presente artigo tem por objeto de estudo o princípio do neminem laedere e a sua
possível aplicabilidade no ordenamento jurídico brasileiro vigente, focando-se na seara da
responsabilidade civil, especialmente aquela aplicada na área ambiental.
Partindo-se desse propósito, a ideia é construída em quatro partes distintas nesse
trabalho. Inicia-se pela compreensão do princípio neminem laedere, apontando-se os
primeiros registros históricos para, em seguida, analisar a sua presença na ordem jurídica
brasileira.
Em um segundo momento, a atenção é direcionada para a investigação da relação do
princípio neminem laedere com a prevenção dos danos ambientais, considerando que essa
conexão pode contribuir para o reforço da proteção do bem de uso comum do povo, que é o
meio ambiente.
Na terceira parte deste trabalho, a análise é direcionada para a evolução de
paradigmas contidos na filosofia política da segurança e das obrigações e a consideração
desse desenvolvimento na sociedade de massa, destacando-se novamente os efeitos na seara
ambiental.
Reservou-se, para a quarta parte do presente estudo, a análise dos reflexos do
princípio da responsabilidade civil ambiental, considerando não somente o aspecto da
prevenção, mas também da própria reparação, de forma a permitir finalmente a apresentação
das conclusões articuladas.
Na quinta e última seção do artigo, o espaço fica reservado para a análise da
responsabilidade civil ambiental no Brasil, apontando-se, em apertada síntese, as suas
principais características.

1. O princípio neminem laedere1 e a sua prescrição na ordem jurídica brasileira

O princípio2 do neminem laedere já se evidenciava como premissa básica, na Roma

1
O presente artigo é inspirado no texto: DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere.
In: DONNINI, Rogério & NERY, Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui
Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
2
Francisco José Cunha Belfort argumenta que princípios são verdadeiros comandos ordenadores do sistema, que tem por
função inspirar a compreensão das regras jurídicas, informando o seu sentido e servindo de mandamento nuclear destas, já
as regras, possuem um grau de concretização maior, dado que regula o fenômeno jurídico com um grau menor de abstração.
(...) Os princípios constituem-se em fontes basilares para qualquer ramo do direito, influindo tanto em sua formação como
em sua aplicação. (BELFORT, Fernando José Cunha. A responsabilidade do empregador na degradação do meio ambiente
do trabalho e suas consequências jurídicas no âmbito do direito do trabalho. Tese de Doutorado apresentada à Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP. São Paulo, 2008. p. 66).

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antiga, em 526 a.C., sendo possível detectar a sua presença no Código Justineaneu, também
conhecido como Corpus Juris Civilis, especificamente no Digesto 1.1.10.1 (de Ulpiano), cujo
significado pode ser entendido como “não lesar a outrem”.
Ao lado do neminem laedere, dois outros preceitos eram claros no Digesto, quais
sejam: o honeste vivere e o suum cuique tribuere, ou seja, viver honestamente e dar a cada um
o que é devido, respectivamente.
Em que pese se verificar o primeiro registro escrito do princípio do neminem laedere
no Código Justinianeu, vale dizer que já se tinha como presente sua ideia entre os gregos no
ano 510 a.C., fase essa, inclusive, na qual a Grécia foi dominada por Roma, mas que acabou
por incorporar a cultura do período helenista em sua civilização. Sobre o assunto, deve-se
destacar a seguinte lição de Rogério Donnini:

O preceito alterum non laedere ou neminem laedere (“a ninguém


ofender”, “não lesar a outrem”) demonstra, com clareza, a filosofia de
Epicuro, que considera o resultado de um compromisso de utilidade,
com o escopo de os homens não se prejudicarem uns aos outros.
Trata-se de uma regra de direito natural. Enquanto os estoicos
determinavam como regra de vida a observância à razão e à natureza,
assim como à virtude, o Epicurismo propõe a felicidade, no sentido de
bem-estar individual e coletivo.3

Vale dizer que a premissa, pois, de não lesar a outrem orientava, desde esses tempos
mais antigos, o comportamento das pessoas em suas relações e, portanto, podia ser
compreendia como norma de conduta.
Pode-se também afirmar que o princípio neminem laedere se faz presente na
Constituição da República Federativa do Brasil, especificamente no artigo 5º, XXXV, que
prescreve que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”.
Esse dispositivo legal tem sido estudado pela doutrina brasileira apenas sob a
premissa do acesso à justiça. Entretanto, não se tem a exata noção da força contida na
expressão “ameaça a direito” e também da sua apreciação pelo Poder Judiciário.
É justamente nesse comando que se pode afirmar se encontrar presente, no cenário
jurídico brasileiro, a orientação do neminem laedere, já que o não lesar a outrem se encontra
presente na orientação de repulsa e proteção pela ação do Poder Judiciário.
Nessa esteira, pode-se entender, como premissa constitucional básica no Brasil, a de
3
DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere. In: DONNINI, Rogério & NERY,
Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana, cit. p.
486-487.

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não lesar a outrem, já que essa orientação se extrai do artigo 5º, XXXV da Lei Maior
brasileira. Essa justamente é a tese de Rogério Donnini, para quem:

O dispositivo constitucional que contempla o princípio do neminem


laedere é o art. 5º, XXXV (...). Ao estabelecer o direito de ação,
destina-se esse dispositivo, também, à prevenção de danos, com a
determinação que caberá ao Poder Judiciário apreciar a ameaça a
direito.4

Em relação especificamente ao patrimônio cultural brasileiro, a orientação do


neminem laedere também pode ser observada na Constituição da República Federativa do
Brasil, pois no artigo 216, § 4º se encontra contida a seguinte disposição: “Os danos e
ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei”.5
Note-se que a simples ideia de ameaça recebe a atenção da lei, já que a concretização
do dano é situação odiosa e que se busca evitar, pois, como se sabe, em boa parte, os seus
efeitos são irreversíveis em certas situações.
Essas seriam, portanto, as evidências explícitas que a ordem jurídica constitucional
adotou o princípio nemimen laedere. Entretanto, pode-se afirmar que outros dispositivos da
Constituição da República Federativa do Brasil reforçam essa orientação.
O artigo 1º, III da Lei Maior brasileira instituiu, como fundamento da República
Federativa do Brasil, a construção de um Estado Democrático de Direito, que coloca como
um dos seus objetivos básicos a “dignidade da pessoa humana”. Ora, não se pode conceber
que a concretização dos danos seja condizente com esse fundamento republicano, já que,
como se disse, muitos dos seus efeitos são irreversíveis. É medida mais apropriada, portanto,
se propagar a prevenção dos danos.6
Da leitura do artigo 3º, I da Carta Magna, nota-se que um dos objetos fundamentais
da República Federativa brasileira é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É
de se compreender, pois, que o não lesar a outrem (ou, em outras palavras, a prevenção de
danos) é medida que encontra compatibilidade com o dever de solidariedade, que orienta a
nossa sociedade.7
O neminem laedere também encontra compatibilidade com a função social que se
espera do direito. Essa orientação pode se observada em vários dispositivos legais, tal como o

4
DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere. In: DONNINI, Rogério & NERY,
Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana, cit. p.
492.
5
Idem.
6
Ibidem. p. 493.
7
Idem.

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artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, no qual se prescreve que, na “aplicação da lei,
o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Isso sem
falar que o princípio da “socialidade” passou a ser reconhecido como marca registrada do
vigente Código Civil.8
Pode-se perceber, portanto, que o princípio do neminem laedere, ou seja, de não se
lesar outrem, possui bases sólidas no ordenamento jurídico brasileiro, na condição até mesmo
de premissa constitucional.

2. O princípio do neminem laedere e a prevenção de danos ambientais

Não lesar a outrem, tal como recomenda o princípio do neminem laedere, na sua
visão mais primitiva, e a prevenção de danos, como se poderia extrair da sua orientação
contemporânea, que encontra guarida da própria Constituição da República Federativa do
Brasil são enunciados que encontram perfeita sintonia com a temática ambiental.
Diz-se, desta forma, porque o meio ambiente ecologicamente equilibrado, quando
afetado por uma conduta danosa, acaba por sofrer com efeitos que, em sua grande parte, são
irreversíveis ou de reversibilidade difícil ou morosa.
Considerando que o meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser
compreendido como direito humano fundamental9, tem-se que a prevenção de danos assume
indiscutível relevância. Sob esse aspecto, a orientação contida no princípio neminem laedere é
medida que se deve impor.
Ademais, é bom que se registre que a inclinação pela não concretização dos danos
ambientais pode ser extraída do ordenamento jurídico brasileiro, bem como de instrumentos
internacionais, que trataram de inspirar e enunciar os princípios da prevenção 10 e da

8
DONNINI, Rogério. Prevenção de danos e a extensão do princípio neminem laedere. In: DONNINI, Rogério & NERY,
Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo Camargo Viana, cit. p.
493.
9
Para a compreensão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito humano fundamental,
sugere-se a leitura do seguinte texto: SOUZA, Carlos Eduardo Silva e. Meio ambiente e direitos humanos: diálogo entre os
sistemas internacionais de proteção. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O novo direito internacional do meio ambiente.
Juruá: Curitiba, 2011. p. 13-58. Semelhante posicionamento também pode ser obtido no seguinte texto: MAZZUOLI, Valerio
de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos e o direito internacional do meio ambiente. In: MARQUES,
Claudia Lima, MEDAUAR, Odete & SILVA, Solange Teles da. O novo direito administrativo, ambiental e urbanístico:
estudos em homenagem à Jacqueline Morand-Deviller. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010 e na seguinte obra:
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direitos humanos e meio ambiente: paralelo entre os sistemas de proteção
internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
10
O princípio da prevenção é comentado nas seguintes obras: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental
brasileiro. 19ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 97-100; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão
ambiental em foco – doutrina, jurisprudência, glossário. 6ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.
822; BETIOL, Luciana Stocco. Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 50-55.

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precaução11.
Na esfera internacional, deve-se ressaltar a Declaração de Estocolmo sobre Meio
Ambiente, realizada em 1972 e a Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento12.
Já na perspectiva nacional, deve-se destacar a Constituição da República Federal do
Brasil, especificamente o caput do artigo 225, no qual se impõe ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Nesse sentido, sabendo-se que, concretizado o perigo ou o risco ao meio ambiente,
(isto é, na constatação de um dano ambiental), os seus efeitos certamente, em quase a
totalidade dos eventos, não terão qualquer possibilidade de reversão e/ou de reparação, face o
império de sua concretude perpétua.
Considerando a irreversibilidade e irreparabilidade que acompanham os danos
ambientais, a adoção dos princípios 13 da prevenção 14 e da precaução 15 mostra-se como a
profilaxia ideal para os perigos e riscos que sondam a sociedade contemporânea.16
Sob tal perspectiva, os princípios da prevenção e da precaução, os quais são
considerados como são considerados chaves dentro da disciplina de Direito Ambiental
encontram perfeita sintonia com o princípio do neminem laedere, que norteia, de forma ampla
11
Sobre o princípio da precaução, vide também: PORFIRIO JUNIOR, Nelson de Freitas. Responsabilidade civil do Estado
em face do dano ambiental. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 37-38. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental
brasileiro, cit. p. 74-97; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente..., cit. p. 822. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental.
12ª ed. ampl. e reform. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 28; VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia
(Orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. passim.; BETIOL, Luciana. Responsabilidade civil e
proteção ao meio ambiente, cit. p. 50-55.
12
Desta última, destaca-se o princípio 15, que possui a seguinte redação: Princípio 15. Com o fim de proteger o meio
ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades.
Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como
razão para o adiamento de medida economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira. Coletânea de direito internacional. Constituição Federal. 8ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 1.131).
13
Francisco José Cunha Belfort argumenta que princípios são verdadeiros comandos ordenadores do sistema, que tem por
função inspirar a compreensão das regras jurídicas, informando o seu sentido e servindo de mandamento nuclear destas, já
as regras, possuem um grau de concretização maior, dado que regula o fenômeno jurídico com um grau menor de abstração.
(...) Os princípios constituem-se em fontes basilares para qualquer ramo do direito, influindo tanto em sua formação como
em sua aplicação. (A responsabilidade do empregador na degradação do meio ambiente do trabalho e suas consequências
jurídicas no âmbito do direito do trabalho..., cit. p. 66).
14
O princípio da prevenção é comentado nas seguintes obras: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental
brasileiro, cit. p. 97-100; MILARÉ, Édis. Direito do ambiente..., cit. p. 822; BETIOL, Luciana. Responsabilidade civil e
proteção ao meio ambiente, cit. p. 50-55.
15
Sobre o princípio da precaução, vide também: PORFIRIO JUNIOR, Nelson de Freitas. Responsabilidade civil do estado
em face do dano ambiental, cit. p. 37-38. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, cit. p. 74-97;
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente..., cit. p. 822. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental, cit. p. 28; VARELLA,
Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia (Orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. passim.; BETIOL,
Luciana. Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente, cit. p. 50-55.
16
Essa opinião é comungada por Celso Antonio Pacheco Fiorillo: Diante da impotência do sistema jurídico, incapaz de
restabelecer, em igualdade de condições, uma situação idêntica à anterior, adota-se o princípio da prevenção do dano ao
meio ambiente como sustentáculo do direito ambiental, consubstanciando-se como seu objetivo fundamental (FIORILLO,
Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 112).
Deve-se observar que, para o aludido autor, é desnecessária a distinção entre os princípios da precaução e da prevenção. Esse
também é o entendimento de Nelson de Freitas Porfirio Júnior (Responsabilidade do Estado em face do dano ambiental, cit.
p. 38).

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e genérica, essa nova forma de pensar a responsabilidade civil no Brasil.


Nesse sentido, seja pela orientação que deve nortear esse novo Direito dos Danos no
Brasil, cuja orientação primeira é a de se prevenir os danos de uma forma geral, tal como se
extrai do princípio do neminem laedere, quanto pela previsão específica na seara ambiental,
por conta dos princípios da prevenção e da precaução, é de se notar que as ações da iniciativa
particular ou pública devem ser direcionadas nesse sentido.
É justamente aí que se tem a responsabilidade compartilhada entre Poder Público e
toda coletividade de direcionar os esforços, de forma efetiva, para a preservação e proteção do
meio ambiente, inclusive pela clara opção realizada pela equidade intergeracional17.

3. A evolução dos paradigmas na sociedade de massa e os efeitos dessa relação na seara


ambiental

Nos últimos três séculos têm ocorrido uma mudança de paradigma no que concerne a
filosofia política da segurança e das obrigações sociais, conforme leciona François Ewald 18.
No século XIX, a ideia estava atrelada a responsabilidade, ou seja, buscava-se atribuir o
encargo por determinado evento danoso à determinada pessoa e dela exigir comportamento
reativo à sua própria conduta.
Entretanto, tem-se que a essa noção de responsabilidade não era suficiente para
atender os conflitos sociais que sondavam a sociedade do século XX, razão pela qual o
paradigma norteador passou a ser a solidariedade, isto é, a exclusiva individualidade em certas
relações passou a ter o seu sentido invertido, de forma a exigir um esforço comum dos
membros da coletividade em determinado sentido.
No século atual (XXI), há nova inversão no paradigma a reger as relações sociais,
qual seja: a segurança. Isso pode ser observado quando se vê que as indefinições e incertezas
marcam a sociedade contemporânea e, por via transversa, fazem surgir a necessidade, no meio
social, de se buscar uma estabilidade e firmeza nas relações.
Não se quer dizer, entretanto, que os novos paradigmas tenham substituído os
anteriores, mas, na verdade, sem eliminar a ideia antecessora, passaram a conviver entre si.
Isso é possível se constatar no próprio caso do Brasil, já que responsabilidade, solidariedade e
17
No tocante a equidade intergeracional, a ideia consiste na necessidade de se atender, equivalentemente, as gerações
diversas. Para Alexandre Kiss, o conceito de equidade intergeracional surgiu nos anos 1980. Sua origem está relacionada
com a ansiedade desencadeada pelas mudanças globais que caracterizaram a segunda metade do século XX (Os direitos e
interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia [Orgs.].
Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 1).
18
EWALD, Fronçois. Le retour du malin genie. In: GODARD, Olivier (Coord.). Le principe de precaution. Paris: Editions
de la Maisoon des sciences de l’homme, 1997. p. 95-103.

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segurança são facilmente verificados na ordem constitucional brasileira.


A ideia de lesão de direito, que justamente inspira a responsabilidade, pode ser
notada, por exemplo, no próprio artigo 5º, XXXV da CF. Já a solidariedade se apresenta como
um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Por sua vez, a segurança também
se apresenta como um direito assegurado a brasileiros e estrangeiros com residência no Brasil,
tal como destacado no caput do já citado artigo 5º ou também na condição de direito social,
conforme a prescrição do caput do artigo 6º da Carta Magna brasileira.
Tem-se, portanto, que as premissas da responsabilidade, solidariedade ou até mesmo
da segurança coexistem naturalmente, em que pese, atualmente, esta última se encontrar no
centro das atenções da vida em sociedade.
É de se compreender que a segurança esteja nessa posição, já que se vivencia numa
sociedade de massa, na qual os eventos são produzidos em larga escala e na qual a prática de
um dano acaba por refletir efeitos e consequências negativas em desfavor de uma série de
pessoas.
Nesse cenário, tem-se que a sociedade de massa19 apresenta um modo de viver capaz
de acarretar malefícios inúmeros, até mesmo de implicar dúvida sobre a manutenção da
existência da própria humanidade, já que os bens de natureza mais elementar (tal como o
meio ambiente) são colocados em grande exposição ou a ponto do esgotamento.
Assim, é de se refletir e compreender que essa sociedade de massa esteja realmente
preocupada com o atingimento de níveis de segurança, capazes não somente de permitir
padrões que possam nortear a sua própria existência, mas também de garantir a possibilidade
de níveis satisfatórios para as gerações futuras.
Deve-se, portanto, notar que o comando de se prevenir os danos (ao meio ambiente,
especialmente), tal como inspira o princípio neminem laedere, é de grande pertinência com o
propósito de segurança, que é buscado por essa sociedade de massa.
Entretanto, considerando a ideia de que o risco ou perigo zero20 são utópicos, em que
pese a existência de bons instrumentos de gestão e controle na seara ambiental, não se pode
descartar os mecanismos de ação solidária ou de responsabilidade, de tal forma a se
compreender a coexistência desses elementos na proteção jurídica do meio ambiente.

19
Ulrich Beck traga essa categoria como sociedade de risco. Sobre o assunto, vide: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo
a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
20
Sobre o assunto, Teresa Ancona Lopez argumenta que a sociedade tenta (...) controlar ou até anular esses riscos. A
segurança social e individual é um dos maiores anseios do ser humano. Almeja-se o risco zero, que não existe. Hoje, os
maiores estudiosos da matéria mostram que o gerenciamento dos riscos é fundamental, mas que o risco zero é uma utopia
(LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quarter Latin, 2010. p.
31).

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4. Os reflexos do princípio do neminem laedere na responsabilidade civil ambiental

Considerando que a concretização dos danos se compreende como indesejável ou até


mesmo periclitante à própria sociedade, é de se compreender então que a prevenção de
condutas danosas merece especial preocupação não somente do Poder Público, mas também
de toda a coletividade.
Sob esse aspecto, tem-se que o princípio do neminem laedere, que se pode extrair do
inciso XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil, traz nova roupagem para a
responsabilidade civil (ou, como preferem alguns ao Direito dos Danos), que tira o foco da
reparação para mirá-la em direção a prevenção.
Daí porque é possível se compreender que a responsabilidade civil tradicional
encontra-se em crise, já que o seu papel se encontra respaldo por fórmula ultrapassada, não
condizente com a perspectiva e desejo de se ter a almejada segurança.
Entretanto, considerando, como já se disse, que a vida na sociedade de massa
encontra níveis de grande exposição, diante dos perigos e riscos que produz, a todo instante,
em escalas cada vez maiores, pode-se afirmar que a eliminação destes a um patamar zero
evidencia-se como utopia.
É justamente por isso que não se pode descartar a fórmula tradicional da reparação,
em que pese essa mesma necessitar de uma reinvenção, a ponto de permitir, na sua
composição, a presença do elemento da prevenção.
Assim, deve-se também ter o cuidado para que a responsabilidade civil possa
alcançar o seu elevado e verdadeiro propósito, quando for direcionada na área ambiental.
Aqui está se cogitando especificamente a tríplice função 21 da responsabilização civil
ambiental:
(i) a reparação do dano, ou seja, a restituição ao status quo ante do meio ambiente
ou, se tal propósito não pode ser alcançado, a adoção de medidas outras compensatórias,
inclusive a sua conversão em indenização pecuniária;
(ii) o caráter sancionatório, isto é, que o degradador/poluidor tenha a exata noção de
que está sendo punido pela sua prática lesiva nefasta ao meio ambiente;
(iii) o caráter pedagógico ao degradador/poluidor, bem como a toda coletividade e ao
próprio Estado, seja no sentido de que a conduta danosa ao meio ambiente não é viável e

21
Pensamentos similares são expostos nos textos de Laura Pozuelo Pérez (La reparación del daño al medio ambiente. In:
BARREIRO, Agustín Jorge (Org.). Estudios sobre la protección penal de médio ambiente en el ordenamiento jurídico
español, cit. p. 243), Luciana Stocco Betiol (Responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente. São Paulo: Saraiva, 2010.
p. 117-138), Paulo Affonso Leme Machado (Direito ambiental brasileiro, cit. p. 381)..

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louvável, bem como que as medidas de precaução e prevenção não atuaram suficientemente e,
por tal razão, devam ser revisadas, repensadas ou substituídas.
Primeiramente, deve-se prestigiar esse caráter tríplice na aplicação do instituto da
responsabilidade civil, pois o mesmo encontra-se em consonância com o princípio da
reparação integral, já que, assim sendo, ela é pensada em aspectos múltiplos e variados, a
ponto de revelar a possível concretude e completude que dela é esperada.
Pensada e aplicada a responsabilidade civil ambiental nessa perspectiva tríplice,
somada à certeza na sua condução, poder-se-á atingir a função que dela é esperada, isto é, a
prevenção do próprio dano ambiental.
É de se notar, evidentemente, que a responsabilidade civil jamais pode representar ao
poluidor/degradador uma permissão, financeiramente compensada, para a promoção de danos
ao meio ambiente e, assim, adquirir o direito de direcionar suas ações de acordo com o seu
alvedrio. Jamais. Essa seria derrocada de qualquer política ambiental e o anúncio de tempos
catastróficos. Qualquer medida nesse sentido deve ser severamente combatida.22
Nota-se, então, que o princípio do neminem laedere pode estar presente tanto nas
medidas que mirem a não concretização de qualquer dano ambiental, como também no
sentido de que, se este se materializar, na fixação da reparação esteja presente o elemento
preventivo, isto é, além da reparação integral que norteia a responsabilidade civil ambiental,
posse o degradador/poluidor, bem como toda coletividade, ter a exata noção de que o
cometimento de danos ao meio ambiente são medidas nem um pouco interessantes ou
cogitáveis.

22
Sobre o assunto, argumentam José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala: Destaque-se também uma função
preventiva, no sentido de que poderá inibir o agente a praticar uma conduta danosa, fundamentalmente em razão da punição
civil econômica. Entretanto, para que venha prevalecer essa função preventiva, mister se faz um sistema de
responsabilização civil que traga a certeza e efetividade de que a sanção civil será imposta ao agente causador. (...) No
intuito de se tentar reverter o déficit de controle do risco, a responsabilidade por danos ambientais dever exercer algumas
funções referentes à proteção do ambiente, a exemplo de outros institutos jurídicos. Assim, de acordo com Benjamin, são
consideradas funções a serem cumpridas pela responsabilidade civil na área ambiental: a) a compensação de vítimas; b)
prevenção de acidentes; c) minimização dos custos administrativos do sistema; d) retribuição (LEITE, José Rubens Morato
& AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e prática. 3 ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 120 e 135. Esclarecem esses mesmos Autores que se pode,
inclusive, falar em um “efeito difuso da prevenção” ou “efeito preventivo indireto”, já que os efeitos da condenação do
degradador à reparação do dano estimulam atitudes por parte daqueles envolvidos em situações semelhantes, no sentido de
tomar certas atitudes por parte daqueles envolvidos em situações semelhantes, no sentido de tomar certas medidas para
evitar que outros danos ambientais sejam causados. A prevenção de novos danos ambientais pode ocorrer tanto em caráter
individual (ou especial), desencorajando o próprio degradador a causar novos danos, quanto como uma prevenção geral,
quanto como uma prevenção geral, evitando que todos os demais venham a ocasionar novos danos ambientais (p. 136).
Concorda-se esse posicionamento, pois, assim cumpre-se com o caráter que se denominou “pedagógico” anteriormente, que
se espera atingir na aplicação da responsabilidade civil ambiental. Essa idéia também é compartilhada por Laura Pozuelo
Pérez, que aponta ser esta a orientação contida no Direito Comunitário Europeu (La reparación del daño al medio ambiente.
In: BARREIRO, Agustín Jorge (Org.). Estudios sobre la protección penal de médio ambiente en el ordenamiento jurídico
español, cit. p. 259). Idéia semelhante é compartilhada por Paulo Affonso Leme Machado que sustenta a responsabilidade de
prevenir (Direito ambiental brasileiro, cit. p. 373-374).

71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

5. A responsabilidade civil ambiental no Brasil

Por se tratar de relevante instituto na proteção do meio ambiente, a responsabilidade


civil objetiva é prevista expressamente no artigo 225, § 3º da Constituição da República
Federativa do Brasil, bem como artigo 1423, § 1º da Lei 6.938/8124
É clara a opção do legislador pela aplicação da responsabilidade objetiva, seja porque
a Lei 6.938/81 foi devidamente recepcionada pela Constituição da República Federativa do
Brasil, especialmente porque o próprio texto constitucional dá noção nesse sentido. É, aliás, o
que pode se extrair dos apontamentos realizados por José Rubens Morato Leite e Patryck
Araújo Ayala:

A Constituição Federal, em seu artigo 225, § 3º, recepcionou a Lei 6.938/81


e deixou intacta a responsabilização objetiva do causador do dano ambiental.
Acrescente-se que o legislador constituinte não limitou a obrigação de
reparar o dano, o que conduz à reparação integral. Também, em nível
constitucional, o legislador estabeleceu a responsabilidade objetiva e a
reparação integral do dano resultante de atividade nuclear.25

Pertinente também, nesse aspecto, o esclarecimento contido na lição de Patrícia Faga


Iglecias Lemos. A autora em questão lembra que a doutrina brasileira já se inclinava, com
suporte na teoria do risco integral, pela aplicabilidade da responsabilidade objetiva por danos
causados ao meio ambiente, citando exemplificativamente trabalho pioneiro de Sérgio Ferraz,
datado do ano de 1977, sendo que expressamente a reparação, nas ditas condições, só foi
reconhecida pela Lei 6.938/8126.

23
Duas observações são consideradas relevantes por Paulo Affonso Leme Machado no tocante ao dispositivo
legal em comento, quais sejam: (i) foi expressamente incluindo terceiros na concepção de vitimados, o que faz
entender o ser humano compreendido como integrante do meio ambiente; (ii) dispõe legitimidade ao Ministério
Público para a responsabilização civil e criminal, sendo que em relação a esta última já vinha reforçada por
instrumentos anteriores, mas o legislador tratou de reforçá-la (Direito ambiental brasileiro, cit. p. 368).
24
O aludido artigo possui a seguinte redação: Artigo 14. (...) § 1º Sem obstar a aplicação das penalidades
previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar
os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e
dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao
meio ambiente. Nelson de Freitas Porfirio Júnior faz abordagem sobre a regulamentação conferida pelo
ordenamento jurídico brasileiro ao dano ambiental na seguinte obra: Responsabilidade civil do estado em face do
dano ambiental, cit. p. 61-65.
25
Dano ambiental..., p. 134. Pedro Lenza esclarece que se trata de responsabilidade objetiva e integral (...) em
razão do dano ecológico, independentemente de culpa, bastando a prova do dano e do nexo de causalidade
(Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2008. 12 ed. rev., atual. e ampl. p. 746). Nesse
sentido, também se encontra direcionada a lição de Paulo Affonso Leme Machado (Direito ambiental brasileiro,
cit. p. 367-370).
26
Direito ambiental..., cit. p. 151. José Rubens Morato Leite e Patryck de Araúja Ayala argumentam que o risco
(...) pode ser concreto ou abstrato. O primeiro deles refere-se ao perigo produzido pelos efeitos nocivos da
atividade perigosa. O segundo, por sua vez, guarda relação com o perigo da própria atividade desenvolvida.
Em ambos os casos, todavia, o legislador viabilizou a tutela jurisdicional do meio ambiente (Dano ambiental...,
p. 128).

72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

No pensar de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, estando a responsabilidade


objetiva por dano causado ao meio ambiente fundamentada na teoria do risco integral, a
culpa ou o proveito de terceiro que invoca a proteção jurisdicional, duas excludentes da
responsabilidade objetiva, não poderiam ser suscitadas27.
Considerando que a responsabilidade civil ambiental resulta de imposição legal, tem-
se que a responsabilidade na aludida seara também deve ser compreendida como
extracontratual ou aquiliana. Ademais, com vistas à proteção do meio ambiente, a
responsabilidade civil, dependendo do caso concreto, pode ser aplicada tanto a um sujeito
individualmente, como a mais de uma pessoa, sendo que, nesse último caso, revelaria ser
compartilhada.
Em se tratando de responsabilidade civil compartilhada, a regra de sua aplicação é
com base na solidariedade, o que quer dizer que os sujeitos causadores do dano ambiental
responderão, em igualdade de condições de imputação, com relação a obrigação de reparação,
o que pode, exemplificativamente, ser extraído do Código Civil, especificamente do seu artigo
942, caput28.
No mais, outra observação interessante é que a responsabilidade civil ambiental tem
que ser compreendida como uma obrigação propter rem, de tal forma que a mesma
acompanha a coisa, ainda que a titularidade da mesma seja alterada. Esse entendimento, aliás,
já foi exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do Recurso Especial 948.921/SP,
que foi relatado pelo Ministro Herman Benjamin.29
Mais importante é sempre ter em mente que a responsabilidade civil ambiental deve
ser guiada pelo princípio da reparação integral, que significa que o dano ambiental deve ser
recomposto na sua integralidade, e não limitadamente, trazendo uma proteção mais efetiva
ao bem ambiental, isto é, toda e qualquer manifestação do dano ambiental deve ser objeto de

27
Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 320.
28
O aludido artigo possui a seguinte redação: Artigo 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do
direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos
responderão solidariamente pela reparação.
29
A ementa do julgado em questão é a seguinte: (...) FUNÇÃO SOCIAL E FUNÇÃO ECOLÓGICA DA
PROPRIEDADE E DA POSSE. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVA LEGAL.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELO DANO AMBIENTAL. OBRIGAÇÃO PROPTER REM. DIREITO
ADQUIRIDO DE POLUIR. (...)5. Os deveres associados às APPs e à Reserva Legal têm natureza de obrigação
propter rem, isto é, aderem ao título de domínio ou posse. Precedentes do STJ. 6. Descabe falar em culpa ou
nexo causal, como fatores determinantes do dever de recuperar a vegetação nativa e averbar a Reserva Legal
por parte do proprietário ou possuidor, antigo ou novo, mesmo se o imóvel já estava desmatado quando de sua
aquisição. Sendo a hipótese de obrigação propter rem, desarrazoado perquirir quem causou o dano ambiental
in casu, se o atual proprietário ou os anteriores, ou a culpabilidade de quem o fez ou deixou de fazer.
Precedentes do STJ. 7. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido (Superior Tribunal
de Justiça – REsp. 948.921/SP – Min. Relator Herman Benjamin – DJ de 11.11.2009).

73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

reparação.30
Édis Milaré entende que, com base no princípio da reparação integral, que a lesão
ambiental há de ser recuperada em sua integridade e qualquer norma jurídica que disponha
em sentido contrário ou que pretenda limitar o montante indenizatório a um teto máximo será
inconstitucional.31
Para Fernando José Cunha Belfort, o princípio da reparação integral faz com que a
responsabilidade possua dupla função na esfera jurídica do prejudicado: a) mantenedora da
segurança jurídica em relação lesado; b) sanção civil de natureza compensatória.32
Note, portanto, que se a responsabilização civil se desviar dos preceitos contidos na
reparação integral, esta se guiará para a sua falência, isto porque alguns dos seus propósitos
podem ficar atingidos. Aqui está se falando especificamente do caráter pedagógico,
sancionador e reparador, os quais se não bem aplicados, podem implicar na subversão da
ordem jurídica, não desestimulando a prática do dano ambiental e gerando a sensação de
impunidade, tudo isso sem falar na hipótese de exposição aos riscos e perigos a que a
sociedade se encontra.

Conclusões articuladas

Considerando-se as anotações trazidas para reflexão no presente trabalho, têm-se, a


título de conclusões articuladas, as seguintes ideais:
1. O princípio do neminem laedere, ou seja, a noção de não lesar outrem, em que
pese seus registros históricos mais longínquos, encontra guarida na Constituição da República
Federativa do Brasil, especificamente em seu artigo 5º, XXXV, ao não permitir a exclusão do
Poder Judiciário a ameaça de direito, já que a concretização dos danos geradora de efeitos de
difícil reversibilidade ou de irreversibilidade;
2. O princípio do neminem laedere encontra sintonia com a noção de prevenção e
precaução contida no Direito Ambiental, razão pela qual pode ser compreendida como
elemento adicional na proteção do meio ambiente;
3. A evolução dos paradigmas demonstrou que estes migraram do século XIX ao
presente para das premissas de responsabilidade, solidariedade para chegar à segurança, sendo
que esta última desempenha perspectiva chave na sociedade de massa, especialmente quando

30
Cf. LEITE, José Rubens Morato & AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental..., cit. p. 133 e 331.
31
Direito do ambiente..., cit. p. 957.
32
A responsabilidade do empregador na degradação do meio ambiente do trabalho e suas consequências
jurídicas no âmbito do direito do trabalho..., cit. p. 14.

74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

se considera o dever de equidade intergeracional em relação ao bem ambiental;


4. O princípio do neminem laedere pode servir não somente para a busca da ação
mais desejada, qual seja: a prevenção dos danos ambientais, mas também para que o elemento
preventivo também possa constar na fixação da reparação, a fim de que degradador/poluidor e
a própria sociedade como um todo possam se sentir desencorajados a praticar condutas que
possam implicar em lesões ao meio ambiente.
5. A responsabilidade civil ambiental no Brasil deve ser compreendida como
objetiva e deve ser guiada pelo princípio da reparação integral, objetivando que a situação
anterior ao dano ambiental seja totalmente recomposta ao seu status quo ante.
Apresentadas essas conclusões articuladas, espera-se que o princípio neminem
laedere possa ser considerado, como se disse, reforço na proteção do meio ambiente, a qual é
de relevância indiscutível para que a sociedade de massa possa garantir níveis desejáveis de
qualidade a esse bem não somente em relação a si própria, mas em relação às futuras
gerações.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O PROJETO DE ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO: PROJEÇÕES E


IMPLICAÇÕES NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

THE PROJECT OF ENVIRONMENTAL LEGAL STATE: FORECASTS AND


IMPLICATIONS IN BRAZILIAN CONSTITUTIONAL ORDER

Rafaela Emilia Bortolini1


Patryck de Araújo Ayala2

RESUMO: O texto propõe apresentar algumas definições e elementos nucleares do


denominado Estado Socioambiental de Direito, destacando-o como o modelo mais adequado
para enfrentar o contexto de preocupação ambiental vivenciado na atualidade. A capacidade
deste tipo de Estado para oferecer respostas mais satisfatórias e adequadas aos problemas
ambientais da contemporaneidade supera os demais modelos estatais – sem que isso implique
em uma preponderância do bem ambiental sobre outras realidades, pois defende-se a
integridade e a conexão entre os múltiplos direitos e valores fundamentais. Pretende-se
demonstrar a incorporação do Estado Socioambiental no texto constitucional brasileiro de
1988, como um projeto de futuro ainda a ser concretizado, e quais as implicações dele
decorrentes. Conclui-se pela sua permanente construção, enquanto compromisso de
sensibilidade ecológica do Estado, dos particulares e das instituições.
Palavras-chave: Estado Socioambiental; meio ambiente; deveres estatais; direito
fundamental; dever fundamental.

ABSTRACT: This article proposes to introduce some definitions and nuclear elements of the
so-called Environmental Legal State, highlighting it as the most appropriate model to face the
context of concern about the environment nowadays. The ability of such State to provide

1
Mestranda em Direito Agroambiental pela UFMT. Graduada em Direito pela UFMT. Advogada. E-mail:
rafaelabortolini@gmail.com
2
Doutor em Direito pela UFSC, tendo realizado estágio de doutoramento junto à Facudade de Direito da
Universidade Clássica de Lisboa. Professor adjunto II nos cursos de graduação e de mestrado em Direito da
UFMT. Professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFSC (PPGD-UFSC) desde 2011.
Coordenador adjunto do Programa de Mestrado em Direito Agroambiental da UFMT (2011- 2013). Pesquisador
do grupo de pesquisas “Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco” (certificado pela
Instituição e cadastrado no CNPQ), líder do grupo de pesquisas “Jus-Clima”, membro da Comission on
Environmental Law (Steering Comitee) da IUCN. Membro e sócio-fundador da Associação dos Professores de
Direito Ambiental (APRODAB). Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP). É secretário-
geral do Instituto “O Direito por um Planeta Verde”. Procurador do Estado de Mato Grosso. Autor, co-autor e
colaborador em obras e periódicos nacionais e internacionais. E-mail: pkayala@terra.com.br

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

more satisfactory and appropriate responses to environmental problems of the contemporary


state outperforms the other models - without implying in a preponderance of the
environmental good about other realities, because it defends the integrity and connection
among multiple rights and core values. We intend to demonstrate the incorporation of the
Environmental Legal State in the brazillian constitution of 1988, as a project for the future yet
to be realized, and what the implications arising there from. We conclude by its permanent
building, while commitment to ecological sensitivity of the State, individuals and institutions.
Keywords: Environmental Legal State; environment; duties State’s; fundamental rights;
fundamental duties.

INTRODUÇÃO

O ser humano encontra-se numa posição de proeminência sobre a natureza e, por não
agir demasiado instintivamente como os demais seres, tem condições de decidir sobre a quase
totalidade de suas ações, tornando-se capaz, inclusive, de subjugar o meio ambiente – embora
não o devesse –, modificando-o conforme suas necessidades.3
Essa situação de proeminência4 sobre a natureza possibilita que o homem escolha seu
modus vivendi. Nisto resume-se toda a problemática ambiental: um modo de vida calcado
essencialmente em valores econômicos, que vem causando impactos ambientais nunca antes
vivenciados.5
Não é difícil constatar que o destino da Humanidade (e do Planeta todo) depende das
escolhas que se fez até agora e daquelas que se fará daqui por diante.
As catástrofes naturais, os elevados índices de poluição, o desaparecimento de
espécies da fauna e da flora, as mudanças climáticas etc. “empurram” a todos, sociedade e
Estado, para uma mudança de comportamentos, em direção a condutas mais sensíveis
ecologicamente e de longo prazo.
A preocupação ambiental passou a ser merecedora de uma atenção global,
despertando cada vez maior interesse de setores públicos e privados, tanto em âmbito interno
quanto externo.
Nota-se, em razão disso tudo, o despontamento de um novo desafio ao Estado: como

3
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 136-137.
4
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.183.
5
LEITE, José Rubens Morato. Op.cit. p. 137.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

se portar, como se organizar e como se inter-relacionar melhor, a fim de enfrentar essas novas
realidades ambientais, algumas catastróficas. Esta é a ideia central desenvolvida e
problematizada no presente ensaio.
Sendo o Estado uma unidade ativa dentro de uma realidade histórico-social, não
dispensa – para sua boa compreensão e discussão sobre suas ações – o conhecimento da
realidade social, que nada mais é do que a ação humana propriamente, a realidade ativa do
homem.6 Nisto reside a chave para o enfrentamento do problema.
É preciso destacar o caráter instrumental que legitima a existência do Estado,
retratado em um “compromisso com o bem comum, compreendido este além da satisfação das
necessidades materiais, alcançando a dimensão do respeito aos valores fundamentais da
pessoa humana”7.
Defende-se que o Estado deverá sempre “corresponder à sociedade, na concretização
dos anseios humanos”, incumbido de “uma função essencial que deriva diretamente desta
relação íntima entre criadora (a Sociedade) e criatura (Estado)”8.
Percebe-se, cada vez com maior razão, que uma reflexão séria sobre a proteção do
ambiente não pode concentrar-se em atuações isoladas de alguns Estados. Isso traz a tona uma
reflexão importante, sobre o quão complexa é a questão ambiental, mormente ao se considerar
a unicidade do ambiente – vez que este não se fragmenta, tampouco se restringe a realidades
estanques ou a fronteiras geográficas.9
É de se ressaltar que os “limites dos Estados Nacionais tornaram-se demasiado
diminutos para a fome de recursos naturais e humanos decorrente da expansão da produção”.
Ademais, há uma “necessidade econômica de globalização” paralela a “reações culturais
nacionalistas do homem que procura sua identidade, o significado do seu ser-no-mundo”. Não
se ignora, ainda, que o “domínio da energia da natureza alavancou a industrialização [...],
modificando radicalmente os milhares de anos de relação do homem com o seu meio”10.
Tendo em mente que a sociedade moderna atingiu altos níveis de complexidade de
desenvolvimento tecnológico e que faltam-lhe condições de controle desses riscos, mostra-se
como imprescindível que o Estado adote outra roupagem, assumindo novas formas de

6
HELLER, Hermann. Teoria do estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
7
PASOLD, César Luiz. Função social do estado contemporâneo. 2.ed. Florianópolis: Estudantil, 1988. p. 65.
8
HELLER, Hermann. Loc. cit.
9
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 137.
10
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 182-183.

80
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

atuação11, numa tentativa de propor respostas às ameaças advindas do processo de


tecnologização.
É nítida, portanto, “a inter-relação entre o aparato estatal e as ações dos indivíduos
para a realização das normas constitucionais”12. No que se refere à proteção constitucional do
ambiente, essa aproximação entre particulares e Estado se traduz na ideia de responsabilidade
compartilhada13.
Aliás, a evidência de uma não-dissociação entre Estado e sociedade civil no texto da
Constituição de 1988 reside, sobretudo, no que se refere “à realização dos princípios-essência
que a integram”14. Defende-se que isso representa um inegável avanço constitucional,
especialmente no que tange à defesa do meio ambiente, trazendo desdobramentos que
culminarão no princípio da cooperação, inclusive.15
Sabe-se que o desempenho do Estado é variável conforme “o momento histórico e a
característica sócio-cultural de cada sociedade”16. Na atualidade, a proteção do ambiente
projeta-se “como um dos valores constitucionais mais importantes a serem incorporados como
tarefa ou objetivo do Estado de Direito” 17, o que justifica a importância de estudar o tema,
merecendo especial dedicação dos juristas.
O Estado tem a tarefa de assumir o “direcionamento das medidas de efetividade de
um ambiente sadio em detrimento da visão que o reputa como único centro de poder das
decisões concernentes ao ambiente”18.
Tudo isso se traduz em uma situação altamente desafiadora, que coloca em xeque sua
capacidade de regulação e de oferecer respostas compatíveis e que sejam adequadas a um
contexto (novo) de problemas ambientais.19
A realidade ora vivenciada, permeada de riscos e de níveis consideráveis de
degradação ambiental, impõe às sociedades contemporâneas novos comportamentos, questões

11
AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito fundamental so meio ambiente. 1.ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 17.
12
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 176.
13
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. 6.ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009. p. 193-197.
14
DERANI, Cristiane. Op. cit. p. 177.
15
DERANI, Cristiane. Loc. cit.
16
DERANI, Cristiane. Loc. cit.
17
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 96.
18
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 137. p. 197.
19
AYALA, Patryck de Araújo. Op. cit. p. 14.

81
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

e desafios, ensejando profundas reflexões sobre os próprios fundamentos do Estado de


Direito.20
A razão de ser de um Estado está no respeito, proteção e promoção da dignidade das
pessoas, devendo tal objetivo ser permanentemente buscado e concretizado pelo Poder
Público e pela própria sociedade.21
Com efeito, “o Estado contemporâneo deve ajustar-se (e, se necessário, remodelar-
se) a cada novo passado histórico no sentido de enfrentar como tarefa estatal as novas
ameaças e riscos ecológicos que fragilizam a existência humana”22.
É inconcebível a adoção de uma visão individualista sobre a proteção do meio
ambiente deprovida de solidariedade e cega a responsabilidades difusas globais. Trata-se de
grave equívoco afirmar que os custos da degradação devem ser repartidos por todos (numa
escala global que ninguém saberia calcular – e que talvez seja impossível de ser calculada).
Essa é uma visão “distorcida e leva ao esgotamento total dos recursos ambientais e a
previsões catastróficas.” 23
Pretende-se demonstrar que somente a partir da adoção de uma responsabilidade
solidária e participativa, envolvendo Estados e cidadãos, à luz de ideais de preservação, é que
será possível encontrar solução para a crise ambiental.24 Aliás, o próprio surgimento do direito
ambiental relaciona-se à dificuldade mencionada acima, referente ao enfrentamento da
complexa situação de degradação ambiental hoje posta.25
Constata-se, portanto, a insuficiência do modelo de Estado Social para lidar com as
questões ambientais, especialmente no que se refere aos riscos oriundos de uma civilização
tecnológica. É nesse cenário que desponta o modelo denominado Socioambiental de Direito,
como o mais apto ao enfrentamento desses novos riscos, pelas razões que veremos no
decorrer deste artigo.26
Antes, entretanto, cumpre fazer dois pequenos destaques a título de esclarecimento: o

20
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.p. 26.
21
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial
(ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado socioambiental e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 20.
22
FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit. p. 96.
23
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 159-160.
24
LEITE, José Rubens Morato. Loc. cit.
25
BENJAMIN, Antônio Herman. Função ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman (coord.). Dano
ambiental: prevenção, reparação e prevenção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 15.
26
FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit. p. 26.

82
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

primeiro, referente à existência de diferentes termos para expressar o novo projeto de


comunidade estatal alvo deste estudo. São eles: Estado pós-social27, 28, 29
, Estado
constitucional ecológico30, Estado de direito ambiental31, Estado do ambiente32, Estado
ambiental de direito33, Estado de bem-estar ambiental34 etc.
A preferência pelo termo Sociambiental resulta de uma necessária convergência
entre os compromissos social e ambiental, numa leitura de integridade, coesão e conexão, em
um mesmo projeto jurídico-político, o que encontra forte respaldo na doutrina.35
Já o segundo esclarecimento refere-se à necessidade de destacar, logo de início, que
esse (novo) modelo não representa um marco zero36. Aproxima-se mais de uma construção
permanente, um processo histórico cumulativo, onde se encontram princípios e valores
consagrados pela sociedade.37 Portanto, não se trata de ruptura, revolução ou algo semelhante,
mas de uma busca constante, uma permanente vir a ser; algo que ainda não está finalizado,
pronto – e que talvez nunca alcance o cume, por ser de sua própria essência a busca.
Deseja-se, com tudo isso, que a teoria da constituição caminhe rumo a abraçar em
seus fundamentos os novos conceitos trazidos pela crise ambiental que ora se vivencia,
sobretudo à luz da teoria da sociedade de risco, de Beck38, e os valores ecológicos que
necessariamente emergem dessas relações.

27
SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de direito do ambiente. Coimbra: Almedina, 2002.
28
PUREZA, José Manuel. Tribunais, natureza e sociedade: o direito do ambiente em Portugal. Lisboa: Cadernos
do Centro de Estudos Judiciários, 1996.
29
SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social (pós-modernidade
constitucional?). In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Crise e desafios da constituição: perspectivas
críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
30
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional ecológico e democracia sustentada. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e
comparado. Rio de janeiro: Renovar, 2003.
31
LEITE, José Rubens Morato. Estado de direito do ambiente: uma difícil tarefa. In: LEITE, José Rubens
Morato (org.). Inovações em direito ambiental. Florianópolis: Fundação Boitex, 2000.
32
HABERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo
Wolfgang (org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e do direito constitucional. Porto
Alegre: Livaria do Advogado, 2005.
33
NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. Estado ambiental de direito. Jus navigandi, n. 589, fev/2005.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6340/o-estado-ambiental-de-direito> Acesso: em 16 mar 2013.
34
PORTANOVA, Rogério. Direitos humanos e meio ambiente: uma revolução de paradigma para o século XXI.
In BENJAMIN, Antônio Herman (org.). Anais do 6º Congresso internacional de direito ambiental: 10 anos da
ECO-92. São Paulo: Instituto O Direito por um planeta verde, 2002.
35
FENTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco
jurídico-constitucional. In Revista direitos fundamentais e justiça. Porto Alegre: PUCRS, n. 2, jan./mar. 2008.
36
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial
(ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado socioambiental e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 18.
37
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 99.
38
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

83
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O método de pesquisa utilizado foi, basicamente, a consulta bibliográfica da doutrina


jurídica brasileira e estrangeira.

1 CONCEITUAÇÃO E ELEMENTOS DEFINIDORES DE UM ESTADO


SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO

Não sem razão, a doutrina realça que o Estado Socioambiental “é fictício e marcado
por abstratividade”39. Sendo um conceito abrangente, repercute não só no Direito, mas
também em análises da Sociedade e da Política.40
Interessante, talvez pelo pragmatismo e também pela objetividade, a definição do
jurista português Pureza, para quem o “Estado ambiental é um quadro de mais sociedade,
mais direitos e deveres individuais e mais direitos e deveres coletivos e menos Estado e
menos mercantilização”41. Nesse modelo “não é prioritário o doseamento entre público e
privado, mas sim o reforço da autonomia (logo, dos direitos e das responsabilidades)
individual e social frente à mercantilização e à burocratização”42.
Esses dizerem vem ao encontro de uma concepção de responsabilidade, isto é, de
uma autonomia responsável.
Também pode ser definido como “a forma de Estado que se propõe a aplicar o
princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável,
orientado a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do
uso racional do patrimônio natural”43.
Com base nas lições de Canotilho44, é possível destacar quatro postulados referentes
a uma compreensão desse modelo de Estado: o globalista, o publicista, o individualista e o
associativista.
O primeiro, globalista, enfatiza a questão ambiental sob um ponto de vista planetário,
destacando que não se realiza efetiva proteção do ambiente de modo isolado e restrito a
alguns Estados, devendo ser ampliada supranacionalmente.

39
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 149.
40
LEITE, José Rubens Morato. Loc. cit.
41
PUREZA, José Manuel; FRADE, Catarina. Direito do ambiente. Coimbra: Faculdade de economia da
Universidade de Coimbra, 1998. p. 8-9.
42
PUREZA, José Manuel; FRADE, Catarina. Loc. cit.
43
CAPELA, Vicente Bellver. Ecologia: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994. p. 248.
44
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado constitucional ecológico e democracia sustentada. RevCEDOUA,
n. 2, p. 9 e s., 2001. Disponível em: <http:// https://digitalis-
dsp.sib.uc.pt/bitstream/10316.2/5732/1/revcedoua8%20art.%201%20JJGC.pdf> Acesso em: 10 mar 2013.

84
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O postulado publicista destaca a questão ambiental “no Estado”, no que se refere a


uma dimensão espacial da proteção ambiental e também à institucionalização dos
instrumentos jurídicos de proteção do ambiente.
Já o individualista restringe a proteção do ambiente à invocação de posições
individuais, de modo que a proteção ambiental possuiria um acentuado caráter privatístico.45
O postulado associativista, por fim, reforça um viés democrático, “substituindo a
visão tecnocrática com proeminência do Estado em assuntos ambientais (postulado publicista)
por uma visão de fortes conotações de participação democrática”46.
A construção do conceito (ou dos conceitos) de Estado Socioambiental tem de
questionar os próprios elementos sobre os quais o Estado se sustenta, como se afirmou
anteriormente. Nisto reside sua complexidade. Trata-se de um "processo dialético posto em
marcha"47.
Este modelo de Estado revela o acréscimo de uma nova dimensão ao conjunto de fins
fundamentais (ou valores) já incorporados. Trata-se do imperativo de proteção do ambiente,
que “se articula dialeticamente com as outras dimensões já plenamente consagradas ao longo
do percurso histórico do Estado de Direito”48.
Morato Leite destaca que a abstratividade desse modelo estatal não deve ser
interpretada como um redutor da importância de sua discussão. 49 A definição dos
pressupostos desse modelo de Estado “serve como ‘meta’ ou ‘parâmetro’ a ser atingido,
trazendo à tona uma série de discussões que otimizam processos de realização de
aproximação do Estado ficto”50.
Afastando-se da ideia de Estado mínimo, trata-se de “um Estado regulador da
atividade econômica, capaz de dirigi-la e ajustá-la aos valores e princípios constitucionais,
objetivando o desenvolvimento humano e social de forma ambientalmente sustentável”51.
A discussão sobre esse projeto teria cinco funções fundamentais52: (i) ajustar formas
que sejam mais adequadas para a gestão dos novos riscos e evitar a irresponsabilidade

45
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 150.
46
LEITE, José Rubens Morato. Loc cit.
47
HABERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad: 1789 como historia, actualidad y futuro del estado
constitucional. Tradução de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez. Madrid: Editorial Trotta, 1998. p. 53.
48
PUREZA, José Manuel. Tribunais, natureza e sociedade: o direito do ambiente em Portugal. Lisboa: Cadernos
do Centro de Estudos Judiciários, 1996. p. 27.
49
LEITE, José Rubens Morato. Op. cit. p. 151.
50
LEITE, José Rubens Morato. Loc. cit.
51
FENTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco
jurídico-constitucional. Revista direitos fundamentais e justiça. Porto Alegre: PUCRS, n. 2, jan./mar. 2008.

85
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

organizada; (ii) juridicizar instrumentos contemporâneos, que sejam preventivos e


precaucionais, abandonando a ideia segundo a qual o Direito só deveria se proeocupar com
danos evidentes, e passando a incorporar, então, uma atenção especial aos danos e riscos
abstratos, potenciais e cumulativos; (iii) aproximar a noção de direito integrado, vez que a
efetividade da defesa ambiental depende de considerações multitemáticas; (iv) buscar a
construção de uma consciência ambiental; (v) favorecer uma maior compreensão do objeto
estudado, propiciando o entendimento da posição ecológica do ser humano e das implicações
que decorrem da visão integrativa de ambiente.
O Estado Socioambiental de Direito pode ser tratado como um conceito dinâmico,
que envolve novos conteúdos e conformações, e que por isso mesmo deve ser aberto e
flexível, abarcando “elementos jurídicos, sociais e políticos na busca de uma situação
ambiental favorável à plena satisfação da dignidade humana e harmonia dos ecossistemas”53.
As normas jurídicas são apenas uma das muitas faces do complexo de realidades que
se entrelaçam e se relacionam à idéia de Estado Socioambiental. Trata-se de um
imbrincamento de elementos jurídicos, sociais e políticos não-estanques, de sorte que as
manifestações jurídicas funcionam como norteadores para a ordem social e política, as quais,
por sua vez, também influem na produção e na eficácia das próprias manifestações jurídicas.54
Assume-se, a partir desse prisma, que o patrimônio natural e o ambiente sejam bens
públicos, objetos de uma utilização racional e controlada, impondo-se “balizas jurídicas que
orientem toda a atividade econômica para um horizonte de solidariedade substancial”55.
Desse modo, a construção de um “Estado de Direito Ambiental passa
obrigatoriamente pela tomada de consciência global da crise ambiental e exige uma cidadania
participativa, que compreende uma ação conjunta do Estado e da coletividade na proteção
ambiental”56.
A questão decisiva para esse projeto "não é a intensidade da intervenção econômica
do Estado, mas sim o primado do princípio do destino universal dos bens ambientais, o que
impõe como tarefa fundamental o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural”57.

52
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 151-152.
53
LEITE, José Rubens Morato. Loc. cit.
54
LEITE, José Rubens Morato. Op. cit. p. 153.
55
PUREZA, José Manuel. Tribunais, natureza e sociedade: o direito do ambiente em Portugal. Lisboa: Cadernos
do Centro de Estudos Judiciários, 1996. p. 28.
56
LEITE, José Rubens Morato. Op. cit. p. 153-154.
57
FENTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental de direito e o princípio da solidariedade como seu marco
jurídico-constitucional. Revista direitos fundamentais e justiça. Porto Alegre: PUCRS, n. 2, jan./mar. 2008.

86
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para que seja possível a edificação desse padrão de Estado, com justiça ambiental, é
preciso formular uma política de meio ambiente que seja ancorada por princípios formados a
partir das complexas questões advindas da crise ambiental. “Esse novo viés caracteriza-se pela
responsabilidade do homem como guardião da biosfera, independentemente de sua utilidade
para a espécie humana” 58.
Trata-se de uma responsabilidade caracterizada pela solidariedade e participação,
unindo Estado e cidadãos na missão de preservação do ambiente.59 “Assim, para se edificar e
estruturar um abstrato Estado Ambiental pressupõe-se uma democracia ambiental, amparada
em uma legislação avançada que encoraje e estimule o exercício da responsabilidade
solidária”60. A sua concretização converge “para mudanças radicais nas estruturas existentes
da sociedade organizada”61.
Naturalmente, “nem todas as escolhas são toleráveis e admissíveis pelo projeto de
sociedade [que neste caso, também é um projeto de futuro] definido pela ordem constitucional
brasileira”, cabendo ao Poder Público a tarefa de “obstar excessos na definição das escolhas
sobre como é possível e como se desenvolverá a existência da humanidade”62.
Além disso, é precisar ressaltar que a escolha desse modelo de Estado implica num
compromisso de não regredir os níveis de proteção ambiental já conquistados.63
Nesse sentido, “não obstante o seu desenvolvimento ainda embrionário na doutrina
brasileira, a garantia constitucional da proibição de retrocesso socioambiental [...] assume
importância ímpar na edificação do Estado Socioambiental de Direito”, como se afirmou
acima, “pois opera como instrumento jurídico apto a assegurar [...] níveis normativos
mínimos em termos de proteção jurídica do ambiente” e, por conseguinte, um “direito a uma

58
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 154.
59
Ibidem p. 153-154.
60
Ibidem p. 153-154.
61
Ibidem p. 159.
62
AYALA, Patryck de Araújo. Direito fundamental ao ambiente e a proibição de regresso nos níveis de proteção
ambiental na Constituição brasileira. In: SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA
DO CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE (orgs.) Princípio da proibição de retrocesso
ambiental. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 213. Disponível em:
<http://www.planetaverde.org.ar/downloads/000940398.pdf> Acesso em: 17 mar 2013.
63
MOLINARO, Carlos Alberto. Interdição da retrogradação ambiental: reflexões sobre um princípio. In:
SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO CONSUMIDOR E
FISCALIZAÇÃO E CONTROLE (orgs.) Princípio da proibição de retrocesso ambiental. p. 89. Brasília:
Senado Federal, 2012. Disponível em: < http://www.planetaverde.org.ar/downloads/000940398.pdf> Acesso
em:17 mar 2013.

87
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

existência digna, sem deixar de lado a responsabilidade para com as gerações humanas
vindouras".64
Pode-se destacar não apenas um, mas vários princípios estruturantes inseridos num
modelo estatal mais esverdeado, além da proibição de regreso já dita acima, tais como
precaução, prevenção, participação em sentido amplo, poluidor-pagador, responsabilização
etc. Esses princípios seriam responsáveis para a formação de uma base que propicie maior
equidade e justiça ambientais.65
Talvez a maior dificuldade da consecução desse projeto estatal seja concretizar uma
justiça ambiental. Com efeito, a injustiça (ou iniquidade ambiental) compreende qualquer ato
de decisão, seleção, prática administrativa ou qualquer outra atividade referente à proteção do
ambiente ou transformação do território, que implique em discriminação, onerando alguns
indivíduos, grupos ou comunidades, especialmente as minorias populacionais, em virtude de
raça, condição econômica ou localização geográfica.66 Em suma, trata-se da proibição de
discriminação ambiental.
A concepção de justiça ambiental indica também a premência de se oportunizar aos
particulares condições igualitárias de acesso aos recursos naturais, de qualidade desses
recursos e de proteção diante de eventuais efeitos negativos acarretados pela degradação
ambiental, destacando que jamais serão legítimos tratamentos que envolvam relações de
preferência ou exclusividade de determinados grupos em detrimento de outros.67
Um tipo de Estado com estas características está comprometido em garantir
condições ecológicas mínimas, isto é, um mínimo existencial ecológico, expressão material da
dignidade humana que impõe uma vedação de retrocesso, como já se afirmou. A proteção de
um nível mínimo de qualidade dos recursos naturais, cujo acesso constitui condição para o
bem-estar, é imprescindível num Estado que se propõe mais sensível ecologicamente. Há um

64
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Notas sobre a proibição de retrocesso em matéria
(socio) ambiental. In: SENADO FEDERAL. COMISSÃO DE MEIO AMBIENTE, DEFESA DO
CONSUMIDOR E FISCALIZAÇÃO E CONTROLE (orgs.) Princípio da proibição de retrocesso ambiental.
p.171-172. Brasília: Senado Federal, 2012. Disponível em:
<http://www.planetaverde.org.ar/downloads/000940398.pdf> Acesso em: 17 mar 2013.
65
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 154-155.
66
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito público do ambiente. Coimbra: Faculdade de direito de
Coimbra, 1995. p. 35.
67
AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito fundamental so meio ambiente. 1.ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 50-51.

88
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

nível mínimo de proteção considerado indispensável ao desenvolvimento digno da vida, razão


pela qual não pode ser eliminado por iniciativas estatais retrocessivas.68
Em termos pragmáticos, a realização do Estado Socioambiental “só será possível a
partir da tomada de consciência global da crise ambiental, em face das exigências, sob pena
de esgotamento irreversível dos recursos ambientais, de uma cidadania moderna, informada e
pró-ativa”69, e a ideia de justiça ambiental vem reforçar ainda mais o caráter democrático e
participativo que emana desse modelo estatal.
A aceitação de uma “visão democrática ambiental proporcionará uma vertente de
gestão participativa no Estado”, estimulando, assim, “o exercício da cidadania”, sob uma
perspectiva de que, “para discutir, impor condutas, buscar soluções e consensos que levem à
proteção ambiental, é necessária a participação dos mais diversos atores”70.
Isso implica dizer que o Estado passará a estimular “o pluralismo jurídico
comunitário participativo no viés ambiental, consubstanciado em um modelo democrático,
que privilegia a participação dos sujeitos sociais na regulamentação das instituições-chave da
sociedade”71.
Num contexto em que é necessário atentar-se para a gestão dos riscos, a tarefa de
administrar as constantes ameaças abstratas e ainda insuscetíveis de plena cognição pela
ciência ganha novos contornos, e passa a depender de formas processuais em que a
participação dos interessados e a resolução dos conflitos envole um processo de construção de
consensos entre o Estado, a sociedade civil e o empreendedor.72
Neste processo, é necessário que a tomada de decisão seja transparente, aberta e justa
para todos. Esses novos modos de governança acarretam, como consequência imediata,
padrões de regulação diferenciados – no que se refere à forma de atuação e ao exercício desse
perfil de poder –, adequados e aptos a propor “ao direito ambiental, em particular, uma
demanda crescente por instrumentos e condições capazes de assegurar eficácia na
compreensão e resolução dos novos problemas que emergem desse contexto de
modificação”73.

68
AYALA, Patryck de Araújo. Direito fundamental ao ambiente, mínimo existencial ecológico
e proibição de retrocesso na ordem constitucional brasileira. Revista dos Tribunais. v. 901, nov/2010. p. 29.
69
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 159.
70
Ibidem p. 161-162.
71
LEITE, José Rubens Morato. Loc. Cit.
72
AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito fundamental so meio ambiente. 1.ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
73
Ibidem p. 69.

89
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Além de modos mais democráticos e participativos, e de uma concepção de justiça


ambiental, o Estado Socioambiental engloba outros conceitos também basilares, que integram
seu significado: desenvolvimento sustentável, segurança ambiental e responsabilidade
compartilhada.74
Como um Estado regulador da atividade econômica, possui missão de dirigir e
ajustar as liberdades econômicas a valores e princípios constitucionais, objetivando um
desenvolvimento que seja ambientalmente sustentável, isto é, que não se reduza à estreiteza
conceitual de um crescimento meramente econômico – vez que está norteado por ideais de
sustentabilidade que em hipótese alguma se restringem a tal.75
Além disso, e considerando ainda uma responsabilidade de longa duração, a garantia
de vivência digna da espécie humana (desta e das futuras gerações) está profundamente
relacionada a um dever de aproveitamento racional dos recursos, o que conduz ao princípio
do desenvolvimento sustentável.
Sob um viés de segurança ambiental, o Estado compromete-se a resguardar os
cidadãos contra violações de sua dignidade e de seus direitos fundamentais, em razão de
riscos ambientais da sociedade contemporânea.76 Trata-se de um projeto de Estado que “faz
da incolumidade do seu meio ambiente sua tarefa, bem como o critério e a meta
procedimental de suas decisões”77.
No que se refere à responsabilidade compartilhada – um dos principais fundamentos
e caracteres desse projeto –, exerce importante função, por remodelar os papéis políticos e
jurídicos do Estado e da sociedade.
Isso envolve “uma nova postura política (e também jurídica) para a sociedade civil,
que, especialmente sob o marco normativo da solidariedade, deverá compartilhar com o
Estado (não obstante em menor intensidade) a carga de responsabilidades e deveres de tutela
do ambiente”78.

74
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português: tentativa de compreensão de
30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes;
LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 1-
11.
75
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial
(ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado socioambiental e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 21.
76
Ibidem p. 17.
77
KLOEPFER, Michael. A caminho do estado ambiental? A transformação do sistema político e econômico da
República Federal de Alemanha através da proteção ambiental especialmente desde a perspectiva da ciência
jurídica. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010. p. 43.
78
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 46.

90
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Além disso, um reconhecimento de deveres fundamentais (conexos aos direitos


fundamentais) reforça a necessidade de participação popular na vida pública, reclamando “um
mínimo de responsabilidade social no exercício da liberdade individual”, num
reconhecimento da “existência de deveres jurídicos (e não apenas morais) de respeito” a
valores constitucionais, inclusive no campo das relações entre privados, a justificar, até
mesmo e com razão, “limitações ao exercício dos direitos fundamentais”79.
Os cidadãos devem empenhar-se na busca da proteção ambiental, participando
ativamente das ações voltadas a esse fim. Igualmente, deve o Estado posicionar-se diante de
suas tarefas e cumpri-las por meio de condutas intervencionistas e implementadoras de novas
políticas públicas.80
A bem da verdade, a otimização dos postulados desse modelo estatal “não resolve os
problemas ambientais surgidos com a crise ecológica pela qual se passa”, entretanto, pode
servir como transição de uma “irresponsabilidade organizada generalizada para uma situação
em que o Estado e a sociedade passam a influenciar nas situações de risco”, a partir do
“conhecimento da verdadeira situação ambiental e se municiando de aparatos jurídicos e
institucionais capazes de fornecer a mínima segurança necessária para que se garanta
qualidade de vida sob o aspecto ambiental” 81.

2 A PROTEÇÃO DO AMBIENTE NESSE MODELO ESTATAL

Importa esclarecer o que o Estado Socioambiental de Direito não é: um sistema


totalitário ou uma ecoditadura82 (seja ecofascista ou ecossocialista), vez que não sobrepõe a
proteção do ambiente a outras realidades, tampouco a sustenta a níveis tão elevados que se
chegaria ao ponto de eliminar a proteção de outros valores.
De modo algum, pois o modelo Socioambiental de Estado visa assegurar níveis
adequados de proteção ambiental, a fim de oferecer condições mínimas para uma vida

79
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10.ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011. p. 227.
80
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 100.
81
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 152-153.
82
KLOEPFER, Michael. A caminho do estado ambiental? A transformação do sistema político e econômico da
República Federal de Alemanha através da proteção ambiental especialmente desde a perspectiva da ciência
jurídica. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010. p. 64-65.

91
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

humana que seja ao mesmo tempo digna e saudável, sem, entretanto, importar em anulação de
outras realidades.
A compreensão desse novo modelo estatal implica numa integração de realidades, o
que é incompatível com uma leitura de preferência, ou prevalência, em tese, de determinados
direitos em relação a outros.83
A proteção do ambiente, conforme proposto por esse projeto, é aquela que engloba
também a proteção de outros direitos e valores (não só o ambiental), harmonizando, assim, a
tutela de uma gama de direitos, sem, no entanto, assegurar uma tutela ambiental máxima,
excluindo ou anulando outras realidades também muitissimo importantes. Trata-se de uma
ponderação de direitos em níveis equilibrados. Naturalmente, isso implica admitir que, em
situações tais, a proteção do ambiente não prevalecerá quando confrontada com outras
realidades (como de fato o seria se a hipótese fosse de uma ecoditadura). Sob essa
perspectivda (do Estado Socioambiental), a proteção ambiental nem sempre preponderará
sobre outros valores.
Não é razoável pretender a proteção máxima do meio ambiente, proibindo-se
qualquer intervenção humana prejudicial a esse bem, pois haverá casos em que, por
razoabilidade, ele não deverá prevalecer.84 Esse projeto jurídico-político tutela
harmonicamente direitos de cunho liberal, social e ambiental, não sobrepondo, portanto, a
proteção ambiental aos demais direitos, como se fosse superior, mais importante ou mais
valiosa.
Aliás, a solução dos problemas ambientais e a concretização de um desenvolvimento
que seja sustentável passam, necessariamente, pela “correção do quadro alarmante de
desigualdade social e da falta de acesso aos direitos sociais básicos, o que, é importante
reforçar, também é causa potencializadora da degradação ambiental”85.
O ideal é que se alcance um equilíbrio entre as realidades sociais, econômicas e
ambientais.86

83
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial
(ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado socioambiental e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 19.
84
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional ambiental português: tentativa de compreensão de
30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes;
LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 7.
85
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade
humana no marco jurídico-constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.p. 27.
86
KOTZÉ, Louis J.; RENSBURG, Linda Jansen van. Uma reflexão crítica sobre as dimensões socioeconômicas
do direito sul-africano ao meio ambiente. . In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Estado socioambiental e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 136.

92
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Em suma, a tutela do ambiente, segundo uma proposta de Estado Socioambiental de


Direito, visa à proteção e à promoção tanto dos direitos sociais como dos direitos ambientais,
num projeto jurídico-político integrado, sob uma perspectiva de desenvolvimento sustentável
e de coesão entre os direitos fundamentais.87

3 OS DEVERES ESTATAIS DE PROTEÇÃO

A “crise ambiental vivenciada pela modernidade”, como abordado na Introdução


deste trabalho, “impõe ao Estado de Direito o desafio de inserir entre as suas tarefas
prioritárias a proteção do meio ambiente”88.
Se se considerar “a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, pode-se afirmar
que a proteção ambiental foi alçada para o plano de valor jurídico do Estado Socioambiental
de Direito” no texto constitucional.89
Sua missão e dever constitucional abarcam um “extenso rol exemplificativo de
deveres de proteção ambiental”, previsto no parágramo 1º do artigo 225, “sob pena de, não o
fazendo, tanto sob a ótica da sua ação quanto da sua omissão, incorrer em práticas
inconstitucionais ou antijurídicas autorizadoras da sua responsabilização por danos causados a
terceirtos – além do dano causado ao meio ambiente em si”. Compreende-se, a partir disso,
que uma “não atuação [...] ou a atuação insuficiente [...], no tocante a medidas legislativas e
administrativas voltadas ao combate às causas geradoras da degradação do ambiente, pode
ensejar [...] a intervenção e o controle judicial”90.
Os deveres de proteção do Estado fundamentam-se num “compromisso (político e
jurídico-constitucional) assumido pelos entes estatais, por meio do pacto constitucional, no
sentido de tutelar e garantir nada menos do que uma vida digna e saudável aos indivíduos”, e
isso passa, necessariamente, “pela tarefa de promover a realização dos seus direitos
fundamentais, retirando possíveis óbices colocados à sua efetivação”91, independente destes
consistirem em condutas (ou omissões) de particulares ou do próprio Poder Público.

87
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.p. 44-45.
88
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo
extrapatrimonial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 37.
89
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit.. p. 186.
90
Ibidem p. 45-46.
91
Ibidem p. 186.

93
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

4 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E A TUTELA DO


MEIO AMBIENTE

O Direito, enquanto ferramenta à disposição da Humanidade e, muito especialmente,


o Direito Constitucional e a Teoria dos Direitos Fundamentais, em razão de suas fortes
inspirações axiológicas, não podem deixar de propor respostas aos problemas e desafios
trazidos pela situação de risco existencial e degradação ambiental ora vivenciadas, a
denominada crise ambiental.
Cabe ao Direito “a missão de posicionar-se em relação a essas novas ameaças que
fragilizam e colocam em risco a ordem de valores e os princípios republicanos e do Estado
Democrático de Direito, bem como comprometem fortemente a sobrevivênca (humana e não
humana)”92.
Aliás, esse cenário de complexidade envolvendo os problemas de riscos é apontado
por Canotilho93 como um dos principais desafios à Teoria da Constituição na atualidade, de
sorte que tanto ela, quanto a Teoria dos Direitos Fundamentais e também o direito
constitucional positivo, “devem avançar e se desenvolver, acolhendo os novos conceitos e
valores ecológicos”94.
Observa-se, contemporaneamente, que existe uma vontade comum no sentido de
constitucionalizar o meio ambiente, que vem se alastrando pelas nações. Trata-se de uma
tendência irresistível95, segundo a qual opta-se por alçar o ambiente ao plano normativo
máximo no contexto interno (a Constituição), com o fim de conquistar níveis de proteção
mais eficientes – e talvez um reforço de sua exigibilidade também.
Morato Leite destaca que a construção de um Estado Sociambiental “passa,
necessariamente, pelas disposições constitucionais, pois são elas que exprimem os valores e
os postulados básicos da comunidade nas sociedades de estrutura complexa, nas quais a
legalidade representa racionalidade e objetividade”96.

92
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: constituição, direitos
fundamentais e proteção do ambiente. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 35.
93
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra:
Almedina, 2002. p. 1354.
94
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Op. cit. p. 36.
95
BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos. Direito constitucional ambiental brasileiro. In: CANOTILHO,
José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 61.
96
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 153.

94
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Pode-se afirmar que o status que uma Constituição confere ao ambiente é capaz de
demonstrar uma maior ou menor proximidade do Estado em relação aos valores desse projeto
estatal, uma vez “que o aspecto jurídico é muito importante para a configuração e para a
solidificação de estruturas efetivas, no âmbito do Estado e da sociedade, que visem à proteção
do ambiente”; e, por conseguinte, pode-se concluir que uma incorporação constitucional da
proteção do ambiente avança no sentido de “propor mudanças na forma de desenvolvimento,
com base em uma nova fórmula econômica”, propugnando “pelo uso racional e solidário do
patrimônio natural”97.
No que se refere especificamente à Constituição Brasileira de 1988, observa-se que
esta consiste em um texto extremamente aberto, “em sentido democrático ambiental”, pois
“busca a participação de todos na defesa e na preservação do meio ambiente”, de modo que
“todo problema de política ambiental só poderá ser resolvido quando reconhecida a unidade
entre cidadãos, Estado e meio ambiente, e garantidos os instrumentos de ação conjunta”98.
O reconhecimento de um elo forte, evidenciando uma integração necessária e
permanente entre Estado e sociedade civil, e sua indissolubilidade é “o que há de mais
vibrante nesse texto constitucional [...]. Sua realização envolve a ação e abstenção de ambos,
dentro de um processo comunicativo”99.
Além disso, a constitucionalização ambiental no Brasil “assevera uma unidade de
cooperação”, de forma inovadora, pedindo “um comportamento social ativo do cidadão em
face da coletividade e da necessidade de proteção do patrimônio ambiental”, exigindo-se do
Estado a “elaboração de normas contemporâneas, voltadas e concretizar essa cooperação nas
decisões da esfera ambiental”100.
Desse modo, o texto, da forma como está redigido, “obriga ao exercício de uma
cidadania participativa e com responsabilidade social ambiental. Tal responsabilidade é uma
obrigação com as gerações presentes e futuras, incluindo, obviamente, o uso racional dos bens
e a solidariedade”101.
Nota-se que a Constituição brasileira, ao constitucionalizar o ambiente e confiar sua
tutela a um modelo de responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade, manifestou
sinais de avanço no plano da proteção ambiental, rumo à construção de um projeto estatal de

97
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE,
José Rubens Morato (organizadores). Direito constitucional ambiental brasileiro. 1.ed. São Paulo: Saraiva,
2007. p. 153.
98
Ibidem p. 162.
99
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 226-227
100
LEITE, José Rubens Morato. Op. cit. p. 162-163.
101
LEITE, José Rubens Morato. Loc. cit.

95
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

vida e de futuro, que se apresenta como um constante buscar a ser, permanentemente


remodelando-se, e avançou no caminho da sensibilidade ecológica e da integração das muitas
e complexas realidades que compõem a existência humana – social, econômica, cultural,
histórica etc. –, sem fazer escolhas que resultem em anulação ou favorecimento de qualquer
uma delas.
Por todas essas razões e motivações discutidas, o modelo de Estado Socioambiental
vem ao encontro dos problemas ambientais ora vivenciados, e encontra perfeita guarida no
corpo constitucional brasileiro, indicando projeções mais otimistas, conscientes e
democráticas no que tange à tutela do meio ambiente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta é a leitura coerente que se faz do discurso de uma Constituição que se diz
compromissada com o desenvolvimento sustentável: permanente construção de um Estado
com contornos de sensibilidade ecológica, numa leitura de integração – jamais de exclusão e
conflituosidade – das múltiplas realidades e valores, entre os quais o ambiente.
Como destacado alhures, o modelo de Estado Socioambiental afigura-se como o
mais adequado para enfrentar os problemas ambientais da contemporaneidade. Por seu viés de
integração entre direitos fundamentais e de aproximação de múltiplas realidades, sem implicar
numa escolha de prevalência ou preponderância de qualquer delas, apresenta-se como o
modelo estatal de maior sensibilidade e compatível com um projeto de vida digna e com
qualidade às presentes e futuras gerações.
É preciso destacar, como já se disse acima, que a otimização dos postulados desse
projeto não resolverá de per se os problemas. Obviamente, não basta a construção de normas
ideais de proteção de um ambiente ecologicamente equilibrado, tampouco a incorporação
desses valores no seio do próprio Estado, se a sociedade não se empenhar na concretização
desses fins.
A responsabilidade compartilhada, sendo um dos principais caracteres desse tipo
estatal, deve ser sempre reforçada e estimulada, sob pena de inviabilizar a própria construção
de um futuro à humanidade.
Destaque-se, por derradeiro, e, sobretudo, a importância de uma hermenêutica
constitucional criativa, num mundo em constante transformação (inclusive ambiental), como é
o caso. Nesse cenário, um reforço axiológico dos deveres de proteção ambiental sobressai-se

96
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

como fator que tende a contribuir para uma realidade social e ambientalmente mais justa, mais
equilibrada e mais comprometida com os valores almejados pela Constituição de 1988.

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100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O DEVER DE MITIGAR A PERDA NO DANO AMBIENTAL


Quando a vítima do dano ambiental no âmbito particular tem responsabilidade pelo
resultado fatídico que poderia evitar ou atenuar se tivesse agido com boa-fé

DUTY TO MITIGATE THE LOSS OF THE ENVIRONMENTAL DAMAGE


When the victim as part of the environmental damage has particular responsibility for
the outcome that could avoid or mitigate if he had acted in good faith

Elcio Nacur Rezende


Doutor e Mestre em Direito pela PUC Minas; Professor e Coordenador do Mestrado em
“Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável” da Escola Superior Dom Helder Câmara;
Professor no Centro Universitário UNA; Procurador da Fazenda Nacional

Bruno Torquato de Oliveira Naves


Doutor e Mestre em Direito pela PUC Minas; Professor do Mestrado em “Direito Ambiental e
Desenvolvimento Sustentável” da Escola Superior Dom Helder Câmara; Professor de Direito
na PUC Minas; Pesquisador do CEBID – Centro de Estudos em Biodireito

Resumo: O presente trabalho demonstra a aplicabilidade do “Duty to Mitigate the Loss” nas
demandas que tenham por objeto a perquirição da responsabilidade civil ambiental promovida
de forma individualizada (dano individual ambiental ou dano reflexo). O texto apresenta a
tese de que se uma pessoa poderia ter evitado ou atenuado um dano ambiental sofrido por ela,
mas, optou, voluntariamente, em se omitir, deverá ter seu crédito mitigado. Tal consequência
liga-se diretamente à concepção contemporânea da Ciência do Direito que pretende
reestabelecer o conteúdo ético do Direito. A boa-fé objetiva, como princípio jurídico, é capaz
não só de subsidiar a fundamentação da tese do “Duty to Mitigate the Loss”, ao estabelecer
um padrão social de comportamento, mas também de revigorar esse fundamento ético do
Direito.

Palavras-Chave: Dever de mitigar a perda; Dano ambiental; Ética; Responsabilidade civil.

101
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Abstract: The aim of this paper is to demonstrate the applicability of the Duty to Mitigate the
Loss on the demands that search the liability at an single way (Single or Reflex
Environmental damage). Thereby, the purpose of this text presents the hypothesis that a
person could have avoided or mitigated an environmental damage suffered by him, but,
voluntarily, he chose a default behavior, as a consequence he must have his credit mitigated.
This result is directly linked to the contemporary perspective of Jurisprudence which aims to
restore the ethical content of Law. The good faith, as a legal principle, is able not only to
subsidize confirm the thesis of the "Duty to Mitigate the Loss", to establish a pattern of social
behavior, but also to reinvigorate this ethical foundation of law.

Keywords: Duty to Mitigate de Loss; Environmental damage; Ethics; Liability.

1. INTRODUÇÃO

Todos que estudam o Direito Ambiental têm, por óbvio e justificadamente, uma
preocupação significativa na busca dos responsáveis pela deterioração ambiental, para, com
razão, imputar àqueles que causaram o dano uma justa responsabilidade, e por consequência,
exigir que o meio ambiente retorne ao estado anterior.
Os princípios da precaução e prevenção, importantíssimos em várias searas do
Direito Ambiental, possuem o papel de conscientizar e induzir os potencialmente
degradadores a evitar o dano ao meio ambiente que é, inexoravelmente, muito mais
importante que a condenação na reparação do prejuízo sofrido, pois esta nem sempre será,
faticamente, possível.
Sabemos, todavia, que hodierna e odiosamente, os danos ambientais são presentes na
nossa sociedade e, assim, a imputação de responsabilidade ao degradador é necessária, não
somente com a intenção da tentativa de recuperar o dano, mas também para puni-lo
(mormente da esfera penal) e para que tenha um caráter inibitório em relação a outros
degradadores.
Esse estudo subsume-se acerca da responsabilidade civil do degradador, não
abarcando, portanto, a responsabilidade penal e administrativa.
A questão fulcral que trazemos refere-se ao estudo do comportamento da vítima do
dano ambiental, vale dizer, não estamos a tratar do dano ambiental comum, aquele que o

102
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

prejuízo é suportado por pessoas não identificadas, mas, sim, o dano ambiental em que a
vítima é personificada individualmente e facilmente identificada.
Ressalte-se que o aqui expendido não é aplicável ao dano ao meio ambiente mais
comum, isto é, aquele de natureza difusa, em que não se sabe ao certo as pessoas que
sofreram ou sofrerão com a deterioração, tipicamente tutelado pelas ações coletivas (ação
civil pública, ação popular etc.).
O “Duty to Mitigate the Loss”, há muito estudado pelo Direito Civil, consiste, em
breves palavras, no dever de se mitigar o dano sofrido pela vítima (futuro credor), uma vez
que esta, de alguma forma, não evitou ou atenuou o resultado danoso, mesmo podendo fazê-
lo, agindo, portanto sem boa-fé.
No Direito Ambiental, entendemos que tal análise deve ser feita, naturalmente, com
cautela, pois, como sabemos, os danos são comumente maiores.
Por outro lado, com a agradável observação que o meio ambiente vem sendo cada
vez mais objeto de atenção jurídica em todo o mundo, o estudo “Duty to Mitigate the Loss”
justifica-se, sobretudo, quando o dano é exclusivo de uma pessoa física que, lamentavelmente,
distanciando-se de um comportamento ético, poderia, mas optou por não atenuar ou evitar o
dano.

2. “DUTY TO MITIGATE THE LOSS”

2.1. Ética e Direito nas Relações Privadas

Miguel Reale sustentava que três princípios sustentam as relações humanas frente o
Direito, quais sejam: a operabilidade, socialidade e a eticidade. Esses princípios proporcionam
que o tráfego das relações jurídicas ocorram com observância a conceitos jusfilosóficos,
próprios da Ética, como o bem estar da sociedade como um todo, a diversificação das
realidades humanas em um país continental e, sobretudo, a boa-fé.
Por operabildade, entende-se como a necessidade do magistrado estar atento às
enormes diferenças existentes nas relações, graças à complexidade do ser humano e da
sociedade em que se insere. Para tanto, demonstra a importância das denominadas cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que são normas abertas, mais flexíveis e que
exigem do aplicador, mormente o magistrado, esforço exegético, para compreensão do fato à
luz da norma e, consequentemente, proporcionar solução mais adequada ao caso concreto,
homenageando, assim, suas particularidades.

103
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O princípio da socialidade, de maneira simples, pode ser explicado como a


distanciação e crítica do pensamento egoístico das relações privadas, demonstrando que o ser
humano insere-se em sociedade e, portanto, seu comportamento, ainda que em uma relação
particular, tem repercussão no grupo social que o cerca. Logo, caso sua conduta seja
prejudicial a este, a autonomia privada, pode ser restringida.
A eticidade, objeto central no presente estudo, tem por mote a boa-fé, como preceito
jurídico fundamental nas relações jurídicas, que, insofismavelmente, devem ser estruturadas
em conformidade com padrões de comportamento de lealdade e transparência, afastando a
tutela daqueles que, embora eventualmente ajam ontologicamente em restrita observância ao
Direito, distanciam-se do padrão social de conduta ou, até mesmo, possuem a intenção de
prejudicar outrem.
Quanto à operabilidade, Reale afirma em seu artigo denominado “Visão Geral do
Projeto de Código Civil”:

[...] toda vez que tivemos de examinar uma norma jurídica, e havia divergência de
caráter teórico sobre a natureza dessa norma ou sobre a convivência de ser
enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz
que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser
executado; Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora
– é como chama que não aquece, luz que não ilumina, O Direito é feito para ser
realizado; é para ser operado... Isto posto, o princípio da operabilidade leva,
também, a redigir certas normas jurídicas, que são normas abertas, e não normas
cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o
conteúdo através daquilo que denomino "estrutura hermenêutica". (REALE, 2013)

A preocupação com a socialidade ou o “sentido social” da norma é exposta por Reale


como um dos objetivos na elaboração do atual Código Civil, distanciando-se do
individualismo característico do primeiro Código. Estamos de pleno acordo com Reale em
afirmar que a pessoa humana deve ser o centro de toda regulação normativa. (REALE, 2013)
Por fim, Reale explica que o “rigorismo formal” típico das codificações oitocentistas
e das teorias positivistas colocam em segundo plano e justiça e a boa-fé.

Esse espírito dogmático-formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de


Miranda a qualificar a boa-fé e a eqüidade como "abecenrragens jurídicas",
entendendo ele que, no Direito Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e
cientificamente, através de normas expressas, sem apelo a princípios considerados
metajurídicos. Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo
preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita
chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-
se a solução mais justa ou equitativa... Tal reconhecimento vem estabelecer uma
função mais criadora por parte da Justiça em consonância com o princípio de
eticidade, cujo fulcro fundamental é o valor da pessoa humana como fonte de todos
os valores. (REALE, 2013)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Independente da concepção de princípios adotada pela Ciência do Direito – se mais


axiológica ou deontológica – certo é que a busca por uma fundamentação ética do Direito tem
sido o caminho a se trilhar. O Positivismo Jurídico puro acabou expor suas próprias mazelas e
por distanciar-se da justiça; agora, tentamos reatar os laços entre Ética e Direito.

2.2. A Boa-fé nas Relações Sociais e a Contradição Consigo Mesmo: A Filosofia Pura na
Construção do “Duty to Mitigate the Loss”

A boa-fé, sem dúvida, é elemento essencial nas relações sociais pautadas na


probidade, retidão e honestidade com seu semelhante, em que a consciência do indivíduo e a
regração social sobrelevam-se.
Segundo Immanuel Kant (2004), o conteúdo moral da boa-fé perpassa pela verdade e
pela não contradição consigo mesmo, na medida em que o imperativo hipotético (não
categórico) exige do indivíduo um comportamento coerente.
Por outro lado, Kant sustenta que a Ética não é um preceito universal, na medida em
que é algo psíquico, vale dizer, interno à condição humana, portanto para a filosofia kantiana
só é admissível a denominada boa-fé subjetiva. Todavia, a Moral, por sua vez é um elemento
universal o que a faz estar intimamente ligada à boa-fé objetiva. (HARA, 2011)
Conclui-se, dessa breve anotação kantiana, que a proibição de um comportamento
que se contradiz ao aspecto interno honesto, isto é, se o agir é dissociado do pensamento
probo, a boa-fé afasta-se do indivíduo.
Exemplificando, se eu tenho como valor a preservação ambiental, não posso agir,
v.g., desperdiçando água em um longo banho com escopo relaxante, sob pena de estar
configurada a má-fé. Ou ainda, não posso educar um filho ensinando-o a respeitar o
patrimônio alheio se sou capaz de furtar um chocolate em uma loja para presenteá-lo.
Fichte, bem ensina onde queremos chegar:

O homem deve continuamente estar de acordo consigo mesmo; jamais deve


contradizer-se. A saber, o Eu puro nunca pode estar em contradição consigo mesmo,
pois não há nele diferença alguma, mas é sempre um e o mesmo. O Eu empírico,
porém, determinado e determinável pelas coisas exteriores, pode contradizer-se – e
sempre que se contradiz é um sinal seguro de que ele não é determinado segundo a
forma do Eu puro, por si mesmo, mas mediante as coisas exteriores. E não deve ser
assim; pois o homem é o seu próprio fim; deve determinar-se a si mesmo e nunca se
deixar determinar por algo estranho; deve ser o que é, porque o quer ser e o deve
querer ser. O Eu empírico deve dispor-se de modo como eternamente poderia estar
disposto. (FICHTE, 1999, p. 25)

105
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Hegel, corroborando, enfatiza que se uma pessoa proba age em desconformidade


com o seu pensar, assume as consequências da sua atitude e, portanto, a sanção jurídica é
lídima, na medida em que ele próprio reconheceu como devido, honrado, pois, na sua
condição se ser racional. (RADBRUCH, 2013, p. 29)
Portanto, deve ser afastado qualquer comportamento contraditório entre o querer e o
fazer, pois, se um homem agir sob tal preceito, eticamente atuará em má-fé.
O Direito Civil coloca o comportamento contraditório – venire contra factum
proprium – dentre as vedações ínsitas à boa-fé objetiva, isto é, àquele padrão de agir
socialmente recomendado.

2.3. “Duty to Mitigate the Loss” (Dever de Mitigar o Prejuízo)

A partir do estudo filosófico narrado nos itens anteriores, construiu-se uma teoria que
determina que uma vítima de determinado dano arcaria com uma sanção, qual seja: a redução
da reparação do prejuízo que sofreu.
Justifica-se a não reparação integral da vítima individualizada (repita-se que esta
teoria não se aplica ao dano difuso) pela ausência de comportamento da vítima que poderia
evitar ou atenuar o dano que sofreu.
Afinal, a boa-fé além de ser um conceito jusfilosófico foi encampado pelo
ordenamento jurídico, como nos artigos 113 e 422 do Código Civil, que dispõem que os
negócios devem ser interpretados conforme a boa-fé e que os contratantes são obrigados a
avençar conforme a probidade e boa-fé.
Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal, na primeira Jornada de Direito Civil,
emitiu os Enunciados 25, 26 e 271, em que estabelece que é dever do magistrado exercer o
papel de hermeneuta, perquirindo se as partes atuam segundo o padrão ético recomendado
para aquele negócio.
Nesse diapasão surge a Teoria do “Duty to Mitigate the Loss”, ou seja, a mitigação
do prejuízo da vítima (futuro credor).

1
Enunciado 25 - Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação pelo julgador do princípio da
boa-fé nas fases pré-contratual e pós-contratual.
Enunciado 26 - Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e,
quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de
comportamento leal dos contratantes.
Enunciado 27 - Art. 422: na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do
Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos.

106
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Com efeito, se o credor de uma obrigação poderia ter agido para evitar o
agravamento da situação do devedor ou até mesmo a inexistência da obrigação do “solvens”,
mas, por ausência de boa-fé, optou por suportar o prejuízo na expectativa de seu
ressarcimento (ou uma indenização maior), deverá ser sancionado por ausência de probidade.
Nesse sentido o Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil do CJF: “Art. 422: O
princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.”
A origem do instituto reside no Direito Contratual, a partir do artigo 77 da
Convenção de Viena de 1980, que estabeleceu:

A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando
em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o
prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte
faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da
perda que poderia ter sido diminuída.

Vários exemplos demonstram a importante aplicabilidade do tema na seara


contratual, a saber:
a) Uma empresa adquiriu uma máquina que apresentou má operabilidade, todavia,
em vez de procurar rapidamente o conserto, permitiu que o equipamento parasse de funcionar
para exigir uma indenização; (RIO GRANDE DO SUL, TJ, 5ª Câm. Cív., AC 70025609579,
Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 20.05.2009, DJ 27.05.2009)
b) Alguns arrendatários de terras pactuaram que deveriam os arrendantes por ocasião
da assinatura do contrato providenciar o corte de árvores. Todavia, os arrendantes
permaneceram inertes com seu dever e, por outro lado, os arrendatários continuaram na posse
do imóvel sem, contudo, provocar o corte das árvores por parte daqueles. Com isso, não
puderam invocar a exceção do contrato não cumprido para evitar a mora; (BRASIL, STJ,
Recurso Especial n. 758.518 - PR (2005/0096775-4), Rel. Min. Vasco Della Giustina)
c) Um locador que se aproveita de uma cláusula penal que lhe favorece, retarda o
ajuizamento da ação de despejo contra o locatário inadimplente auferindo enriquecimento sem
causa;
d) Uma empresa produtora de semente de uvas, mesmo ciente que o produto que
havia adquirido para evitar o ressecamento das cepas era, em verdade, prejudicial, continuou a
utilizá-la na certeza de uma vindoura indenização; (ALEMANHA, Bundesgerichtshof, Clout
case 318, in A/CN.9/SER.C/ABSTRACTS830; Number: VIIIZR 121/98)
e) Uma instituição financeira de crédito que opta por não notificar o devedor
inadimplente para auferir lucro em razão de juros acima dos praticados no mercado;

107
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

f) Vários outros casos concretos foram julgados no Brasil, como, por exemplo no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul2 e no Tribunal de Justiça de São Paulo3, conforme
citado por Daniel Pires Novais Dias (2012).
Não obstante ter sido no Direito Contratual a origem do “Duty to Mitigate the Loss”,
existe também enorme importância na seara da Responsabilidade Civil.
O Código Civil, em sua literalidade, cuidou da definição de ato ilícito nos artigos 186
e 187. No primeiro dispositivo, prescreveu que os elementos dolo ou culpa (negligência,
imprudência ou imperícia) são requisitos para a constatação de uma ação ou omissão ilícita e,
uma vez suportado um dano por outrem, aquele deverá repará-lo. O artigo 187, dispondo
sobre o abuso de direito, estipulou que se uma pessoa, embora exercendo um direito, atua em
desconformidade com a boa-fé, bons costumes ou sem finalidade econômica/social, também
age ilicitamente.4
Concluindo a análise do texto legal, diante da constatação da ocorrência de uma ação
ou omissão dolosa ou culposa, quer pela definição clássica quer pelo abuso de direito, aquele
que perpetrou deverá reparar o prejuízo sofrido por outrem, nos temos do artigo 9275.
Exemplo didático pode ser encontrado em uma situação em que dois carros se
chocam no trânsito. O condutor do veículo inocente observando uma pequena chama e
podendo perfeitamente apagá-la com seu extintor, opta por deixar o fogo alastrar-se
intencionando receber uma indenização equivalente a um carro novo. Propõe-se, nessa
2
12ª Câm. Cív., AC 7002.813.8113, Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 29.01.2009; 5ª Câm. Cív., AC
70025267683, Rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 18.02.2009; 5ª Câm. Cív., AC 70025609579, Rel. Des.
Umberto Guaspari Sudbrack, j. 20.05.2009; 6ª Câm. Cív., AC 70028036465, Rel. Desa. Liége Puricelli Pires, j.
09.04.2009; 19ª Câm. Cív., AC 70019328889, Des. Rel. José Francisco Pellegrini, j. 13.05.2009; 9ª Câm. Cív.,
AC 70022586994, Des. Rel. Guinther Spode, j. 01.04.2008; 6ª Câm. Cív., AC 70029093150, Rel.Desa. Liége
Puricelli Pires, j. 17.09.2009; 6ª Câm. Cív., AC 70029906492, Rel. Desa. Liége Puricelli Pires, j. 27.08.2009; 10ª
Grupo Cível, EI 70024988883, Rel. Des. Glênio José Wasserstein Hekman, j. 22.08.2008; 18ª Câm. Cív., AC
70029284296, Rel. Des. Pedro Celso Dal Prá, j. 25.06.2009.
3
34ª Câm. de Dir. Priv., AC com revisão 1036109-0/8, Rel. Desa. Rosa Maria de Andrade Nery, j. 27.06.2007, r.
06.07.2007; 31ª Câm. Cív. AI 1288546- 0/2, Rel. Des. Adilson de Araújo, j. 25.08.2009; 16ª Câm. de Dir. Priv.,
AC 1029972-4, Rel. Des. Candido Alem, j. 05.09.2006; 16ª Câm. de Dir. Priv., AC 1.293.652-8, Rel. Des.
Windor Santos, j. 19.02.2008; 23ª Câm. de Dir. Priv., AC 7.233.601-9, Rel. Des. J. B. Franco de Godoy, j.
29.04.2009; 18ª Câm. de Dir. Priv., AC 7.321.841-4, Rel. Des. Rubens Cury, j. 10.03.2009; 16ª Câm de Dir.
Priv., AC 7199559-0, Rel. Des. Candido Alem, j. 17.06.2009; 16ª Câm de Dir. Priv., AC 0891290-1, Rel. Des.
Candido Alem, j. 19.05.2009; 16ª Câm. de Dir. Priv., AC 096785lT, Rel. Des. Candido Alem, j. 02.06.2009; 31ª
Câm. de Dir. Priv., AC com revisão 1242899- 0/5, Rel. Des. Francisco Casconi, j. 16.06.2009; 35ª Câm. de Dir.
Priv., AC com revisão 1196110- 0/1, Rel. Des. Clovis Castelo, j. 16.03.2009; 11ª Câm. de Dir. Priv., AC
7355554-1, Rel. Des. Rangel Desinano, j. 18.06.2009; 16ª Câm. de Dir. Priv., AC 1.170.013-1, Rel. Des.
Candido Alem, j. 03.07.2007; 31ª Câm. de Dir. Priv., AC com revisão 978450- 0/0, Rel. Des. Willian Campos, j.
19.12.2006; 31ª Câm. de Dir. Priv., AR 992.09.04 9036-2, j. 01.12.2009.
4
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
5
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

108
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

situação, que a vítima que deixou de atuar para minimizar o dano receba, tão somente, o valor
que equivalha ao dano efetivamente provocado inicialmente.
Sabemos que em uma ação de indenização por responsabilidade aquiliana, incumbirá
ao autor, em regra, o ônus da prova do fato constitutivo do direito, que corresponderá à
demonstração de que o réu cometeu um ato ilícito, que o autor suportou um dano e que este é
consequência daquele, o que se denomina nexo causal.
Para que se possa aplicar o “Duty” é necessário que o juiz verifique que a vítima,
autora da ação indenizatória, tenha agido com dolo ou culpa na medida em que vislumbrou
que sua omissão acarretaria um ganho para ela, vantagem essa que, se tivesse agido com boa-
fé, seria evitada.
Figura-se na narrativa do parágrafo anterior o que os civilistas denominam de culpa
concorrente da vítima, acarretando a repartição dos danos apurados. Vale dizer, se autor e réu
foram culpados pela causação do resultado, ambos devem arcar com as consequências
indenizatórias. Este preceito foi adotado no Direito Civil conforme disposto no artigo 945 do
Código Civil6.
Conforme Dias (2012), Grécia, Itália, Alemanha, Suíça e Portugal são países que
legislaram no sentido exposto no parágrafo anterior:

Código Civil alemão: “§ 254 (Participação na culpa). Se, na produção do dano,


concorrer uma culpa do prejudicado, dependerá a obrigação à indenização, bem
como o alcance da indenização a prestar, das circunstâncias, particularmente do fato
de que até que ponto o dano foi, preponderantemente, por uma ou outra parte,
causado. Aplica-se isto, mesmo quando a culpa do prejudicado se limita à
circunstância de que negligenciou ele de chamar a atenção do devedor sobre o
perigo de um dano inteiramente excepcional que o devedor não conhecia nem era
obrigado a conhecer, ou de que negligenciou êle de afastar ou de minorar o dano
(grifo nosso) [...].” (DINIZ, Souza, op. cit., p. 57.)
Código Civil grego: “Art. 300. Se aquele que sofreu o dano, contribuiu
culposamente para a sua produção ou para sua extensão, o tribunal pode não
conceder a indenização ou diminuí-la. O mesmo acontece quando quem sofreu o
dano omitiu-se em impedi-lo ou em limitar a sua extensão (grifo nosso), ou se não
tiver chamado a atenção do devedor sobre o perigo de um dano extraordinariamente
elevado que o devedor não conhecia nem deveria conhecer. [...].”. (tradução nossa)
(ALCOZ, María Medina. La culpa de la víctima en la producción del daño
extracontratual. Madrid: Dykinson, 2003, p. 157.)
Código Civil italiano: Art. 1.227. Concurso de fato culposo do credor. Se o fato
culposo do credor houver concorrido para causar o dano, o ressarcimento é
diminuído segundo a gravidade da culpa e a magnitude das consequências que lhe
são derivadas. O ressarcimento não é devido pelos danos que o credor poderia ter
evitado usando a diligência ordinária (grifo nosso). (tradução nossa)
Código Federal Suíço das Obrigações: “Art. 44 (IV. Motivos de redução) (1) Se o
lesado concordou com o ato danoso, ou se as circunstâncias, pelas quais deve ele
responder, atuaram para criar ou aumentar o dano ou agravaram (grifo nosso), de

6
Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-
se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

109
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

outro modo, a situação do obrigado à indenização, poderá o juiz minorar a obrigação


de indenização ou, inteiramente, não a reconhecer.” (DINIZ, Souza. Código civil
suíço e código federal suíço das obrigações. Rio de Janeiro: Record Editora, 1961,
p. 164).
Código Civil português: Artigo 570º (Culpa do lesado) 1. Quando um facto culposo
do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos (grifos
nossos), cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as
partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser
totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Vários doutrinadores – como Cavalieri Filho (2009) e Brandão Proença (1997) –


optam por dispensar a aplicabilidade do “Duty” aduzindo que a culpa concorrente da vítima é
suficiente para que se mitigue a obrigação da reparação integral7. Todavia, não concordamos.
Constata-se na leitura do artigo 945 e da doutrina, que para a configuração de culpa
concorrente é necessário que a vítima tenha agido em desconformidade com o direito em sua
conduta, ressalte-se, a própria ação ou omissão do autor da ação de indenização provocou o
resultado danoso suportado por ela, mas a mesma foi culpada, pois agiu ilicitamente.
Exemplifica-se como uma situação rotineira em que um motociclista sem capacete
(ato ilícito) é vítima de um motorista que muda de faixa sem dar seta (também um ato ilícito),
vindo a sofrer uma lesão no tórax e na cabeça. Fica sobejamente comprovado que a lesão no
crânio teria sido, inexoravelmente, evitada caso o motociclista cumprisse a norma que
determina o uso da proteção cranial. Realmente, nesse caso, havia dupla ilicitude (réu e autor)
e, portanto, culpa concorrente.
Sustentamos, porém, que a culpa concorrente não substitui o “Duty to Mitigate the
loss”.
Os fundamentos de nossa assertiva são, mormente: os deveres anexos de uma relação
jurídica e a vedação do abuso de direito, que não são intrínsecos à culpa concorrente.
Resumidamente, o dever de cooperação ou solidariedade (um dos denominados
deveres anexos) bem fundamenta a obrigação genérica de todos que atuam com boa-fé devem
ter para evitar um evento danoso. Karl Larenz explica:

El deber de hacer todo lo exigible y posible para eludir el daño que amenaza (o la
agravación del ya producido) y de disminuirlo cuando ya haya tenido lugar, es un
deber de conducta que obliga al perjudicado frente al obligado a indemnizar y que,
por otra parte, ha de fundarse en la ‘buena fe’ y estar delimitado por ésta. (1959, p.
223)

7
Como sustenta Pothier (2001) quando narra o caso de um comprador de vaca doente que contamina todo o
rebanho e, por consequência, em razão da ausência de bois para puxar o arado, o vendedor deverá indenizar a
vaca e o rebanho, mas não os lucros não advindos pela ausência da produção agrícola, pois estes não são
consequências diretas da vaca doente.

110
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O abuso de direito, já explicado acima quando tratamos da lei civil, dispõe que se
uma pessoa é titular de um direito e, portanto pode exercê-lo nada estará ocorrendo de ilícito.
Todavia, se o exercício do direito não for propulsionado pelo interesse econômico, social,
bem como, não se coadunar com comportamentos costumeiramente aceitos como positivos ou
for animado pela má-fé, a ilicitude se concretizará.8
Com efeito, o Direito não nos impõe, em hermenêutica restritiva, que atuemos para
minimizar um prejuízo causado por outrem. Todavia, se a omissão for fundada na malícia de
obter vantagem indevida, estar-se-ia verificada a má-fé, um péssimo costume que é
inadmissível entre pessoas leais, restando, pois, enquadrá-lo como um abuso inadmitido
juridicamente.
O “venire contra factum proprium”, ou seja, a proibição do comportamento
contraditório, comumente estudado em conjunto com o abuso de direito, reforça a tese
expendida. Afinal, se uma pessoa é vítima, significa dizer que ela não desejava suportar o
dano, bem como, não foi em hipótese alguma sua causadora (quer por ação ou omissão). No
“Duty” é justamente isso que não se vislumbra, pois a pessoa que sofreu o dano poderia ter
evitado ou ao menos atenuá-lo.

2.4. “Duty to Mitigate the Loss of the Environmental Damage” (Dever de Mitigar o
Prejuízo no Dano Ambiental)

Passemos, pois, a tratar da questão fulcral desse estudo, ou seja, a aplicabilidade do


“Duty to Mitigate the Loss” na responsabilidade civil por danos ao meio ambiente.
Com efeito, a responsabilidade civil ambiental possui nuances próprias que a
diferenciam da responsabilidade civil comum.
A primeira e mais notável é sua objetivação, ou seja, não se discute a imputação de
culpa quando se constata o dano. Vale dizer, para que uma pessoa seja condenada a indenizar
por ter causado um dano ao meio ambiente não se faz necessário que ela tenha agido com
negligência, imprudência, imperícia ou tampouco voluntariamente, basta, portanto, que
demonstre a sua ação ou omissão, o nexo causal e a deterioração ambiental. Nesse sentido o
artigo 14, parágrafo primeiro, da Lei n. 6.938/81 que dispõe:

8
Nesse sentido o Enunciado nº 37 do CJF: “Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito
independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”

111
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos
causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério
Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de
responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

Ademais, o dano ambiental é, essencialmente, difuso, ou seja, não existe um titular


identificado, pois, obviamente, todos que de alguma forma sofrem com um meio ambiente
prejudicado são vítimas e, portanto, podem pleitear a recuperação. Nesse sentido, Benjamin
afirma que:

[...] o dano ambiental, via de regra, é de natureza difusa, atingindo toda uma
coletividade de pessoas [...] o regime jurídico da responsabilidade civil aquiliana
exigia a prova da culpa (imprudência, negligência ou imperícia) do poluidor, para,
só então, aplicar o princípio do poluidor-pagador. Apenas o dano culposamente
causado era passível de indenização. (1993, p. 234)

Todavia, nesse trabalho vamos afastar a natureza difusa e iremos atentar tão somente
ao dano ambiental individual (“não-difuso”), embora raro.
Assim, ainda que a perquirição de culpa daquele causou o dano ambiental seja
despicienda, vamos estudar o comportamento da vítima.
Ressalte-se, portanto, que o elemento subjetivo se fará presente neste estudo, não
para avaliarmos a psique do autor do dano, mas sim da vítima. Importante, portanto,
entendermos bem o que seja culpa. Registre-se Kelsen:

O momento a que chamamos “culpa” é uma parte integrante específica do ato ilícito:
consiste numa determinada relação positiva entre o comportamento (atitude) íntimo,
anímico, do delinqüente e o evento produzido ou não impedido através da sua
conduta externa; consiste na sua previsão ou na sua intenção, àquele evento dirigida.
(1999, p. 134)

A tese que ora sustentamos, como já dito algumas vezes nesse texto, só é aplicável ao
dano ambiental onde a vítima é (são) pessoa(s) identificada(s), pois nessa hipótese, pouco
comum, ainda que não seja necessário a demonstração de culpa ou dolo do infrator para que
alguém seja responsabilizado pelo dano e, portanto, deva reparar o prejuízo que causou,
pensamos que devemos analisar o comportamento subjetivo da vítima.
Assim, quando uma pessoa mover uma ação de indenização contra um provocador de
dano ambiental sofrido especificadamente pelo demandante, não se pesquisará se houve culpa
do ofensor, mas, como iremos demonstrar, poderá, em homenagem ao “Duty to Mitigate the
Loss” ocorrer a mitigação do prejuízo graças a um comportamento da vítima.

112
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Imaginemos, pois, uma situação hipotética: determinado fazendeiro, plantador de


eucalipto, percebe um incêndio provocado por seu vizinho vindo na direção de sua plantação,
onde um riacho também se situa. Em vez de combater o incêndio iminente, opta por nada
fazer, pois, sabendo que sua cultura padece de doença provocada por formigas, prefere
suportar a perda total dos pés de eucalipto, bem como, danos ao pequeno riacho que ali se
situa, para, futuramente, alegar um enorme dano ambiental consistente em danos emergentes,
lucros cessantes, ressecamento do riacho, erosão, dentre outras questões ambientais para fazer
jus a uma indenização vultosa a ser paga pelo rico (e infrator) vizinho.
Ora, se todos somos responsáveis pela preservação ambiental nos termos do artigo
225 da Constituição Federal9 e se a boa-fé é, inexoravelmente, elemento da ética, como
admitir que a vítima narrada no parágrafo anterior se enriqueça em detrimento do meio
ambiente que se insere, bem como as futuras gerações?
Nesse diapasão surge a tese que sustenta que a vítima não receberá o mesmo valor se
tivesse agido para evitar ou minimizar o dano sofrido, o que a doutrina convencionou em
chamar de “Duty to Mitigate the Loss”.
Se no que tange aos bens patrimoniais individuais essa teoria já possui significativa
aceitação dentro do Direito Civil, com muito mais razão o comportamento da vítima deve ser
analisado no Direito Ambiental, pois essa, sobretudo, deverá envidar todos os esforços para
que o resultado danoso ambiental não ocorra, pois o interesse ainda que também seja
individualizado, muito provavelmente prejudicará outras pessoas (danos transindividuais).
Outro exemplo hipotético que podemos explicitar: suponhamos que um grupo de
pescadores teve ciência que determinada indústria estava despejando resíduos poluentes em
uma lagoa onde exerciam, profissionalmente, a sua atividade pesqueira. Observaram que
aqueles resíduos provocariam em médio prazo a exterminação completa dos peixes,
provocando, assim, um impedimento no exercício da sua única fonte de renda. Desta forma,
se reuniram na sede da Associação dos Pescadores e, de comum acordo, optaram por nada
fazer, com a manifesta intenção de, uma vez constatado o extermínio das espécies e a
impossibilidade da pesca, exigir da indústria uma vultosa indenização, bem como, uma
pensão perpétua por terem sido impedidos de exercer a sua profissão pesqueira.
Ora, mais uma vez constatamos a patente má-fé por parte das vítimas (pescadores)
que, certamente, deverá ser levada em conta por ocasião da fixação do “quantum debeatur”.

9
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

113
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Embora o caso acima seja hipotético, o Supremo Tribunal Federal, no Agravo de


Instrumento 656320, já julgou situação fática semelhante, assim ementando10:

É que, conforme demonstrado, os autores, à época dos fatos, exerciam a função de


pescador, trabalho esse que era a base de suas economias domésticas e, como
corolário lógico, uma das bases de sua estrutura familiar. Assim, sem a possibilidade
dos autores retirarem o sustento de sua família de seu trabalho, já que simplesmente
não podiam trabalhar, a frustração, o desamparo e a sensação de impotência são
sentimentos que nascem do dano ambiental gerados pelos réus. A questão se
aquilata ao observarmos que o Rio Pomba era mais que um local de trabalho para os
autores, mas também era um local de lazer da comunidade, situação essa que gera
em todos, um sentimento de profunda tristeza e dor d''alma. Nesse sentido, não deve
prevalecer a alegação dos réus de que uma eventual condenação aqui poderia
inviabilizar o cumprimento do TAC que teriam pactuado com o Ministério Público.
É que, aberraria ao bom senso acreditar que uma obrigação assumida por um dos
réus ilidiria toda sua responsabilidade, bem como a responsabilidade dos outros réus
que causaram os danos ao meio ambiente, responsabilidade essa que vale sublinhar,
é de cunho objetiva.

Um terceiro exemplo hipotético poderia ocorrer no tocante à poluição sonora, onde


um determinado morador, apreciador de “rock and roll” em alto volume, tem como vizinho
uma casa de shows especializada nesse estilo musical. Durante anos o morador nunca se
incomodou com a poluição sonora e, mesmo ciente que sua audição seria prejudicada com o
passar do tempo, optou por permanecer inerte. Constatado anos depois a redução da
capacidade auditiva, utiliza-se da responsabilidade civil ambiental para ter êxito na demanda
indenizatória.

10
Na primeira instância (Juizado Especial do Rio de Janeiro) a decisão teve a seguinte ementa:
"Indenização - Derramamento de óleo cru na Baía de Guanabara - Desastre ecológico-ambiental que atinge ilha
em que moram os autores - (...) - Danos causados que não são totalmente reparados nem contidos pelas medidas
técnicas adotadas pela ré, vez que estas estancam os efeitos nocivos do impacto ambiental na forma de ações
emergenciais, mas não têm o condão de eliminar todas as conseqüências ambientais e sócio-econômicas danosas
decorrentes do fato a nível futuro. Responsabilidade civil - Empresa-ré que é fornecedora de serviço na forma do
art. 3º Codecon - Autor que se enquadra na qualificação de consumidor por equiparação (vítima do evento) Art.
17 Codecon - Princípio da dimensão coletiva das relações de consumo a ser considerado no caso - Dever de
reparação pelos danos causados - Arts. 12 caput §1º c.c 6º VI Lei 8078/90 - Empresa-ré que na esfera
administrativa se compromete a pagar aos autores R$ 500,00 mensais ao longo de dez meses a título de
indenização por danos materiais, e que efetua tão somente o primeiro pagamento decidindo unilateralmente
cancelar os restantes - Autor que ajuíza ação em sede de JEC pleiteando o pagamento pela ré das nove parcelas
pendentes e indenização por dano moral em face da conduta desrespeitosa da empresa - Ré que em peças
defensivas enumera e exemplifica medidas técnico-administrativas e sociais implementadas logo após o evento
danoso para minimização de suas conseqüências, mas que não comprova o controle e a erradicação dos males e
prejuízos oriundos do mesmo - Danos materiais existentes e inclusive estimados pela própria empresa-ré –
Danos morais ocorrentes em face da falta ao dever de cuidado e cooperação com os interesses do cidadão e da
insegurança a ele imposta bem como a todo o meio ambiente. Preliminares arguidas pela ré em peça
contestatória acertada e fundamentadamente rechaçadas pelo Juízo a quo - Sentença de procedência total do
pedido que condena a ré a pagar aos autores R$ 4.500,00 (quatro mil e quinhentos reais) a título de indenização
por danos materiais e ainda R$ 1.540,00 (Hum mil quinhentos e quarenta reais) por danos morais, que se
confirma. (Proc.: 2001.700.001245-8; Juíza Relatora: Cristina Tereza Gaulia)

114
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Um quarto exemplo, tirado da doutrina de Morato Leite e Luciana Cardoso Pilati


(2007, p. 285) pode ter origem na queimada de palha de cana-de-açúcar ,que causa dano aos
brônquios de quem se expôs à poluição. Deveria, em sã consciência, o prejudicado buscar
com rapidez a interrupção da atividade do agente poluidor e, se não o fez, seu crédito
vindouro deve ser mitigado.
É claro, que tudo o que foi hipoteticamente construído não será aplicado nas ações
indenizatórias movidas em prol do interesse difuso, mormente pelo Ministério Público, uma
vez que os valores aí auferidos não serão dirigidos diretamente a pessoas determinadas.
Nesse diapasão é importante ressaltar que o dano ambiental subsume-se a qualquer
lesão causada pela ação humana ao meio ambiente classificado como macrobem de interesse
da coletividade, em uma concepção totalizante e, indiretamente, a terceiros, tendo em vista
interesses próprios e individualizáveis e que se refletem no denominado microbem11. (LEITE,
2003, p. 108)
Outrossim, também é importante ressaltar que nos termos do artigo 104 do Código
de Defesa do Consumidor, a ação coletiva, v.g., ação civil pública, não gerará litispendência
com a ação individual movida pelo prejudicado individualizado, ainda que com origem no
mesmo ambiental.
É claro, conforme já asseverado, não pretendemos nesse trabalho sustentar a
aplicabilidade do “Duty to Mitigate the Loss” nas ações coletivas, razão pela qual devem ser
discernidas as situações processuais narradas.
Nesse sentido esclarece José Rubens Morato Leite e Luciana Cardoso Pilati que
também é relevante o “dano individual ambiental ou reflexo, que ocorre quando a agressão a
um elemento do meio ambiente resvala no indivíduo, lesando os seus interesses próprios,
relativos ao microbem ambiental.”. (2007, p. 272)
Os autores completam sua exposição explicando que a reparabilidade e o interesse
envolvido quando se constata o dano ambiental pode ser próprio individual (que nos
interessou nesse trabalho) ou de reparabilidade indireta, quando diz respeito a interesses
difusos e coletivos. (LEITE; PILATI, 2007)12

11
. LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. P.108.
12
Observa-se, no ordenamento jurídico brasileiro, a existência de dois sistemas processuais paralelos: um para
regular os conflitos individuais, formado pelo Código de Processo Civil e pela legislação extravagante
individual; outro para tutelar os interesses transindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos),
integrado pelas disposições da Lei da Ação Civil Pública, do Título III e demais disposições processuais do
CDC. Vide: PILATI, Luciana Cardoso. O sistema processual supraindividual e a responsabilização civil por
danos causados ao meio ambiente: ação civil pública e código de defesa do consumidor. In: BENJAMIN,

115
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

3. CONCLUSÃO

A boa-fé é elemento comum a toda e qualquer relação jurídica juridicamente


admitida.
Se a vítima de um dano poderia ter evitado ou atenuado o prejuízo ambiental que
sofreu, todavia faltou com a boa-fé e se omitiu ou retardou a ação, deve ter seu crédito
reduzido.
Nas demandas que tenham por objeto a responsabilização pelo dano ao microbem
ambiental, assim entendido como aquele afrontado em razão de um interesse individual
afligido (dano reflexo), a Teoria do “Duty to Mitigate the Loss” tem perfeita aplicabilidade.
Não obstante, reforça essa tese o fato inexorável de que o bem ambiental tem
natureza transindividual e, portanto, todos temos o dever de preservá-lo para as atuais e
futuras gerações.

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118
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A RETÓRICA DOS MÉTODOS NA TEORIA DO PROCESSO AMBIENTAL:


CONFLITO DE INTERESSE, PRETENSÃO E LIDE NO MEIO AMBIENTE

LA RETORICA DEI METODI NELLA TEORIA DEL PROCESSO AMBIENTALE:


CONFLITTO DI INTERESSI, PRETENSIONE E LIDE NELL’AMBIENTE

Fernando Joaquim Ferreira Maia

RESUMO
O objetivo é analisar a relação entre conflito de interesse, pretensão e lide (ou litígio) e os
fatores socioambientais. Defende-se a tese de que os interesses, as pretensões e as lides,
presentes ou geradas nesses conflitos, constituem o ambiente retórico do direito processual
ambiental. Defende-se também que se inserem na problemática das contradições ambientais
que se verificam na economia e que atingem a teoria do processo ambiental. A abordagem é
feita conforme o modelo desenvolvido por João Maurício Adeodato. A retórica, como
método, passa pela compreensão do ambiente humano, no caso, a descrição dos fenômenos
ambientais. Envolve o controle público da linguagem do direito processual ambiental.

Palavras-chave:
MEIO AMBIENTE; RETÓRICA JURÍDICA; PROCESSO AMBIENTAL

RIASSUNTO
L'obiettivo è analizzare il rapporto tra conflitto di interessi, pretensione e lide e i fattori
socioambientali. Si sostiene la tesi che gli interessi, le pretensioni e le lidi, costituiscono
l'ambiente retórico del diritto processuale. Si sostiene anche che si inseriscono nelle
contraddizioni ambientali che si verificano nella economia e che colpiscono la teoria del
processo ambientale. L'approccio è fatta secondo il modello sviluppato da João Maurício
Adeodato. La retorica, come metodi, descrive l’ambiente umano ed i fenomeni ambientali.
Coinvolge il controllo pubblico del linguaggio del diritto processuale ambientale. Offre un
punto di vista politico e giuridico alla missione del processo ambientale nella società.

Parole-chiave:
AMBIENTE; RETORICA GIURIDICA; PROCESSO AMBIENTALE

119
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Sumário: 1. Introdução: a bidimensionalidade teleológica do processo civil e a


constituição retórica das relações sociais ambientais. 2. A retórica dos métodos enquanto
linguagem constitutiva da realidade ambiental na comunicação humana. 3. A relação
retórica entre o bem da vida ambiental e o interesse difuso. 4. O conflito de interesses e a
pretensão na lide ambiental como uma situação retórica e as crises jurídicas. 5.
Conclusão: a lide ambiental no quadro da teoria do processo ambiental. 6. Referências
bibliográficas.

1. Introdução: a bidimensionalidade teleológica do processo civil e a constituição


retórica das relações sociais ambientais

Este artigo tem por base a relação entre conflito de interesse, pretensão e lide (ou
litígio) socioambientais relativos aos vetores de conflitos socioambientais como, por exemplo,
a má gestão da água, a fome e a desnutrição alimentar e os impactos das mudanças climáticas.
Defende-se a tese de que os interesses, as pretensões e as lides, presentes ou geradas nesses
conflitos, constituem o ambiente retórico do direito processual ambiental. Ressalte-se que,
neste trabalho, lide é colocada como sinônimo de litígio.
Defende-se também que a relação entre conflito de interesse, pretensão e lide, além
de ser uma convenção retórica, se insere na problemática das contradições que se verificam no
processo de produção de riquezas, principalmente aquelas que atingem o meio ambiente, opõe
objetivamente os diversos grupos sociais e se refletem, por sua vez, na teoria do processo
ambiental. Por exemplo, no semiárido pernambucano os conflitos de interesses relativos à má
gestão da água, à fome e à desnutrição alimentar e os impactos das mudanças climáticas estão
associados a dois outros conjuntos de conflitos. De um lado, aqueles relativos à agropecuária
extensiva, sem recursos e com técnicas de produção atrasadas e, de outro, aqueles relativos à
agricultura irrigada, intensiva, com nível tecnológico superior e com grande aporte de
recursos, porém, frequentemente, manejada de forma inadequada. Em ambos os casos, o fator
indutor do conflito é a crescente pressão da economia de mercado sobre essas áreas. Esses
fatores colaboram para o aumento da degradação ambiental na região, o que gera reflexo,
também, no aumento das lides socioambientais levadas ao Judiciário.
O artigo entende que a situação descrita tem reflexo sobre os indivíduos. Tal situação
ameaça a eficácia das relações sociais e o próprio poder político, força o Estado a dirimir as
lides, mediante o processo, e restaurar as relações jurídicas porventura resistidas. Mais do que
isso, o Estado busca reconhecer meios alternativos de composição de lides, mesmo que

120
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

inicialmente não jurisdicionais, como a autocomposição e a mediação, mecanismos que


permitem o empoderamento da comunidade local, via atuação, por exemplo, dos Conselhos, e
facilitam a resolução de lides socioambientais, desde que devidamente acompanhadas pelo
Ministério Público.
Observa-se que é justamente no trinômio conflito de interesse/pretensão/lide, além
do poder político, que se revela a bidimensionalidade teleológica do processo, pelo qual este
atua, num primeiro momento, para proteger/reproduzir as relações jurídicas materiais e, num
segundo momento, para proteger/reproduzir as próprias relações sociais. É na realização da
bidimensionalidade que os escopos político, jurídico e social do processo aparecem, procura-
se garantir os fundamentos da nação e descobrir o caráter do processo como instrumento do
Estado para assegurar as relações sociais (das quais as jurídicas são espécies) mais vantajosas
à classe social dominante. Entretanto, o artigo, ao se filiar à posição retórica de João Maurício
Adeodato, defende que essa bidimensionalidade é experimentada apenas linguisticamente,
enquanto doxa, no meio ambiente em que vive o homem. Embora a abordagem retórica
comporte a aplicação de uma série figuras como a metáfora, o argumento de autoridade, a
sinédoque e o argumento ad hominen, o propósito é apenas trabalhar os níveis da retórica
desenvolvida por Adeodato. Os níveis retóricos podem ser enquadrados no sistema proposto
por Ottmar Ballweg e desenvolvido por João Maurício Adeodato, o que será explicado no
decorrer do trabalho. O artigo se deterá ao primeiro nível, à retórica dos métodos. Para os
outros níveis (metodológico e metódico), remete-se o leitor para João Maurício Adeodato
(2009b, p. 16, 17, 18-19, 20, 32, 40, 43, 45) (2011, p. 2-3, 5, 20, 42) (ADEODATO, 2009a, in
passim), Ottmar Ballweg (1991, p. 176-179), Hans Blumenberg (1999, p. 140) e Aristóteles
(1998, I, 1354b, 1355a, 1355b, p. 46-47) (2011, I, 1355a20, p. 42).
Por fim, ao se defender que o conflito de interesses, a pretensão e a lide são
constituições retóricas de primeiro nível, enfrentam-se duas problematizações. Como pensar a
retórica no processo ambiental diante da função jurisdicional do Estado? A perspectiva da
retórica de primeiro nível é conciliável, ao mesmo tempo, com uma perspectiva teleológica do
processo?

2. A retórica dos métodos enquanto linguagem constitutiva da realidade ambiental na


comunicação humana

121
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O sentido que se vai emprestar à palavra retórica não é o de Platão, que a associa à
enganação e falsidade. Parte-se de Aristóteles, que admite um uso positivo para a retórica,
com base na ética e na política. Para o Estagirita (1998, I, 1354b, 1355a, 1355b, p. 46-47), a
retórica é um bem relativo, pois pode ser pervertido para o mau uso, daí que a retórica não se
presta como técnica de dominação, mas, sobretudo, de defesa. Para se refutar os argumentos
contrários, será necessário compreender o sistema argumentativo adversário.
Entretanto, o método retórico que se quer aplicar no artigo é o de João Maurício
Adeodato, que vai além de Aristóteles. Aqui, a retórica é a linguagem constitutiva da
realidade. A linguagem é a única realidade ambiental possível ao ser humano e força três
níveis principais para a retórica: a retórica dos métodos, a retórica metodológica e a retórica
metódica. O primeiro nível passa pela compreensão da retórica no ambiente humano, no caso,
a descrição dos fenômenos ambientais. Adeodato (2011, p. 2-3, 5, 20, 42) fala que a retórica
dos métodos é envolve a comunicação humana cotidiana, sem a pretensão de influir no
ambiente. O segundo nível corresponde à necessidade do uso da retórica, de forma
estratégica, para a defesa de objetivos escolhidos pelo sujeito em relação à sua posição no
meio ambiente, o que equivale às várias teses sobre sustentabilidade, desenvolvimento
sustentável, justiça ambiental, etc. Já o terceiro nível passa pela compreensão dos mecanismos
de desconstrução da retórica de segundo nível, é analítico.
Na retórica dos métodos ocorre um controle público da linguagem, em cima das
expectativas do sujeito, pelo qual a realidade só existe para o homem na comunicação; nada
acontece fora da linguagem (ADEODATO, 2009b, p. 35, 37, 39, 40, 41, 43, 45).
A retórica dos métodos é a maneira pela qual os seres humanos efetivamente se
comunicam, o que inclui suas artes e técnicas sobre como se conduzir diante dos demais. Ela
constitui o próprio ambiente em que acontece a comunicação, integra a antropologia humana
e envolve diretamente as relações do homem em comunicação (ADEODATO, 2009b, p. 32,
35, 36).
Envolve a própria linguagem, no sentido de que o homem, desde que em
comunicação, seja ela qual for e de que tipo for, está sempre ordenando, orientando,
vinculando, regulando, posicionando-se, enfim, praticando variadas funções vitais da vida
social, ao intervir no convívio social em que está inserido. Constitui a própria a realidade que
o homem experimenta e permite que vivencie não só o direito, mas os outros subsistemas
sociais, como a moral e a religião, de forma concreta (BALLWEG, 1991, p. 176-177).
Adeodato (2009b, p. 34, 35) defende que qualquer comunicação intersubjetiva ou
mesmo intrasubjetiva é retórica, inclusive uma postura que se intitule contra-retórica, ou que

122
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

tenha a pretensão de ser, não deixa de revelar nítido verniz retórico, pois, para a configuração
da atitude retórica, basta a comunicação. Se a comunicação se dá no ambiente da linguagem,
ou se o ato humano traduz linguagem, a ponto de se fazer compreensível, existe a realidade
(BLUMENBERG, 1999, p. 140).
Pela circunstância de a realidade existir para o homem na comunicação, não só o
conhecimento é retórico, mas a percepção humana da própria existência também o é, o que se
reflete na compreensão homem da sua relação com a natureza e com os seus fatores bióticos e
abióticos. Segundo Adeodato (2009b, p. 34), com base em Nietzsche, nada existe fora da
linguagem; mesmo aquela linguagem consigo mesmo, que constitui o pensamento, é retórica.
Ao considerar que a argumentação entimemática, própria da retórica, baseada na
verossimilhança, associa a retórica com expectativas (BLUMENBERG, 1999, p. 136), pode-
se dizer que a retórica dos métodos parte do controle público da linguagem e conduz a
consensos temporários e condicionais (ADEODATO, 2009b, p. 35).
A racionalidade estrutura-se pela retórica, ou seja, o raciocínio opera com discursos
persuasivos para si e para os interlocutores. Aristóteles (2005, I, 100a, p. 347), ao afirmar que
“o raciocínio é um argumento em que, estabelecidas certas coisas, outras se deduzem
necessariamente das primeiras”, estabelece uma identidade entre racionalidade, linguagem e
retórica.
A retórica dos métodos é desenvolvida segundo a percepção individual do homem,
mas em sua interação com o outro, no discurso. Conforme Adeodato (2009c, p. 251), isso
corresponde ao método, composto por discursos retoricamente articulados na intervenção do
homem no contexto social, econômico, político e histórico em que está inserido.
A retórica dos métodos envolve o ambiente em que a teoria do processo ambiental
está inserida. Todas as interações entre os homens que ocorrem no contexto social,
econômico, político e histórico em que a jurisdição se insere, constituem a retórica dos
métodos. Do ponto de vista da teoria do processo, esse ambiente é marcado pelo exercício do
poder, mediante a realização de um procedimento, que sujeitará o cidadão à eficácia da
prestação da justiça, e não necessariamente à efetividade, mas na base está a relação entre o
conflito de interesse, a pretensão e a lide.
Como já anunciado na introdução, o objetivo do artigo é tentar mostrar, justamente,
que o conflito de interesse, a pretensão e a lide ambientais constituem o ambiente retórico
material da teoria do processo ambiental. Oferece-se uma série de relatos que, no fundo,
definem a retoricamente a teoria do processo ambiental. A tarefa da retórica dos métodos é,
mediante a linguagem, constituir esses elementos.

123
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Essa constituição passa por criar e apresentar o bem da vida ambiental perante a
população como um bem de natureza difusa. Assim, a retórica dos métodos pode fazer com
que as interações formais, o conflito de interesse, a pretensão e a lide, que giram em torno
desse bem da vida, constituam a realidade experimentada processualmente pelo direito.
Permite-se que a base da teoria do processo ambiental seja entendida, e mesmo criada,
linguisticamente mediante estratégias desenvolvidas num ambiente de comunicação. A tópica
vai ter uso relevante nesse nível da retórica ao, por exemplo, apresentar um determinado
interesse, a exemplo do impacto ambiental das florestas plantadas, como difuso.
Vale citar a lição de Adeodato (2011, cf.) ao afirmar que a retórica dos métodos é
constituída de pequenos fatos e circunstâncias que revelam as estratégias utilizadas na
construção da realidade pela linguagem.
A sociedade contemporânea, após a queda do leste europeu, incorpora a
ambivalência, a insegurança, a procura de novos princípios e o redesenho do relacionamento
entre as atribuições das instituições do Estado e da própria sociedade Ulrich Beck (1995, p.
4). Essa incorporação funda a pós-modernidade. Questiona-se a sociedade moderna, que
pretendia emancipar o homem, mas produziu o seu contrário. Busca-se enfrentar problemas
para os quais não há solução tradicional, o seu enfoque é a desconstrução, alternativas,
mudanças de paradigmas para atender às demandas postas pela sociedade. A sociedade pós-
moderna é a sociedade de risco, que designa um estágio de superação da modernidade em que
a humanidade começa a reagir às ameaças ambientais produzidas pelo capitalismo. Nessa
situação, o discurso vencedor, o relato vitorioso, vai ser aquele que orienta os cidadãos a
considerarem a imprevisibilidade dos riscos ambientais; a entenderem que os riscos
ambientais não respeitam necessariamente as desigualdades sociais e atingem também as
classes dominantes; a se conformarem que os riscos ambientais não quebram a lógica do
mercado; que o problema ambiental é também um problema político e, portanto, do Estado.
Os riscos formam um conjunto de inseguranças e ameaças introduzidas pela própria
modernização e que se relacionam diretamente às forças produtivas parasitárias do
capitalismo (BECK, 1995, p. 21). Essa insegurança permite que a retórica tente controlar a
incerteza social e reduzir a ameaça potencial, chamada de álea, que afeta os indicadores de
vulnerabilidade e marca a retórica dos métodos.
A retórica dos métodos, aplicada na teoria do processo ambiental, não encara o
citado processo como uma relação de causa entre os eventos. Ela constrói a sua teoria retórica
em função de uma contingência: os riscos ambientais.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

É de ressaltar que o cerne da retórica dos métodos passa por atrelar a proteção
ambiental à elevação do bem da vida em bem ambiental a partir do interesse da sociedade e à
medida da intensificação do risco ambiental. Só assim, se consegue justificar ideologicamente
normas jurídicas que atendam aos interesses que vão além da mera individualidade, como os
difusos e os individuais homogêneos. Observa-se que o relato dominante acaba por
transformar linguisticamente um bem privado em um bem de natureza difusa, aceito por todos
e em um fato histórico. A linguagem constrói isso e permite os acordos entre o orador e o
auditório que transformam um fato em um fato histórico. Para a retórica dos métodos, o que
interessa sempre é o relato dominante, pois é ele que transforma uma sucessão de eventos em
fato histórico (ADEODATO, 2010, p. 141, 148).
A tese ressalta a importância do relato dominante na retórica dos métodos, na qual,
para Adeodato (2010, p. 141, 148), uma sucessão de eventos se torna um fato histórico
quando existe acordo entre os participantes da comunicação. Uma vez estabelecido o acordo,
que pode envolver o consenso, mesmo que momentâneo, a tarefa passa a ser a de reproduzir a
ideia fundamental contida no relato histórico (ADEODATO, 2010, p. 175). A condição do
homem é o relato que ele desenvolve sobre a natureza, o que envolve a defesa da ordem
jurídica e política e a restrição das relações proprietárias diante do bem ambiental.
Prevalece a retórica dos métodos, pois a teoria retórica se dá em cima da realidade
ambiental. Apresenta uma descrição universal do problema ambiental e uma versão, como se
fosse a melhor, a mais coerente com os interesses da sociedade.
O domínio do direito ambiental é uma exigência decorrente das estratégias para o
controle da retórica dos métodos sobre o meio ambiente, diante da fricção que se opera
internamente na base material da sociedade, principalmente na economia política. Então, a
utilidade deve ser a preocupação no direito ambiental. O discurso judicial tem de estabelecer o
que é mais útil para a preservação da mesma relação social ambiental.

3. A relação retórica entre o bem da vida ambiental e o interesse difuso

Neste tópico, serão tecidas considerações de retórica metodológica. Entretanto, o


alvo é a retórica dos métodos.
A retórica metodológica envolve aquele conjunto de regras, construídas a partir da
observação da retórica dos métodos, tendo por objetivo produzir alterações ou influir na
realidade e possibilitar que o sujeito atinja seus objetivos. Verifica fórmulas para a persuasão
e, segundo Adeodato (2009b, p. 37), também outras estratégias que assegurem o objetivo do

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

orador. Essas fórmulas são compostas principalmente pela tópica, pela teoria da
argumentação, pela teoria das figuras e pela linguística (BALLWEG, 1991, p. 178).
No sistema constitucional brasileiro está determinado que a ordem econômica está
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, o que implica a proteção do
equilíbrio ecológico.
Esse equilíbrio ecológico funciona como um macro bem ambiental e é composto por
diversos fatores bióticos (fauna, flora, diversidade biológica, etc) e abióticos (terra, mar,
rochas), micro bens ambientais, passíveis de proteção jurídica (RODRIGUES, 2011, p. 46,
47).
O bem ambiental é espécie de bem da vida, entendido por Cândido Rangel
Dinamarco (2002, p. 36) como todas as coisas, situações ou mesmo pessoas que de algum
modo possam ser objeto de aspirações e direitos. Pontes de Miranda (2001, p. 37, 95) se
aproxima da posição de Dinamarco ao sustentar que o bem da vida abrange o bem material, o
próprio viver, a liberdade e os direitos fundamentais e os direitos políticos, bem como a honra
e a incolumidade individual, a vocação, os prazeres e as repulsas do homem.
Francesco Carnelutti (1941, p. 47) afirma que o bem da vida é o ente capaz de
satisfazer uma necessidade do homem. Pois, justamente, a esfera de apreensão de direitos
sobre o meio ambiente se materializa no bem ambiental. O bem ambiental envolve uma
universalidade que abrange bens materiais e imateriais, bens disponíveis e indisponíveis e as
relações jurídicas economicamente relevantes. Bem ou recurso ambiental vai muito além da
atmosfera, das águas interiores, superficiais e subterrâneas, dos estuários, do mar territorial,
do solo e do subsolo, dos elementos da biosfera, da fauna e da flora, definidos no art. 3º,
inciso V, da Lei nº 6938/81.
O caráter do bem ambiental faz como que ele não possa ser dividido sem que se
alterem as suas propriedades ecológicas. Essa indivisibilidade do bem ambiental resulta na
imprevisibilidade do impacto ambiental para além das fronteiras. É o que se denomina de
ubiquidade ((RODRIGUES, 2011, p. 47).
Por conta da característica apontada, o bem ambiental é instável e produz efeitos
atemporais e o dano causado ao meio ambiente pode, inclusive, atingir a esfera de bens
privados. Por tudo, o bem ambiental é um patrimônio difuso, em sua integralidade,
inalienável (SIRVINSKAS, 2010, p. 109-110).
Como se observa, o bem ambiental, assim juridicamente conceituado, abrange todos
os recursos essenciais à sadia qualidade de vida e, por sua particularidade universal, vai além

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do bem de uso comum do povo, do bem particular e do estatal. É essa característica do bem
ambiental que o coloca como bem de natureza difusa, não há como determinar alguém que só
tenha acesso a esse bem ou mesmo privar um indivíduo do seu gozo. O bem ambiental
pertence a cada um abstratamente, pois não há como se identificar o seu titular, bem como
dividir o seu objeto.
Como um patrimônio difuso, em sua integralidade, é inapropriável e indisponível à
acumulação privada da riqueza. Então, essa categoria jurídica acaba por servir retoricamente
como técnica de intervenção do Estado na ordem econômica para submeter o particular a
interesses extrapatrimoniais, no caso do meio ambiente, de natureza difusa. Um fator que
contribuiu muito para isso foi o advento do Estado democrático e social de direito, que força o
controle da atividade econômica, com vistas ao bem-estar social, a partir de princípios de
tutela dos direitos, fundamentalmente à base da dignidade da pessoa humana, o que eleva o
meio ambiente à condição de direito fundamental como esfera mínima para a sobrevivência
da sociedade (LÔBO, 2010).
Isso é retórica metodológica, pois, o Estado, ao utilizar a categoria “direito difuso”,
tenta criar um consenso sobre determinados relatos de retórica dos métodos, como, por
exemplo, o meio ambiente, a pessoa humana e a ordem econômica, ao objetivar a proteção do
bem ambiental.
A elevação do bem ambiental como bem da vida de caráter difuso tem como alvo a
propriedade. O efeito direto é que a visão da propriedade passa a ser identificada a partir de
centros de interesses extraproprietários, que tangenciam o bem da vida, regulados no âmbito
da relação jurídica dominical (TEPEDINO, 2008, p. 337).
Em relação aos interesses proprietários e extraproprietários que afetam o bem da
vida, envolvem uma relação de complemento entre a pessoa e o bem, pelo qual aquela
depende deste para satisfazer sua necessidade. Para Carnelutti (1941, p. 46-47), o interesse é a
posição do homem favorável à satisfação de uma necessidade, envolvendo uma relação entre
o homem que experimenta a necessidade e o bem apto a realizá-la. Necessidade, aqui,
constitui uma situação de carência ou de desequilíbrio biológico ou psíquico, traduzindo a
falta de alguma coisa. O bem deve efetivamente realizar a necessidade para que haja interesse.
Como o bem ambiental tem natureza difusa, esse interesse é o social, titularizado não só pelo
Estado, mas por todos os cidadãos, e até mesmo por estrangeiros não residentes no Brasil,
representando indistintamente a sociedade.
No sentido posto, a função social da propriedade aparece também como emanação
dessa qualidade do bem ambiental e tenta equacionar os direitos e as obrigações do indivíduo

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

com as garantias constitucionais postas na Constituição relativas ao meio ambiente (SOUSA,


1994, p. 62-63).
Entretanto, em que pese o comando do art. 184 da Constituição e do art. 1228 do
Código Civil, que impõem que o direito de propriedade deva ser exercido conforme as
finalidades econômicas e sociais postas pela comunidade, a questão é que quando se realça
essa utilidade se potencializa também uma ameaça ao bem ambiental, como a manutenção das
qualidades do solo, da água, de parte da vegetação nativa, problemas objetivos que envolvem
um conflito de interesses, objeto do próximo tópico.

4. O conflito de interesses e a pretensão na lide ambiental como uma situação retórica e


as crises jurídicas

Neste tópico será tratado o conflito de interesses e a pretensão na lide ambiental. O


artigo toma o conflito de interesses e a lide como figuras relacionadas, mas objetivamente
distintas.
Na concepção carnelutiana ocorre conflito de interesse quando a situação favorável à
satisfação de uma necessidade limita e/ou exclui a situação favorável à satisfação de outra
necessidade (CARNELUTTI, 1936, p. 12).
Pode-se estabelecer dois tipos de conflitos de interesse. O subjetivo, envolvendo dois
interesses de uma mesma pessoa, devendo esta optar por algum (CARNELUTTI, 1936, p.
13), e o intersubjetivo, este significando o conflito de interesses propriamente dito,
envolvendo interesses de pessoas diferentes.
No conflito de interesses não existe confronto, qualquer tipo de disputa ou de lesão a
interesse, apenas uma situação concreta em que alguém, para satisfazer a sua necessidade, se
vê na posição de ter que sacrificar o interesse do outro. É o caso, por exemplo, do Poder
Público que decide construir uma hidrelétrica para a geração de energia no único local
possível. Naquele momento, a edificação da obra implica no sacrifício do ecossistema local,
equilíbrio ecológico de interesse difuso, pertencente à sociedade. O inverso implica em
restrição à atividade econômica. São situações de exclusão de interesses somente, mas, ainda,
não há disputa, confronto ou lesão, apenas em potencial.
Questão maior é quando ocorre a resistência à pretensão no conflito de interesses.
Segundo Carnelutti (2000, p. 78, 80), a pretensão é a exigência de subordinação do interesse
de outrem ao interesse próprio. A pretensão é um fato, independe do direito subjetivo. Ela é

128
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

um ato, uma manifestação de vontade. Vale ressaltar que a concepção carnelutiana da


pretensão goza de amplo apoio na doutrina brasileira.
Entretanto, afastando-se da ideia de interesse presente na concepção carnelutiana de
pretensão, Dinamarco (2002, p. 102-104) sustenta que a pretensão é um estado de espírito que
se exterioriza em exigências de satisfação, através de atos para que a vontade se imponha.
Subordina a pretensão à ideia de exigência.
A resistência à pretensão constitui a não adaptação à subordinação de um interesse
próprio ao interesse alheio (CARNELUTTI, 2000, p. 81). A razão da resistência à pretensão é
a inexistência de relação jurídica que proveja razão à pretensão. Essa inexistência, por sua
vez, se baseia ou na 1) inexistência do elemento de direito da razão da pretensão ou na 2)
inexistência de um elemento de fato da razão da pretensão ou num 3) fato que extinga ou
invalide o fundamento da pretensão (CARNELUTTI, 2000, p. 84).
Apenas quando o conflito de interesse se compõe por uma pretensão resistida é que
necessariamente será gerada a lide, também denominado aqui de litígio. Para Carnelutti
(2000, p. 77-80), a lide depende da incidência de interesses sobre o bem. Desta forma, pode-
se dizer que a lide só existe do ponto de vista do conflito de interesses intersubjetivo.
Segundo Dinamarco (2002, p. 105-107), a lide é a situação existente entre duas ou
mais pessoas ou grupos, caracterizada pela pretensão a um bem ou situação da vida e a
impossibilidade de obtê-lo, seja porque negada por quem deveria dá-lo (jurisdição
secundária), seja porque a lei condiciona a sua realização à obtenção de tutela jurisdicional
(jurisdição primária). A lide não depende da incidência de interesses sobre o bem, mas de
exigências não satisfeitas. Segundo o pensamento fundamental de Carnelutti, a lide tem um
objeto formal e um material. O objeto formal é a pretensão e a resistência. O objeto material é
o conflito de interesse.
No semiárido pernambucano, a despeito de todos esses aspectos, destacam-se, os
movimentos migratórios populacionais e o impacto das revoluções tecnológicas nas forças
produtivas do capitalismo. São fatores que estão na base dos conflitos de interesses
socioambientais e que potencializam situações reais de dano ambiental.
Os danos ambientais infringidos à caatinga não são resultados da degradação de
formações vegetais mais exuberantes, como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazônica. O
bioma da caatinga não é homogêneo, com biota pobre em espécies e em endemismos, estando
pouco alterada ou ameaçada. Estudos apontam a caatinga como rica em biodiversidade,
endemismos e bastante heterogênea e como um bioma extremamente frágil.

129
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Nas últimas décadas se observa na caatinga um cenário extremamente modificado


pela intensa ação degradadora do ser humano, manifestada principalmente, no surgimento
e/ou intensificação dos processos biofísicos tais como, erosão dos solos, aumento do déficit
hídrico do solo, o que contribui à alteração microclimática, afeta a biodiversidade e,
consequentemente, alimenta a desertificação (TRIGUEIRO; OLIVEIRA; BEZERRA, 2009,
p. 70).
A causa principal disto passa pelas relações de produção calcadas na exploração do
homem pelo homem. Significa que o parasitismo econômico, característica das relações
proprietárias capitalistas, têm potencial lesivo ao meio ambiente e deve, portanto, sofrer
regulação jurídica.
Nesse sentido, cresce uma espécie própria de conflito, que se dá em torno da
natureza, do meio ambiente e dos recursos naturais, o que envolve a escassez de bens, a
poluição, a contaminação tóxica, a extinção de animais e a redução de seus habitats naturais,
a propagação de graves doenças infecto-contagiosas, a desertificação, o desmatamento, o
efeito-estufa, a deterioração da camada de ozônio e as ameaças à biodiversidade. São conflitos
socioambientais, têm a particularidade de não envolver um destinatário determinado,
englobam coletividade em torno de bens difusos, como será visto, a titularidade desses
direitos pertence a toda a sociedade e não há como determinar alguém que só tenha acesso a
esse direito, tais como o direito à paz, ao desenvolvimento e ao meio ambiente (SARLET,
2003, p. 52-53).
Os recursos naturais são o campo natural dos conflitos de interesses socioambientais,
pois todos na sociedade se apropriam de uma forma ou de outra desses recursos, o que gera
conflitos sociais, econômicos, políticos, históricos e culturais. Nesse sentido, Little (2004, in
passim) afirma que existem três tipos de conflitos: 1) aqueles em torno da acumulação privada
dos recursos naturais; 2) aqueles em torno dos impactos socioambientais decorrentes da ação
humana; 3) aqueles em torno dos valores e modos de vida.
Todos esses conflitos envolvem interesses definidos na sociedade, que não passam
de uma relação de complemento entre a pessoa e o bem, pelo qual aquela depende desse para
satisfazer sua necessidade. Necessidade, aqui, constitui uma situação de carência ou de
desequilíbrio biológico ou psíquico (CARNELUTTI, 1941, in passim), traduz a falta de
alguma coisa. Então, o bem ambiental deve efetivamente realizar a necessidade para que haja
interesse. Os conflitos de interesses socioambientais, assim entendidos, ocorrem quando a
situação favorável à satisfação de uma necessidade difusa limita e/ou exclui a situação

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

favorável à satisfação de outra necessidade, agora de natureza não difusa (CARNELUTTI,


1936, p. 12).
Essa dependência de interesses permite, se porventura ocasionar a lide, por exemplo,
a autocomposição e, principalmente, a transação, base da atividade mediatória. Isso incentiva
que o processo de gestão ambiental fortaleça a participação da sociedade na utilização de
mecanismos e métodos de resolução de lides, e, diga-se, não de conflitos. Estes, via de regra,
não são dirimidos diretamente pela atividade judicial, que só resolve lides e, somente
indiretamente, conflitos de interesses.
A análise do conflito de interesses socioambiental deve começar pela detecção da
contradição principal. Mao Tse Tung (1975, p. 541-542, 549, 558) afirma que o estudo das
contradições vai do particular ao geral e, depois, do geral ao particular e compreende não só a
formação social como um todo, mas também as suas etapas, as suas particularidades. A
contradição existe no desenvolvimento de todas as formas sociais e evolui do início ao fim,
além de repercutir no plano das ideias (LÊNIN, 2009). A essência de cada formação da
sociedade é determinada e diferenciada pelas especificidades de suas contradições internas.
Dentre as várias contradições existentes, haverá sempre uma que será a contradição principal
(além do núcleo da contradição), que, por sua vez, influenciará e determinará o surgimento e
o desenvolvimento das demais contradições sociais. Nada impede que no curso do
desenvolvimento da relação social ocorra uma alternância entre a contradição dita principal e
a secundária (TSE TUNG, 1975, p. 559, 561-562).
Os conflitos de interesses socioambientais são agravados diante de crise de
efetividade da norma jurídica material ambiental, fundamentalmente quando não houver
correspondência entre o texto da lei e a realidade na qual se constitui, o que gera antagonismo
retórico entre a realidade que existe e a realidade que o direito quer que exista. Ocorre uma
crise de concretização/realização do direito. Do ponto de vista jurídico, os conflitos
socioambientais condicionam as ideologias presentes na legislação e, caso evoluam para
situações litigiosas, na sua aplicação pelo Poder Judiciário. Abrangem um conjunto específico
de ideias que envolvem a maneira de o homem pensar, interpretar e agir no mundo e tem por
base a intervenção do homem no contexto em que está inserido para alterar o meio ambiente e
alcançar determinados objetivos como, por exemplo, a construção de uma usina hidrelétrica
ou a justificação da supressão de uma reserva biológica para a realização de obras de
infraestrutura etc.
Portanto, o que é levado ao Judiciário não é o conflito de interesses socioambientais,
tomado como elemento isolado, mas sempre a lide ambiental. Nesses casos, muitas vezes, a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

decisão judicial não passa por parâmetros técnico-científicos, mas envolve topos retóricos,
com juízos de valor; argumentos com forte carga abstrata, por exemplo, soberania nacional,
desenvolvimento, dignidade da pessoa humana, empregados para justiçar julgamentos de
litígios sobre o meio ambiente.
A intersecção entre o conflito de interesses socioambiental e o direito ambiental e o
direito processual ambiental se passa mediante contradições originadas na forma do homem
produzir as coisas e distribuir a riqueza. A tarefa da retórica deve ser sempre também a de
auxiliar o isolamento das contradições principais e secundárias que ocorrem nesse processo e
que se refletem no direito. Opera-se a crítica, mediante o exame das contradições, das
estratégias utilizadas pelos atores sociais, na defesa das suas ideias sobre o meio ambiente,
para influir no contexto em que ocorre o dano ambiental.
Isto significa analisar a questão ambiental mediante a separação dos aspectos
contrários e positivos da formação das ideias jurídicas sobre o dano ao meio ambiente,
criticando-os e buscando a melhor persuasão possível, dentre os melhores argumentos, acerca
da existência de possíveis soluções científicas, despercebidas pelo esquema decisional, à base
dos condicionantes históricos e materiais em que o Brasil está inserido. Aqui, vai se dar valor
aos aspectos quem/o que/onde/quando/por que. Assim, entende-se que a retórica se comporta
também como uma metódica, analisa e determina os procedimentos utilizados no
convencimento, bem como as estruturas de persuasão pelo discurso.
Também as contradições verificadas no processo de produção, fator potencializador
da transformação do conflito de interesses socioambiental em lide socioambiental, vão gerar
quatro tipos de crises jurídicas. A primeira se trata da crise de certeza. Envolve uma dúvida
sobre a relação jurídica. Exige uma tutela declaratória que vise à obtenção da certeza sobre a
mesma. A segunda é a crise de adimplemento. Ela diz respeito a um direito contestado. O
litigante pede uma tutela condenatória/executiva para a atribuição do bem da vida. Já a
terceira é chamada de crise das situações jurídicas. Tem como condição a eficácia do direito
em face de dada relação jurídica. O objetivo é a obtenção de uma tutela constitutiva. O
litigante quer a criação, a modificação ou a extinção de dada relação jurídica (DINAMARCO,
2002, p. 108-109, 118-119).
Depois vem a crise jurídica sistêmica. Ela ocorre quando o ordenamento jurídico não
consegue cumprir a sua finalidade de proteger e reproduzir as relações jurídicas materiais e as
demais relações sociais, face o acirramento das contradições sociais e da radicalização da luta
entre as camadas sociais. Diz respeito não à eficácia, mas à efetividade/eficiência do direito

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face às relações sociais. Existe uma impossibilidade de resolução da lide. A tutela é inefetiva
e existe ruptura, ou ameaça de ruptura, político-constitucional.
Esse é o ponto. A única forma de superar a crise sistêmica do direito processual e se
alcançar a efetividade da norma jurídica processual ambiental, em que todos os atores sociais
e o meio ambiente sejam contemplados, é a sustentabilidade à base dos direitos humanos e
naturais difusos.
Essa formulação permite que a análise retórica seja feita de modo integrador, pois os
entes da natureza se comportam de forma dialética, estão em permanente interação. Isso não
impede a aplicação de outros métodos. Muito pelo contrário. Segundo J. A. Mota (2000, in
passim), a teoria dos sistemas é uma ferramenta que possibilita o entendimento descrito e
organiza a sustentabilidade em quatro regras principais: 1) sustentabilidade biológica (diz
respeito à relação entre os mecanismos de interação entre a matriz de suprimento do meio
ambiente e as atividades econômicas e antrópicas); 2) sustentabilidade ecológica (trabalha os
conceitos de capacidade de suporte e capacidade de resiliência e diz que esses paradigmas
ecológicos têm supremacia sobre todos os outros conceitos ambientais. O primeiro refere-se à
quantidade de entes que um ativo ambiental pode suportar e o segundo relaciona-se com a
capacidade de regeneração do ativo ambiental em decorrência das pressões humanas e
naturais; 3) sustentabilidade estratégica (serve de suporte à defesa do capital natural, assim, o
uso de um ativo natural superior à sua capacidade, além de gerar conflito e litígio, não protege
o direito de uso das futuras gerações); 4) sustentabilidade econômica (permite a estimação de
externalidades oriundas de projetos de investimento, também, em conflitos de uso de recursos
naturais, permite que os custos da degradação ambiental sejam internalizados pelos agentes
que usam os ativos naturais, além de propiciar indenizações judiciais aos receptores da
degradação ambiental e punir os infratores pelos danos causados à natureza.
No que concerne às regras da sustentabilidade, uma das técnicas para a garantia da
efetividade da norma processual ambiental é a mediação de lides socioambientais, meio
heterocompositivo de resolução de lide, constituído mediante pacto entre os litigantes, sendo
necessária a intervenção do Ministério Público (pois o bem ambiental é indisponível), que
reconhecem a intervenção de um terceiro imparcial com o objetivo de realizar a
autocomposição da lide. Uma das grandes vantagens é a autocomposição, ausência de
qualquer decisão do terceiro imparcial, este só se limita a proposições que visem à
autocomposição da lide.

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5. Conclusão: a lide ambiental no quadro da teoria do processo ambiental

A teoria do processo é um sistema de conceitos e princípios generalizados e


sintetizados sobre a lide a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual, dos
quais o ambiental é espécie. Não lhe cabe a indagação ou a formulação de procedimentos em
matéria processual (DINAMARCO, 2000, p. 59).
Como sistema, a teoria do processo deve considerar a unidade global no direito
processual e a sua relação teleológica com as relações jurídicas materiais e as relações sociais.
Deve buscar a unidade de método entre os diversos ramos do direito processual, inclusive o
processual ambiental. Assim, é indispensável definir os limites da busca pela unidade
metodológica entre os diversos ramos do direito processual, sob pena de risco de uma
desagregação dos institutos. A base empírica, real, da teoria do processo não é a experiência
profissional, mas a capacidade de concretizar direitos, e transmutá-los, na vida da sociedade.
A teoria do processo é uma disciplina altamente teórica, voltada à indagação dos
princípios comuns às várias figuras processuais e à reconstrução do sistema processual. Seu
objetivo é devolver a cada ramo processual os resultados de suas intuições e pesquisas
(DINAMARCO, 2000, p. 61).
Pode-se dizer que o que caracteriza o processo é: 1) o devido processo legal, 2) com
a participação dos interessados, 3) mediante o exercício das faculdades e poderes da relação
jurídica processual. É a observância do procedimento, com a participação efetiva e
equilibrada dos interessados, que legitima o ato final do processo e obriga os participantes.
Existem vários tipos de processo, mas o que vai caracterizar um processo como
jurisdicional é a existência de uma lide entre os interessados a ser decidida por uma instância
imparcial, caracterizada pela inércia, projetando poder sobre os interessados e sujeitando-os a
esse poder, mediante o contraditório. É isto que legitima o ato final da prestação da justiça.
No processo jurisdicional, além da presença de atos sequenciados para a produção de um
resultado, do devido processo legal, da participação dos interessados, do exercício das
faculdades e poderes da relação jurídica processual, haverá uma lide a ser julgada por um
terceiro imparcial (o juiz). A finalidade do processo jurisdicional é o julgamento da lide. Caso
o processo não tenha como finalidade o julgamento de uma lide, ele terá natureza não-
jurisdicional.
A teoria do processo deve estar focalizada em torno da ideia da efetividade pela
jurisdição, pois é aí, onde há o exercício do poder, mediante a realização de um procedimento,
que se sujeitará o cidadão à eficácia da prestação da justiça.

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No caso da teoria do processo ambiental, essa efetividade deve ser capaz, ao resolver
a lide, de contribuir para a elevação dos índices de desenvolvimento sustentável,
principalmente quanto à segurança alimentar e hídrica e aos impactos das mudanças
climáticas. Deve partir de elementos concretos e de demandas reais postas pelo impacto
ambiental, especificamente por aquelas áreas mais ligadas às questões ambientais, carentes de
infra estrutura e de tecnologias apropriadas, assim como contribuir para o empoderamento da
população.
O comando normativo posto no art. 225 da Constituição Federal implica no
reconhecimento e/ou constituição de ações organizadas e efetivas de promoção da segurança
ambiental, o que exige finalidade, métodos e agentes capacitados para a sua execução. Então,
o Judiciário, ao decidir lide ambiental, deve buscar a decisão que melhor proteja, reproduza e
transforme as relações sociais que envolvam diversos sistemas e subsistemas, que afetam o
meio ambiente, como: livre mercado, produção de riquezas, liberdade individual, família, etc.
Aqui, a sustentabilidade é o único acordo possível para a construção de objetivos e de metas
para a efetividade da norma processual ambiental.
Outra técnica é o desenvolvimento sustentável, voltado para a minimização dos
males sociais no mundo e à sadia qualidade de vida do homem, permite políticas
participativas, descentralizadas e compensatórias que a teoria do processo ambiental pode
incorporar.
O desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração
dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a
mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de
atender às necessidades e aspirações humanas (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO
AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 9). Envolve uma complexidade, pois
considera fatores ambientais, econômicos, sociais, culturais e ideológicos, e se baseia no
trinômio eficiência econômica, justiça social, equilíbrio ambiental e empoderamento da
comunidade.
O empoderamento estabelece um diálogo com as formas de aquisição de poder e
como estas agem sobre os recursos necessários ao desenvolvimento de uma região ou
qualquer outro tipo de espaço. O empoderamento está inserido no debate de direitos em torno
do desenvolvimento (ROMANO, 2002, in passim) e atua para o fortalecimento de pequenos
grupos informais, associações e cooperativas que passam a exercer diferentes papeis em todo
o processo de produção, constitui um importante fator que pode interferir nas diferentes
dinâmicas de desenvolvimento, inclusive orientar o processo de decidibilidade judicial em

135
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

prol da efetividade da norma processual e materializado. Essa efetividade significa um agir


processual fundado no interesse comum da coletividade, que valorize sua identidade e sua
capacidade de interação e conexão com a sociedade e a economia e os espaços de solução de
lides ambientais.

6. Referências bibliográficas

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138
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A SADIA QUALIDADE DE VIDA COMO FATOR PREPONDERANTE PARA A


PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA VIDA HUMANA É CAPAZ DE PREVALECER
ANTE A DISCRIMINAÇÃO POR IDADE EM RAZÃO DA REVOLUÇÃO DA
INFORMÁTICA?

LA SALUDABLE CALIDAD DE VIDA COMO FACTOR PRIMORDIAL PARA LA


PROTECCIÓN DE LA DIGNIDAD DE LA VIDA HUMANA ES CAPAZ DE
PREVALECER ANTE LA DISCRIMINACIÓN POR EDAD EM RAZÓN DE LA
REVOLUCIÓN DE LA INFORMÁTICA?

Patrícia Dittrich Ferreira Diniz1


Regina Maria Bueno Bacellar2

RESUMO
O desafio está em defender a sadia qualidade de vida e a preservação do princípio da
dignidade no meio ambiente do trabalho impactado pela Revolução da Informática,
principalmente em relação aos trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica, os quais
geralmente possuem dificuldade de adaptação, criando-se um conflito de gerações,
culminando em discriminação em razão da idade. Cabe à sociedade resguardar a sadia
qualidade de vida no meio ambiente do trabalho, impondo limites sustentáveis para a
implantação de tecnologia; promovendo a ideia do pleno emprego e do trabalho decente;
reeducando trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica; exaltando os aspectos
positivos e a contribuição de cada geração para a construção de um ambiente de trabalho
sadio, e, por fim, excluindo qualquer possibilidade de discriminação em razão da idade.
Palavras-chaves: Meio ambiente do trabalho; Revolução da Informática; Discriminação em
razão da idade.

1
Advogada, Membro da Comissão de Assédio Moral e Conselho de Orientação e Ética, todos na Companhia
Paranaense de Energia - Copel, Especialista em Direito Tributário e Direito do Trabalho, Mestranda em Direito
Econômico e Socioambiental na PUC/PR. E-mail: patridf@yahoo.com.br.
2
Advogada Consultora, mestre e especialista em Direito das Relações Sociais e Direito Ambiental. Professora
das disciplinas de Direito Ambiental e Direito das Cidades em cursos de graduação e pós graduação no Brasil.

139
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

RESUMEN
El desafío está en defender la saludable calidad de vida y la preservación del principio de la
dignidad en el medio ambiente del trabajo afectado por la Revolución de la Informática,
especialmente en relación a los trabajadores no jóvenes, sin vivencia tecnológica, los cuales
en general tienen dificultades de adaptación, creándose un conflicto de generaciones, que
culminó con la discriminación basada en la edad. Corresponde a la sociedad preservar la
saludable calidad de vida en el medio ambiente del trabajo, estableciendo límites sostenibles
para la implantación de tecnología; estableciendo la promoción de la idea del pleno empleo y
del trabajo decente; estableciendo el entrenamiento de los trabajadores no jóvenes, sin
vivencia tecnológica; exaltando los aspectos positivos y la contribución de cada generación
para la construcción de un ambiente de trabajo saludable y, por último, excluyéndose
cualquier posibilidad de discriminación por motivos de edad.
Palabras-llaves: Medio Ambiente del Trabajo; Revolución de la Informática; Discriminación
por motivos de edad.

INTRODUÇÃO

A sadia qualidade de vida no meio ambiente do trabalho é fator preponderante para a


preservação do princípio da dignidade da vida humana. É importante exaltar que não há como
desvincular a qualidade de vida da qualidade ambiental, pois é deste equilíbrio que resulta a
diversidade e a vitalidade de todas as formas de vida, e a preservação da dignidade de toda a
humanidade, como pretende o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida
depende da preservação de quatro aspectos, quais sejam, o meio natural, artificial, cultural e
do trabalho.
O presente artigo pretende se aprofundar especialmente no aspecto relacionado ao
meio ambiente do trabalho e a preservação da sadia qualidade de vida neste meio, no qual o
homem passa a maior parte de suas vidas e enfrenta diversos conflitos, principalmente quando
se analisa a implantação da tecnologia nos instrumentos de trabalho e métodos de produção.
O meio ambiente do trabalho é o local em que o homem busca a sua realização como
ser construtor e intelectual, produz para propiciar o desenvolvimento social e econômico do
meio em que vive e para receber os recursos necessários para a sua existência em sociedade,

140
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

portanto, é o meio que concretiza o princípio da busca da felicidade nos seus diversos
aspectos, devendo ser preocupação permanente do Poder Público.
Por certo que para a manutenção da sadia qualidade de vida no meio ambiente do
trabalho, a dignidade do trabalhador deve ser resguardada, pois se trata do mínimo essencial
para a existência do ser humano em sociedade, além de se revelar como garantia social,
política, econômica e cultural, representando um valor supremo na vida do homem, próprio
do mundo do ser, inerente à vida.
Entretanto, analisando o ponto crucial do presente trabalho, é possível manter a
qualidade de vida dos trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica, no ambiente de
trabalho impactado pela Revolução da Informática? Há discriminação em relação a tais
trabalhadores?
Para responder á tais questionamentos há que se analisar os impactos da Revolução
da Informática no meio ambiente do trabalho, principalmente quanto aos trabalhadores não
jovens, que foram criados num mundo sem celular, computador ou Internet, ou seja, não
foram parte ativa da dita Revolução nos bancos escolares ou no início das suas carreiras
profissionais e agora precisam se adaptar a esta nova realidade, totalmente impensada para
gerações mais antigas.
Diante disso, o presente artigo tem por finalidade avaliar a relação entre a sadia
qualidade de vida no meio ambiente do trabalho e o princípio da dignidade da vida humana; o
impacto da Revolução da Informática no meio ambiente de trabalho; a possibilidade de
violação deste princípio quanto aos trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica, e, por
fim, indicar a atuação necessária das empresas, dos sindicatos e da própria sociedade para
lutar pela implantação de tecnologia no ambiente do trabalho de forma sustentável, evitar
práticas discriminatórias em razão da idade e valorizar o que há de melhor em cada geração.
Para avaliar as questões aqui mencionadas, responder aos questionamentos
realizados e inferir o melhor caminho para evitar a discriminação em razão da idade no meio
ambiente do trabalho, far-se-á uma análise bibliográfica, através do estudo de livros,
legislações, normas e tratados internacionais, doutrinas, artigos, teses e jurisprudência dos
Tribunais Regionais do Trabalho, e, após, a coleta de todos os dados, exibir-se-á os
posicionamentos diversos, tanto de autores nacionais e internacionais, como de legislações
brasileiras e normas internacionais, apontando o comportamento adequado de empresas,
sindicatos, trabalhadores e cidadãos, a fim de evitar a dita discriminação e construir uma
sociedade solidária e fraterna.

141
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1 A SADIA QUALIDADE DE VIDA NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO COMO


FATOR PREPONDERANTE PARA A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE DA VIDA
HUMANA.

Com a evolução da raça humana constatou-se que dentre todas as demais existentes
no planeta, o homem é uma forma de vida diferenciada.
Por considerar-se diferenciado, seu intelecto, suas emoções, sentimentos, sua
maneira de existir e suas necessidades são distintos das demais espécies.
Este estudo não tem como finalidade o aprofundamento nas questões relacionadas à
evolução humana, pretende-se tão somente, analisar a sadia qualidade de vida como fator
preponderante para a proteção da dignidade da vida do homem.
Assim, como ponto de partida, se faz importante primeiramente uma reflexão sobre o
que significa sadia qualidade de vida e dignidade humana.
Ambos os termos possuem um caráter subjetivo com variadas definições dependendo
do enfoque que se pretende dar.
A sadia qualidade de vida quando vista sob o enfoque das demais formas de vida,
representa a necessidade de se garantir a existência, o abrigo e o respeito à regência da vida de
cada espécie. Dar condições para que as espécies existam em um meio natural adequado e
sadio.
A respeito, interessante observar que não é possível desvincular qualidade de vida e
qualidade ambiental, pois é desta que resulta o equilíbrio necessário para a existência com
diversidade e vitalidade de todas as formas de vida, sendo aquela ligada não somente à
dignidade humana, mas a dignidade de toda a humanidade:

Nesta perspectiva a qualidade de vida deve ser entendida como qualidade ambiental
não somente ligada à dignidade humana, mas à dignidade da humanidade presente e
futura, esta nos variados ambientes natural, artificial, do trabalho e cultural, ou seja,
além do componente biológico. E garantidos os seus direitos de uso e fruição dos
recursos naturais com qualidade. (HABER, 2011, 262)

O entendimento de Benjamin, acerca da qualidade de vida, demonstra bem que o seu


conceito extrapola o sentido antropocêntrico:

(...) a expressão parece indicar uma preocupação com a manutenção das condições
normais (= sadias) do meio ambiente, condições que propiciem o desenvolvimento
pleno (e até natural perecimento) de todas as formas de vida. Em tal perspectiva, o
termo é empregado pela Constituição não no seu sentido antropocêntrico (a
qualidade de vida humana), mas com um alcance mais ambicioso, ao se propor –
pela ausência da qualificação humana expressa – a preservar a existência e o pleno

142
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

funcionamento de todas as condições e relações que geram e asseguram a vida, em


suas múltiplas dimensões. (BENJAMIN, 2008, p. 108)

Já, ao vincular esta sadia qualidade à forma de vida humana, tem-se como um
conceito jurídico indeterminado onde é necessário incluir tudo o que for importante para a sua
existência de acordo com a sua evolução e a sociedade que construiu. A sadia qualidade de
vida do homem englobará a natureza, as suas construções físicas e intelectuais, sua identidade
vista sob a forma de cultura e o ambiente em que exerce o labor. A sadia qualidade de vida
representará o atendimento das necessidades do homem em suas variadas dimensões tendo
como objetivo primordial o seu pleno desenvolvimento em sociedade.
A Constituição Federal de 1988, ao inserir em seu artigo 225 que “todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida...” reforçou a necessidade da existência da qualidade como elemento
essencial para a proteção da vida humana.
Diferentemente das demais formas de vida que dependem somente da qualidade do
meio natural, o homem como integrante dos demais aspectos que compõem o meio ambiente,
dependerá também de uma boa qualidade nos meios artificial, cultural e do trabalho. Assim,
entende-se que é o conjunto da qualidade dos bens contidos em todos os aspectos, que
propicia ao homem, a sadia qualidade de vida e o pleno desenvolvimento.
Estando o homem inserido em um contexto diferenciado, pode-se dizer que a
qualidade de vida está em conflito permanente com “as condições tecnológicas, industriais e
formas de organização e gestões econômicas da sociedade”, sendo que “a tomada de
consciência da crise ambiental” restou iniciada principalmente a partir desta constatação.
(LEITE, 2010, p. 23)
A qualidade de vida deve ser uma preocupação permanente do Poder Público com o
intuito de assegurar o princípio da busca da felicidade, priorizando mais o aspecto qualitativo
do que o quantitativo. Segundo Leme Machado, “esta ótica influenciou a maioria dos países, e
em suas Constituições passou a existir a afirmação do direito a um ambiente sadio”.
(MACHADO, 2006, p. 121)
A proteção jurídica desta necessidade vital do homo sapiens inicia no momento em
que ocorre a constatação de que apesar de ser uma forma de vida diferenciada, a vida humana
possui intrínseca dependência dos demais recursos naturais e espécies, e hoje, acrescenta-se
ainda, a sua dependência com os demais aspectos que formam o conceito de meio ambiente.

143
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O meio ambiente artificial constitui-se pelas suas construções físicas e intelectuais, é


o lugar que acolhe as suas diferenças, onde as necessidades são extravasadas, buscadas e
saciadas, é onde o homem se desenvolve formando núcleos de interesse e afinidade.
Com o meio ambiente cultural o homem se identifica, resgata a sua origem, colhe as
experiências do passado e deixa frutos para o futuro, é todo o patrimônio construído que fez
história resguardando os fatos importantes da evolução de uma sociedade em determinada
época e lugar.
Por fim, no meio ambiente do trabalho o homem busca a sua realização como ser
construtor e intelectual, produz para propiciar o desenvolvimento social e econômico do meio
em que vive e para receber os recursos necessários para sua existência em sociedade.
O meio ambiente de trabalho está incluso no conceito de meio ambiente, e, portanto,
deve ser protegido com a mesma ênfase, sempre com o intuito de resguardar a sadia qualidade
de vida:

Entendendo-se o meio ambiente do trabalho como um conjunto de fatores físicos,


climáticos ou quaisquer outros que interligados, ou não, estão presentes e envolvem
o local de trabalho do indivíduo, é natural admitir que o homem passou a integrar
plenamente o meio ambiente no caminho para o desenvolvimento sustentável
preconizado pela nova ordem ambiental mundial. Também, pode-se afirmar que o
meio ambiente do trabalho faz parte do conceito mais amplo de ambiente, de forma
que deve ser considerado como bem a ser protegido pelas legislações para que o
trabalhador possa usufruir de uma melhor qualidade de vida. (GROTT, 2003, p. 81)

Esse é o entendimento de Oliveira com relação à preocupação com o meio ambiente


do trabalho:

Entretanto, chega a ser paradoxal a postura do ser humano nos dias atuais. Cresceu a
preocupação louvável com o meio ambiente, com o salvamento de animais em
extinção, com a preservação do ecossistema, mas não houve avanço, com a mesma
intensidade, na melhoria do ambiente de trabalho. (OLIVEIRA, 2010, p. 63)

O homem como núcleo central do meio ambiente do trabalho, e sob o enfoque


ambiental, o reconhecimento da necessidade de proteção do indispensável para o homem,
surgiu na Declaração de Princípios de Estocolmo, documento que consensou os debates e
conclusões havidas na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente em 1972. Com
efeito, o Princípio 1, retrata a grande preocupação com o tema:

O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente, que lhe dá


sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral,
social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça humana no planeta
levou-a um estágio em que, com o rápido progresso da Ciência e da Tecnologia,
conquistou o poder de transformar de inúmeras maneiras e em escala sem
precedentes o meio ambiente. Natural ou criado pelo homem, é o meio ambiente
essencial para o bem-estar e para gozo dos direitos humanos fundamentais, até

144
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

mesmo o direito à própria vida. O homem tem direito fundamental à liberdade, à


igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de
qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador
solene da obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações
presentes e futuras. (Princípio 1 – Declaração de Princípios de Estocolmo)

No mesmo sentido do referido princípio surgido em Estocolmo, a Declaração do Rio


de Janeiro – RIO 92 reforça que “os seres humanos constituem o centro das preocupações
relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e
produtiva, em harmonia com a natureza.” (Princípio 1 – Declaração do Rio sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento)
Vista a qualidade de vida, necessário analisar o que é e qual a abrangência da
dignidade humana.
Termo de difícil definição diante de sua amplitude, grandeza e importância. Da
mesma maneira que a qualidade de vida, a dignidade da vida do homem pode ser interpretada
sob os mais variados aspectos.
Pode-se entendê-la como um atributo de todo ser humano como respeito à sua
existência. Existe por si só, independe de concessão, requisitos ou lei específica. A dignidade
surge com o nascimento do indivíduo, sua proteção se materializa através dos direitos e
garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal ou lei maior de cada país.
Pode ser vista como um mínimo essencial para a existência do ser humano em
sociedade. Este mínimo que representa um conjunto de bens, condições e direitos prioritários
à garantia de uma vida digna, dependerá da época, lugar e valores sociais.
Para Fiorillo, a saúde e o trabalho estão entre os direitos básicos para a concretização
de uma vida com dignidade:

(...) uma vida com dignidade reclama a satisfação de valores (mínimos)


fundamentais descritos no art. 6º da Constituição Federal, de forma a exigir do
Estado que sejam assegurados, mediante o recolhimento dos tributos, educação,
saúde, trabalho, moradia, segurança, lazer, entre outros direitos básicos,
indispensáveis ao desfrute de uma vida digna. (FIORILLO, 2007, p. 67/68)

Sarlet defende que o princípio da dignidade é importante não somente pelo fato de
distinguir e caracterizar individualmente cada ser humano, mas também por propiciar o bom
envolvimento entre estes, fortalecendo uma sociedade justa:

[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de


cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte
do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação

145
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão


com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que
integram a rede da vida. (SARLET, 2012, p. 73)

Com a aprovação em 1948 da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela


Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU, o direito à vida e a tudo o que seja necessário
para o desenvolvimento do homem, passam a ser reconhecidos pelas nações do mundo: "todos
os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. (Declaração Universal dos
Direitos Humanos)
Assim, a dignidade humana passa a ser fundamento para as garantias sociais,
políticas, econômicas e culturais, representando um valor supremo na vida do homem:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta


singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida [...] o
direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, pois o seu asseguramento
impõe-se, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os
demais direitos. (MORAES, 2004, p. 52)

O legislador constituinte ao declarar como garantias e direitos fundamentais do


homem as condições e valores inerentes à sua qualidade de ser humano respeitou e
resguardou as suas necessidades e forma de vida diferenciada, dando-lhe uma tutela adequada
para proteção do maior de todos os seus bens, que é a vida.
Segundo entendimento de Silva, “a dignidade da pessoa humana não é uma criação
constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda a
experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana.” (SILVA, 2000, p. 146)
A dignidade é parte integrante da vida do homem, sua proteção inicia com a
concepção, a semente da vida, e, o acompanha até após a sua morte (quando se refere aos
direitos à imagem, honra, nome do de cujus).
O direito à vida é assegurado não só no seu sentido fisiológico, mas também com
relação ao atendimento de todas as demais condições e elementos necessários ao bem estar do
homem. Existe uma relação indissociável entre o direito à vida e o direito à proteção da
dignidade da pessoa humana, o vínculo é inseparável, insubstituível e invalorável.
Segundo Haber:

(...) a dignidade da humanidade estás estritamente ligada não mais apenas ao garantir
do conforto e saúde individual, mas essencialmente e indissociavelmente ligada à
própria sobrevivência da humanidade. Trata-se de uma nova dimensão de direitos a
serem assegurados, sem eliminar os anteriores, direitos intensamente revestidos de
ubiquidade, transnacionais e atemporais e que se manifestam, como firmado, em
cenários de complexidade. (HABER, 2011, p. 262)

Por fim, pode-se concluir que a dignidade:

146
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

(...) como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável,


constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser
destacado, de tal sorte que não pode se cogitar na possibilidade de determinada
pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. (SARLET,
2012, p. 52)

Visto o significado e abrangência de sadia qualidade de vida e dignidade humana,


constata-se a impossibilidade de desvinculação um do outro. A vida é o maior bem do
homem, mas para que possa aproveitá-la e resguardá-la, obrigatoriamente necessita de um
ambiente (visto em seus quatro aspectos) sadio, que lhe proporcione condições de pleno
desenvolvimento.
Sendo a vida humana dependente das demais formas de vida e demais recursos
naturais, tudo que afete tais bens afetará também o homem.
Vinculando ao caráter fundamental do direito à vida, Cançado Trindade entende que
o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como
extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres
humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade desta existência – qualidade de vida -, que faz
com que valha a pena viver.” (CANÇADO, 1993, p. 76)
O homem não existe por si só, sua qualidade de vida possui uma conexão direta com
tudo o que o rodeia e possa lhe proporcionar um bem estar físico, psíquico, econômico e
social.
Sendo o homem uma forma de vida diferenciada, alguns atributos de caráter
subjetivo lhe dão o sustentáculo para existência em sociedade. O seu intelecto, suas emoções,
sua psique, seu organismo, necessitam de condições que lhe garantam e reflitam o mínimo
existencial.
Em sintonia com tal entendimento, Sarlet e Fensterseifer refletem que:

(...) o ambiente está presente nas questões mais vitais e elementares da condição
humana, além de ser essencial à sobrevivência do ser humano como espécie natural.
De tal sorte, o próprio conceito de vida hoje se desenvolve para além de uma
concepção estritamente biológica ou física, uma vez que os adjetivos “dignos” e
“saudáveis” acabam por implicar um conceito mais amplo, que guarda sintonia com
a noção de um pleno desenvolvimento da personalidade humana, para o qual a
qualidade do ambiente passa a ser um componente nuclear. Nesta perspectiva,
cumpre assinalar ainda que a relação entre dignidade e direitos da personalidade é,
de fato, muito próxima, em vista de ambos estarem diretamente comprometidos com
a concretização da vida humana de forma plena e qualificada (e, portanto, também
saudável). (SARLET, 2011, p. 39)

Importante ressaltar, que neste contexto, abrangem-se também as futuras gerações.


O direito intergeracional, materializado no dever de solidariedade busca tutelar os reflexos das

147
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

condutas das presentes gerações nos futuros direitos das próximas gerações. O patamar
mínimo essencial a uma existência digna do ser humano também precisará ser respeitado
como direito das gerações futuras. A sadia qualidade de vida necessária hoje, também o será
para os homens do futuro. A concepção de que somos meros guardiões dos recursos do
planeta impõe uma obrigatória autolimitação das condutas humanas.
A sustentabilidade é meta primordial. Condutas equivocadas poderão
desastrosamente causar danos irreversíveis às próximas gerações. A cada ato impensado,
atitude desmedida, maior a violação e desrespeito à dignidade destas gerações do amanhã.
A Comissão de Brundtland em seus estudos sobre desenvolvimento sustentável
reconheceu que:

(...) as pessoas também aspiram legitimamente a uma melhor qualidade de vida.


Num mundo onde a pobreza e a injustiça são endêmicas, sempre poderão ocorrer
crises ecológicas e de outros tipos. Para que haja um desenvolvimento sustentável, é
preciso que todos tenham atendidas as suas necessidades básicas e lhes sejam
proporcionadas oportunidades de concretizar as suas aspirações e uma vida melhor.
(COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO,
1991, p. 46/47)

Novamente Sarlet e Fensterseifer vêm reforçar o pensamento de que:

(...) a dignidade humana fundamenta tanto a sociedade já constituída quanto a


sociedade do futuro, apontando deveres e responsabilidades das gerações presentes
para com as gerações futuras [...] Tal situação se dá em razão de que a proteção
ambiental, objetiva garantir condições ambientais favoráveis ao desenvolvimento da
vida humana em patamares de dignidade não apenas para as gerações que hoje
habitam a Terra e usufruem dos recursos naturais, mas salvaguardando tais
condições também para as gerações que irão habitar a Terra no futuro. (SARLET,
2011, p. 41)

Sintetizando esta análise, das considerações tecidas pode-se concluir que a essência
tanto da sadia qualidade de vida quanto da dignidade humana, é a proteção à vida.
O direito à vida, garantido pelo artigo 5º da Constituição da República Federativa do
Brasil, tutela o homem desde a sua concepção até a morte, neste direito estão incluídos todos
os demais direitos e condições mínimas para uma existência digna, preservando-se valores
morais e essenciais para o acesso igualitário aos direitos sociais básicos, à equidade, liberdade
e pleno desenvolvimento físico, econômico, social, intelectual e espiritual do ser humano.
Nesta dimensão, a qualidade de vida passa a ser vista com um elemento normativo
integrante do princípio da dignidade da pessoa humana. (SARLET, 2011, p. 88)
E é exatamente por este motivo que a defesa da qualidade de vida no meio ambiente
do trabalho resta tão importante, pois concretiza a proteção do ser humano, da dignidade que
lhe é inerente.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Entretanto, analisando o ponto crucial do presente trabalho, é possível manter a


qualidade de vida dos trabalhadores não jovens no ambiente de trabalho, após a Revolução da
Informática? Há discriminação em relação a tais trabalhadores?
É certo que não há como desprezar ou impedir o avanço tecnológico, pois o mesmo
faz parte do desenvolvimento, mas cabe aos cidadãos e aos seus representantes estudar limites
para este avanço, sempre com intuito de buscar a sustentabilidade, visando o equilíbrio entre
os aspectos econômicos, sociais e ambientais:

(...) pode-se afirmar que o avanço tecnológico não foi ignorado pelo constituinte
como parte do processo de desenvolvimento. E mais: é pressuposto dele. Contudo, a
sustentabilidade dependerá da escolha feita pelo legislador quanto aos limites de
emprego de novas tecnologias e da constante renovação dos procedimentos de
avaliação de impacto no meio ambiente, nos casos em que eles são exigidos.
(MARQUES, 2011, p. 73)

Uma das decisões extraídas da Declaração de São Paulo elaborada no ano de 2006, na
Conferência Sindical de Trabalho e Meio Ambiente na América Latina e Caribe, defende
exatamente este posicionamento e relaciona o desenvolvimento sustentável com o trabalho
digno, sustentando a utilização de tecnologia e processos produtivos que não prejudiquem o
meio ambiente, nem os trabalhadores e suas famílias, e nem mesmo a sociedade:

Defender los derechos fundamentales de los trabajadores y trabajadoras y de sus


sindicatos, tales como el derecho de libre asociación y de negociación colectiva para
que puedan participar de las estrategias en favor del desarrollo sostenible entendido
como un desarrollo que asegure el trabajo digno con tecnología limpia y procesos
productivos que no perjudican el medio ambiente, ni a los trabajadores, ni a sus
familias, ni a la sociedad en general. (Declaração de São Paulo, 2006)

A preocupação não é inócua e a solução, ou pelo menos, os caminhos que sustentarão


decisões sustentáveis em termos de tecnologia no ambiente de trabalho, devem ser estudadas
e implementadas de imediato, pois os riscos para a sociedade são imprevisíveis em razão da
intensa aceleração das transformações:

(...) o ritmo em que a moderna tecnologia aumentou a sua capacidade de transformar


o ambiente é tal que, mesmo supondo que não irá acelerar-se, o tempo disponível
para tratar do problema deve ser medido mais em décadas do que em séculos.
(VEIGA, 2010, p. 205/206)

É claro que o advento da tecnologia no meio ambiente de trabalho possui aspectos


positivos e negativos, mas neste trabalho, analisar-se-á somente a existência da discriminação
ou não em relação aos trabalhadores não jovens, os quais não possuem vivência na área
tecnológica, pois foram criados num mundo sem celular, computador ou internet, ou seja, não
fizeram parte ativa da Revolução da Informática nos bancos escolares ou no início das suas

149
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

carreiras profissionais, e, agora, precisam se adaptar a esta nova realidade, sob pena de serem
discriminados, assediados moralmente ou até mesmo dispensados.

2 A REVOLUÇÃO DA INFORMÁTICA E O SEU IMPACTO NA QUALIDADE DE


VIDA DOS TRABALHADORES NÃO JOVENS, SEM VIVÊNCIA TECNOLÓGICA.

O sistema capitalista por essência competitivo é que impulsiona as transformações


econômicas, sociais, culturais, tecnológicas, entre outras, sempre com o intuito de aumentar a
produtividade e obter mais lucro, e “em sua pior versão, ela nos faz voltar à política estreita e
sectária em que o respeito pelos outros é queimado na fogueira da competição entre os
fragmentos” (HARVEY, 2007, p. 316)
A globalização, fenômeno ocorrido a partir da década de 1970, é fruto destas
mutações, pois foi criada intencionalmente pelos países formadores do G-7, instituições
financeiras e multinacionais, com o intuito de controlar as forças de trabalho, através da
diminuição do seu poder de negociação. (CAPRA, 2006, p. 141-167)
Tal subtração de poder era essencial para evitar a redução de lucros com o
pagamento de altos salários, e tal intento obteve êxito com a expansão do mercado de
trabalho, uma vez que possibilitou às empresas e indústrias procurarem países em que a mão
de obra fosse mais barata.
Para aumentar ainda mais os lucros as empresas passaram a adotar tecnologias cada
vez mais avançadas nos instrumentos de trabalho e métodos de produção:

Ora, a globalização implica a expansão da tecnologia, que atinge os instrumentos e os


métodos de produção, com vistas a tornar as empresas mais competitivas, para o que se
requer a redução de seus custos, especialmente em relação à mão-de-obra, na ânsia de
melhores resultados econômicos – a “mais valia”, ínsita ao capitalismo. (SOARES FILHO,
2007, p. 60)

Neste mundo em constante transformação, principalmente após a Revolução da


Informática, em que a velocidade impera e o conhecimento tecnológico se torna essencial
para o exercício de diversas atividades, exige-se cada vez mais a sadia qualidade de vida,
principalmente no ambiente de trabalho, em que passamos grande parte das nossas vidas.
Entretanto, a dita Revolução que nos insere na Sociedade Digital, na Sociedade da
Informação e na Sociedade em Rede, altera e muito o meio ambiente de trabalho, através da
implantação de inovações tecnológicas que culminam em consequências benéficas e
maléficas para o empregado.

150
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Por um lado, a tecnologia evita a ocorrência de muitos acidentes de trabalho, alivia


trabalhos mais estafantes, insere no mercado de trabalho pessoas com deficiência, entre
diversas outras situações, mas em outra direção, cria o desemprego estrutural, aliena o
trabalhador e também descontextualiza trabalhadores não jovens, que não cresceram neste
mundo informatizado, e por vezes sofrem para se adaptar à nova realidade.
O fato é que o advento da tecnologia no ambiente de trabalho, não trouxe somente
benefícios, malefícios e inclusões sociais, mas também exclusões, os chamados
informaginalizados, dentre os quais estão os trabalhadores não jovens, sem vivência
tecnológica, incluindo também os idosos. (GRASSELLI, 2010, p. 56)
Através desta abordagem, é importante destacar que o artigo 7º, XXX da
Constituição da República Federativa do Brasil veda a diferença de salários, de exercício de
funções e de critério de admissão por motivo de idade. A Lei nº. 9.029/1995, no seu artigo 1º,
também proíbe tal discriminação, principalmente quanto ao acesso e manutenção do emprego.
O artigo 7º, XXVII da Constituição da República Federativa do Brasil, por sua vez,
determina a proteção em face da automação, mas não especifica qual o aspecto desta
proteção, até mesmo porque, no ano de 1988, momento da publicação desta norma
constitucional, talvez não se pudesse visualizar exatamente quais seriam os efeitos da
automação.
Deve-se verificar que o respectivo inciso XXVII deve ser interpretado em conjunto
com o caput do artigo 7º, ou seja, a automação somente pode ser aplicada no meio ambiente
de trabalho quando visar à melhoria da condição social do trabalhador, dessa forma, se da
implantação de tecnologia decorrer discriminação do trabalhador não jovem, sem vivência
tecnológica, este deve ser protegido, seja através da qualificação, seja através da colocação
em outra função mais adaptada às suas aptidões.
Esse é o entendimento de Arnaldo Sussekïnd:

(...) afigura-se-nos que o preceito constitucional “proteção em face da automação”


não deve restringir-se à distribuição dos frutos do aumento da produtividade em
favor dos empregados das respectivas empresas e à melhoria das suas condições de
trabalho. (SUSSEKÏND, 2001, p. 306)

Muitas vezes estes trabalhadores, por não terem vivência tecnológica, demoram a se
amoldar às novas formas de realização e organização de atividades profissionais, e, por vezes,
sequer conseguem adaptar-se, momento no qual, sofrem discriminação por parte de colegas e
superiores, inclusive quando estes são mais jovens.

151
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para Torres a primeira preocupação com o advento da tecnologia no ambiente de


trabalho, foi a adaptação do homem à máquina, sob pena daquele ser descartado, enquanto, a
preocupação deveria ser da máquina servir como melhoria de condição social ao homem, e
jamais ao contrário, ou seja, as empresas estão implantando nova tecnologia de forma não
sustentável, priorizando apenas o aspecto econômico:

As exigências dos serviços, em razão do desenvolvimento das máquinas e do


aumento de produtividade, trouxeram, primeiramente, a preocupação do homem em
adaptar-se ao trabalho.
Nesse quadro, quando havia inadequação do homem ao meio de trabalho, perdia-se
o trabalhador que geralmente era substituído e considerado um desajustado. (...)
Com o avanço da tecnologia as características e as relações trabalhistas mudaram,
exigindo esforço excepcional de adaptação e com alterações significativas de vida.
(TORRES, 2007, p. 43/44 e 58/59)

Neste exato momento de implantação e utilização de tecnologia no ambiente de


trabalho, pode surgir um conflito de gerações, pois os trabalhadores jovens não conseguem
compreender o motivo que enseja a ausência ou a demora de adaptação dos trabalhadores não
jovens às novas tecnologias, e, por outro lado, estes últimos trabalhadores, com mais
experiência numa determinada atividade e nos negócios da empresa, também não conseguem
compreender a visão e inquietação dos jovens.
É importante registrar que trabalhadores jovens muitas vezes desconsideram toda a
experiência do trabalhador não jovem, até mesmo por influência das próprias empresas, as
quais estimulam e exaltam as gerações mais jovens em detrimento das gerações mais antigas,
fator que acaba acirrando o conflito de gerações.
Dessa forma pode-se inferir que a Revolução da Informática enseja a discriminação
em razão da idade, pois esta separa gerações sem vivência e com vivência tecnológica, fator
que interfere na qualidade de vida dos trabalhadores não jovens, tornando o meio ambiente do
trabalho não sadio para estes últimos.
Cebrian explica esta separação entre gerações e ainda destaca a diminuição de
oportunidades em relação à geração mais antiga, pois a sociedade atual acende os mais jovens
e torna obsoletos os mais antigos:

Tudo isso possui maior significado se entendermos que a revolução cibernética é


protagonizada pelos mais jovens. Os milionários de hoje se fazem aos trinta anos, e
os sábios, aos quarenta. Por mais paradoxal que pareça, quanto mais aumenta a
expectativa de vida da população de mais juventude de espirito toma conta da
sociedade dos adultos, menos estes recebem o reconhecimento social a que outrora
tiveram direito. Um ancião da atualidade esquia, monta a cavalo, gera novas
famílias, decide frequentar a universidade, é um indivíduo ativo em todos os
aspectos de sua vida, de modo que abandonou os hábitos, a mentalidade e sua
própria condição de ancião. Todavia, tem cada vez menos oportunidades de

152
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

contribuir com sua comunidade, aposenta-se antes ou logo percebe que seu posto de
trabalho é declarado obsoleto e se vê arrastado pela onda das novas gerações que
cavalgam nos lombos dos modernos saberes tecnológicos. (CEBRIAN, 1999, p.
68/69)

Tal conflito de gerações já era previsto em doutrinas publicadas na década de 1960,


mas parece que após cinco décadas, ainda não houve uma solução satisfatória:

Conflitos de valores e tensões entre gerações provavelmente aumentarão, sobretudo


entre a nova geração que está ingressando no poder político e profissional, e usando
os novos tipos de técnicas operacionais e independentes, e as gerações mais antigas,
que já ocupam o setor. Esses conflitos e suas várias expressões em diferentes valores
e técnicas de operação significarão que tanto as pressões quanto as inibições para
fazer o tipo de reformas social e tecnológica de que precisaremos, certamente serão
muito grandes. (MICHAEL in MORSE, 1967, p. 106)

O fato é que a Sociedade em Rede que decorreu da Revolução da Informática alterou


o meio ambiente de trabalho não somente com relação aos equipamentos e máquinas
utilizadas, mas também quanto à sua forma de organização, passando de uma estrutura
vertical para uma estrutural horizontal. (CASTELLS, 2012, p. 221-224)
Tal necessidade de alteração resta essencial e a não adoção desta nova estrutura pode
ensejar até mesmo a falência de uma empresa, pois somente a utilização de uma estrutura
horizontal pode dar suportes flexíveis para enfrentar alterações cada vez mais rápidas em um
mundo globalizado. (CASTELLS, 2012, p. 221-224)
Dentro deste aspecto surge mais um conflito de gerações, eis que os trabalhadores
não jovens estão acostumados a trabalhar num modelo de organização vertical, com estrutura
rígida, sem grandes flexibilidades, enquanto, os trabalhadores jovens já estão acostumados a
exercer as suas atividades profissionais num modelo de organização horizontal.
Destaca-se que os dois modelos organizacionais são completamente diferentes, sendo
que a vertical é extremamente burocrática, compartimentada, com alta divisão de tarefas
realizadas de forma isolada, e, possui concentração em atividades ao invés do produto. Já a
estrutura horizontal apresenta sete caraterísticas essenciais:

(...) organização em torno do processo, não da tarefa; hierarquia horizontal;


gerenciamento em equipe; medida do desempenho pela satisfação do cliente;
recompensa com base no desempenho da equipe; maximização dos contatos com
fornecedores e clientes; informação, treinamento e retreinamento de funcionários em
todos os níveis. (CASTELLS, 2012, p. 221)

Portanto, o conflito de gerações em razão da tecnologia no ambiente de trabalho


pode ocorrer tanto em relação aos instrumentos de trabalho, quanto á forma de organização
das atividades.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

É preciso ter consciência de que a Revolução da Informática pode ser utilizada como
instrumento hábil para concretizar o princípio da igualdade, da busca da felicidade, a melhoria
das condições sociais, mas por outro lado, também pode maximizar a violação de tais
princípios e condições, caso a sociedade não saiba utilizar e aplicar o que a tecnologia possui
de melhor:

A sociedade digital pode ser um instrumento fabuloso de igualitarismo sem a


necessidade de aniquilar a pluralidade de opções e propostas. Mas pode converter-
se, também, numa forma ampliada de dominação. Aqui está o mais sublime e
aterrador dos paradoxos de nossa existência moderna. O homem, inventor e dono da
tecnologia, contempla hoje a ameaça de converter-se em seu escravo. Para que isso
não ocorra, é preciso reivindicar continuamente seu papel central no futuro do
Universo. (CEBRIAN, 1999, p. 154)

E uma das consequências da utilização inadequada da tecnologia é a discriminação


de trabalhadores pertencentes às gerações mais antigas, na qual não havia vivência
tecnológica, ocasionando a ocorrência de dano moral, assédio moral, dispensa e até mesmo a
não admissão de trabalhadores com estas características.
Dessa forma, para que seja resguardada a sadia qualidade de vida no meio ambiente
de trabalho para as gerações mais antigas, é preciso combater a discriminação:

Discriminação é a conduta pela qual nega-se à pessoa, em face de critério


injustamente desqualificante, tratamento compatível com o padrão jurídico
assentado para a situação concreta por ela vivenciada. (DELGADO, 2004, p. 169)

É importante também citar o artigo 3º da Declaração da Filadélfia o qual estabelece


que a Organização Internacional do Trabalho possui a obrigação de promover mundialmente
o pleno emprego, entre outras situações de proteção do trabalhador:

a) plenitude de emprego e elevação dos níveis de vida;


b) o emprego de trabalhadores nas ocupações em que possam ter a satisfação de dar
mais ampla medida de suas habilidades e de oferecer sua maior contribuição ao
bem-estar comum;
(...)
j) assegurar as mesmas oportunidades para todos em matéria educativa e
profissional.

A Organização Internacional do Trabalho nas Convenções 100 e 111, igualmente


combate a eliminação da discriminação em matéria de emprego, principalmente quanto ao
“acesso à formação profissional; admissão no emprego e nas diversas ocupações; condições
de trabalho”. (GUNTHER, 2011, p. 83)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A sociedade e principalmente as empresas devem sempre buscar o melhor de cada


geração, exaltando os aspectos positivos e a contribuição de cada uma para a construção de
um meio ambiente de trabalho mais sadio, excluindo qualquer possibilidade de discriminação:

Logo, não podemos julgar o homem pela idade, mas pela sua personalidade.
Não podemos negar que após certa idade, inicia-se o declínio biológico, mas o
intelecto pode- e se torna na maioria dos casos, mais intenso. Logo é falso
estabelecer limite de idade para certas carreiras que exigem apenas acuidade mental.
Temos que reconhecer que a juventude tem maior força biológica, mas a velhice tem
mais experiência da vida, o que talvez supere com vantagem a força dos moços. Isso
também sem ir ao extremo oposto e negar capacidade de discernimento aos jovens.
(MATTAR, 2005, p. 73)

A discriminação é inaceitável, pois atinge a dignidade da pessoa humana e viola o


princípio da igualdade, mas a ocorrência desta no ambiente de trabalho possui impacto
demasiado, pois o meio ambiente do trabalho precisa ser sadio considerando que é o local no
qual o trabalhador vive grande parte dos seus dias.
Para evitar consequências desastrosas decorrentes da discriminação das gerações
mais antigas, resta necessário o investimento em políticas públicas, com a reeducação dos
trabalhadores sem vivência tecnológica:

Es preciso reeducar al obrero, reentrenarlo para que pueda reinsertarse em la nueva


sociedade que no será ni la sombra de la que fue antaño.
Urge renovar y recapacitar a los profesionales, sobre todo a quienes están vinculados
al processo productivo del país.
La ciência y la tecnologia avanzam rumbo al futuro con passo seguro y demolidor y
el hombre, professional u obrero, debe mantenerse al ritmo de esa marcha, si no
desea verse marginado del seno de uma sociedade que exige poseer cada vez
mayores y excelentes conocimientos. (PALOMINO, abril-junho/2011, p. 151)

É preciso prevalecer a compreensão mútua entre as gerações, para que as mudanças


não afetem a dignidade de nenhum trabalhador. As transformações são perenes e devem ser
enfrentadas com inteligência e maturidade:

Es necessário prepararse, compreender y recibir esse futuro com madurez,


inteligência y disposición para el cambio. (PALOMINO, janeiro-março/2011, p. 50)

Não há como passar despercebido que a força de trabalho, cada vez mais estará
projetada no cérebro e não nos braços, e é exatamente por este motivo que resta essencial a
preservação do ambiente de trabalho sadio, pois a fadiga psíquica é de recuperação mais
complexa que a fadiga física, não restando necessário ainda acrescentar a este quadro,
eventuais danos psíquicos decorrentes da discriminação, pois o ambiente de trabalho
informatizado, por si só, já pode ser causa suficiente para ser o estopim de diversas
complicações:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A força de trabalho exigida do operário está se deslocando rapidamente dos braços


para o cérebro, especialmente com o ritmo acentuado da informatização. Com isso,
percebe-se que vem ocorrendo uma diminuição efetiva da fadiga física, porém um
aumento considerável da fadiga psíquica, cuja recuperação é muito mais lenta e
complexa. (OLIVEIRA, 2010, p. 182)

Pelos fatores aqui expostos, não é de causar espanto que nas dispensas coletivas, a
maioria dos dispensados sejam exatamente trabalhadores com mais idade e que não possuem
vivência tecnológica, pois a empresa ao invés de exercer o seu papel social e realizar a
reinserção destes em outras atividades, preferem simplesmente dispensá-los e transferir esse
problema para a sociedade, a qual arcará com custos de seguro-desemprego, entre outros:

A atual política da chamada reengenharia de pessoal com as suas despedidas em


massa atinge em cheio os funcionários mais idosos. Ademais, numa empresa
preocupada com a qualidade total é inevitável a irritação com o colega maduro, que,
geralmente, tem maior dificuldade de adaptação às novas tecnologias e às modernas
técnicas de gestão empresarial. (PRATA, 2008, p. 236)

A Justiça do Trabalho, preocupada com a presente questão, e, com o intuito de


preservar a dignidade do trabalhador e evitar atos discriminatórios em razão da idade, tem
exarado as seguintes decisões envolvendo dispensa, admissão e ociosidade de trabalhadores
não jovens:

“DISCRIMINAÇÃO ETÁRIA – 21 (VINTE E UM) ANOS NO EXERCÍCIO DE


CARGO DE CONFIANÇA – REVERSÃO AO CARGO ANTERIOR – DANO
MORAL – INDENIZAÇÃO DEVIDA – EFETIVAMENTE, É A APLICAÇÃO DA
REGRA DO § 1º DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL QUE IMPÕE A
OBSERVÂNCIA IMEDIATA DAS NORMAS DEFINIDORAS DOS DIREITOS E
GARANTIAS FUNDAMENTAIS, POIS A PRÁTICA DE DISPENSA
DISCRIMINATÓRIA POR IDADE AFRONTA O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONTEMPLADO NO CAPUT DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – O
arcabouço teleológico do citado dispositivo constitucional remete o intérprete a
promover condições para o aprimoramento de uma sociedade mais justa. No caso
concreto, obstar a permanência do empregado na função de confiança que exercia há
21 (vinte e um) anos, por motivo de idade é um retrocesso, porquanto havia previsão
normativa interna de manutenção dos empregados já comissionados em suas
respectivas funções e unidades e, ainda, oferecer publicidade limitada quanto ao
processo seletivo, quando o empregado encontrava-se no gozo de férias por
imposição do empregador, revela a intenção de excluí-lo e destituí-lo do cargo de
confiança em razão de sua idade, motivo pelo qual o reclamado deve arcar com a
reparação civil.” (TRT 20ª R. – RO 00634.2009.001.23.00-0 – 1ª T – Rel. Juiz
Conv. Aguimar Peixoto – DJe 05.05.2010)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA – DISCRIMINAÇÃO ETÁRIA NA SELEÇÃO DE


EMPREGADOS – DANO MORAL COLETIVO CONFIGURADO – A constatação
de atitude da empresa no sentido de discriminar empregados a serem admitidos com
base, puramente, em sua faixa etária, é ato manifestamente inconstitucional e, ainda,
ensejador de reparação por dano moral coletivo, pois a atitude da recorrente mostra-
se atentatória não apenas àqueles indivíduos que deixaram de ser contratados pela

156
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

idade elevada, mas também a toda a sociedade, indiretamente. (TRT 13ª R. – RO


20000-47.2011.5.13.0002 – Rel. Des. Francisco de Assis Carvalho e Silva – DJe
10.04.2012 – p. 3)

DISCRIMINAÇÃO POR IDADE – OCIOSIDADE IMPOSTA – RESCISÃO


INDIRETA – DANOS MORAIS – A ociosidade imposta é uma das mais graves
ofensas ao trabalhador. Ainda mais ao intelectual que por longos anos contribuiu
para o engrandecimento do nome da empresa. Não bastasse tal situação humilhante,
a ela fora levada a autora por motivos discriminatórios em razão de sua idade.
Superaram-se os limites do poder potestativo da empresa, ferindo-se, não somente a
dignidade da trabalhadora, mas princípios constitucionais, éticos e sociais. A
ociosidade imposta à autora se dera com a finalidade de esta deixar a empresa e se
firmara em bases discriminatórias, infringindo normas expressas na Constituição
Federal e na Lei 9029/95. Devida a indenização por danos morais. (TRT 02ª R. –
RO 03138-2000-052-02-00 – (20050884799) – 1ª T. – Relª p/o Ac. Juíza Lizete
Belido Barreto Rocha – DOESP 13.12.2005)

O “homem tem direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio
ambiente” (GROTT, 2003, p. 158), sem qualquer forma de discriminação, e é precisamente
por este motivo que a Organização Internacional do Trabalho defende a adoção mundial do
trabalho decente:

O Trabalho Decente é o ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da


OIT: o respeito aos direitos no trabalho (em especial aqueles definidos como
fundamentais pela Declaração Relativa aos Direitos e Princípios Fundamentais no
Trabalho e seu seguimento adotada em 1998: (i) liberdade sindical e
reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; (ii)eliminação de todas as
formas de trabalho forçado; (iii) abolição efetiva do trabalho infantil; (iv) eliminação
de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação), a
promoção do emprego produtivo e de qualidade, a extensão da proteção social e o
fortalecimento do diálogo social. (Extraído do site:
http://www.oitbrasil.org.br/content/o-que-e-trabalho-decente)

Lutar contra a discriminação é lutar a favor de uma sociedade justa e pela redução da
pobreza, pois, “na visão da OIT, o emprego produtivo e o trabalho decente são elementos
chave” para alcançar estes objetivos. (ROMITA, 2009, p. 241)
Cabem às empresas agirem com responsabilidade social empresarial, deixando de
atuar somente na busca de lucros, e passando a focar nas “políticas de pessoal que respeitem
os direitos dos que fazem parte da empresa e favoreçam o seu desenvolvimento”, na
“transparência e boa governança corporativa”, e, principalmente, “não praticar um código de
ética duplo”, ou seja, o mesmo discurso externo deve ser aplicado ainda com mais veemência
internamente. (SEN, 2010, p. 362/365)
Este é o entendimento de Santos:

O “indivíduo-produtor”, o homem do final do século XX, localiza-se num quadro


específico da história, produzido pela centralidade do trabalho produtivo e pela
vinculação à hegemonia da empresa produtiva. Compete, pois, à empresa ajuda-lo a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

conduzir-se, proporcionando-lhe um quadro de realização que contemple não só seu


conjunto biológico, mas também seu conjunto social e transcendental. (SANTOS,
2001, p. 98)

Os sindicatos também devem atuar na proteção dos trabalhadores, batalhando para


que a implantação e a utilização de tecnologias nas empresas sirvam para melhorar as
condições sociais no ambiente de trabalho. Destaca-se aqui o papel fundamental do sindicato,
pois o trabalhador individualmente não possui força em razão do aumento crescente do
desemprego e da necessidade da luta pela sobrevivência, mesmo num ambiente hostil:

A falta de segurança no emprego e alta rotatividade inibem o trabalhador na luta


para as melhorias do ambiente de trabalho e acabam contribuindo para a falta de
efetividade das normas de proteção à saúde. Se o empregado não pode ter ambiente
de trabalho saudável, pelo menos luta para garantir o emprego possível e a
sobrevivência.
O desemprego é, com certeza, o agente mais agressivo à saúde do trabalhador,
especialmente à saúde mental. (OLIVEIRA, 2010, p. 135)

Cabe à sociedade fomentar o sentimento de comunidade e solidariedade entre todos


os seus partícipes, quais sejam, cidadãos, pessoas jurídicas e órgãos públicos, deixando de
lado sentimentos puramente egoísticos, decorrentes de um sistema capitalista feroz e
implementar um capitalismo mais humanista, com a valorização de todos os trabalhadores e
as suas respectivas aptidões, além do respeito mútuo entre as diversas gerações:

Se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa


encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma
dedicação ao bem comum. Ela não pode ser indiferente às atitudes e disposições, aos
“hábitos do coração” que os cidadãos levam para a vida pública, mas precisa
encontrar meios de se afastar das noções da boa vida puramente egoístas e cultivar a
virtude cívica. (SANDEL, 2012, P. 325)

Esta transformação já começou e não possui freios, sendo que aos poucos, as
instituições que não estiverem adaptadas a uma realidade mais humana, simplesmente
restarão desintegradas e deixarão de existir:

Enquanto a transformação cultural está ocorrendo, a cultura declinante recusa-se a


mudar, aferrando-se cada vez mais obstinada e rigidamente a suas ideias obsoletas;
as instituições sociais dominantes tampouco cederão seus papéis de protagonistas às
novas forças culturais. Mas seu declínio continuará inevitavelmente, e elas acabarão
por desintegrar-se, ao mesmo tempo que a cultura nascente continuará ascendendo e
assumirá finalmente seu papel de liderança. (CAPRA, 1982, 409/410)

O progresso deve ser observado através de uma visão holística e não apenas
mecanicista, pois o desenvolvimento decorrente deste deve ser sustentável, respeitando os
aspectos econômicos, sociais e ambientais:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Manter uma visão crítica sobre a direção do progresso é ser capaz, justamente, de
separar dele o seu elemento de discurso hegemônico; ou seja, ter competência para
observar o conteúdo estratégico de adição de valor. Portanto, é preciso observar e
decompor a realidade em seus últimos elementos para captar-lhe seu verdadeiro
sentido. Só a partir daí a condição de sujeitos da história pode se manifestar.
(DUPAS, 2006, p. 286)

Quando toda a sociedade se conscientizar que a discriminação em relação às


gerações mais antigas, as quais não possuem vivência tecnológica, em algum momento da
história alcançará o próprio discriminador, uma vez que a tecnologia sempre estará em
constante transformação, e poderá tornar obsoleto o próprio agente ativo da discriminação,
por não ter conseguido acompanhar os avanços tecnológicos, neste momento então, ocorrerá a
verdadeira transformação, com a preocupação efetiva de se manter um ambiente de trabalho
sadio para a preservação da dignidade humana de todos os trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente um dos maiores desafios da humanidade é a compatibilização do


desenvolvimento social e econômico com a proteção do meio ambiente. A tarefa não é fácil,
mas, também não é impossível. Urge uma mudança de mentalidade de forma que o homem
passe a ter o real entendimento do que os recursos naturais e as outras formas de vida
representam para a continuidade de sua própria vida e das futuras gerações.
Em um mundo em constante evolução, com um avanço acelerado de novas
tecnologias, imprescindível a garantia de um mínimo de qualidade de vida. A qualidade de
vida do homem reflete diretamente em seu pleno desenvolvimento na sociedade e no papel
que exerce nela. As experiências históricas revelam que dentre todas as necessidades
humanas, o respeito à vida e o atendimento às condições mínimas de sobrevivência e
felicidade é o que mais o afeta. Assim, a dignidade da vida humana, garantia fundamental
inserida na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Constituição da República
Federativa do Brasil, busca a proteção e muitas vezes, o resgate da essência do homo sapiens,
dos valores intrínsecos e imprescindíveis para a garantia de sua individualidade como ser
único e diferenciado.
Não há como dissociar sadia qualidade de vida e dignidade humana. Uma é para a
outra como a terra é para a semente, a água é para o rio e a natureza é para o homem.
Entretanto, o grande desafio está em defender estas garantias no meio ambiente do
trabalho em constante evolução tecnológica, pois não há como desprezar ou impedir este

159
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

avanço, pois o mesmo faz parte do desenvolvimento tão necessário à sociedade, mas cabe aos
cidadãos e aos seus representantes estudar limites para este avanço, sempre com o intuito de
buscar a sustentabilidade, através do equilíbrio entre os aspectos econômicos, sociais e
ambientais.
Por um lado, a tecnologia evita a ocorrência de muitos acidentes de trabalho, alivia
trabalhos mais estafantes, insere no mercado de trabalho pessoas com deficiência, entre
diversas outras situações, mas em outra direção, cria o desemprego estrutural, aliena o
trabalhador e também descontextualiza trabalhadores não jovens, que não cresceram neste
mundo informatizado, e por vezes sofrem para se adaptar à nova realidade, sofrendo todo o
tipo de discriminação, assédio moral e até dispensa.
O artigo 7º, XXX da Constituição da República Federativa do Brasil e o artigo 1º da
Lei nº. 9.029/1995 vedam a discriminação em razão da idade, principalmente quanto ao
acesso e a manutenção do emprego, e tais normas, analisadas em conjunto com o artigo 7º,
XXVII da referida Constituição, nos fornece a conclusão de que a automação somente pode
ser aplicada no meio ambiente do trabalho quando visar à melhoria da condição social do
trabalhador.
O fato é que a Revolução da Informática causa um grande impacto no meio ambiente
do trabalho, principalmente em relação aos trabalhadores não jovens, sem vivência
tecnológica, pois muitas vezes possuem dificuldade de adaptação ou sua total ausência em
relação aos novos instrumentos de trabalho e/ou a nova forma de organização das atividades,
cria-se um conflito de gerações dentro das empresas, fator que acaba culminando em
discriminação em razão da idade, dano moral, assédio moral e até mesmo a dispensa e a não
admissão de trabalhadores com estas características.
A Revolução da Informática separa gerações e diminui as oportunidades no mercado
de trabalho para as gerações mais antigas, pensamento inclusive exaltado pelas empresas e
pela sociedade, que exaltam os jovens e tornam obsoletos os mais antigos.
É preciso ter consciência de que a Revolução da Informática pode ser utilizada como
instrumento hábil para concretizar o princípio da igualdade, da busca da felicidade, a melhoria
das condições sociais, mas por outro lado, também pode maximizar a violação de tais
princípios e condições, caso a sociedade não saiba utilizar e aplicar o que a tecnologia possui
de melhor.
Desta forma está nas mãos de toda a sociedade resguardar a sadia qualidade de vida
no meio ambiente do trabalho após o impacto da Revolução da Informática; impondo limites
sustentáveis para a implantação de tecnologia; promovendo a ideia do pleno emprego e do

160
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

trabalho decente; reeducando trabalhadores não jovens, sem vivência tecnológica; exaltando
os aspectos positivos e a contribuição de cada geração para a construção de um ambiente de
trabalho sadio, e, por fim, excluindo qualquer possibilidade de discriminação em razão da
idade.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ALGUMAS REFLEXÕES ACERCA DA PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE E


INTEGRIDADE DO PATRIMÔNIO GENÉTICO FACE ÀS PESQUISAS E
MANIPULAÇÃO DO GENOMA HUMANO

SOME REFLECTIONS ON THE PROTECTION OF BIODIVERSITY AND


INTEGRITY OF SHAREHOLDERS AGAINST GENETIC RESEARCH AND
MANIPULATION OF HUMAN GENOME

Lucélia Simioni Machado1


Taísa Villa Furlanetto2

RESUMO: O presente estudo busca analisar as questões sobre a proteção da biodiversidade e


do patrimônio genético, face à discussão em torno do Genoma Humano o que tem despertado
interesse e preocupação por parte da comunidade jurídico-político-científica, na medida em
que questões como a reprodução humana, manipulação de genes humanos, a proteção do
patrimônio genético constituem-se temas complexos que exigem uma compreensão ampla e
integrada por parte de profissionais das diversas áreas como a Bioética, Genética, Relações
Sociais e atividades da saúde. A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 225, § 1º, inciso II
estabelece a proteção da diversidade ecológica e a integridade do patrimônio genético
brasileiro. Nesse sentido, percebe-se o dever do Poder Público assegurar a efetividade desse
direito. No entanto, para garantir o gozo ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
preservando-se e defendendo-se o patrimônio ambiental e a biodiversidade para as presentes e
futuras gerações, faz-se imperiosa, além do Poder Público, a participação da coletividade nesse
processo de defesa e preservação ambiental.

PALAVRAS-CHAVE: Biodiversidade; Genoma Humano; Bioética; Biodireito; Dignidade da


pessoa humana.

ABSTRACT: This study seeks to examine the issues on the protection of biodiversity and
genetic resources, given the debate around the Human Genome that has aroused interest and

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental e Sociedade, na linha de pesquisa Direito
Ambiental e Novos Direitos da Universidade de Caxias do Sul/RS (UCS). Bacharela em Direito pela
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Integrante do grupo de pesquisa “direito ambiental em paralaxe” na UCS.
Servidora Pública no RS. E-mail: luceliasimioni@yahoo.com.br
2
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental e Sociedade, na linha de pesquisa Direito
Ambiental e Novos Direitos da Universidade de Caxias do Sul/RS (UCS). Especialista em Direito Civil e
Processual Civil pela Faculdade IDC. Bacharela em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Integrante
do grupo de pesquisa “direito ambiental em paralaxe” na UCS. Advogada no RS. E-mail:
taisavfurlanetto@hotmail.com

164
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

concern from the community legal-political-scientific, in that issues such as reproduction


human manipulation of human genes, the protection of genetic resources constitute complex
issues that require a broad understanding and integrated by professionals in various areas such
as Bioethics, Genetics, Social Relations and health activities. The 1988 Federal Constitution, in
Article 225, § 1, II establishes the protection of ecological diversity and integrity of the
Brazilian genetic heritage. Accordingly, we perceive the duty of the Government to ensure the
effectiveness of this right. However, to ensure enjoyment to an ecologically balanced
environment, preserving and defending the biodiversity and environmental heritage for present
and future generations, it is imperative, in addition to the Government, the participation of the
community in the process of defense and environmental preservation.

KEYWORDS: Biodiversity; Human Genome; Bioethics; Biolaw; dignity of the human


person.

1 INTRODUÇÃO
O ser humano encontra-se em constante processo de evolução, de transição científico-
jurídico-tecnológico. Com o avanço da ciência médica, houve a possibilidade de inúmeras
descobertas científicas, de se fazer combinações e manipulações de genes, a possibilidade de
exames de DNA muito mais precisos, afastando-se a incerteza da paternidade, por exemplo.
No entanto, ao mesmo tempo em que tais questões suscitam interesse e debate nas diversas
ciências (Direito, Biologia, Sociologia, Medicina etc.), surge a preocupação sobre a
potencialidade das modernas tecnologias utilizadas nas práticas biomédicas e as implicações
sobre o corpo, a saúde e a diversidade do patrimônio genético.
Aqui, neste trabalho, busca-se compreender a problemática existente especialmente
no que concerne aos aspectos ético-jurídicos que envolvem a manipulação no genoma humano
a partir de uma concepção ecológica, ou seja, a preservação da diversidade e a integridade do
patrimônio genético com o equilíbrio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, levando-
se em conta a saúde e o bem-estar do homem, com a necessidade de se preservar a
biodiversidade planetária.
Nesse contexto, ressalta-se a importância da previsão legislativa concernente ao
direito ambiental, elencada no artigo 225, caput da Constituição Federal de 1988, destacando-
se o direito à sadia qualidade de vida a partir de um meio ambiente sadio e ecologicamente
equilibrado. Nesse cenário, para garantir uma sadia qualidade de vida a todo ser humano e que
o mesmo possa usufruir de um meio ambiente saudável e equilibrado, o legislador buscou
garantir, entre outros dispositivos elencados no mesmo artigo, a preservação do patrimônio
genético, a fiscalização das entidades que se destinam à pesquisa e manipulação de material

165
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

genético (art. 225, §1º, II da CF/88), com o intuito de assegurar o respeito aos direitos
fundamentais do homem, fundamentado no princípio da dignidade da pessoa humana.
A partir de tal compreensão, deve-se refletir e analisar o que vem sendo feito sobre a
temática aqui proposta, a partir de uma leitura analítica, crítica e reflexiva nas questões que
versam sobre o que determina o artigo 225 caput da Constituição Federal de 1988, bem como o
seu § 1º, inciso II do mesmo artigo, a partir da formulação das questões decorrentes do
desenvolvimento da denominada Bioética, da Biotecnologia e da Biomedicina.
Essas questões envolvem respostas que podem ser multi, inter e transdisciplinares, e o
Biodireito, como disciplina jurídica, vem sendo desenvolvido como uma solução para a análise
do caso concreto, pronto para oferecer respostas que satisfaçam os problemas constantemente
identificados em outras áreas do conhecimento.

2 COMPREENDENDO OS CONCEITOS DE BIODIVERSIDADE, BIOÉTICA, ÉTICA


AMBIENTAL E BIODIREITO
Com a evolução da humanidade, houve a necessidade da construção de uma nova
concepção ambiental. A humanidade, com o passar do tempo, desenvolveu novas técnicas de
elaboração do conhecimento, de comunicação e regras normativas que foram se ajustando e se
adaptando às transformações sociais. Os conceitos foram se modificando à medida que a
humanidade evoluiu, desencadeando, de maneira extraordinária, uma certa desestruturação nos
componentes da biodiversidade.
Essa noção de desestruturação ambiental trouxe prejuízo ao meio ambiente,
especialmente à fauna e à flora imprescindíveis à própria manutenção do equilíbrio ambiental.
Também, esses acontecimentos trouxeram implicações ao ser humano, uma vez que, para que
ele possa desfrutar da existência de uma vida saudável, digna e com qualidade – como não
poderia deixar de ser –, mister uma conscientização da necessidade de preservação do meio
ambiente, ou seja, a integração do homem com a natureza para a conservação da vida em todos
os níveis, espécies de animais e vegetais que compõem a biodiversidade3 do Planeta Terra.

3
A biodiversidade pode ser definida como a variação biológica de determinado lugar ou, em termos mais
genéricos, como o conjunto de diferentes espécies de seres vivos de todo o planeta. De forma mais ampla, defini-
se biodiversidade como o total de organismos existentes, a sua variação genética e os complexos ecológicos por
eles habitados; logo, não apenas as diferentes espécies, mas também as diferenças existentes dentro da mesma
espécie. De forma mais restrita, defini-se biodiversidade como o conjunto de seres vivos que habitam a biosfera,
com suas características taxonômicas e ecológicas, sem considerar os fatores químicos e físicos do ambiente.
assim, quanto maior forem a variação biológica e o número de espécies em um determinado local, maior será a
sua biodiversidade e vice-versa. Cfe. VARELLA, Marcelo Dias; FONTES, Eliana; ROCHA, Fernando Galvão da.
Biossegurança e Biodiversidade: contexto científico e regulamentar. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 20.

166
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Nesse contexto, o que se busca, então, é a construção de um equilíbrio entre o avanço


da Biotecnologia e da Biomedicina com a preservação do meio ambiente, ou seja, na verdade,
busca-se restabelecer o equilíbrio entre o progresso técnico-científico-biotecnológico com a
preservação e conservação do homem e do meio ambiente rumo a um novo paradigma de
proteção da natureza.
Para compreender melhor a reflexão que vem sendo feita, Ost4, afirma que [...] “a
ecologia, como toda ciência, é também filha do seu tempo, das suas ideias e dos seus valores;
[...] ela impôs, no transcorrer do tempo, uma visão integrada e dinâmica das relações entre as
espécies, incluindo a espécie humana e o ambiente”. Mais que isso, não é possível
compreender o meio ambiente, a sua proteção jurídica como uma área independente e
desvinculada da sua inter-relação com outras áreas do conhecimento como a Filosofia a
Sociologia e a própria Biomedicina. A ideia de que o homem interage com a natureza
pressupõe uma visão amadurecida, pois possibilita a superação da visão calcada no
antropocentrismo. O conceito de meio ambiente passou assim, a exigir, o reconhecimento da
interação entre o homem e a natureza. Nesse sentido, como ensinam Leite e Ayala5, “o meio
ambiente é um conceito que pressupõe uma interação homem e natureza, mostrando-se dois
elos do mesmo feixe. Outrossim, pressupõe uma visão holística e não fragmentária”.
Tudo isso deve contribuir para a tomada de consciência sobre a importância do meio
ambiente para a vida na Terra, ou seja, o homem precisa da natureza para sobreviver; ele
necessita dessa comunhão e solidariedade como condição de assegurar o seu próprio bem-estar
e o futuro das gerações vindouras. Assim, na lição de Morin6, O ser humano só atingirá uma
visão humanística e ética da sua própria condição de pertencer à espécie humana quando tomar
consciência do caráter matricial da Terra para a vida, e da vida para a humanidade.
O Direito Ambiental pressupõe uma visão transdisciplinar. Para tanto, houve a
necessidade de se superar o tradicional modelo antropocêntrico7, arraigado durante muito
tempo na consciência humana, para uma visão antropocêntrica alargada. Esse modelo de visão

4
OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do Direito. Tradução de Joana Chaves. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995, p. 105.
5
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. 2. ed.
rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 64.
6
MORIN, Edgar. A cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina.
17. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 39.
7
O antropocentrismo, segundo Leite, é um dos principais dilemas éticos relacionados à temática ambiental, ao
lado da mencionada ecologia profunda (a ecologia profunda também é chamada de deep ecology, pelo fato de seus
primeiros defensores se encontrarem nos Estados Unidos da América. Cfe. LEITE, José Rubens Morato.
Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.).
Direito constitucional ambiental brasileiro. 5. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 163.

167
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

antropocêntrico-alargado contribuiu profundamente nas discussões a respeito do meio


ambiente e por uma nova visão sobre os bens e valores ambientais. Acerca do tema, conforme
os ensinamentos de Leite e Ayala8, “postula-se um antropocentrismo alargado, impondo-se
uma verdadeira comunhão e solidariedade de interesses entre o homem e a natureza, como
condição imprescindível a assegurar o futuro de ambos”.
Isso evidencia que a superação da visão ambiental antropocêntrica, por uma visão
antropocêntrica alargada fez com que o ser humano renegasse uma visão estritamente
econômica do meio ambiente e passasse justamente considerar a importância da proteção
ambiental. Isso reside justamente na compreensão de que o ser humano é ente da
biodiversidade e, portanto, precisa da natureza como requisito para a garantia de
sobrevivência da própria espécie humana9.
Nessa perspectiva, a observação de que o homem é parte integrante da natureza,
necessita dela para a própria sobrevivência da espécie, relacionando-se intimamente com ela,
faz-nos compreender de que não existe uma vida digna, saudável e com bem-estar se não
houver essa interação com o meio ambiente e com toda a biodiversidade existente no Planeta.
Pode-se perceber que houve uma certa compreensão por parte da humanidade sobre a ecologia
e o meio ambiente. Essa compreensão melhorou a qualidade de vida da humanidade, pois ela
passou a incorporar uma visão integradora, multi, inter e transdiscipinar de todos os elementos
que integram à natureza.
Sem dúvida, essa dinâmica contribuiu para transformar o Homem e a natureza em
busca de um novo ambientalismo – sob o paradigma do Estado Socioambiental –10 capaz de
garantir a tutela dos direitos humanos e o reconhecimento de um direito fundamental ao meio
ambiente. O desafio é estabelecer uma vida justa e solidária através de uma ética11

8
LEITE; AYALA. Op., Cit., p. 64.
9
LEITE, Op., Cit., p. 163.
10
Segundo Sarlet e Fensterseifer a preferência pelo adjetivo socioambiental resulta da necessária convergência
das “agendas” social e ambiental num mesmo projeto jurídico-político para o desenvolvimento humano.
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?):
algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 16.
11
Nas lições de Engelhardt, a palavra ética é ambígua em si mesma. Primeiro, como sugere sua etimologia, pode
significar o que é costumeiro. Como aquilo que é habitual para as pessoas, a ética é semelhante em significado à
raiz da palavra moral, mos (plural mores), os costumes de um povo. Na ética médica, esses sentidos são
encontrados em muitas das obras do médico grego Hipócrates; tratam-se de valores e expectativas morais
considerados certos, que constituem o caráter do dia-a-dia da prática da medicina. É um termo da ética como ethos
que muitos vivem a maior parte de sua vida, e em cujos termos a maior parte dos cuidados médicos geralmente é
proporcionada. A ética também é usada para identificar as regras de comportamento usadas por grupos
profissionais: advogados, contadores, médicos e enfermeiros, por exemplo. ENGELHARDT, Jr., H. Tristam.
Fundamentos da Bioética. Tradução de José A. Ceschin. São Paulo: Loyola, 2004, p. 52-53.

168
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

socioambiental, integrando o Homem e a natureza para a construção de uma sociedade justa,


solidária e preocupada com a defesa do meio ambiente. Contribuindo para a reflexão, Pessini e
Barchifontaine12 pontuam que:

não há meio ambiente digno se existem injustiças e desigualdades sociais. A redução


do modelo de desenvolvimento ao econômico pura e simplesmente é inaceitável. O
desafio é elaborar uma ecologia humana que cultive a ética da responsabilidade pelo
futuro da criação, na construção de uma sociedade justa e solidária. É claro que não
teremos um cenário novo que promova qualidade de vida e saúde sem uma
reestruturação das realidades sociais, econômicas e políticas. É nessa perspectiva que
se fala, no Terceiro Mundo, de uma ecologia social ou de uma ética socioambiental,
que integre ecologia e justiça social.

Dessa interação entre o Homem e o meio ambiente surgem novos questionamentos


sobre a vida humana, sobre as pesquisas científicas e biotecnológicas, valores e normas éticas e
questões concernentes à proteção da própria natureza e sua biodiversidade, e, em especial, a
possibilidade do Homem intervir no genoma humano.
Ao referir-se sobre esse assunto, Schaefer13 observa que:

a ética e o Direito não têm sido capazes de acompanhar as inovações biotecnológicas


que colocam em discussão velhos dilemas, paradigmas e valores tradicionais,
considerados absolutos e imutáveis como por exemplo, a vida e a morte. São avanços
que podem alterar completamente o rumo da vida humana presente e futura e, por
isso, merecem atenção especial, com a imposição de novos e mais dinâmicos limites
éticos, morais e jurídicos, capazes de garantir a efetiva tutela dos direitos humanos e
dos direitos fundamentais.

As questões decorrentes do desenvolvimento da Biotecnologia e da Biomedicina


envolvem respostas específicas multi e interdisciplinares, e o Biodireito está sendo
desenvolvido como uma solução viável, pronta a restabelecer o equilíbrio perdido, utilizando-
se não só de seus princípios mais elementares, como também buscando soluções mais práticas
junto a outras áreas do conhecimento como Filosofia, Antropologia, Sociologia e a própria
Biomedicina14.
Certamente, o processo de democratização do conhecimento vem marcando os
tempos atuais. Não é mais possível questionamentos éticos, morais e jurídicos sobre o contexto
da vida humana e de toda a biodiversidade existente no Planeta colocando-se em pauta apenas

12
PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. 10. ed. rev. e ampl.
São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2012, p. 106.
13
SCHAEFER, Fernanda. Bioética, Biodireito e Direitos Humanos. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal de.
(Coord.). Biodireito em discussão. Curitiba: Juruá, 2007, p. 33.
14
Ibid., p. 33.

169
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

velhas discussões e paradigmas tradicionais. Deve-se levar em consideração, por exemplo, os


avanços da Biotecnologia e o da Biomedicina, decorrentes da necessidade de se buscar e de se
estabelecer a melhoria da qualidade de vida das pessoas, ou seja, ressaltando uma vida
saudável, com saúde para as presentes e futuras gerações.
Corroborando com essa reflexão, Schaefer15 esclarece que:

a transdisciplinaridade é uma marca dos tempos atuais e fruto da exigência dos


avanços biotecnológicos, uma vez que, sem a sua utilização, corre-se o risco de
inviabilizar ou proibir pesquisas, impossibilitar a melhora da qualidade de vida da
humanidade ou, ainda, tornar o Direito ineficaz face a essas dinâmicas
transformações, sendo incapaz de garantir a efetivação dos mais diversos direitos
individuais ou coletivos.

É importante ressaltar o desafio que há na elaboração de diretrizes éticas e com


responsabilidade no aperfeiçoamento de pesquisas técnicas e biotecnológicas envolvendo a
saúde humana e as questões ambientais.
Portanto, faz-se necessária uma compreensão sobre as questões relacionadas ao
estudo da Bioética e do Biodireito para que reflexões críticas possam contribuir para o tema
aqui proposto.

2.1 Bioética, Biodireito e meio ambiente – algumas notas


A Bioética, literalmente a ética da vida, é um enfoque contemporâneo do humanismo
preocupado com o avanço das biociências. Como movimento social, exsurgiu na década de
1970, preocupado com os comportamentos de maior aceitabilidade pelas sociedades, impondo
uma reflexão axiológica, bem como a elaboração de normas para regulamentar as relações que
o desenvolvimento da ciência médica trazia para o seio da sociedade.16
A Bioética caracteriza-se por uma pluralidade de questões relacionadas ao
comportamento humano, sua conduta, englobando aspectos morais, teológicos, deontológicos.
Conforme Séguin17, “caracteriza-se por um conteúdo transdisciplinar de comportamentos e
saberes. Basicamente é um espaço de luta dos Direitos Humanos, englobando diferentes
movimentos sociais e redistribuição dos cuidados com a saúde, de forma universalizada e em
condições de igualdade”.

15
Ibid., p. 33.
16
SÉGUIN, Elida. Biodireito. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 41.
17
Ibid., p. 41.

170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A denominação Bioética não é caracterizada apenas como uma nova versão da ética
médica tradicional, pois não trata apenas de problemas deontológicos decorrentes das relações
entre médicos e pacientes, mas de situações persistentes (racismo, aborto, eutanásia,
distanásia...) e de situações emergentes (terapia gênica, clonagem, Medicina a distância,
direitos humanos e da cidadania, direitos fundamentais...) decorrentes do progresso
biotecnológico. Assim, a Bioética deve ser compreendida como ética que diz respeito às
intervenções sobre a vida, sobre a saúde humana e sobre a integridade física e psíquica de
indivíduos ou coletividades de gerações presentes e futuras.18
Dessa forma, a Bioética vem, nos dias atuais, atuar como uma disciplina inovadora,
multi e interdisciplinar. Ela é apontada como uma disciplina que promove a reflexão filosófica,
à medida que engloba a complexidade do ser humano, numa perspectiva axiológico-humanista,
preocupada com a realidade social, ou seja, com a melhoria da qualidade de vida do ser
humano. Além disso, a Bioética é uma ciência que se preocupa com as questões ambientais e
com a qualidade de vida do Planeta, pois há uma ligação direta entre a saúde humana e a
integridade ambiental, uma vez que, para a sobrevivência humana no Planeta, com equilíbrio
ambiental, há de se buscar uma visão humanística e solidária para com a comunidade
planetária.
Nesse sentido, sendo o estudo sobre a bioética um campo interdisciplinar, traz
argumentos e subsídios construídos por autores que se dedicaram aos problemas da pós-
modernidade, pautando-se por uma preocupação com a evolução profunda da ciência e de suas
repercussões na sociedade contemporânea.19
Portanto, a Bioética deve ser entendida não apenas como um método capaz de
resolver os problemas e tomar decisões sobre situações concretas e pragmáticas no seio da
sociedade contemporânea, mas permitir um diálogo entre a ciência, a humanidade e a Filosofia,
sobre problemas morais, sociais, e ambientais, com a finalidade de buscar o bem-estar do
Homem e assegurar a preservação ambiental.
A Bioética, inicialmente nasceu com o oncologista norte-americano, Dr. Van
Rensselaer Potter (1911-2001). Foi ele quem cunhou o neologismo bioethics, em 1970. [...]
Potter, que chamou a Bioética como “ciência da sobrevivência humana”, traçou uma agenda de

18
SCHAEFER, Op., Cit., p. 35.
19
BRAUNER, Maria Claudia Crespo; BÖLTER, Serli Genz. O ser humano e o corpo: contribuições da bioética e
do biodireito para a proteção dos direitos de personalidade. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO,
Cleide (Org.). O direito ambiental e o biodireito: da modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul, RS:
Educs, 2008, p. 188.

171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

trabalho para essa disciplina, que vai desde a intuição da criação do neologismo, em 1970, até a
possibilidade de encarar a Bioética como uma disciplina sistêmica ou profunda, em 1988 20.
Potter pensa a bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a ética. Sua
intuição constitui em pensar que a sobrevivência de grande parte da espécie humana, numa
civilização decente e sustentável, dependia do desenvolvimento e manutenção de um sistema
ético.21 Assim, conforme o seu pensamento, é necessária uma visão inter, multi e
transdisciplinar, abarcando uma abordagem global e sistêmica sob todos os aspectos – ética,
filosófica e, inclusive jurídica – que envolvam o Homem e o meio ambiente.
Pela compreensão acima, a Bioética tem possibilitado o enfrentamento de muitas
questões relacionadas à vida e à dignidade da pessoa humana. Ela vem contribuindo para o
pensamento e para a práxis humana, na transformação profunda das ciências da vida e no
tratamento dispensado à saúde humana. [...] estimula a compreensão, o acesso ao
conhecimento e a deliberação, por parte dos indivíduos, a respeito de tratamentos de saúde,
pesquisas científicas, medicamentos e intervenções, que envolvam não somente a vida humana,
mas que concernem ao ambiente e às outras formas de vida22.
Nessa perspectiva, o meio ambiente e a diversidade ecológica estão relacionados
com os múltiplos aspectos do desenvolvimento do ser humano. Não há possibilidade de
qualidade de vida digna e saudável e com saúde se não houver a manutenção e estabilidade
ambiental. Conforme bem destaca Martinotto23, “a biodiversidade está relacionada com a
estabilidade ecológica. Assim a manutenção do meio ambiente depende da manutenção da
diversidade”.
Isso significa que as diversidades biológicas e culturais estão diretamente
relacionadas à diversidade genética uma vez que a última mantém a possibilidade de
conservação de material genético de cada espécie possibilitando posterior gestação e
cruzamento para salvar a espécie24. Nessa esteira, inegavelmente que a Bioética deve se
preocupar, não somente com o Homem e a sociedade, mas também, com todos os seres vivos
que fazem parte desse Universo.

20
PESSINI; BARCHIFONTAINE. Op., Cit., p. 35-36.
21
Ibid., p. 37.
22
BRAUNER; BÖLTER. Op., Cit., p. 189.
23
MARTINOTTO, Fernanda. Direito e genoma humano: proteção da biodiversidade face às pesquisas genéticas
no direito brasileiro. Dissertação (MESTRADO) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação
em Direito, 2011, p. 15.
24
Ibid., p. 15-16.

172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Este sistema proposto de ética permanece hoje como o coração da bioética ponte, com
sua extensão na bioética global, em que a função de “ponte” exigiu a aproximação da ética
médica e da ética ambiental, em escala mundial, para preservar a sobrevivência humana. 25
Dessa forma, pode-se compreender a Bioética como um conhecimento aberto, que
permite a integração entre a sociedade e o meio ambiente. Assim, “a Bioética, como forma de
conhecimento aberto, permite investigação ampla, tendo sempre em consideração os valores
éticos e os fins da sociedade”, como reportam Sá e Naves26.
A Bioética tem como objeto garantir que sejam efetuadas, dentro dos padrões éticos e
de respeito à dignidade humana, todas as intervenções médicas, desde as exercidas no processo
inicial da vida, como a fecundação in vitro, até as que culminam com a extinção da pessoa. A
Bioética procura respostas morais a interrogações técnicas da Medicina e da Biologia, com um
cunho educativo, de garantia de acesso à informação e à sensibilização do público em geral
para estas questões. Caberá ao Biodireito impor condutas e sanções pelo seu
descumprimento27. Nesse sentido, esclarece Séguin28, “a tarefa da bioética foi harmonizar o
uso das ciências biomédicas e suas tecnologias com os Direitos Humanos, até que, com o
ordenamento jurídico dessas situações, surgisse o Biodireito”.
Diante de tais reflexões, pode-se perceber que a Bioética vai muito além de sua
conexão com à Medicina; abrange as terapias biomédicas, a preocupação com as questões
ambientais e o sofrimento de animais em experimentos nos laboratórios, a questão da saúde
humana e a proteção dos direitos de personalidade; enfim, por essa razão, o Biodireito tem
como finalidade normatizar e regulamentar as questões que envolvem a atuação da ciência
sobre os seres humanos e o meio ambiente, com o intuito de guardar a vida das presentes e
futuras gerações e de garantir a dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, o Biodireito, por ser um novo ramo do Direito, está inscrito na
interpretação vasta dos direitos fundamentais e dos direitos humanos na configuração dos
modernos Estados democráticos. Os direitos mais importantes do indivíduo encontram sua
fundamentação no princípio da dignidade da pessoa humana, que deverá orientar toda e

25
PESSINI; BARCHIFONTAINE. Op., Cit., p. 109.
26
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. Belo Horizonte:
Del Rey, 2009, p. 12.
27
SÉGUIN, Op., Cit., p. 44.
28
Ibid., p. 45.

173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

qualquer produção de normas jurídicas, visando à construção de uma estrutura normativa que
oriente a atuação da ciência sobre o homem e o meio ambiente29.
Assim, embora guardem diferenças, Bioética e Biodireito seguem juntos30. Mesmo
que haja controvérsias doutrinárias sobre a definição do termo Bioética e a formação de um
Biodireito, o que importa registrar é que ambos têm a função de proteger os direitos
fundamentais e os Direitos Humanos, reconhecendo também a importância de um meio
ambiente saudável e equilibrado para a sobrevivência humana na Terra.
Portanto, cabe à Bioética estabelecer limites éticos racionais para que se possa
construir um Biodireito capaz de limitar, mas não impedir, o desenvolvimento científico e a
busca de novos conhecimentos. Ao Biodireito caberá a tarefa de equilibrar pontos de vista que
permanecerão diferentes, promover a abordagem dos fenômenos bioéticos de maneira
abrangente (não setorial) e a transformação de valores existentes promovendo o avanço de uma
ciência eticamente livre para uma ciência eticamente responsável e que esteja a serviço do
bem-estar humano31.

3 PROJETO GENOMA HUMANO: LIMITES ÉTICOS E JURÍDICOS QUE CERCAM


A SUA MANIPULAÇÃO E AS INTERVENÇÕES NO MEIO AMBIENTE – RISCO DE
EUGENISMO E COISIFICAÇÃO DO CORPO HUMANO SOB O PARADIGMA DO
ESTADO SOCIOAMBIENTAL
No atual cenário constitucional, O Estado Socioambiental de Direito contempla, a
partir do comando normativo emanado do artigo 22532, o dever constitucional do poder público
e da coletividade preservar e defender o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. É
considerado direito de todos e essencial à sadia qualidade de vida. Nesse sentido, relevante a
contribuição de Sarlet e Fensterseifer33 sobre a importância desse novo modelo de Estado
contemporâneo na tutela do meio ambiente, o qual ajusta-se de forma integrada e ampla na
afirmação dos direitos fundamentais da pessoa humana e na preservação da natureza:

29
BRAUNER; BÖLTER. Op., Cit., p. 192.
30
SÁ; NAVES, Op., Cit., p. 14.
31
SCHAEFER, Op., Cit., p. 42.
32
Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações. BRASIL, Constituição da República Federativa do: texto
constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais
nºs 1/92 a 64/2010, pelo Decreto nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nºs 1 a 6/94. – Brasília:
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010, p. 143.
33
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a
Constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 43.

174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O Estado Socioambiental de Direito, nesse novo cenário constitucional, tem por


missão e dever constitucional atender o comando normativo emanado do art. 225 da
CF88, considerando, inclusive, o extenso rol exemplificativo de deveres de proteção
ambiental elencado no seu § 1º, sob pena de, não o fazendo, tanto sob a ótica da sua
ação quanto da sua omissão, incorrer em práticas inconstitucionais ou antijurídicas
autorizadoras da sua responsabilização por danos causados a terceiros – além do
dano causado ao meio ambiente em si.

Nesse contexto, observa-se que a Constituição Federal de 1988 delineou de forma


clara os deveres de proteção ambiental, como bem exemplifica o seu extenso rol a partir do
artigo 225, § 1º e seus incisos. Assim, dentre o que nos interessa aqui abordar, encontra-se o
inciso II do referido artigo que dispõe o seguinte:

Art. 225 da CF/88: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético.

A partir de tal entendimento, a construção de uma nova concepção ambiental tornou-


se imprescindível, tanto para o ser humano que exerce influência imediata no Planeta e
necessita preservá-lo para as presentes e futuras gerações, quanto para os próprios
componentes da biodiversidade ecológica, uma vez que há uma inter-relação entre o Homem e
a natureza. Assim, é necessária uma atuação solidária e responsável entre o poder público e a
coletividade na proteção do meio ambiente, haja vista a atribuição de um status normativo
emanado do artigo 225 da CF/88; mas, o referido artigo, no seu § 1º dispõe que, para assegurar
a efetividade desses direitos, ao poder público compete preservar o patrimônio genético, a
diversidade e a manipulação de material genético. Essa relação integrada entre o Homem e a
natureza ampliou a sua compreensão e a sua interdependência diante dela; novos valores de
matriz ecológica foram incorporados na comunidade humana, contribuindo para uma visão
global e holística, e por conseguinte, a superação de uma concepção eminentemente
reducionista da condição humana e dos fenômenos ambientais.
Nesse sentido, o ser humano deve ter uma conduta de vida eticamente consciente nas
suas relações com o meio ambiente e com toda a biodiversidade existente na natureza. Sua
visão diante da natureza não pode ser limitada e sim ampliada com o intuito de garantir a sua

175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

própria sobrevivência no Planeta. Como ensina Habermas34, “a conduta de vida eticamente


consciente não pode ser compreendida como uma autopermissão própria de uma visão
limitada”. Portanto, tudo está interligado – o homem, o ecossistema e toda a complexidade das
relações existentes entre ambos, o que interfere e condiciona suas ideias, valores e projetos na
teia da vida.
Nessa ótica, importante a noção de que o desenvolvimento do ser humano está
diretamente ligado ao ambiente que o cerca; isso nos dá a ideia da transdisciplinaridade do
Direito Ambiental, uma vez que tudo está interligado, não sendo possível separar o homem da
natureza. Parece-nos que esse caráter de interação e integração entre o homem e a natureza
pressupõe o atual paradigma socioambiental que nos conduz a esse novo cenário
contemporâneo de modelo de Estado em que agrega a dimensão ecológica e o reconhecimento
de um status jurídico-político na seara ambiental, pressupundo uma visão global e não
fragmentária dessa interação e interdependência do homem com meio ambiente.
Essa visão de integração e interação é destacada por Vieira35, que salienta que o tema
meio ambiente não serve para designar um objeto específico, mas, de fato, uma relação de
interdependência. Tal interdependência é verificada de maneira incontestável pela relação
homem-natureza, posto que não há possibilidade de se separar o homem da natureza, pelo
simples fato da impossibilidade de existência material, isto é, o homem depende da natureza
para sobreviver.
A superação da visão ambiental cunhada no antropocentrismo fez com que a
população passasse a compreender que o ser humano é ente da biodiversidade e, portanto, está
contemplado do ponto de vista da proteção ambiental. A nova percepção ambientalista passou
a incluir valores e normas éticas. Todavia, é importante se ter em mente que não é possível
conceituar o meio ambiente fora de uma visão antropocêntrica, pois sua proteção jurídica
depende de uma ação humana. Assim sendo, essa nova visão ambiental passa a reivindicar uma
visão integradora e de interação entre os entes habitantes de um mesmo meio36.
O reconhecimento do direito e dever fundamental de proteção do meio ambiente e de
sua diversidade cultural e biológica representa esse novo contexto caracterizado como Estado
34
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina
Jannini; revisão da tradução de Eurides Avance de Souza. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 15.
35
VIEIRA, Paulo Freire. Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania. In: VIOLA, Eduardo et al. (Org.). Meio
ambiente, desenvolvimento e cidadania: desafios para as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995, p. 49 (apud
LEITE; AYALA. Op., Cit., p. 50).
36
LIEDKE. Mônica Souza. Proteção do Genoma Humano e Socioambientalismo: aspectos bioéticos e
jurídicos. Dissertação (MESTRADO) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Direito,
2009, p. 16.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Socioambiental de Direito “portador de uma mensagem de interação entre o homem e a


natureza, para que se estabeleça um relacionamento mais harmonioso e equilibrado”37.
O novo paradigma socioambiental somente passou a ganhar aceitabilidade, a partir do
momento em que a população começou a ter consciência de que os bens naturais são escassos,
assim como o ser humano é ente integrante da biodiversidade e, portanto, é portador de uma
carga genética que é passível de intervenção e, principalmente, sofre ações de acordo com o
ambiente no qual está inserido. Esse fato desencadeou a produção de instrumentos normativos
capazes de proteger o ambiente, a biodiversidade e, mais especificamente, o genoma humano, a
fim de oportunizar a sustentabilidade planetária38.
Nesse sentido, o paradigma socioambiental contempla a proteção e a preservação
ambiental, incluindo a biodiversidade planetária, a sociodiversidade e o genoma humano 39, o
que nos remete à ideia de vinculação entre os direitos sociais e ambientais – proteção do meio
ambiente e da qualidade ao bem-estar social –, como premissa para uma vida digna e saudável
necessária ao alcance da própria dignidade humana.
Nesse contexto, torna-se imprescindível a discussão em torno do genoma humano e a
sua manipulação, uma vez que dilemas morais, éticos e jurídicos apresentam-se nos mais
diversos setores da sociedade jurídico-política.
O projeto genoma humano desencadeou uma série de discussões internacionais acerca
da evolução das pesquisas genéticas, dos princípios basilares a serem respeitados na sua
implementação e dos limites a serem impostos na sua realização40. A possibilidade de
manipulação de genes trouxe inúmeras expectativas por parte das grandes indústrias,
principalmente a possibilidade, por parte dos pesquisadores, de novas técnicas e descobertas na
área da biotecnologia para a melhoria da qualidade de vida do ser humano; por outro lado, a
manipulação genética poderia ocasionar significativamente danos à saúde da população,
criando, por exemplo, mutações genéticas ou mesmo desastres ecológicos que afetariam o
próprio homem e o meio ambiente.
Nesse sentido, verifica-se que diante de tais considerações, torna-se imprescindível
buscar o respeito pela vida em todas as suas formas, prevenir o uso indiscriminado da
utilização das técnicas de manipulação dos genes, o que poderia ocasionar o surgimento de

37
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2004, p. 32.
38
LIEDKE, Op., Cit., p. 17.
39
Ibid., p. 18.
40
MARTINOTTO, Op., Cit., p. 28.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

práticas de eugenismo, alterando a nossa auto-compreensão da espécie humana. A respeito do


tema, Brauner41 exemplifica que:

A preocupação dos mais diversos setores justifica-se porque as modernas


biotecnologias referem-se não somente ao tratamento e cura de doenças que afligem
o ser humano, mas concernem, igualmente, ao meio ambiente e à vida natural do
planeta, incluindo todos os gêneros e espécies de vida. É necessário, portanto, uma
reflexão séria tanto no âmbito da ética quanto do direito para enfrentar essas novas
questões e prevenir os conflitos que, inexoravelmente surgirão frente ao impulso de
tentar-se, cada vez mais, provar o domínio do homem sobre as forças da natureza.

O problema reside em onde e como estabelecer o limite. Limite que pode ser ético,
moral e jurídico, envolvendo o meio ambiente e a intervenção no genoma humano. Qual a
liberdade do agir humano sobre as técnicas de intervenção e manipulação dos genes?
Diante de tais reflexões, Habermas42 indaga se devemos considerar a possibilidade,
categoricamente nova, de intervir no genoma humano como um aumento de liberdade, que
precisa ser normativamente regulamentado, ou como a autopermissão para transformações que
dependem de preferências e que não precisam de nenhuma autolimitação. Segundo ele,
somente quando essa questão fundamental for resolvida em favor da primeira alternativa é que
se poderão discutir os limites de uma eugenia negativa e inequivocamente voltada à eliminação
de males.
Tais questionamentos apresentam-se de suma importância, pois a manipulação do
genoma humano pode trazer benefícios ao ser humano, como também pode ocasionar prejuízos
à sua saúde e ao meio ambiente. A questão da diversidade e da integridade do patrimônio
genético deve ser analisada pela comunidade científica através de uma perspectiva
socioambiental, uma vez que o homem encontra-se incluindo no contexto ambiental. Nesse
sentido, importantes questões bioéticas vêm sendo abordadas pela comunidade científica,
dentre elas o risco de eugenismo e de coisificação do corpo humano43.
É nesse contexto, como enfatiza em sua obra o futuro da natureza humana, que
Habermas44 afirma que:

a manipulação genética poderia alterar nossa auto-compreensão enquanto seres da


espécie de tal maneira, que, com o ataque às representações do direito e da moral, os
fundamentos normativos e incontornáveis da integração social poderiam ser

41
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o
debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150.
42
HABERMAS, O futuro da natureza humana, Op., Cit., p. 18.
43
BRAUNER, Op., Cit., p. 161.
44
HABERMAS, O futuro da natureza humana, Op., Cit., p. 37.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

atingidos. Tal mudança de configuração na percepção dos processos de


modernização lança uma outra luz sobre a tentativa “moralizante” de adaptar os
avanços biotécnicos às estruturas comunicativas do mundo da vida, surgidas de
modo transparente. Esse propósito não denota um novo encantamento, mas uma
transformação reflexiva de uma modernidade que, ultrapassando seus próprios
limites, se revela.

Com isso, o tema fica limitado à necessidade de saber se a proteção da integridade de


patrimônios hereditários não-manipulados pode ser justificada com a indisponibilidade dos
fundamentos biológicos da identidade pessoal. A proteção jurídica poderia encontrar expressão
num “direito a uma herança genética, em que não houve intervenção artificial”45. Como
enfatiza o próprio Habermas46, é necessário um processo reconstrutivo para se chegar à
categoria do próprio Direito. Habermas introduz o agir comunicativo em contextos do mundo
da vida. Segundo seus estudos, quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se
ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas
de vida e a individualização de histórias de vida [...]. Essa complexidade da sociedade em
perspectivas etnocêntricas implicam em desafios à própria sociedade – desafios éticos e
morais.
A partir dessa perspectiva, Habermas47 levanta a questão sobre a autocompreensão
ética mínima que devemos ter da nossa espécie. Nesse enfoque há o enfrentamento de questões
éticas e morais, conflitos sobre a alteração da própria natureza humana, como a intervenção do
genoma humano, o que levaria a práticas de eugenismo. É ainda nessa direção que
Habermas48continua questionando sobre a intervenção no genoma humano e os limites morais
da eugenia. O referido autor ressalta que quanto mais despreocupada for a intervenção na
composição do genoma humano maior será a dificuldade de se saber o que cresceu
naturalmente ou o que foi fabricado, entre o subjetivo e o objetivo. [...] Segundo Habermas,
“com as intervenções na genética humana, a dominação da natureza transforma-se num ato da
autodominação, que altera nossa autocompreensão ética da espécie”, afetando as condições
necessárias para uma conduta de vida autônoma e uma compreensão universalista da moral.
Habermas49 observa que a eugenia liberal precisa se questionar se, em determinadas
circunstâncias, o fato de a pessoa programada perceber a ausência de diferença entre o que

45
Ibid., p. 37-38.
46
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. I. 2. ed. tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 44.
47
HABERMAS, O futuro da natureza humana, Op., Cit., p. 57.
48
HABERMAS, O futuro da natureza humana, Op., Cit., p. 66-67.
49
Ibid., p. 74.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

cresce naturalmente é o que é fabricado, como referido anteriormente, ente o subjetivo e o


objetivo. A partir dessa ótica, Habermas50 defende que o cidadão precisar ser esclarecido pela
ciência. “O senso comum, que cria para si muitas ilusões a respeito do mundo, precisa ser
esclarecido sem reservas pelas ciências”. Contudo, segundo ele, as teorias científicas que se
infiltram no mundo da vida deixam essencialmente intacto o âmbito do nosso quotidiano, o que
dificulta nossa autocompreensão, enquanto seres capacitados para a linguagem e para a ação.
Nesse exame, torna-se indispensável que a ciência leve em consideração o bem da
sociedade, os interesses sociais, humanos e ambientais no sentido de se buscar um equilíbrio
entre as pesquisas e manipulação do genoma humano e a qualidade da saúde e do meio
ambiente. Como bem esclarece Brauner51, “além das questões envolvendo interesses
científicos, econômicos e sociais, é necessário uma reflexão e um posicionamento esclarecido
da sociedade sobre as questões da bioética”, ou seja, torna-se fundamental uma nova visão da
ciência; uma ciência enriquecida e transformadora que se preocupa em esclarecer o senso
comum da sociedade a respeito da possibilidade de novos tratamentos de saúde, intervenções
médicas e pesquisas em genoma humano, por exemplo. Tudo isso é importante pois envolve
todo o contexto da vida humana, valores, crenças e tabus; uma abordagem mais ampla, simples
e esclarecida pela ciência propicia a autoreflexão e a autocompreensão de si próprio em
harmonia com o meio ambiente. A respeito dessa reflexão, Brauner e Bölter52 esclarecem que:

a percepção social do papel da ciência leva a pensar na promoção de uma


colaboração mais intensa entre os diversos domínios da ciência, reconhecendo a
ciência como uma herança cultural de todos os povos. Uma das maiores
preocupações consiste em simplificar a linguagem científica, seus métodos e
pressupostos, de forma a instruir, desfazer tabus e preconceitos e criar um espaço de
discussão permanente na sociedade sobre a produção e o uso do conhecimento
científico. A informação ocupa o espaço de maior relevância no desenvolvimento e
no controle social da ciência e da tecnologia.

A amplitude dessas discussões apontam para uma nova visão da ciência e das
pesquisas que envolvem a manipulação dos genes. A possibilidade de cura e prevenção para
determinadas doenças como a AIDS e o câncer suscita muitas discussões entre a comunidade
científica. A necessidade de se buscar novos conhecimentos na área médica e biomédica torna-
se indispensável para o pesquisador frente às novas descobertas da biomedicina, especialmente
em genética humana. Diante desse quadro, mister que o pesquisador seja consciente e
50
Ibid., p. 140-141.
51
BRAUNER, Op., Cit., p. 167.
52
BRAUNER; BÖLTER. Op., Cit., p. 190.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

responsável pelos resultados e descobertas que ele produzir, principalmente quando envolver a
saúde humana e o meio ambiente. Destacando a importância de uma nova visão, consciente e
responsável do pesquisador, Morin53 ensina que:

embora o conhecimento científico elimine de si mesmo toda a competência ética, a


práxis do pesquisador suscita ou implica uma ética própria. Não se trata unicamente
de uma moral exterior que a instituição impõe a seus empregados; trata-se de mais
do que consciência profissional inerente a toda profissionalização; de ética própria
do conhecimento, que anima todo pesquisador que não se considera um simples
funcionário. É o imperativo: conhecer para conhecer, que deve triunfar, para o
conhecimento, sobre todas as proibições, tabus, que o limitam. [...] Temos de
caminhar para uma concepção mais enriquecida e transformada da ciência (que
evolui como todas as coisas vivas e humanas), em que se estabeleça a comunicação
entre objeto e sujeito, entre antropossociologia e ciências naturais.

Morin entende que o pesquisador precisa ser consciente, ético e responsável. Nessa
dimensão, quando tratamos de pesquisas que envolvam o direito ao meio ambiente, a sua
diversidade e de pesquisas que tratam da manipulação genética, é essencial que o pesquisador
tenha consciência sobre a prática de tais pesquisas, pois o desenvolvimento futuro da
humanidade exige ética e responsabilidade nas atividades que possam representar riscos à
saúde humana e ao meio ambiente.
A reflexão de dilemas éticos, morais e jurídicos na manipulação do genoma humano
constituem desafios presentes em nossa sociedade contemporânea. São questões que envolvem
direitos do ser humano sobre as suas informações genéticas; é necessário um debate amplo e
transparente sobre a problemática dessa dimensão que envolve o direito das gerações presentes
e futuras a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, à biodiversidade planetária,
e os direitos de personalidade.
Também, nesse sentido, a respeito da seleção de caracteres através de manipulações
genéticas, Brauner54 observa que isso pode levar ao risco de eugenismo e de coisificação do
corpo humano. Como já ilustrado anteriormente por Habermas, a intervenção genética
transforma a natureza do ser humano, afetando a sua própria autocompreensão ética da espécie.
As intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em que
submetem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são

53
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Ed.
revista e modificada pelo autor – 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 120-122
54
BRAUNER, Op., Cit., p. 161.

181
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

irreversíveis, impedindo-a de se compreender livremente como o autor único de sua própria


vida55.
O autor que supracitamos, Habermas56, acrescenta, ainda, que as referidas práticas da
eugenia de aperfeiçoamento da espécie não podem ser “normalizadas” de modo legítimo no
âmbito de uma sociedade pluralista e democraticamente constituída, que concede a todo
cidadão igual direito a uma conduta de vida autônoma, porque a seleção das disposições
desejadas a priori não pode ser desatrelada do prejulgamento de determinados projetos de vida.
Com efeito, utilizando-se do pensamento de Habermas, em uma sociedade livre e
democraticamente constituida, a coisificação do ser humano não pode ser tolerada. O
reconhecimento de uma nova concepção socioambiental – de proteção do meio ambiente, da
biodiversidade planetária e da integridade do patrimônio genético –, vem consagrar a
importância do atual paradigma Socioambiental. Tal entendimento reforça a ideia de que o
homem, enquanto ser que se inter-relaciona com a natureza e com todo o seu entorno,
integrante dessa biodiversidade planetária e dependente de maneira incontestável da natureza,
ou seja, para a sua própria sobrevivência e bem-estar há a necessidade dessa interação entre
ambos, mister o desafio de não restringir seu espaço ético de liberdade para fazer o melhor de
sua vida; uma vida própria e autodeterminada, considerando-se a necessidade de garantir a sua
saúde em um meio ambiente saudável e equilibrado com a necessidade de preservar a
diversidade e a integridade do patrimônio genético.
O desafio consiste, portanto, em afirmar os valores éticos que possibilitem o avanço
tecnológico, sem transformar o homem e a mulher em sua dimensão corporal, em simples
coisas ou objetos, livremente utilizáveis e modificáveis57. Nesse sentido, é a garantia de um
direito fundamental do indivíduo de não dispor livremente de seu corpo, é o respeito à sua
integridade física e psíquica e a sua autodeterminação alicerçados no princípio da dignidade da
pessoa humana.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscou-se com o presente trabalho verificar e compreender a complexidade que
envolve o genoma humano, os limites éticos, jurídicos e filosóficos que enfocam a discussão

55
HABERMAS, O futuro da natureza humana, Op., Cit., p. 87.
56
Ibid., p. 91-92.
57
BRAUNER; BÖLTER. Op., Cit., p. 189.

182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

em torno da sua manipulação e a relação que se estabelece com a proteção e preservação do


meio ambiente, da biodiversidade planetária e da proteção do próprio patrimônio genético.
A preocupação com questões concernentes ao genoma humano, especialmente
questões que tratam da manipulação de genes trouxe uma série de discussões por parte da
comunidade científica, implicações jurídico-normativas da utilização das técnicas
biotecnológicas sobre o ser humano, surgindo dilemas a respeito do polêmico risco de
eugenismo e coisificação do corpo e vida humana.
Apesar das práticas de manipulação do genoma humano constituírem uma
possibilidade de melhoria na saúde e qualidade de vida das pessoas, representando a cura de
muitas doenças, por outro lado, a sua prática pode configurar riscos à saúde do ser humano e
do meio ambiente. Esse é um dos desafios que a engenharia genética traz para o debate ético,
jurídico e filosófico sobre a liberdade nas pesquisas científicas e a sua relação com a
integridade e equilíbrio do patrimônio genético e a proteção ambiental.
A Constituição Federal de 1988 garante a liberdade de pesquisa científica. Mas a
liberdade de pesquisa pela comunidade científica deve ser voltada para o bem do ser humano,
com o intuito de garantir a sua saúde e a busca pela melhoria da qualidade de vida. Assim, a
pesquisa no genoma humano tem de conferir responsabilidade ética, com limitações na
intervenção e descaracterização do patrimônio genético.
Assim, a partir do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, em seu §1º, inciso II,
garante a proteção do genoma humano e a integridade do patrimônio genético. Nesse sentido,
verifica-se, portanto, que o homem está inserido nesse contexto da biodiversidade e no
equilíbrio ambiental, através do tratamento normativo da proteção ambiental.
Importante destacar que a Bioética tem contribuído muito com questões concernentes
à proteção do meio ambiente indo muito além do espaço dedicado às ciências da saúde. Ela
promove reflexões filosóficas, morais e jurídicas, visando à sistematização e a orientação no
campo jurídico, por exemplo, como a formação de um Biodireito, (ramo em desenvolvimento
do Direito) que tem por finalidade a normatização e a orientação da prática médica e
biotecnológica, o que certamente traz uma nova percepção social, jurídica e ambiental ampla e
aberta, ou seja, um pluralismo ético no atual paradigma socioambiental.
Assim, ao final do presente trabalho, pode-se perceber que o ser humano vincula-se
diretamente com a natureza e a biodiversidade existente no planeta. Existe uma inter-relação e
uma interdependência entre ambos. Para o homem garantir uma vida digna, saudável e com
bem-estar depende, necessariamente, de um meio ambiente saudável e equilibrado. É relevante

183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

a presente discussão, uma vez que a proteção do ser humano, seu corpo, sua dignidade
merecem profunda atenção pela comunidade científica, política e jurídica.

REFERÊNCIAS

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de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nºs 1/92 a
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185
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

BIODIVERSIDADE: USO INCLUSIVO E SUSTENTÁVEL DO AMBIENTE

BIODIVERSITY: INCLUSIVE AND SUSTAINABLE USE OF ENVIRONMENT

Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros1


Selma Rodrigues Petterle2

Resumo: Viver a construção do mundo em uma dimensão de responsabilidade social e,


consequentemente, associada a outros princípios que se regem pela inclusão da diferença, da
sustentabilidade da vida dos animais não-humanos, em um mundo em que supostamente
prevalecem os animais humanos. O trabalho tem como método a defesa de direitos deveres
fundamentais envolvendo a proteção da vida, que se espraia e reflete a partir de uma prática à
instituição do conhecimento, da história, da cultura que envolva os animais não-humanos.
Diversos autores, entre antropólogos, biólogos, operadores de direito, filósofos defendem uma
ética da vida; uma ética que privilegia a compaixão, a solidariedade como princípios cogentes
à sustentabilidade da vida e a manutenção da biodiversidade com qualidade inclusiva de estar
no mundo, associada a uma pegada ecológica responsável. Uma tese é defendida quanto à
cogência de instauração de um instituto de direitos aos animais não-humanos, uma vez que
inserido numa comunidade moral e de relações recíprocas, embora assimétricas.
Palavras-chave: biodiversidade; sustentabilidade; inclusão; direitos e deveres fundamentais.

Abstract: Living the construction of the world in a dimension of social responsibility and
therefore associated with other principles that govern the inclusion of difference, the
sustainability of the lives of non-human animals, in a world where supposedly prevalent
human animals. The work is method advocacy fundamental duties involving the protection of
life, that spreads and reflects from a practice the institution of knowledge, history, culture
involving nonhuman animals. Several authors, among anthropologists, biologists, law
enforcement officers, philosophers advocating an ethic of life, an ethic that emphasizes
compassion, solidarity and sustainability cogent principles of life and the maintenance of
biodiversity quality of being inclusive in the world, coupled with a responsible ecological
footprint. A thesis is defended as to the cogency of the establishment of an institute of rights
to nonhuman animals, once inserted into a moral community and reciprocal relations,
although asymmetric.
Key-words: biodiversity; sustainability; inclusion; fundamental rights and duties.

1. Uma pegada ecológica e a inclusão como um direito dever fundamental

1
Doutora em Direito (UFSC). Doutorado Sanduiche (FDUC). Mestre em Direito (PUCRS). Professora do Pós-
Graduação da UNILASALLE. Professor Adjunta da Faculdade de Direito da PUCRS. Presidente do Instituto
Piracema – Direitos Fundamentais, Ambiente e Biotecnologias.
2
Mestre e Doutora em Direito pela PUCRS. Advogada e Professora Universitária no Centro Universitário La Salle
(UNILASALLE) e Faculdades Rio-Grandenses (FARGS/Estácio de Sá).

186
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Radica no mundo uma consciência cada vez mais aguda de parte do animal humano
que sente na pele as ações de degradação gritante e acelerada do ambiente na maior parte das
vezes como resultante de uma produção própria, embora também se tenha consciência de que
o país, Brasil, possui uma das biodiversidades mais ricas do mundo, tal como as maiores
reservas de água doce do planeta, além de um terço das florestas tropicais restantes,
estimando-se a existência de uma em cada 10 espécies de plantas ou animais vivos no planeta.
Uma pegada ecológica3, que vai ser demarcada pelo aumento do cuidado em relação ao
ambiente como um todo aí pontuado tanto pelas condições climáticas, geográficas, aquáticas,
sociais, econômicas, antropológicas, mentais, como por condições e dimensões da qualidade e
sustentabilidade de vida em geral de todos que habitam esse mundo, sejam animais humanos,
não humanos ou entes que compõem esse mesmo mundo.
O estudo dessa biodiversidade no que trata dos direitos e deveres fundamentais para
com o animal não humano, é assumido como inclusão em dimensão de reciprocidade, mesmo
atentando para a dessimetria existente. Uma ação de inclusão vinculada à tematização de uma
ética ambiental que faz retomar dimensões para tratarmos o meio ambiente também como
um dever fundamental4, correspondendo a uma liberdade acompanhada da devida
responsabilidade social do indivíduo, como defendido em Vieira de Andrade5.

3
O WWF (O WWF-Brasil é uma organização não-governamental brasileira dedicada à conservação da natureza
com os objetivos de harmonizar a atividade humana com a conservação da biodiversidade e promover o uso
racional dos recursos naturais em benefício dos cidadãos de hoje e das futuras gerações) trabalha com o que
denomina como PEGADA ECOLÓGICA que nada mas é do que uma medida de uso do ambiente de um país
ou de uma cidade ou pessoa, tendo em vista a ética e a sustentabilidade responsável. WWF. Em 1961, quando foi
fundado, a sigla WWF significava “World Wildlife Fund” o que foi traduzido como “Fundo Mundial da
Natureza” em português. No entanto, com o crescimento da organização ao redor do planeta nas décadas
seguintes, a atuação da instituição mudou de foco e as letras passaram a simbolizar o trabalho de conservação da
organização de maneira mais ampla. Com isso, a sigla ganhou sua segunda tradução: "World Wide Fund For
Nature" ou “Fundo Mundial para a Natureza”. Tem como missão: Conter a degradação do meio ambiente e
construir um futuro em que o homem viva em harmonia com a natureza através da: - Conservação da diversidade
biológica mundial; - Garantia da sustentabilidade dos recursos naturais renováveis; - Promoção da redução da
poluição e do desperdício. Com sede na Suíça, a Rede WWF é composta por organizações e escritórios em
diversos países que têm como característica a presença tanto local quanto global e o diálogo com todos os
envolvidos na questão ambiental: desde comunidades como tribos de pigmeus Baka nas florestas tropicais da
África Central, até instituições internacionais como o Banco Mundial e a Comissão Européia. Com quase cinco
milhões de associados distribuídos em cinco continentes, A Rede WWF é a maior organização do tipo no
mundo, atuando ativamente em mais de cem países, nos quais desenvolve cerca de 2 mil projetos de conservação
do meio ambiente. Hoje, a instituição pode afirmar confortavelmente que teve um papel crucial na evolução do
movimento ambientalista mundial. Desde 1985, o WWF investiu mais de US$1,165 milhões em mais de 11 mil
projetos em 130 países.
4
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 15-16 e
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. In
Revista de Direito Público da Economia. Vol. 20. out/dez. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007.
5
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 1998, p.149 e ss. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2006.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A partir de uma ótica voltada ao Estado democrático de direito e à contemplação do


meio ambiente em seus múltiplos atravessamentos, apoiamos como Habermas (2002)6
(...) que os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito explicitam
apenas o sentido performativo da autoconstituição de uma comunidade de
parceiros do direito, livres e iguais. Esta prática é perenizada nas formas de
organização do Estado democrático de direito. Toda constituição histórica
desenvolve uma dupla relação com o tempo: enquanto documento histórico, ela
relembra o ato de fundação que interpreta; enquanto projeto de uma sociedade
justa, a constituição articula o horizonte de expectativas de um futuro antecipado no
presente. E sob a ótica desse progresso constituinte, duradouro e contínuo, o
processo democrático da legislação legítima adquire um estatuto privilegiado (grifo
nosso).
A proposta teórico-prática de uma ética ambiental tem sua gênese, em primeira mão,
na própria historicidade dos direitos fundamentais. Inerente à herança dos princípios
revolucionários enfatizados e materializados no século XVIII, e que abraçam os ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, dão origem aos direitos de primeira dimensão. As lutas
demarcadas pela liberdade não dão conta, no ordenamento jurídico, das necessidades,
expectativas e desenvolvimentos socioeconômico-culturais da contemporaneidade. Os direitos
de segunda dimensão como direitos sociais, por sua vez, nascem abraçados às ideias de
igualdade, como bem postula Bonavides7, e, com eles, são contemplados os direitos coletivos,
destacando-se as garantias constitucionais. Esses da mesma forma, ainda não abarcam o ideal
e o compromisso da agenda presente na modernidade, como diz Habermas8. Têm por foco o
gênero humano, como valor supremo, mesmo que fundado na ideia de fraternidade. E sobre
essa terceira dimensão dos direitos fundamentais está assentado o consequente direito a
uma ética solidária e fraterna, não centrada somente na proteção individual, de um grupo ou
de um determinado Estado. A esses, agregam-se os deveres fundamentais9 como obrigações
positivas perante a comunidade, além de parcela inerente as ações sociais e individuais
dessa mesma sociedade10. Traduz-se, aqui, a mobilização do cidadão para a realização do bem
comum11, constituindo-se como posições jurídicas passivas, autônomas, subjetivas,

6
HABERMAS, Jürgen. El Futuro de la Naturaleza Humana. Hacia una Eugenesia Liberal? Tradução de R.
S. Carbó. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002, p. 119.
7
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993. BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000
8
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1990.
9
NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 15-16 e
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. In
Revista de Direito Público da Economia. Vol. 20. out/dez. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007
10
MACERA, Bernard-Frank. El Deber Industrial de Respetar el Ambiente: análisis de unasituación pasiva
de Derecho público. Barcelona: Marcial Pons, 1998.
11
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976.
Coimbra: Almedina, 1998 e ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2006.

188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

individuais, universais, permanentes e essenciais como um dever jurídico condicionante ao


viver e ao conviver12.
Esses direitos e deveres fundamentais jurídicos condicionantes ao viver e ao
conviver se apoiam nas dimensões de ética e de moral instituídas. Uma delas, fundada na
formação geral da vontade, de Habermas13, pressupõe um campo ético e uma filosofia moral,
uma vez assumindo que, a ética refere-se ao bem do indivíduo ou da comunidade, ao passo
que a moral tem a ver com a justiça.

2 Uma virada para além do antropocentrismo

Para tanto, uma contra argumentação dos princípios e regras que sustentam a vida
digna dos animais não-humanos como parte de uma teoria normativa dos direitos
fundamentais de base constitucionalista. A valorização dos princípios e a sua incorporação ao
sistema constitucional e o seu reconhecimento pela ordem jurídica, no que concerne a sua
normatividade, fazem parte de um ambiente de reaproximação entre o Direito e a Ética14.
Paulatinamente, a trajetória que conduziu os princípios ao centro do sistema teve que
propiciar a conquista do status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma
“dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e
imediata”15. Canotilho16 conceitua norma jurídica como definidora de esquemas jurídicos para
a solução de conflitos e com isso importa a sua contribuição nesse momento. Já Müller e
Ávila17 defendem que a norma jurídica há de ser entendida como um projeto vinculante que
abarca tanto o que regula como o que está sendo regulado, complementando-se no que tange
ao foco da extensão do princípio da dignidade ao animal não-humano.
Em síntese, a questão levantada, neste momento, acerca da relevância de se
estabelecer um compromisso sócio-jurídico de preservação do ambiente no qual nos

12
PASTOR, P. y R. BUSTAMANTE, Arias. Op. Cit. Apud. MACERA, Bernard-Frank. El Deber Industrial de
Respetar el Ambiente: análisis de una situación pasiva de Derecho público. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p.
32.
13
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 23.
14
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
15
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 291.
16
CANOTILHO, José Joaquim Gomes (coord.). Introdução ao Direito do Ambiente. Lisboa: Universidade
Aberta, 1998a. E CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo. In
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
17
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 1998. E ÁVILA, Humberto. Teoria dos
Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed, 3ª tir, rev. São Paulo: Malheiros, 2005.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

inserimos, está alicerçada na ideia de que buscamos ressaltar a necessidade do respeito


recíproco, o respeito às pessoas, como seres vivos, assim como o direito à vida em geral. O
grande mérito do direito-dever à preservação ambiental consiste, talvez, na necessária defesa
de medidas de longo prazo. Como o próprio Habermas afirma, o direito extrai sua força
integradora, enfim, a partir das fontes de solidariedade social, numa prática de
autodeterminação e de reciprocidade comunicativa entre espécies18.
Conforme o entendimento de Renaud19, essa realidade pode e deve ser entendida de
forma recíproca, como sendo o impacto da ética sobre a ecologia, e como sendo um desafio
que a ecologia levanta para a reflexão ética. Renaud20 ressalta no que diz a ética ecológica,
que a nossa ética ambiental se torna :
(...) difícil de responder es la pregunta fundamental de la ética ecológica: ¿qué tiene
que decir ante la vulnerabilidad de la criatura muda una teoría que se limita a un
círculo de destinatarios formado por los sujetos capaces de hablar y de actuar? En la
compasión con el animal torturado, en el dolor por los biotopos destruidos, se alzan
intuiciones morales que no pueden ser satisfechas seriamente por el narcisismo
colectivo de un modo de ver las cosas que en el ultimo termino no es sino
antropocéntrico.”
Habermas21 continua questionando nosso envolvimento em questões de ordem
cotidiana e, ao mesmo tempo, de alcance global, defendendo uma co-responsabilidade e uma
inclusão do animal não humano, assim como outros seres - embriões, crianças recém
nascidas, seres incapacitados como doentes mentais, velhos, idosos impotentes face à vida:
O filósofo moral no dispone de um acceso privilegiado a lãs verdades Morales. En
vista de las cuatro grandes cargas moral-políticas que pesan sobre nuestra propia
existencia – en vista del hambre y de la miseria del Tercer Mundo; en vista de la
tortura y de la continuada violación de la dignidad humana en los Estados que no lo
son de Derecho; en vista del creciente desempleo y del dispar reparto de la riqueza
social en los países industrializados occidentales; en vista, finalmente, del riesgo
autodestructivo que significa la carrera armamentística atómica para la vida sobre
este planeta – en vista de situaciones provocativas de este tipo, mi concepción
restrictiva de la capacidad de la ética filosófica puede que suponga una decepción,
pero en todo caso es también un aguijón: a filosofía no exonera a nadie de su
responsabilidad práctica.
Renaud22 pontua que, se os humanos dominam a natureza para sobreviver, eles
também fazem parte dela; voltar a encontrar estes laços de interdependência com o ambiente
em que vivemos e com tudo aquilo que o integra não significa somente preservar a qualidade
do ar e da água, indo ao encontro de uma nova compreensão do cosmos no qual vivemos o
nosso destino pessoal, apontando para a necessidade de superação do antropocentrismo.

18
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p.62.
19
RENAUD, Isabel Carmelo Rosa. Dimensão Ecológica da Bioética, Porto: ed. Porto, 2001, p.131.
20
HABERMAS, Jürgen. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid, Editorial Trotta, 2000, p.32-33.
21
HABERMAS, Jürgen. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid, Editorial Trotta, 2000, p. 33.
22
RENAUD, Isabel Carmelo Rosa. Dimensão Ecológica da Bioética, Porto: Ed. Porto, 2001, p.133.

190
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Uma ética ambiental23 nos obriga a processos de auto-reflexão, de reflexão coletiva e


de reflexão independente. Assim, são como cumprir princípio fundamental da ética do
discurso, que exige em cada caso, quando não questionamos nossas ações em relação às
minorias, aos grupos excluídos, aos animais e seguimos promovendo ações que, do ponto de
vista ético descumprem com os propósitos e pressupostos de igualdade e de solidariedade?
Propomos com, Habermas24
(...) romper las cadenas de una universalidad falsa, meramente pretendida, de
principio universalistas obtenidos selectivamente y aplicados de modo
insensible al contexto, siempre han sido necesarios, y lo siguen siendo hasta
hoy, movimientos sociales y luchas políticas que nos permitan aprender de
las experiencias dolorosas y del sofrimiento irreparable de los humillados y
ofendidos, de los heridos y asesinados, que no es licito excluir a nadie em
nombre del universalismo moral
Tendo em conta a relevância do direito e do dever à proteção do meio ambiente para a
vida em geral, bem como para a espécie humana e para sua dignidade, aglutinamos a ética
inerente aos direitos fundamentais e aos próprios deveres fundamentais para a manutenção da
dignidade da pessoa humana para justificar a necessidade de entender a proteção ambiental
como um direito e um dever da sociedade e do indivíduo.25 Nessa ótica pragmático-
transcendental move-se também Karl-Otto Apel26 com sua ética da comunicação, na qual a
comunicação pressupõe princípios e normas morais fundamentais, ou seja, inclusão e defesa
da justiça, a solidariedade e a co-responsabilidade.
A mesma condição da sociedade27 que instiga o animal humano a pressupor uma
reciprocidade entre espécies no plano comunicativo e moral:
o fardo da integração social se transfere cada vez mais para as realizações de
entendimento de atores para as quais a facticidade(coação de sanções
exteriores) e a validade(força ligadora de convicções racionalmente
motivadas) são incompatíveis, ao menos fora dos domínios de ação regulados
pela tradição e pelos costumes.Se for verdade, como eu penso,(...) que
complexos de interação não se estabilizam apenas através da influência

23
HABERMAS, Jürgen. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid, Editorial Trotta, 2000, p. 32.
24
HABERMAS, Jürgen. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid, Editorial Trotta, 2000, p. 124.
25
A origem do conceito de bioética é datada da década de 70 quando o termo foi cunhado pelo médico Van
Renssaler Potter em seu livro “Bioethics: bridge to the future”, editado em 1971. O objetivo do médico era
chamar a atenção das pessoas para a degradação causada pelo homem contra a natureza e, com isso, propor uma
nova relação homem-natureza, baseada em valores mais adequados à dignidade de todos e de cada um. A
bioética para Potter seria a ciência ideal para cuidar desta relação instintiva existente entre o homem e a natureza
que o rodeia. Contudo, a bioética converteu-se não em uma nova ciência, uma nova ética científica, mas sim a
ética aplicada a um novo campo de estudo: o campo da medicina e da biologia. De acordo com a definição da
Encyclopedia of Bioethics, bioética é: “O estudo sistemático do comportamento humano na área das ciências da
vida e dos cuidados da saúde, quando se examina esse comportamento à luz dos valores e dos princípios
morais”.
26
APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Petrópolis: Vozes, 1994, p. p.35.
27
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 45.

191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

recíproca de atores orientados pelo sucesso, então a sociedade tem que


ser integrada, em última instância, através do agir comunicativo28.”

3 Uma ética ambiental num Estado de Direito Ambiental mapeando o sentido de


dignidade

Para pensar e fazer uma ética ambiental, Schumacher29, afirma uma condição tanto
simples quanto desconcertante: cada um de nós pode trabalhar para colocar em ordem o
interior de nossa própria casa. O argumento é lógico, uma vez que a transformação pessoal
produz uma modificação de conduta, que, por sua vez pode ser traduzida por uma vida
comunitária sustentável para se fazer possível um “futuro mais verde” no qual os indivíduos
que avançam por si mesmos e se unem com outros indivíduos que fazem o mesmo num
exercício de solidariedade.
No caso do direito relativo ao meio ambiente30, os valores ético-jurídicos da defesa do
ambiente não esgotam todos os princípios e valores do ordenamento jurídico, pelo que a
realização do Estado de Direito Ambiental vai obrigar à conciliação dos direitos
fundamentais (...) com as demais posições jurídicas, vinculadas às diferentes dimensões do
direito fundamental, sejam as de primeira, segunda ou terceira dimensão, ao que Sand
destaca,
por dos razones, nuestra generación cargará com uma responsabilidad sobre el
futuro del planeta Tierra más grande que la que haya tenido cualquier
generación anterior. Primero, tenemos un mejor conocimiento – hemos logrado el
acceso a una riqueza de información científica sin precedentes y a una creciente
capacidad de análisis y predicción. Segundo, podemos actuar mejor – hemos
acumulado suficiente experiencia tecnológica e institucional para realizar las
acciones internacionales necesarias31 (grifo nosso).
Tal como Séguin32 filia-se, ao trabalhar com essa dimensão ética, Habermas33 vem
propor, na base de estruturação de uma vontade popular,
quando se trata de um questionamento eticamente relevante – como é o caso de
problemas ecológicos da proteção dos animais e do meio ambiente, do
planejamento do trânsito e da construção de cidades, ou de problemas referentes à

28
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p.45, “o conceito elementar de ‘agir comunicativo’ explica como é possível surgir integração
social através de energias aglutinantes de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente. (...) O briga a sair
do egocentrismo e a se colocar sob os critérios públicos da racionalidade do entendimento.”
29
SCHUMACHER, F. Small in Beautiful, p.249-250 apud DOBSON, Andrew. Pensamiento Político Verde.
Barcelona: Paidós, 1997, p. 166.
30
SILVA, Vasco Pereira da. Verde Cor de Direito: lições de Direito do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 17 e SILVA, Vasco Pereira da. Verdes são também os direitos do homem. Cascais: Principia, 2000.
31
SAND, P. H. , Lessons Learned in Global Environmental Governance, apud FELGUERAS, Santiago.
Derechos Humanos y Medio Ambiente. Buenos Aires: AdHoc, 1996, p.14.
32
SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2000, . P. 169.
33
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 207.

192
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

política de imigração, da proteção de minorias étnicas e culturais, ou, em geral, de


problemas da cultura política – então é o caso de se pensar em discursos de auto-
entendimento, que passam pelos interesses e orientações valorativas conflitantes, e
numa forma de vida comum que traz reflexivamente à consciência concordâncias
mais profundas.
Para além disso34, pensa que, em sociedades complexas, resta a alternativa de
negociações que exigem evidentemente a disposição cooperativa (...) [mais] negociações
eqüitativas não destroem, pois, o princípio do discurso, uma vez que o pressupõem. Nessa
linha, segundo Habermas35, fazemos uso moral da razão prática quando perguntamos o que é
igualmente bom para todos e fazemos um uso ético da razão quando perguntamos o que, em
cada caso, é bom para mim ou para ti. Quando pensamos a proteção do ambiente partimos
do pressuposto de que o direito à proteção do ambiente é um bem jusfundamental36 e
procuramos firmar um conceito de ambiente37, nessa perspectiva, firmamos uma conduta
obrigatória, e não opcional, de proteção ao meio ambiente, investindo na possibilidade
jurídico-constitucional de tornar essa proteção verdadeira e legítima. Essa possibilidade se dá
como parte de um direito jusfundamental de diferente intensidade, aqui configurado como um
dever. Para tanto, assumimos a premissa que o direito a proteção ambiental além de um
direito fundamental, constitui-se também, e provavelmente para além de um direito, em um
dever fundamental de solidariedade, alicerçado em comportamento ético e consciente.
Asseverando que se pode visualizar na dignidade da pessoa humana, Sarlet38 elabora um
conceito jurídico bastante ousado para o princípio da dignidade da pessoa humana, no que
concerne a sua vertente defensiva e prestacional,
[...] um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar
e promover sua participação ativa e co-responsável da própria e nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão39.

34
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, p. 207ss.
35
HABERMAS, Jürgen. Textos y Contextos. Barcelona: Editorial Ariel, 1996, p. 169.
36
Tese defendida quando da realização do Curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul no ano de 2001. A ideia encontra-se, inclusive,
publicada na obra de MEDEIROS, Fernanda L. Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental, de
2004.
37
A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n.º 9.638/81, em seu artigo 3º, inciso I, reza que “meio
ambiente, o conjunto de condições, leis, influencias e interações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. BRASIL. Lei n.º 6.938 de 31 de agosto de 1981. Dispõe
sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm Acesso em 20/09/2008.
38
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 6ª ed. rev e atua. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008a.
39
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 6ª ed. rev e atua. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008ª, p. 63.

193
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O conceito é intempestivo e inusitado por reconhecer em cada ser humano o respeito e


a consideração por parte do Estado e por parte dos particulares, ou seja, dos seus pares e da
própria comunidade. Indica um reconhecimento agregado de um complexo de direitos e de
deveres fundamentais que assegurem o indivíduo contra todo e qualquer ato degradante contra
si, mas por ir além, por reconhecer a necessária participação corresponsável nos destinos da
própria existência e da vida em comunhão com os demais seres.
Hegel40 41
, a partir de uma perspectiva escolástica, tal qual encontrada em Tomás de
Aquino, para quem a dignidade se constitui em uma qualidade a ser conquistada, defende a
eticidade que se centra no sentido de que ninguém nasce digno, mas que se torna digno pela
ação individual e coletiva. Resulta de um reconhecimento. Um sujeito de direitos, não
condicionado à racionalidade42. O processo de mediação de vontades livres referido
anteriormente, se dá, conforme o caminho indicado pelo próprio filósofo, estabelecendo que o
animal (que considera o anti-humano) permanece no estado do sentimento e só consegue
comunicar-se por meio dele, ao passo que é da natureza da humanidade esforçar-se por
estabelecer um acordo com os demais em uma instituição da comunidade das consciências. A
partir da perspectiva trazida por Seelman, vemos que a dignidade em Hegel43 é reconhecida
na medida em que assume consciência do ser, para dentro e para fora, passando a possuir
dignidade e a vida, portanto, a ter valor reconhecido.
Discorrendo acerca dos diversos sentidos da dignidade, Dworkin44 enfatiza
especialmente a idéia de que “as pessoas tem direito a não sofrer indignidade, a não serem
maltratadas, a não serem tratadas de maneira que em suas culturas ou comunidades se entende

Apud Weber 1999


41
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, apud SEELMAN, Kurt. Pessoa e Dignidade da Pessoa Humana na
Filosofia de HEGEL. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
E HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito; Estética: a Idéia e o Ideal; Estética: o Belo
Artístico e o Ideal; Introdução à História da Filosofia. Traduções de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Orlando
Vitorino, Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores). Título original: [Die
Phaenomenologie des Geistes; Vorlesungen ueber die Aesthetik;Vorlesungen ueber die Geschichte der
Philosophie].
42
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e proporcionalidade: notas a respeito dos limites da aplicação
das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Revista da AJURIS – v. 35 –
n. 109 – Março 2008b.
43
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, apud SEELMAN, Kurt. Pessoa e Dignidade da Pessoa Humana na
Filosofia de HEGEL. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da
Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
44
DWORKIN, Ronald. El Dominio de la Vida. Una Discusión Acerca del Aborto, la Eutanasia y la
Libertad Individual. Tradução de Ricardo Caracciolo e Victor Ferreres. 1ª reimp. Barcelona: Ariel, 1998,
p.3005 e DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002: “Cualquier
sociedad civilizada tiene estándares y convenciones que definen esta clase de indignidad, y que difieren de lugar
a lugar y de época en época”. O autor, em sua análise, parte de dois casos concretos marcantes: o caso dos presos
e o caso dos dementes.

194
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

como falta de respeito (tradução nossa)”. A referência a uma “voz ativa” da dignidade é
empregada no sentido de que as pessoas cuidam e deveriam cuidar de sua própria dignidade.
Ao que se esclarece
Abordando tal significado sob a forma negativa (a da indignidade), significa afirmar
que, quando alguém compromete sua própria dignidade (um dano “auto-infligido”;
uma “auto-traição”) está negando a importância intrínseca vida humana, inclusive da
sua. De outra banda, em estreita conexão a essa voz ativa da dignidade, encontra-se
a “voz passiva” da dignidade, empregada no sentido de que a pessoa sofre um dano
a sua dignidade, dano causado por outrem45.
O que provoca e instiga o pesquisador é por que a indignidade (seja auto-infligida, seja
infligida por outrem) é uma “classe especial de dano”? Partindo da análise habermasiana46,
defendemos a possibilidade de que a dignidade da vida aplique-se também à proteção a vida
dos animais não-humanos. A contribuição do filósofo alemão é valiosa e ele faz esse aporte
pensando em todas as ameaças das novas biotecnologias, tratando do problema da
instrumentalização da vida humana antes do seu nascimento. Nesse contexto, e até mesmo
frente à controvérsia a respeito da titularidade de direitos pela parte dos animais, a saída da
proteção pela dignidade da vida é uma alternativa que pode representar uma efetiva proteção
dos animais, pois através dela acreditamos que se pode enfrentar toda a discussão acerca dos
direitos dos animais. Enfim, acolhemos a lição de Sarlet47, haja vista ser uma das principais
metas demonstrar que é possível atribuir dignidade não só ao animal humano. Assim como o
animal humano o animal não-humano é detentor dos atributos de dignidade a própria vida.

4 A extensão e intensidade da dignidade numa perspectiva ecológica

Abordar a dignidade humana seja num plano moral, seja num plano jurídico, a partir
de uma simetria de relações entre seres morais, que, enquanto membros de uma comunidade,
podem estabelecer obrigações recíprocas e esperam, uns dos outros, comportamento conforme
as leis, equivale a afirmar que a dignidade humana somente encontra sentido nas relações
interpessoais de reconhecimento recíproco. Partindo desse raciocínio, o marco da conversão
do organismo humano em pessoa (a contar do nascimento) é o ato de acolhimento social, de
acolhimento de um contexto público de interação de um mundo da vida compartilhado
intersubjetivamente, o que remete para a natureza racional-social da pessoa humana. A partir

45
PETTERLE, Selma Rodrigues, 2007, p. 36.
•46HABERMAS, Jürgen. El Futuro de la Naturaleza Humana. Hacia una Eugenesia Liberal? Tradução de
R. S. Carbó. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.
47
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: uma compreensão jurídico-
constitucional aberta e compatível com os desafios da biotecnologia. In SARMENTO, Daniel & PIOVESAN,
Flávia (coord.) Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sobre a perspectiva dos direitos
humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

195
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do momento que se tem consciência do ser, se tem consciência do valor da vida, passa a ser
digno.
Habermas questiona, nessa linha, como se protege o embrião? Responde como se
efetivando por meio da aplicação da dignidade da vida (antes do nascimento) e não da
aplicação da dignidade da pessoa humana e nesse compasso é possível aportar todo o
pensamento do filósofo para o problema da proteção dos animais não-humanos. Nessa
concepção, como examinado, a pessoa somente existe após o nascimento, quando é acolhida
no contexto público e passa a atuar comunicativamente com as outras pessoas. Todavia,
mesmo antes de entrar no contexto público de interação social, a vida humana goza de
proteção jurídica. Se, por um lado, Habermas rechaça uma antecipação do processo de
socialização (ainda que se possa admitir que os pais possam falar sobre e, de certa maneira,
com o feto em gestação), por outro, afirma que a vida humana pré-natal goza de proteção
porque se tem deveres (morais e legais) com relação à vida. Afirma o autor que a vida pré-
pessoal também conserva um valor integral para o conjunto de uma forma de vida entendida
como ética. E é nessa linha, que se faz a distinção entre a dignidade da vida humana e a
dignidade humana como garantia legal das pessoas, refletindo-se, inclusive, segundo o autor,
no modo digno como lida com os mortos48.

5 Dignidade da vida

Consoante já anunciado por Sarlet, cada vez mais percebemos que uma compreensão
sólida e constitucionalmente adequada da noção de dignidade constitui pressuposto para uma
analise séria e frutífera de qualquer problema concreto. Revela-se a dificuldade de se
estabelecer um sentido no âmbito da proteção jurídica acerca da dignidade:
Decorre certamente [...] da circunstância de que se cuida de um conceito de
contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ‘ambigüidade e porosidade’,
por sua natureza necessariamente polissêmica, bem como por um forte ‘apelo
emotivo’, muito embora tais atributos não possam ser exclusivamente atribuídos à
noção de dignidade da pessoa49.
Cabe anotar que a dignidade humana, para Habermas, entendida em sentido moral
estrito e jurídico, encontra-se ligada a uma simetria de relações. Para o autor,
Ela [a dignidade] não é uma propriedade que se pode possuir por natureza, como a
inteligência ou os olhos azuis. Ela marca, antes, aquela intangibilidade que só pode
ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no
relacionamento igualitário entre as pessoas. Emprego o termo intangibilidade não

48
HABERMAS, Jürgen. El Futuro de la Naturaleza Humana. Hacia una Eugenesia Liberal? Tradução de R.
S. Carbó. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.
49
SARLET, 2007, in SARMENTO & PIOVESAN, 2007, p.212.

196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

com o mesmo sentido de indisponibilidade, pois uma resposta pós-metafísica à


questão de como devemos lidar com a vida humana pré-pessoal não pode se obtida
50
ao preço de uma definição reducionista do homem e da moral .
Ampliando a visão da dignidade a partir da leitura e do alcance da dignidade pré-
pessoal. Habermas alicerça sua tese afirmando não ser possível somente atestar dignidade
àquele que atua na esfera do reconhecimento e na comunidade moral, pois os seres pré-
pessoais também deverão ser protegidos pela dignidade, por uma dignidade da vida, incluindo
na mesma as suas inerentes obrigações.
De outra banda, é Sarlet quem, de modo muito procedente contrapõe-se ao modo de
adoção a Kant sem reservas, uma vez que, não está mais em causa apenas a vida humana.
Aceitando-se essa premissa, da dignidade da vida não-humana, defendemos um conceito
inclusivo, não significando privilegiar a espécie humana acima de outras espécies, mas,
aceitar o reconhecimento da dignidade da pessoa e as consequentes obrigações com outros
seres51.
Estabelecer conexões entre liberdade e dignidade do outro para dar lugar aos direitos
humanos em larga escala é pressuposto por Maurer52. Como defende a autora
A liberdade engendra o dever de reconhecer a liberdade do outro. O reconhecimento
da dignidade do outro, por sua vez, é muito mais difícil. Esse princípio ultrapassa,
portanto, tanto os deveres do Estado como os do indivíduo. Ele torna necessária a
solidariedade (grifo nosso).
Questionamos como essas ações e dimensões se expandem na medida em que os
direitos se ampliaram, abandonando a supremacia ou o indicativo da propriedade em favor da
dignidade, da dignidade como qualidade de vida, da dignidade da vida? Uma vez que a
propriedade do outro é tratada como “coisa” deixa de ser um valor para a dignidade, que é
assumida em sua condição de respeito, solidariedade, fraternidade, integridade, dando corpo à
justiça, quando ações degradantes se instauram junto aos seres vivos, animais não-humanos.
A noção de dignidade alicerçada à de qualidade de vida, de liberdade, amalgamam
conceitos de direitos fundamentais, de direitos humanos. Hodiernamente, esses mesmos
direitos estão associados profunda e indelevelmente a deveres fundamentais, que se expandem
por uma questão de igualdade, de não-propriedade, de não sofrimento, gerando deveres
fundamentais para com os demais seres vivos, mesmo que ainda em debates controvertidos
em diferentes esferas sociais e jurídicas.

50
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47..
51
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 6ª ed. rev e atua. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008a.
52
MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em
torno de um tema central. In. : SARLET, Ingo Wolgang. Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do
Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.79.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Na vereda53, questiona: se os animais não-humanos não são capazes de tomar posição


nas relações as quais estão envolvidos e defender seus interesses e os animais humanos são,
em princípio, capazes de se reconhecer dignos de consideração os interesses dos demais, não
seria o caso dos animais humanos iniciarem uma mudança de direção, uma mudança de
paradigma com relação aos animais não-humanos, assumindo uma relação de defesa de
interesses em relação ao outro?
Sustentamos que todos os animais humanos por mais que se diferenciem como
indivíduos e culturalmente, partilham uma humanidade comum que “permite a todo ser
humano se comunicar potencialmente com todos os demais seres humanos no planeta e entrar
numa relação moral com eles”54. Baseado nessa via argumentativa, vinculada à dimensão
intersubjetiva, ou seja, relacional, da dignidade da pessoa humana, é que se pode sustentar,
como adverte Sarlet, nessa dimensão relacional e comunicativa, a noção da dignidade como
produto do reconhecimento da essencial unicidade de cada pessoa humana55 e do fato dessa
ser credora de um dever de respeito e proteção para com o resto da comunidade.
A corrente habermasiana pondera pela defesa de uma dignidade da vida, o que
alcançaria a proteção dos animais não-humanos. Essa dignidade da vida surge em razão de
um dever de proteção junto aos tutelados, ou seja, junto aos animais não-humanos, que não
participam intencionalmente dos círculos de comunicação.
Tais questionamentos remetem a possibilidade de atribuir dignidade aos demais seres
vivos como advêm à melhor tendência contemporânea de uma proteção constitucional dos
animais não-humanos. Levamos, assim, em consideração que nem todas as medidas de
proteção à natureza na Constituição têm por objeto assegurar a proteção dos seres vivos
propriamente ditos, mas sim a preservação, a proteção, a regeneração da natureza por ela
própria (em razão de vida, por reconhecer-se aí um valor intrínseco e inerente56).

6 Proteção do animal não humano e direitos fundamentais

53
SPAEMANN, Robert. Felicidade e Benevolência: ensaio sobre ética. São Paulo: Loyola, 1996. E
SPAEMANN, R . Sobre el concepto de dignidad humana. In.: MASSINI, C.I. y SERNA P. (eds). FINNIS, J;
KALINOWSKI,G; OLLERO, A; POSSENTI, V; y SPAEMANN, R. El Derecho a la Vida. EUNSA. Ediciones
Universidad de Navarra, S.A. Pamplona, Barcelona: 1998.
54
FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução da biotecnologia. Rio de
Janeiro: Rocco, 2003, p. 23.
55
SARLET, In SARMENTO & PIOVESAN, 2007, p. 224
56
FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2007, p. 130, esclarece a diferenciação entre valor intrínseco e valor inerente: “para REGAN, as
experiências diretamente relacionadas à senciência (dor e prazer) não são eficientes para pautar eventuais
limitações às condutas dos agentes morais, caso contrários a analgesia poderia ser a solução para todas as
praticas relacionadas à exploração animal. Vide também Lourenço LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos
Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008, p. 423.

198
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Movimentos existentes na Alemanha e na Áustria, respectivamente, 88 e 90,


contribuíram para supressão da condição de “coisa” ao animal e atribuição do direito ao
mesmo, publicado como direito e proteção dos animais, sob o nome de dignidade da criatura,
de acordo com Fundação de Direito dos Animais de Zurich. Esse projeto de lei não somente
recusa-se a considerar o animal como objeto em salvaguarda a outros interesses do animal
como leva em conta a relação homem-animal. O projeto se concentra, entre outras, no
ordenamento jurídico suíço de responsabilidade, direito real, família, sucessões e execução.
Segundo o autor, a relação Homem-Animal é dinâmica e constante57. Por sua vez, a
Université de Bâle, ao trabalhar a dignidade da criatura como termo jurídico analisa o direito
na Constituição, questionando essa mudança de Estrato Jurídico, para não comprometer os
próprios interesses dos animais, assim como a proteção de seu Bem-Estar58, desafiando uma
visão puramente antropocentrista da norma jurídica, e, com isso, forçando a disposição para a
quebra de paradigmas como a diferença entre direitos e interesses jurídicos tuteláveis.
A sensibilidade ao direito, extensivo aos animais não humanos segundo Araújo59 é
Um dos pontos mais fracos da legislação que hoje atende já, de forma extensa, aos
interesses dos animais no seu bem-estar reside nas concessões que as normas
jurídicas têm feito – e não deixarão de fazer tão cedo – a formas de exploração
animal que, não obstante acarretarem freqüentemente situações de sofrimento
generalizado nas suas vítimas, são cruciais para a manutenção de um nível
econômico de bem-estar humano que associamos ao progresso civilizacional;
formas de exploração que parecem assim justificadas [...]
Para a proteção e preservação dos animais não-humanos, Wold60 traz à tona um caso
ocorrido nos tribunais australianos alicerçado no princípio da precaução para a proteção de
uma espécie animal.
Assim, por exemplo, os tribunais australianos, ao estabelecerem restrições a
construção de determinada estrada de rodagem por sua interferência com o habitat
de uma espécie de sapo ameaçada de extinção, invocaram o princípio da precaução
como fundamento de sua decisão com amparo apenas no testemunho de uma única
pessoa, que afirmou ter avistado a mencionada espécie protegida na área de
influência do empreendimento61.

57
GOETSCHEL, Antoine. L’animal, ni Chose ni Sujet de Droit – Où en Sommes-nous avec la Dignité de
l’animal et son statut juridique en Suisse et à l’étranger? In.: La Dignité de L’Animal. Quel Statut pour
les Animaux à l’heure des technosciences? Labor Et Fides. Le Champ Éthique, no 36., Geneve, Montreal.
P.103-125.
58
LUCHSINGER, Thomas. La dignité de la créature en tant que terme juridique: quelle direction
prendre?. In.: MULLER, Denis & POLTIER, Müller. La Dignité de L’Animal. Le Champ Éthique, no 36.
59
ARAUJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais, 2003, p. 205.
60
WOLD, Chris, Introdução ao estudo dos princípios de direito internacional do meio ambiente In SAMPAIO,
José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de Direito Ambiental na dimensão
internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
61
SAMPAIO SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de Direito
Ambiental na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 18..

199
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Interessante a referência à realidade australiana com a práxis das estradas brasileiras.


No sul do estado do Rio Grande do Sul uma estrada de rolagem rápida (BR-471) cruza uma
unidade de conservação. A referida rodovia atravessa a Estação Ecológica do Taim62,
permitindo o tráfego de alta velocidade de veículos automotores que não titubeiam em
atropelar animais ameaçados de extinção e que, teoricamente, estariam na região protegidos
do extermínio e desaparecimento63.
Necessário se faz que a sustentação de uma dignidade para além da vida do animal
humano, de uma responsabilidade seja alicerçada em um dever fundamental do animal
humano para com o animal não-humano; se dá não só por uma questão de compaixão e de
justiça64. Portanto, não seria impossível, como se crê que não é, sustentar que se trata de uma
questão ética e de uma questão de direito, que extrapola a relação íntima de ‘com-paixão’ de
cada um e de todos, para uma relação de direitos e de deveres, em que pese não similares e
não recíprocos com os dos direitos e deveres dos animais humanos, de uma dignidade da
humanidade. Não apenas como núcleo essencial de cada ser humano individualmente
considerado, “mas também como propriedade de um sujeito coletivo autônomo”. Vemos que,
onde e quando exista a lesão a essa dignidade humana coletiva, independentemente de uma
lesão individualmente considerada, há ofensa a dignidade.
Contudo, tal questionamento não tem interessado a pesquisa moderna de cunho
antropocêntrico, pois o que se propõe é uma reordenação axiológica (SOUZA, 1997)65. A
noção de justiça para com o outro não é uma questão de justiça para com os iguais, de
mesmo porte, de mesma dignidade. Essa justiça, que o autor define como sendo quase
tautológica, consiste no reconhecimento cabal da assimetria de origem. A expressão do
‘Outro’ é ser o outro propriamente dito, e a justiça que eticamente exige que se lhe faça é a

62
A Estação Ecológica do Taim possui como objetivo específico Proteger amostras dos Banhados do Sul e da
fauna ameaçadas de extinção e preservar o local de passagem de aves migratórias, finalidade que se torna
bastante comprometida pelo fato dos motoristas assassinarem diversos desses animais diariamente. O próprio
IBAMA reconhece que Os agrossistemas no entorno da área provocam a deficiência de água e diminuem a
qualidade do solo, trazendo grandes prejuízos econômicos e ambientais. Outros problemas enfrentados pela
unidade são: as queimadas, os atropelamentos de animais na BR-471, a pesca e a caça. Fonte:
http://www.ibama.gov.br, acessado na data de 25/09/2005.
63
São espécies como as capivaras e algumas aranhas que, por gerarem pânico em algumas pessoas, certos
motoristas chegam a voluntariamente voltarem seus veículos para atropelarem os animais.
64
NUSSBAUM, Martha C. Para alem de ‘compaixão e humanidade’ – justiça para animais não-humanos. In A
dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária.
MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de.; SARLET, Ingo Wolfgang;
FENSTERSEIFER, Tiago (orgs.). Belo Horizonte: Fórum, 2008. E NUSSBAUM NUSSBAUM, Martha C.
Beyond “Compassion and Humanity”: justice for nonhuman animals. In SUNSTEIN, Cass R. & NUSSBAUM,
Martha C. Animal Rights: current debates and new directions. New York: Oxford, 2004.
65
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e Proteção Jurídica. Porto Alegre: UE/Porto
Alegre, 1997.

200
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

justiça que habita o paradoxo de um encontro com o que não sou eu, nem se resolve em
minha lógica66.
Configuramos, aqui, um desafio para a funcionalidade do Direito no seu papel de
ordenar as relações entre os homens, na construção de uma justiça desse outro, datada,
histórica e amplamente flexível, embora determinada e propositiva na salvaguarda de deveres
fundamentais dos homens com relação aos animais não-humanos.
Melhor modo de ir tecendo a rede complexa do entendimento de dignidade é trazer o
pensamento provocador de Agamben ao que parece movido pela força dos fatos políticos que
assolam seu tempo, assim com o afetam os acontecimentos da II Guerra nos campos de
extermínio, via holocausto. A tríade que vem denominar como de Homo sacer67, é trabalhada
pelo autor68, como outro jeito de pensar a política. É na direção cruel desse Homo sacer, que
em termos da dignidade e da vida digna e indigna, tal como hoje se continua a debater, que
Agamben vai encontrar o instituto jurídico para essa vida nua. Nela emergem uma dimensão
singular de soberania69, paradoxalmente vinculada aos não-sujeitos, aos que foram suprimidos
em sua cidadania: o soberano e a vida nua. O autor, ainda, ressalta, trazendo dos gregos o
sentido da vida, o que muito pode contribuir para o entendimento e a extensão da dignidade
aos animais não-humanos.
Duas palavras estavam ligadas a vida: zoé, o simples ato natural de viver, sendo o
Homo sacer parte dessa zoé, que corresponderia ao que os animais humanos compartilham
com os animais não-humanos e bíos que, por sua vez, refere-se a uma vida socializada, uma
vida política. Entretanto, permanece das lições do autor, além da indissociabilidade da vida
nua e da política, da zoé e da bíos, da vida entre animal humano e não-humano, das múltiplas
possibilidades a serem refletidas na qual desafia ao humano a lidar com a sua “zona do não
conhecimento”, buscando manter sua dignidade para os tempos que virão. Agamben
vislumbra o que denomina metaforicamente de “messiânico banquete dos íntegros”, para o

66
SOUZA, Ricardo Timm. Ética e animais – reflexões desde o imperativo da alteridade. In MOLINARO,
Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTENSEIFER,
Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão
necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
67
Segundo Agamben, o Homo sacer (homem sagrado) é uma figura do direito romano, é aquele que tendo
cometido um crime hediondo, não pode ser sacrificado segundo os ritos de punição. O Homo sacer é aquele que
questiona a moral tradicional e leva a pensar como se lida com a ação política.
68
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. AGAMBEN 1998 e 2004
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Tradução de António Guerreiro. Lisboa:
Presença, 1998; Homo Sacer. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004
AGAMBEN, Giorgio. Les temps qui reste: un commentaire de l’Épître aux Romains. Paris: Payot &
Rivages, 2003. AGAMBEN, Giorgio. El tiempo que resta. Madrid: Editorial Trotta, 2006. AGAMBEN, Giorgio.
Estâncias. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
69
Conforme o entendimento de Schmitt (1956), o soberano, assumido conceitual e canonicamente por Schmitt,
encontra-se ao mesmo tempo fora e dentro da norma jurídica.

201
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

qual os seres vivos ainda teriam possibilidade de tomar assento, caso retraballhassem as
naturais conexões entre animais humanos e não-humanos, assumindo as diferenças entre
as espécies. E é essa re-conexão que está propondo realizar para que, realmente, ainda
tenhamos tempo de tomar “assento no banquete dos íntegros” assumindo que é possível viver
na diversidade, reconhecendo dignidade no igual e no diferente.

7 Viver o outro-em-mim como pressuposto à inclusão das diferenças

Transformar a dignidade numa materialidade substantiva, não acatando a indignidade


de falar pelo outro, como se esse outro fosse incompetente para sua própria expressividade na
esfera pública é o desafio que nos acata. E, muito menos, excluindo seres por uma condição
falaciosa de simetria e de falta de comunicação, o que inclui o direito dos animais não
humanos. Sem verdades absolutas! Trata-se de tomar para si, um si, aberto a uma
singularidade que diz de uma expressão de viver o outro-em-mim, assim como viver o eu-no-
outro, trocas, passagens, afectos como direitos de vida. Os direitos fundamentais e sociais
estão na base de uma busca de uma verdade que nunca é única, muito menos dirigindo à
ações homogeneizadoras de cada um e todos.
E, como tal, lutamos um combate, um bom combate, como nos desafia Marton, ao
reler Nietzsche70 71, e não nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como
esqueletos destinados a intimidar toda criação, sem ver que os antigos (...) faziam já o que se
queriam impedir os modernos de fazer: eles criavam seus conceitos e não se contentavam em
limpar, em raspar os ossos, como o crítico ou o historiador de nossa época, pois os
conceitos, tal como o modo de viver, deve ter contornos irregulares, moldados sobre sua
matéria viva, não petrificados, como uma ossatura, mas abertos, mesmo para uma
problematização dessa instância democrática.
Um convite ao pensamento, pensamento como vida que não cessa de exigir o que é
lutado como sendo seu. Um devir que se cria e é criado por esse povo como algo a inventar,
um diferente a fazer, a fazer vida, como nos instigam Deleuze e Nietzsche72, a afirmar a
diferença, podendo nos atrever a dizer, uma diferença que inclui, não impossibilitadora de
convivência com as diferenças e os diferentes; há um produzir de potência, de paixões

70
MARTON, Scarlett. Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2000.
71
NIETZSCHE, Frederich. Genealogia da Moral. São Paulo, Cia. Das Letras, 1998. E NIETZSCHE, Friedrich.
Gaia Ciência. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
72
Deleuze e Guattari, 1992, p.126; Nietzsche, 1998.

202
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

alegres, como dialoga Espinosa; sabendo que essa potência, paradoxalmente, também
pode gerar impotência, criando daí paixões tristes73.
Nesse pensar, como uma palavra em ato, emerge uma paixão de viver e dar-se a
conhecer no seu pensar. Pode ser menos um espaço de uma democracia direta que uma outra
democracia apropriativa de um povo, grupo que produz um compartilhamento que arromba,
toma conta, faz vazar modos de existência que assumem a diferença como-um-em-si e que
nos levam a perseguir e inventar o limite próprio, sendo sempre o-que-se-é, ultrapassando
limites, transgredindo fronteiras, rompendo muros, saltando-os, contornando-os, pensar
sem estar amarrado a idéias-conceitos pré-concebidos. Ser-o-que-se-é que nos desafia com a
criação singular, única em cada vertente, um ser do sensível, “em presença daquilo que só
pode ser sentido”, fazendo nascer aquilo que pode nos permitir a continuar a ser-o-que-se-é,
respeitando ou lutando com as potências, enfrentando seus limites e seus modos de viver a
diferença.
A democracia funciona desse modo como uma possibilidade de construção do que
Migliorin74 nos suscita, uma igualdade dissensual, uma chance de poder:
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo,
nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. (...) É ao nível de cada
tentativa que se avalia a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a
um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo”, mesmo de um povo
que falta.
E, ao falar, fazer desse lugar, um lugar desterritorializado de palavras de ordem,
embora, à vezes, sejamos capturados pelas mesmas, buscamos inventar, criar, possibilidades
únicas, singulares em cada ambiente, incluindo e produzindo uma categoria de direitos que
venham a contribuir à dignidade do animal não humano e, consequentemente do ambiente e
de todos que habitam esse mundo, ao se permitirem deixar habitar pela inclusão da diferença.

8 Os intraves nessa experimentação desumana

Assim, a relação mantida com os animais não-humanos não se constitui em uma


relação pacífica do ponto de vista de um julgamento moral ou que atitude devemos tomar

73
ESPINOSA, Baruch. Col. Espinosa. Os Pensadores. São. Paulo: Ed. Abril, 1983. E ESPINOSA, Baruch.
Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1978. E ESPINOSA, Emilio. De bruces com a posmodernidad: ignorancia,
poder y comunicación en la sociedad del riesgo. In: Política Exterior. Marzo/abril 2001, v.XV, n.80. Madrid:
Padilla, 2001. P.11-20.
74
MIGLIORIN, Cezar. Igualdade Dissensual: democracia e biopolítica no documentário contemporâneo. In.:
Estétivas de Biopolítica. Ensaios críticos. Revista Eletrônica de Cinética. Acessado em Abril, 2008.

203
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

assim, como devemos tratar cada caso?75. O questionamento se faz necessário, haja vista a
relação entre os animais humanos e não-humanos ser completamente ambígua. O homem não
sabe mais como se comportar frente ao outro ser que de tudo lhe oferece: afago, amor, calor,
alimento, remédio, transporte, etc. Há aqui uma necessária mudança de paradigma ético.
Jonas76 ressalta que se está vivenciando uma nova dimensão e isso impõem à ética uma
transformação nunca antes sonhada, uma ética de responsabilidade.
Por mais diversas que sejam as características trazidas pelos autores, cumpre salientar
que a prática da caça organizada não é privilégio do superprimata, os chacais também o
fazem, assim como outras infinidades de espécies; a confecção de instrumentos pode-se
observar na pesquisa realizada nos macacos capuchinhos brasileiros77 que usam pedras para
quebrar as nozes, as relações de sentimento, de afetividade, são registradas desde os
chimpanzés78, aos cachorros e entre os golfinhos79, mãe e filha coletam juntas num ato de
transmissão cultural80. Talvez o que as pesquisas demonstrem, atualmente, com a técnica que
se desenvolveu, é que esse sobrevivente não é tão super assim.
Mosterín81 constitui-se, junto a Singer, em um dos autores que mais defende a tese da
senciência, ou seja, o diferencial estaria na capacidade de sentir dor82. Se a capacidade de
sentir dor, emoção é o diferencial para que o Direito se debruce e proteja o ser senciente, por
que tanto silêncio da Ciência Jurídica? Por que tanta omissão com relação aos animais não-

75
TESTER, Keith. Animals and Society: the humanity of animal rights. London: Routledge, 1991.
76
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade. Rio de Janeiro: PUCRio, 2006.
77
OTTONI, E. B. & MANNU, Massimo. Semi-free ranging tufted capuchin monkeys (Cebus apella)
spontaneously use tools to crack open nuts. International Journal of Primatology, v. 22, n. 3, p. 347-358,
2001.; E OTTONI, Eduardo B.; IZAR, Patrícia. Capuchin monkey tool use: Overview and implications.
Evolutionary Anthropology, v. 17, p. 171-178, 2008. E OTTONI, Eduardo B; RESENDE, Briseida Dogo de;
IZAR, Patrícia. Watching the best nutcrackers: what capuchin monkeys (Cebus apella) know about others' tool-
using skills. Animal cognition. 2005; 8 (4): 215-9.
78
WRANGHAM, R. et al. (eds.). Chimpanzee cultures. Cambridge: Harvard University Press/The Chicago
Academy of Sciences: 2001. E WYNNE, Clive D.L. Do animals think? New Jersey: Princeton University
Press, 2004.
79
KRÜTZEN, Michael et al. Cultural transmission of tool use in bottlenose dolphins. In PNAS June 21,
2005 vol. 102 no. 25) Disponível: http://www.pnas.org/content/102/25/8939.full?sid=7866a6ec-5da7-46a4-
909e-91deb642a365. Acesso em: 20/02/2006. Edited by Peter Marler, University of California, Davis, CA, and
approved April 29, 2005 (received for review January 12, 2005). E VISALBERGHI, Elisabeta et al. Selection of
effective stone tools by wild capuchin monkeys. In Current Biology, 2009, 10.1016/j.cub.2008.11.064.
80
RAPCHAN, Eliane, Sebeika. Chimpanzés possuem cultura? Questões para a antropologia sobre um tema
"bom para pensar". Revista. Antropologia.vol. 48, no.1, São Paulo: Jan./June, 2005. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034.77012005000100006&script=sci_arttext#nt01. Acessado em
20/04/2009. E
BÖESCH, C. & TOMASELLO, M. Chimpanzee and human cultures. Current Anthropology, vol. 39(5): 591-
614, 1998.
81
E MOSTERÍN, Jesús. ¡Vivan los Animales! Barcelona: Debols, 2003.
82
MOSTERÍN, Jésus & RIECHMANN, Jorge. Animales y Ciudadanos. Indagación sobre el lugar de los
animals y el derecho de las sociedades industrializadas.Madrid: Ediciones TALASA, 1995.. In. MOSTERÍN,
Jésus & RIECHMANN, Jorge. Animales y Ciudadanos. Indagación sobre el lugar de los animals y el
derecho de las sociedades industrializadas.Madrid: Ediciones TALASA, 1995.

204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

humanos? O que leva centenas de pessoas a uma arena, a uma praça arquitetonicamente bela,
a assistir o massacre de um animal? A pagarem para ver um homem montado em um cavalo
dominar um touro com espadas afiadas fincando-lhe até que o animal caia arfando na areia da
arena? Que tipo de animais (insensíveis) se é? Quais serão as necessidades humanas (dos
animais humanos) para adotar tal comportamento com relação aos animais (não-humanos)?
Qual é o papel do direito como mediador e regulador do comportamento social?83
Ao longo dos séculos o “valor” dos animais de companhia continua em pauta de
discussão, mas certamente mudou. Atualmente, não estão todos em altares sagrados sendo
velados como divindades, as vacas sagradas da Índia, não são animais não-humanos de
companhia. Certamente também não são coisas para serem incluídos nos bens da empresa
quando essa é vendida e repassada ao próximo proprietário. Contudo, são vendidos, possuem
donos e movimentam uma indústria tanto no Brasil como em todo o mundo. Para termos uma
idéia da relevância desse tópico na economia do País, basta verificar que o mercado de
petshops (pet business) cresceu 17%, desde 1995, faturando cerca de R$ 6.000.000.000,00
(seis bilhões/ano), conforme os dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos
para Animais de Estimação, associação que controla os dados do setor. Para efeito de
comparação, a indústria nacional de brinquedos deve faturar R$ 1,1 bilhão neste ano, informa
a Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos).
A população de animais de companhia é surpreendente, tem-se conhecimento que se
“comercializa”, em torno de 25 milhões de cães, 11 milhões de gatos, 4 milhões de pássaros,
sem contar os 500 mil aquários de água doce e de mar, espalhados pelo País. Esses animais,
na grande maioria das vezes, são tratados como animais humanos, perdendo seu referencial
do “ser”, assim como muitas vezes o próprio animal humano se desconhece na sua
humanidade.
Os Centros de Controle de Zoonoses (CCZs) que hoje cumprem o papel de controlar a
superpopulação de animais errantes nos grandes centros urbanos agem com métodos de
‘centros de concentração’, métodos desumanos (!?). Santana84 alerta que os métodos
utilizados pelos CCZs são, em sua maioria, “nazi-fascistas”, são métodos de

83
ZSÖGÖN, Silvia Jaquenod de. El derecho ambiental y sus principios rectores. Madrid: Dykinson, 1991. E
ZSÖGÖN, Silvia Jaquenod de (coord.). Temas de legislación, Gestión y Derecho Ambiental. Ilustre Colegio
de Abogados de Madrid. Programa Iberoamericano 1995-1997. Madrid: Dykinson, 1997. E ZSÖGÖN, Silvia
Jaquenod de. Derecho Ambiental. Madrid: Dykinson, 2004.
84
SANTANA 2008 SANTANA, Heron José. Abolicionismo Animal. 2006. Tese (Doutorado). FadUFPE –
Recife, p. 160 apud SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito dos Animais. Disponível em:
http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/pdf/direitodosanimais.pdf. Acesso em: 30/12/2008. E
SANTANA, Heron José. Política Pública e a Guarda dos Animais de Estimação. Disponível em:
http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/pdf/polticapblicaeaguardadosanimaisdeestimao.pdf. Acesso em:

205
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

confinamento e extermínio de cães e gatos, após dias de constrangimento em


irritantes e exacerbadas situações de cativeiro em cubículos fétidos e imundos, sem
comida e sem qualquer avaliação médico-sanitária, sofrendo maus tratos, violando a
lei natural – física, química, biológica e psíquica -, da qual o animal é portador.
Ainda, o Tribunal Internacional dos Direitos dos Animais, em Genebra85, condenou a
Espanha e a França em referendo sobre as touradas, assim como no ano de 2011 proibiu as
touradas em Barcelona. Em uma ação simbólica, esse Tribunal Internacional, ao fim de quatro
horas de audiência, um júri, presidido por Franz Weber, dono da fundação com o mesmo
nome e promotora dessa ação simbólica, condena (na altura Presidente da República e
primeiro-ministro) por terem permitido atentados contra os direitos dos animais,
nomeadamente dos touros de touradas.
As touradas consistem numa atividade secular tradicionalmente identificada com os
países da península ibérica, ou seja, Portugal e Espanha, contudo também é comum a
ocorrência de touradas na França. São atividades em que o touro é colocado em uma praça,
circular e fechada, praticamente uma arena, na qual disputará a vida com o toureiro. O que
não ressaltamos é que o animal não possui a mínima chance de vencer a disputa perante o
oponente. A batalha já inicia com a vitória garantida, e o público ali presente está para assistir
o domínio do homem sobre uma suposta fera em nome de uma pretensa tradição. Geralmente,
três a quatro argumentos são apresentados por seus defensores e, na maioria das vezes, estão
ancorados nessas linhas: uma herança cultural; um entretenimento do povo; uma sociedade
mais pacífica; um recurso para a economia. Uma sociedade do espetáculo, dimensões
pretensamente culturais, ou mesmo que tenham uma origem enraizada na cultura do país não
há justiça ou arrazoado moral que a justifique. Por outro lado, os argumentos de ordem
econômica, da estrutura capitalística trazem um peso de diversas ordens muito mais difíceis
de alterar, embora não impossíveis.
É afirmado que na tradição cultural no Brasil existe o fenômeno da farra do boi, como
herança da colonização açoriana. É verdadeiro. Há quem defenda como é o caso de Bahia,
que a farra do boi “insere-se entre as formas de expressão da cultura portuguesa no Brasil”. A
autora aponta, ainda, que isso se dá como uma suposta formação do patrimônio cultural

21/01/2009. E SANTANA, Luciano Rocha. Maus tratos e crueldade contra os animais nos centros de
controle de zoonoses. Disponível em:
http://www.abolicionismoanimal.org.br/artigos/pdf/maustratosecrueldadecontraanimaisnoscentrosdecontroledez
oonoses.pdf. Acesso em: 10/05/2008.
85
Uma organização não-governamental que atua simbólicamente aplicando penas simbólica aos Chefes de
Estado e Chefes de Governo como forma de se manifestar politicamente contra os atos cruéis cometidos contra
os animais não-humanos.. Ver http://matportugal.blogspot.com/2008/06/matp-no-tribunall-internacional-
dos.html

206
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

brasileiro, como referência de uma memória portuguesa (art. 216, da Constituição Federal de
1988)86.
Em que pese entender os argumentos da colisão de direitos fundamentais, quais sejam
o direito fundamental tutelado pelo artigo 216 da Constituição Federal de 88 e o direito
fundamental de proteção dos animais não-humanos, previsto no artigo 225 da Norma
Fundamental, vemos claramente o pendão da proporcionalidade sopesando para a proteção
dos animais não-humanos. Indubitavelmente, não há proteção a cultura que possa permitir
tratamento cruel e degradante a qualquer espécie de vida.
Exatamente, convém registrar que Buglione87 defende que “não há mais a tradição que
se apregoa. O que há é crime: violação do art. 32 da Lei nº 9.605, de 1998, que imputa pena
de detenção de três meses a um ano e multa para quem praticar ato de abuso, maus-tratos,
ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos". E mais,
a autora, traz dados do artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da
Unesco, em Bruxelas, de 1978, em cujo interior enfatiza a igualdade de todos à vida e à
existência, reafirmando que, nessa linha, a tradição, que venha a privilegiar morte, se dissipa.
Outra situação de grande gravidade que expõe os animais não-humanos à ganância dos
animais humanos é a corrida de cães, essencialmente a corrida de cães galgos (greyhouds)88.
A corrida profissional parte do pressuposto que o cão é um desportista profissional, assim
como seria o touro, na tourada e o boi da “farra” catarinense. A corrida de galgos é
extremamente difundida na Espanha (região da Catalunha) e em Portugal. O problema
envolvido nas competições consiste na forma de seleção, de tratamento e de posterior
“descarte” do “atleta” quando este não mais está em condições de competir. Anualmente,
mais de 20.000 cães são “produzidos” para fomentar as corridas, mas apenas 20% desse
número chegará a disputar alguma competição.89 O restante dos animais são considerados
excedentes e são descartados (a expressão utilizada pelos criadores é “destruídos” – como se
fossem coisas).
A manutenção dos galgos de corrida ocorre da forma mais cruenta possível, são
trancafiados em jaulas durante um período de aproximadas 20 a 22 horas por dia saindo

86
BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da Proporcionalidade nas Manifestações Culturais e na Proteção
da Fauna. Curitiba: Juruá, 2006.
87
BUGLIONE, Samantha. A farra da quaresma. Pensata Animal. N.º 20, fevereiro de 2009. Disponível em:
http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=246&Itemid=1 Acesso em
25/04/2009.
89
Os dados foram disponibilizados pela ONG espanhola SOS GALGOS - http://www.sosgalgos.com/
89
Os dados foram disponibilizados pela ONG espanhola SOS GALGOS - http://www.sosgalgos.com/

207
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

somente para treinamento. Quando adoecem ou perdem o rendimento, os animais são mortos,
vendidos para laboratórios, ou abandonados em condições inimagináveis.
Na jurisprudência brasileira a vedação de práticas cruéis contra os animais não-
humanos tem encontrado amparo significativo. No item anterior narra-se a trecho da decisão
do Supremo Tribunal Federal contra a prática da ‘farra do boi’ no Estado de Santa Catarina.
Em decisão cautelar da ADIN acerca de questão da ‘briga de galo’ no Estado do Rio de
Janeiro90, a Corte considerou tratar-se de tratamento cruel, na maioria das vezes levando as
aves à exaustão e à morte.
No Estado do Rio Grande do Sul, em julgado proferido em 28/06/2005, pela Vara
Federal Ambiental da Circunscrição Judiciária de Porto Alegre, foi proibida a caça esportiva
amadora no Estado. Na fundamentação da sentença, o juiz federal LEAL JÚNIOR assim
dispara:
Ora, se a caça amadorista não tem outra finalidade que não o prazer ou a recreação
de quem caca, não tem como esse Juízo deixar de reconhecer que se trata de prática
que submete animais à crueldade porque existe abismal desproporção entre seu
objetivo (lazer humano) e seu resultado (morte dos animais). Ser cruel significa
‘submeter o animal a um mal além do absolutamente necessário’. Caçar sem uma
finalidade socialmente relevante é submeter o animal a um mal além do
absolutamente necessário. (...) A caça amadorista, recreativa ou esportiva, é uma
prática sem finalidade socialmente relevante e por isso é prática cruel, que atenta
contra o art. 225-§ 1-VII da CF/8891.

É oportuno, não olvidar a lição de Häberle92, de que a dignidade possui uma referência
cultural relativa e variável, ajustando-se aos conceitos históricos de cada momento. A
observação se faz pertinente, haja vista Leal Filho ter entendido desproporcional e não cabível
a prática da caça amadorística no Estado do Rio Grande do Sul, contudo existe Lei Federal
que prevê a possibilidade da atividade. A questão que permanece posta é: o código de caça é
de 1967, a Constituição Federal é de 1988.
A utilização de animais em laboratório, segundo Regan93, apresenta três grandes
finalidades: “a educação, os testes de controlo a produtos e a experimentação, em particular,

90
BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno. ADIN 1856-6. Relator: Min. Carlos Velloso. Julgado:
03/09/98. Disponível em: www.stf.jus..br Acesso em: 13/12/2008.
91
LEAL FILHO, Cândido Alfredo Silva. Ação Civil Pública – Processo 2004.71.00.021481-2 – Sentença
0397/2005. In MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo
Wolfgang; FENSTENSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos
humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 307.
92
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:
contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição, tradução de Gilmar
Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.
93
REGAN, Tom, Gaiolas Vazias: os direitos dos animais e a vivissecção In BECKERT, Cristina &
VARANDAS, Maria José. Éticas e Políticas Ambientais. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

no âmbito da investigação médica”. Felipe94 argumenta que os humanos facilmente


consideram como um direito fundamental “não querer saber o custo que seus privilégios
possam representar para o bem-estar e até mesmo a vida de outros”. Em nome de uma
autonomia prática, os animais humanos optam por “fazer de conta” que desconhecem os
abusos que praticam contra a autonomia prática de outros seres vivos.
No que concerne à vivissecção salientar que, diversos autores, essencialmente aqueles
que atuam na área da saúde criticam a prática, por considerarem de pouca eficiência.
Brügger95 apontando a mesma crítica salienta que a doutrina especializada ressalta o “baixo
nível de confiabilidade dos dados provenientes de tais experimentos: segundo eles, o uso de
animais não-humanos está retardando o progresso da ciência”.
Consoante registra o posicionamento de Levai96 ao alertar para o fato de que a cada
ano centenas de produtos médicos que foram, previamente testados nos animais não-humanos
de laboratórios acabam por serem retirados das prateleiras, por ineficácia. O autor pontua:
Homens e animais reagem de forma diversa às substancias: a aspirina, que nos serve
como analgésico, é capaz de matar gatos; a beladona, inofensiva para coelhos e
cabras, torna-se fatal ao homem; a morfina que nos acalma, causa a excitação
doentia em cães e gatos; a salsa mata o papagaio e as amêndoas são tóxicas para os
cães, servindo ambas, porém a alimentação humana97.
Brügger recorda que animais não-humanos são utilizados em experimentos nas
indústrias de produtos de higiene e limpeza, alimentícia, armamentista, em estudos de
comportamento, alcoolismo, tabagismo, depressão, doenças degenerativas e assim por
diante98. A autora relata que em 2001, 55% dos projetos de pesquisa laboratoriais
desenvolvidos no Reino Unido foram classificados como de “sofrimento moderado”99.
Brügger questiona o que é um sofrimento moderado e exemplifica:

Lisboa, 2004. E REGAN, Tom. Jaulas Vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre:
Lugano, 2006.
94
FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da
UFSC, 2007, p. 309.
95
BRÜGGER, Paula. Vivissecção: fé cega, faca amolada. In MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS,
Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTENSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida
e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum,
2008, p. 147.
96
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004.
97
LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. Campos do Jordão: Editora Mantiqueira, 2004, p. 64.
98
Nesse sentido vale a advertência de LEVAI (2004, p. 64): “nossa triste fauna de laboratório – ratos (utilizados
geralmente para investigar o sistema imunológico), coelhos (submetidos a testes cutâneos e oculares, além de
outros atrozes procedimentos), gatos (que servem sobretudo às experiências cerebrais), cães (normalmente
destinados ao treinamento de cirurgias), rãs (usadas para testes de reação muscular e, principalmente, na
observação didática escolar), macacos (para análises comportamentais, dentre outras coisas), porcos (cuja pele
frequentemente serve de modelo para o estudo da cicatrização), cavalos (muito utilizados no campo da
sorologia), pombos e peixes (que se destinam, em regra, aos estudos toxicológicos), dentre outras espécies-,
transformam-se em cobaias nas mãos do pesquisador servindo como modelo experimental do homem”.
99
Na condição de “sofrimento moderado” no Reino Unido, em 2001, estiveram 1.414.242 animais em
laboratórios. Eram 1.655.766 camundongos, 489.613 ratos, 7124 hamster, 731 gatos, 23.356 coelhos, 5.460 cães,

209
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Forçar cães a engolirem agrotóxicos através de tubos diretamente ligados aos seus
estômagos? Transplantar corações e rins de porcos em babuínos capturados na
natureza? Imobilizar macacos, gatos e cães e retirar o topos de seus crânios? Ensinar
linguagem de sinais a chimpanzés e quando estes imploram para sair de suas
minúsculas jaulas simplesmente ignorarmos?
É inegável o sofrimento a que esses animais não-humanos são submetidos, mesmo que
por vezes procedimentos não invasivos sejam realizados, ou, quando invasivos, seja operada a
anestesia. O grau de sofrimento psicológico e estresse é imensurável.
Com fundamento em uma proibição de instrumentalização, Habermas100 rechaça
interferências eugênicas que visem ao aperfeiçoamento porque, nestes casos, as ações
humanas subtraem do afetado a autoria de sua própria vida (situação que incluir também o
clone, como pessoa programada), admitindo-as somente para evitar males muito extremos.
Por derradeiro, esclarece que sua proposta de distinção entre “inviolabilidade da dignidade
humana”101 e “indisponibilidade da vida humana”102 pode ser interpretada como uma gradual
proteção da vida humana, no âmbito da legislação infraconstitucional103, na qual Habermas
sustenta a necessidade de obrigações morais entre os membros de uma comunidade, uns com
os outros, por consideração, conforme a norma, especificamente a esses que não pertencem a
esse universo, os animais não-humanos.
Questionamos, a partir da proposta habermasiana, que se adota praticamente na
íntegra, é se efetivamente os animais não-humanos estão completamente apartados dessa
comunidade moral e se é o caso de se levar em conta às obrigações para com eles “por
consideração”. Defendemos a aplicação de uma obrigação muito mais forte, como a
existência de um dever fundamental e não apenas uma consideração por serem seres que
sentem.
Cabe anotar que a dignidade humana, para Habermas104, entendida em sentido moral
estrito e jurídico, encontra-se ligada a uma simetria de relações. Para o autor,

dentre outros. Destes, 71.261 já morreram em testes de toxicidade. Os dados foram retirados de JENSEN,
Derrik. Vivisection: a “moderate” proposol. The Ecologist, p. 44. Fev. 2003, também disponível em
BRÜGGER, Paula. Vivessecção: fé cega, faca amolada. In MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS,
Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTENSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida
e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum,
2008, p. 161.
100
HABERMAS, Jürgen. El Futuro de la Naturaleza Humana. Hacia una Eugenesia Liberal? Tradução de
R. S. Carbó. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.
101
Art. 1.1 da Lei Fundamental de Bonn.
102
Art. 2.2 da Lei Fundamental de Bonn.
103
KLOEPFER, Michael. Vida e Dignidade da Pessoa Humana. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET,
Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.184) exprime que igualmente sustentando uma gradual proteção
jurídica da vida humana pré-natal, “que se torna cada vez mais forte”.
104
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47.

210
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ela [a dignidade] não é uma propriedade que se pode possuir por natureza, como a
inteligência ou os olhos azuis. Ela marca, antes, aquela intangibilidade que só pode
ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no
relacionamento igualitário entre as pessoas. Emprego o termo intangibilidade não
com o mesmo sentido de indisponibilidade, pois uma resposta pós-metafísica à
questão de como devemos lidar com a vida humana pré-pessoal não pode se obtida
ao preço de uma definição reducionista do homem e da moral.
Do ponto de vista da constituição de uma comunidade democrática, urge ressaltar a
importância de sentidos atribuídos e vividos na relação vertical e horizontal. A primeira,
vertical, entre o cidadão e o Estado e a rede horizontal das relações entre os cidadãos, para
trabalhar tanto a intangibilidade, quanto a indisponibilidade da dignidade da vida no sentido
da proteção da vida. Segundo essa leitura, nesse direito fundamental está garantida a
consciência de autonomia, nomeadamente entendida pela autocompreensão moral que se
deve esperar de todo membro de uma comunidade de direito, estruturada pela igualdade e
pela liberdade, quando ele tem as mesmas chances de fazer uso de direitos subjetivos
igualmente distribuídos.
Apresentamos uma perspectiva de ampliar a visão da dignidade a partir do alcance da
dignidade pré-pessoal. Habermas105 alicerça sua tese afirmando que os seres pré-pessoais
também deverão ser protegidos pela dignidade, não pela dignidade da pessoa humana, mas
por uma dignidade da vida, incluindo na mesma as suas inerentes obrigações. É, ainda,
Habermas, quem defende “o termo “intangibilidade” não com o sentido de
“indisponibilidade”, pois uma resposta pós-metafísica (grifo do autor) à questão de como
devemos lidar com a vida humana pré-pessoal não pode ser obtida ao preço de uma
definição reducionista (grifo do autor) do homem e da moral.
É, ainda, o autor, quem define que a própria lógia dos procedimentos democráticos
internaliza a formação da vontade política que pressupõe a ideia de liberdades iguais para
cada um, assim como a solidariedade para aqueles que não as possui. Geram-se, assim,
figuras reflexivas no processo de autolegislação106, criadas pela possibilidade de
argumentação recíproca de parceiros com interesses comuns unidos sob determinadas
circunstâncias específicas circunscritas e solidárias. Desse modo,
a solidariedade de (grifo nosso)Cidadãos do Estado, a qual se produz, atualiza-se e
se dá mediante um processo democrático, faz com que a viabilização igualitária de
éticas de iguais liberdades assuma forma procedimental (…) Uma democracia
enraizada na sociedade civil consegue criar uma caixa de ressonância para o
protesto, modulado em muitas vozes, daqueles que são tratados de modo desigual,
dos subprivilegiados, desprezados107.

105
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47.
106
HABERMAS, Jürgen. A crise do Estado do bem-estar e o esgotamento das energias utópicas. Diagnóstico do
Tempo: seis ensaios. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. p. 9-36.
107
Habermas, 2005, p306.

211
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Sob o olhar moralizante e sem indulgência do participante do Discurso108, essa


totalidade (questões respondidas desde sempre sobre o bem viver) perdeu sua validez nativa, a
força normativa do factual ficou tolhida – as instituições que nos são familiares podem se
tornar outros tantos casos de justiça problematizada. Diante desse olhar, o legado das normas
tradicionais desintegrou-se, dividindo-se no que pode ser justificado a partir de princípios e
naquilo que só conserva uma validez factual. A fusão no mundo da vida entre validade e
validez social dissolveu-se. Ao mesmo tempo, a praxis quotidiana dissociou-se em normas e
valores, ou seja, no componente da esfera prática que se pode submeter às exigências de uma
rigorosa justificação moral e em um outro componente, não passível de moralização e
abrangendo as orientações axiológicas integradas em modos de vida individual ou coletivos.
Nessa perspectiva, pelo olhar reflexivo de um participante do Discurso, o mundo
social decompõe-se em convenções carentes de justificação; o acervo factual de normas
divide-se fatos sociais, por um lado, e normas, por outro lado – estas perderam o respaldo das
evidências do mundo da vida e precisam ser justificadas à luz de princípios. É assim que a
orientação em função de princípios de justiça e, em última instância, em função do processo
do Discurso em torno da fundamentação de normas resulta da inevitável moralização de um
mundo social que se tornou questionável. Tais são as representações de justiça, que
substituem a conformidade a papéis e normas (da obra consciência moral e agir
comunicativo). E essa dimensão de moral, como contextualizada, abre-se à eticidade.
As éticas da compaixão, entre outras éticas, dirigem-se, de modo çonextualizado,
simultaneamente à integridade da pessoa individual e ao tecido de relações de
reconhecimento recíproco e, assim, as éticas, em seu processo de socialização, voltam-se
tanto a fazer valer a intangibilidade dos indivíduos, exigindo igual respeito pela dignidade de
cada um, quanto a proteção das relações intersubjetivas de reconhecimento recíproco nas
quais os indivíduos se mantém como membros de uma comunidade109.
A esses dois critérios complementares correspondem princípios de justiça e
solidariedade110. Tal como o critério anterior, a justiça vem exigir igual respeito e igualdade
de direitos para cada um, referindo-se a liberdade subjetiva do indivíduo; enquanto a
solidariedade reclama empatia e preocupação com o bem-estar do próximo e diz respeito o
bem-estar de indivíduos implicados e irmanados em uma forma de vida intersubjetivamente
compartilhada.

108
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo
Universitário, 1989.
109
HABERMAS, 1991, p. 108.
110
HABERMAS, Jürgen. Escritos sobre Moralidad y Eticidad. Barcelona: Paidós, 1991.

212
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Uma ética ecológica não estreita é defendida111, pois as consequências à ética do


discurso, à dignidade podem ser graves, uma vez que o caráter antropocêntrico assumido
parece cegar as teorias de tipo kantiano, em relação a responsabilidade moral (no sentido de
uma ética universalista, mesmo que vinculada a argumentações materiais, contextualizadas)
do homem por seu entorno humano.
Questionamos que os animais, por suposto, não se impõem pelo conhecimento e pela
entrada em comunidades como participantes de argumentação e, muito menos, em sua
relação de reciprocidade. Com base em Patzig, Habermas112 defende a exigência de uma
determinada responsabilidade não só no que diz respeito aos animais, mas frente aos próprios
animais, assumindo que os animais, de alguma forma, entram em interação subjetiva com os
animais não humanos, mesmo que assimétrica. Patzig assegura (com o quê Habermas acorda)
que os animais não tem direitos frente aos homens, mas os homens tem deveres frente aos
animais, abrindo espaços para uma gradação de deveres, incompatível com a ideia binária de
validez dos deveres escritos.
É com essa defesa que Habermas apresenta a tese de que “os deveres com os animais
são tanto maiores, quanto maior for a sensibilidade dos animais não humanos e humanos para
a dor”. Com isso modifica o conceito de dever: trata-se de consequências à ética ecológica,
da mesma forma, ou na extensão das questões éticas que tem referentes ao tipo de vida que
se leva, colocando-nos em outro modo de ver as coisas.

9 Fazendo acontecer

Tim Ingold113, antropólogo britânico defende um paradigma ecológico que privilegia o


modo de ocupação da paisagem da terra, seja a mesma produzida por animais humanos e não
humanos, sob os quais não estabelece diferenciações de porte, pois em todos há dimensões
históricas e culturais. Sem essas dimensões na composição das paisagens, todos estariam
perdidos. Assim, Ingold busca traços de continuidade, inclusive entre as espécies, atentando
para um primado da prática na construção do conhecimento e da responsabilidade e respeito
entre espécies, prerrogativa de todos os seres e objetos que habitam o mundo. São trilhas,

111
HABERMAS, Jürgen. Aclaraciones a la ética del discurso. Madrid, Editorial Trotta, 2000.
112
PATZIG, Günther. Ökologische Ethik – innerhalb der Grenzen blober Vernunf, en H.J. Helster (ed.),
Umweltschutz – Herausforderung unserver Generation, Studien-zentrum Weikersheim, 1984, Apud.
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
113
INGOLD, Tim. Lines. A brief history. New York: Routledge, 2007.

213
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

traços, tramas, urdiduras incorporados à paisagem como esforço de uma continuidade. Dai a
responsabilidade; dai a necessidade do respeito e da construção de direitos.
À luz da temática ambiental, urge realizar a transferência da proteção ao ambiente do
terreno dos direitos fundamentais para o âmbito dos deveres, como já foi referido. Tal
situação reflete, como afirma Canotilho114, uma necessidade de se ultrapassar a euforia dos
direitos fundamentais sob á ótica do individualismo e de se alicerçar o conceito de uma
comunidade responsável em face dos problemas ambientais coletivos.
Seguindo a mesma seara, Bosselmann assevera a relevância da influência recíproca
entre direitos e deveres no que concerne uma realidade ambiental. O referido autor entende
que o ser humano, ao mesmo tempo em que necessita explorar os recursos naturais, é também
completamente dependente deles, o que torna imprescindível para uma boa vida, para uma
vida digna, uma “auto-limitacao do comportamento humano”115 em termos práticos e
normativos.
Três princípios éticos destacam-se para a proteção do ambiente pelo ordenamento
jurídico-constitucional, sendo um dos mais relevantes o princípio do respeito humano pelo
ambiente não-humano, também conhecido como princípio de justiça interespécies116.
A teoria jurídica dos deveres fundamentais, na senda da proteção do ambiente, direito
fundamental de terceira dimensão, em cujo âmbito se insere a proteção da fauna como um
direito fundamental de terceira dimensão. Esse dever instiga o titular a sair da sua zona de
conforto fixada pela primeira e pela segunda dimensão dos direitos fundamentais (porque
individual e/ou coletiva) e passa a mudar o comportamento, forçando a preocupação com
aquilo que extrapola o homem-indivíduo ou mesmo o grupo-coletivo, consagrando os deveres
constitucionais ambientais dos seres humanos para com os animais não-humanos e a vida em
geral. Essa dimensão normativa se faz presente, porque aqui está designada uma
responsabilidade comunitária dos indivíduos, para além da responsabilidade de cada um. A
dimensão normativa que aqui se defende se justifica pela proteção da dignidade da vida e,
portanto por uma prevalência do interesse público sobre o particular o que, à luz da teoria dos
deveres fundamentais, possibilita tanto a limitação de direitos subjetivos como a redefinição

114
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O direito ao ambiente como direito subjetivo. In CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
115
BOSSELMANN, Klaus. Environmental tights and duties: the concept of ecological human rights. Anais do
10º Congresso Internacional de Direito Ambiental, em São Paulo, 5-8 de junho de 2006.
116
BOSSELMANN, Klaus. Human rights and the environment: the search for common ground. In Revista de
Direito Ambiental, n. 23, jul-set. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

214
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do conteúdo desses direitos, base para a garantia da sustentabilidade da própria biodiversidade


nesse campo.

215
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O DESAMPARO JURÍDICO DO CERRADO – UMA PESQUISA EMPÍRICA


THE CERRADO'S LEGAL ABANDONMENT – AN EMPIRICAL RESEARCH

Lucimarta Guedes Vieira de Barros


Bacharel em Direito pela Universidade Metodista Bennett – RJ.

RESUMO

Historicamente, o Cerrado brasileiro foi tratado como vegetação desprovida de


qualquer importância biológica ou econômica, em face de sua aparência escassa e da
impropriedade do seu solo para o cultivo de espécies economicamente viáveis. Hoje a
situação é diametralmente oposta. As modernas técnicas agronômicas permitiram que grandes
áreas do Cerrado fossem integradas à economia agropecuária e, praticamente ao mesmo
tempo, dilatou-se o conhecimento sobre sua complexidade, riqueza e importância para o
mundo, constituindo-se a vegetação savânica mais variada do planeta. Por isso,
hodiernamente, há uma tensão crescente entre grandes agricultores e pecuaristas, de um lado,
e ambientalistas, de outro. Apesar de este “cabo-de-guerra” ter influenciado a elaboração do
Novo Código Florestal Brasileiro, a simples leitura dos dispositivos que tratam do Cerrado
parece indicar que a nova legislação optou pela defesa do agronegócio, o que de certa forma
representa um retrocesso em relação ao código anterior. Esta atualização da legislação
florestal brasileira é ao menos peculiar, pois a Constituição da República de 1988 (artigo 225)
definiu o meio ambiente como um bem comum, sendo, portanto, de interesse de toda a
sociedade brasileira, o que presumiria a sua integral proteção. Diante deste contexto, foi
percebida a necessidade de se levantar a literatura relativa ao tema, bem como o emprego
conjunto de pesquisa de campo e entrevistas abertas com os “geraizeiros” (expressão utilizada
para identificar as populações nativas do Cerrado do norte de Minas Gerais), visando levantar
os principais aspectos relacionados aos efeitos da nova legislação nas práticas destes
habitantes, especialmente no que tange aos impactos socioeconômicos verificados neste
bioma e nas atividades econômicas de subsistência desta população. Esta investigação se
justifica, justamente por analisar a aplicação das garantias constitucionais relacionadas à
proteção ambiental e por empregar métodos das ciências sociais, pouco comum em uma
pesquisa jurídica. Tal exercício permitirá refletir sobre como ocorre a naturalização da
legislação ambiental entre os geraizeiros e sua adequação ao modelo de Estado Democrático
de Direito brasileiro, especialmente no que se refere à proteção da dignidade humana,
considerado como princípio constitucional que assegura a possibilidade de concretização do
direito a um meio ambiente sadio, equilibrado e economicamente sustentável.

PALAVRAS-CHAVE: Cerrado; proteção jurídica; dignidade humana.

ABSTRACT

The Brazilian Cerrado, historically was treated as vegetation devoid of any biological
or economic importance due to its scarce appearance and improper soil for economically
216
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

viable plantation. Nowadays the situation is diametrically the opposite. The modern
agronomic techniques have integrated large Cerrado‟s areas into the agricultural economy
and, almost simultaneously, the knowledge about its complexity has increased, as the
knowledge of its richness and importance to the world because it is the most varied savanna
vegetation of the planet. So, there is a growing tension between large farmers and ranchers in
one side and environmentalists in the other. Despite the influence of this "tug of war" in the
development of the New Brazilian Forest Code, a simple reading of the legal provisions
relative to the Cerrado seems to indicate that the new legislation opted for defend the
agribusiness, which somehow represents a regression in relation to the previous Code. This
update of the Brazilian forest legislation is at least peculiar, since the Constitution of 1988
(Article 225) defined the environment as a common good and, therefore, being of interest to
all Brazilian society, which would assume its full protection. In this context, it was considered
necessary to search for the related literature , as well as the combined use of field research and
interviews with "geraizeiros" (an expression used to define Cerrado's native populations
located in north of Minas Gerais), aiming to survey the main aspects concerning the new
legislation's effects on the practices of these people, especially regarding the socioeconomic
impacts seen in economic activities on this biome and in population's livelihood. This
research had to be done due to the necessity of the constitutional guarantees' application
analisis related to environmental protection and the employment of social science methods,
unusual in a legal research. This exercise will allow a reflexion about how the environmental
legislation's naturalization occurs among the geraizeiros, and its suitability to the Brazilian
democratic State model, mainly referring to the human dignity's protection, considered as
constitutional principle that assures the possibility to make real the right to a healthy, stable
and economically sustainable environment.

KEYWORDS: Cerrado; legal protection; human dignity.

INTRODUÇÃO

Este artigo integra uma pesquisa mais ampla, ainda em desenvolvimento, iniciada a
partir da elaboração do trabalho de conclusão do curso de graduação em Direito de uma das
autoras, cujo tema resultou de sua experiência pessoal com o ambiente savânico do cerrado do
norte de Minas Gerais, local onde nasceu e viveu até a adolescência. Mesmo depois da
mudança para o Rio de Janeiro, os contatos com a paisagem e os problemas daquela
vegetação permaneceram constantes, especialmente durante as visitas aos familiares e amigos.
Ao longo dos anos e dessas viagens, foram percebidas as alterações sofridas pelo cerrado.
Áreas antes virgens, gradativamente foram desmatadas e substituídas por pastagens e
plantações de espécies diferentes das originais, como o pinus ou o eucalipto. Dentre as cenas
mais marcantes dessa experiência, ficaram registradas as grandes e frequentes queimadas que
chamavam a atenção pelo fato de poderem ser vistas a grandes distâncias.
De maneira geral, a expressão “Cerrado” é empregada para designar o conjunto de
vegetação que ocupa a região central do país (Ribeiro et al, 1981), a expressão “cerrado” é
geralmente utilizada para designar a vegetação savânica, formada predominantemente por
árvores baixas, de até seis metros de altura, com troncos retorcidos e que ocupam área de solo
217
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pobre em nutrientes, presentes em uma região climática dividida em duas estações bem
definidas: seca e chuvosa.
De acordo com BATALHA (2011).

[...] podemos usar a palavra “cerrado” em três sentidos: 1) Cerrado, com a


inicial maiúscula, quando estivermos nos referindo ao domínio
fitogeográfico do Cerrado, incluindo não só o cerrado sensu lato, mas
também os outros tipos vegetacionais que ali se encontram; 2) cerrado sensu
lato ou simplesmente cerrado, quando estivermos nos referindo ao cerrado
enquanto tipo vegetacional, isto é, do campo limpo ao cerradão – aqui há um
complexo de biomas, bioma dos campos tropicais, das savanas e das
florestas estacionais; e 3) cerrado sensu stricto, quando estivermos nos
referindo a uma das fisionomias savânicas do cerrado sensu lato.

Para esta pesquisa, optou-se pelo emprego da definição que leva em conta as
diversidades observadas na abrangência geográfica do Cerrado e formulada por COUTINHO
(2006), segundo o qual o Cerrado constitui um “complexo de biomas distribuídos em
mosaico”.
Conforme Hogan (2001, p. 1), em 2000, o Cerrado (cuja área de impacto é definida
aqui como os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e o Distrito Federal)
possuía uma área de 2.123.189 Km2 e população de 10.959.123. Para este autor:

Enquanto que a preocupação internacional com sua biodiversidade é mais


recente, o segundo maior ecossistema do Brasil é um recurso nacional
valioso. A região adquiriu rápido desenvolvimento nas últimas três décadas.
Neste período, a região mudou de (1) uma área esparsamente povoada de
agricultura de subsistência para (2) um maior destino de migração para
migrantes de outras regiões a procura de terras para (3) monocultura
dinâmica de exportação. Isto tem sido um processo rápido, coincidindo com
a modernização da agricultura brasileira; aumento da mecanização e
incentivos do governo têm contribuído para a transformação de vastas
extensões de terra para a produção de grãos (especialmente soja, mas
também algodão, milho e arroz) e criação de gado. Grandes expectativas têm
sido depositadas num mercado mundial em expansão de soja e na
comparativa vantagem brasileira neste campo. (HOGAN, 2001, idem).

O Cerrado Brasileiro distribui-se por mais de dois milhões de quilômetros quadrados,


alcançando os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Inclui a
parte sul de Mato Grosso, o oeste da Bahia, oeste e norte de Minas Gerais, sul do Maranhão,
grande parte do Piauí e prolonga-se, em forma de corredor, até Rondônia e, de forma disjunta,
em certas áreas do Nordeste brasileiro e em parte de São Paulo. Recebe denominações
diferentes, de acordo com a região: gerais, em Minas e Bahia; tabuleiro, na Bahia e outras
áreas do Nordeste, conforme Barbosa e Schmidt (2010. p. 160) e Braga (2011), entre outros.

218
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Segundo a organização World Wildlife Fund (WWF), é área de reprodução de 759


espécies de aves e abriga 180 de répteis e 195 de mamíferos. Por situar-se em uma posição
central no território brasileiro, oferecendo uma espécie de ponte entre a Amazônia, o Pantanal,
a Caatinga e a Mata Atlântica, o Cerrado compartilha animais e plantas com todos esses
biomas, sem deixar de abrigar exemplares únicos da biodiversidade brasileira. Somente no
Distrito Federal encontram-se 90 espécies de cupins, mil de borboletas e 500 de abelhas e
vespas. Já segundo Bensusan (2008, p. 274), 4.400 espécies de plantas e 117 de vertebrados
seriam endêmicas, englobando, respectivamente, 1,5% e 0,4% das espécies conhecidas no
mundo.
Sob o aspecto legal, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 225, destaca
que o meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui-se um direito universal, assim
como seu uso comum pelo povo, sendo essencial à sadia qualidade de vida, daí porque o
Poder Público e a coletividade têm o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.1 De acordo com esta norma, merecem tal proteção biomas como a floresta
amazônica brasileira, a mata atlântica, o pantanal mato-grossense e a zona costeira, pois são
considerados “patrimônio nacional”. É curioso perceber que o Cerrado não está incluído neste
rol de biomas que constituem o “patrimônio nacional”, protegido constitucionalmente, salvo
por sua inserção no conceito mais amplo de meio ambiente2.

1 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das
espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar
as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da
Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos
atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental,
a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI – promover a
educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que
explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução
técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica
brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-grossense e a Zona Costeira são patrimônio
nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou
arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º -
As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não
poderão ser instaladas. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm,
acesso em 20 de outubro de 2012.
2
Este fato levou Ribeiro (2005) a considerar que a não inserção do bioma Cerrado como patrimônio nacional
pela Constituição de 1988, evidenciou a visão desse bioma de forma depreciativa no contexto nacional, o que
se reflete na maneira como é encarada a cultura e a sociedade do sertão, cujo vínculo com o bioma é tão
significativo. Uma proposta de Emenda Constitucional que incluía o Cerrado e Caatinga como patrimônio
219
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

No nível infraconstitucional, até recentemente, vigia a Lei 4.771, de 15 de setembro


de 1965 (alterada pela Medida Provisória nº 2.166-65, de 2001 e demais regulamentações),
que instituiu o Código Florestal. Este código inovou com o termo Reserva Legal: um
mecanismo criado pelo Governo para garantir uma área mínima obrigatória de preservação da
mata nativa em propriedades rurais. A área de Reserva Legal tinha que ser averbada, ficando
registrada e identificável a qualquer tempo, possibilitando controle mais efetivo do
desmatamento.
De acordo com esta legislação, a proteção ambiental e a respectiva autorização para a
sua supressão acontece da seguinte forma:

Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as


situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não
sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica,
são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva
legal, no mínimo:
I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta
localizada na Amazônia Legal;
II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado
localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na
propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área,
desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos
termos do § 7o deste artigo;
III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou
outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e
IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais
localizada em qualquer região do País.
§ 1o O percentual de reserva legal na propriedade situada em área de floresta
e cerrado será definido considerando separadamente os índices contidos nos
incisos I e II deste artigo.

Percebe-se também por esta lei que o Cerrado que se encontra situado fora da área
localizada na Amazônia Legal3 não recebe a mesma proteção legal que aquele compreendido
em tal região.
Em 25 de maio de 2012 foi editada a Lei no 12.651, conhecida como “Novo Código
Florestal”, com a redação final dada pela Medida Provisória no 571, sancionada em 17 de

nacional teve sua última tramitação em 12/09/2011 na Comissão de Constituição e de Justiça e de Cidadania,
tendo sido elaborado um parecer da Relatoria daquela comissão pela admissibilidade da proposta. Consulta em
16/01/2011: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=483817
3 A Amazônia Legal é uma área que corresponde a 59% do território brasileiro e engloba a totalidade de oito
estados (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e parte do Estado do
Maranhão (a oeste do meridiano de 44ºW), perfazendo 5,0 milhões de km². Nela residem 56% da população
indígena brasileira. O conceito de Amazônia Legal foi instituído em 1953 e seus limites territoriais decorrem
da necessidade de planejar o desenvolvimento econômico da região e, por isso, não se resumem ao ecossistema
de selva úmida, que ocupa 49% do território nacional e se estende também pelo território de oito países
vizinhos. Os limites da Amazônia Legal foram alterados várias vezes em consequência de mudanças na divisão
política do país. O Plano Amazônia Sustentável (PAS), lançado em maio deste ano pelo governo federal,
considera integralmente o Estado do Maranhão como parte da Amazônia Brasileira.
http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2154:catid=28&Itemid=23
220
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

outubro do mesmo ano. Esta lei foi duramente criticada, antes mesmo de sua edição,
afirmando-se que houve uma depreciação da proteção ambiental em prol da produção
agropecuária. Dentre as críticas levantadas, cita-se a redefinição de áreas de preservação
permanente em leitos de cursos d‟água, que passaram a ser consideradas a partir do nível
normal destes cursos, quando antes eram consideradas a partir do nível das cheias 4.
Outra crítica se refere à recomposição obrigatória de mata nativa nas áreas
denominadas de reservas legais, já que o artigo 66 da lei afirma que pode ser feita com até
50% de espécies exóticas ou frutíferas, ou seja, metade da recomposição não precisa ser
composta por espécies regionais, podendo, inclusive, haver exploração econômica.
Em relação à reserva legal e de acordo com o artigo 12 da lei citada, foram mantidos os
mesmos 80% para floresta amazônica na Amazônia Legal (redutíveis para 50% de área de
recomposição em determinadas circunstâncias), 35% de Cerrado que ocorra na Amazônia
Legal, e redução para meros 20% nas demais áreas de matas. Ou seja, a área de preservação
obrigatória em propriedades rurais na região de Cerrado fora da Amazônia Legal foi reduzida
de 35% para 20%, sendo que as propriedades rurais de até 4 hectares, que tinham mais área
desmatada do que a legislação permitia em 22 de julho de 1988, estão desobrigadas de
recompô-la5. Por fim, metade da área a ser recomposta não tem que ser com mata nativa,
podendo ter intercaladas, inclusive, espécies exóticas. O que acontece, por exemplo, e com
muita frequência, com o emprego de eucaliptos nas regiões afetadas.
Apesar do despretensioso tratamento legal do Cerrado, este bioma ocupa o
segundo lugar em extensão e variedade de espécies vegetais, sendo superado apenas pela
Amazônia, já que ele se entende por 21% (vinte e um por cento) do território nacional, como
afirmou Borlaug (2002). Todavia, apesar de sua considerável extensão territorial, dados
recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE confirmam o que
pessoalmente vinha constatando em minhas viagens: a devastação deste bioma. Apenas 51%
da área total do Cerrado brasileiro mantêm-se protegida (IBGE, 2012). Considerando-se que
este percentual representa, hoje, aproximadamente, 205 (duzentos e cinco) milhões de
hectares e que anualmente há uma perda de cerca de um milhão de hectares, seu futuro está
seriamente ameaçado. De acordo com Machado, et al. (2004), entre o período de 1985 a 2002,

4 A redação do Art. 2° da lei anterior afirmava que “Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito
desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas: a) ao longo dos rios ou de qualquer curso
d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será…” Já a redação do Art. 4º do
novo Código afirma que “Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os
efeitos desta Lei: I – as faixas marginais de qualquer curso d‟água natural, desde a borda da calha do leito
regular, em largura mínima de…” (grifei)
5 Exemplo desta medida ocorreu nos casos de imóveis que tinham até quatro módulos fiscais em 22 de julho de
2008, nos quais a área de recomposição obrigatória ficou sendo apenas a que existia de mata nativa naquela
data, perdoando-se, assim, os pequenos proprietários que desmataram mais do que a lei permitia até a época
citada (Art. 67 da lei).
221
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

a taxa média de desmatamento do Cerrado foi de aproximadamente 1,1% ao ano e dentro dessa
perspectiva, seria de se esperar que o Cerrado desaparecesse no ano de 2030.
Além disso, estatísticas formuladas por órgãos de proteção ambiental afirmam que a
proteção do Cerrado representa também o amparo aos demais biomas brasileiros
(FUNDAÇÃO PRÓ-NATUREZA, 1999; GREENPEACE, 2012 e WWF - BRASIL, 2012).
Não obstante sua importância para a biodiversidade, diversos fatores vêm contribuindo para a
ameaça de extinção do Cerrado brasileiro, sendo o mais peculiar o confronto entre duas
políticas públicas antagônicas: de um lado, o Ministério do Meio Ambiente objetiva aumentar
o percentual de áreas protegidas (hoje representam apenas 2,2% da área original do Cerrado)
e, do outro, o Ministério da Agricultura estipula a utilização de aproximadamente 100 (cem)
milhões de hectares adicionais para a expansão da agricultura (Machado et al, 2004).
De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente (BRASIL, 2011), no período de
2002 a 2009, houve uma redução na taxa anual de desmatamento do cerrado. De 2002 a 2008,
85.074,87 km2 de cobertura vegetal do cerrado foi suprimida, representando uma taxa média de
0,69% ao ano. Já entre 2008 e 2009, foi reduzida para 7.637 km2, o que equivaleu a 0,37% ao ano.
Em números absolutos, o Cerrado teve sua cobertura vegetal original e secundária reduzida de
1.136.521 km2 para 1.043.809 km2.
Ocorre que o Cerrado, depois da Mata Atlântica, é o bioma brasileiro que mais sofreu
devastação pela ocupação humana.6 Com a crescente pressão para a abertura de novas áreas,
visando incrementar a produção de carne e grãos para exportação, especialmente nas três
últimas décadas, tem havido um progressivo esgotamento dos recursos naturais da região
(conforme DIAS, 1994).7 Além disso, o bioma vem sendo cenário de uma exploração
extremamente predatória de sua madeira para produção de carvão (conforme dados do
Ministério do Meio Ambiente, em BRASIL, 2012), assim como o cultivo do eucalipto e do
pinus em áreas devastadas para este fim, em razão do alto valor econômico desse extrativismo
para um específico ramo da atividade financeira, conforme as fotografias abaixo.
Apesar de se reconhecer sua importância biológica, de todos os hotspots mundiais, o
Cerrado é o que possui a menor porcentagem de áreas sobre proteção integral. Isto porque
este bioma apresenta 8,21% de seu território legalmente protegido por unidades de
conservação; desse total, 2,85% são unidades de conservação de proteção integral e 5,36% de
unidades de conservação de uso sustentável, conforme Simões (2008).

6 Segundo Santos et al (2006), a partir de 1970, com a intervenção do governo federal no processo de ocupação
do Cerrado, através da política denominada de Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND),
iniciou-se uma grande ocupação humana, através da expansão da fronteira agrícola, “que inseriu o Cerrado
dentro do cenário nacional de produção agropecuária com alto grau de mecanização”.
7 De acordo com Dias (1994), até 1985 o manejo de áreas nativas para a criação de gado foi a atividade
econômica que ocupou a maior parte das paisagens naturais do Cerrado. Já recentemente, e de acordo com os
dados do IBGE, a área ocupada pela cultura da soja aumentou sensivelmente no país e entre os anos de 1995 a
2002 praticamente dobrou de tamanho (disponível em http://www.ibge.gov.br, acesso em dezembro de 2012.
222
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A proteção do Cerrado também está ligada a fatores econômicos e sociais.


Recentemente, diversas famílias e comunidades associaram-se em cooperativas especializadas
em coleta e venda de produtos do Cerrado, in natura ou beneficiados, de maneira sustentável.
Como exemplo, pode ser citada a Central do Cerrado, presente na Rio+20 e formada por 35
organizações de sete estados, que favorece cerca de dez mil famílias (conforme dados do
Ministério do Desenvolvimento Agrário, em BRASIL, 2012).
E mais, dentre as diversas espécies vegetais do Cerrado brasileiro, a mais atingida é o
pequizeiro (Caryocar brasiliense), cujo fruto, o pequi, é o principal produto do agro
extrativismo, conforme Ribeiro (1979). A importância do pequi reside no fato de que a fruta,
além de ser muito utilizada na culinária de toda a região situada no Cerrado, vem despertando
o interesse de muitos estudiosos e cientistas, que através de pesquisas realizadas em grande
número nas duas últimas décadas, vêm comprovando a importância do seu emprego também
na medicina, especialmente, nos casos de infecções provenientes de fungos (RODRIGUES e
CARVALHO, 2001).
Além disso, a coleta e o comércio informal do pequi, assim como a produção de
produtos dele derivados, constitui a principal atividade econômica e de subsistência de
habitantes do norte de Minas Gerais, conhecidos como geraizeiros (conforme figura 3, do
Apêndice).8 E mais, segundo dados do IBGE (BRASIL, 2012), a extração do pequi cresceu
muito ao longo dos anos em alguns Estados Brasileiros, destacadamente, o de Minas Gerais.
Também a quantidade acumulada de pequi extraída nas três últimas décadas (1975-
2006), foi expressiva principalmente nos Estados do Ceará e de Minas Gerais, que lideraram o
ranking de produção da extração do pequi em mais de 60% (sessenta por cento) do total das
frutas utilizadas (conforme dados acima mencionados).
Para os geraizeiros, a extração e o comércio do pequi e seus derivados constituem
atividades que chegam a representar mais da metade da sua renda anual.9 Em um dia de
trabalho, uma família pode coletar até 60 kg de caroços. Quando processados para extração do
óleo da polpa, esta quantidade de frutas rende cerca de seis litros, que são extremamente
empregados na culinária local.10 O quilo da polpa do pequi é vendido nesta região, em média,

8 A expressão “geraizeiros” é empregada para designar a população que ocupa a região do norte de Minas
Gerais, pois as regiões desta localidade são conhecidas como “Gerais”. Os geraizeiros, assim como as demais
populações tradicionais, foram reconhecidos pelo Decreto nº 6.040, assinado em 7 de fevereiro de 2007, que
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu inciso I, do
artigo 3º, afirma que os povos e comunidades tradicionais são os “grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.”
9 Dentre outros empregos, o pequi também é utilizado para alimentar víveres como patos, galinhas e outras aves
criadas pelas famílias dos gerazeiros, especialmente quando a safra do milho é prejudicada pela seca.
Informação esta obtida em conversa com um desses nativos, por ocasião de uma de minhas visitas à região.
10 O óleo extraído da fruta do pequi tem ação cicatrizante comprovada em laboratório, conforme Batista et al.
223
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

por R$ 15,00 (quinze reais). Os geraizeiros que comercializam o pequi, habitualmente


ocupam barracas improvisadas de madeira e fixadas em uma extensão de cerca de 200
11
(duzentos) metros ao longo da rodovia MG-135 (altura de Bias Fortes-Minas Gerais) ,
próximo a Paraopeba.
A importância desta espécie vegetal pode ser traduzida na preocupação de diversos
estados em preservá-la. O Estado de Minas Gerais, por exemplo, editou a Lei nº 10.883 de
1992, classificando o pequizeiro como árvore de preservação permanente e vedando o seu
corte. Esta lei foi alterada pela lei de nº 20.308, aprovada em 27 de julho de 2012 (Projeto de
Lei 1799/2011), que apesar de manter a mesma classificação para esta espécie, passou a
permitir a derrubada do pequizeiro, quando localizado em área urbana ou Distrito Industrial,
mediante autorização prévia de órgão ambiental. De acordo com esta lei, a empresa que
derrubasse a árvore, também deveria plantar de 5(cinco) a 10 (dez) mudas por cada planta
extraída (artigo 2º, § 1º).·.
Além disso, como afirmado por Sandra Regina Afonso (2012) em sua tese de
doutorado, durante os meses de duração da safra do pequi, ele constitui um reforço alimentar,
indispensável na mesa dos habitantes do norte de Minas Gerais, por seu valor altamente
nutritivo, fonte de minerais – manganês, magnésio e cobre – e vitamina C, em teor superior à
encontrada em frutas de consumo tradicional, como laranja, limão, banana e maçã.
Em artigo apresentado no VIII Congreso Latinoamericano de Sociologia Rural
realizado em 2010, Afonso e outros já afirmaram que no período de março de 2006 a abril de
2007, foram entregues 9.509kg de polpas de frutos nativos para merenda escolar daquela
região, onde o pequi liderou a lista.
Afonso (2012) também diagnosticou as políticas, planos e programas públicos de
estímulo à cadeia produtiva do pequi no norte de Minas Gerais, onde demonstrou como o
bioma do cerrado vem sendo ameaçado pelas políticas de incentivo à agropecuária. E mais, a
autora também atestou a inexistência de uma política florestal clara para o país, já que não há
atuação coordenada entre os diversos órgãos que promovem o controle das atividades
florestais. De acordo com esta autora, “a atividade extrativista esteve sempre à margem do
foco das políticas”.
O Cerrado e suas espécies vegetais encontram-se sob a tensão de duas políticas

(2010). Além disso, segundo Petillo (2004), há também pesquisa da Universidade de São Paulo para verificar a
possibilidade do uso do óleo de pequi como biodiesel. Segundo esta pesquisa, o óleo de pequi chega a ser 4%
mais econômico no consumo e 30% menos poluente. Cada hectare de plantação pode produzir até 3.200 litros
de óleo (a soja, que também está sendo testada como mistura do biodiesel, rende 400 litros por hectare).
11 Estas barracas (construídas com pedaços de madeira e palha de coco) podem ser encontradas durante o ano
todo. Nelas são vendidos principalmente as frutas do pequi e seus derivados, mas também são comercializados
outros frutos como cocos, araticuns e cagaitas; diversos condimentos como pimentas; corantes; doces em
compotas, entre outros produtos.
224
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

públicas não integradas e de certa forma até opostas. De um lado, enfatiza-se a importância da
conservação e da recuperação do Cerrado em toda a sua plenitude, devido principalmente à
importância ambiental e de outro, o incentivo à ocupação do Cerrado por grandes
monoculturas e criações, eliminando cada vez mais a flora e fauna locais, ao mesmo tempo
em que organismos nacionais e internacionais de proteção ambiental pressionam o governo
brasileiro no sentido de ampliar a conservação de nossa savana12.
Ocorre que as populações tradicionais encontradas no Cerrado (povos indígenas,
quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos e vazanteiros) enfrentam
dificuldades para sua sobrevivência por conta da degradação de seus territórios e das constantes
pressões no entorno (BRASIL, 2011).
A questão que se levanta e merece discussão é como conciliar, dois direitos
constitucionais que parecem se encontrar em rota de colisão: de um lado, a proteção ambiental
que representa um direito universal e, portanto, comum a todos os brasileiros e, de outro, a
proteção da dignidade humana13, traduzida nos aspectos relacionados às condições de vida e
sobrevivência da população que explora os produtos do Cerrado?
Diante deste contexto foi percebida a importância de uma pesquisa “in loco” que
indagassem quais são as consequências ou efeitos desse antagonismo para as populações que
vivem do extrativismo do Cerrado? De que maneira a legislação ambiental afeta as práticas e
as relações dessas populações com o Cerrado e com seus pares? Quais os efeitos dessas
relações? E, no que se refere ao recorte pretendido, até que ponto a nova legislação ambiental
representa proteção para os geraizeiros que vivem desta economia informal, especialmente à
relativa à extração e ao comércio do pequi? Quais são os mecanismos disponíveis aos
gerazeiros para esta proteção? Qual o papel do Poder Judiciário local em tais circunstâncias?
Para fins de delimitação espacial, a pesquisa será desenvolvida no norte de Minas
Gerais - especialmente na área compreendida entre as cidades de Engenheiro Navarro e
Curvelo, devido à familiaridade das pesquisadoras com a região e sua inserção no judiciário
local, enquanto advogadas atuantes.

METODOLOGIA

12
De acordo com Afonso (2012), até meados da década de 1980, a intensa intervenção estatal se expressou por
meio da implantação da Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco), do Programa de
Desenvolvimento do Centro-Oeste (Prodoeste), do Programa de Desenvolvimento do Cerrado (Polocentro) e
do Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer). A partir disso,
o Cerrado passou a ser visto como “celeiro do mundo”.
13
Enquanto o direito universal ao meio ambiente está previsto no artigo 225 da Constituição da República de
1988, já afirmado, a dignidade humana é concebida pelo texto constitucional como um dos fundamentos da
nossa República. De acordo com o Art. 1º, da Carta, “A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”.
225
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para atingir o objetivo aqui proposto foi percebido, logo no início da pesquisa, que o
exame meramente bibliográfico, com base nas doutrinas jurídicas brasileiras, apresentaria
uma contribuição reduzida e parcial. Isto porque tais doutrinas são textos que contém a
interpretação de seus autores a respeito de um determinado texto legal, não representando o
que efetivamente as práticas sociais promovem (Geertz, 2008).14 Sendo assim, pensou-se em
utilizar, complementarmente a esta análise alguns métodos colhidos nas ciências sociais,
especialmente a observação participante, conjugada com o emprego de entrevistas abertas
com alguns geraizeiros e demais habitantes da região compreendida entre as cidades de
Engenheiro Navarro-MG e Corinto-MG, em face do recorte geográfico escolhido.
A observação participante é uma técnica realizada através do contato direto, frequente
e prolongado do investigador com os atores sociais, em seus contextos culturais, sendo o
próprio investigador instrumento de pesquisa. Esta técnica tem como precursor o autor
Malinowski (1976).15 Os objetivos da observação participante não se restringem à mera
descrição de um contexto fático, mas pretende identificar os sentidos, a orientação e a
dinâmica de cada momento. Nela, o investigador é simultaneamente instrumento na coleta de
dados e na sua interpretação.
Bogdan e Taylor (1975) definiram a observação participante como uma investigação
caracterizada por interações sociais intensas, entre investigador e sujeitos, no meio destes,
sendo um procedimento durante o qual os dados são recolhidos de forma sistematizada.
A observação das práticas e dos costumes dos gerazeiros com o Cerrado e as relações
construídas a partir da necessidade de sua exploração e proteção, provavelmente produzirão
dados importantes para a pesquisa em um primeiro movimento. Nesta análise serão
enfatizadas as dimensões sociocultural, econômica, institucional e ambiental, organizadas a partir
dos elementos, ideias ou manifestações produzidas pelos atores observados.
Em seguida à observação do modus agendi dos geraizeiros, pretende-se levantar as
ações impetradas junto ao Judiciário local que versem sobre a proteção dos interesses dos
gerazeiros e do Cerrado, dividindo-se tal estudo segundo essas duas orientações, para verificar
como este órgão administra os conflitos sociais que envolvem tais questões e como suas
decisões interferem e influenciam as vidas desses atores sociais. Restringiremos este

14
De acordo com Geertz, os doutrinadores jurídicos constroem um saber denominado de dogmática jurídica,
enquanto saber próprio do campo jurídico, “que consiste em reunir e organizar, de forma sistemática e racional,
comentários a respeito da legislação em vigor e da melhor forma de interpretá-la; é através dela que o direito se
reproduz nesse campo” (2008, p. 26)
15 Malinowski (1976) e seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, nordeste da Nova Guiné, realizado em duas
expedições, cada qual com duração de um ano (1915-1916 e 1917-1918), constituem o marco de origem da
etnografia científica, na medida em que o autor redefiniu as crenças, os compromissos básicos dos membros da
comunidade científica a respeito da natureza do conhecimento antropológico. De acordo com
Malinowski(1978), não se pode conhecer outras sociedades, outras culturas, a partir dos dados fornecidos por
viajantes, missionários e funcionários do governo colonial.
226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

levantamento às decisões judiciais produzidas a partir da vigência do Novo Código Ambiental


e em seguida analisaremos de que forma ocorre a administração institucional dos conflitos e
quais efeitos e consequências tais decisões promovem.
De acordo com Fontana e Frey (1994, p. 361), a entrevista é uma das mais comuns e
poderosas maneiras utilizadas para tentar compreender nossa condição humana. Trata-se de
uma técnica clássica na obtenção de informações nas ciências sociais, com larga adoção em
áreas como sociologia, comunicação, antropologia, administração, educação e psicologia
(SCHEUCH, 1973, p.171-172). A entrevista aberta, por sua vez, é essencialmente exploratória
e flexível, sem elaboração de questões ou parâmetros de respostas previamente definidos.
Apenas parte de um tema ou questão ampla, deixando o entrevistado falar livremente, sendo
apenas interrompido para aprofundar ou esclarecer determinado assunto, de acordo com
aspectos significativos para a pesquisa. Assim, o entrevistado responde conforme seus
próprios termos, utilizando como referência seu conhecimento, percepção, linguagem,
realidade, experiência. Neste sentido, os geraizeiros são indagados sobre a importância do
Cerrado em suas vidas e quais interações resultam do extrativismo vegetal ali promovido.
Estes atores também serão indagados sobre os possíveis conflitos sociais experimentados
nesta relação e as formas de resoluções por eles produzidas.
Para a análise dos dados pretende-se levar em consideração as recomendações de Minayo
(2004), que apresenta uma proposta de análise de dados realizada em 3 fases: na primeira, a
ordenação dos dados, consistente no mapeamento de todos os dados obtidos no trabalho de campo
(transcrição de gravações, releitura do material, organização dos relatos e dados); na segunda, a
classificação dos dados, que constitui etapa de questionamento sobre os dados com base na
fundamentação teórica (leitura exaustiva dos textos, identificação do conteúdo relevante,
elaboração das categorias16 recorrentes nos discursos dos entrevistados); e na terceira, a análise
final, que resulta no estabelecimento de articulação entre os dados e os referenciais teóricos da
pesquisa, respondendo às questões da pesquisa com base nesses objetivos e assim promovendo
relações entre o concreto e o abstrato, o geral e o particular, a teoria e a prática.
É certo que o emprego destes métodos constitui um exercício ainda incomum nas
pesquisas jurídicas, mas permitirá ampliar, sobremaneira, a visibilidade e a reflexão do
assunto aqui versado por outras áreas do conhecimento.

16
De acordo com Gomes (2004), a expressão categoria se refere a um conceito que abrange elementos ou
aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si. Assim, as categorias são empregadas para
se estabelecer classificações, um procedimento, em geral, utilizado em análises qualitativas. Nesse sentido,
trabalhar com elas significa agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito capaz de
abranger o todo.
227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

JUSTIFICATIVA
O estudo do tema escolhido é complexo, pois esbarra em inúmeros fatores que estão
relacionados à manutenção dos Cerrados brasileiros, de um lado, e ao crescimento do
extrativismo vegetal e da exploração pecuária, de outro, sendo que ambos têm como meta o
desenvolvimento do país, enquanto políticas públicas institucionalizadas. Estes fatores
também implicam na convivência e reprodução de dois direitos protegidos
constitucionalmente: o direito universal ao meio ambiente equilibrado e sustentável e a
proteção da dignidade humana.
Dentre outros doutrinadores jurídicos que tratam do direito ambiental, Hugo Nigro
Mazzilli (2005, p. 142-143) afirma que:

“O conceito legal e doutrinário é tão amplo que nos autoriza a considerar de


forma praticamente ilimitada a possibilidade de defesa da flora, da fauna, das
águas, do solo, do subsolo, do ar, ou seja, de todas as formas de vida e de
todos os recursos naturais, como base na conjugação do art. 225 da
Constituição com as Leis ns. 6.938/81 e 7.347/85. Estão assim alcançadas
todas as formas de vida, não só aquelas da biota (conjunto de todos os seres
vivos de uma região) como da biodiversidade (conjunto de todas as espécies
de seres vivos existentes na biosfera, ou seja, todas as formas de vida em
geral do planeta), e até mesmo está protegido o meio que as abriga ou lhes
permite a subsistência.”

O tema relativo ao meio ambiente está distribuído na Carta de 1988 no Capítulo VI, do
Título VIII e em diversos outros artigos, que versam sobre a responsabilidade da sociedade e
do Estado brasileiro com o meio ambiente, merecendo destaque o direito fundamental de
qualquer pessoa propor ação popular com a finalidade de anular ato lesivo ao meio ambiente17
(art. 5º, inciso LXXIII), pois considerado como um arcabouço dentro do sistema de garantias
dos direitos dos cidadãos. E mais, de acordo com o artigo 4º, IX, estabelece que o Brasil deve
reger-se em suas relações internacionais pelos princípios da cooperação entre os povos para o
progresso da humanidade, de maneira a permitir maior efetividade na preservação ao meio
ambiente18.

17
Trata-se de um direito erigido ao status de direito fundamental, uma vez que inserido no Título II da Carta de
1988, que versa sobre os direitos e garantias individuais e que em seu artigo 5º, inciso LXXIII, afirma que
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (…) LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular
que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-
fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.” O termo direitos fundamentais, segundo a doutrina
jurídica, refere-se aos direitos dos cidadãos reconhecidos e positivados no texto constitucional positivo de um
determinado Estado. De acordo com Sarlet (2006, pp. 35-36), os direitos fundamentais seriam direitos
subjetivos perante o Estado, tendo efeitos diretos na relação particular-Estado.
18
De acordo com este artigo 4º, “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação
dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos
228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por sua vez, é também


considerado como um dos fundamentos da nação brasileira, na medida em que não basta
manter-se vivo, é preciso que se viva com qualidade, o que implica conjunção de fatores
como saúde, educação e produto interno bruto, segundo padrões elaborados pela Organização
das Nações Unidas (MACHADO, 2002, p. 46).
Desta forma, esta pesquisa se justifica pela possibilidade de verificar a aplicação das
garantias constitucionais relacionadas à proteção ambiental e por empregar métodos das
ciências sociais, pouco comum em uma pesquisa jurídica. Tal exercício permitirá refletir sobre
a forma como se dá a naturalização da legislação ambiental entre os geraizeiros e sua
adequação ao modelo de Estado Democrático de Direito brasileiro, especialmente no que se
refere à proteção da dignidade humana, considerado como princípio constitucional que
assegura a possibilidade de concretização do direito a um meio ambiente sadio, equilibrado e
economicamente sustentável.

ALGUNS RESULTADOS

A região norte de Minas Gerais, onde estão localizados os municípios de Engenheiro


Navarro e Corinto tem uma composição socioeconômica semelhante ao sertão nordestino,
sendo por isso denominada de “Área Mineira do Nordeste” e destoando das regiões central,
do triângulo e do sul, que são mais desenvolvidas economicamente (LEITE et al., 2000).
A economia da região é baseada na agropecuária e no extrativismo. A vegetação
nativa é fonte de recursos para o consumo dos agricultores da região, sendo o excedente
comercializado. O extrativismo de plantas típicas da região é expressivo, contribuindo para a
obtenção de alimentos e remédio, além da geração de renda através da comercialização.
Enquanto o município de Engenheiro Navarro possui uma extensão de mais de 600.000 Km2
e cerca de 7.000 habitantes, Corinto possui área de 2.524,503 km² e mais de 23.000
habitantes, conforme o censo do IBGE (2010).
O cerrado mineiro ocupa praticamente a metade da extensão territorial de Minas
Gerais, se espalhando principalmente pelo Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba, Oeste,
Metropolitana de Belo Horizonte, Central Mineira, Nordeste, Noroeste e Norte de Minas.
Especialmente no norte de Minas Gerais, segundo Correia et al. (2006), os agricultores

conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da
humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações”.
229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

conhecidos como gerazeiros, possuem uma forma bastante peculiar de apropriação da


natureza, conduzida por um sistema igualmente peculiar de representações, códigos e mitos.
De acordo com este autor, os cultivos “guardam uma rica diversidade de espécies e variedades
e os Cerrados com suas transições (Caatinga/Carrasco) fazem parte da estratégia produtiva
fornecendo, de forma extrativista, alimentação para o gado, caça madeira, lenha, frutos,
folhas, mel e medicamentos” (CORREIA, 2005, p. 02).
Ainda segundo Correia (2005), esses agricultores adotavam um sistema de produção
característico,
“combinando usos particulares e coletivos dos recursos naturais de diversas
paisagens, como chapadas (exploração coletiva com criação de animais à
solta; coletas de frutos; madeiras e ervas medicinais); encostas (roça; coleta
de madeiras para construções; cultivo de café sombreado, criação de
pequenos animais) e vales (horta; cultivo de mandioca, milho, feijão, arroz,
guandu, etc.).”

Ocorre que com a chegada das empresas produtoras de eucalipto todo esse sistema foi
desestruturado. Segundo Correia et al. (idem), “o retorno social de suas atividades foi reduzido,
inviabilizando o uso coletivo das áreas de chapada e comprometendo ambientes de baixada,
especialmente através do assoreamento dos cursos d‟água e rebaixamento do lençol freático.”
A insustentabilidade das plantações de eucalipto já fora objeto de crítica de pesquisadores
da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de São Paulo, em investigação
realizada no Médio Jequitinhonha. Segundo eles,
“A despeito das consequências danosas ao meio ambiente, ocasionado pelas
florestas de eucaliptos e pinus, quando implantadas às custas da remoção da
vegetação nativa, elas são particularmente maiores quando a vegetação
nativa substituída é a do cerrado, ocasionando uma perda importante na
parcela da recarga, devido à maior demanda evapotranspirativa daquelas
espécies em relação às nativas do cerrado” (conforme Duarte et al., 2001, p.
9).

De acordo com estes autores, o reflorestamento com eucalipto e pinus ocasionam a


diminuição da recarga de água subterrânea, impondo condições de trabalho e remuneração
degradantes aos trabalhadores locais (Duarte et al, 2001, p. 10).
Talvez a crítica mais enfática neste sentido seja a de Lashefski et al. (2005, pp. 11-
24)). De acordo com estes autores,
“Moradores locais são confrontados por um „campo‟ dominante, composto
por ONGs, empresas e instituições governamentais que, em defesa dos seus
interesses políticos e econômicos, tendem a deslegitimar observações e
experiências vividas pelos moradores locais. Com um discurso
aparentemente técnico-científico elas se utilizam de determinados fatos e
dados para construir a opinião hegemônica, em defesa de um modelo de
desenvolvimento ultrapassado e não sustentável. Em decorrência dessa
atitude, as propostas concretas da população local para a reconversão
agroextrativista das plantações de eucalipto, que se inserem de forma mais
sustentável na realidade social e ambiental do cerrado brasileiro, não são
230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

sequer consideradas.” (LASHEFSKI, 2005, p. 280)

Estes problemas também foram percebidos em nossa pesquisa de campo, muito


embora os dados levantados até aqui ainda sejam bastante incipientes. O certo é que três
geraizeiros entrevistados inicialmente informaram que vivem e exploram economicamente
este bioma, através do comércio informal de seus produtos, especialmente o pequi,
comercializando-os ao longo da rodovia MG-135, na região compreendida entre as cidades de
Engenheiro Navarro e Corinto, afirmaram também que tem constituído prática habitual das
empresas responsáveis pelo reflorestamento local, a compra de área do Cerrado onde há
grande concentração de árvores de pequi (pequizeiro). Estas árvores, apesar da proteção dada
pela lei estadual nº 10.883, de 02 de outubro de 1992, são cortadas no início da noite, (quando
a fiscalização dos órgãos ambientais é reduzida) e em seguida enterradas através do emprego
de dragas, com o fim de não ser descoberta tal prática. Em seu lugar, são plantadas mudas de
eucalipto, que vêm transformando a paisagem do cerrado e, consequentemente, a sua
biodiversidade original.
Os discursos desses geraizeiros entrevistados reconheceram a importância do Cerrado
não só para as suas próprias vidas e de suas gerações presentes e futuras, como também para a
totalidade dos cidadãos brasileiros. Vale ressaltar que estes atores detêm um conhecimento
extremamente específico e acumulado sobre as aplicações e utilidades dos produtos derivados
do Cerrado. A identificação das variadas espécies de ervas medicinais e alimentícias constitui
um cabedal de conhecimento produzido ao longo de muitas décadas, mas também se
transforma em um valor que agrega importância e autoridade para o geraizeiro que o possui. É
comum entre as famílias da região observada a preferência ou indicação de um “mateiro”19
para resolver problemas de saúde ou, até mesmo, de relacionamentos entre os integrantes
destas populações.
Ora, a crise ambiental contemporânea é reflexo da crise de valores e modelos que
transformaram as relações e os ambientes. Como Mignolo (2003) já afirmou, essa crise se
manifesta através de uma destruição simultânea de ecossistemas e culturas tradicionais e não
modernas, em especial em países da periferia do capitalismo. Ocorre que a inserção de novas
culturas extrativistas capazes de destruir o bioma do Cerrado acarreta também o desprezo pelo
saber dos geraizeiros, correspondendo a uma forma bastante sutil de legitimar a sua exclusão
social.
Já neste início de pesquisa foi possível verificar que as estratégias empregadas para
forçar as mudanças desse ecossistema podem até surgir disfarçadas de política pública

19
Expressão empregada pelos geraizeiros para designar o explorador das matas e conhecedor da vegetação do
Cerrado.
231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

afirmativa. Um exemplo desta tática foi revelada por um dos geraizeiros entrevistados, ao
afirmar que em Engenheiro Navarro – MG, alguns moradores extraíam irregularmente a
vegetação do Cerrado para ser utilizada como lenha, já que a maioria das casas dessa região
até hoje ainda recorre ao uso de fogões à lenha no preparo de suas refeições, o que constitui
uma alternativa econômica ao gás e à eletricidade. Acontece que esta extração, realizada ao
amanhecer, justamente para evitar a fiscalização dos órgãos de proteção ambiental, durante
muito tempo foi incentivada pelo próprio líder político responsável pela administração local.
Este líder chegou a utilizar os caminhões da própria prefeitura para transportar os moradores
nesta empreitada (sob a forma de mutirão), levando a população a acreditar que seu interesse
era exclusivamente o de beneficiá-la. Este administrador público se juntava à população
naquela tarefa, com o fim de passar a impressão de que ele também era pessoa humilde, do
povo e estava sensibilizado quanto às necessidades de sua comunidade. Além deste
transporte, o político em questão estimulava sobremaneira a manutenção desta prática,
sorteando gêneros alimentícios, botijões de gás e outros artigos entre os moradores durante o
mutirão. Tal estratégia favoreceu a sua permanência na administração pública local por três
mandatos, e de seu grupo por cinco mandatos. Esta situação só não se estendeu por um
período ainda maior porque um político adversário o denunciou ao Ministério Público, que
adotou as medidas necessárias para impedir a continuidade de tais práticas nocivas ao meio
ambiente e à liberdade política da população. Com isso, sua popularidade diminuiu, levando-o
a ser derrotado nas últimas eleições municipais.
Em sentido oposto e ainda durante o trabalho de campo inicial foi percebido que
dentre as instituições oficiais que se preocupam com o destino do Cerrado, a Defensoria
Pública Mineira se destacou. Para coibir ataques como o narrado acima, este órgão chegou a
publicar em sua página oficial da web, a reprodução (na íntegra) de uma ação judicial movida
perante a justiça paulista, na qual foi concedida uma liminar justamente à defensoria pública
daquele Estado, a qual proibia o plantio, o corte e o transporte de eucalipto nas cidades
paulistas.20 A decisão judicial em questão estabeleceu também que a validade desta liminar
permaneceria até quando fosse editada uma legislação específica sobre o assunto. Sendo
assim, a reprodução desta notícia representava a intenção da defensoria pública mineira em

20
De acordo com a Defensoria Pública de São Paulo, a Ação Civil Pública foi proposta contra a expansão da
monocultura de eucaliptos geneticamente modificados pela Votorantim e Suzano, no município de São Luiz
do Paraitinga, no Vale do Paraíba. A Defensoria alegou, entre outras violações, que rios e nascentes da região
secaram, animais; pessoas foram contaminadas por agrotóxicos e diversos trabalhadores rurais ficaram
desempregado. O pedido de liminar consistiu na suspensão do plantio de eucaliptos até que fossem feitos
estudos de impacto ambiental com audiências públicas junto às comunidades rurais afetadas. A ação pediu a
condenação das empresas a indenizarem os prejuízos causados; o corte das árvores cultivadas em área de
preservação ambiental permanente e a recomposição da floresta nativa. (conforme
http://www.conjur.com.br/2007-nov-24/defensoria_propoe_acao_cultivo_eucalipto, acesso em dezembro de
2012).
232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

informar a população sobre a necessidade de proteção do cerrado mineiro da mesma forma


(conforme BRASIL, 2011).
Estes primeiros dados da pesquisa de campo já vão definindo os contornos do
abandono jurídico e dos interesses econômicos que tencionam as relações sociais com o
Cerrado do norte de Minas Gerais; os papéis individuais e institucionais e as estratégias de
resistência empregadas contra este abandono.

CONCLUSÃO

Como acima mencionado, algumas pesquisas já defenderam a necessidade da


conservação e recuperação do Cerrado em toda plenitude, devido à sua relevância para o meio
ambiente brasileiro e mundial, o que acarreta, igualmente, a importância do exame ora
proposto. Mesmo estando a presente pesquisa em sua fase embrionária, a sua relevância já se
destaca, em vista do quanto o desamparo jurídico deste bioma vem contribuindo – ao lado da
ausência de políticas públicas protetivas – para o desmatamento de vegetações nativas em
vasta extensão territorial, acarretando sérios e inequívocos prejuízos também para as
interações sociais que se desenvolvem apoiadas nas atividades econômicas que o Cerrado
sustenta.
O Cerrado constitui o bioma mais atingido por um projeto de desenvolvimento que
contaminou os discursos cientistas e políticos nas últimas décadas e por isso ele é hoje a
região onde mais se promove o agronegócio. Considerado inicialmente como menos relevante
em relação aos demais biomas, especialmente por conta de sua aparência escassa e solo
impróprio ao cultivo de plantas economicamente interessantes, essa ideologia de
desenvolvimento promoveu o atingimento de grandes áreas deste bioma pelas modernas
técnicas agronômicas, integrando-as à economia agropecuária enquanto, mais ou menos ao
mesmo tempo, dilatou-se o conhecimento da complexidade, da riqueza e da importância para
o mundo do Cerrado. Em vista dos autores consultados, há uma franca indicação de que as
opções estratégicas adotadas pelo governo federal, o agronegócio ainda permanecerá
ocupando as áreas do Cerrado e modificando seus ecossistemas, em nome da modernidade, da
eficiência, da balança comercial, do setor ruralista e das corporações transnacionais (SILVA,
2006).
Dentre as espécies vegetais que se destacam neste bioma por sua variada e inúmeras
aplicações, o pequizeiro (Caryocar brasiliense) tem sido alvo da exploração extrativista
depredatória e, junto com ele, os agricultores que retiram desta espécie sua própria
subsistência e de sua família.
233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Os dados obtidos nesta fase inicial da pesquisa já indicam a existência de vínculos


entre os geraizeiros e a exploração extrativa do Cerrado, vínculos esses que são responsáveis
pela construção e manutenção de um sistema de sociabilidade comunitária, reciprocidade e
autonomia, dentro do qual são produzidas múltiplas e variadas culturas que igualmente
merecem proteção. Desta forma é possível afirmar que a depredação do Cerrado não se refere
apenas a uma questão de violação do meio ambiente, mas também representa a
impossibilidade de concretização de uma vida digna para diversas comunidades,
especialmente os geraizeiros.
Os autores consultados informam que parte da crise que atinge o Cerrado decorre da
manutenção de políticas públicas antagônicas, que de um lado favorecem o crescimento do
extrativismo vegetal e a exploração pecuária, enquanto de outro, a proteção (minimamente
significativa) do bioma, o que constitui um paradoxo, já que ambas estão vinculadas ao
desenvolvimento do país. A estas políticas também se acrescem os interesses particulares de
empresários e políticos gananciosos que veem na exploração do bioma uma fonte inesgotável
de recursos financeiros, sem responsabilização quanto às consequências dessa atividade
realizada indiscriminada.
Paralelamente aos projetos (tanto os oficiais, quanto os pessoalizados) de exploração
dos recursos deste bioma, os geraizeiros seguem elaborando e exercitando suas táticas de
resistência à sucumbência do Cerrado. Ouvi-los e compreender suas práticas e expectativas
pode contribuir para a constituição de uma concepção de sustentabilidade ecológica, que
acolha e incentive as variadas formas culturais e sociais democráticas e includentes.
Nesta tarefa, o emprego de metodologia das ciências sociais parece ser o mais
adequado, inclusive por permitir ampliar o debate sobre a questão para outras áreas do
conhecimento, além do campo jurídico. Por outro lado, a análise das representações dos atores
sociais que exploram economicamente as riquezas naturais do Cerrado pode indicar a forma
peculiar de apropriação e naturalização da legislação específica por parte da população
residente na região delimitada pela pesquisa, assim como as formas de atualização do
princípio da dignidade da pessoa humana.
.

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239
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

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______. Cerrado, bioma, ecossistemas. Disponível em:
http://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/cerrado/bioma/ecossistemas/,
acesso em: 11 nov. 2012.

240
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO DO BIOMA MATA ATLÂNTICA E SUA


APLICAÇÃO NOS PROCESSOS DE EXPANSÃO URBANA

LE REGIME DE PROTECTION JURIDIQUE DES BIOME DE LA FORÊT ATLANTIQUE ET SON


APPLICATION DANS LE PROCESSES DE L'EXPANSION URBAINE

Marcela Vitoriano e Silva1

Resumo: A Mata Atlântica é o único dos biomas brasileiros que possui um regime jurídico
próprio de proteção. Por outro lado é o bioma que teve a maior extensão de vegetação nativa
suprimida e que se encontra em situação de maior vulnerabilidade de ocorrência de impactos
ambientais. Os principais motivos dessa situação de vulnerabilidade são a pequena parcela
restante do bioma, o número de espécies endêmicas ameaçadas de extinção e a alta densidade
demográfica na sua área de formação original. A conservação da parcela do bioma que ainda
resta revela-se como um imenso desafio, sobretudo frente à pressão para a sua ocupação. A
partir deste panorama procura-se analisar as regras do regime jurídico de proteção do Bioma
Mata Atlântica previstas na Lei Federal nº 11.248/06, especialmente aquelas aplicáveis nas
hipóteses de realização de loteamentos ou edificações urbanas, e os mecanismos e
instrumentos jurídicos postos para impedir que a expansão urbana não leve à devastação de
novas áreas do bioma.

Palavras-chave: Bioma Mata Atlântica; área urbana; loteamento; regime jurídico de


proteção.

Résumé: La Forêt Atlantique est l'un des uniques biomes qui dispose d'un régime juridique
spécial pour sa protection. De l'autre côté, est le biome qui a eu la plus grande étendue de la
végétation indigène enlevé et ce a trouvé dans une situation la plus vulnérable de survenue des
impacts environnementaux. Les principales raisons de cette vulnérabilité sont la petite portion
restante du biome, le nombre d'espèces endémiques menacées d'extinction et la forte densité
démographique dans sa zone de formation originale. La conservation de la part du biome qui
reste se révèle être un défi de taille, surtout en raison de la pression de sa occupation. De cet
panorama se vise à analyser les règles du régime juridique de le biome de la Forêt Atlantique
prévue à la Loi Fédéraux n° 11.248/06, en particulier celles applicables en cas de réalisation
de lotissements ou bâtiments urbains, et les mécanismes et les instruments juridiques pour
empêcher que l'étalement urbain ne conduit pas à la déforestation de nouveaux domaines du
biome.

Mots-clés: Forêt Atlantique Biome, zone urbaine; lotissements; régime de protection


juridique.

1
Mestranda em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara;
Especialista em Direito Ambiental pelo CEAJUFE; Bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais – PUCMINAS; Advogada.

241
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Sumário: 1 Introdução; 2 A tutela constitucional do meio ambiente; 3 A importância do


Bioma Mata Atlântica e seu quadro geral de devastação; 4 O regime jurídico de proteção do
Bioma Mata Atlântica aplicável aos loteamentos e edificações urbanas; 5 A necessidade de
realização do Estudo de Impacto Ambiental para intervenção no Bioma Mata Atlântica; 6 A
função dos princípios ambientais na aplicação do regime jurídico de proteção do Bioma Mata
Atlântica; 7 O desenvolvimento urbano e a proteção do Bioma Mata Atlântica; 8
Considerações finais.

1 Introdução

O Brasil é, de fato, um país de grandes riquezas naturais. Mas ao longo da sua


história esta qualidade lhe transformou em vítima de um intenso processo exploratório.
No período da colonização a descoberta do “novo mundo” significou um grande
achado, em razão da abundância de recursos naturais presentes nessa terra. A intenção dos
países colonizadores era aproveitar ao máximo essas riquezas, extraindo os recursos aqui
encontrados.
Naquela época os recursos naturais eram vistos como uma riqueza inesgotável. A
preocupação era a satisfação imediatista dos interesses dos países colonizadores, que
buscavam melhorar a sua posição política e econômico-financeira.
O resultado foi um processo exploratório desmedido, de amplas proporções e
grandes impactos na natureza. Um dos patrimônios ambientais brasileiros mais afetados foi a
Mata Atlântica, pois na área de sua formação se instalaram várias atividades que contribuíram
para a sua devastação. Entre elas destacam-se a extração do ouro, o corte do pau-brasil e a
substituição de vegetação nativa pela produção agrícola (café, cana-de-açúcar e outros).
O pau-brasil, árvore típica deste bioma, é um dos emblemas desse processo de
exploração. A sua retirada para abastecimento da indústria naval portuguesa, uma das maiores
da Europa, e para a fabricação de móveis e construções de casas e palacetes quase levou à
completa extinção desta espécie, ainda hoje ameaçada.
Não se empregava qualquer técnica que mitigasse os impactos ambientais, pois não
havia qualquer preocupação em relação aos efeitos do modelo de exploração empregado,
tanto em razão da visão que se tinha da natureza quanto da qualificação do território brasileiro
como colônia. Isso acarretou a degradação do solo e dos recursos hídricos e a supressão de
vegetação nativa em grandes áreas.
Outro fator que contribui para a devastação da Mata Atlântica foi a sua localização
geográfica. Originalmente ela cobria uma extensa área que percorria praticamente toda a linha

242
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

vertical do Brasil, de norte ao sul, e que se iniciava na região litorânea. Esta localização
coincidiu com a frente de domínio e exploração do território brasileiro, que partia do litoral
em direção ao oeste. Os primeiros centros políticos e as mais concentradas ocupações do
território também se deram na área em que predominava este bioma.
Diante desta localização geográfica a exploração dos recursos naturais da Mata
Atlântica e a ocupação da sua área de formação se tornaram inevitáveis.
Mesmo após o encerramento da fase de colonização do Brasil o processo de
exploração continuou avançando sobre outras áreas. Com o objetivo de se alcançar o
progresso do país se adentrava nas áreas das florestas para ocupação urbana, industrial,
agrícola, instalação de grandes empreendimentos ou simplesmente para extrair os seus
recursos naturais.
Esse panorama, acompanhado da intensificação da ocupação e desenvolvimento da
região sudeste, contribuíram para a contínua devastação da Mata Atlântica.
O saldo geral desse processo histórico foi a sobra de uma mísera parcela da Mata
Atlântica (em torno de 7% do total), que se mantém sob constante ameaça.
Passados anos de exploração dos recursos naturais deste bioma e da constatação da
grave quadro de devastação, foram iniciadas as lutas pela sua conservação e proteção.
O tema foi tratado inicialmente pelo Decreto nº 750, de 1993, que enumerou os casos
possíveis de corte, supressão e exploração de vegetação primária nos estágios médio e
avançado de regeneração, criado com base na previsão do art.14 da Lei Federal nº 4.771/65 2.
Posteriormente foi editada a Lei nº 11.428/06, dispondo sobre a utilização e proteção
da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, cujo processo de aprovação perdurou por 14
anos.
Atualmente busca-se a instalação de um modelo sustentável de exploração dos
recursos naturais, que permita a perpetuidade da qualidade do meio ambiente em favor do
homem. Contudo, um imenso desafio está posto, controlar e equilibrar os interesses de
ocupação e utilização da área da floresta ainda preservada, pois embora seja relevante o

2
O artigo 14 da Lei Federal nº 4.771/65 tinha a seguinte redação:
“Art. 14. Além dos preceitos gerais a que está sujeita a utilização das florestas, o Poder Público Federal ou
Estadual poderá:
a) prescrever outras normas que atendam às peculiaridades locais;
b) proibir ou limitar o corte das espécies vegetais raras, endêmicas, em perigo ou ameaçadas de extinção, bem
como as espécies necessárias à subsistência das populações extrativistas, delimitando as áreas compreendidas no
ato, fazendo depender de licença prévia, nessas áreas, o corte de outras espécies;
c) ampliar o registro de pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem à extração, indústria e comércio de produtos
ou subprodutos florestais.”

243
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

avanço dado pela criação de um regime jurídico próprio de proteção do Bioma Mata
Atlântica, é preciso dotar-lhe de efetividade e eficácia, evitando que haja desvirtuamento da
sua finalidade no momento da aplicação das suas regras, de modo a impedir a continuidade do
quadro de devastação deste bioma e, principalmente, viabilizar o aumento do seu percentual
existente a fim de retirá-lo da sua zona de risco.
Por isso se propõe a percorrer as regras deste regime jurídico, examinando os seus
conteúdos e revestindo-as dos propósitos contidos nos princípios ambientais.

2 A tutela constitucional do meio ambiente

A Constituição Brasileira de 1988 conferiu tratamento inédito ao meio ambiente,


reservando-lhe título específico na sua estrutura normativa. No seu art. 225 não somente
concebe a proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as atuais gerações
como também para as futuras, com a finalidade de assegurar a vida e a dignidade humana.
A manutenção do equilíbrio ecológico, após os efeitos negativos do intenso processo
de exploração da natureza pelo homem, mostrou-se como o único caminho possível para que
o ser humano possa usufruir de uma vida saudável, com qualidade e bem-estar e, desta forma,
alcançar a sua dignidade. Assim, o Direito reconhece o valor instrumental do meio ambiente
para o ser humano e, neste aspecto, reside a fundamentabilidade deste direito. Seguindo esta
linha, Costa afirma que o meio ambiente “deve ser protegido como o direito defesa da vida”
(2010, p. 117).
Dada a relevância da manutenção do equilíbrio ambiental e a imprescindibilidade de
uma proteção conjunta com todos os indivíduos e setores da sociedade, possui a tutela
constitucional do meio ambiente uma dupla face: ao direito fundamental da coletividade
corresponde também um dever fundamental de proteção e preservação do seu equilíbrio.
Impõe o Direito o compartilhamento deste dever entre todos; a ninguém é permitido se
esquivar do seu dever fundamental, pois uma gestão bem sucedida do Planeta exige que cada
um assuma o seu papel.
Benjamin divide este dever fundamental em quatro categorias. Entre elas, destacam-se
a obrigação explícita e genérica de defesa e preservação do meio ambiente e a obrigação
implícita, genérica e negativa de não degradá-lo (2011, p.134). Ou seja, agir de forma a não
provocar o desequilíbrio ambiental insere-se no dever geral de conservação. É uma face de
suma importância do dever fundamental, pois evita a ação contínua e incessante de recuperar
o meio ambiente, bem como a concretização de danos que a reparação não soluciona.

244
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ao lado da coletividade o Poder Público assume papel de destaque na realização de


medidas que propiciem a efetividade das normas constitucionais de proteção do meio
ambiente, seja por intermédio da regulação dos atos dos particulares, com a fixação de limites
às suas condutas de forma a evitar a degradação ambiental3, ou da implementação de políticas
públicas ambientais. Para tanto, elenca o §1º do art. 225 um rol – não taxativo – das
atribuições4 do Poder Público.
Contudo, para que a tutela do meio ambiente preceituada no art. 225 da Constituição
da República Federativa do Brasil seja ampla e efetiva, é preciso considerar todos os seus
elementos formadores – natural, artificial e cultural –, os quais não podem mais ser
considerados independentes, diante da intensa interação que o homem moderno promove
entre eles, conjugando-os e mesclando-os.
A proteção do meio ambiente natural, por sua vez, também deve perpassar por todos
os seus elementos, ou melhor, por todos os seus recursos naturais, tais como a água, o ar, o
solo, a flora e a fauna, já que a natureza é o resultado de um complexo harmônico de seus
componentes vivos e não vivos, que se interagem de forma sistêmica, reflexa e fragilizada.
Esta compreensão do meio ambiente pode ser verificada do seu conceito, fornecido
pela Lei nº 6.938/81:

Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I – meio ambiente: o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem


física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

As florestas revelam a complexidade dos ecossistemas e a relação de mútua


interdependência entre as espécies que o integram.

O estreitamento das relações entre os seres, no âmbito de um ecossistema, manifesta-se


de forma bem mais complexa entre os componentes da biota. Flora e fauna são
extremamente solidárias – poderíamos dizer, são cúmplices entre si, principalmente se
pensarmos em hábitats, nichos ecológicos e cadeia trófica. (MILARÉ, 2007, p. 237)

3
Traz o inciso II do art. 3º da Lei nº 6.938/81 o seguinte conceito de degradação ambiental:
“Art 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
[...]
II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente.”
4
Esta seria a terceira categoria de deveres ambientais de acordo com a classificação de Benjamim, enquanto a
quarta e última categoria seria àqueles deveres explícitos e especiais que recaem sobre os particulares e o Estado,
descritos nos §§2º e 3º do art. 225, da Constituição da República.

245
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Assim, uma correta proteção deve contemplar a preservação de todos os recursos


naturais, devido ao valor insubstituível que cada qual contém e à relação de “solidariedade”
que unem os seres vivos. Por este motivo, os bens ambientais ameaçados de extinção
requerem uma tutela especial, dotada de regras mais rígidas e mecanismos próprios, em razão
dos riscos que lhe cercam.

3 A importância do Bioma Mata Atlântica e seu quadro geral de devastação

A Mata Atlântica, compreendida como uma grande floresta, apresenta muitos motivos
que justificam a sua proteção particularizada. Além do seu grande valor ambiental, em virtude
da extrema quantidade de espécies vegetais e animais que abriga, a Mata Atlântica é uma
floresta que marca a paisagem natural do território brasileiro, não sendo encontrada em
qualquer outro lugar do Planeta.
Sobre ela escreve Benjamin,

Considerada pelos botânicos a floresta de maior biodiversidade por hectare do planeta,


abrigando mais de 25 mil espécies de plantas, foi, quase que inteiramente derrubada,
restando somente cerca 5% de sua cobertura original, vítima de sua localização na zona
de primeira contato com o colonizador, exatamente onde os primeiros núcleos de
povoamento foram estabelecidos e onde, hoje, estão os grandes centros industriais e
urbanísticos. A maior parte das espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção no
Brasil é endêmica da Mata Atlântica. (2011, p. 63)

Como menciona ainda Benjamin (2011), a Mata Atlântica ocupava, originalmente,


12% do território nacional, localizada em uma extensa faixa litorânea, que se estendia do
Estado do Rio Grande do Norte ao Estado de Santa Catarina5.
Estima-se que a sua formação original tenha atingido mais de 1.300.000 km². Hoje
resta aproximadamente 100.000 km² (Milaré, 2007). Ela compõe, ainda, sete das nove bacias
hidrográficas brasileiras.
Por tais razões a Mata Atlântica foi qualificada, ao lado de outros biomas brasileiros,
como “patrimônio nacional” pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

Art. 225 [...]

§4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal


Mato-Grossense e a Zona Costeira, são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-à, na

5
De acordo com as informações divulgadas pela SOS Mata Atlântica, o bioma ocupava 17 Estados brasileiros
(Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Sergipe, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí)
(Informação disponível em <http://www.sosma.org.br/nossa-causa/a-mata-atlantica/>. Acesso em 28/02/2013).

246
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente,


inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

A Mata Atlântica é um dos biomas mais ricos do mundo em biodiversidade,


apresentando alto número de espécies endêmicas, ou seja, exclusivas deste local (Milaré,
2007). Só para os vegetais este número gira em torno de 8 mil. Por outro lado, concentra alto
número de espécies ameaçadas de extinção. De acordo com os dados divulgados pela SOS
Mata Atlântica, das 633 espécies ameaçadas de extinção no Brasil, 383 ocorrem no Bioma
Mata Atlântica.
Além disso, a área de sua formação original foi intensamente ocupada ao longo da
história. Ainda de acordo com os dados da SOS Mata Atlântica, aproximadamente 61% da
população brasileira vive na área deste bioma, o que revela a particularidade na sua proteção.
Para Milaré “um dos grandes desafios para a conservação da Mata Atlântica é a
reversão do processo de diminuição da cobertura florestal natural para outros usos” (2007, p.
641).
Diante do quadro de devastação, atual lesão a este relevante patrimônio natural o torna
ainda mais vulnerável ao progressivo processo de extinção das espécies que nele se encontram
e, em longo prazo, à completa e definitiva extinção do bioma. A concretização desse fato
acarreta perdas incomensuráveis para o ser humano, pois cada espécie, por si só, possui um
valor inestimável e interage de forma insubstituível no seu ecossistema.
Conforme a Constituição da República Federativa do Brasil compete ao Poder Público
preservar os processos ecológicos essenciais, bem como a diversidade e a integridade do
patrimônio genético do País (incisos I e II do §1º do art. 225).
Isto significa que o tratamento diferenciado da Mata Atlântica encontra amparo não
somente no fato de ser formadora do patrimônio nacional, mas na proteção constitucional da
biodiversidade, que representa, primordialmente, a conservação da qualidade do meio
ambiente.
Visando a regulação da proteção do Bioma Mata Atlântica, foi criada a Lei Federal nº
11.428/06, a qual aponta, no seu art. 6º, que a proteção e utilização desse bioma têm “por
objetivo geral o desenvolvimento sustentável e, por objetivos específicos, a salvaguarda da
biodiversidade, da saúde humana, dos valores paisagísticos, estéticos e turísticos, do regime
hídrico e da estabilidade social”.
Estabelece a referida lei um regime jurídico de proteção para a Mata Atlântica, que
delimitou as hipóteses em que é possível o corte, a supressão e a exploração de vegetação
nativa deste bioma, variáveis conforme o tipo de vegetação e o seu estágio de regeneração.

247
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Assim, a criação do regime jurídico de proteção se justifica pelo peculiar valor


ambiental que o Bioma Mata Atlântica possui, mas, sobretudo, pelo risco iminente a que está
sujeita: o da sua extinção.

4 O regime jurídico de proteção do Bioma Mata Atlântica aplicável aos loteamentos e


edificações urbanas

A definição de um regime jurídico de proteção da Mata Atlântica se faz necessária em


razão do seu enquadramento como patrimônio nacional, revelando como um dos traços
distintivos do território brasileiro. Ao lado do seu valor ecológico para a nação brasileira, duas
situações explicitadas anteriormente impõe a criação de regras próprias para a proteção desse
patrimônio: o percentual restante da floresta, que atinge pouco mais de 7% da área original
deste bioma6 e a riqueza da biodiversidade que abriga, demonstrada pelo alto número de
espécies de seres vivos, alguns endêmicos.
Além do mais, a teor do disposto no inciso III do §1º da Constituição da República,
compete ao Poder Público proteger a fauna e a flora e impedir as práticas que “provoquem a
extinção de espécies”.
O regime jurídico de proteção do Bioma Mata Atlântica apresenta regras diferenciadas
conforme a existência de vegetação primária ou vegetação secundária e, ainda, para esta
última, de acordo com o seu estágio de regeneração, gerando uma escala gradativa dos níveis
de proteção. A vegetação primária recebe regras mais rígidas do que a vegetação secundária.
Do mesmo modo, os estágios mais avançados de regeneração da vegetação secundária
também recebem uma proteção mais intensa do que aquelas vegetações em estágios iniciais
de regeneração. A Lei nº 11.428/06 determinou, em seu art. 4º, que a definição de vegetação
primária e de vegetação secundária nos estágios avançado, médio e inicial de regeneração do
Bioma Mata Atlântica seria de iniciativa do Conselho Nacional do Meio Ambiente –
CONAMA. Este dispositivo estabeleceu, ainda, os parâmetros básicos a orientarem a
diferenciação entre as espécies de vegetação e seus estágios de regeneração.
O CONAMA já havia editado a Resolução nº 10, em 1993, tratando dessa matéria.
Esta norma continua vigente e apresenta as seguintes definições:

6
Os dados foram retirados da obra de Machado (2010, p. 808).

248
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Art. 2º Com base nos parâmetros indicados no artigo 1º desta Resolução, ficam
definidos os seguintes conceitos:

I - Vegetação Primária - vegetação de máxima expressão local, com grande diversidade


biológica, sendo os efeitos das ações antrópicas mínimos, a ponto de não afetar
significativamente suas características originais de estrutura e de espécies.

II - Vegetação Secundária ou em Regeneração - vegetação resultante dos processos


naturais de sucessão, após supressão total ou parcial da vegetação primária por ações
antrópicas ou causas naturais, podendo ocorrer árvores remanescentes da vegetação
primária.

Como regras gerais do regime jurídico de proteção, a Lei nº 11.428/06 fixou as


hipóteses em que são vedados os cortes e supressão de vegetação nativa primária ou nos
estágios avançado e médio de regeneração (art. 11); determinou a utilização preferencial das
áreas degradadas (art. 12); e concedeu tratamento diferenciado para o pequeno produtor e
populações tradicionais (arts. 9º e 13).
A Lei nº 11.428/06 estabelece os casos de utilidade pública e interesse social como as
hipóteses centrais de intervenção no Bioma Mata Atlântica, as quais são assim definidas:

Art. 3o Consideram-se para os efeitos desta Lei:

[...]

VII - utilidade pública:


a) atividades de segurança nacional e proteção sanitária;
b) as obras essenciais de infra-estrutura de interesse nacional destinadas aos serviços
públicos de transporte, saneamento e energia, declaradas pelo poder público federal ou
dos Estados;
VIII - interesse social:
a) as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação nativa, tais
como: prevenção, combate e controle do fogo, controle da erosão, erradicação de
invasoras e proteção de plantios com espécies nativas, conforme resolução do Conselho
Nacional do Meio Ambiente - CONAMA;
b) as atividades de manejo agroflorestal sustentável praticadas na pequena propriedade
ou posse rural familiar que não descaracterizem a cobertura vegetal e não prejudiquem a
função ambiental da área;
c) demais obras, planos, atividades ou projetos definidos em resolução do Conselho
Nacional do Meio Ambiente.

Os artigos 14 e seguintes tratam do procedimento e regras gerais para a autorização da


intervenção no bioma nesses casos.
Porém, as hipóteses de intervenção tratadas no presente artigo não se enquadram nos
casos de utilidade pública ou interesse social. São hipóteses em que a intervenção ocorre
visando à expansão urbana, com a implantação de loteamento ou edificação. Esses casos
recebem regras específicas, assentadas nos artigos 30 de seguintes da Lei.

249
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Art. 30. É vedada a supressão de vegetação primária do Bioma Mata Atlântica, para fins
de loteamento ou edificação, nas regiões metropolitanas e áreas urbanas consideradas
como tal em lei específica, aplicando-se à supressão da vegetação secundária em estágio
avançado de regeneração as seguintes restrições:

I - nos perímetros urbanos aprovados até a data de início de vigência desta Lei, a
supressão de vegetação secundária em estágio avançado de regeneração dependerá de
prévia autorização do órgão estadual competente e somente será admitida, para fins de
loteamento ou edificação, no caso de empreendimentos que garantam a preservação de
vegetação nativa em estágio avançado de regeneração em no mínimo 50% (cinqüenta
por cento) da área total coberta por esta vegetação, ressalvado o disposto nos arts. 11,
12 e 17 desta Lei e atendido o disposto no Plano Diretor do Município e demais normas
urbanísticas e ambientais aplicáveis;

II - nos perímetros urbanos aprovados após a data de início de vigência desta Lei, é
vedada a supressão de vegetação secundária em estágio avançado de regeneração do
Bioma Mata Atlântica para fins de loteamento ou edificação.

Art. 31. Nas regiões metropolitanas e áreas urbanas, assim consideradas em lei, o
parcelamento do solo para fins de loteamento ou qualquer edificação em área de
vegetação secundária, em estágio médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica,
devem obedecer ao disposto no Plano Diretor do Município e demais normas aplicáveis,
e dependerão de prévia autorização do órgão estadual competente, ressalvado o disposto
nos arts. 11, 12 e 17 desta Lei.

§ 1o Nos perímetros urbanos aprovados até a data de início de vigência desta Lei, a
supressão de vegetação secundária em estágio médio de regeneração somente será
admitida, para fins de loteamento ou edificação, no caso de empreendimentos que
garantam a preservação de vegetação nativa em estágio médio de regeneração em no
mínimo 30% (trinta por cento) da área total coberta por esta vegetação.

§ 2o Nos perímetros urbanos delimitados após a data de início de vigência desta Lei, a
supressão de vegetação secundária em estágio médio de regeneração fica condicionada
à manutenção de vegetação em estágio médio de regeneração em no mínimo 50%
(cinqüenta por cento) da área total coberta por esta vegetação. (Destacamos)

Dos dispositivos transcritos acima se pode observar regras especiais aplicáveis a


realização de loteamentos e edificações urbanas em área onde há a presença de vegetação
nativa do Bioma Mata Atlântica.
O primeiro passo é verificar qual espécie de vegetação é permitida a supressão, uma
vez que as regras variam de acordo com ela. Se houver vegetação primária, a vedação de
intervenção é absoluta (art. 30, caput).
Se a vegetação for secundária a intervenção nela é, em regra permitida e deverá
obedecer a regras próprias, que variam conforme a época de aprovação do perímetro urbano.
Quando a vegetação secundária estiver no estágio avançado de regeneração e a sua
inclusão no perímetro urbano for posterior ao advento da Lei nº 11.428/06, a intervenção será

250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

vedada. Caso contrário, deverá haver a reserva do percentual de 50% da gleba com vegetação
nativa.
Tratando de vegetação secundária em estágio médio de regeneração a Lei nº 11.428/06
fixou restrição quanto ao tamanho da área a ser loteada, ou melhor, impossibilitou o
loteamento total da gleba, reservando percentual específico da área para manutenção da
vegetação nativa: 30% se a inserção da vegetação no perímetro urbano ocorreu antes do
advento da Lei de proteção da Mata Atlântica e 50% se posteriormente (§§1º e 2º do art. 31).
Verifica-se que não houve qualquer restrição quando a vegetação secundária estiver
em estágio inicial de regeneração, o que significa que a intervenção é plenamente permitida,
incidindo, somente, as normas urbanísticas relativas à realização do loteamento ou edificação
urbana. Ou seja, se não houver restrição na legislação municipal, a intervenção poderá ocorrer
sem maiores problemas. O que pode ocorrer é a destinação da área com vegetação secundária
em estágio inicial de regeneração como área verde do loteamento, de modo a compatibilizar a
sua proteção. Porém, o percentual da gleba a ser reservado dependerá da legislação municipal,
o qual, em geral, possui patamares bem inferiores àqueles estabelecidos na Lei nº 11.428/06
(30% e 50%).
Mesmo nos estágios avançados e médios de regeneração da vegetação secundária
poderia o legislador ter criado regras mais rígidas, impedindo a expansão urbana nas áreas em
que ainda existem fragmentos do Bioma Mata Atlântica.
Uma posição mais protetiva mostra-se necessária diante do grau de devastação do
bioma e da sua vulnerabilidade aos riscos de extinção das suas espécies, da sua degradação e
total extinção.
A vedação quanto à intervenção nas áreas com vegetação nativa incorporadas ao
perímetro urbano após a vigência da Lei nº 11.428/06 poderia ser total, impedindo o avanço
da zona urbana sobre estas áreas e viabilizando a recuperação daquelas que estão nos
primeiros estágios de regeneração – inicial e médio.
Neste aspecto convém ressaltar as novas regras para a ampliação do perímetro urbano
trazidas pela Lei nº 12.608/12. Esta Lei alterou o Estatuto da Cidade incluindo o art. 42-B que
determina a criação de projeto específico para a ampliação do perímetro urbano, contendo,
dentre outras matérias, a definição de diretrizes e instrumentos específicos para proteção do
patrimônio ambiental, histórico e cultural. Referida lei procurou evitar os processos
desordenados de expansão urbana e os seus efeitos maléficos para toda a cidade. Diante disso,
o projeto específico de ampliação do perímetro pode contemplar mecanismos para a proteção

251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

e conservação da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica inseridas no seu campo de


abrangência, o que ficará a cargo dos municípios.
Este é um importante instrumento que, embora não previsto no regime jurídico
especial de proteção da Mata Atlântica, pode contribuir, sobremaneira, para a conservação das
áreas ainda restantes do bioma. No projeto específico pode a municipalidade criar regras mais
rígidas do que aquelas previstas na Lei 11.428/06 no tocante à expansão urbana em direção às
áreas com vegetação nativa e outros mecanismos visando à recuperação e a integração dos
fragmentos do bioma existentes, bem como a compatibilização do desenvolvimento urbano
com a preservação ambiental.
Mais um aspecto a ser levantado diz respeito aos efeitos da aplicação automática das
regras do regime jurídico especial de proteção do Bioma Mata Atlântica. É preciso ficar
atento na aplicação das regras para implantação de loteamento ou edificação urbana, pois a
reserva do percentual mínimo para cada gleba (30% ou 50% conforme a época de ampliação
do perímetro urbano) pode levar a criação de pequenas ilhas, em áreas esparsas e isoladas,
prejudicando a regeneração da vegetação, a movimentação da fauna e a interação sistêmica.
Assim, pode significar a potencialização do risco de extinção de suas espécies e,
consequentemente, do próprio bioma.
Por exemplo, a fauna de maior porte necessita de grandes áreas para se deslocar e
sobreviver em condições satisfatórias, sem afetar as relações de interdependência do meio
ambiente. Conjugar as áreas remanescentes de cada gleba em que haverá intervenção é uma
saída para se evitar que estas pequenas ilhas gerem uma perda para o bioma ou reduzam,
significativamente, a função ecológica destes espaços.
Outra questão é a compatibilização do empreendimento (loteamento ou edificação
urbana) com a conservação do bioma. A manutenção de parcela da gleba com vegetação
nativa precisa conciliar com o uso urbano que está conferindo à área loteada ou edificada, já
que os usos conferidos no entorno das áreas remanescentes do bioma poderão afetar a sua
preservação. Assim, o órgão ambiental competente deve analisar todas as condições do
projeto urbanístico, de forma a não tornar as regras dos artigos 30 e seguintes inócuas, com
nenhuma ou pouca eficácia.
A prioridade é a conservação da parcela restante do bioma, já que irrisório o seu
percentual em relação à sua formação original (aproximadamente 7%). Como será tratado no
item 6, incide os princípios da prevenção e da precaução, bem como o princípio do
desenvolvimento sustentável na aplicação de quaisquer regras do regime jurídico de proteção
do Bioma Mata Atlântica. Em outras palavras, a aplicação dos artigos 30 e seguintes da Lei nº

252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

11.428/06 não é automática; fica condicionada ao exame de conformidade com os


mandamentos dos princípios ambientais.
A simples aplicação dos artigos 30 e seguintes, sem uma análise dos efeitos da
intervenção pode gerar impactos que, acumulados, se transformariam em perdas irreversíveis.
Diante disso se defende uma análise ampliada dos impactos e não somente pontual e restrita à
área da intervenção, como será tratado no próximo item.
Além das regras específicas aplicáveis aos loteamentos e edificações urbanas,
importante destacar algumas das regras gerais de vedação de corte e supressão de vegetação
nativa do Bioma Mata Atlântica, previstas no art. 11 da Lei nº 11.428/06: quando presente
espécies da fauna de flora ameaçadas de extinção; quando formar corredores ecológicos e
quando localizar no entorno de unidade de conservação.
A respeito da primeira hipótese, imprescindível a realização de avaliação pelo órgão
ambiental competente para constatar a existência de espécies ameaçadas de extinção – da
flora e fauna – na fase inicial do licenciamento ambiental, pois a verificação positiva obsta o
prosseguimento do procedimento, diante da vedação legal. A menos que os órgãos ambientais
já disponham de informações detalhadas e atualizadas sobre as espécies presentes na área que
requer a supressão ou corte da vegetação. Se para a intervenção for necessária a elaboração do
Estudo de Impacto Ambiental – EIA, tal avaliação deverá ser incorporada a ele.
A compensação ambiental pela supressão ou corte da vegetação para fins de instalação
de loteamento urbano ou de qualquer outra atividade ou obra, prevista no art. 17 da Lei nº
11.428/057, é um importante instrumento a ser aplicado. Corresponde a uma contrapartida
pela geração do impacto ambiental, nos limites e condições toleradas pelo Direito e visa
neutralizar os efeitos negativos da intervenção permitida. Entretanto, esta neutralização
integral jamais será atingida, pois os resultados da compensação ambiental são limitados.

A compensação ambiental tem seu fundamento ético na consciência ecológica do que se


pretende fazer ou já se está fazendo, algo indevido; e dessa forma, providencia-se uma
troca. Tem aparência de transação: eu faço uma coisa – poluo, destruo ou desmato -,
mas dou outra coisa em troca. Não se pode disfarçar que o ato de compensar traz em si
um risco ambiental [...]. (MACHADO, 2010, p. 70)

7
A compensação ambiental está prevista no art. 17 da Lei nº 11.428/06:
“Art. 17. O corte ou a supressão de vegetação primária ou secundária nos estágios médio ou avançado de
regeneração do Bioma Mata Atlântica, autorizados por esta Lei, ficam condicionados à compensação ambiental,
na forma da destinação de área equivalente à extensão da área desmatada, com as mesmas características
ecológicas, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica, e, nos casos
previstos nos arts. 30 e 31, ambos desta Lei, em áreas localizadas no mesmo Município ou região
metropolitana.”

253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Como requisitos para a compensação ambiental, apresenta a Lei nº 11.428/06,


semelhante a outras legislações, que seja realizada na mesma bacia hidrográfica e,
preferencialmente, na mesma microbacia. Mas inova em relação a implantação dos
loteamento urbanos, acrescentando que a compensação, nestes casos, deve ocorrer no mesmo
município ou região metropolitana, se for o caso.
Todavia, a possibilidade da compensação ambiental não pode ser utilizada como um
motivo para permitir a intervenção no Bioma Mata Atlântica. Todas as hipóteses de
intervenção (utilidade pública, interesse social, loteamento ou edificação urbana) possuem
requisitos específicos para a sua admissão, sujeitos a verificação em procedimento próprio. A
compensação ambiental é, na verdade, um ônus que recai sobre o empreendedor pela
intervenção e não um “passe” para realizá-la.
Desta forma, resta evidente as limitações da ocupação e uso para fins urbanos da área
que esteja na faixa delimitada como Mata Atlântica, de modo a compatibilizar o
desenvolvimento urbano com a proteção do meio ambiente natural.

5 A necessidade de realização do Estudo de Impacto Ambiental para intervenção no


Bioma Mata Atlântica

O Estudo de Impacto Ambiental –EIA é o instrumento adequado para se verificar,


previamente, as dimensões e os efeitos do impacto ambiental de determinada intervenção no
Bioma Mata Atlântica.
O EIA subsidia a tomada de decisão no processo de licenciamento ambiental e
contribui para a definição das medidas compensatórias e mitigadoras, caso admitida a
intervenção. Está previsto no inciso IV do §1º do art. 225 da Constituição da República
Federativa do Brasil:

Art. 225 [...]

§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

[...]

IV- exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente


causadora de significativa degradação ambiental do meio ambiente, estudo prévio de
impacto ambiental, a que se dará publicidade.

254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Sobre a realização do EIA, prevê a Lei nº 11.428/06 a obrigatoriedade quando houver


vegetação primária8, sem ressalvas, e nos demais casos quando a obra ou atividade for
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, a teor do disposto no
art. 15 da Lei nº 11.428/069.
Este dispositivo deve ser interpretado restritivamente, pois, diante do quadro geral de
devastação da Mata Atlântica, a intervenção humana nessa área protegida caracteriza a
geração de um dano ambiental que pode mostrar-se irreparável. Por outro lado, o EIA é a
medida que certificará a ausência de risco de grandes proporções, como, por exemplo, a
inexistência de espécies ameaçadas de extinção. Isto significa que o afastamento do EIA
somente pode ser admitido em casos de menor complexidade e proporção.
Para Machado, “a possibilidade de ‘significativa degradação do meio ambiente’ já é
presumida pela própria lei, não cabendo ao gestor ambiental indagar se há ou não
probabilidade de dano ambiental” (2010, p. 816).
Estabelece, ainda, a Convenção da Diversidade Biológica, assinada durante a
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco 92),
incorporada ao nosso ordenamento jurídico através do Decreto Legislativo nº 2, de 1994, o
seguinte:

Art. 14 - Avaliação de Impacto e Minimização de Impactos Negativos


Cada Parte Contratante, na medida do possível e conforme o caso, deve:
a) Estabelecer procedimentos adequados que exijam a avaliação de impacto
ambiental de seus projetos propostos que possam ter sensíveis efeitos negativos na
diversidade biológica, a fim de evitar ou minimizar tais efeitos e, conforme o caso,
permitir a participação pública nesses procedimentos.

Então, considerando-se os efeitos subsequentes da urbanização, o valor ambiental do


Bioma Mata Atlântica e o seu quadro atual de devastação, a presunção de “significativo
impacto ambiental” deve ser estendida também para a vegetação secundária, sendo afastada

8
A regra está no seguinte dispositivo da Lei nº 11.428/06:
“Art. 20. O corte e a supressão da vegetação primária do Bioma Mata Atlântica somente serão autorizados em
caráter excepcional, quando necessários à realização de obras, projetos ou atividades de utilidade pública,
pesquisas científicas e práticas preservacionistas.
Parágrafo único. O corte e a supressão de vegetação, no caso de utilidade pública, obedecerão ao disposto no art.
14 desta Lei, além da realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental -
EIA/RIMA.”
9
Prevê o art. 15 da Lei nº 11.428/06:
“Art. 15. Na hipótese de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, o órgão competente exigirá a elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, ao qual se dará
publicidade, assegurada a participação pública.”

255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

somente nos casos em que, de plano, fica verificado ser a intervenção “inofensiva”, seja pela
insignificância da intervenção, seja pela situação da vegetação que ali se encontra.
Qualquer intervenção na Mata Atlântica mostra-se, a priori, como causadora de
significativo impacto, pois o estado atual da sua degradação ambiental – tanto qualitativo
quanto quantitativo – coloca este bioma em situação de risco. Assim, qualquer nova
intervenção pode agravar esta situação, aumentando a degradação dos seus recursos naturais
ou mesmo levando à extinção de espécies já ameaçadas.
Esse quadro também exige uma ampla análise dos impactos ambientais da
intervenção. Ou seja, a análise não pode ficar adstrita à área de ocorrência da intervenção e
seu entorno, pois os impactos ali gerados trazem efeitos para todo o bioma. Assim, deve ser
feita uma análise mais abrangente das que comumente ocorrem nos demais processos de
licenciamento ambiental, considerando-se a área total de reserva do bioma, no âmbito
nacional, a características da área a sofrer intervenção e a sua correlação com as demais áreas
preservadas (ex. espécies que abriga e percentual em relação à totalidade do bioma;
conectividade com outras áreas do bioma).
Procedimentos de intervenção considerados de baixo ou médio impacto pelas
legislações ambientais (federais, estaduais e municipais) poderão receber outra qualificação
quando realizados no Bioma Mata Atlântica, em razão da sua alta vulnerabilidade atual.
Considerando-se os conteúdos mandamentais dos princípios da prevenção e
precaução, deve haver, nesses casos, uma maior cautela, evitando-se resultados negativos e
imprevisíveis por intervenções mal examinadas.
Portanto, o pressuposto exigido pela Constituição – “significativo impacto ambiental”
– para realização do EIA depende das condições de realização de cada empreendimento ou
atividade, mas também das características da área onde se instalará.
O EIA é o instrumento adequado para se fazer uma análise holística do impacto,
definindo as interferências diretas e indiretas de qualquer intervenção, a curto e longo prazo,
em um campo reduzido ou ampliado.
Posto isto, somente em casos excepcionais, de constatação imediata do seu baixo
impacto é que os órgãos ambientais deverão afastar a realização do EIA. A aplicação deste
instrumento passa a ser a regra geral e não a exceção, mesmo para as áreas que tenham
vegetação secundária.

256
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

6 A função dos princípios ambientais na aplicação do regime jurídico de proteção do


Bioma Mata Atlântica

A problemática ambiental exigiu a formulação de princípios jurídicos adequados com


a sua complexidade e peculiaridades. Entre eles, destaca-se o princípio da prevenção e da
precaução que visam afastar a ocorrência dos impactos ambientais, sejam eles certos ou
incertos. Baseiam-se no fato de que a lesão ao bem ambiental gera danos de dimensões
graves, quando não irreversíveis, marcados pela dificuldade de viabilização da sua reparação
plena. Daí resulta que os riscos ambientais necessitam ser previamente afastados, através da
adoção de medidas acautelatórias e, quando justificável a assunção de tais riscos, pela prática
de medidas compensatórias e mitigadoras.
O critério de diferenciação destes dois princípios é a natureza do risco. A precaução
incide quando os riscos são ainda incertos cientificamente. Já os riscos conhecidos são
inseridos no conteúdo conceitual do princípio da prevenção.
Para Marques (2010, p. 83), o princípio da precaução situa-se no campo da
probabilidade, pois indica desconhecimento a respeito da consequência de uma determinada
atividade, enquanto o princípio da prevenção procura “evitar ou minimizar impactos já
conhecidos”.
O Estudo de Impacto Ambiental – EIA, realizado no bojo do licenciamento ambiental,
é instrumento de aplicação dos princípios da prevenção e da precaução, na medida em que
visa analisar os possíveis impactos que determinada atividade ou empreendimento pode
causar, a pertinência e a torelabilidade da adoção dos riscos, o custo-benefício e, ainda, como
já dito, a fixação de medidas de compensação e mitigação dos impactos ambientais, evitando-
se ao máximo os efeitos negativos.
Considerando-se a extrema relevância do Bioma da Mata Atlântica, a sua qualificação
jurídica como patrimônio nacional e as significativas perdas que já afetaram este bioma,
imprescindível se torna a realização do EIA, em atendimento aos mandamentos do princípio
da prevenção e da precaução.
O desenvolvimento sustentável está ligado ao princípio da prevenção, mas não
somente, é princípio que permeia todo o tratamento jurídico do meio ambiente, refletindo,
inclusive, nos demais ramos do direito, impondo-lhes a adoção da sustentabilidade como guia
geral na interpretação e aplicação de suas normas.
Em linhas gerais, o desenvolvimento sustentável corresponde a adoção de um modelo
de desenvolvimento que conjugue os anseios de desenvolvimento econômico com a proteção

257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do meio ambiente, de maneira a garantir a continuidade deste desenvolvimento e sem


prejudicar os interesses das gerações futuras.
Para Sampaio o desenvolvimento sustentável é tido como prima principium ambiental
e “consiste no uso racional e equilibrado dos recursos naturais, de forma a atender às
necessidades das gerações presentes, sem prejudicar o seu emprego pelas gerações futuras”
(2003, p. 47).
Já Canotilho defende a sua classificação como princípio estruturante do Estado
Democrático de Direito.

Tal como outros princípios estruturantes do Estado Constitucional – democracia,


liberdade, juridicidade, igualdade – o princípio da sustentabilidade é um princípio
aberto carecido de concretização conformadora e que não transporta soluções prontas,
vivendo de ponderações e de decisões problemáticas. É possível, porém, recortar, desde
logo, o imperativo categórico que está na gênese do princípio da sustentabilidade e, se
se preferir, da evolução sustentável: os humanos devem organizar os seus
comportamentos e ações de forma a não viverem: (i) à custa da natureza; (ii) à custa de
outros seres humanos; (iii) à custa de outras nações; (iiii) à custa de outras gerações. Em
termos mais jurídico-políticos, dir-se-á que o princípio da sustentabilidade transporta
três dimensões básicas: (1) a sustentabilidade interestatal, impondo a equidade entre
países pobres e países ricos; (2) a sustentabilidade geracional que aponta para a
equidade entre diferentes grupos etários da mesma geração (exemplo: jovem e velho);
(3) a sustentabilidade intergeracional impositiva da equidade entre pessoas vivas no
presente e pessoas que nascerão no futuro. (Destaques do Autor) (2011, p. 8-9)

Assim, o mandamento constitucional do art. 225 espelha o princípio do


desenvolvimento sustentável, que consiste justamente na busca incansável do “equilíbrio”
entre o crescimento econômico e a proteção do meio ambiente, com o fim maior de garantir
ao ser humano a fruição de uma vida com qualidade – hoje e no futuro.
O princípio do desenvolvimento sustentável traz ainda consigo profunda conexão com
o princípio da solidariedade intergeracional, que possui como conteúdo a obrigação das
gerações atuais de repassarem às gerações futuras o Planeta em condições ambientais que não
impeçam a satisfação das suas necessidades e interesses.
Para Weiss (2012, p. 22) significa conceber a geração atual como fiduciária do
patrimônio herdado pelos seus antepassados, competindo-lhe dar continuidade a esta
transmissão, nas mesmas condições, de maneira a permitir a perpetuação da espécie humana
na Terra e sem subtrair-lhes a sua liberdade e dignidade.
Os danos pela perda da biodiversidade não são possíveis de serem identificados e
delimitados totalmente pela ciência nos dias atuais, situação que ao lado das perdas já
concretizadas deve fazer incidir o princípio da precaução e, consequentemente, a
obrigatoriedade de realização do EIA, ainda que a atividade pretendida – implantação de

258
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

loteamento ou edificação urbana –, em qualquer dimensão, não esteja presente no rol das
normas regulamentares do licenciamento, pois nesse caso recai a norma do inciso IV, §1º, art.
225 da Constituição da República, que determina a sua realização quando houver significativo
ambiental. Isto quer dizer que a ausência do EIA/RIMA violaria, desta forma, a própria norma
constitucional.
Embora não seja possível mensurar com exatidão o valor da biodiversidade, é possível
afirmar que qualquer perda tem relevância, pois representa um decréscimo na qualidade
ambiental, além de afetar os processos ecológicos, com efeitos concatenados e de carga
negativa. De acordo com o resultado conclusivo de pesquisa científica divulgada no Jornal
Estado de Minas, no dia 04/05/2012, a “redução da variedade das espécies causa impactos tão
graves ao meio ambiente quanto a poluição e as mudanças climáticas” 10 (Caderno Ciência, p.
20).
A permissão da realização de loteamento ou edificação urbana sem a realização do
EIA, em local com a presença de vegetação nativa da Mata Atlântica, também afronta o
princípio da prevenção, do desenvolvimento sustentável, e da solidariedade intergeracional,
frente aos graves e irreversíveis riscos gerados, consubstanciados na perda definitiva de
relevante biodiversidade do território nacional.
Tais princípios e, especialmente o princípio da prevenção, deverão orientar a tomada
de decisão quanto à autorização da intervenção, ou seja, a partir dos seus mandamentos é que
se estabelecerá os limites da intervenção e as condições de sua realização, podendo ensejar,
mesmo havendo previsão legal, a negativa da intervenção, se o dever geral de proteção e
cautela assim o exigir em razão da situação de risco constatada.
Vale ainda frisar que os casos de intervenção na Mata Atlântica ocorrerão,
preferencialmente, nas áreas substancialmente alteradas ou degradadas, nos termos do art. 12
da Lei nº 11.428/06, seguindo a lógica preventiva do direito ambiental. Portanto, em se
tratando de loteamentos ou edificações urbanas, a área a ser parcelada deverá atingir a parte
da gleba em que apresentar piores condições de conservação da vegetação nativa.
Disto resulta que a não geração de impactos ao bioma é o ideal a ser alcançado e,
quando realmente necessária a intervenção, ao ser realizada, conforme as exigências legais,

10
Diz o Jornal que o resultado da pesquisa foi divulgado na revista científica Nature e que os pesquisadores
analisam 192 estudos anteriores sobre todas as regiões do mundo, incluindo oceanos e ecossistemas de água
doce. “O resultado da análise mostra que, em áreas onde ocorre a perda de 21% a 40% da variedade de espécies
– seja por desmatamento, caça predatória, por exemplo – há redução na produtividade semelhante à sentida por
causa das mudanças climáticas ou pela poluição ambiental. E diminuições mais altas, entre 41% e 60%, são tão
nocivas quanto a acidificação ou a elevação intensa na produção de dióxido de carbono (CO2).

259
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

deverá se pautar pela geração do menor impacto possível. Ocorrendo o impacto, incide a
compensação como uma forma de atenuar a geração do impacto.
Considerando-se os conteúdos dos princípios ambientais deve, sobretudo, estabelecer
prioridade quanto à conservação do patrimônio que ainda resta e regeneração das áreas
degradadas, de modo a aumentar o percentual existente do bioma para patamares mais
aceitáveis e seguros.
Posto isto, pode-se afirmar que os princípios ambientais possuem a importante função
de orientar a interpretação e a aplicação das regras do regime jurídico de proteção do Bioma
Mata Atlântica, ditando os limites de tolerabilidade das intervenções e indicando os fins a
serem alcançados.

7 O desenvolvimento urbano e a proteção do Bioma Mata Atlântica

Como dito alhures, a ampla proteção do meio ambiente consiste na conjugação


equilibrada de todos os seus elementos – natural, artificial e cultural –, ou seja, não pode
revelar a sobreposição ou supervalorização de um em detrimento do outro. A configuração do
meio ambiente artificial se vincula à manutenção da qualidade do meio ambiente natural e
cultural. As manifestações culturais, seguindo a mesma lógica, não podem ser exercidas em
desrespeito ao meio ambiente natural. Isto significa que o equilíbrio se verifica interna e
externamente a cada elemento formador da concepção ampla e geral de meio ambiente.
Coloca Silva que “as grandes obras urbanas constituem sérios impactos ambientais,
daí por que a questão ambiental tem que ser, hoje, um pressuposto orientador da disciplina
urbanística do território” (2010, p. 108).
Então, o desenvolvimento urbano não pode se concretizar a qualquer custo, sob pena
de violar a norma constitucional que resguarda o “equilíbrio” ecológico.
Nessa perspectiva, as diretrizes da política urbana trazidas pelo Estatuto da Cidade
preconizam que o desenvolvimento urbano não pode estar apartado da proteção do meio
ambiente natural.

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes:
[...]

IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da


população e das atividades econômicas do Município é do território sob sua área de
influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus
efeitos negativos sobre o meio ambiente;

260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

[...]

XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural construído, do


patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.

A Lei nº 11.428 também prevê, especificadamente:

Art. 7o A proteção e a utilização do Bioma Mata Atlântica far-se-ão dentro de condições


que assegurem:
[...]
IV - o disciplinamento da ocupação rural e urbana, de forma a harmonizar o
crescimento econômico com a manutenção do equilíbrio ecológico.

Desta forma, a ordenação das cidades precisa considerar as características ambientais


do seu território e dos novos espaços que se presente urbanizar, estabelecendo os limites e as
condições da intervenção humana nas áreas que possuem atributos ambientais relevantes.
Os instrumentos jurídicos da política urbana possuem a função de viabilizar a
adequada ordenação do território e as suas correções necessárias, além de promover a
proteção dos bens ambientais e culturais.
A proteção ambiental se intensifica com a conjugação dos instrumentos urbanísticos e
ambientais. Entre eles, destaca-se o planejamento urbano e o zoneamento ambiental,
previstos, respectivamente, no inciso II do art. 4º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001)
e inciso II do art. 9º da Lei nº 6.938/81. O planejamento urbano possibilita a formação das
cidades sustentáveis, almejadas no Estatuto da Cidade, pois se concilia a conformação
desejável com as peculiaridades e a vocação de cada área específica, definindo a forma e os
espaços para a destinação de cada função social que a cidade desempenha.
Nas palavras de Marques, o “planejamento projeta o futuro” (2010, p. 188). É, ainda,
com o planejamento que se escolhe quais dos variados instrumentos urbanísticos serão
aplicados no território municipal e se define as condições de suas aplicações, de acordo com a
realidade diagnosticada e a projetada.
O zoneamento ambiental impede a instalação de obras ou atividades em desacordo
com o limite de tolerabilidade de uma determinada área, tendo em vista as suas características
naturais.

O zoneamento ambiental é um tema que se encontra relacionado ao aludido princípio


[desenvolvimento sustentável] na medida em que objetiva disciplinar de que forma será
compatibilizado o desenvolvimento industrial, as zonas de conservação da vida silvestre
e a própria habitação do homem, tendo em vista sempre a manutenção de uma vida com
qualidade às presentes e futuras gerações (art. 225, CF). (FIORILLO, 2008, p. 83)

261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O zoneamento ambiental, por sua vez, precisa, necessariamente, se conjugar com o


zoneamento urbanístico, o qual, verificando os atributos ambientais de determinada área
refletidos no zoneamento ambiental, fixará parâmetros urbanísticos adequados à conjugação
entre o desenvolvimento urbano e a proteção do meio ambiente, afastando a existência de
graves conflitos e a degradação ambiental, seja do meio natural, seja da própria cidade, eis
que se afetam mutuamente. Como parâmetros urbanísticos, por exemplo, tem-se a
possibilidade de reserva de maior percentual da gleba para a criação de áreas verdes, o
dimensionamento diferenciado dos lotes, restrições de usos, além da fixação de critérios
específicos relacionados às edificações, tais como, coeficientes de aproveitamento 11, recuos12,
altura, entre outros, analisados pelo legislador quando da criação do Plano Diretor e das leis
de parcelamento, uso e ocupação do solo.

O zoneamento de uso do solo constitui um dos principais instrumentos do planejamento


urbanístico municipal. Configura-se como um plano urbanístico especial (plano de
zoneamento) destinado a realizar na prática as diretrizes de uso estabelecidas no plano
urbanístico geral (plano diretor).
Nesse sentido, o zoneamento pode ser entendido como um procedimento urbanístico
destinado a fixar os usos adequados para as diversas áreas do solo municipal. (SILVA,
2008, p.241) (Destaques do Autor)

Assim, os instrumentos urbanísticos, em especial os destacados, são ferramentas


importantes para prevenir, coibir e regulamentar as intervenções em área urbana dotada de
especial valor ambiental, e para alcançar o desenvolvimento sustentável com êxito.
Na condução da política urbana, pode o Município utilizar os instrumentos
urbanísticos para conjugar o uso urbano de determinada área com a proteção do Bioma Mata
Atlântica, sem, contudo, afastar as regras do regime jurídico especial definidas na Lei nº
11.428/06, muito pelo contrário, complementando-as de maneira a harmonizar os dois
objetivos. Ou seja, ao lado da regra de reserva de um percentual mínimo de vegetação nativa
do Bioma Mata Atlântica (arts. 30 e seguintes da Lei nº 11.428/06), o Município pode criar
outros mecanismos que irão fortalecer a sua proteção e impedir, como tratado no item 4, que
estas reservas não se tornem pequenas ilhas sem maiores contribuições para a conservação do
bioma e sua diversidade biológica. Por exemplo, pode estabelecer um zoneamento próprio

11
SILVA define coeficiente de aproveitamento como a relação existente entre a área total da construção e a área
do lote (2008, p. 255).
12
“Os recuos ou afastamentos são distâncias medidas entre o limite externo na projeção horizontal da edificação
e a divisa do lote. Há os recuos de frente, de fundos e laterais.” (SILVA, 2008, p. 256) (Destaques do Autor)

262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

para a zona urbana com presença de vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, com
parâmetros de parcelamento, uso e ocupação do solo diferenciados e com maior rigidez, de
forma a impedir a geração de impactos, diretos e indiretos na área preservada, ou restringir
determinados usos ou dimensões das edificações.
Nesta linha, destaca-se a previsão da Lei nº 11.428/06 a respeito da criação do Plano
Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (art. 38), que poderá ser
financiada com o Fundo de Restauração do Bioma Mata Atlântica. É outro importante
instrumento que permite minimizar a situação de risco do bioma e propiciar resultados
satisfatórios quanto à sua regeneração no âmbito municipal.
O Decreto nº 6.660/08, que regulamenta os dispositivos da Lei nº 11.428/06, relaciona
o conteúdo mínimo do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica no
seu art. 43, que consiste no diagnóstico da vegetação nativa, indicação dos principais vetores
de desmatamento ou destruição da vegetação nativa, indicação de áreas prioritárias para
conservação e recuperação da vegetação nativa e indicações de ações preventivas aos
desmatamentos ou destruição da vegetação nativa e utilização sustentável da Mata Atlântica
no Município.
O Plano viabiliza um desenvolvimento urbano harmonioso com a proteção deste
importante patrimônio ambiental que é a Mata Atlântica. O Plano Diretor, em conjunto com o
Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica podem estabelecer
diretrizes específicas para a expansão urbana, a ocupação e uso urbano do território
municipal, objetivando resguardar as áreas com vegetação nativa deste bioma e, ainda, definir
programas ou projetos para a regeneração de áreas degradadas e aumento a cobertura vegetal
da Mata Atlântica no território municipal.
Portanto, a aplicação conjugada dos diversos instrumentos jurídicos do direito
ambiental e do direito urbanístico propicia e acelera o alcance do desenvolvimento
sustentável.

8 Considerações finais

O loteamento é atividade que altera, sobremaneira, as condições do meio ambiente


natural em virtude das intensas intervenções antrópicas que desencadeia através da atração de
uma complexa rede de infraestrutura urbana, formada pelo sistema viário, de transporte, de
saneamento básico, de fornecimento de energia elétrica e de serviços (como saúde, educação,
comércio, etc.), exigindo a regulação desta atividade pelo Estado, a favor da adequada

263
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ordenação do território, do meio ambiente e da coletividade, de forma a oferecer aos


indivíduos uma vida com qualidade.
As intervenções no meio ambiente natural fragilizam, ainda mais, um ecossistema
ameaçado, potencializando a sua vulnerabilidade e gerando um alto risco ambiental.
Esta situação põe em xeque o interesse das gerações futuras em receberem o meio
ambiente com qualidade, já que a perda da biodiversidade revela um decréscimo significativo
do estado do meio natural, afetando a sua integridade.
Portanto, os ditames do desenvolvimento sustentável devem guiar a ordenação do
território urbano, na medida em que possui como fim último o bem-estar social. A utilização
conjugada dos instrumentos jurídicos ambientais e urbanísticos é o caminho para o alcance da
sustentabilidade no meio ambiente urbano, permitindo a fruição contínua da qualidade de
vida.
A Mata Atlântica, como patrimônio nacional brasileiro e como bioma ameaçado,
necessitava de um regime jurídico próprio que viabilize a sua conservação e adequada
utilização, sem comprometer os seus atributos ambientais, como trouxe a Lei nº 11.428/06.
Todavia, seus dispositivos devem ser interpretados restritivamente pelos aplicadores das suas
normas, em especial àquelas relacionadas ao EIA/RIMA, em atendimento aos princípios da
prevenção, da precaução, do desenvolvimento sustentável e da solidariedade intergeracional.
Em relação às regras do regime jurídico aplicável aos loteamentos e edificações
urbanas a sua aplicação não se encerra com a simples reserva de percentual de vegetação
nativa. É necessário que haja uma análise abrangente da intervenção, da área impactada e da
sua correlação com o estado atual do bioma, a partir de um amplo e profundo diagnóstico. A
cautela dos órgãos ambientais deve ser intensificada em razão do valor inestimável e
insubstituível do Bioma Mata Atlântica – o que abrange a sua rica biodiversidade e recursos
ambientais –, da sua situação de vulnerabilidade e do risco a que está sujeito.
A conservação e preservação do bioma é um enorme desafio, principalmente diante da
sua localização geográfica, que coincide com as áreas mais adensadas do território brasileiro e
com o centro das principais atividades econômicas desenvolvidas no país.
Entretanto, é primordial não só a conservação dos fragmentos do bioma ainda
existente, mas a elevação do seu percentual para patamares que o retirem da situação de risco,
com a regeneração de novas áreas.
E para atingir este objetivo as intervenções devem ser autorizadas em casos
excepcionalíssimos, pois permitir a realização de loteamentos e edificações urbanas sem uma
análise aprofundada dos seus impactos e sem o estabelecimento de mecanismos que garantam

264
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

a eficácia da proteção do Bioma Mata Atlântica poderá resultar não em aumento do


percentual ainda existente, mas na sua progressiva diminuição. Ou seja, é necessário se ter
cautela, pois as exceções (hipóteses de intervenção) podem se tornar a regra.
Neste sentido, o legislador poderia ter sido mais rigoroso ao fixar as regras para a
intervenção nos casos de realização de loteamentos e edificações urbanas. O que se criou,
basicamente, foi a imposição da manutenção de um determinado percentual da gleba com
vegetação secundária, variável conforme o estágio de regeneração e a data da sua inserção da
área no perímetro urbano. A vedação total somente ocorreu para as glebas com presença de
vegetação primária.
Contudo, não criou o legislador outros mecanismos ou regras para viabilizar uma
expansão urbana ordenada e sustentável, de modo a impedir a continuidade da devastação da
Mata Atlântica.
Mas é preciso atentar para o fato de que a realização de loteamentos e edificações
urbanas não possuem maior relevância se comparadas com a necessidade de proteção deste
importante patrimônio ambiental que é a Mata Atlântica. Ademais, podem ser buscadas outras
alternativas locacionais para a realização de tais empreendimentos que não interfiram na sua
conservação ou mesmo a ocupação mais racional das áreas já urbanizadas, evitando a criação
de pequenas ilhas com reminiscência da vegetação nativa do bioma.
O aplicador das regras do regime jurídico de proteção deve estar consciente de que o
objetivo primeiro da sua criação é a conservação do Bioma Mata Atlântica, a promoção do
desenvolvimento sustentável, a salvaguarda da biodiversidade e a recuperação deste
patrimônio ambiental, como previsto nos arts. 6º, 7º e 10 da Lei nº 11.428/06.
Assim, interpretar e aplicar as regras do regime jurídico de proteção do Bioma Mata
Atlântica exige um exame sistemático do conteúdo normativo da Lei nº 11.428/06, do art. 225
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, sobretudo, dos princípios
ambientais, de forma a atribuir-lhes eficácia.

265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

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267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

CONFISCO DE TERRAS: CONSIDERAÇÕES ACERCA DE SUA ATUAL


CONFIGURAÇÃO NO DIREITO AGROAMBIENTAL BRASILEIRO
Guilherme Martins Teixeira Borges1

FORFEITURE OF LANDS: CONSIDERATIONS ABOUT YOUR SETTING IN


AGROENVIRONMENTAL BRAZILIAN LAW

RESUMO
Este trabalho científico visa refletir acerca do instituto do confisco de terras
estabelecido no art. 243, da Constituição Federal Brasileira de 1988. O confisco de terras,
também conhecido como confisco agrário, foi uma inovação no ordenamento pátrio após
1988, vez que consolidou, de forma inédita no país, a perda da propriedade rural em favor do
Poder Público sem a possibilidade de o proprietário receber qualquer tipo de indenização por
parte do Estado. Portanto, será neste enfoque de análise que o presente estudo se
desenvolverá, abordando-o em sua atual configuração jurídica agroambiental.
Assim, concentra-se o presente artigo em uma releitura do instituto do confisco de
terras em relação ao direito fundamental de propriedade e ao direito social de acesso à terra.

PALAVRAS-CHAVE: Confisco de Terras; Direito Agroambiental; Constituição Federal de


1988; Direito Social; Acesso à terra.

ABSTRACT
This work aims to reflect on the scientific of the confiscation of land established in
art. 243, the Brazilian Constitution of 1988. The confiscation of land, also known as agrarian
confiscation, was an innovation in brazil's laws after 1988, consolidating as unprecedented in
the country, the loss of rural property in favor of the government without the possibility of the
owner receive any compensation from the State. Therefore, is this approach that the analysis
of this study will be developed: it in its current configuration constitutional agrarian legal.
Thus, the present article revisits the land confiscation institute in relation to the
fundamental right to property and the social right of access to land.

KYE-WORDS: Land Confiscation; Law Agroenvironmental; Constitution of 1988; Social


Rights; Access land.
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás e mestrando em Direito Agrário também pela UFG.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1. INTRODUÇÃO

Com o advento da Constituição Federal de 1988 a celeuma entre o direito de


propriedade e o direito de acesso à terra ganhou novas configurações. O “velho” Direito
Agrário Brasileiro, ora nascido nos prelúdios do Período Colonial com as sesmarias,
consolidando-se após 1850 com a Lei de Terras e, posteriormente, com o Estatuto da Terra
(Lei nº 4.504/64), cedeu lugar a um “novo” Direito Agrário que, sob o manto da Constituição
Democrática de 1988, submete o direito de propriedade, em especial a propriedade rural, ao
cumprimento da função social.

Portanto, a matriz do atual Direito Agrário Brasileiro está vinculada


constitucionalmente a princípios e regras que não mais assumem uma feição individual
protecionista, mas sim uma profunda preocupação com os interesses coletivos, com a real
afirmação da igualdade entre os cidadãos e a relativização da autonomia privada em prol da
função social como princípio constitucionalmente norteador dos diversos ramos jurídicos.

De conseguinte, é dentro deste contexto que se insere o Direito Agrário após 1988,
um Direito Agrário Constitucional que passa a contemplar inúmeros novos campos de estudos
na seara agrário-constitucional. Sendo que, dentro destes diversos campos de pesquisa
científica, optou-se, neste estudo, pela análise de um dos polêmicos institutos agrário-
constitucionais surgidos após 1988, qual seja o confisco de terras.

Assim, delineia-se o objetivo deste estudo: analisar o atual panorama do instituto do


confisco agrário em seus diversos aspectos agrário-constitucionais, como por exemplo,
origem histórica, natureza jurídica e, especialmente, a compreensão atual do conceito de
“glebas de terras” para fins de confiscação agrária estabelecido na Constituição Federal de
1988 e nas leis agrárias especiais.

2. O CONFISCO

Confisco ou confiscação2 – do latim confiscato, que significa “juntar-se ao tesouro” –


2 A abordagem de confisco proposta neste trabalho científico não se confunde com aquela existente no campo
do Direito Tributário. Embora os conceitos sejam similares, o contexto pelo qual o confisco se insere no
âmbito constitucional-agrário é distinto daquele compreendido no campo constitucional-tributário, que não
será alvo do presente estudo. Na seara tributarista, vigora o Princípio do não Confisco que, em síntese, veda a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

é a tomada da propriedade de uma dada pessoa (física ou jurídica), por parte de uma
autoridade pública, sem que haja qualquer contraprestação quanto à perda da coisa em favor
do antigo proprietário. Não há, portanto, indenização em prol daquele que, por ventura, tenha
algum bem confiscado pelo Poder Público.

Assim, o confisco está intimamente vinculado à existência de algum ente que assuma
a função de autoridade pública soberana e com poder de governo sobre os governados, vez
que somente a autoridade pública poderá exercer a confiscação de bens. Entre particulares,
portanto, não há confisco e sim a ocorrência de outros institutos jurídicos.

Um particular, quer pessoa física quer jurídica, e que não possua poder público de
governo, caso se apodere do bem de outrem, tomando-o para si sem nenhuma motivação
jurídica a justificar tal ato, não está confiscando o bem de alguém, mas sim violando o direito
de propriedade deste. O confisco, embora pareça expressar uma violação ao direito de
propriedade, é um instituto juridicamente legitimado por uma Constituição, por uma lei, ou
mesmo pelo costume, a depender do Estado em que se analisa este instituto, e exclusivamente
exercido pelo ente público detentor do poder soberano de governo sobre seu povo. Logo,
entre entes privados ou mesmo públicos que não possuam poderio de mando, o apoderamento
de bens alheios poderá configurar, conforme o caso, crimes contra o patrimônio, esbulho
possessório dentre outras violações ilegítimas do direito de propriedade.

No caso brasileiro, o ente público com poder soberano de governo que poderá
exercer a confiscação de terras é o Poder Executivo Federal representado pela União,
consoante a norma prescrita no art. 243, da Constituição Federal e a Lei Federal nº 8.257/91
(Lei do Confisco de Terras).

Conforme dito anteriormente, o confisco recai sobre o direito de propriedade,


englobando, assim, os bens em suas diversas categorias jurídicas (móveis, imóveis, duráveis,
não duráveis, infungíveis, fungíveis e etc.).

O direito brasileiro contempla o instituto do confisco somente nos campos


constitucional-agrário e penal. Neste último caso, o confisco pode possuir natureza de efeito
da condenação penal ou de medida cautelar assecuratória, como por exemplo, a apreensão e
perdimento de instrumentos, produtos de crimes ou artigos de consumo fabricados ou

criação de imposto confiscatório, qual seja, aquele que absorve grande parte do valor da propriedade ou de
sua renda, configurando uma verdadeira confiscação do bem, à semelhança de uma expropriação
confiscatória de terras a qual será estudada no decorrer desta pesquisa.

270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

contrabandeados (art. 91, inciso II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal Brasileiro) 3.

O confisco penal não se trata de uma inovação jurídica advinda com a Constituição
de 1988. Desde o período do Brasil Colônia, quando vigoraram as Ordenações Manuelinas e
as Filipinas, que o confisco de bens oriundo de produtos de crimes já era previsto, embora
neste período mantivesse uma natureza mais ligada à concepção de pena a que de efeito da
condenação. As Ordenações Filipinas de 1603, por exemplo, já previam em seu Livro V penas
de confisco de bens inclusive para aqueles que portassem, usassem ou vendessem substâncias
tóxicas. Posteriormente, com o Código Criminal de 1830 e os demais Códigos Penais do
período Republicano, o confisco penal continuou existindo no ordenamento pátrio, porém não
mais como uma pena em si e sim como efeito da condenação4.

Quanto ao confisco de imóveis rurais, o ordenamento jurídico brasileiro o restringiu


no âmbito constitucional-agrário, especificamente naqueles casos de “glebas de terras” que se
destinaram à cultura de plantas psicotrópicas, consoante a dicção do artigo 243 da
Constituição Federal de 1988.

Todavia, à exceção do caso brasileiro o qual prevê o confisco de terras contemplando


um fim social a ser cumprindo – o acesso à terra promovido pela reforma agrária nas terras
confiscadas -, a confiscação de terras por autoridades públicas e/ou soberanas de governo não
é uma questão nova no direito.

Aludindo aos tempos bíblicos, MUNTHER5 revela o quanto antigo é o confisco de


terras na história da humanidade:

Confisco de terras não é um fenômeno novo. Na tradição bíblica, talvez nenhuma


outra história ilustra este abuso de poder por parte do “rei” no que diz respeito à
3 O confisco, como efeito da condenação, é a forma pela qual o Estado impede que instrumentos idôneos para
delinqüir caiam nas mãos de certas pessoas, ou que o produto do crime se torne enriquecimento ilícito.
Segundo o Código Penal, somente podem ser confiscados os instrumentos do crime que consistirem em
objetos cujo fabrico alienação, uso, porte ou detenção constitua ato ilícito. Não são confiscados, embora
possam ser apreendidos, os instrumentos que eventualmente foram utilizados para a prática do crime.
4 Para Cezar Roberto Bittencourt, o confisco como pena continua existindo no direito brasileiro sob a forma da
perda de bens e valores, tratando-se, em verdade, de uma “odiosa pena de confisco, que, de há muito, foi
prescrita pelo direito penal moderno" (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. 2ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2001). Doutra banda, Damásio de Jesus, filiando-se à previsão do art. 91, inciso II,
alíneas “a” e “b”, do Código Penal, esclarece que "não devemos confundir a perda de bens e valores como
pena (CP art.43, II) e o confisco (CP, art. 91). Este constitui efeito da condenação e atinge os instrumentos e o
produto do crime. Na pena alternativa, os bens e valores são de natureza e origem lícitas” (JESUS, Damásio
de. Penas alternativas: anotações à lei 9.714, de 25 de novembro de 1998. São Paulo: Saraiva, 1999).
5 MUNTHER, Isaac. Uma reflexão bíblica sobre o confisco de terras no tempo de Natal. Disponível em
<http://www.claudiocarvalhaes.com/blog/uma-reflexao-biblica-sobre-confisco-de-terras-tempo-de-natal-
isaac-munther/>, Acessado em 5/01/2013.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

terra do que a história do rei Acabe e vinha de Nabote (Livro dos Reis 1:21). Acabe,
rei do reino do norte, viu a vinha de Nabote, o jizreelita, e cobiçou a terra; presume-
se que ele acreditava ter o direito divino de pedir a Nabote que “vende-se” a terra
para ele (21:2). Nabote, por outro lado, rejeitou esta pretensão – com base em sua
crença de que esta é uma terra que lhe foi confiada por Deus como uma herança e,
portanto, ele não poderia vendê-la (21:3). A rainha Jezabel intervém na história, e
lembra que Acabe é rei de Israel, ele tinha o direito de tomar a vinha (21:7). O
pressuposto é simples: “Só porque você pode, então você deve!” A terra foi tomada,
Nabote foi morto, e Acabe recebeu a vinha (21:16). Nenhum pedido de desculpas foi
feito. Poder e manipulação estavam em jogo aqui. A vítima nesta narrativa foi
Nabote, que representa os camponeses sem poder. A maneira com que Nabote e
Acabe estão ligados à terra manifesta uma contradição surpreendente. Acabe trata
como posse, mercadoria de comprar ou tomar. Nabote trata como herança, como um
direito. Um acreditava que pertencia à comunidade, o outro queria para seu império.

Esta narração, ainda que ilustrada pelo místico bíblico, contém uma fonte histórica
de notável riqueza para o estudo da evolução do confisco de terras na história da humanidade.

Outros períodos históricos também são marcados pelo exercício da confiscação de


terras pelos governantes públicos em seus tempos. No governo teocrata dos Egípcios, nas
polis Gregas, no ascendente Império Romano e até mesmo nas Dinastias do Extremo Oriente
a prática do confisco de terras pelas autoridades públicas de cúpula era algo corriqueiro
durante os governos.

Especialmente durante a Idade Moderna, o confisco de terras se tornou uma prática


por demais frequente e abusiva. Durante os Antigos Regimes Europeus os Monarcas
Absolutistas exerceram a confiscação como forma de fortalecer seus Principados e estruturar
uma base territorial una e consolidada. Era, pois, os primeiros passos que davam os Estados
Modernos rumo a sua ascensão.

Um caso bastante emblemático deste período se deu nos meados do século XV,
durante a Guerra dos Onze Anos6, quando se envolveram ingleses, escoceses e irlandeses
católicos que, ao final, resultando o Parlamento Inglês vitorioso confiscou em massa as terras
de propriedade de católicos irlandeses como forma de punição pela rebeldia e dispêndios da
guerra encabeçada pelos irlandeses.

6 A Guerra dos Onze Anos, também chamada de Guerras Irlandesas dos Confederados, ocorrida entre os anos
de 1641 a 1653, foi uma série de guerras civis nos reinos da Irlanda, Inglaterra e Escócia, que eram à época
governados por Carlos I em razão de quem iria governar a Irlanda. O conflito na Irlanda colocou os nativos
irlandeses católicos contra os colonos protestantes ingleses e escoceses, marcando, assim, tanto um conflito
religioso como étnico. Os irlandeses criaram a Confederação Irlandesa Católica, com intuito de buscar a sua
autonomia como nação e Estado, instaurando, assim, uma fase de guerrilhas pela Irlanda a fim de expulsar os
colonos ingleses e escoceses do país. Todavia, logrou-se vencedora a Inglaterra sob o comando de Oliver
Cromwell. (MAYNARD, Andreza Santos Cruz, MAYNARD, Dilton Cândido Santos. História Moderna I.
São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD, 2009. p. 86-88).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Observa-se, portanto, que o confisco de terras sempre existiu no decorrer da história


do homem, todavia, seu caráter durante tais períodos estava vinculado a finalidades
totalmente diversas daquelas que hoje se encontram no ordenamento jurídico brasileiro. A
confiscação de terras, nesta primeira fase histórica, não tinha uma finalidade social. Pelo
contrário, ora se apresentava como uma punição ora como mero capricho de Governos
Déspotas.

O confisco de terras cuja finalidade veio a atender uma função social surgiu,
legitimamente, apenas no século XVIII, com a Revolução Mexicana e a posterior
promulgação da Constituição Mexicana de 1917.

Emiliano Zapata, um dos líderes da Revolução Mexicana, apresentou o “Plano de


Ayala”, o qual propunha uma reforma agrária de imediato, o confisco de 1/3 (um terço) das
terras que estavam nas mãos de grandes latifundiários para serem entregues aos camponeses,
a criação de um banco para dar créditos à agricultura e o confisco de bens dos que se
opusessem às reformas do Plano. A revolução de Zapata seguiu vitoriosa e em 1917 foi
promulgada a Constituição Mexicana, uma das Cartas Magnas que mais influenciaram a
concepção democrática, cidadã e social nas demais Constituições de outros Estados, inclusive
a Constituição Federal Brasileira de 1988.

Encampando uma crítica à Constituição Mexicana de 1917, o historiador SCHMIDT 7


discorre que:

A Constituição de 1917 era uma das mais democráticas do mundo. Estabelecia o


sufrágio universal e o confisco de alguns latifúndios (incluindo os da Igreja) para a
reforma agrária. Previa medidas nacionalistas de proteção ao subsolo (recursos
minerais) e de fiscalização de empresas estrangeiras. O Estado reconhecia os direitos
dos ejidos (comunidades rurais indígenas). Uma importante legislação protegia o
trabalhador, assegurando jornada de trabalho de oito horas, proibição de trabalho
infantil e reconhecendo os direitos sindicais. Apesar de tudo, milhões de camponeses
continuavam sem terra.

Com efeito, a importância histórica para o instituto jurídico do confisco de terras está
justamente em fazê-lo, pela primeira vez e por meio de um corpo legal legítimo – uma
Constituição – um instrumento voltado à finalidade social, qual seja promover a reforma
agrária. Embora a Constituição Mexicana de 1917 tenha ampliando o campo de ensejo do
confisco de terras, o fato é que pela primeira vez na história do direito agrário e constitucional

7 SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica. ed. Nova Geração.1996. p.238

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

a confiscação de terras não comportou apenas uma feição de pena, mas também de
preocupação com o bem coletivo e com o acesso à terra.

Assim, no Direito Agrário Constitucional Brasileiro surge de forma inédita o instituto


do confisco de terras com a finalidade social de destinar as glebas de terras confiscadas para
os assentamentos de colonos. A Constituição Federal de 1988, portanto, inaugurou o confisco
de terras no Direito Agrário em sua dupla natureza jurídica: sanção e instrumento de acesso à
terra.

Será, pois, a análise a seguir apresentada.

3. O CONFISCO DE TERRAS NO DIREITO AGROAMBIENTAL BRASILEIRO

O ordenamento jurídico brasileiro trata do confisco de terras no artigo 243, caput, da


Constituição Federal de 1988 e na Lei Ordinária Federal n° 8.257/91. Esta, que por sua vez,
detalha a questão processual que envolve todo o procedimento confiscatório. Para fins do
estudo ora proposto, o qual contempla como objetivo a análise do confisco de terras em seu
caráter substancial, a Lei Ordinária Federal nº 8.257/91 não será integralmente estudada,
restringindo a presente pesquisa à análise dos artigos 1º a 4º desta lei, porquanto são estes que
guardam pertinência com os objetivos aqui propostos.

A norma prescrita no caput do artigo 243 da Constituição Federal prevê o confisco


como uma “expropriação” e, não necessariamente como um “confisco”. O constituinte,
portanto, apresentou a seguinte dicção ao referido artigo:

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas
ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente
destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.

Como bem se observa, o nomem juris prescrito no supracitado artigo revela o


instituto do confisco como uma “expropriação” que, conforme será pormenorizado a seguir,
enquadra-se como uma das espécies de desapropriação. Embora a terminologia usada pelo
Constituinte não afete a aplicação do instituto, o fato é que, expropriar e confiscar são
instrumentos jurídicos distintos, embora o confisco pertença ao gênero expropriação,

274
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

juntamente com as modalidades de desapropriação.

O não uso do termo “confisco” é, na verdade, uma adaptação dos legisladores para
instituir no Direito Brasileiro um instituto tão severo ao direito fundamental de propriedade
como o é o ato de confiscar terras. O confisco, em razão de sua construção histórica, sempre
foi vinculado como uma pena e, não menos, umas das mais drásticas das penas.

Assim, muito embora a finalidade do confisco de terras no Direito Brasileiro seja a


busca pelo interesse social, a “ferocidade” que o confisco aflige o direito de propriedade dos
indivíduos causa uma série de consequências que poderiam por em xeque a alcunha
“democrática” da Constituição de 1988.

Por isso usar a terminologia “expropriação”, a qual camufla a tensão que se geraria
em colocar “confisco” na Constituição Federal de 1988, conquanto, em verdade, seja
realmente uma confiscação o que prevê o artigo 243, caput, da Carta Magna.

Mas enfim, quais seriam então tais diferenças? Para responder esta questão será
preciso recorrer ao direito administrativo, especificamente no campo das intervenções do
Estado no direito de propriedade.

De fato, mesmo na seara administrativa os conceitos ora se confundem ora se


distinguem. Não há uma unanimidade entre os doutrinadores do direito administrativo sobre
as diferenças - ou não - entre desapropriar, expropriar e confiscar.

MEIRELLES8 equipara os conceitos de desapropriação e expropriação, definindo-os


como "a transferência compulsória da propriedade particular (...) mediante prévia e justa
indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXIV), salvo as exceções constitucionais de pagamento
em títulos da dívida pública (...) e de pagamento em títulos da dívida agrária (...)”.

Por sua vez, DI PIETRO 9 não se posiciona claramente quanto à linha de


diferenciação que adota. Considera na definição de desapropriação a necessidade de
indenização, mas, ao discorrer sobre o instituto previsto no artigo 243, da Constituição
Federal, diz tratar-se de desapropriação, mas que "se equipara ao confisco, por não assegurar
ao expropriado o direito à indenização. Pela mesma razão, teria sido empregado o vocábulo
expropriação, em vez de desapropriação".

8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 536
9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2007. p. 152

275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Trazendo à baila este assunto, introduz CARVALHO FILHO10 sobre a intervenção do


Estado na propriedade que:

Essa intervenção, tornamos a frisar, pode ser categorizada em dois grupos: de um


lado, a intervenção restritiva, através do qual o Poder Público retira algumas das
faculdades relativas ao domínio, embora salvaguarde a propriedade em favor do
dono; de outro, a intervenção supressiva, que gera a transferência da propriedade de
seu dono para o Estado, acarretando, por conseguinte, a perda da propriedade (…)
Cabe-nos agora analisar a forma mais drástica de intervenção supressiva do Estado,
ou seja, aquela que provoca a perda da propriedade. Essa forma é a desapropriação.

Para este autor a desapropriação, modalidade de intervenção supressiva do Estado na


propriedade privada, é um procedimento de transferência da propriedade que, em regra, se dá
mediante o pagamento de indenização. Nesse sentindo, fala-se em diversas modalidades de
desapropriação, sendo a previsão constante no artigo 243, da Constituição Federal uma
“desapropriação confiscatória” 11, e a expropriação apenas o ato de retirar a propriedade de
outro:

A última espécie de desapropriação é a que está prevista no art.243 da CF, a qual


podemos denominar de desapropriação confiscatória, por não conferir ao
proprietário direito indenizatório, como ocorre com as modalidades anteriores. A
perda da propriedade nesse caso tem como pressuposto o fato de que nela estão
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Consumada a expropriação,
essas áreas são destinadas a assentamento de colonos com vistas ao cultivo de
produtos alimentícios e medicamentosos12.

Para CAVALCANTE FILHO os conceitos de expropriação, desapropriação e


confisco não se confundem:

Entendemos que expropriação é o gênero do qual desapropriação é a espécie. Com


efeito, expropriar vem do latim ex proprietatem, "fora da propriedade", e significa
"retirar alguém de sua propriedade". Assim, teríamos na expropriação um gênero das
intervenções do Estado na propriedade que culminariam por retirar do proprietário a
coisa.13

E complementa:

10 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23 ed., rev., ampl. e atual. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 885
11 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23 ed., rev., ampl. e atual. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 891
12 Ibidem. p. 891
13 CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Desapropriação sem indenização?. Disponível em
<http://jus.com.br/revista/texto/13680/desapropriacao-sem-indenizacao#ixzz2HtaOWZB4 >. Acessado em
10/01/2013.

276
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Realmente, a doutrina classifica as intervenções do Estado na propriedade


(limitações administrativas em sentido amplo) em restritivas ou parciais (não retiram
a propriedade, apenas limitam o uso, como as servidões e o tombamento) e ablativas
ou totais (retiram a propriedade). A expropriação é a intervenção ablativa ou total,
que retira a propriedade, atingindo o caráter perpétuo, e que abrange duas espécies: a
desapropriação e o confisco.
De igual forma, desapropriação e confisco guardam uma diferença entre si: a
desapropriação é sempre indenizada, ao passo que o confisco, por natureza, não traz
o direito a indenização. Isso porque, enquanto a desapropriação se baseia em
necessidade pública, utilidade pública ou interesse social (art. 5º, XXIV, da CF), o
confisco integra a categoria de sanção por um ato ilícito (art. 5º, XLVI, b).14

Transportando todas estas conceituações doutrinárias a uma análise referenciada pela


hermenêutica jurídica, nota-se que a Carta Constitucional de 1988 usou as terminologias
confisco, expropriação e desapropriação em situações e contextos jurídicos diversos nas
normas que os preveem. Bem por isso, levando-se em conta que “na lei não há palavras
inúteis” 15, é possível estabelecer notórias diferenças entre os termos aqui estudados.

A expropriação não constitui em si um procedimento específico, muito embora a


Constituição Federal de 1988 e a Lei Ordinária Federal nº 8.257/91 use a terminologia
“expropriação” e “ação expropriatória”, tal situação, na verdade, veio a existir em razão de
uma válvula de escape do Legislador para evitar o termo “confisco” na Carta Constitucional.

Nesse sentido, expropriação é qualquer ação do Poder Público que retire do domínio
privado o direito de propriedade de alguém. Esta retirada, por sua vez, pode se dar mediante
uma contraprestação do Estado e, por isso, não possuí uma natureza jurídica sancionatória, ou
como também pode se dar sem qualquer indenização, situação em que se caracteriza como
uma sanção pública estatal que ocasiona a perda do direito de propriedade do indivíduo.

Logo, em uma linguagem simplificada, pode-se dizer que a perda da propriedade


privada em favor do Poder Estatal, isto é, a expropriação, configura-se em duas formas: com
indenização (Desapropriação) e sem indenização (Confisco).

Nesta mesma linha de raciocínio, CAVALCANTE FILHO citando CARVALHO


conclui que:
14 CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Desapropriação sem indenização?. Disponível em
<http://jus.com.br/revista/texto/13680/desapropriacao-sem-indenizacao#ixzz2HtaOWZB4 >. Acessado em
10/01/2013
15 ALBURQUEQUE, André. Due Process Of Law: Influências Anglo-saxônicas no Ordenamento Jurídico
Brasileiro: Analise histórica do devido processo legal e exemplificação da presença deste princípio utilizando-se do
artigo 243 da Constituição Federal. . Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2656/Due-
Process-Of-Law-Influencias-Anglo-saxonicas-no-Ordenamento-Juridico-Brasileiro>. Acessado em
10/01/2013.

277
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Note-se que essa categorização é compatível com as disposições constitucionais,


notadamente com os arts. 5º, XXIV, e 243. Aliás, o art. 243 se refere, no caput, à
expropriação sem indenização e, no parágrafo único, utiliza a expressão
"confiscadas". Se atentarmos para o fato de que a técnica legislativa determina que o
parágrafo complementa o caput (Kildare Gonçalves CARVALHO, 2007, p. 241),
chegaremos à conclusão de que o raciocínio até aqui desenvolvido é perfeitamente
compatível com as disposições constitucionais16.

Aludindo à técnica redacional utilizada pelo Constituinte de 1988 quanto ao confisco


de terras previsto no artigo 243, caput, da Carta Magna, MEDEIROS DE SOUSA, citando
outros doutrinadores, compartilha o seguinte entendimento:

A propósito, é possível admitir que houve “boa intenção e má redação”


(Comentários à Constituição Brasileira de 1988/Manoel Gonçalves Ferreira Filho –
vol. 4 – arts. 170 a 245. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 131) e concordar que “Esta
expropriação sem indenização é na verdade um confisco especial (...) (Comentários
à Constituição Brasileira / Pinto Ferreira – vol. 7º – arts. 193 a 245. São Paulo :
Saraiva, 1995).
A despeito do nomem juris atribuído pelo Constituinte, com a desapropriação não se
confunde. É que a perda da propriedade, por ato compulsório do Estado, não vem
acompanhada de compensação financeira. Embora vedado a princípio, justifica-se
por força de exceção constitucional, sancionadora do uso da propriedade para fins
antijurídicos. Não se ataca aqui o espírito informador da propriedade como direito
individual e inalienável do homem, tal como declarado em inúmeras declarações
constitucionais. (Expropriação dos bens utilizados para fins de tráfico ilícito de
entorpecentes / Edilson Pereira Nobre Jr. Separata da Revista de Informação
Legislativa. Brasília : Senado Federal. Abril/junho 1995, p. 34)17.

DI PIETRO (2007), embora não seja clara quanto às terminologias expropriação,


desapropriação e confisco, assevera a existência deste último no Direito Brasileiro, inclusive
com institutos e procedimentos administrativos e judiciais próprios:

Quanto à desapropriação de glebas de terra em que sejam cultivadas plantas


psicotrópicas, prevista no artigo 243 da Constituição e disciplinada pela Lei nº
8.257, de 26-11-91, pode-se dizer que se equipara ao confisco, por não assegurar ao
expropriado o direito à indenização. Pela mesma razão, teria sido empregado o
vocábulo expropriação, em vez de desapropriação.
Não é qualquer cultura de plantas psicotrópicas que dá margem a esse tipo de
desapropriação, mas apenas aquela que seja ilícita, por não estar autorizada pelo
Poder Público e estar incluída em rol elencado pelo Ministério da Saúde.
No parágrafo único do mesmo dispositivo constitucional, é previsto o confisco de
todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, o qual reverterá em benefício de instituições e
16 CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Desapropriação sem indenização?. Disponível em
<http://jus.com.br/revista/texto/13680/desapropriacao-sem-indenizacao#ixzz2HtaOWZB4 >. Acessado em
10/01/2013.
17 MEDEIROS DE SOUSA, João Bosco. Confisco de Terras. Disponível em
<http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/CONFISCO.pdf>. Acessado em 10/01/2013.

278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pessoal especializado no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e


custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de
tráfico dessas substâncias.
O processo de desapropriação, no caso, segue as regras específicas constantes na Lei
nº 8.257, com aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.18

Nesse espeque, infere-se que, mesmo possuindo certa falha na técnica legislativa, o
instrumento jurídico previsto na cabeça do artigo 243 da Constituição Federal de 1988 é o
confisco de terras, isto é, uma espécie de expropriação pública de terras rurais cuja
contraprestação pecuniária estatal não existe, vez que não possui natureza indenizatória e sim
sancionatória.

4. A POLÊMICA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE “GLEBAS” NA CONFISCAÇÃO


AGRÁRIA

Conforme exposto anteriormente, resta evidenciado que o confisco de terras é uma


realidade presente entre os institutos jurídicos do Direito Agrário Constitucional Brasileiro.
Todavia, assim como outros instrumentos jurídicos, também enfrenta algumas questões que o
situa em um contexto de polêmicas norteadas desde os aspectos meramente jurídicos até os de
efetividade do instituto no campo social.

A previsão do confisco de terras no Direito Agrário Constitucional Brasileiro pós-88


foi uma adequação do país à Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de
Substâncias Psicotrópicas19, da qual o Brasil foi signatário e aprovou através do Decreto
Legislativo nº 162, de 14 de junho de 1991.

Bem por isso, o instituto do confisco de terras vincula-se estritamente às políticas


públicas de combate ao tráfico ilícito de entorpecentes, sendo um dos requisitos essenciais
para a confiscação que a gleba de terras tenha destinação à cultura de plantas psicotrópicas.

Justamente em razão desses fatores que o confisco de terras apresenta algumas


questões que merecem ser analisadas com a devida cautela, especialmente pelos aplicadores

18 Op. cit. p. 174.


19 O confisco de terras está disciplinado nos seguintes artigos da Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas: “Art. 1º – Definições: Salvo indicação expressa em contrário,
ou onde o contexto exigir outra interpretação, as seguintes definições se aplicarão em todo o texto desta
Convenção: e) Por "confisco" se entende a privação em caráter definitivo, de algum bem, por decisão de um
tribunal ou de outra autoridade competente;” e em todo o artigo 5, que trata, na integralidade ,do Confisco de
terras como instrumento de combate ao tráfico ilícito de entorpecentes.

279
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do direito, haja vista prescrever o artigo 243, caput, da Constituição Federal uma norma de
conceito jurídico indeterminado20 - gleba de terras -, além de ser uma norma em branco, isto é,
que precisa de uma complementação infraconstitucional para sua efetiva aplicação no caso da
definição de quais plantas são ou não consideradas psicotrópicas21.

A par dessas pontuações, discutir-se-á acerca da polêmica envolvendo a definição do


conceito de glebas para fins de confiscação agrária de terras.

Preconiza o artigo 243, caput, da Constituição Federal de 1988 que:

Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas
ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente
destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei.

O texto constitucional, por sua vez, é completado pela Lei nº 8257/91, que também
vincula o confisco de terras às de glebas onde haja culturas ilegais de plantas psicotrópicas, in
verbis:

Art. 1° As glebas de qualquer região do país onde forem localizadas culturas ilegais
de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente
destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras
sanções previstas em lei, conforme o art. 243 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em

20 O conceito jurídico indeterminado, entendido como um dispositivo vago e que também possibilita
interpretação ampla, não depende de edição posterior de outra norma. É instituto de grande amplitude
interpretativa. Desta forma, a aplicação de uma norma que contenha um conceito indeterminado dependerá
dos caminhos que os juristas lhe darão quando de sua interpretação, pois somente assim a norma poderá ser
concretamente efetivada e definida em substância e forma jurídica de aplicabilidade.
21 Segundo o artigo 2º da Lei nº 8.257/91: “Para efeito desta lei, plantas psicotrópicas são aquelas que permitem
a obtenção de substância entorpecente proscrita, plantas estas elencadas no rol emitido pelo órgão sanitário
competente do Ministério da Saúde”. Logo, a definição de quais plantas serão consideradas psicotrópicas
depende de um ato normativo complementar – por isso se dizer que a norma prevista no artigo 243, caput, da
Constituição Federal é uma norma em branco -, que no caso será de responsabilidade do Ministério da Saúde.
O ato normativo expedido pelo Ministério da Saúde que define quais plantas são consideradas psicotrópicas é
a Portaria nº 344, de 1998. Segundo esta portaria, são plantas psicotrópicas: CANNABIS SATIVUM,
CLAVICEPS PASPALI, DATURA SUAVEOLANS, ERYTROXYLUM COCA, LOPHOPHORA
WILLIAMSII (CACTO PEYOTE), PRESTONIA AMAZONICA (HAEMADICTYON AMAZONICUM) e a
SALVIA DIVINORUM.
Igualmente, faz-se necessário lembrar que a cultura dessas plantas psicotrópicas não será considerada ilegal
quando obtiver prévia autorização, através de licença, do órgão sanitário do Ministério da Saúde (Serviço
Nacional de Fiscalização e Farmácia do Ministério da Saúde), que só permitirá quando a finalidade for
terapêutica ou científica (artigo 2º, §2º da Lei 6.368/76). Assim sendo, não incidirá a expropriação das terras
cujo cultivo dessas plantas obtenha permissão prévia do Ministério da Saúde e cumpra com os preceitos
legais e regulamentares.

280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e


reverterá em benefício de instituições e pessoal especializado no tratamento e
recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização,
controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

Nota-se da redação legal ora prevista o confisco de culturas ilegais no Direito


Agrário Brasileiro se dará, sempre, sobre as “glebas” de qualquer região do País. Esta
expressão, “glebas”, por sua vez, não foi pormenorizada no decorrer das normas
constitucionais, tampouco nas legislações infraconstitucionais. Trata-se, na verdade, de um
conceito jurídico indeterminado presente no instituto da confiscação agrária.

Ora, o que vem a ser uma “gleba”? É esta uma das questões polêmicas que envolve o
confisco de terras no ordenamento jurídico pátrio.

Etimologicamente, o conceito de gleba, é “s.f. Terreno próprio para cultura. /


Torrão. / Porção de terra onde há minérios. / Solo a que os servos se vinculavam; feudo: servo
da gleba. / Fig. Solo pátrio, região” 22. Tais definições, por sua vez, não são materialmente
auferidas com simplicidade. Pelo contrário, revelam um termo vago, pendente de
complementação quanto ao seu caráter quantitativo, isto é, como medida de grandezas. Afinal,
qual o tamanho de uma gleba de terras? Qual sua porção, o que abrange o conceito de terreno
próprio para cultura? Enfim, todas estas indagações barraram a aplicação do instituto do
confisco de terras até que o Supremo Tribunal Federal, Tribunal maxime da função
interpretativa da Constituição Federal, desse fim à polêmica.

Para a doutrina majoritária o confisco de terras deve, quanto à sua extensão, dar-se na
integralidade do terreno destinado ao cultivo de plantas psicotrópicas, isto é, não apenas
naquele espaço de terras que, de fato, foi usado para a cultura, e sim em relação a toda a
propriedade que se destinou a este cultivo ilícito.

Nesse sentindo, examina CARVALHO FILHO (2010) que:

Pode surgir dúvida quanto à extensão em que se dará esse tipo de expropriação, vale
dizer, se, localizada a cultura ilegal em parte da propriedade, a expropriação
alcançaria toda a área ou apenas a área do cultivo. A Constituição e a Lei nº 8.257/91
referiram-se às glebas de qualquer região do país, sem fazer qualquer alusão a área
total ou parcial. Em consequência, entendemos que a desapropriação deve alcançar a
propriedade integralmente, ainda que o cultivo se dê apenas em parte dela. O
proprietário tem o dever de vigilância sobre sua propriedade, de modo que é de se
presumir que conhecia o cultivo. Para nós, a hipótese s[o vai comportar solução

22 Consulta realizada no Dicionário Aurélio Online. Disponível em <http://74.86.137.64-


static.reverse.softlayer.com/>, Acessado em 10/01/2013.

281
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

diversa caso de o proprietário comprovar que o cultivo é processado por terceiros à


sua revelia, mas aqui o ônus da prova desse fato se inverte e cabe ao proprietário.
Neste caso, parece-nos não se consumar o pressuposto que inspirou essa forma de
expropriação. Em síntese: não há desapropriação parcial; ou se desapropria a gleba
integralmente, se presente o pressuposto constitucional, ou não será o caso de
expropriação, devendo-se, nessa hipótese, destruir a cultura ilegal e processar os
respectivos responsáveis23.

Quanto à jurisprudência pátria, a definição de gleba não foi, a princípio, uníssona:


ora entendia como uma dimensão parcial da área que realmente fosse usada para o cultivo
ilícito, ora a tratava como área total do terreno que foi usado para tais plantios.

Casos jurisprudenciais emblemáticos sobre esta questão envolveram os Tribunais


Regionais Federais, especialmente o Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento
das Apelações Cíveis nº 171053-PE - 2ª Turma e nº 180933-PE. 1ª Turma.

O fato é que, para a majoritária jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, o


termo “gleba” não se refere à porção cultivável, mas sim a todo terreno – canteiro de cultivo,
benfeitorias, casas, galpões e etc. – usado para a cultura ilegal de planas psicotrópicas. Para
fim de exemplificação, citam-se os seguintes arestos jurisprudenciais que corroboram este
entendimento compartilhado pelos Tribunais Regionais Federais:

CONSTITUCIONAL. TERRAS COM PLANTIOS DE CANABIS SATIVA.


EXPROPRIAÇÃO. ALCANCE. ART. 243 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Se o constituinte pretendesse restringir a extensão em norma que dispõe acerca da
expropriação de terras onde encontrados plantios de canabis sativa, teria utilizado as
expressões usuais, como a porção da gleba onde forem localizadas plantas
psicotrópicas ou designação semelhante. (...) (TRF – 5ª Região, Pleno, EIAC nº
13308/PE, Rel. Juiz Araken Mariz, j. 15/05/1996, DJ 07/06/1996).

CONSTITUCIONAL. EXPROPRIAÇÃO. PLANTAÇÕES DE CANNABIS


SATIVA. CULPA IN VIGILANDO DA PROPRIETÁRIA. ABANDONO DAS
TERRAS. CONFISCO DA PROPRIEDADE EM SUA INTEGRALIDADE.
PRECEDENTE. APELAÇÃO IMPROVIDA. (...) 4. "Se o constituinte
pretendesse restringir a extensão em norma que dispõe acerca da expropriação de
terras onde encontrados plantios de cannabis sativa, teria utilizado as expressões
usuais, como a porção da gleba onde forem localizadas plantas psicotrópicas, ou
designação semelhante.” (EAC PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL DE
PRIMEIRA INSTÂNCIA Seção Judiciária de Pernambuco - 20ª Vara Federal
Processo nº 0000443-79.2006.4.05.83048 n.º 13.308/PE, Rel. Juiz ARAKEN
MARIZ, julg. em 15/05/96, publ. DJU de 07/06/96). (...) (TRF - 5ª Região, 1ª
Turma, AC n.º 17.674-PE, Rel. Ubaldo Ataíde Cavalcante, DJ 01.03.2002, p. 580).

CONSTITUCIONAL. EXPROPRIAÇÃO. ART. 243 DA CF. CULTIVO DE


PLANTA PSICOTRÓPICA (MACONHA). FAZENDA CAIÇARA.
INTEGRALIDADE DO IMÓVEL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. A
expropriação prevista no art. 243 da CF deve ser extensiva a toda propriedade em
que for localizado o cultivo ilegal de plantas psicotrópicas. (...) (TRF - 5ª Região, 4ª

23 Ob.cit. p. 978.

282
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Turma, AC n.º 304272-PE, Rel. Ridalvo Costa, j. 24/05/2007, DJ 13/06/2007, p.


112).

Todavia, no bojo das Apelações Cíveis nº 171053-PE - 2ª Turma e nº 180933-PE. 1ª


Turma, que tramitaram no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a problemática acerca da
definição de gleba de terras ganhou um escopo de destaque nas discussões jurídicas sobre o
tema.

Ocorre que, a Apelação Cível nº 171053-PE - 2ª Turma partilhou do mesmo


entendimento que já vinha seguindo o próprio Tribunal Regional Federal da 1ª Região, qual
seja, de considerar o conceito de gleba como o de integralidade do terreno destinado à cultura
ilícita de plantas psicotrópicas.

Posteriormente este mesmo Tribunal decidiu através da Apelação Cível n.º 180933-
PE. 1ª Turma, por decisão da lavra do Desembargador Castro Meira, que o confisco é relativo
à área onde foram encontradas o plantio ilegal, isto é, “a expropriação das glebas onde forem
localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas e não de toda a área de terras pertencentes
ao responsável [...]”.

Tal entendimento, por sua vez, trouxe às discussões agrárias sobre o confisco de
terras um novo precedente: a expropriação só se daria na porção de terra onde foi cultivado o
plantio dessas plantas e não de toda a propriedade do responsável pelas culturas.

Esse contexto, por sua vez, somente foi dirimido após o pronunciamento do Supremo
Tribunal Federal – STF, que pôs fim, ao menos em termos jurisprudenciais, a celeuma que
envolvia a definição de glebas para fins de confisco agrário.

O Supremo Tribunal Federal, em sede de Recurso extraordinário nº 543974/MG


interposto pela União quanto a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região - TRF, isto
é, em desfavor da Apelação Cível nº 180933-PE, cujo Ministro Relator foi Eros Grau,
manifestou-se em 26 de março de 2009 proferindo decisão contra acórdão proferido pelo TRF
da 1ª Região, partilhando da interpretação de que a expropriação de glebas a que se refere o
artigo 243, caput, da Constituição Federal de 1988 abrange toda a propriedade e não apenas a
área efetivamente cultivada.

Observa-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal nada mais do que sedimentou
juridicamente o posicionamento majoritário que já adotavam os Tribunais Regionais Federais,

283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pelo qual o conceito de gleba de terras, ora entendido como grandeza de medida (terreno
rural), engloba toda a área do imóvel que foi destinada à cultura de plantas psicotrópicas, isto
é, não importa o tamanho da área que foi realmente utilizada para o plantio ilícito, mas sim
todo o terreno rural onde se situa o cultivo ilegal.

O voto do Ministro Relator Eros Grau no bojo do Recurso Extraordinário nº


543974/MG é extremamente interessante, trazendo questionamentos jurídicos riquíssimos e
uma análise crítica sob o enfoque da hermenêutica jurídica que merecem louvores pelo
Direito Brasileiro. Cita-se, seguidamente, alguns arestos do voto proferido pelo mencionado
Ministro, os quais demonstram pormenorizadamente o porquê de compreender as glebas
como área total do imóvel rural alvo de confiscação agrária:

O argumento de que gleba seria determinada parcela de um imóvel é insubsistente.


Gleba – toda a gente sabe disto – é uma área de terra, um terreno. Não uma porção
ou parcela dessa área. É o imóvel, um imóvel, simplesmente.
[…]
No artigo 243 da Constituição gleba só pode ser entendida como propriedade.
Propriedade sujeita a expropriação quando nela “forem localizadas culturas ilegais
de plantas psicotrópicas”. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do
que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários,
ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso
discernido. Nesse artigo 243, gleba é a propriedade na qual sejam localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito não refere áreas em que sejam
cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu todo.

De conseguinte, a ementa do Acórdão restou assim publicada:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL.


EXPROPRIAÇÃO. GLEBAS. CULTURAS ILEGAIS. PLANTAS
PSICOTRÓPICAS. ARTIGO 243 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
INTERPRETAÇÃO DO DIREITO. LINGUAGEM DO DIREITO.
LINGUAGEM JURÍDICA. ARTIGO 5º, LIV DA CONSTITUIÇÃO DO
BRASIL. O CHAMADO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. 1. Gleba,
no artigo 243 da Constituição do Brasil, só pode ser entendida como a propriedade
na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. O preceito não
refere áreas em que sejam cultivadas plantas psicotrópicas, mas as glebas, no seu
todo. 2. A gleba expropriada será destinada ao assentamento de colonos, para o
cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 3. A linguagem jurídica
corresponde à linguagem natural, de modo que é nesta, linguagem natural, que se há
de buscar o significado das palavras e expressões que se compõem naquela. Cada
vocábulo nela assume significado no contexto no qual inserido. O sentido de cada
palavra há de ser discernido em cada caso. No seu contexto e em face das
circunstâncias do caso. Não se pode atribuir à palavra qualquer sentido distinto do
que ela tem em estado de dicionário, ainda que não baste a consulta aos dicionários,
ignorando-se o contexto no qual ela é usada, para que esse sentido seja em cada caso
discernido. A interpretação/aplicação do direito se faz não apenas a partir de
elementos colhidos do texto normativo [mundo do dever-ser], mas também a partir
de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de dados da realidade
[mundo do ser]. 4. O direito, qual ensinou CARLOS MAXIMILIANO, deve ser

284
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

interpretado "inteligentemente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo,


prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". 5. O
entendimento sufragado no acórdão recorrido não pode ser acolhido, conduzindo ao
absurdo de expropriar-se 150 m2 de terra rural para nesses mesmos 150 m2 assentar-
se colonos, tendo em vista o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos. 6.
Não violação do preceito veiculado pelo artigo 5º, LIV da Constituição do Brasil e
do chamado "princípio" da proporcionalidade. Ausência de "desvio de poder
legislativo" Recurso extraordinário a que se dá provimento.

Trazendo à baila todo o conteúdo ora exposto acerca da definição de glebas em


matéria de confisco agrário, infere-se que, de acordo com o atual posicionamento
jurisprudencial firmado pelo Pleno da Suprema Corte, a gleba de terras é compreendida como
sinônimo de “propriedade”. Ou seja, a mens legis insculpida no caput do artigo 243 da
Constituição Federal de 1988 ao utilizar a expressão “gleba” foi a de considerar o imóvel
aonde haja plantio ilícito de plantas psicotrópicas como um todo ilegal. Isto é, não há parcela
de ilegalidade em imóveis rurais que cultivem plantas psicotrópicas, pois, uma vez cultivada
tais plantas, seja à proporção que for, o direito de propriedade de quem assim o faz se torna
ilícito e contrário aos preceitos constitucionais, especialmente quanto ao combate do tráfico
de substâncias entorpecentes.

Destarte, é inegável que o legislador Constituinte foi infeliz ao utilizar o termo


“gleba” que, destoante dos institutos de Direito Civil e Agrário, não fez referência, verbi
gratia, a “imóvel”, termo que, certamente, afastaria interpretações inconvenientes e
distanciadas do propósito de se evitar o assentamento de colonos em áreas de terras destinadas
a fins ilícitos, antieconômicos e violadores do próprio princípio da dignidade da pessoa
humana.

É na linha de uma exegese pautada pela Política Nacional de Combate ao Tráfico de


Substâncias Entorpecentes e pelas Políticas Públicas de Reforma Agrária e Acesso à Terra que
a melhor interpretação dada à expressão “gleba”, ainda que transpareça prima facie uma
afronta ao direito individual fundamental de propriedade, é a que lhe assemelha à noção de
“imóvel” em si mesmo, in totum et totaliter.

A relativização dos direitos individuais fundamentais justifica, nos casos como o da


confiscação agrária de terras, a redução ou mesmo supressão do próprio direito de
propriedade quando este direito se converter em ilícito, como é o caso das culturas de plantas
psicotrópicas.

285
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ademais, não há meia ilegalidade, meia ilicitude ao se tratar de direitos. Logo, não
há razão em se considerar um imóvel meio ilegal e meio legal. O imóvel é um todo e o
mesmo entendimento deve ser dado às glebas de terras, principalmente em razão da finalidade
a qual se propõe o confisco previsto no artigo 243, caput, da Constituição Federal: a criação
de mais um instrumento viabilizador do acesso à terra e de combate ao tráfico de drogas
ilícitas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A expropriação de terras contida no artigo 243 da Constituição Federal é uma


expropriação sui generis, ou, conforme alguns doutrinadores, uma espécie de desapropriação
confiscatória, vez que não há prévia indenização como nas desapropriações de praxe. Pelo
contrário das corriqueiras desapropriações, o instituto previsto no artigo 243, caput, da
Constituição Federal de 1988 é o confisco de terras.

Conforme analisado, o nomem juris eleito pelo Constituinte de 1988 não foi um dos
melhores, haja vista que os termos expropriação, desapropriação e confisco, embora
pertencentes ao mesmo léxico, comportam diferentes contextos de configuração jurídica.
Expropriar é ação, é a conduta perpetrada pelo Poder Público que toma para si a propriedade
de outrem. Sendo que, caso o Poder Público assim proceda e retribua a supressão da
propriedade do indivíduo com alguma indenização, estar-se-á diante de uma desapropriação.
Ao passo que, caso não ocorra qualquer contraprestação estatal e apenas a tomada do bem
pelo Estado, têm-se caracterizado o confisco.

De certo, pode-se inferir que o não uso do termo “confisco” é, na verdade, uma
adaptação dos legisladores para instituir no Direito Brasileiro um instituto tão severo ao
direito fundamental de propriedade como o é o ato de confiscar terras. O confisco, em razão
de sua construção histórica, sempre foi vinculado como uma pena e, não menos, umas das
mais drásticas das penas. Assim, muito embora a finalidade do confisco de terras no Direito
Brasileiro seja a busca pelo interesse social, a “ferocidade” que o confisco aflige o direito de
propriedade dos indivíduos causa uma série de consequências que poderiam por em xeque a
alcunha de “democrática” da Constituição de 1988.

286
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Talvez por isso optou o legislador Constituinte usar a terminologia “expropriação”, a


qual camufla a tensão que se geraria em dizer “confisco de terras” na Constituição Federal de
1988, conquanto, em verdade, seja realmente uma confiscação o que prevê a norma prescrita
no artigo 243, caput, da Carta Magna.

O Direito Agrário Brasileiro, após a Constituição Federal de 1988, reconheceu a


existência do confisco de terras previsto na cabeça do artigo 243 da Carta Magna. A
confiscação que, outrora vista apenas como uma forma de sanção – daí concluir-se por ter
uma natureza jurídica de pena, de sanção -, passou a figurar no ordenamento jurídico pátrio
como um instrumento de viabilização do acesso à terra e à Reforma Agrária e como uma
forma legítima de combate ao tráfico de substâncias entorpecentes.

Atualmente, o Direito Brasileiro trata da confiscação agrária na Constituição Federal,


em seu artigo 243 e na Lei Ordinária Federal nº 8.257/91, a qual regulamenta as questões
procedimentais judiciais quanto ao ato confiscatório.

Uma das questões polêmicas advinda da previsão jurídica do confisco de terras


compreendeu o uso da expressão “gleba” no texto constitucional do artigo 243, caput.
Segundo sua redação, “as glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas
ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente
destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções
previstas em lei”.

Ora, o termo “gleba” a que se referiu a Carta Constitucional de 1988, dada a


amplitude de espaços interpretativos que suporta, fez com que o instrumento da confiscação
agrária fosse aplicado sob diferentes aspectos quanto à medida de grandeza territorial, isto é, a
área a ser confiscada pelo Poder Público, afinal, qual o tamanho de uma gleba de terras?

A questão somente foi dirimida pelo Supremo Tribunal Federal – STF em 26 de


março de 2009, quando da apreciação do Recurso Extraordinário nº 543974/MG, o Pleno da
Suprema Corte, acatando o voto do Ministro Relator Eros Grau, sedimentou o entendimento
de que gleba é a propriedade na qual sejam localizadas culturas ilegais de plantas
psicotrópicas. Isto é, o termo “gleba” expresso no artigo 243, caput, da Constituição Federal
não se refere à porção cultivável, mas sim a todo terreno – canteiro de cultivo, benfeitorias,
casas, galpões e etc. – usado para a cultura ilegal de planas psicotrópicas.

287
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Muito embora se argumente que a instituição do confisco de terras no atual contexto


em que ele se encontra juridicamente seja uma afronta ao direito individual fundamental de
propriedade, o fato é que, considerando a relativização dos direitos fundamentais individuais e
a função social a qual deve se submeter a propriedade no ordenamento jurídico pátrio, a
confiscação de terras não é um instrumento inconstitucional ou mesmo ilegítimo. Ao seu
revés, tornou-se um importante instrumento de apoio e execução da Política Nacional de
Combate ao Tráfico de Substâncias Entorpecentes e das Políticas Públicas de Reforma
Agrária e Acesso à Terra.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ordenamento Jurídico Brasileiro: Analise histórica do devido processo legal e
exemplificação da presença deste princípio utilizando-se do artigo 243 da Constituição
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SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica. ed. Nova Geração.1996.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

REFORMA AGRÁRIA NO ESTADO SOCIOAMBIENTAL DE DIREITO

LAND REFORM IN ENVIRONMENTAL LAW STATE

Luciana Monduzzi Figueiredo

SUMÁRIO: 1. O Estado Socioambiental. 2. Reforma Agrária: conceito, regime jurídico, finalidade e


instrumentos. 3. Reforma Agrária no Estado Socioambiental de Direito: o componente ambiental. 4. Reforma
Agroambiental: realidade atual? 5. Considerações finais.

RESUMO

O estudo visa a demonstrar que, no Estado Socioambiental, sustentado em três pilares -


social, econômico e ambiental -, a qualidade do meio ambiente deve ser reconhecida como
elemento integrante do princípio da dignidade da pessoa humana. Na Constituição pátria, a
proteção ambiental foi constitucionalizada no artigo 225, a fim de reconhecer a sua dupla
funcionalidade, na medida em que simultaneamente consagra um objetivo/tarefa do Estado
e um direito/dever do indivíduo. Com essa perspectiva, o componente ambiental não pode
ser desconsiderado na reestruturação fundiária do país e do seu principal instrumento, a
reforma agrária. Com relação à propriedade rural, o cumprimento da sua função social
pressupõe a coexistência dos requisitos previstos no art. 186 da Carta Magna, sendo que o
art. 185, II, também da Constituição da República, exclui a propriedade produtiva do
processo de desapropriação. A produtividade, porém, isoladamente, não deve
consubstanciar elemento único para a exclusão do processo de reforma agrária. Caracteriza
um dos pressupostos, mas não em caráter exclusivo, já que os componentes ambiental e
social devem ser inegavelmente analisados. Assim, embora o dispositivo constitucional
seja norma constitucional originária e que, portanto, não é passível de declaração de
inconstitucionalidade, cabe ao hermeneuta realizar uma interpretação sistemática, na qual
haja um balanceamento com os demais valores salvaguardados na Carta Magna, porquanto
se mostra evidente a impossibilidade de se legitimar uma grande propriedade produtiva que
não respeite o ordenamento ambiental e trabalhista. No Estado Socioambiental de Direito,
incorporar a tutela do meio ambiente na gestão governamental é caminho inevitável, o que
significa que, também na Política de Reforma Agrária, considerando todos os instrumentos
nela inseridos, a variável ambiental deve ser necessariamente internalizada.

PALAVRAS-CHAVE: Estado Socioambiental. Reforma Agrária. Relação agroambiental.


Simbiose.


Mestre em Direito Agroambiental na Faculdade de Direito da UFMT. Professora da Escola Superior
da Advocacia em Mato Grosso e da Unipós - Pós-graduação e Educação (Universidade de Cuiabá).
Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
.

290
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ABSTRACT

The study aims to demonstrate that the Environmental State, based on three pillars - social,
economic and environmental -, the environmental quality should be recognized as an
integral element of the principle of human dignity. Environmental protection was
constitutionalized in Article 225 in order to recognize its dual functionality, in that it
simultaneously establishes a goal/task to the State and a right/duty of the individual. With
this perspective, the environmental component can not be ignored in the country's land
restructuring and its main instrument, the agrarian reform. Regarding rural property, to
perform its social function, it is necessary the coexistence of the requirements of Article
186 and Article 185, II, of the Constitution, which excludes productive property of the
expropriation process. Productivity, however, alone, should not constitute unique element
to the exclusion of the land reform process. It features one of the assumptions, but not
exclusively, as the environmental and social components must undeniably be analyzed.
Thus, while the Article 185 of the Constitution is original constitutional rule and therefore
is not subject to declaration of unconstitutionality, it is expected that the hermeneut
perform a systematic interpretation, in which there is a balance with other values enshrined
in the Constitution, because of apparent inability to legitimize a large productive property,
but that does not respect the environmental planning. In the Environmental Law State,
incorporate environmental issues in government management is inevitable path, which
means that also in Politics of Agrarian Reform, considering all the instruments within it,
the environmental variable must necessarily be internalized.

KEY-WORDS: Environmental State. Agrarian Reform. Agri-environmental relationship.


Symbiosis.

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1. O Estado Socioambiental

Embora o Estado Socioambiental ainda seja uma meta a ser alcançada1, que
consiste, no dizer de Boaventura de Souza Santos, em uma utopia democrática, porque a
transformação a que aspira pressupõe a repolitização da sociedade e o exercício radical
da cidadania individual e coletiva, incluindo nela a carta dos direitos humanos da
natureza2, há quem entenda que essa construção já foi implementada.
Para Ingo Wolgang Sarlet, a Constituição de 1988 é a Constituição de um Estado
Socioambiental e Democrático de Direito, o que pressupõe, em linhas gerais, o
compromisso com o respeito à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana e da
dignidade da vida em geral.3
O Estado Socioambiental tem como fim o desenvolvimento e a sustentabilidade,
sendo estruturado a partir de três pilares: social, econômico e ambiental, de modo que a
proteção dos direitos sociais se opera como um conjunto que se reforça e se limita
reciprocamente.
É de se notar que a perspectiva da socioambientalidade tem sido enfocada,
inclusive, nos países periféricos, como os do continente africano, em que se percebe grande
conflito entre as dimensões social e ambiental, o que atrai o diálogo com a noção de
sustentabilidade.
A degradação ambiental e todos os demais riscos ecológicos que envolvem as
relações sociais (ora socioambientais) comprometem o bem-estar individual e coletivo,
razão por que a normativa jurídico-constitucional caminha para além do bem-estar
individual e social, visando a um bem-estar ambiental.

1
Para José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, “tem-se apenas um esboço precário quanto ao
modelo a ser seguido pelo Estado de direito do ambiente. Não obstante, devem ser considerados os erros do
passado para não mais levá-los em argumentação. Neste sentido, CANOTILHO diz que ‘se queremos um
Estado de direito do ambiente, devemos ter em conta as experiências históricas e rejeitar as explicações
monocausuais num mundo de complexidade.’ E mais: ‘Não existem, pois, instrumentos totalizantes para a
edição de um Estado de direito do ambiente’.” (LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo.
Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 3ª ed. rev. atual. e ampl.. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 32).
2
SOUZA SANTOS, Boaventura de. Pela mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994. p. 42.
3
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?):
algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 14.

292
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Isso se verifica em várias Constituições do Mundo, v.g. as Cartas portuguesa


(1976), espanhola (1978), brasileira, e mais recentemente a do Equador (2008), que
consagram a direito fundamental o meio ambiente saudável e equilibrado, reconhecendo
que a qualidade ambiental é essencial para assegurar o desenvolvimento humano digno.4
A qualidade ambiental, portanto, deve ser reconhecida como elemento integrante
do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, dada a sua
imprescindibilidade para a existência da vida e, mais, de uma vida digna – bem-estar
existencial.
Visa-se conciliar os valores do Estado social e do Estado liberal e as exigências do
Estado Socioambiental de Direito, que pressupõe a convergência dos direitos sociais e
ambientais, configurando a transformar do constitucionalismo social para o
socioambiental.
Na Carta Magna de 1988, a proteção ambiental foi constitucionalizada no art. 225,
reconhecendo sua dupla funcionalidade5, na medida em que simultaneamente consagra um
objetivo/tarefa estatal e um direito/dever fundamental do indivíduo.
Nessa perspectiva, a construção do Estado Socioambiental remete à identificação
dos pontos convergentes dos direitos sociais e do direito ao meio ambiente, enfocando a
noção de um mínimo existencial de cunho socioambiental.
Assim, agregada aos já reconhecidos direitos que fazem parte do mínimo
existencial (no que há controvérsia doutrinária) – moradia digna, saúde básica,
saneamento, educação, renda mínima, assistência social, alimentação adequada – deve
estar a qualidade ambiental, como mecanismo assecuratório de uma existência digna e
saudável, noção que traduz a jusfundamentalidade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
O enfrentamento dos problemas ambientais e a opção por um desenvolvimento
sustentável tem como entrave a desigualdade social e a falta de acesso aos direitos sociais
básicos. O surgimento do direito ambiental está, assim, vinculado às dificuldades que o
Estado enfrenta para administrar a nova realidade ligada à degradação ambiental.
Maria da Glória Garcia aponta que a imposição de deveres de proteção ao Estado
retira-lhe a capacidade de decidir sobre a oportunidade do agir6, impondo-lhe uma

4
Ibidem. p. 12.
5
Ibidem. p. 13.
6
GARCIA, Maria da Gloria F.P.D. O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007, p.
481.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

adequação permanente, a acarretar uma redução da atuação discricionária do Estado,


porquanto a segurança ambiental assume relevo, por força do impacto ambiental
(socioambiental) produzido pela sociedade de risco contemporânea.
Embora ciente da prevalência da segurança ambiental, Canotilho aponta que o
Estado Democrático de Direito existente não é capaz de lutar contra os riscos e incertezas
gerados pela sociedade tecnológica contemporânea com que será invariavelmente
confrontada7.
Propõe, desse modo, que a eficiência das tarefas do Estado Socioambiental está
fundada nas seguintes bases: (i) visualização das conseqüências futuras que podem advir
da adoção de determinada tecnologia (escolhas ético-político-jurídicas da sociedade); (ii)
remodelação permanente do Estado, o que implica a necessidade de um desenvolvimento
mais reforçado de deveres e obrigações decorrentes da dignidade humana em vista do
futuro humano; (iii) indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos e
fundamentais.8
É sobre esse segundo aspecto, referente à necessária remodelação do Estado para a
busca da proteção intergeracional, que nos cabe perquirir se os instrumentos de comando
de controle de que hoje dispomos conseguem realizar tal tarefa a contento.
O Estado Socioambiental, portanto, além de se comprometer com a justiça social
(garantia de uma existência digna com acesso aos bens sociais básicos), segundo
Canotilho, assume a condição de Estado de Justiça ambiental, o que implica a proibição de
práticas discriminatórias que tenham a questão ambiental como foco.
Conclui-se, assim, que o direito ao ambiente apresenta uma dimensão democrática
e outra redistributiva – bem comum de todos (art. 225) harmonizado com o acesso
igualitário ao desfrute de uma qualidade de vida compatível com o pleno desenvolvimento
da personalidade de cada pessoa, considerando que tal concepção abrange os interesses das
futuras gerações.
Vale dizer: mínimo existencial assegurado pressupõe justiça ambiental, que, por
sua vez, pressupõe justiça social, conceitos esses que – necessariamente - devem ser
considerados na implementação de uma verdadeira política fundiária.

7
CANOTILHO, José Joaquim Gomes & LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito constitucional
ambiental brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 215.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

2. Reforma Agrária: conceito, regime jurídico, finalidade e instrumentos.

No âmbito do direito agrário, pode-se dizer que Reforma Agrária consubstancia


uma dos temas de maior relevância, que já trata de renovação, recomeço, reestruturação.
Reforma agrária, portanto, significa a renovação da estrutura fundiária atual.9
E essa reestruturação deve ter por premissa o próprio fundamento do direito
agrário, consoante aponta Ricardo Zeledón Zeledón:

A maior aspiração do direito agrário é contribuir para a consolidação da


paz. Levá-la às complexas relações de convivência econômica e social
dentro da atividade agrícola. [...] O direito agrário, como toda obra
humana, deve contribuir para o desenvolvimento e para a plena
realização do ser humano dentro da sociedade.][...] O direito agrário,
como todos os outros ramos jurídicos, leva em seu cerne a aspiração de
satisfazer os princípios de igualdade, justiça e paz. [...] A fundação de um
direito agrário como direito para a paz tem uma justificada explicação
doutrinária pela estreita relação desta disciplina com os direitos humanos.
Porque, precisamente, desde a origem do direito agrário, inclusive
passando por sua formação e desenvolvimento, sempre existiu uma
marcada interdependência com o humanismo10

Paulo Torminn Borges arrola como bases estruturais do direito agrário brasileiro a
reforma agrária e a política agrária, tendo como princípios norteadores a função social da
propriedade; progresso econômico e social do rurícola; fortalecimento da economia
nacional pelo aumento da produtividade; fortalecimento do espírito comunitário;
desenvolvimento do sentimento de liberdade e igualdade; implantação da justiça
distributiva; eliminação das injustiças sociais no campo; povoamento da zona rural de
maneira ordenada; combate ao minifúndio, ao latifúndio e a qualquer tipo de propriedade
rural ociosa; combate à exploração predatória ou incorreta da terra.11
Tais princípios norteiam-se na ideia de que a terra constitui necessidade básica para
o ser humano, já que é nela que mora, produz e trabalha. O cumprimento da função social
da propriedade (rural), como visto, decorre de um fundamento elementar, qual seja, a
própria necessidade humana.

8
Idem.
9
Nestor Duarte ressalta que o termo “reforma” origina-se de re e formare, que significa mudança de
estrutura, consoante leciona Octavio Mello Alvarenga (ALVARENGA, Octavio Mello. Política e direito
agroambiental: comentários à nova lei de reforma agrária. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 5).
10
ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. Derecho agrário y derechos humanos. Curitiba: Juruá, 2002, p. 12.
11
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 11.

295
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A premissa de que o direito de propriedade não é absoluto – base para a


implementação da Reforma Agrária - está intrinsecamente ligada à relação entre o direito
agrário e os direitos humanos, que, consoante leciona Zeledón Zeledón, impõe um
balanceamento entre os valores econômico e social que se encontram no instituto.12
Se o direito agrário encontra nos direitos humanos sua estrutura, estes têm no
direito agrário mecanismo de concretização dos seus postulados, na medida em que o vasto
corpo normativo representa mais que um rol programático e pode ter o condão de satisfazer
os ideais de igualdade e justiça que norteiam a disciplina.
No que se refere especificamente à Reforma Agrária, tema deste estudo, sua
implementação origina-se de uma situação de conflito (ainda que não exposto), já que a
concentração fundiária, por si só, acarreta o clima de tensão no campo e a consequente
repercussão na cidade.13
O controle dessa conflituosidade ganha contornos maiores ao considerarmos a
dimensão territorial do Brasil, pelo que se mostra indispensável o debate sobre a
distribuição de terras no país.
Com essa perspectiva, o próprio legislador preocupou-se em conceituar Reforma
Agrária, ao prever, no art. 1º, § 1º, do Estatuto da Terra, que o instituto deve ser
considerado como o conjunto de medidas que visam a promover melhor distribuição da
terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios
da justiça social e ao aumento da produtividade.
A doutrina explica que o termo melhor distribuição deve ser interpretado como
correção daquilo que foi mal estruturado, já que a distribuição do espaço rural brasileiro,
por razões históricas, impede a efetiva realização das nossas necessidades
socioeconômicas.
A respeito, Borges pondera que a reforma agrária é uma necessidade para o
Brasil. Por questão de justiça. Justiça para com o homem sem terra e que dela precise. E
por questão de grandeza do país. O Brasil precisa produzir mais e mais para ajudar a
comunidade a ser menos pobre.14
A consecução desse objetivo impõe quatro fases à Reforma Agrária: i)
redistribuição justa da propriedade territorial; ii) crédito para a exploração da terra que foi

12
ZELEDÓN, Ricardo Zeledón. op.cit. p. 23.
13
PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Reforma agrária: legislação, doutrina e jurisprudência.
Belém: CEJUP, 1993, P. 11.
14
BORGES, Paulo Torminn. op. cit. p. 22.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

objeto da redistribuição; iii) assistência técnica aos novos proprietários para melhor
exploração; iv) assistência social, visando à melhora de vida dos assentados.15
Dentro dessa estrutura, dois pontos fundamentais não podem ser desconsiderados: a
Reforma Agrária, juridicamente, não se restringe ao processo de desapropriação por
interesse social, malgrado sua inegável relevância e seja efetivamente o procedimento mais
utilizado. Reforma Agrária significa redistribuição de terras, que pode se operar por outros
instrumentos como a compra e venda, as ações discriminatórias e também as
desapropriações.16
Ademais, deve-se relevar as peculiaridades de cada região para que o programa seja
implementado, na medida em que a reforma deve considerar a realidade social e jurídica de
cada Estado.
O regime jurídico da Reforma Agrária brasileira engloba a Carta Magna, a Lei n.
4.504/64 (Estatuto da Terra), que trata especificamente de um capítulo dedicado à Política
Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária, além da Lei n. 8.629/93, integradora das regras
constitucionais relativas ao tema.
O Estatuto da Terra, além de conceituar o instituto, delimita que seu objetivo é
estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra,
capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o
desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio
(art. 16).
Os fundamentos constitucionais para a implementação da Reforma Agrária são
encontrados já no art. 3º da Constituição Federal17, que dispõe sobre os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil.
Tem-se ainda que o princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF) deve ser traduzido
como a igualdade de oportunidade de acesso à propriedade da terra (art. 2º do Estatuto da
Terra), agregada ao fato de que a proteção ao direito de propriedade está condicionada ao
cumprimento da sua função social (art. 5º, XXII e XXIII, da CF).

15
ALVARENGA, Octavio Mello. Política e direito agroambiental: comentários à nova lei de reforma
agrária (Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993). Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 13.
16
SOUSA, João Bosco Medeiros de. Direito agrário: lições básicas. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 65.

17
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Com relação à propriedade rural, o cumprimento da sua função social pressupõe a


coexistência dos requisitos previstos no art. 186 da Carta Magna:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,


simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.

O desatendimento a esses pressupostos acarreta a desapropriação por interesse


social, que, a teor do que prevê o art. 184, caput, do texto constitucional, compete à União.
Quanto à definição de imóvel rural para fins de reforma, inobstante os debates a
respeito, adotamos o critério da destinação disposto pela Lei n. n. 8.629/93, que considera
o imóvel rural aquele se destine à exploração da atividade agrária, independentemente da
sua localização.18
Note-se, ainda, que o Estatuto da Terra trata que o minifúndio e o latifúndio são
inadequados para a correta exploração da terra, pelo que devem ser extintos. Tais conceitos
estão em desuso, já que a Constituição pátria trabalha com as definições de pequena e
média propriedade.
Pereira parabeniza o constituinte ao consagrar, no art. 185, I, da CF, a proibição da
desapropriação da pequena e média propriedade, desde que o proprietário não possua
outra.19
A crítica, porém, é acirrada com relação ao mandamento contido no inciso II do
mencionado dispositivo, que exclui a desapropriação da propriedade produtiva, uma vez
que ao arrolar a produtividade como requisito único, o Constituinte prestigiou o caráter
patrimonial da propriedade e desconsiderou que o cumprimento da função social demanda
o atendimento simultâneo dos requisitos previstos no art. 186 da Constituição Federal.
Com relação a esse ponto, a discussão merece destaque, pois se relaciona com o
objeto deste estudo.

18
Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se: I - Imóvel Rural - o prédio rústico de área contínua,
qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária,
extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial;

298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A produtividade, por si só, não deve consubstanciar elemento único para a exclusão
do processo de reforma agrária. Caracteriza um dos pressupostos, mas não em caráter
exclusivo,20 já que os componentes ambiental e social devem ser inegavelmente
analisados.
Certo é que, se o art. 185 é norma constitucional originária e que, portanto, não é
passível de declaração de inconstitucionalidade, espera-se do hermeneuta que realize uma
interpretação sistemática, na qual haja um balanceamento com os demais valores
salvaguardados na Carta Magna.
Evidente a impossibilidade de se legitimar uma grande propriedade produtiva, mas
que não respeite o ordenamento ambiental e trabalhista, por exemplo.
Especificamente no que tange ao componente ambiental, a má utilização dos
recursos naturais e a ausência de uma preocupação preservacionista devem ter o condão de
constituir pressupostos para a implementação da reforma agrária.
Não se pode negar que a preocupação socioambiental surgiu em decorrência do
comprometimento da qualidade de vida, da potencialidade de insuficiência de recursos, da
sua má utilização e má distribuição, razão por que o meio ambiente sadio e equilibrado
tornou-se nova espécie de bem a ser tutelado com destinatários não individualizados e cuja
concretização é fundamental para o bem estar da coletividade e para as vidas futuras.
Desse modo, o componente ambiental é indissociável das relações agrárias, já que a
não preservação do meio ambiente significa inviabilizar ou reduzir a adequada produção da
propriedade e, se este é o fundamento da reforma agrária, corolário lógico é permitir que
seja pressuposto para a desapropriação e para os demais instrumentos.
Dentre os instrumentos destinados à materialização da reforma agrária, existem
aqueles revestidos de coercibilidade e consequente natureza sancionatória, como a
tributação por meio do ITR (imposto territorial rural) e a desapropriação e, ainda, aqueles
que caracterizam meios de acesso a terra, como a doação, a compra e venda, a arrecadação
de bens vagos e a reversão à posse (art. 17 do Estatuto da Terra).
Inegável que a desapropriação se revela como a ferramenta mais eficaz.

19
PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Op cit. p. 110.
20
SANTOS, Fabio Alves dos. Direito agrário e política fundiária no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1995,
p. 244 e ss.

299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A progressividade do ITR, com nítida natureza extrafiscal, já era prevista no art. 47


do Estatuto da Terra,21 sendo que, na Constituição da República, a Emenda Constitucional
n. 42/2003 inseriu no texto constitucional que o referido imposto será progressivo e terá
suas alíquotas fixadas de forma a desestimular as propriedades improdutivas e conferiu
imunidade “às pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando exploradas pelo
proprietário que não possua outro imóvel” (art. 153, § 4º, I e II, da Carta Magna).
A experiência constatada, todavia, revelou que a tributação progressiva constitui
instrumento ineficaz para a realização da reforma agrária.22
A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, por sua vez, é
regulada na Constituição da República, no Estatuto da Terra e na Lei Complementar n.
73/93.
Pressupõe o descumprimento da função social da propriedade rural (art. 186 da CF)
e é realizada pela União, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária
com cláusula de preservação de valor real, resgatáveis no prazo de vinte anos a partir do
segundo ano da sua emissão, sendo que as benfeitorias úteis e necessárias serão
indenizáveis em dinheiro, a teor do que preleciona o art. 184, § 1º, da CF.
Sem querer adentrar nos pormenores da fase administrativa e judicial da
ferramenta, já que não é o objeto deste estudo, importa destacar que ela constitui
mecanismo importante de reforma, que, consoante exposto, deve agregar à questão agrária
a preocupação ambiental.

3. Reforma Agrária no Estado Socioambiental de Direito: o componente ambiental

Embora a variável ambiental seja constatada em diversos diplomas jusagraristas23,

21
Art. 47. Para incentivar a política de desenvolvimento rural, o Poder Público se utilizará da tributação
progressiva da terra, do Imposto de Renda, da colonização pública e particular, da assistência e proteção à
economia rural e ao cooperativismo e, finalmente, da regulamentação do uso e posse temporários da terra,
objetivando: I - desestimular os que exercem o direito de propriedade sem observância da função social e
econômica da terra; II - estimular a racionalização da atividade agropecuária dentro dos princípios de
conservação dos recursos naturais renováveis; III - proporcionar recursos à União, aos Estados e
Municípios para financiar os projetos de Reforma Agrária; IV - aperfeiçoar os sistemas de controle da
arrecadação dos impostos.

22
PEREIRA, Rosalina Pinto da Costa Rodrigues. Op cit. p. 146.
23
Como já mencionado, o Estatuto da Terra (Lei nº4.504, de 30 de novembro de 1964) arrola a
conservação dos recursos naturais como pressuposto para o cumprimento da função social da propriedade

300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

no Brasil, é perceptível que a Política de Reforma Agrária teve como prioridade a


problemática fundiária, sem relevar preocupação com o meio ambiente. A prática
governamental, desse modo, desconsiderou a degradação ambiental nos assentamentos
de reforma agrária, o que foi motivo de críticas acirradas dentro e fora do plano
doutrinário.
Se hoje somos um Estado Socioambiental de Direito, incorporar as questões
ambientais na gestão governamental é caminho inevitável. Isso significa que,
também na Política de Reforma Agrária, considerando todos os instrumentos que
nela estão inseridos, o núcleo ambiental deve necessariamente ser internalizado.
Embora tenhamos apontado que o componente ambiental deve consubstanciar pressuposto
para a implementação dos instrumentos para a realização da reforma agrária, estudiosos afirmam,
em contraposição e paradoxalmente, que a concretização da política agrária tem sido realizada à
custa de intensa degradação ambiental, haja vista o necessário desmatamento para a implantação
do sistema produtivo.24
Nessa linha, embora inequivocamente inter-relacionadas, o que se verifica é uma grande
dificuldade de compatibilização das dimensões agrária e ambiental no que se refere aos setores
públicos e privados.
Sobre o tema, Neide Esterci aponta que:

De um lado, estão os anseios de solução dos problemas advindos da


carência acumulada, da demanda reprimida de espaço para morar, de
terra para produzir com autonomia, reproduzindo as condições de vida
social; de outro a urgência de proteger ecossistemas frágeis do ponto
de vista do seu equilíbrio e da sua capacidade de reprodução,
valiosos como reserva de biodiversidade e recursos genéticos para a
humanidade e a vida no planeta.25

rural (art. 2º). Dentre outros diplomas, exemplificamos os seguintes: Lei nº 4.947, de 6 de abril de
1966, que fixa as normas de Direito Agrário (art. 13); Decreto nº 59.566, de 14 de novembro de 1966,
que regulamenta vários artigos do Estatuto da Terra e da Lei nº 4.947; Lei nº 5.686, de 12 de
dezembro de 1972, que cria o Sistema Nacional de Cadastro Rural, dentre outras providências (art. 5º -
áreas de preservação permanente são beneficiadas com a isenção do ITR); Decreto nº 95.715, de 10 de
fevereiro de 1988 (art.1º e art. 3º III); Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que regulamenta os
dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, (o art. 9º, inciso II, estabelece a “utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente” como requisito para
que o imóvel rural cumpra sua função social); Lei nº 9.393, de 19 de dezembro de 1996, que dispõe
sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), não considera como áreas tributáveis as áreas de preservação
permanente.
24
SPAROVEK, Gerd. A qualidade dos assentamentos da reforma agrária brasileira. São Paulo:
Páginas & Letras Editora e Gráfica, 2003, p. 35.
25
ESTERCI, Neide. A luta pela terra e a função ambiental da propriedade. In: ESTERCI, Neide; VALLE,
Raul Silva Teles do. Reforma Agrária e Meio Ambiente. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003, p.

301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A despeito dessa reconhecida dificuldade, a inserção do componente ambiental na Política


de Reforma Agrária traduz necessidade da qual a sociedade e os seus representantes não podem
fugir.
Assim, ainda que de forma incipiente, pode-se exemplificar, dentre as iniciativas
governamentais, que a aprovação pelo CONAMA da R esolução n. 289/2001, que determina
os procedimentos para o licenciamento ambiental dos projetos de reforma agrária como
marco relevante.26
A Resolução estabelece a necessidade de concessão de licença prévia para a
criação de assentamentos e da concessão de licença de instalação e operação para aqueles
que já haviam sido criados, embora os defensores dos movimentos socioagraristas
debatam a questão.
Em verdade, se este estudo, ainda que brevemente, visa à visualização da Reforma
Agrária na perspectiva do Estado Socioambiental, é porque a simbiose entre as relações
agrária e ambiental é de fato existente.
Diante disso, as questões não podem ser tratadas separadamente. Veja-se,
ilustrativamente, que o cultivo de alimentos pode ser executado com práticas sustentáveis
de renovação ambiental.
A interpretação de que o desmatamento traduz um “mal necessário” em prol a
produção alimentícia constitui uma visão limitada e imediatista, que desconsidera nossa
responsabilidade com a vida futura (equidade intergeracional).
Segundo Castanho Filho27, para resolver a questão social, faz-se necessário:

[...] promover profundas mudanças estruturais na economia e na


sociedade, que permitam uma distribuição mais equânime da
riqueza gerada e não tentar distribuir pobreza através do
agravamento das condições ambientais, por mais boa-fé que essas
propostas encerrem. É preciso que fique claro que as duas questões têm
origem comum e só se resolverão pelo equacionamento de suas
causas últimas e não apenas de seus sintomas. Resolver a questão
agrária às expensas do ambiente é algo que provavelmente jamais
poderá ser reparado, gerando um processo autodestruidor irreversível.

9-17.
26
LOPES, Juarez Brandão; GARCIA, Danilo Prado. Reforma Agrária, População e Meio Ambiente – A
experiência brasileira recente. Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n.67, nov. 2003, p.33- 55.
27
CASTANHO FILHO, Eduardo P. A ecologia e o problema agrário, um falso dilema. Revista Pau
Brasil, São Paulo, ano III, n.15, nov./dez. 1986, p. 10-15.

302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Imprescindível, portanto, tratar a distribuição da terra sem desconsiderar a


preservação ambiental, de modo que, para que haja um desenvolvimento sustentável,
o executor da reforma agrária brasileira e os demai s atores que participam desse
processo devem concretizar essa aproximação.

4. Reforma Agroambiental: realidade atual?

Posta a necessidade de um caminhar simultâneo das relações agrária e ambiental, vale


ressaltar que o processo de implementação da Política Agrária agregada à preservação ambiental
ainda é bastante incipiente.
Malgrado se verifique que a inserção da questão ambiental no processo de reforma
agrária já foi iniciada, mediante pressões da sociedade civil e externas que geraram
certa conscientização dos gestores públicos sobre a questão, não há como negar que se
trata de processo em desenvolvimento.
Os instrumentos jurídicos estão disponíveis, uma vez que a legislação há muito
contempla a preservação dos recursos naturais, embora ainda requeira melhora. O fato é
que, a título de exemplificação, a desapropriação pela má gestão ambiental não é uma
realidade.
Pode-se considerar que a edição da Resolução Conama 237/97, que passou a
considerar os projetos de assentamento e colonização como empreendimentos
sujeitos ao licenciamento ambiental um exemplo da interação agroambiental.
Araújo28 pondera que a implementação desses projetos tardou a acontecer e a
mesma dificuldade tem se verificado no que se refere ao Plano de Ação Ambiental do
INCRA.
Segundo dados oficiais, a autarquia passou a

28
ARAÚJO, Flávia Camargo de. Reforma agrária e gestão ambiental: encontros e desencontros.
Dissertação de Mestrado. Disponível em:
<http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/10482/2541/1/Fl%C3%A1via%20Camargo%20de%20Ara%C3%B
Ajo.pdf>. Acesso em: 22.10.2012). Em seu estudo, arremata que o licenciamento para esses projetos
demorou a ser implementado. Em função disso, diversos órgãos ambientais e inclusive o Ministério
Público apontaram para a irregularidade dos assentamentos no que tange à legislação ambiental e
alguns projetos foram embargados. Entretanto, considerando as demandas do movimento social e os custos
para a realização dos estudos ambientais, a elaboração de EIA/Rima, prevista na Resolução Conama
237/97, não daria para compatibilizar com os trâmites da reforma agrária. Iniciou-se então um
processo de discussão a respeito do licenciamento ambiental dos assentamentos a fim de simplificar
os procedimentos.

303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

[...] desenvolver várias ações estruturantes para a incorporação de gestão


ambiental no processo de implantação e desenvolvimento dos
assentamentos de reforma agrária. A mais expressiva delas foi alteração
da Estrutura Regimental do INCRA criando, na sede da Autarquia, a
Coordenação-Geral de Meio Ambiente e Recursos Naturais, com o seu
correspondente nas Superintendências Regionais, definindo claramente o
locus para o tratamento das ações de meio ambiente e recursos naturais.
Para se elevar a capacidade operacional e a multidisciplinariedade, foram
realizados concursos incorporando-se aos quadros da autarquia, cerca de
1.800 novos servidores, dos quais, parte considerável foi alocada neste
setor. Desenvolveu-se muitas ações voltadas para a criação de
capacidades institucionais segundo um processo de capacitação de
servidores e gestores quanto ao tema da gestão ambiental, especialmente
no que se refere à exploração sustentável das áreas florestadas e de
Reserva Legal, inclusive aquelas anteriormente degradadas. No exercício
de 2007, foram realizadas ações para a estruturação dos setores de meio
ambiente institucionais.29

O Plano de Ação Ambiental do INCRA tem por objetivo efetivar a gestão


ambiental integrada dos projetos de assentamento de reforma agrária, utilizando-se o
licenciamento ambiental como um instrumento de desenvolvimento, defesa e conservação
do meio ambiente, respeitadas as diretrizes, as regras e os critérios estabelecidos em leis e
em resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA.
É, ainda, um instrumento de promoção da regularização e de monitoramento
ambiental dos projetos de assentamento visando à gestão integrada e o desenvolvimento
socioambiental dos projetos de assentamento de reforma agrária.30
Estabelece, como eixos estratégicos, o licenciamento ambiental, a recuperação
ambiental dos assentamentos, o monitoramente ambiental e a promoção da gestão
ambiental dos assentamentos.31
O instrumento consubstancia inegável reflexo do início de uma postura
governamental que visa à conjunção das relações agroambientais, porém uma efetiva
atuação conjunta governamental e privada ainda é uma meta a ser alcançada, pois a mais
simples análise da questão, desprovida de um olhar técnico, leva à conclusão de que a
variável ambiental ainda é desprestigiada pelos movimentos reformistas.

29
Plano de Ação Ambiental do INCRA. Disponível em:
http://www.incra.gov.br/portal/arquivos/institucional/plano_acao_ambiental_v11dez2008.pdf.> Acesso: 12
jul 2011.
30
Idem.
31
Idem.

304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

5. Considerações finais

“A visão da essência da realidade vigente – a injustiça – pode conduzir à


essência da realidade possível: um mundo ético. Aqui, não se brinca com
fantasias e ilusões, não se enfeitiça as esperanças: leva-se a esperança a
sério, não se perde tempo com o vácuo entre o que existe e o que pode vir
a existir. A realidade é construção, construção do futuro sobre os
alicerces do momento em que se vive. E o momento presente é eterno,
pode ser eternizado como primeiro passo ético, está à espera de sua
sempre possível eternidade, de sua inscrição em um futuro diferente. A
utopia tornada realidade é mais forte do que qualquer realidade presente e
corroborada, tornada estática, porque seu sentido não é, como muitas
vezes se pensa, o que não existe, mas sim o que ainda existe e vibra no
próximo momento, oferecendo sua existência possível no dinamismo da
abertura do futuro.”32 (destaque não original).

A Reforma Agrária certamente não deve ser tratada como uma utopia.
E dentro da perspectiva do Estado Socioambiental de Direito, o debate do tema
reflete a concepção humanista do direito agrário e do direito ambiental, que coloca a vida
humana (e não humana) presente e futura no centro.
A preservação ambiental, portanto, revela-se inerente ao desenvolvimento da
atividade agrária, inclusive porque a viabilidade desta depende das próprias manifestações
do meio ambiente.
A interação do componente ambiental e agrário, todavia, não é tarefa que compete
apenas ao agente público, embora seja ele efetivamente o executor da Reforma Agrária,
tema deste estudo.
Canotilho trata que o Estado Socioambiental contemporâneo está ligado às
seguintes dimensões fundamentais: juridicidade, democracia, sociabilidade e
sustentabilidade ambiental, de modo que a qualificação de um Estado Socioambiental
pressupõe duas dimensões jurídico-políticas.33
A primeira concerne à obrigação do Estado, em cooperação com outros Estados e
cidadãos ou grupos da sociedade civil, de promover políticas públicas (econômicas,
educativas, de ordenamento), pautadas pela sustentabilidade ecológica.
Ainda, e não menos importante, faz-se necessário o dever de adoção de
comportamentos públicos e privados amigos do ambiente, com a assunção de

32
SOUZA, Ricardo Timm de. Em torno à diferença: aventuras da alteridade na complexidade da
cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris 2008, p. 121.
33
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de Direito. Cadernos Democráticos, n. 7, Fundação Mario
Soares. Lisboa: Gradiva, 1998, p. 23.

305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

responsabilidade dos poderes públicos perante as gerações futuras, primando pela


responsabilidade pública e privada (art. 225, caput, da CF).
O modelo estatal está atrelado à necessidade de uma compreensão integrada do
regime jurídico dos direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais,
ligado, portanto, à idéia de sustentabilidade a partir dos eixos econômico, social e
ambiental, aplicados isonomicamente.
Todavia, como pondera Ayala e Morato Leite, na prática, uma consecução do
Estado de Direito Ambiental só será possível a partir da tomada de consciência global da
crise ambiental, (...) o que exige uma cidadania participativa, que compreende a ação
conjunta do Estado e da coletividade na proteção ambiental.34
Não há como conceber a proteção ambiental com uma visão individualista, sem
solidariedade e responsabilidades difusas,35 o que demanda mudança na tarefa estatal e na
política ambiental intercomunitária.
Temos, assim, um Estado em transição e uma sociedade em transição, que deve se
pautar na prática cooperativa como meio indispensável para a consecução efetiva da
proteção ambiental intergeracional.
No que se refere à renovação objetivada pela Política de Reforma Agrária, é
inegável que a preocupação ambiental não deve ser vista como um obstáculo à sua
implementação pelos movimentos sociais agraristas, malgrado ainda seja a realidade atual.
E essa mudança de concepção é necessária.
A distribuição de terras realizada de forma sustentável reflete o efetivo cumprimento
da função social da propriedade rural, já que, como exposto neste estudo, a variável
ambiental não pode ser dela dissociada.
Ao trabalhador rural é reconhecido o direito subjetivo à exploração sustentável nos
assentamentos e, para tanto, são lhe ofertadas ferramentas de proteção, mas a ele também
compete o dever de preservação, seja como proprietário, seja como cidadão.
Os instrumentos jurídicos existem. Basta, portanto, a vontade do Estado e da
sociedade de aplicá-los, de modo a permitir que esse processo de renovação – no
dinamismo da abertura do futuro – torne-se realidade.

34
LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Op cit. p. 39.
35
Ibidem. p. 40.

306
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A mineração em território quilombola: reflexões a partir do caso do quilombo Kalunga

L’exploitation minière dans Le territoire quilombola: réflexions à partir du cas du


quilombo Kalunga

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1

Rodolfo Nunes Franco 2

Resumo: O presente trabalho discorre sobre questão bastante debatida atualmente, qual seja, a
extração mineral em territórios indígenas e quilombolas. A temática discutida versa,
notadamente, sobre a extração mineral irregular no território quilombola Kalunga situado na
região centro-oeste do Brasil, notadamente nas regiões norte e nordeste do Estado de Goiás,
compreendendo os municípios de Teresina, Cavalcante e Monte Alegre. A questão debatida
neste trabalho versa, também, sobre a existência de ação civil pública movida pelo ministério
público federal para tentar embargar e suspender os procedimentos de pesquisa e lavra na
comunidade quilombola Kalunga, os quais estão sendo executados sem a devida observância
dos procedimentos ambientais para evitar danos ao meio ambiente, e sem a prévia consulta a
esta comunidade.

Palavras-Chave: Direito Agrário; Exploração Mineral; Kalunga.

Resumé: Le présent travail parle de question beaucoup discute actuellement, qui est
l’extraction minièredans les territoires indigène et quilombolas. La thématique discute aborde,
notablement, sur l’extraction minière irregulière dans le territoire quilombola Kalunga situe
dans les régions nord et nord-est du l’État de Goiás, notablement dans les municipalités de
Teresina, Cavalcante e Monte Alegre. La question discute dans cet travail parle, aussi,
surl’existance de action civile publique de proposition du ministère publique federale pour
arreté et suspendre les procediments de recherche et lavra dans la communauté quilombola
Kalunga,les queles sont execute sans l’observance des procediments environnementales pour
evité dommages au moyen environnement, et sans a préalable consulte a cette communauté.

Mots-clé: Droi tAgraire; Exploitation Minière; Kalunga.

1
Professora Titular da Universidade Federal de Goiás. Doutora em Direito pela PUC-SP. Estágio Pós-Doutoral
em Coimbra. Coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Agrário da UFG.
2Mestrando em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES. E-mail:
rodolfo7fr@yahoo.com.br.

309
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1 INTRODUÇÃO

O tema é a análise da extração mineral em território quilombola, notadamente os


Kalunga do norte e nordeste do Estado de Goiás, compreendendo os municípios de Teresina,
Monte Alegre e Cavalcante.

O problema consiste na falta da observância dos procedimentos legais que precedem


qualquer tipo de atividade mineradora. Além disso, trata-se de um caso em que a extração
mineral ocorre em território quilombola Kalunga, o que provoca profundas alterações não só
no meio ambiente da região, mas também nos modos de vida dessas comunidades. Podemos
destacar também que a atividade mineradora constitui um dos elementos que garantem o
progresso da indústria, e por outro lado afeta os direitos das comunidades tradicionais, no
caso os Kalunga.

A justificativa do presente trabalho consiste no fato de a extração irregular de


minérios ocorrer em área Kalunga, cuja comunidade possui cultura e modos de vida
peculiares e diferenciados que devem ser protegidos.

O objetivo deste trabalho é ampliar a discussão acerca da temática da exploração


mineral em território Kalunga. Além disso, pretendemos demonstrar que a atuação do
ministério público federal configura uma força na luta contra as empresas mineradoras que
extraem minérios sem as devidas recomendações ambientais, principalmente no que diz
respeito à liberação de licenças indevidas pelo IBAMA (instituto brasileiro do meio ambiente)
e DNPM (departamento nacional de produção mineral).

Quanto ao método utilizado no presente artigo, o mais adequado é o método


indutivo. Entende-se por método indutivo aquele “no qual se busca uma regra geral a partir da
análise de um caso particular” (BARRAL, 2010, p. 62).

A discussão sobre a questão da mineração e sua exploração, no Brasil, não é recente.


Territórios indígenas, quilombolas e outras áreas que não abrigam as referidas comunidades
sempre foram alvo da cobiça de empresas que desejam explorar minérios no Brasil.
No decorrer da ocupação dos portugueses no território brasileiro, a mineração, além
de outras formas de exploração para produção de riquezas, foi a base da economia durante
muitos anos.

310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Primeiro, a economia se sustentou pela exploração da madeira, o pau Brasil, em


seguida veio o ouro e depois a pecuária 3, quando todas as formas já estavam esgotadas e os
meios de exploração já não eram suficientes para explorar o minério com maior sofisticação.

Na tentativa de demonstrar fatos históricos que comprovam uma suposta evolução


deste tipo de exploração, não com o intuito de fazer uso de um anacronismo, ou seja, olhar o
presente com os olhos do passado, mesmo porque, ao contrário do que muitos pensam, a
história não é algo que se evolui, mas sim aquilo que rompe com algum momento do passado,
numa perspectiva de ruptura e não de sequência, tentaremos relacionar o atual estágio da
mineração no Brasil com a nossa herança colonial, com a ânsia lucrativa das mineradoras e
com a própria riqueza que a natureza nos oferece.

Para Motta (2012, p. 27 e 28),

[...] È certo que em razão da exploração do ouro das Minas Gerais, a economia
portuguesa conheceu um período de relativa prosperidade, sendo o setor mercantil o
principal beneficiário dos recursos gerados pela mineração. Em meados do século
XVIII, porém, a queda da produção do minério revelava o que o período de riqueza
tendeu a ocultar, a dependência portuguesa em relação a suas colônias, imprimindo a
necessidade de uma reconversão parcial, cujo exemplo maior foram as reformas
pombalinas [...].

A referida autora refere-se a um período de relativa prosperidade quando se trata da


exploração de minérios naquela época, notadamente o ouro. Hoje, além do ouro, há também
outros minérios que provocam a cobiça de potentes grupos, no sentido econômico, em
explorar áreas, impróprias para a agricultura e pecuária, que têm reservas de minérios.

É inegável que as atividades mineradoras são de fundamental importância para o


desenvolvimento do país e da sociedade. A indústria necessita dos recursos oriundos da
mineração para se alavancar e assim produzir bens indispensáveis para a sociedade. Porém,
precisamos pensar que o exercício desta atividade sem a observância das normas ambientais,
principalmente em território Kalunga, pode gerar problemas graves para o meio ambiente e
para as comunidades tradicionais.

3
MAIA, Cláudio Lopes. Diálogo pessoal na sala dos mestrandos na FD/UFG em junho de 2012. A pecuária foi a
atividade que mais contribuiu para a formação da propriedade da terra no Brasil, inclusive sua apropriação. Esse
tipo de atividade exige muito espaço para a criação de gado e com isso ocorreu o surgimento de grandes
fazendas que eram cercadas com base na presença do gado, ou seja, a propriedade se estenderia até onde os
animais conseguissem alcançar.

311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Atualmente o que notamos é o aumento dessa exploração, principalmente em países


emergentes. Além das hidrelétricas, agora temos os projetos de mineração que visam a
extração mineral, principalmente, em áreas que abrigam comunidades indígenas e
quilombolas. O problema é que essas atividades extrativas nem sempre observam os direitos
das comunidades e as regras ambientais pertinentes ao tema.

O principal empreendimento mineral que temos hoje é o caso de Belo Monte.

[...] A implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar


definitivamente a mineração em terras indígenase em áreas que as circundam, em
particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente
secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do
barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de
exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará
seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu4[...].

O discurso da implantação do projeto da Usina de Belo Monte é principalmente a


construção da barragem para geração de energia hidrelétrica a partir do represamento das
águas do Rio Xingu. É sabido que a construção de barragens gera impactos ambientais
irreversíveis, desloca sociedades tradicionais, altera seus modos de vida, abala a cultura de
povos indígenas, quilombolas, fundos de pasto, faxinalenses, quebradeiras de coco,
ribeirinhos e vários outros povos que habitam a região e dela sobrevivem.

Para Berno (2009, p. 17)

[...] No momento atual as ações governamentais objetivam incorporar o potencial


dos recursos hídricos à produção de energia elétrica. Não há propriamente uma
descoberta do ponto de vista do planejamento econômico. Há uma ilusão, uma
confusão de aparência com realidade. Em outras palavras o que ocorre é uma
modalidade de intervenção estatal que imagina estar diante de um patrimônio
cultural, apoiado num quadro natural, socialmente construído por povos e
comunidades tradicionais. Estes povos e comunidades centenariamente têm utilizado

4
Disponível em :<http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=7608>.
Acesso em: 11 jan. 2013.

312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

a floresta e as águas para sua reprodução física e cultural, sem destruir e devastar a
cobertura vegetal e as águas dos rios, lagos, várzeas, igapós, terras firmes, paranás e
igarapés. O valor ecológico acha-se incorporado ao modo de criar, fazer e viver
expresso por indígenas, ribeirinhos, quilombolas e pescadores artesanais. As
corredeiras podem ser consideradas como parte deste conjunto de bens da natureza
que são portadores de referência à identidade coletiva, bem como à memória e à vida
social dos povos e comunidades tradicionais. Integram, deste modo, o patrimônio
cultural amazônico tanto como valor histórico, quanto como condição de futuro.
Transcendendo, pois, à dimensão meramente econômica das narrativas históricas
está-se diante de um patrimônio cultura, nos termos do Art. 216 da Constituição
Federal de 1988, que deve ser mantido e protegido pelo poder público [...].

Preconiza Nardy (2003, p. 209) que,

[...] Toda e qualquer obra ou atividade modificadora do meio ambiente encontra-se


sujeita ao procedimento de licenciamento ambiental. Fixados os contornos do
projeto a ser licenciado, podem estes indicar que a obra ou atividade que se pretende
desenvolver assume, sob o prisma de seus impactos socioambientais, proporções
significativas, hipótese em que a AIA deverá assumir necessariamente a forma do
procedimento de estudo prévio de impacto ambiental (EIA), conforme
expressamente dispõe o artigo 225, § 1º, IV, da Constituição da República [...].

O mesmo autor (2003, p. 209), discorrendo sobre o regulamento brasileiro do


procedimento de estudo de impacto ambiental, preconiza que,

[...] O enquadramento do projeto objeto de licenciamento ambiental na categoria de


obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente é realizado por seu cotejamento com uma lista exemplificativa oferecida
pelo artigo.

2º da resolução do CONAMA n. 01/86. De acordo com esse dispositivo, sujeitam-se


ao procedimento do EIA, entre outras, as seguintes obras ou atividades: a) estradas
de rodagem com duas ou mais faixas de rolamento; b) ferrovias; c) portos e
terminais de minério, petróleo e produtos químicos; d) aeroportos; e) oleodutos,
gasodutos, minerodutos, troncos coletores e emissários de esgotos sanitários; f)
linhas de transmissão de energia elétrica, acima de 230 quilovolts; g) obras
hidráulicas para exploração de recursos hídricos; h) extração de combustível fóssil;
i) extração de minério e vários outros exemplos [...].

313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para Marchesan (2007, p. 125), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº
6.938/81)5, contempla a avaliação dos impactos ambientais dentre os instrumentos dessa
política de prevenção e precaução contra os danos ao meio ambiente. Nesta Lei os impactos
ambientais vêm descritos no artigo 9º, inciso III.

A mesma autora (2007, p. 112) afirma que “na hierarquia de objetivos visados pelo
Direito Ambiental, o primeiro deles é, sem dúvida, evitar o dano”. Além de esta autora arrolar
e identificar os princípios gerais do direito ambiental, ela inclui o planejamento ambiental e o
estudo prévio de impacto ambiental como instrumentos que antecipam qualquer
empreendimento que possa provocar danos ao meio ambiente. É o caráter preventivo do
direito ambiental.

O princípio da precaução e prevenção estão intimamente ligados com as questões


ambientais. Qualquer empreendimento ambiental, para evitar graves danos à natureza, precisa
passar pelo crivo dos órgãos licenciadores, os quais levam em consideração a aplicação dos
referidos princípios.

Para Leite (2003, p. 171), o estudo do direito ambiental exige a análise de alguns
princípios que devem ser observados “antes de se valer da responsabilização, e há que se ter
um Estado com uma política ambiental eficiente e se valer, entre outros, da precaução e
atuação preventiva, com vistas a evitar a lesão ambiental”.

No caso em questão, por se tratar de extração mineral, já qualificada pelo MPF


(ministério público federal) como “atividade irregular”, é importante que sejam observados o
princípio da prevenção e precaução nesta atividade como forma de evitar danos ao meio
ambiente.

2 ABORDAGEM NORMATIVA DA MINERAÇÃO

A temática relativa à mineração está inserida na Constituição Federal de 1988 6 da


seguinte maneira.

5
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.
6
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 17 jan. 2013.

314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

CAPÍTULOII
DA UNIÃO

Art. 20. São bens da União:

IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de


energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de
exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a
propriedade do produto da lavra.

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais


a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou
empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no
País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas
atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

§ 2º - É assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra,


na forma e no valor que dispuser a lei.

§ 3º - A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado, e as


autorizações e concessões previstas neste artigo não poderão ser cedidas ou
transferidas, total ou parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente.

§ 4º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do


potencial de energia renovável de capacidade reduzida.

Capítulo VI

DO MEIO AMBIENTE

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.

§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio


ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público
competente, na forma da lei.

315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão


os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Na Lei nº 9.605/987 a matéria pertinente à mineração está disposta no artigo 55, que
assim dispõe,

Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a


competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a
obtida:

Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área
pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão
ou determinação do órgão competente.

A matéria referente à mineração também encontra disposição na Lei nº 7.8058 de 18


de julho de 1989, a qual estabelece condições ao titular de autorização de pesquisa. O artigo
18 e 19 da referida Lei dispõem que

Art. 18. Os trabalhos de pesquisa ou lavra que causarem danos ao meio ambiente são
passíveis de suspensão temporária ou definitiva, de acordo com parecer do órgão
ambiental competente.

Art. 19. O titular de autorização de pesquisa, de permissão de lavra garimpeira, de


concessão de lavra, de licenciamento ou de manifesto de mina responde pelos danos
causados ao meio ambiente.

Para Machado (2010, p. 723), analisando esta Lei “constata-se que tanto no plano das
sanções, como no plano da responsabilidade civil, o titular de autorização de pesquisa tem o
dever de não degradar a natureza e agir preventivamente para que o dano ambiental não
ocorra”.

A execução de qualquer empreendimento que irá afetar as condições naturais de


determinado ambiente traz a preocupação acerca da ocorrência de dano ambiental.

7
Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em: 12 mar. 2013.
8
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7805.htm>. Acesso em:13 mar 2013.

316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Atualmente ocorre a extração mineral principalmente para satisfação dos interesses


da construção civil. Os minerais utilizados neste tipo de empreendimento são conhecidos
como os minerais de classe II9.

Além disso, devemos destacar que a exploração de minérios e o discurso de sua


implantação, estão diretamente ligados à expansão da fronteira em direção à região
amazônica, ultrapassando a floresta de transição entre o cerrado e a Amazônia. No passado a
expansão da fronteira se dava principalmente a partir dos projetos de colonização em áreas
que serviriam para a formação de pastagens para criação de gado. Hoje os projetos de
expansão ocorrem, principalmente, em áreas que têm um grande potencial de reservas de
minérios para ser explorados.

Para Carlos Frederico Marés10 e Mariana Annibelli,

[...] A mineração é um dos setores básicos da economia do país, contribuindo de


forma decisiva para o bem estar e a melhoria da qualidade de vida das presentes e
futuras gerações, sendo fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade
equânime, desde que seja operada com responsabilidade social, estando sempre
presentes os preceitos do desenvolvimento sustentável e de sustentabilidade
socioambiental [...].

A ideia preconizada é de que a atividade mineradora é fundamental para o


desenvolvimento em toda a sua plenitude, assim concebida a ideia de desenvolvimento
defendida por Amartya Sen (2000), gerando renda para as comunidades envolvidas,
respeitando as regras ambientais e melhorando a qualidade de vida das pessoas.
Além disso, percebe-se que a atividade mineradora tem que ter como parâmetro de
exploração a preservação do meio ambiente e a precaução quanto aos riscos que tal atividade
pode gerar. Seria ridículo dizer que a exploração de minérios não gerasse riscos ambientais
para o local onde se instala a atividade. Mas devemos destacar que a observância dos padrões
ambientais e a consulta prévia às comunidades tradicionais podem gerar relevantes melhores
em suas condições de vida.

9
Disponível em: <http://www.prgo.mpf.gov.br/images/stories/ascom/not-1384-ACP.pdf>. Acesso em: 11 jan.
2013.
10
Disponívelem:<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/carlos_frederico_mares_de_souza_filho2
.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2013.

317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Pensamos que os riscos são enormes e entendemos que a visão dos autores acima
referidos é no sentido de que estes riscos podem ser minimizados a partir da observância de
determinadas condições para que a atividade se desenvolva provocando menos agressão ao
meio ambiente e às pessoas que vivem no local.

3 O NOVO MARCO REGULATÓRIO

A discussão referente ao novo marco regulatório no Brasil é algo que vem causando
polêmica.

Atualmente se debate novas possibilidades em relação à substituição do Código de


Minas11 de 28 de fevereiro de 1967, por um “novo marco regulatório da mineração”sob os
mais variados argumentos, como exemplo o alargamento do exercício da soberania do Brasil
sobre suas reservas de minerais.

[...] Em 2011, o Ministério de Minas e Energia resolveu lançar a discussão do novo


Marco Legal da mineração brasileira, fez um diagnóstico onde apontou burocracia e
certa "fraqueza" do poder concedente como as principais dificuldades que atingem o
setor. Entre os objetivos propostos para o novo Marco Legal estão o fortalecimento
do Estado para ter soberania sobre os recursos minerais, propiciar o maior
aproveitamento das jazidas e atrair investimentos para o setor mineral. Tudo indica
que os investidores já estão a postos12[...].

De um lado os interesses dos povos que habitam as regiões que são passíveis de
exploração pelo poder estatal ou por empresas estrangeiras que desejam fazer investimentos
para satisfazer seus anseios lucrativos. De outro, o Estado tentando definir os rumos da
mineração no Brasil e satisfazendo os interesses do capital externo.
As comunidades indígenas e quilombolas reagem a este tipo de situação, pois tais
empreendimentos causam sérios danos ambientais à região onde se instalam. O que mais
almejam é serem ouvidos sobre a viabilidade ou não da execução dos projetos de exploração

11
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0227.htm>. Acesso em: 11 jan. 2013.
12
Disponível em: <http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=7608>.
Acesso em: 11 jan. 2013.

318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

mineral e, além disso, participação nos lucros que as mineradoras auferem com a exploração
do minério.
Em visita à comunidade Kalunga em novembro de 2012 durante o II Kalunga
Cidadão promovido pela UFG, o Kalunga Cezariano Santos Rosa, habitante do povoado de
Engenho II, município de Cavalcante-GO, alegou que “por aqui aparece todo tipo de gente e
empresas para explorar as riquezas do sítio histórico. As mineradoras chegam aqui, não
conversa com a gente, e explora nossas riquezas e nós não ganhamos nada com isso. Sou a
favor da extração mineral desde que ganhamos alguma coisa com isso, pois a comunidade
também precisa de renda para sobreviver13”.
Esse é apenas mais um exemplo de quanto a comunidade necessita de ser ouvida
previamente sobre os efeitos da extração mineral. O relato acima colacionado evidencia o
desrespeito em relação aos direitos dos quilombolas no que diz respeito à pesquisa e lavra de
minérios em suas terras.
Com base na fala do quilombola percebemos que a comunidade não é contra a
extração mineral em seu território, mesmo porque precisam de renda para que consigam
melhores condições de vida. O que demandam é que sejam consultados e ouvidos
previamente e que parte da renda oriunda da atividade mineradora seja revertida em
benefícios para a comunidade.

4 EXTRAÇÃO MINERAL EM TERRITÓRIO QUILOMBOLA: O CASO KALUNGA

A comunidade quilombola Kalunga está situada nas regiões norte e nordeste do


Estado de Goiás, notadamente nos municípios de Teresina, Monte Alegre e Cavalcante.
O território Kalunga abrange uma área de aproximadamente 262 mil hectares, um
misto de lugares montanhosos e outros com belas planícies que oferecem ótimas condições
para a prática da agricultura e pecuária.
Fonte de nascentes de águas que abastecem vários rios e cachoeiras, contando
também com a existência de uma fauna e flora exuberante, a região do quilombo Kalunga
atraem vários turistas e isso justifica o turismo como prática econômica geradora de renda
para a comunidade.

13
Diálogo pessoal realizado no dia 17 de novembro de 2012 na comunidade Engenho II no município de
Cavalcante-GO.

319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A economia se desenvolve principalmente por meio do turismo sustentável e da


criação do curraleiro bovino, raça que foi reinserida na região pelo projeto14 de iniciativa da
Escola de Veterinária e Zootecnia da UFG, através de esforços da professora doutora Maria
Clorinda Soares Fioravanti e sua equipe.
Dentre os problemas que existem na referida comunidade, o principal deles é “a falta
de titulação dos territórios quilombolas” (FRANCO, 2012, p. 48).
Soma-se a isto a exploração de madeira, a extração da folha do “cabeçudo15” para
fabricação de vassouras e a abertura de estradas pelos fazendeiros sem o devido estudo prévio
de impacto ambiental e em total desobediência à aplicação do princípio da precaução.
De acordo com Wold (2003, p. 17)
[...] A articulação mais comumente conhecida e empregada deste princípio é
encontrada na Declaração do Rio, a qual estabelece que, havendo ameaças de danos
sérios e irreversíveis ao meio ambiente, a falta de certeza científica absoluta não
deve ser usada como razão para se adiar a adoção de medidas economicamente
viáveis destinadas a evitar ou reduzir os danos ambientais em questão [...].

A extração mineral irregular é outro problema que afeta a comunidade Kalunga. Isso
já vem sendo discutido pelo MPF (ministério público federal) por meio da ação civil pública16
proposta em julho de 2012 contra o DNPM (departamento nacional de produção mineral) e
União Federal. Na referida ação o Ministério Público Federal demanda a suspensão, ao
DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) e à UNIÃO, de todos os requerimentos
de pesquisa ou lavra mineral que incidem no território da comunidade Kalunga até que ocorra
a consulta à mesma, e de todos os efeitos jurídicos das portarias de concessão de lavra mineral
existentes no território Kalunga, respectivamente.
Soma se a isso a ausência do procedimento ambiental de abertura de estradas, que
alteram a flora da região e favorece o início de erosões e deslizamentos nos trechos
montanhosos, alterando todo o cenário ambiental do local por onde a estrada atravessa.

[...] A base da referida ação encontra-se no inquérito civil público n.


1.16.000.001941/2007-20, que foi instaurado com o objetivo de apurar a ocorrência
de atividades associadas à extração mineral e a existência de título minerário
expedido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral no interior e na área do

14
Reintrodução do gado curraleiro na comunidade quilombola Kalunga de Cavalcante, Goiás, Brasil: Resultados
parciais. Disponível em:<www.cpac.embrapa.br/download/574/t>. Acesso em: 26 out. 2012.
15
Cabeçudo é uma espécie de palmeira típica da região onde se situa o sítio histórico kalunga. Diálogo pessoal
com o senhor Jorge, kalunga habitante do povoado engenho II, realizado no dia 17 de novembro de 2012 na
comunidade quilombola Engenho II durante o II kalunga Cidadão promovido pela UFG.
16
A ação civil pública encontra abrigo normativo na Lei nº 7.437 de 24 de julho de 1985.

320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

entorno do quilombo Kalunga. De acordo com informações então colhidas, a


existência da atividade garimpeira estaria causando danos ambientais e prejudicando
a comunidade formada por remanescentes de quilombos. Tendo notícias de tais
irregularidades, o Ministério Público Federal, a fim de que a questão fosse
corretamente delineada, solicitou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) informações circunstanciadas sobre a
existência de atividade de mineração na região e os impactos ambientais causados.
[...] .17

De acordo com dados do Ministério Público Federal18, no tocante à emissão de


licenças ambientais, o chefe do 6º distrito/GO do DNPM foi questionado pelo MPF e
asseverou que o
[...] DNPM tem adotado como procedimento apenas exigir o licenciamento
ambiental quando o requerimento de pesquisa implicar a emissão de guias de
utilização que permitam a extração mineral ainda na fase de lavra [...].

De acordo com Machado (2010, p. 721) o DNPM (departamento nacional de


produção mineral) tem competência para “promover a outorga dos títulos minerários relativos
à exploração e ao aproveitamento dos recursos minerais e expedir os demais atos referentes à
execução da legislação minerária”.
Da mesma forma, o secretário de meio ambiente e recursos hídricos do Estado de
Goiás, quando questionado pelo MPF19, salientou que o “DNPM não costuma consultar,
previamente, a SEMARH para autorizar requerimentos de pesquisa no interior do território
Kalunga”.
A representante da Fundação Cultural Palmares, quando questionada pelo MPF20,
aduziu que
[...] A comunidade Kalunga vem informando ao DNPM sobre a extração irregular
de ouro em seu território e que a comunidade Kalunga não vem sendo consultada
pelo DNPM sobre a questão da mineração em seu território. Requereu que a
comunidade Kalunga fosse consultada por intermédio da Fundação Palmares [...].

17
Disponível em: <http://www.prgo.mpf.gov.br/images/stories/ascom/not-1384-ACP.pdf>. Acesso em: 11 jan.
2013.
18
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20.
19
Idem.
20
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20.
.

321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Dada a palavra ao procurador federal do DNPM, este afirmou que “Os alvarás de
pesquisas concedidos pelo DNPM são legais, na medida em que a poligonal do Sítio Histórico
Kalunga ainda não foi oficializada 21”.
O analista ambiental do IBAMA, quando indagado pelo Ministério Público
Federal22, aduziu que
[...] O sítio histórico Kalunga é uma ‘zona cinzenta’ e não se sabe se deve ser regido
por legislação federal ou estadual. Afirmou que a área não tem natureza de unidade
de conservação. Em relação à emissão de licenças pelo DNPM, entende não existir
uma cultura - por parte de empreendedores e do próprio DNPM – de se exigir
licença ambiental em fase de pesquisa mineral nos casos de insignificante impacto
ambiental. Considera um exagero tal formalidade [...].
Os depoimentos acima colacionados demonstram certo descaso em relação à
organização da documentação que autoriza a extração mineral no território Kalunga e de que
o Departamento Nacional de Produção Mineral, principalmente, tem conduzido os
procedimentos sem ouvir a comunidade Kalunga. Além de não consultar as
comunidadessobre as vantagens e desvantagens da extração mineral, os empreendimentos
minerários não respeitam as leis ambientais, como a retirada de licença ambiental e o estudo
prévio de impacto ambiental.
Os argumentos para a não observância dos procedimentos para prevenção de danos à
comunidade e ao meio ambiente são os mais variados, vejamos alguns. O analista ambiental
do IBAMA considera um “exagero a exigência de licença ambiental na fase de pesquisa
mineral”. O DNPM afirma que “não é costume exigir licença ambiental em fase de pesquisa
mineral nos casos de insignificante impacto ambiental”.
Em parecer 23 emitido pelo Geólogo da Superintendência do DNPM-GO/DF datado
31 de março de 2010 acerca da extração mineral em território Kalunga, afirma que,
O DNPM não exige apresentação de licenciamento ambiental na fase de pesquisa
por falta de previsão legal. É oportuno mencionar que, em casos considerados
excepcionais, é possível a autorização de extração mineral, ainda na fase de
autorização de pesquisa, através do instrumento denominado guia de utilização.

21
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20.
22
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20.
23
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20.

322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

No depoimento da representante da fundação cultural palmares, observamos que o


principal anseio da comunidade é a consulta prévia da mineradora sobre os limites e
possibilidades da atividade de extração mineral e com isso participarem da renda e dos lucros
da lavra oriundos da região do território Kalunga.
No caso em questão, notamos que tanto a Constituição Federal de 1988 quanto a
convenção nº 169 da OIT, as quais preconizam que as comunidades tradicionais devem ser
ouvidas, previamente, sobre as atividades desenvolvidas em seus territórios, estão sendo
desrespeitadas. O artigo 6º da referida convenção 24 assim dispõe,
Artigo 6.º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e,
particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam
previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em
todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos
administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que
lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas
dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com
boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um
acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas.

Trechos da petição 25 do Ministério Público Federal demonstram a situação em que se


encontram a comunidade quilombola Kalunga.
Ocorre que, como se depreende do comando constitucional e da Convenção nº 169
sobre Povos Tribais e Indígenas da Organização Internacional do Trabalho – OIT,
para a exploração mineral em área ocupada por tais povos, é imprescindível a oitiva
prévia da comunidade, o que não ocorre na espécie.
O DNPM tem conduzido os procedimentos em questão sem adevida consulta à
comunidade Kalunga, gerando grave insegurança jurídica quanto àscondições da
atividade minerária no local.

24
Disponível em: <www.oitbrasil.org.br/node/292>. Acesso em 12 mar. 2013.
25
Disponível em: <http://www.prgo.mpf.gov.br/images/stories/ascom/not-1384-ACP.pdf>. Acesso em: 11 jan.
2013. Negrito no original.

323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Assim, tolhe-se da comunidade a oportunidade de se manifestar acerca do plano de


pesquisa apresentado ao órgão, ficando sem abordagem, ainda, questões importantes
como as rendas e indenizações devidas, bem como a participação nos lucros da
lavra.

O relato acima colacionado demonstra que o DNPM (departamento mineral de


produção mineral) não tem observado os parâmetros de exploração mineral na região do
quilombo Kalunga, configurando desrespeito ao que prescreve o texto constitucional e a
convenção 169 da OIT. Esta no sentido de que a comunidade Kalunga não está sendo ouvida
sobre os riscos e benefícios do empreendimento de pesquisa e lavra mineral. Aquele, no que
diz respeito ao não cumprimento do artigo 68 do ADCT (ato das disposições constitucionais
transitórias), que assim dispõe “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos
que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos”, pois se têm, enquanto garantia constitucional, direito sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, consequentemente têm direitos de ser ouvida em
relação aos empreendimentos minerários em seu território.
Para Teixeira, Fonseca e Casseb (2009, p. 137),
[...] A territorialidade, compreendida como um esforço coletivo de uma dada
sociedade para ocupar, utilizar, controlar e identificar uma parte de seu ambiente
biofísico tem uma multiplicidade de expressões e uma variação de tipos de
territórios que necessita ser levada em consideração. No desejo de compreender as
relações de grupo com seu território faz-se necessário entender sua cosmografia
(entendendo aí seus saberes ambientais e tradicionais, suas ideologias e identidades
coletivas historicamente criadas e situadas no contexto da territorialidade), seu
regime de propriedades e de acesso aos recursos naturais disponíveis, os vínculos
afetivos da população com esse território, a história de sua ocupação mantida pela
memória coletiva e suas relações de uso, defesa e guarda [...].

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente novas regiões têm atraído os interesses do mercado, que busca meios de
legitimar sua atuação em determinados territórios. As mineradoras, diante da exigência do

324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

mercado e da possibilidade de auferir altos lucros, estão ocupando territórios, como os


Kalunga, para explorá-los economicamente.
A degradação ambiental e a consequente escassez de recursos naturais provoca o
avanço sobre novas áreas em busca de matéria prima. No caso em questão, a região do
quilombo Kalunga, localizado nas regiões norte e nordeste do Estado de Goiás e devido às
suas riquezas naturais, é alvo de projetos de mineradoras que extraem areia e outros minérios
na região do vale do rio Paranã de forma irregular, principalmente no que diz respeito à
observância dos parâmetros ambientais e na consulta prévia à comunidade quilombola
Kalunga.
Além disso, as mineradoras estão adentrando outras áreas, também pertencentes ao
quilombo Kalunga, para extrair outros minérios, que serão usados principalmente na
construção civil26.
Além dos danos causados ao solo em virtude das escavações, os empreendimentos de
extração mineral, sem a observância dos procedimentos ambientais, afetam florestas,
nascentes, cursos hídricos e contaminação dos mananciais. A abertura de estradas em áreas de
preservação permanente também configura outro problema que afeta a comunidade
quilombola Kalunga.
Essas ocupações, geralmente, se dão de forma desordenada, desrespeitando os
direitos dos quilombolas e as leis ambientais no que se refere à pesquisa e lavra dos minérios.
Essas circunstâncias deram ensejo à propositura de ação civil pública pelo Ministério
Público Federal, como já citado anteriormente. Diante das demandas dos quilombolas, foram
realizadas audiências públicas em alguns povoados do território Kalunga com a intenção de
discutir os rumos da extração mineral diante das possíveis mudanças ocorridas com a
instituição do novo marco regulatório da extração mineral no Brasil.
Esperamos que a atuação do ministério público federal possa amenizar os danos
causados pelas mineradoras em área que abriga o quilombo Kalunga e que a exigência dos
procedimentos de licenciamento ambiental para as atividades de pesquisa e lavra, emitidos
tanto pelo DNPM quanto pelo IBAMA, possam configurar um importante instrumento de
preservação das peculiaridades deste quilombo, desde que os referidos órgãos construam uma
consciência crítica no sentido de visualizarem a importância da proteção dessas comunidades.

26
Ministério público federal. Procuradoria da República no Distrito Federal. Inquérito Civil Público n.
1.16.000.001941/2007-20

325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O que a comunidade quilombola Kalunga mais deseja é o respeito aos seus direitos e
terem oportunidade de exporem suas opiniões e demandas acerca dos empreendimentos de
extração mineral em seu território.
Por isso, esperamos que o presente trabalho possa de alguma forma contribuir para
os estudos sobre o assunto, contribuindo também para a pesquisa acadêmica e para o
surgimento de novas ideias sobre o tema.

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fevereiro de 1967, cria o regime de permissão de lavra garimpeira, extingue o regime de

326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

matrícula, e dá outras providências. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7805.htm>. Acesso em: 13 mar. 2013.

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327
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328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) como instrumento do direito


ambiental urbanístico brasileiro: um dever do município e dos cidadãos na
sua efetivação.

The Neighborhood Impact Study (EIV) as an instrument of urban Brazilian


environmental law: the duty of the municipality and citizens on its behalf.

Marcelo Vanzella Sartori1

RESUMO
A participação nas tomadas de decisões sobre empreendimentos e demais atividades que
possam causar significativo impacto ambiental, se mostram como possibilidades de
participação da sociedade afeta pelos possíveis impactos causados ao meio. Assim, busca-se
analisar a possibilidade de participação da coletividade referente aos impactos causados pelas
atividades urbanas, dando-se ênfase aos dispositivos específicos da Constituição Federal de
1988 e do Estatuto da Cidade (lei federal n° 10.257/2001) que concretizam o Estudo de
Impacto de Vizinhança (EIV) como um instrumento hábil e obrigatório aos municípios no
alcance de tais propósitos. Verifica-se a necessidade de estudos sobre regras gerais de direito
ambiental urbanístico estabelecidas pelo Estatuto da Cidade e dos conceitos e conteúdos
específicos do EIV, suas influências, sua viabilidade de implementação, suas vinculações e
distinções dos institutos de direito administrativo e suas semelhanças e distinções para com o
Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Verificam-se as possíveis e úteis implementações que
referido instrumento é capaz de gerar como benefício ambiental-urbanístico, entendendo-se
como de obrigatoriedade da autoridade pública municipal sua implantação coerente.

PALAVRAS CHAVE: Direito Ambiental Urbanístico; Estudo de Impacto de Vizinhança


(EIV); Estatuto da Cidade; Obrigatoriedade do Município.

ABSTRACT

1
Doutorando em Direito Ambiental Internacional e Mestre em Direito Ambiental pela UNISANTOS. Professor
Universitário na Faculdade Santa Lúcia de Mogi Mirim/SP e Faculdade Municipal Prof. Franco Montoro de
Mogi Guaçu/SP. Bolsista PROSUP/CAPES junto ao Programa de Doutorado em Direito Ambiental
Internacional da UNISANTOS em 2013.
Advogado e Consultor Jurídico.
E-mail: vanzellasartori@hotmail.com

329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Participation in decision-making on projects and other activities that may cause significant
environmental impacts, appear as opportunities to participate in society affects the possible
impacts to the environment. So, we try to analyze the possible participation of the community
regarding the impacts of urban activities, with emphasis on specific devices of the Federal
Constitution of 1988 and the City Statute (Federal Law No. 10.257/2001) embodying the
Study Neighborhood Impact (EIV) as an adroit and binding instrument to municipalities in
achieving these aims. There is a need for studies on general rules of urban environmental law
established by the City Statute and the concepts and specific contents of EIV, their influences,
their feasibility of implementation, their linkages and distinctions of administrative law
institutes and their similarities and distinctions for the Environmental Impact Assessment
(EIA). There are possible and useful implementations that this instrument is capable of
generating as urban-environmental benefit, it being understood as a requirement of public
authority consistent municipal its implementation.

KEYWORDS: Urban Environmental Law; Neighborhood Impact Study (EIV); City Statute;
Mandatory Municipality.

INTRODUÇÃO

O Direito Ambiental Urbanístico e suas interfaces com as questões cotidianas


alimentam uma série de instrumentos e diretrizes nas quais incorrem o direito brasileiro para o
alcance de uma melhor qualidade de vida aos cidadãos que habitam os centros urbanos.
Esta pesquisa mostra detalhes acerca do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) e
sua necessidade de aplicação como instrumento de uma política urbana consistente na
promoção de planejamento adequado para os munícipes utilizarem o solo urbano de maneira
racional, buscando minimizar os incômodos problemas de saúde, segurança, transporte e
demais reflexos que podem surgir de atividades ou empreendimentos nas adjacências das
propriedades e locais de residências de moradores.
Apontam-se aspectos de direito ambiental urbanístico, a influência e regra normativa
trazida pelo Estatuto da Cidade como um compêndio de instrumentos a serem utilizados e
implantados pelos municípios no alcance dos objetivos sobreditos de qualidade de vida e
forma sustentável de convívio coletivo urbano.
Durante o levantamento, colocam-se opiniões sobre determinados fatores expostos
pela legislação no tocante ao arcabouço jurídico de obrigatoriedade de instituição do Estudo

330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

de Impacto de Vizinhança (EIV) a serem estabelecidos pelos municípios, com suas


respectivas peculiaridades, num melhor aproveitamento urbano.
Por fim, evidenciam-se as avaliações e críticas sobre a necessidade de Estudo de
Impacto Ambiental (EIA) e/ou Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), estabelecendo suas
diferenças e semelhanças, num contexto final para a análise da participação popular como
forma de melhoria das condições das cidades junto da atuação do Poder Público local.

2. DIREITO AMBIENTAL URBANÍSTICO

Os conglomerados urbanos assumem a característica primordial de abrigarem nos


dias atuais a maior parte da população humana em termos globais, que convivem em
sociedade e interagem com o meio em que vivem.
Diante de tal fenômeno que evolui há séculos, é certo que o fundamento da
urbanização é tornar o convívio social mais agradável e funcional, diante da formação das
cidades habitadas e integradas por estas populações humanas, passando a ser um novo “ator
social” que interage entre o aspecto global e o local. Tal fenômeno é descrito como
cosmopolização da cidade, onde esta não desaparece em sua essência, mas se funde no espaço
que ocupa passando a integrar-se por meio de uma rede.
Com a complexidade das interações sociais humanas, há a necessidade de regras de
caráter urbanístico que atuam no meio social também por meio do Direito, das leis,
organizando melhor a ordenação da realidade urbana em prol do interesse coletivo.
Portanto o Direito Ambiental Urbanístico se apresenta como uma disciplina que
conta com princípios recém consignados (com mais veemência a partir do século XX) e novos
diplomas legislativos, tratando do conhecimento sistêmico de normas jurídicas reguladoras da
atividade do Poder Público destinado a organizar os espaços habitáveis.
As normas urbanísticas no Brasil se apresentam de forma esparsa em diversos
diplomas legais, possuindo nos termos de Hely Lopes Meirelles (1979), o objetivo primordial
da “ordenação das cidades”, por meio da disciplina de uso e ocupação do solo, delimitação de
áreas de interesse social, imposição de limitações na construção de imóveis, instrumentos de
intervenção (como o tombamento) etc.
Tratado como ramo do direito público, o Direito Ambiental Urbanístico estuda e
formula princípios e normas reguladoras da atividade urbanística, principalmente através de
meios de intervenção na propriedade privada, justamente na busca do equilíbrio necessário
dos direitos privados diante do direito público. No caso específico urbanístico, evidencia-se

331
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

sua aplicação por meio de planejamento urbano, ordenação do solo, urbanização, proteção
ambiental e turística.
Estas interfaces de Direito Ambiental Urbanístico com os instrumentos de Direito
Administrativo levam à ideia de se tratar da inclusão daquele direito neste, porém analisando-
se sumariamente a natureza jurídica de ambos, nota-se que em matéria de Direito Ambiental
Urbanístico há expressão da natureza do instituto quanto à regulação na atividade de
distribuição do espaço urbano, quando em Direito Administrativo a natureza se relaciona
quanto às normas do poder de polícia dos entes federados.
Com a utilização das regras traçadas pelo Direito Ambiental Urbanístico,
logicamente se mostra necessária a utilização de formas e instrumentos definidos também
pelo Direito Administrativo, entendendo-se que o Direito Ambiental Urbanístico toma forma
autônoma de ramo do direito, cabendo ressalvar que os princípios próprios deste ramo se
firmam especialmente nos da legalidade (toda e qualquer ação deve se pautar na lei), da
função pública do urbanismo (ordenando a realidade de acordo com o interesse coletivo
local), da conformação da propriedade urbana, da coesão dinâmica das normas urbanísticas,
da edificabilidade, da redistribuição (captura de parte da renda da urbanização para
possibilitar as condições habitacionais e urbanas nas cidades) e principalmente o da função
social da propriedade.
Com a referência constitucional em 1988 sobre a forma de tratamento do Direito
Ambiental Urbanístico como disciplina jurídica (artigo 24 da CF/88), confirma-se a máxima
de que a pura expressão deste direito se resume no direito da política espacial da cidade,
cabendo apontar que
O papel que a Constituição de 1988 implicitamente assinalou ao Direito Urbanístico
é o de servir à definição e implementação da „política de desenvolvimento urbano‟, a
qual tem por finalidade „ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes‟ (art. 182, caput). O Direito
Urbanístico surge, então, como o direito da política de desenvolvimento urbano, em
três sentidos: a) como conjunto das normas que disciplinam a fixação dos objetivos
da política urbana (exemplo: normas constitucionais); b) como conjunto de textos
normativos em que estão fixados os objetivos da política urbana (os planos
urbanísticos, por exemplo); c) como conjunto de normas em que estão previstos e
regulados os instrumentos de implementação da política urbana (o próprio Estatuto
da Cidade, dentre outros). (SUNDFELD, 2002. pp.48/49)

Diante do artigo 182 da CF/88, que estabelece amplamente as questões relativas às


funções sociais da cidade, nota-se o estabelecimento de uma adequação do uso do solo urbano
como fator principal de tal busca, de forma a gerar boa qualidade de vida a seus munícipes e a
todos aqueles (inclusive pessoas jurídicas) que ali desenvolvam suas atividades.

332
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Aliado ao entendimento e interpretação de função social da cidade, está a questão da


função social da propriedade inclusa neste mesmo artigo 182 da CF/88, que encontra suas
raízes históricas nas encíclicas papais e também base na função econômica da propriedade,
referida nas Constituições Mexicana (1917) e de Weimer, na Alemanha (em 1919).
Para a propriedade urbana essa função social deverá ser implementada por meio de
planos de desenvolvimento e delineamento da política urbana, adequando uma destinação
econômica, de utilidade, produtiva e a um só tempo, também vislumbrar as necessidades
sociais a que a propriedade atinge. Com esta harmonia entre os direitos privados e direitos
coletivos a que se busca estabelecer a relação entre as formas de utilização da propriedade é
que nota-se o direcionamento legal para o atendimento vocacional da propriedade quanto à
utilização dos recursos disponíveis em tal bem.
Busca-se não só a utilização individualista do bem “propriedade” mas a conciliação
do mesmo com os anseios sociais a que deve cumprir, tratando-se de elemento que determina
claramente o que se considerará danoso à coletividade e no exercício do funcionamento de
poderes decorrentes do direito de propriedade, servindo como instrumento de harmonização
da propriedade privada como direito fundamental com a sua destinação social, não servindo
na sua ausência, como uma justificativa que lhe retire sua legitimidade.
Com essa materialização Constitucional de atendimento aos anseios da função social
da cidade e consequentemente, da função social da propriedade, aplica-se o Estatuto da
Cidade, abordado a seguir.

3. ESTATUTO DA CIDADE

A Lei federal nº 10.257/01 que se autodenominou de Estatuto da Cidade, surgiu


como marco regulamentador dos artigos 182 e 183 da CF/88, com finalidade especial de
regular o uso da propriedade urbana tanto individual quanto coletivamente, buscando o
equilíbrio ambiental, o bem-estar dos cidadãos e a segurança dos mesmos. Em consequência
disto, afirma-se que de acordo com o Estatuto de Cidade não há que se falar somente em
interesse dos proprietários quanto à utilização de seus bens, mas sim, de terem atenção quanto
à geração de poluição, consequências da pretendida utilização quanto ao trânsito gerado em
decorrência desse uso, resguardo de áreas verdes e demais fatores que possam sofrer com a
destinação indesejada (em desacordo com a CF/88 e o Estatuto da Cidade) da propriedade.
O Estatuto da Cidade traz em suas diretrizes (art. 2º) e em seus diversos
instrumentos (art. 4º) de aplicação da política urbana sustentável, uma forma de repetição de

333
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

alguns institutos jurídicos anteriormente encontrados em outros diplomas legais (como


Código Civil) destacando-os quanto à aplicação destes no meio urbano, com raras inovações
jurídicas aplicáveis.
Portanto, entende-se que a lei em análise uniformiza a nomenclatura dos institutos
urbanísticos em seu texto, não sendo esta uniformização estanque. Não que isto sirva como
forma crítica de analisar esta peculiaridade da lei, mas de forma a nos levar à busca de uma
análise maior de um instrumento inovador neste contexto.
É marcante também no Estatuto da Cidade o incentivo da participação popular
(principalmente por meio de consultas populares) daqueles que se interessam em apresentar
propostas e melhoras do local onde se divertem, trabalham, estabelecem suas relações diárias,
enfim, onde vivem. Esta participação popular estará intimamente ligada ao auxílio quanto às
formações de estruturas de controle social das tomadas de decisões pela população de forma
direta, não só através dos representantes do legislativo ou dos membros do executivo.
Esta participação busca, em suma, o compartilhamento entre Poder Público e
População dos afazeres sociais quanto ao alcance da melhoria da qualidade de vida nos meios
urbanos, aplicando-se os dispositivos da lei e colocando em prática os dizeres de direito
ambiental regrados na Constituição Federal de 1988 (em especial, artigo 225) e normas
infraconstitucionais.
O §2º do artigo 4º do Estatuto da Cidade prescreve que os instrumentos em exame,
quando necessitarem de recursos financeiros municipais, além dos controles institucionais
formais, devem submeter-se ao controle social (participação de comunidades, movimentos e
entidades da sociedade civil).
E um destes instrumentos capazes de atingir de forma conciliatória os anseios do uso
adequado do solo urbano, da participação popular e do equilíbrio ambiental é o Estudo de
Impacto de Vizinhança (EIV), o qual passa a ser tratado.

4. ESTUDO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA (EIV)

O EIV está descrito inicialmente no Estatuto da Cidade em seu artigo 4º, VI,
compreendido como um instrumento ambiental voltado para o espaço urbano, o qual deverá
observar as questões de infraestrutura local para analisar as questões de moradia e qualidade
de vida urbana.
Está previsto juntamente com o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), nos quais
todos estão adstritos às características peculiares de planejamento urbano, limitação

334
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

administrativa da propriedade particular e com objetivos gerais também inerentes aos demais
instrumentos previstos no Estatuto da Cidade para evitar a utilização inadequada de imóveis
urbanos, proximidade entre usos incompatíveis, prejuízos à infraestrutura urbana,
subutilização ou não utilização de imóveis e poluição ambiental.
Enquadrado pela lei como um dos instrumentos com possibilidade de dar grande
resposta às expectativas do atendimento da função social da cidade, através do devido
cumprimento do Plano Diretor, concretizando através desta lei de diretrizes municipais toda a
ordenação racional do território urbano, com a participação popular e adaptação das
necessidades locais para um melhor meio de vida aos cidadãos.
O EIV funciona como divulgação e discussão pela sociedade, concluindo a
viabilização ou impedimento de empreendimentos na cidade, apoiando o bem estar do
cidadão que não quer atividades ou construções que lhe prejudicará ambiental, econômica
e/ou psiquicamente.
Sua ocorrência prioriza que não mais sejam efetivadas atividades e/ou
empreendimentos à revelia do interesse público, conforme ocorre rotineiramente em cidades
onde somente a análise imediatista e econômica são as avaliadas superficialmente com intuito
de geração de emprego, sem a análise do órgão público ou do empreendedor, daquilo que a
determinada implantação estará fatalmente causando ao entorno da obra, à população
envolvida e ao suporte ambiental local a médio e longo prazos.
Para isso, o próprio Estatuto da Cidade trata mais detalhadamente sobre o EIV
vinculando-o à Lei Municipal, sua forma de execução e demais detalhes tratados a seguir.
4.1. Forma legal
O Estatuto da Cidade vem para tentar corrigir certas discrepâncias no tocante às
questões do crescimento urbano desordenado e caótico servindo como instrumento cuja
regulamentação é obrigatória para aqueles municípios descritos naquela lei, em razão de sua
vinculação aos requisitos mínimos exigidos para a composição do Plano Diretor nas cidades.
Esta vinculação se dá de forma indireta da seguinte maneira: o artigo 42 do Estatuto
da Cidade estabelece que “O Plano Diretor deverá conter no mínimo: (...) II – disposições
requeridas pelos arts. 25, 28, 29, 32 e 35 desta Lei”.
Ocorre que na Seção X do Estatuto da Cidade, que trata das operações urbanas
consorciadas especificamente em seus artigos 32 e 33 tem-se que “Lei municipal específica,
baseada no Plano Diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações consorciadas
(...)”.

335
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Na sequência a Lei estabelece o que vêm a ser operações urbanas consorciadas e no


artigo 33 estabelece o mínimo necessário para se constituir a lei específica municipal que irá
reger a operação urbana consorciada, dizendo que
Art. 33 – Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada
constará o plano de ação urbana consorciada, contendo, no mínimo:
(...)
V – estudo prévio de impacto de vizinhança; (...).

Portanto, de forma adjeta, o EIV consta no Estatuto da Cidade como requisito


mínimo para formar o Plano Diretor de todos os municípios obrigados a instituí-lo em seus
ordenamentos jurídicos locais, pois o artigo 42 da Lei 10.257/01 exige que haja a adoção de
operações urbanas consorciadas que, por sua vez, esta adoção exige que lei específica,
tratando sobre estas operações urbanas consorciadas, contenha obrigatoriamente o EIV como
instrumento de plano de ação.
Diante dessa interpretação lógica da legislação urbanística sobredita, verifica-se o
tratamento específico sobre o EIV nos artigos 36 ao 38 do Estatuto da Cidade.
Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou
públicos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto
de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação
ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.

Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e


negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população
residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes
questões:
I – adensamento populacional;
II – equipamentos urbanos e comunitários;
III – uso e ocupação do solo;
IV – valorização imobiliária;
V – geração de tráfego e demanda por transporte público;
VI – ventilação e iluminação;
VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que
ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal,
por qualquer interessado.

Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudo


prévio de impacto ambiental (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental.

O EIV se destina a projetos habitacionais, institucionais ou comerciais para os quais


causam impacto significativo no meio ambiente urbano, sendo colocado ao município a
possibilidade de determinar quais empreendimentos, obras e/ou atividades serão objeto de
estudo para firmarem sua implementação.
Assim, há a busca pelo EIV de uma avaliação à repercussão do empreendimento
sobre as paisagens urbanas, sobre as atividades humanas instaladas, sobre a movimentação de

336
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pessoas e mercadorias e sobre os recursos naturais da vizinhança nos termos do artigo 37 do


Estatuto da Cidade.
4.2. Conceitos
Diante do instrumento que harmoniza uma oportunidade de avaliar (e de até mesmo
escolher) os prós e contras de projetos urbanos com a participação popular e interesses locais
ecológico-econômicos, evidenciam-se alguns conceitos que são de salutar relevância sobre a
matéria exposta.
4.2.1. Vizinhança
A principal delas é mencionar o que vem a ser o termo “vizinhança” na composição
urbana, sem a preocupação quanto às questões estritamente estabelecidas pelo Código Civil,
que regula matéria inerente aos Direitos de Vizinhança (artigos 1277 ao 1313 do Código Civil
de 2002), que em resumo, segundo Silvio de Salvo Venosa (2003, p. 330) assume caráter de
“direitos de convivência decorrentes da proximidade ou interferência entre prédios, não
necessariamente da contigüidade”, com viés especial para a questão de direito unicamente
privado, com interferência ao exercício do direito de propriedade.
Na análise da doutrina civilista atual, observa-se uma proximidade da importância
que o tema dos direitos de vizinhança possa vir a acrescentar ao Direito Ambiental
Urbanístico (de caráter coletivo e de planejamento) cabendo apontar que
Vizinhança, portanto, em direito, não se confunde com simples contigüidade de
prédios. O núcleo de vizinhos, a vicinitude, pode ser mais ou menos amplo. O
espectro de pessoas atingidas pelo estorvo à vizinhança variará conforme a natureza
do distúrbio: sonoro, gasoso, edilício, comportamental etc, o simples
comportamento pessoal de vizinho pode ocasionar danos à vizinhança. O art.554
(antigo) e o art. 1277 (novo) não possuem como conteúdo, pois, apenas a noção de
proximidade entre prédios. Deve ser considerado vizinho o prédio mais ou menos
distante atingido pelo distúrbio. (VENOSA, 2003. p.333)

Analisando sob a ótica do Estatuto da Cidade, nota se tratar o termo “vizinhança”


como área que geralmente se delimita pelas vias lindeiras e quarteirões vizinhos, envolvendo
tráfego dos arredores atingidos, os fluxos e movimentações nas redondezas que têm influência
sob o espaço geograficamente afetado, de forma diretamente proporcional aos impactos
causados ou gerados no local em estudo.
Portanto, a ideia que se tem de vizinhança deve ser levada em conta pelo Estatuto da
Cidade, com caráter maior dos interesses coletivos que influenciam nas questões de bem-estar
populacional, impactos ambientais e questões econômicas, gerando a complexidade notória
sobre as questões de interesses coletivos.

337
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

4.2.2. Impacto Ambiental


Pode-se analisar a capacidade de extensão de um impacto como seu efeito durante
um período de tempo dentro de certo espaço, sendo que existem impactos positivos e
negativos relacionados à interação humana e meio ambiente.
Para efeitos didáticos, salutar a verificação apontada por Paulo Affonso Leme
Machado (2005. p.212) de que a Convenção sobre Avaliação de Impacto Ambiental
Transfronteiriço, assinada em Espoo (Finlândia) em 25 de fevereiro de 1997, trouxe uma
definição para o termo “impacto”, em seu artigo 1º, VII, como sendo
qualquer efeito de uma atividade proposta sobre o meio ambiente, notadamente
sobre a saúde e a segurança, a flora, a fauna, o solo, ao ar, a água, o clima, a
paisagem e os monumentos históricos ou outras construções ou a interação entre
estes fatores.

Também vale ressaltar o esclarecimento da doutrina brasileira em apontar a questão


dos impactos ambientais em razão da consequente alteração significativa da natureza em um
espaço de tempo determinado, passando a apontar com o ensinamento de Helmut Troppmair
apud MIRRA (2002, pp. 30/31) que
Entendemos por Impactos Ambientais alterações drásticas nas estruturas e fluxos no
sistema Meio Ambiente, ocorridas em espaços de tempo reduzidos. Meio ambiente,
lato sensu, abrange o meio abiótico, biótico, noótico, social e econômico. Ao ocorrer
um impacto, duas componentes estão em jogo: 1. as alterações na estrutura e no
fluxo; 2. o fator tempo. Como alterações de estrutura e fluxo entendemos
desmatamento, represamento de rios, drenagem de pântanos, deslocamento e
migração de pessoas, alteração no uso do solo, elevação ou abaixamento de salários
e preços, introdução de novas técnicas etc.
O tempo compreende minutos, horas, dias, semanas, meses anos, séculos, milênios.
Para definir se estamos perante um impacto devemos definir a grandeza das
alterações e a escala do Tempo. A mudança contínua na estrutura da sociedade ou o
levantamento muito lento da costa brasileira, através de séculos ou mesmo milênios
de anos, trarão alterações mas que são normais e previsíveis, portanto, não
constituem impactos. Já a descoberta da máquina a vapor e a conseqüente
mecanização da indústria num prazo de poucos anos ou o levantamento do istmo da
América Central, separando o oceano atlântico do pacífico com a respectiva flora e
fauna que seguiram evoluções diferentes, em milhares de anos, mas que representam
um período extremamente curto se considerarmos as eras geológicas, representam
um impacto.
Da mesma forma a mudança lenta da paisagem, com rotação de culturas, a
introdução de novas espécies vegetais ou de gado (tudo em escala reduzida),
representa a dinâmica normal da paisagem. Porém, se uma área de policultura em
micro ou meso campos é substituída em um ou dois anos por uma monocultura em
macrocampos, com desaparecimento total das estruturas e fluxos anteriores,
afetando toda a esfera abiótica e biótica, inclusive a população, sua maneira de
viver, sua qualidade de vida, além de toda a economia e as atividades a ela atreladas,
ocorre um impacto (Ex: Projeto proálcool).
Portanto, estamos perante um Impacto Ambiental quando as estruturas e os fluxos
do sistema ecológico, social ou econômico são alterados profundamente no decorrer
de um espaço de tempo muito reduzido. O termo „reduzido‟ deve ser analisado em
função da escala temporal e das dimensões ou grandezas das alterações ocorridas.

338
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

4.2.3. Estudo
A palavra “estudo” envolve o sentido de atribuição de valor a algo a ser examinado,
avaliado. Neste contexto, o levantamento efetuado para a influência ou afetação que a
vizinhança poderá estar sujeita em razão da implementação de certa atividade, servirá como
instrumento angular na busca da aplicação da lei em benefício da população.
Nesta linha de entendimento tem-se que
A função do procedimento de avaliação não é influenciar as decisões administrativas
sistematicamente a favor das considerações ambientais, em detrimento das
vantagens econômicas e sociais suscetíveis de advirem de um projeto. O objetivo é
dar às Administrações Públicas uma base séria de informação, de modo a poder
pesar os interesses em jogo, quando da tomada de decisão, inclusive aqueles do
ambiente, tendo em vista uma finalidade superior. (MACHADO, 2005. p.216)

5. O EIV E AS TERMINOLOGIAS URBANÍSTICAS, ADMINISTRATIVAS E


AMBIENTAIS.
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), conforme descrito na Lei nº 10.257/2001
(Estatuto da Cidade) como um dos instrumentos da política urbana, carrega em si a função de
atuar mediante o benefício da coletividade a que afetar, primordialmente de maneira a
propiciar o bem estar social e a melhoria da qualidade de vida da população urbana por meio
da preservação ambiental, cultural e social.
A forma de se dar funcionalidade a este anseio aguardado pela coletividade se apóia
na planificação estratégica, onde o Poder Público com a participação da coletividade, venham
a desempenhar funções práticas que concretizam o caráter preventivo e de planejamento,
almejando um desenvolvimento urbano organizado diferentemente do que vem ocorrendo
como tradição nas cidades brasileiras.
Observa-se que a falta de implementação, ou do Poder Público ou da coletividade, de
ferramentas que lhes são dispostas resultam nos inchaços populacionais observáveis nos
grandes centros urbanos; resultam também na evasão da zona rural e consequente
concentração nos centros urbanos da população ativa de certas localidades, acarretando em
problemas habitacionais, problemas de instalações irregulares de atividades industriais em
áreas inconvenientes para tal fim e em invasões de áreas ambientalmente preservadas que, em
razão destas ocupações irregulares, deixam de abastecer a população com seus bens naturais e
afetam a saúde dos seus moradores.
É neste cenário que se vislumbra a relevância da instituição do EIV, que através de seu
caráter de instrumento da política urbana deve ser aplicado nos termos de sua previsão legal
do artigo 4º, VI, do Estatuto da Cidade e da forma definidamente autônoma conforme descrito

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

nos artigos 36 ao 38 do mesmo Estatuto, dando ênfase ao seu caráter de instrumento social e
implementador de maior possibilidade de participação da coletividade no planejamento
urbano.
Para isto, EIV deve funcionar como documento que irá balizar toda uma
fundamentação referente a implantação de obras, conjuntos habitacionais, indústrias e
quaisquer outras atividades que impliquem em interferências ou relações significativas com as
populações urbanas.
Portanto a anterioridade do referido Estudo de Impacto de Vizinhança à concretização
da obra se nota premente pelo fator expresso de sua característica de ser um instrumento de
planejamento, sendo certo que tal estudo apontará os benefícios e os malefícios em que
estarão incorrendo as pretendidas ações, não só quanto à afetação do meio ambiente natural,
cultural ou construído, mas principalmente, quanto à aglomeração dos seres humanos que
serão atingidos (incomodados, beneficiados, afetados, estorvados etc) com a determinada
ação.
Este importante Estudo fornece ao Poder Público, responsável pelo licenciamento ou
autorização da atividade pretendida, condições de analisar e decidir a forma mais acertada
quanto a minimização de impactos sócio-ambientais. Este levantamento dos vários aspectos e
consequências que a pretensa implementação da atividade poderá vir a causar, materializa
todo o fomento de planejamento e prevenção que reveste o EIV.
Esta função de fomentar a análise pelo Poder Público do fornecimento de licença ou
autorização para a obra bem como, de servir como atrativo para a exigência da participação
popular para o seu cumprimento nos revela uma faceta de serviço ao bem coletivo, com a
expressa ressalva de que afeta diretamente o direito privado, em caso de restrição ao direito de
construir, daquele particular que se apóia nos ditames legais inerentes a tal direito quanto ao
cumprimento expresso daquilo que a lei vem determinar como exigência para obter uma
licença, por exemplo.
Ou seja, ao mencionar a atuação do Poder Público, necessária também a colocação das
formas em que este Poder deve utilizar seus instrumentos discricionários relevantes ao
controle da coletividade, conforme seguem descritos nas leis.
Na utilização do direito administrativo, ramo do direito público que dá essência à
funcionalidade e regramento do próprio Poder Público, as definições e distinções entre
“licença” e “autorização” se estenderiam demasiadamente através das variadas conclusões
resultantes da pesquisa doutrinária. Porém, para efeito de análise do presente estudo, limita-se
a diferenciação entre os sobreditos institutos sob a ótica do Direito Ambiental Urbanístico, de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

acordo com que parece ter o legislador a intenção de estabelecer, ou seja, o EIV como
instrumento da Política Urbana de acordo com as regras de Direito Ambiental Urbanístico.
Assim, a diferenciação entre os institutos, no sentido de que a “licença” é
compreendida como
ato administrativo (unilateral, vinculado e negocial), capaz de anuir com a prática de
determinada atividade, condicionada a sua concessão à análise do Poder Público, no
que diz respeito ao preenchimento, por parte do particular, de determinados
requisitos legais (SANTOS, 2001. pp.20/21)

Ainda, verifica-se a “autorização” como


ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível
ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados
bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei
condiciona à aquiescência prévia da Administração”. (MEIRELLES, 2001. p.179)

Nestes termos, entende-se que diante da análise administrativista dos termos


sobreditos, destacam-se várias diferenças entre os institutos pelos quais o Poder Público
fornece o alvará, licenciando ou autorizando, para a construção da obra. Porém, sob a presente
ótica de fundamentação da importância maior de Direito Ambiental Urbanístico verifica-se
apoio naqueles dizeres mencionados anteriormente, focalizados na análise no fato de lidar-se
com instrumento de Direito Ambiental Urbanístico, fruto dos instrumentos ditados pelo
Direito Administrativo que, pela funcionalidade do Poder Público, o utiliza para providências
em localidade urbana, por sua vez, integrante o meio ambiente lato sensu.
Portanto a intenção em foco não estaciona sobre o fato de estabelecer distinção entre
os institutos que, por muitas das vezes, são utilizados em nossa legislação brasileira de forma
não atenta aos detalhes de disparidades estabelecidas pela doutrina, mas aventar que na
eventualidade do Poder Público estabelecer um caráter de ser precário ou definitivo,
vinculado ou revogável o ato de anuir com a efetivação da obra ou ação por parte do
interessado, vislumbra a necessidade de situar tal ação com a referência ao fim que se quer
atingir, ou seja, a prevenção e o planejamento urbano por meio da melhoria sócio-ambiental
das condições das cidades.
Diante deste caráter ligado ao Direito Ambiental, lembramos que não há que se falar
em direito adquirido em sede de meio ambiente, sequer de direito subjetivo, mas sim, de
direito coletivo. Portanto, se o Poder Público anuir com a ação do pretendente, sob a presente
ótica, estar-se-á diante de, a qualquer momento, se rever tal possibilidade em prol de uma
adequação referente às questões sócio-ambientais passíveis de alteração e suscetíveis de
diferenças quanto a sua afetação conforme o transcorrer do tempo.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Também quanto ao direito de construir do particular, descrita nos artigos 1277 e


seguintes do Código Civil de 2002, ressalta-se o entendimento de Hely Lopes Meirelles
(1979) que as intervenções do Poder Público, não-licenciando ou não-autorizando a obra em
detrimento dos interesses desse particular, encontram apoio na pretensão apresentada pelo
interesse urbanístico, no sentido deste último ter o caráter de proteger o interesse público
através das ações do competente poder.
Por fim, após a análise de referidos institutos que terão o EIV como pedra angular de
apoio das tomadas de decisão em prol da coletividade urbana, afrima-se que nos instrumentos
de anuência fornecidos pelo Poder Público, o EIV deve funcionar como fator que dá
legitimidade de participação da sociedade à permissão de construir, por exemplo. Ou seja, já
que a licença tida como ato da administração pública para, unilateralmente conceder a
anuência para o administrado vir a, facultativamente, poder exercer seu direito, o EIV
servindo como ferramenta prévia a esta anuência, trazendo argumentos sociais e
apontamentos problemáticos locais sobre a tal construção, estará a Administração Pública
adstrita à análise de referido estudo para, aí sim, vir a anuir mediante termos específicos ou
até deixar de anuir com a pretensão do particular na sua ação.
Assim, o EIV funciona também como um propulsor da participação da população nos
processos de instalações urbanas, sendo que a administração pública obrigatoriamente terá
que se referir a tal estudo para fundamentar a viabilidade da anuência ou não de obra.
Portanto se lei específica cria o EIV, este instrumento se mostra necessário,
obrigatório e eficaz tanto para promover a análise adequada do empreendimento pelo Poder
Público, quanto para possibilitar a participação popular na elaboração do mesmo, quanto
ainda, sobrepor o interesse coletivo da população urbana ao direito individual do
empreendedor, conforme a necessidade de propiciar a melhoria da qualidade de vida dos
cidadãos e do meio ambiente.

6. SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE ESTUDO DE IMPACTO DE


VIZINHANÇA (EIV) E ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL (EIA)
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, que instituiu a política urbana brasileira de
que tratam os arts. 182 e 183 da CF, dentre outros instrumentos previu o Estudo de Impacto
de Vizinhança (EIV) para a obtenção de licenças ou autorizações municipais para a
construção, ampliação ou funcionamento de certos empreendimento e atividades.
Certamente o legislador ao elencar o EIV como instrumento da política urbana, assim
o fez em virtude da experiência obtida pelo uso do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que é

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

amplamente adotado desde a instituição da Política Nacional do Meio Ambiente pela Lei
6.938/81. O fato de o EIV ter as suas raízes no EIA não quer dizer que ambos sejam
equivalentes, e por isso a discorre-se sobre as similaridades e diferenças existentes entre eles.
Ambos são instrumentos de gestão cujas finalidades são principalmente a de dar
subsídio aos órgãos licenciadores para a tomada de decisão no exercício de suas respectivas
competências e a de informar a população interessada.
Ocorre que o EIV se restringe à esfera urbana por se tratar de estudo de previsão dos
possíveis impactos causados em determinado espaço urbano, por determinado
empreendimento ou atividade, principalmente no que se refere à qualidade de vida da
população residente na área de suas proximidades.
Já o EIA é mais abrangente por se tratar de estudo de impactos ambientais decorrentes
de atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, onde quer que
seja exercida.
Pela análise do conteúdo mínimo exigido legalmente dos dois instrumentos percebe-se
que não se tratam da mesma coisa. Conforme disposto na Resolução CONAMA 01/86, o EIA
deve definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos impactos
da atividade proposta; considerar os planos e programas governamentais (como por exemplo,
aqueles relacionados ao zoneamento ambiental), propostos e em implantação na respectiva
área de influência, e verificar a compatibilidade entre a atividade e esta; prever as alternativas
de localização e tecnologia do projeto; fazer o estudo e a descrição do meio físico, biológico e
sócio-econômico, no sentido de se permitir um juízo mais justo de valor entre as vantagens de
autorizar-se ou não o projeto; identificação e avaliação dos impactos ambientais do projeto
tanto na fase de implantação como de operação no que se refere à sua magnitude, se são
diretos ou indiretos, positivos ou negativos, imediatos ou a médio e longo prazos, temporários
ou permanentes, bem como o seu grau de reversibilidade e propriedades cumulativas ou
sinérgicas; medidas de correção, de mitigação, de compensação, em sendo o caso, dos
impactos desfavoráveis, de prevenção de riscos e maiores catástrofes e por fim a distribuição
dos ônus e benefícios sociais do projeto, ou seja, os prejuízos e as vantagens que advirão para
a sociedade.
O conteúdo mínimo do EIV, previsto no art. 37 do Estatuto da Cidade versa sobre
questões de adensamento populacional; equipamentos urbanos e comunitários; uso e
ocupação do solo; valorização imobiliária; geração de tráfego e demanda por transporte
público; ventilação e iluminação; paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

É importante ressaltar que o conteúdo mínimo tanto do EIA como do EIV refere-se ao
mínimo exigido por lei, entretanto, podendo os órgãos licenciadores competentes exigir o
exame de outras questões que sejam pertinentes ao empreendimento ou atividade em questão.
Conforme mencionado anteriormente, o EIV se refere ao meio ambiente no âmbito
urbano, ou seja, trata de temas relacionados ao bem-estar e saúde da população que vive em
espaços urbanos e visa antever os possíveis danos de ordem econômica e sócio-ambiental
provenientes de certas atividades ou empreendimentos. O EIV é instrumento que permite a
tomada de medidas preventivas pelo poder público a fim de evitar o desequilíbrio no
crescimento urbano, garantir condições mínimas de ocupação do território urbano e fazer com
que o uso da propriedade pelo particular não coloque em risco os outros valores ou garantias
assegurados à coletividade. (SOARES apud DALLARI, 2002. p.293)
Ainda em relação à análise do conteúdo mínimo de ambos estudos, é possível que em
se tratando de atividade ou empreendimento localizados em espaço urbano cuja elaboração de
EIA seja obrigatória, por força da Resolução 237 do CONAMA, e no caso desse estudo
englobar todo o conteúdo mínimo de um EIV exigido por lei, entende-se que este último
instrumento pode ser dispensado pelo órgão municipal, desde que a legislação municipal
preveja tal possibilidade.
Isso devido a dois motivos: o primeiro, porque o conteúdo mínimo de um EIV pode
perfeitamente se encaixar nas questões analisadas em um EIA, ou seja, a análise do
adensamento populacional, dos equipamentos urbanos e comunitários e da paisagem urbana
se enquadra ao quesito estudo e descrição do meio físico, biológico e sócio-econômico de um
EIA; já as questões relativas ao uso e ocupação do solo deverão ser necessariamente
contempladas na consideração de planos e programas governamentais; e por fim, a geração de
tráfego e demanda por transporte público, os aspectos ventilação e iluminação, bem como a
valorização imobiliária são questões relativas à identificação e avaliação dos impactos
ambientais.
O segundo motivo que nos leva a advogar pela possível dispensa é a desburocratização
do processo de licenciamento, uma vez que o órgão licenciador municipal já se encontraria
munido de todos os dados suficientes para formar seu juízo de valor, caso tivesse em mãos o
EIA que abrangesse questões envolvidas por um EIV. Porém, como dito anteriormente, tal
dispensa só poderia se dar se expressamente prevista em legislação municipal, uma vez que
incumbe aos municípios regulamentarem matéria que diz respeito ao Estudo de Impacto de
Vizinhança.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O Estatuto da Cidade ao dispor em seu art. 38 que a elaboração de EIV não substitui a
elaboração e a aprovação de EIA quando requeridas nos termos da legislação ambiental,
confirma a diferença existente entre os dois instrumentos, pois se fossem iguais um poderia
substituir o outro. É evidente que a natureza jurídica de ambos é a mesma, porém o enfoque
de cada um não é necessariamente sempre convergente. Diverso é o entendimento de Vanêsca
Buzelato Prestes (2004. p.83) que afirma:
O EIV é mais um instrumento de gestão previsto para a avaliação de impactos
urbanos. Entendemos que é similar ao EIA, porém como estabelece a própria lei,
não o substitui (art. 38, Estatuto da Cidade), sendo que, é nossa opinião, nas
hipóteses em que caiba o EIA não há que se falar em EIV. Ou é um ou é outro.

O certo é que o EIV é instrumento de suma importância na gestão urbano-ambiental e


para que ele se torne ainda mais efetivo é importante que as leis municipais prevejam a
realização de audiências públicas, dando maior abertura à população para participar do
processo de tomada de decisão. Por último, é importante mencionar que as atividades e
empreendimentos que estarão sujeitos ao Estudo de Impacto de Vizinhança deverão ser
definidos por lei municipal, conforme dispõe o art. 36 do Estatuto da Cidade, e por isso, tal
instrumento será eficiente tão somente se for articulado com o Plano Diretor e demais
instrumentos da política urbana.

CONCLUSÕES

Como na maioria das tratativas referentes às relações sociais humanas, a temática


sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) aborda fatores relacionados a direitos
coletivos, comportamento humano, meio ambiente saudável, sustentabilidade e qualidade de
vida dos cidadãos.
Quando o direito atinge o patamar de atendimento das expectativas da população e
possibilita instrumentos jurídicos para fazerem valer a qualidade de vida por meio de tomadas
de decisões que, no caso do presente estudo, se ateve às questões ambientais-urbanísticas,
nota-se que todo cidadão deve participar das tomadas de decisões coletivas para melhor
representarem seus direitos numa sociedade de características transformadoras do meio
ambiente e de recursos naturais nos dias de hoje.
A opção de estudar o EIV como instrumento descrito no Estatuto da Cidade para
auxiliar no cumprimento da função social da cidade, planejamento urbano e organização
quanto ao uso do solo, foi primordial em relação às novidades que tal instrumento pode

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

fornecer com sua aplicação pelo fato de servir como concretização dos seguimentos dos
princípios de direito ambiental da prevenção, informação e participação.
O EIV serve hoje principalmente como harmonizador dos reflexos causados por
empreendimentos que se instalam nos centros urbanos e ali podem vir a gerar empregos,
contribuir com a melhoria das condições da população e também, de gerar impactos sócio-
ambientais relevantes, aumento do fluxo de veículos no entorno da atividade, saturação de
recursos naturais enfim, gerar certa dose de caos urbano.
Diante da participação popular na formação consistente do EIV, (mesmo que essa
participação seja interpretada de modo indireto em razão da população apenas ser consultada
e não, realmente, elaborar o estudo) mesmo dessa forma, estará se dando a possibilidade de
análise e escolha por aqueles que estarão no dia a dia sacrificando seus momentos de vida em
detrimento dos efeitos que os impactos da atividade vierem a causar.
Entende-se que o EIV é instrumento de obrigatoriedade a ser implementado por lei
própria pelos municípios, cada qual estatuindo suas prioridades locais quanto a parâmetros,
avaliações e necessidades peculiares aos diversos tipos de características locais.
Servindo como referência para a formação de convicções por meio de pareceres
técnicos a darem possibilidade de implantação ou de não-implantação de atividades, o estudo
tem o poder de dizer se a população consultada quer ou não quer a atividade a ser
desenvolvida ali.
Cabe apontar que o EIV é compreendido pelas semelhanças com instrumento de
Estudo de Impacto Ambiental (EIA), porém não consta somente de adorno no corpo da Lei
federal nº 10.257/01, dando maior cumprimento às necessidades locais entre aqueles afetados
dentro de uma realidade de vizinhança, sendo esta associação de interessados em objetivo
único que serve para mobilização social ativa, apontando-se a influência com as realidades
locais.
Mesmo ao se deparar com legislações anteriores ao Estatuto da Cidade que previam
instrumentos também de caráter de avaliação de empreendimentos, tem-se que o sobredito
Estatuto inova ao obrigá-lo, em lei municipal específica, a ser implementado como
instrumento mínimo de uma boa gestão ambiental nos municípios e de servir como norteador
para o planejamento urbano.
Sabe-se que a realidade brasileira de país em vias de desenvolvimento reflete
disparidades quanto ao desnível de educação, cultura e condições de vida humana, mas não
pode-se nivelar rasteiramente as questões referentes ao EIV, que deve ser aplicado com

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

prioridade pelos municípios, evitando maiores e piores influências negativas em um meio


ambiente construído (urbano) tão afetado atualmente.
O EIV abriga uma forma dinâmica e moderna que deve ser abraçada pela causa
pública, onde vale o interesse coletivo em benefício dos cidadãos afetados e com direito a
uma sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações que certamente, estarão
também interagindo com o meio ambiente urbano.
Os municípios devem encarar com maior seriedade e prioridade a adoção do EIV
como instrumento de promover a um só tempo, o planejamento urbano, a participação popular
e a promoção de uma melhor maneira de se viver nas cidades.

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348
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO DE TUTELA DO PATRIMÔNIO


CULTURAL

THE DIRECTIVE PLAN AS AN INSTRUMENT PROTECTION OF CULTURAL ASSETS

Allan Carlos Moreira Magalhães 

RESUMO:
O presente estudo visa analisar a proteção do patrimônio cultural através do plano diretor,
conjugando a relação de tutela com os âmbitos sociais, econômicos e ambientais do
desenvolvimento para a construção de cidades ambientalmente sustentáveis. A natureza dos
bens culturais reclama uma proteção que melhor se amolda ao sistema principiológico do
direito ambiental, que reúne em torno de si as dimensões integrativas do meio ambiente e as
atividades humanas de desenvolvimento. A proteção do patrimônio cultural deve dar-se
dentro do seu contexto de significação, de tal forma que o direito administrativo e o direito
civil apresentam-se insuficientes para tutelar o patrimônio cultural em toda a sua abrangência.
É necessário conferir aos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro uma proteção que
assegure às gerações presentes e futuras a plena fruição da sua significação de forma a
produzir qualidade de vida através do bem-estar físico, mental e social dos membros da
coletividade.
PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural; Plano Diretor; Desenvolvimento Sustentável.

ABSTRACT:
This essay aims to analyze cultural assets protection trough the directive plan coordinating
with social, economical and environmental ranges to build sustainable cities regarding
environment issues. Cultural assets nature asks for protection that suits the system of
environmental law principles, that gathers among itself the integrative dimensions of the
environment and the development human activities. Cultural assets protection should take part
inside its context of meaning, so that administrative law and civil law show themselves
insufficient to protect cultural assets integrally. Is necessary to attribute to the assets of the
environmental equity protection that grants to the future generations having benefit of all of
its meaning producing better life quality trough corpo real, mental and social welfare of
society members.
KEYWORDS: Cultural assets; Directive plan; Sustainable development.


Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Especialista em Direito
Público pela Universidade de Brasília – UNB. Professor da Faculdade Martha Falcão - FMF. Advogado da
União.

349
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento industrial ocorrido no Brasil a partir da segunda metade do


século XX trouxe grandes transformações sociais dentre as quais se insere o movimento
migratório do campo para a cidade motivada, em sua grande maioria, pela perspectiva de
obtenção de melhores condições de vida e trabalho.
O interesse pela vida nas grandes cidades trouxe consigo vários problemas urbanos
dentre os quais o relacionado à ocupação desordenada dos espaços com fortes implicações
ambientais que passam pela inexistência de condições dignas de moradia e lazer para um
grande contingente de pessoas, a degradação do meio ambiente natural e cultural, as
dificuldades de mobilidade com a ausência de meios de transportes coletivos eficientes, a
especulação imobiliária e as várias formas de poluição que contribuem para reduzir a
qualidade de vida nas cidades e que exigem medidas do poder público e da coletividade para a
sua remodelação de forma sustentável.
O desenvolvimento econômico repercute na cidade com o crescimento dos
empreendimentos imobiliários, turísticos, eventos de massa, obras de mobilidade urbana que
modificam os espaços urbanos substituindo o velho pelo novo e trazendo o conflito entre o
urbano e o cultural em que os processos construtivos da cidade ameaçam os bens culturais.
A cidade ambientalmente sustentável necessita da efetiva proteção do meio ambiente
em todas as suas facetas dentre as quais a do meio ambiente cultural que possui relação
conflituosa com os processos construtivos da cidade e necessita de uma política de
planejamento urbano a fim de que a cidade seja pensada e concretizada a partir de concepções
que abranjam a proteção dos bens culturais numa perspectiva ambiental que trespasse os seus
limites materiais e atinja o seu valor de identidade (PIRES, 2010).
A política de ordenação do espaço urbano permaneceu juridicamente acéfala até a
promulgação do Estatuto da Cidade que com a imposição da elaboração de planos diretores
para as grandes cidades passou a ter algo palpável para a ordenação das cidades a possibilitar
o seu planejamento.
O planejamento da cidade engloba discussões sobre aspectos de vários ramos do
conhecimento. O presente trabalho visa justamente abordar o estudo do direito ambiental e do
direito urbanístico para o planejamento da cidade com enfoque no meio ambiente cultural de
forma que a sustentabilidade da cidade necessita da preservação do patrimônio cultural.
O desenvolvimento sustentável se apresenta como uma síntese advinda do
entrelaçamento dos fatores econômicos, sociais e culturais do desenvolvimento que devem ser

350
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

tratados como um todo para nos fornecer os indicativos para uma sadia qualidade de vida a
partir de escolhas que devem ser democráticas sobre os rumos que desejamos para a cidade
em que vivemos.
A cultura é um termo polissêmico que detém várias acepções e em algumas situações
uma abrangência tal que engloba tudo que seja objeto de criação ou intervenção do homem. A
proteção da cultural objeto deste estudo é delimitada pelos contornos conferidos pela
Constituição Federal de 1988 ao que denomina de patrimônio cultural que abrange tanto o
patrimônio cultural material e imaterial, que mais uma vez é delimitado neste estudo para
abranger o patrimônio cultural material imóvel.
A Constituição Federal de 1988 colocou em mesmo patamar de importância o
patrimônio cultural material e imaterial inclusive afastando qualquer questionamento acerca
da proteção normativa conferida as formas de criar, fazer e viver que formam o patrimônio
imaterial.
Todavia, opta-se neste estudo pela abordagem acerca da proteção do patrimônio
cultural material imóvel como uma conseqüência pela opção da utilização dos instrumentos
de política urbanística para a ordenação dos espaços urbanos como o plano diretor municipal
que deve pensar a cidade física a partir da cidade cultural, ou seja, a planificação da cidade
com as suas intervenções físicas nos espaços urbanos devem ser concebidas tendo o
patrimônio cultural como elemento primário e norteador desta ordenação sob pena de termos
uma cidade moderna, mas sem identidade e sem história na qual o seu povo não se reconhece
como pertencente a cidade.

2 A CULTURA E O PATRIMONIO CULTURAL

A expressão cultura possui várias acepções e a possibilidade de abranger tudo que


seja criação do homem o que impõe a delimitação do seu conteúdo para que seja identificado
em determinado bem material o motivo pelo qual o mesmo goza do status de bem cultural, ou
seja, de pertencente ao patrimônio cultural, e, portanto, incluído na proteção conferida pela
norma constitucional.
O estudo do patrimônio cultural brasileiro pressupõe uma análise do que seja cultura,
o estabelecimento do seu conceito e uma análise a luz do ordenamento jurídico pátrio para
que seja identificada as suas balizas constitucionais e legais.

351
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A cultura é apontada como o sistema que diferencia o Homem dos demais animais,
pois a partir dela as limitações orgânicas são superadas por meio da adoção de instrumentos
que ampliam a sua força, a sua visão, a sua audição dentre tantas outras (LARAIA, 2009).
As teorias modernas sobre cultura esquematizadas pelo antropólogo Roger Keesing
no artigo “Theories of Culture” e citadas por Laraia (2009, p. 59-63) seguindo uma idéia de
sistema concebem a cultura sob três perspectivas: a primeira como um sistema adaptativo em
que os padrões de comportamento socialmente transmitidos servem para “adaptar as
comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos”; (LARAIA, 2009, p. 59) a
segunda como sistemas estruturais que seria uma criação acumulativa da mente; e a terceira,
como sistemas simbólicos em que a cultura é vista como “um conjunto de mecanismos de
controle - planos, receitas, regras, instruções - para governar o comportamento” (GEERTZ,
2008, p. 32) em que a compreensão desta se dá através da compreensão do código de
símbolos partilhados pela coletividade.
O homem depende desses mecanismos, desses “programas” culturais, utilizando uma
expressão difundida por Geertz (2008), para ordenar o seu comportamento, mas também
influencia na constituição desses mesmos “programas” de tal forma que “sem os homens
certamente não haveria cultura, mas de forma semelhante e muito significativamente, sem
cultura não haveria homens [...] nós somos animais incompletos e inacabados que nos
completamos e acabamos através da cultura”. (GEERTZ, 2008, p. 36)
A delimitação da noção de cultura e a identificação dos bens culturais tutelados pelo
direito têm suas bases exegéticas fincadas na Carta Magna que ao estabelecer a ordenação
constitucional da cultura criou um sistema jurídico com duas ordens de valores culturais ou
dois sistemas de significação: a) as normas jurídico-constitucionais que são repositórios de
valores e b) a própria matéria objeto de normatização como a cultura e o patrimônio cultural
brasileiro. (SILVA, 2001, p. 34-35)
A Constituição Federal de 1988 não tutela a cultura na abrangência que lhe é
conferida pela antropologia e pela sociologia, o que não afasta a importância destas ciências
para a compreensão da ordenação constitucional da cultura e do próprio Direito que também é
forma de manifestação da cultura.
A ciência do direito circunscreve para si um campo próprio de atuação para a tutela
dos bens culturais e que compõe a ordenação constitucional da cultura composta por um
sistema de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira identificado pela Constituição Federal de 1988 no seu artigo 216 como
patrimônio cultural brasileiro.

352
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A cultura encontra-se tutelada pela Constituição Federal de 1988 nos limites por ela
fixados e que funcionam como marca identificadora dos bens culturais objeto da proteção que
o legislador constitucional denominou de patrimônio cultura brasileiro e que serviram de
marco delimitador de objeto do presente estudo.
O patrimônio cultural consiste numa parte de um todo identificado como cultura cuja
tutela necessita da mudança de paradigma para que além das visões de proteção conferidas
pelo direito aos bens de domínio público e privado, sejam objeto de proteção numa
perspectiva coletiva.

O bem cultural é algo apto a satisfazer uma necessidade de cunho cultural e


que se caracteriza por seu valor próprio, independentemente de qualquer
valor pecuniário, de ser testemunho da criação humana, da civilização, da
evolução da natureza ou da técnica, não se esgotando em seus componentes
matérias, mas abarcando sobretudo o “valor” emanado de sua composição,
de suas características, utilidade, significado, etc. (MARCHESAN, 2007, p.
39).

A noção de bem cultural apresentada possui forte cunho normativo e valorativo cuja
essência para a sua identificação reside na idéia de testemunho, ressaltando que cada cultura
detém o seu sistema simbólico próprio (GEERTZ, 2008).
O patrimônio cultural sendo, como afirmado acima, uma parte de um todo
identificado como cultura é necessário estabelecer os critérios que particularizam o
patrimônio cultural e o dota de características capazes de destacá-lo da noção de cultura. Para
esta finalidade analisar-se-á sucintamente as seguintes categorias meta-jurídica, a saber: a
nação, o testemunho e a referência (MARCHESAN, 2007, p. 44):
A nação condensa aspectos voltados para a unidade política, territorial, e cultural
cujas idéias comuns unem um povo em torno de uma identidade uniforme, cujos desejos e
anseios os identificam como pertencentes a uma dada cultura, sendo esta identidade aferida
dentre outras maneiras por intermédio dos bens que integram o patrimônio cultural e que são
representativos destes valores.
A idéia de testemunho é subjacente a de patrimônio cultural, tendo “o valor de elo de
ligação entre a prática, o objeto, o espaço dotado de especificidade, o imóvel de valor cultural
e o espaço-tempo no qual ele se produziu” (MARCHESAN, 2007, p. 48).

353
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

É importante destacarmos que a noção de testemunho não é restrita, mas ampla a


abarcar as mais diversas manifestações culturais (materiais ou imateriais) representativas de
um valor civilizatório para a Nação (MARCHESAN, 2007, p. 48).
Os bens que compõem o patrimônio cultural são dotados deste aspecto temporal que
se encontram permeados de significação cujos aspectos simbólicos dotam o patrimônio
cultural de um valor que vai além da sua materialidade e de qualquer tentativa de mensuração
econômica.
A idéia de referência de que é dotado o patrimônio cultural funciona como
mecanismo de interação entre o passado, o presente e o futuro especialmente quando fixamos
a premissa de que a cultura é transmitida por meio de acumulação (GEERTZ, 2008). O
patrimônio cultural funciona nesta perspectiva como a base sobre a qual a civilização se
constituiu (passado), se mantém (presente) e se projeta (futuro).
Da identificação e entrelaçamento destas categorias metas-jurídicas originou-se a
construção do conceito de patrimônio cultural:

O conjunto de bens, praticas sociais, criações materiais ou imateriais de determinada


nação e que, por sua peculiar condição de estabelecer diálogos temporais e espaciais
relacionados àquela cultura, servindo de testemunho e de referência `as gerações
presentes e futuras, constitui valor de pertença publica, merecedor de proteção
jurídica e fática por parte do Estado (MARCHESAN, 2007, p. 49-50).

A apresentação do conceito de patrimônio cultural brasileiro ainda não se afigura


suficiente para estabelecer os contornos e a abrangência desta categoria jurídica, sendo
necessária uma incursão nos regramentos constitucionais e legais sob a perspectiva da
concepção unitária que permeia o conceito de meio ambiente para que então possa desvelar o
papel deste bem jurídico para a formação de uma sociedade urbana ambientalmente
equilibrada (desenvolvimento sustentável), cujo plano diretor é um instrumento fundamental
para a concretização desta finalidade e para a própria tutela do patrimônio cultural brasileiro.
A concepção unitária1 do meio ambiente utiliza-se de uma visão sistêmica em que os
aspectos naturais, artificiais e culturais são tidos como partes de um todo. Nesta perspectiva,
estão inseridas nesta concepção as facetas do meio ambiente natural constituído pelo solo,
água, ar atmosférico, flora, entre outros; do meio ambiente artificial constituído pelo conjunto
de edificações e construções realizadas pelo homem; e do meio ambiente cultural constituído

1
Adotam a concepção unitária do meio ambiente dentre outros doutrinadores: SILVA. José Afonso da. Direito
Ambiental Constitucional. 8. Ed., atualizada. São Paulo: Malheiros, 2010 e MARCHESAN, Ana Maria
Moreira. A Tutela do Patrimônio Cultural sob o Enfoque do Direito Ambiental. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.

354
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico que apesar de ter sua
origem relacionada à intervenção humana (meio ambiente artificial) é dotado de um valor
próprio.
O legislador pátrio por intermédio da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 que
dispõe sobre a política nacional do meio ambiente o definiu como sendo “o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 que dispõe sobre as sanções impostas em
face das atividades lesivas ao meio ambiente dedicou no capitulo que versa sobre os crimes
contra o meio ambiente uma seção própria para disciplinar os crimes contra o patrimônio
cultural, numa clara adoção da concepção unitária do meio ambiente.
A concepção unitária do meio ambiente encontra ressonância também no direito
internacional através da convenção da Organização das Nações Unidas – ONU para a
salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e natural de 1972 – Carta de Paris
(MARCHESAN, 2007, p. 88).
O conceito de meio ambiente, portanto, é amplo incluindo além dos bens naturais
aqueles que são constituídos a partir da intervenção humana dentre os quais se inserem os
bens culturais. Silva (2010, p.18), adotando a concepção unitária de meio ambiente o
compreende como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, e culturais que
propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”.
Neste sentido, é correto afirmar que o meio ambiente não é composto apenas pela
natureza bruta, mas também pelos resultados das intervenções humanas nesta natureza, o que
inclusive leva Derani (1997, p. 68) a afirmar que “toda a formação cultural é inseparável da
natureza, com base na qual se desenvolve”. Assim, natureza e cultura apresentam-se como
bens interdependentes e indissociáveis (MIRANDA, 2006).
A interdependência e a indissociabilidade entre natureza e cultura antes mencionada
e a concepção unitária de meio ambiente presente no ordenamento positivo brasileiro nos
fornecem substrato argumentativo para afirmar que à tutela do patrimônio cultural brasileiro é
perfeitamente aplicável o arcabouço principiológico e jurídico-normativo desenvolvido pelo
direito ambiental dentre os quais a tutela do patrimônio cultural como direito fundamental
indispensável para a própria construção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado em
que “os bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro são recursos essenciais à sadia
qualidade de vida” (MARCHESAN, 2007, p. 95).

355
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Os direitos e garantias fundamentais encontram previsão constitucional expressa com


destaque para as disposições constantes no artigo 5º da Constituição Federal de 1988:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

O parágrafo segundo do referido artigo, por seu turno, estabelece:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes


do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.

Desta feita, observa-se que os direitos e garantias fundamentais não se apresentam


exaustivos e cristalizados unicamente no rol do artigo 5º da Constituição Federal de 1988,
sendo perfeitamente admitido a existência de outros direitos também detentores de referido
status, dentre os quais se insere o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
previsto no artigo 225 da Constituição Federal de 1988 cuja estrutura normativa do tipo
constitucional caracterizada pela expressão: “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado...” denota a fundamentalidade deste direito.
Outro argumento para caracterizar o direito ao meio ambiente como direito
fundamental reside no fato deste se apresentar como corolário do direito a vida (COSTA
NETO, 2003) que possui previsão expressa no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, pois
dificilmente há como assegurar o direito à vida sem que antes se assegure o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Com efeito, prosseguindo nesta linha argumentativa que confere ao meio ambiente o
status constitucional de direito fundamental, esta mesma sorte há de ser conferida aos bens
integrantes do patrimônio cultural brasileiro, pois este é um dos aspectos (cultural) que integra
a visão sistêmica de meio ambiente ao lado dos aspectos natural e artificial, sendo, portanto,
indispensável na construção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à
sadia qualidade de vida.
E como afirma Marchesan (2007, p. 111):

No tocante à preservação da dimensão cultural do meio ambiente, a partir do


momento em que se visualiza ela como inserida no núcleo do bem jurídico ambiente
e, como tal, essencial a uma vida provida de qualidade e que propicie aos cidadãos o
bem-estar a que faz referência o Preâmbulo de nosso Texto Excelso, não se
apresenta desarrazoado afirmar haver um direito fundamental à preservação do

356
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

patrimônio cultural, direito esse que envolve inclusive o direito a prestações em


sentido estrito.

A proteção dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro como direito


fundamental faz incidir sobre eles um “conjunto de normas, princípios prerrogativas, deveres
e institutos inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e
igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status
social” (BULOS, 2007, p. 401).
Além disto, conforme nos ensina Benjamin (2010, p. 118) temos a formulação de um
princípio de primariedade do meio ambiente ecologicamente equilibrado que decorre da
fundamentalidade deste direito, afastando qualquer possibilidade lícita de tratá-lo como um
valor subsidiário, secundário ou mesmo acessório.
O status de direito fundamental conferido ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, onde os aspectos culturais (patrimônio cultural brasileiro) estão inseridos, o
conferem os atributos de irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade em que não
se aceita renúncia ao bem cultural, é coisa fora do comercio, e consiste em direito atemporal
titularizado inclusive pelas gerações vindouras.

3 O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO DE TUTELA DO PATRIMONIO


CULTURAL

O plano diretor municipal enquanto um dos instrumentos de concreção da tutela do


patrimônio cultural brasileiro deve ter a sensibilidade de tratar os bens culturais numa
perspectiva ambiental em que os aspectos naturais, artificiais e culturais são tratados de forma
sistêmica; observar os atributos da irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade
decorrentes da fundamentalidade deste direito e da sua primariedade.
Não se trata de tarefa fácil, mas na tentativa de alcançar os objetivos perseguidos
neste trabalho utilizar-se-á os princípios constitucionais do direito ambiental e os princípios
específicos da tutela do patrimônio cultural desenvolvidos pela doutrina a partir da ordenação
constitucional da cultura com destaque para o desenvolvimento sustentável.
O direito ambiental pela natureza do bem jurídico que se propõe a tutelar tem no viés
preventivo seu mais importante valor. O meio ambiente independentemente da vertente sobre
a qual incida a degradação (natural cultural ou artificial) dificilmente consegue retornar ao
status quo ante quando consumado o dano.

357
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

E no caso dos bens culturais que não são passiveis de reposição porque únicos e
autênticos, afastando, inclusive, qualquer tentativa de mensuração econômica, tal situação se
afigura mais grave.
Os princípios da prevenção e da precaução têm em comum a busca pela antecipação
dos danos futuros ao meio ambiente a fim de evitar que os mesmos se concretizem.
E como nos ensina Marchesan (2007, p. 124):

Enquanto a prevenção se volta a adoção de cautelas relacionadas a atividade e/ou


comportamentos sobre as quais o atual estagio da ciência esteja munido de
informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco por eles fornecidos, a
precaução, principio de formulação recente, importa em antecipação ainda maior, na
medida em que busca cautelas relacionadas a atividades e/ou comportamentos em
relação aos quais a ciência ainda não detém uma gama razoável de informações a
respeito das possíveis conseqüências nocivas daquela atividade.

É nesta perspectiva que Benjamim (2010, p. 87) afirma que “o direito ambiental tem
aversão ao discurso vazio; é uma disciplina jurídica de resultado, que só se justifica pelo que
alcança, concretamente, no quadro social das intervenções degradadoras”. E o resultado
primeiro perseguido pelo direito ambiental consiste justamente na prevenção e na precaução
aos danos ambientais que se dá, dentre outras formas, pela correta aplicação do plano diretor.
O planejamento urbanístico aonde se insere o plano diretor - instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana - tem sua adequada aplicação quando
executado a partir de um processo técnico instrumentado voltado para a transformação da
realidade com base em objetivos previamente fixados.
Destaca Silva (2010, p. 88) que o planejamento não é mais um processo dependente
da mera vontade do governante, mas imposição jurídica constante na Constituição (art. 21,
inciso IX, art. 48, inciso IV, art. 174, §1º, art. 30, inciso VIII, art. 182) e na Lei (Estatuto da
Cidade).
O plano diretor enquanto instrumento do planejamento urbanístico ao impor
limitações ao uso da propriedade e ao exercício de atividades de forma planificada na busca
pela concretização do desenvolvimento sustentável esta de igual forma dando aplicabilidade
aos princípios constitucionais da prevenção e da precaução e afirmando a sua proximidade
com o regramento jurídico afeto ao direito ambiental
Referindo-se ao principio da precaução, Marchesan (2007, p. 128) afirma que ele se
apresenta como:
Um sinal da nova orientação na relação entre ciência e direito, assim como uma
reviravolta epistemológica nessa mesma relação, a partir do momento em que nos
demos conta da falibilidade e da relatividade da ciência e da necessidade de o direito

358
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

atuar no sentido de evitar prejuízos sérios e irreparáveis à saúde humana e ao meio


ambiente.

O conteúdo dos referidos princípios não deixa dúvida acerca da sua aplicabilidade à
tutela do patrimônio cultural em especial porque o reconhecimento pela coletividade do
especial valor que detém determinado bem a conferir-lhe o status de patrimônio cultural
brasileiro envolve “múltiplos e diferenciados processos de apropriação, recriação e
representação construídos e reconhecidos culturalmente e que ocorrem muitas vezes antes da
criação ou constituição do próprio bem” (MARCHESAN, 2007, p. 130).
O plano diretor, nessa perspectiva, deve ser um repositório destes princípios a fim de
assegurar a proteção dos bens culturais, inclusive com a eleição de áreas urbanas de especial
interesse cultural, aonde se encontram fincados tais bens representativos do patrimônio
cultural brasileiro.
Silva (2010, p.354) trata da questão sob a denominação de áreas de urbanificação
especial apontando como sendo “aquelas a que se deve aplicar peculiar atuação urbanística,
quer modificando a realidade urbana existente quer criando determinada situação urbana nova
com finalidade específica”.
E no caso dos bens culturais essa urbanificação especial ganha contornos restritivos
justamente para atender interesses específicos decorrentes da necessidade de proteção
ambiental para a preservação do patrimônio cultural.
Os bens que compõe o patrimônio cultural brasileiro estejam eles na esfera de
domínio do particular ou do poder público devem atender a sua função social através da
manutenção da sadia qualidade de vida com a imposição ao proprietário de obrigações de
índole negativa como abster-se de promover quaisquer alterações físicas no imóvel, sem
autorização do órgão competente e de índole positiva como promover a restauração do bem e
permitir a visitação pública.
O patrimônio cultural brasileiro como vimos anteriormente é dotado de uma elevada
carga normativa e valorativa que dificulta a confecção de um conceito próprio ou mesmo a
sua individualização e qualificação como tal. Todavia, algumas categorias metas-jurídicas
como às noções de testemunho e referência auxiliam nesta tarefa.
E justamente para assegurar que os bens culturais externem essas funções de
testemunho e referência, em sua plenitude, a proteção do patrimônio cultural deve incidir não
apenas sobre o bem cultural em si, mas abranger, também, em muitas situações o seu entorno.

359
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A proteção do entorno possui relação com o ordenamento jurídico afeto às áreas de


urbanificação especial abordada anteriormente, mas com especial destaque para a proteção do
bem cultural envolta do qual circula as ações urbanísticas de proteção.
O princípio da proteção do entorno do bem cultural, acolhida pela legislação pátria,
demonstra um grande avanço na proteção destes bens em que se evolui da noção de
monumento isolado para contemplar também o meio em que está inserido a fim de
proporcionar o máximo proveito pela coletividade das funções exercidas pelos bens culturais.
Este princípio evidencia claramente o entrelaçamento da proteção do patrimônio
cultural brasileiro com o direito ambiental, apresentando-se como um vetor a ser seguido
pelas legislações locais que se proponham a tutelar o patrimônio cultural, dentre as quais o
plano diretor.
O plano diretor apresenta-se como um instrumento jurídico que exige dos seus
elaboradores conhecimentos que vão além da técnica legislativa, pois os assuntos a serem
tratados por ele exigem um conhecimento especializado exemplificativamente das áreas de
urbanismo, arquitetura e engenharia.
Discorrendo sobre o plano diretor Silva (2010, p. 137-138) esclarece em que consiste
este instituto:

É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes


devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que
tange as diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-
las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do município.

Utilizando os ensinamentos de Câmara (2010, p. 324), a título de síntese, extraímos a


seguinte definição para o plano diretor:

O plano diretor é o mais importante instrumento de planificação urbana previsto no


Direito Brasileiro, sendo obrigatório para alguns Municípios e facultativo para
outros; deve ser aprovado por lei e tem, entre outras prerrogativas, a condição de
definir qual a função social a ser atingida pela propriedade urbana e de viabilizar a
adoção dos demais instrumentos de implementação da política urbana.

O Estatuto das Cidades coloca o plano diretor como tema central da política urbana
que tem como diretrizes gerais a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente
natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”
(art. 2. inciso XII, da Lei 10257/01). O Estatuto da Cidade dedicou um capítulo próprio para
tratar do plano diretor.

360
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Comentando sobre o papel do plano diretor na proteção do meio ambiente,


proporcionada pelo Estatuto da Cidade, Marques (2005, p. 191-192) destaca:

Somente por meio do plano diretor, a princípio, é que se poderá proporcionar sadia
qualidade de vida. E esse planejamento se da proporcionando a todos os direitos
referidos no art. 6º da Constituição Federal, conjugados com o direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado e a necessidade de preservá-lo para as futuras
gerações.

O plano diretor apresenta-se, portanto, como um importante instrumento de


planificação a merecer um estudo aprofundado acerca do seu papel na proteção do patrimônio
cultural e no desenvolvimento das cidades.

4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO MARCO CONSTITUCIONAL


NORTEADOR DA TUTELA DO PATRIMONIO CULTURAL

O conceito de desenvolvimento sustentável largamente difundido teve origem nos


trabalhos da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (1987) consolidados
no denominado “Relatório Brundtland” em que considerou o desenvolvimento sustentável
como aquele que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das
gerações futuras de suprir suas próprias necessidades (MARCHESAN, 2007, p.186).
O desenvolvimento sustentável ostenta no ordenamento jurídico o status de norma
constitucional encontrando-se alocado no artigo 225 da Constituição Federal que impõe ao
poder público e a coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de
vida, para as presentes e futuras gerações.
No entanto, antes mesmo do advento do diploma constitucional a lei 6.803/80 já
prescrevia a necessidade de compatibilização das atividades industriais com o meio ambiente.
A lei nº 6.938/81 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente já havia contemplado
dispositivo neste mesmo sentido.
A compreensão do desenvolvimento sustentável passa necessariamente pela
percepção da inter-relação existente entre os seus pilares de sustentação que são os aspectos
ambientais, sociais e econômicos.
A lei que institui a Política Nacional de Educação Ambiental (lei n. 9.795, de 27 de
abril de 1999) inclui o desenvolvimento sustentável como um dos seus princípios básicos,
apregoando a interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural.

361
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A inter-relação entre estes aspectos é tão arraigada que Nusdeo (2009, p. 145-157)
apregoa que a sustentabilidade apresenta-se como conceito abrangente e indivisível cuja
fragmentação em áreas e setores apenas é possível para fins didáticos, cuja concreção deve ser
atingida no seu conjunto englobando os desdobramentos existentes, sob pena de se gerar
desequilíbrio no todo social.
Em sua tese de doutoramento Marques (2009, p. 125) discorrendo sobre o tema nos
ensina que:

Desenvolvimento sustentável é aquele que satisfaz os interesses de todos os grupos,


possibilitando, ao mesmo tempo, proteção ambiental. Deve situar-se em um patamar
mínimo de bem-estar e dentro de um limite máximo tolerável de desgaste de
recursos ambientais, seja provocado pelo crescimento econômico, seja provocado
pela própria comunidade em suas atividades normais. É a harmonização do homem
com a natureza. Não significa não crescimento, mas a compatibilização entre
crescimento econômico e proteção ambiental.

A partir deste conceito é fácil perceber o inter-relacionamento entre os aspectos


ambientais, econômicos e sociais, tanto é assim que a Constituição Federal (art. 170, inciso
VI, CF/88) elegeu como um dos princípios da ordem econômica a defesa do meio ambiente. E
no aspecto social a Carta Magna (art. 3º, CF/88) elegeu como objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, assim
como o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais.
Nesta perspectiva, o grande desafio é conseguir identificar as práticas sustentáveis
para o desenvolvimento em razão da indefinição e instabilidade do conceito de
desenvolvimento sustentável que varia no tempo e no espaço, sendo dependente dos aspectos
culturais de dada sociedade.
Corrobora para esta dificuldade o fato de não ser possível a fixação de critérios
pontuais para aferir se a atividade econômica esta se desenvolvendo de forma sustentável
porque necessita ser submetida a um processo de avaliação que se protrai no tempo.
Todavia, Marques (2009, p. 126-127) nos alerta para o fato de que apesar destas
dificuldades o desenvolvimento sustentável deve ser considerado como meta ou objetivo do
poder público e da coletividade, ainda que ele seja considerado inatingível. Destaca também
que não se pode a esse pretexto “aceitar a insustentabilidade ambiental e social em beneficio
exclusivo do crescimento econômico”.
O desafio do desenvolvimento sustentável consiste em acomodar as vertentes
constitucionais de desenvolvimento nacional (econômica) e da proteção do meio ambiente

362
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

(ambiental) de forma que seja assegurada a dignidade da pessoa humana (social) numa
perspectiva de perenidade a fim de que sejam beneficiadas as presentes e futuras gerações.
O desenvolvimento sustentável de igual forma deve ser uma meta ou objetivo a ser
perseguido em relação ao meio ambiente cultural de forma que o patrimônio cultural seja
preservado, mantido a sua essencialidade e assegurado a sua fruição pelas gerações vindouras.

CONCLUSÃO

A cidade atual é caracterizada pela urbanização e pela industrialização, mas também


pelo patrimônio cultural que conserva a sua memória e funciona como o elo entre o presente e
o passado que é construído e interpretado pela história e pela arqueologia.
O presente estudo abordou o conceito de patrimônio cultural e as suas balizas
constitucionais e legais; a inter-relação entre meio ambiente e patrimônio cultural; a
concepção unitária de meio ambiente e o patrimônio cultural como direito fundamental.
A partir destas abordagens conclui-se pela aplicabilidade do arcabouço
principiológico e jurídico-normativo do direito ambiental à tutela do patrimônio cultural que
tem o desenvolvimento sustentável como um fim a ser perseguido e atingível através da
efetiva proteção dos bens culturais integrantes do patrimônio cultural.
O plano diretor é um dos instrumentos jurídicos previstos no ordenamento apto para
a promoção da tutela do patrimônio cultural, pois traz na sua conceituação e finalidade a ideia
de planificação, o que vai ao encontro dos princípios mais caros ao direito ambiental que são
os da prevenção e da precaução.
Com efeito, através do plano diretor é possível adotar práticas democráticas para a
construção de soluções para as questões afetas a especulação imobiliária e aos problemas
decorrentes dos processos construtivos da cidade, assim como é possível através do plano diretor
a adoção de estratégias locais que conciliem o desenvolvimento econômico e a qualidade de vida
para a proteção do meio ambiente cultural.
O patrimônio cultural enquanto bem jurídico e direito fundamental que representa a
identidade e a memória de um povo deve ser tratado pelo planejamento urbano através do
plano diretor como um elemento indispensável para o desenvolvimento sustentável da cidade,
e portanto, tratado como uma das questões prioritárias especialmente no bojos das audiências
públicas realizadas obrigatoriamente durante o processo de elaboração e revisão do plano
diretor

363
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O presente estudo não pretende esgotar o tema, pois a dinâmica urbanística e as


transformações sociais ocorridas nas cidades em decorrência de fatores como crescimento
populacional, produção industrial, especulação imobiliária, dentre outras que atingem grandes
centros urbanos e deterioram o patrimônio cultural material imóvel exigem do planejamento
urbanístico e das normas de direito urbanístico dinamicidade e constante acompanhamento
destas transformações para que os problemas enfrentados pelas cidades sejam superados.

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365
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Parques Públicos no Município de Salvador: reflexões acerca do Direito Constitucional


ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no ambiente urbano
Public Parks in Salvador: reflections on the Constitutional Right to an ecologically balanced
environment in the urban environment

Rafaela Campos de Oliveira


Juliana Campos de Oliveira

RESUMO
Este artigo trata considera a possibilidade de concretude do Direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, previsto na Constituição Federal, no contexto do ambiente
urbano, através do acesso dos cidadãos aos Parques Públicos Urbanos. Para tanto, trata de
questões relativas aos Parques Públicos do Município de Salvador, sua localização, lógica de
distribuição no contexto urbano, bem como sua conservação. Considerando-se que a presença
dos parques, nos bairros, representa fator agregador de bem-estar ambiental, opção de lazer,
que contribui para a qualidade de vida dos cidadãos que deles podem usufruir. Utilizou-se
como fundamentação: Constituição Federal Brasileira, Estatuto das Cidades, PDDU de
Salvador e fontes bibliográficas secundárias. Nesse sentido, questionamentos acerca das
garantias à dignidade da pessoa humana, aos direitos à sadia qualidade de vida e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado emergem, num quadro urbano que evidencia uma
realidade de desigualdades, privilégios, segregações, aparentemente, infindáveis, insolúveis.
A localização dos parques públicos, nesta cidade, tem privilegiado bairros nobres, em
detrimento dos bairros periféricos menos abastados. A distribuição, freqüentação dos parques
e jardins públicos podem revelar nuances da organização sócio-espacial da metrópole.
Adicione-se, agentes públicos e privados vêm conduzindo política urbana injusta,
segregacionista. A natureza na cidade tem sido tratada como mercadoria destinada a atender
aos anseios do mercado imobiliário, turismo, classes dominantes, implicando na exclusão das
classes economicamente inferiores da vida urbana com acesso ao meio ambiente natural,
dificultando a possibilidade de sua inserção na dinâmica urbana mais ampla, e seu habitar na
cidade beneficiada pelos equipamentos urbanos. Constata-se a má distribuição do direito de
acesso ao meio ambiente natural na urbe, portanto.
PALAVRAS-CHAVE:
Parques Públicos, Direito, Qualidade de vida, Segregação, Salvador.

366
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ABSTRACT
This article is considering the possibility of concreteness of the right to an ecologically
balanced environment, provided by the Federal Constitution in the context of the urban
environment, through the access of citizens to Urban Public Parks. Therefore, dealing with
issues relating to Public Parks in the city of Salvador, its location, policy distribution logic's
public park Salvador's in the urban context, as well its conservation. Considering that the
presence of parks, in the neighborhoods, aggregating factor of environmental welfare, urban
parks consists leisure option which contributes to the quality of life of citizens who can take
advantage of them. Used as foundation: the Brazilian Federal Constitution, Cities‟ Statute,
Master Plan for Urban Development of Salvador and secondary literature sources. In this
sense, questions about the safeguards the dignity of the human person, the rights to a healthy
quality of life and ecologically balanced environment emerge within a framework that reflects
the reality of urban inequalities, privileges, segregation, seemingly endless, insoluble. Notes
are: location of public parks in this city has privileged noble neighborhoods at the expense of
less affluent peripheral neighborhoods. The distribution, frequentation in parks and public
gardens can reveal nuances of socio-spatial organization IN the metropolis. Add to this, public
and private agents have conducted unfair segregationist urban policy. The nature of the city
has been treated as goods intended to meet the needs of real estate market, tourism, ruling
classes, implying the exclusion of economically lower classes access to life with nature,
hindering the possibility of their integration into wider urban dynamics, and this context
difficults the dwell into the beneficiated city, by urban facilities. It is verified the unequal
distribution of the right of access to the natural environment in the metropolis, therefore.
KEYWORDS:
Public Parks, Right, Quality of life, segregation, Salvador.

367
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais os debates acerca da relação homem-natureza têm invadido os


diversos campos de estudo e têm adquirido múltiplas nuances e especificidades.
No que se refere ao aspecto do desenvolvimento urbanístico das cidades
contemporâneas, pode-se observar o crescimento não-planejado das cidades, em especial das
metrópoles e cidades de médio porte, que têm se desenvolvido desenfreadamente e, portanto,
de forma desordenada.
Este desenvolvimento, por óbvio, tem comportado aspectos positivos e negativos.
Atendo-se à questão do meio ambiente natural presente nesses centros urbanos, vê-se que a
natureza ora é degradada, ora é hostilizada, ora organizada, planejada, adaptada, ou seja,
urbanizada.
A urbanização de áreas naturais, ou áreas verdes, ocorre de várias formas, sejam
artificiais, através da construção de praças, por exemplo, sejam através da melhoria da infra-
estrutura circundante a lagos, a trechos de matas, que se transformam em parques, tornando-se
opção de lazer para os cidadãos, que deles usufruem.
Especificamente aos parques públicos do município de Salvador, pretende-se voltar a
presente discussão, considerando-se que sua presença nos bairros representa fator agregador
de bem-estar ambiental, opção de lazer, que contribui para a qualidade de vida dos cidadãos
que deles podem usufruir.
Adicione-se, a localização dos parques públicos, nesta cidade, aparentemente tem
privilegiado bairros nobres, em detrimento dos bairros periféricos, ou melhor, menos
abastados.
Nesse diapasão, questionamentos acerca das garantias à dignidade da pessoa
humana, bem como ao direito à sadia qualidade de vida, ao direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, têm emergido, em meio a um quadro urbano que evidencia uma
realidade de desigualdades, privilégios e segregações que parecem infindáveis e insolúveis.
Este artigo pretende discutir questões relativas aos parques públicos urbanos no
cotidiano do município de Salvador, Bahia, tendo como fundamentação base a Constituição
Federal Brasileira, o Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/01), o Plano Diretor do
Desenvolvimento Urbano do Município de Salvador (Lei nº 7.400/08), além de fontes
bibliográficas secundárias.

368
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1. A CIDADE E O DIREITO DE TODOS AO MEIO AMBIENTE


ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO PARA A SADIA QUALIDADE DE VIDA

Conforme preceitua o artigo 225, constante na Constituição Federal Brasileira de


1988, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
De acordo com Machado cada ser humano só fruirá plenamente de um estado de
bem-estar e de equidade se lhe for assegurado o direito fundamental de viver num meio
ambiente ecologicamente equilibrado (2009, p. 59).
O reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, sob o ponto de
vista de Milaré, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência
física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência, a
qualidade de vida, que faz com que valha a pena viver (2005, p. 158-159).
Entretanto, atendo-se ao cotidiano observado nas médias e grandes cidades
brasileiras, constata-se que, em sua grande maioria, estão passando por um período de
acentuada urbanização, fato este que, embora por um lado represente progresso material, por
outra vertente, abarca degradação da natureza, o que reflete negativamente na qualidade de
vida de seus moradores (LOBODA e ANGELIS, 2005, p. 130). Moro salienta que

a constante urbanização nos permite assistir, em nossos grandes centros


urbanos, a problemas cruciais do desenvolvimento nada harmonioso entre a
cidade e a natureza. Assim, podemos observar a substituição de valores
naturais por ruídos, concreto, máquinas, edificações, poluição, o que
ocasiona entre a obra do homem e a natureza crises ambientais cujos
reflexos negativos contribuem para degeneração do meio ambiente urbano,
proporcionando condições nada ideais para a sobrevivência humana (1976,
p. 15).

O Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257, de 10 de junho de 2001) emerge, nesse


contexto, como documento que fornece um instrumental a ser utilizado na ordenação dos
espaços urbanos, com observância da proteção ambiental, e a busca de solução para
problemas sociais graves como moradia, o saneamento, que o caos urbano faz incidir, de
modo contundente, sobre as camadas carentes da população (SILVA, 2010, p. 67).
Machado considera que não basta viver ou conservar a vida, é justo buscar e
conseguir a qualidade de vida (2009, p. 61). Sant‟Anna coaduna com tal raciocínio reforçando

369
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

que as condições de sobrevivência devem ter qualidade e serem sadias (2011, p. 123).
Machado afirma, ainda, que

a saúde dos seres humanos não existe somente numa contraposição a não ter
doenças diagnosticadas no presente. Leva-se em conta o estado dos
elementos da Natureza – águas, solo, ar, flora, fauna e paisagem – para se
aquilatar se esses elementos estão em estado de sanidade e de seu uso
advenham saúde ou doenças e incômodos para os seres humanos (2009, p.
61).

Todavia, a falta de planejamento, que considere os elementos naturais, é uma


realidade agravante. Além do empobrecimento da paisagem urbana, são inúmeros e de
diferentes amplitudes os problemas que podem ocorrer, em virtude da interdependência dos
múltiplos subsistemas que coexistem numa cidade. De acordo com Sant‟Anna, para que haja
uma oferta de sadia qualidade de vida para a população é necessária a estruturação e
realização de uma política urbana, condizente com os valores relativos à habitação,
saneamento, meio ambiente, transporte, lazer, acesso e posse da terra (2011, p. 126).
A boa aparência das cidades surte, por exemplo, efeitos psicológicos importantes
sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e de elementos
harmoniosos, a carga neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nelas hão de
viver, conviver e sobreviver (SILVA, 2010, p. 301).
O cotidiano das cidades, de acordo com Henrique, possibilita que a natureza seja
vista como fonte de recuperação das energias (2009, p. 118). Por esta razão, como forma de
tentar suprir a árida realidade das cidades, defende-se a existência de áreas verdes
urbanizadas, para garantia do bem-estar ambiental a todos.
Segundo Henrique, a natureza que, num primeiro momento, apresentava-se como
elemento estético, atualmente forma, junto à sociedade, um todo indissociável e difícil de ser
separado (IDEM, IBIDEM).

A natureza se insere na cidade através dos jardins e praças, lugares


para reis e nobres, para a aristocracia e burguesia. Só recentemente a
população urbana se encontrará com a natureza na cidade através dos
jardins e parques públicos, mas ainda pouco acessíveis para todos. A
disposição destes jardins e parques públicos no espaço intra-urbano
atende as lógicas da especulação imobiliária e da renda. Mesmo
cidades brasileiras com áreas verdes consideráveis apresentam uma
concentração destas áreas nos bairros nobres. Na maioria dos bairros
da periferia social e de ocupação popular, altamente adensados, são
inexistentes áreas públicas, verdes e de lazer (IDEM, IBIDEM).

370
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para José Afonso da Silva as áreas verdes atuam como exigência higiênica, de
equilíbrio do meio ambiente urbano e de locais de lazer (2010, p. 306). Complementa,
afirmando que as áreas verdes
quando bem distribuídas no traçado urbano, oferecem colorido e plasticidade
ao meio urbano. A arborização das vias públicas, além da atenuação de
ruídos, da fixação e retenção do pó, da reoxigenação do ar (como as áreas
verdes), de oferecer frescura e projetar sombras, embeleza-as. Como em tudo
o mais que diz com o urbanismo, também aqui não se há de cair no
esteticismo gratuito, vazio,(...) Sem suprimir o que possa ter de pitoresco, a
vegetação deve empregar-se como um critério realista e não-romântico. As
árvores, os arbustos, os prados e as flores devem ser empregados com um
critério racional, destinado a preencher função social assinada aos espaços
verdes, dentro da qual, e sem sair-se dela, terão cabimento os diversos
critérios decorativos e de ornamento (IDEM, IBIDEM).

2. O CASO DE SALVADOR: PLANO DIRETOR E PARQUES PÚBLICOS

Pode-se dizer que para a transformação de uma realidade urbana insatisfatória, faz-se
necessário que o Estado seja munido de instrumentos que o permitam atuar nesta
transformação de forma eficiente. Um destes instrumentos é o planejamento (SANT‟ANNA,
2011, p. 123).
O planejamento, em geral, é um processo técnico instrumentado para transformar a
realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos (SILVA, 2010, p. 87).
O processo do planejamento urbanístico adquire sentido jurídico quando se traduz
em planos urbanísticos. A função urbanística, em sua atuação mais concreta e eficaz, é
exercida num nível municipal através dos planos de desenvolvimento urbano, ou planos
diretores (IDEM, p. 92). O Plano Diretor de Salvador (Lei nº 7.400/08), sancionado pela
Prefeitura em 20 de fevereiro de 2008, dispõe de 350 artigos, que tratam do zoneamento da
cidade e das especificações econômico-sociais de cada área.
De acordo com o artigo 182 da Constituição Federal Brasileira de 1988, o plano
diretor assume a função de instrumento básico da política urbana do Município, que tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-
estar da comunidade local (IDEM, p. 97).
A função social de uma determinada cidade compreende o oferecimento efetivo e de
boas condições de moradia, transporte, recreação e condições satisfatórias de trabalho aos
seus moradores, para que o bem-estar seja alcançado por todos (SANT‟ANNA, 2011, p. 126).

371
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Considerando-se as necessidades básicas do homem, existem funções essenciais que


toda cidade deve atender para bem servir aos seus cidadãos. São elas: habitar, trabalhar
recrear e circular (IDEM, p. 125).
Restringindo-se à função recreativa, tem-se que, o parque público, como modelo de
planejamento urbano, espalhou-se por todas as grandes metrópoles mundiais. Considera-se,
no entanto, que apesar das similaridades formais e funcionais evidentes nesses espaços de
lazer, existem diferenças fundamentais nas práticas espaciais dos seus usuários (SERPA,
2011, p. 88-89).
No que se refere ao município de Salvador, a distribuição, mas, sobretudo, a
freqüentação dos parques e jardins públicos, podem revelar as nuances da organização sócio-
espacial da metrópole (IDEM, p. 90).
As particularidades dos espaços públicos recreativos, em Salvador, residem na leitura
que se pode fazer deles em termos de visibilidade. Agentes públicos e privados vêm
conduzindo, depois dos anos de 1990, uma política urbana que consiste na encenação desses
espaços, que passam a desempenhar um papel de “vitrine” no contexto urbano. Nesses
espaços, a natureza tem sido encenada e consumida (IDEM, IBIDEM).
De acordo com Serpa, os parques públicos mais centrais são mais visíveis na
paisagem urbana, enquanto que os mais distantes dos bairros mais prósperos não são objeto
de qualquer tipo de intervenção (IDEM, p. 92). Ressalta o autor que

enquanto alguns parques são extremamente pobres em cobertura vegetal, não


possuindo também nada de excepcional em termos de qualidade estética, e
representam um papel significativo na cena urbana, outros, preciosos em
termos ecológicos, não recebem qualquer tipo de projeto ou intervenção
(IDEM, IBIDEM).

Esta situação é vivenciada em Salvador, por carência de uma gestão municipal


democrática. Petrucci esclarece que os objetivos fundamentais de uma política urbana,
consistente em ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar dos seus habitantes, são atingidos quando se realiza gestão municipal democrática
(2011, p. 162).
No entanto, de acordo com Heliodório Sampaio, a legislação urbanística local além
de ambígua, vem sendo alterada de forma a beneficiar as alianças entre interesses políticos e o
mercado imobiliário (2010, p. 105). Acrescenta, ainda, o autor, que as atividades burladoras
dos Planos Diretores, a corrupção no uso do solo, que representa desacordo com os preceitos

372
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

democráticos de gestão, têm desacreditado as normas instituídas e os órgãos responsáveis pelo


controle urbanístico das cidades (IDEM, p. 109).

Assim, para muitos, é um mito a ideia de que os Planos Diretores sejam


instrumentos fundamentais para guiar o desenvolvimento da cidade. (...) No
longo prazo, dissolvem-se os „pactos territoriais‟ diluídos numa vontade
política que se concentra nestes pontos cruciais do planejamento urbano e do
urbanismo apenas nos períodos eleitorais (IDEM, p. 114).

3. SEGREGAÇÃO SÓCIO-AMBIENTAL EM SALVADOR

A princípio, é importante salientar que a grande maioria da população brasileira tem


sido privada de boa qualidade de habitação, trabalho, transporte e lazer. O bem-estar de todos
e a sadia qualidade de vida previstos na Constituição Federal de 1988, até então,
frequentemente, têm-se mostrado como letras estáticas sobre um papel (SANT‟ANNA, 2011,
p. 128).
Adicione-se, as ofertas de lazer relacionadas a um ambiente natural e saudável têm
sido insuficientes, ou quase inexistentes em algumas áreas. Os valores sociais distorcidos têm
feito que os shoppings sejam considerados espaços de lazer. No entanto, nestes locais, é bem
verdade, para se divertir, é preciso consumir. Parques, praças e áreas livres, onde o desfrute de
uma vida saudável não seja relacionado ao status social, têm se tornado exíguos, nas grandes
cidades brasileiras (IDEM, IBIDEM).
Sangodeyi-Dabrowski (2003) afirma que alguns ideólogos brasileiros consideram
que o Brasil caracteriza-se como uma “democracia racial”. Nesse contexto, pode-se dizer que
Salvador tem obedecido a esta tendência, configurando-se como uma cidade dual. Nela, o
espaço se divide em dois: há um circuito superior, moderno, onde as classes média e superior
são predominantes, e um circuito inferior, quase que exclusivamente destinado aos pobres,
desprezados e abandonados pelos poderes públicos, sofrendo ostensiva falta de serviços
básicos. Ainda que as classes sociais estejam espacialmente próximas, é como se
constituíssem dois mundos superpostos que nunca se encontram, embora se observem
mutuamente (2003, p. 165-166).
Angela Gordilho atenta para a intensificação e o surgimento de formas de segregação
das classes sociais no espaço da cidade, configurando, na atualidade, além de uma marcante
separação entre pobres e ricos, uma forte exclusão dos direitos urbanísticos – “cidades”
distintas para “cidadãos” diferenciados (GORDILHO-SOUZA, 2008, p. 264).

373
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Neste sentido, Salvador como outras metrópoles do Brasil e do mundo vem


conduzindo políticas de requalificação urbana, seletivas e segregacionistas, que reforçam e
tornam visíveis as desigualdades sócio-espaciais sobre o tecido urbano-metropolitano
(SERPA, 2008, p. 173).
Depois da segunda metade dos anos de 1990, a cidade de Salvador empreendeu uma
política sistemática de criação e reabilitação de parques e jardins públicos. Entretanto esses
programas não têm atendido, via de regra, às áreas periféricas e de urbanização popular da
cidade, onde o abandono de parques e praças é notório (IDEM, IBDEM). Henrique afirma que
“nos bairros dos excluídos observa-se a natureza relegada „ao mato‟ ou „as enchentes‟ e, em
muitos lugares, a total falta de qualquer natureza” (2009, p. 109).
Serpa esclarece que
embora o Programa de Recuperação das Áreas Degradadas de Salvador e
dos Parques Metropolitanos seja uma tentativa de repensar as cidade em
termos urbanísticos, o que vem sendo priorizado pela Conder é a vocação
turística da capital baiana, com a valorização de grandes parques, próximos à
orla marítima (a exemplo do parque do Abaeté, Costa Azul e Jardim dos
Namorados). O programa não atende, porém, áreas periféricas da cidade,
onde o abandono das praças e parques é notório, a exemplo do Parque de
São Bartolomeu, localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, que,
apesar de constituir-se numa importante reserva de mata atlântica e espaço
sagrado para os praticantes do candomblé, encontra-se totalmente
abandonado (2003, p. 125).

Diante de tal realidade, pequena parcela da população se beneficia da reabilitação de


parques e jardins públicos nesta cidade. Serpa acrescenta que “a população de baixa renda não
dispõe de carro particular nem de transporte coletivo eficiente. Assim, os novos equipamentos
– em geral distantes dos bairros periféricos – vêm segregar ainda mais os mais humildes”
(2011, p. 51).
O modo de produção capitalista, como o da propriedade privada tem feito da
natureza estratégia de marketing. A natureza torna-se objeto de consumo, mercadoria que,
pela escassez, transfigura-se em mercadoria de luxo, produzida e consumida através de uma
idéia utilitarista. Nos usos humanos da natureza, esta deixa de ser reconhecida como algo em
si mesma (HENRIQUE, 2009, p. 103-106).
Henrique afirma que a disposição dos jardins e parques públicos no espaço intra-
urbano atende as lógicas da especulação imobiliária e da renda (2009, p. 118). Para o autor,

a natureza na cidade é uma necessidade que infelizmente foi engolida e


propagada pelas possibilidades de consumo da moradia. As necessidades
estão sendo criadas de acordo com a renda do comprador dos imóveis.
Assim, a natureza na cidade torna-se uma mercadoria para poucos

374
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

consumidores, escolhida em função do aumento do valor de troca dos


empreendedores imobiliários. Para os agentes do mercado imobiliário, a
natureza na cidade não é uma necessidade coletiva, e a exclusão é exercida a
serviço da acumulação (IDEM, p. 133).

Serpa admite que

na Salvador contemporânea, como em outras metrópoles do mundo


ocidental, os espaços públicos urbanos são meios de controle social,
sobretudo das novas classes médias, destino final das políticas públicas, que,
em ultima instância, procuram multiplicar o consumo e valorizar o solo
urbano nos locais onde são aplicadas (2008, p. 183).

A definição da natureza na cidade como uma mercadoria destinada a atender aos


anseios das classes dominantes implica a exclusão das classes economicamente inferiores do
acesso à vida com a natureza (HENRIQUE, 2009, p. 109). Tal situação caracteriza a
segregação social e ambiental urbana, tão presente no contexto urbano do Município de
Salvador.
Angela Gordilho considera que

o exame dessa realidade, vista pelo ângulo da distribuição de grandes


equipamentos urbanos concentradores de trabalho (...), bem como das
facilidades de acesso viário, infra-estrutura e distribuição de áreas verdes e
de lazer, enfim, outros indicadores de conforto urbano, demonstra que a
exclusão urbanística se manifesta de forma muito mais profunda. A exclusão
da maioria da população dessas vantagens coletivas dificulta a possibilidade
de sua inserção na dinâmica urbana mais ampla, ou seja, o habitar na cidade
beneficiada (GORDILHO-SOUZA, 2008, p. 263-264).

E acrescenta que

a cidade cresceu, neste século, para atingir um ambiente construído


fisicamente complexo, caótico, maltratado, de desrespeito aos recursos
naturais e, na questão socioespacial, marcado por uma intensa segregação de
renda, conjugada a uma ampla exclusão dos benefícios urbanísticos – uma
cidade sem cidadania. Enfim, um quadro de difícil intervenção para sua
melhoria, que desafia novas formas de pensar e de intervir na cidade
(GORDILHO-SOUZA, 2008, p. 265).

Diante deste quadro de segregação sócio-ambiental estabelecida em Salvador,


Henrique pondera que se faz necessário adotar formas materiais de mudar o quadro classista,
excludente e segregador em que se encontra a natureza na cidade (2009, p. 168).
Para tanto, elabora algumas proposições que considera importantes para se alcançar
uma mudança na realidade urbana contemporânea. Entre as quais, o entendimento de que a

375
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

natureza na cidade seja para e de todos independentemente do poder aquisitivo e a instauração


da apropriação da natureza na cidade sob a égide do conceito de valor de uso e não de valor
de troca (IDEM, p. 170-171).
Sant‟Anna defende que urgem providencias em direção à transformação. Para tanto,
é necessário conscientizar a população e seus dirigentes, além de cobrar a atuação do Poder
Público de forma holística (2011, p. 128).
Deve-se pensar em uma cidade para todos, com planejamento urbano e voltada para
o bem-estar das pessoas, mesmo porque, o mundo moderno em que se vive, após a expansão
do capitalismo, é um mundo onde a cidade se acrescenta, toma dimensões novas, torna-se
mais complexa, centralizando a vida do conjunto, ou seja, da humanidade (SOUZA, 2010, p.
205).
A população majoritária no município de Salvador tem sido representada pela classe
economicamente instável e desfavorecida. Maricato afirma que o território da pobreza urbana
não se refere a uma minoria excluída ou marginal, mas em algumas cidades (como, por
exemplo, Salvador) compreende a maioria da população (2011, p. 103).
Esta parcela da sociedade urbana também merece ter seus direitos respeitados e
garantidos, dentre os quais, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à sadia
qualidade de vida, à dignidade da pessoa humana. Souza considera que

em uma só palavra, pode-se dizer que a qualidade de vida encontra-se


associada ao bem-estar das pessoas e à dignidade humana (...) a vida digna
com qualidade representa, certamente, o fim maior a ser colimado pelo
direito em benefício do ser humano. (...) Garantir a qualidade de vida é
preservar a dignidade humana. O bem maior protegido pelo direito é a vida
humana. Mas o ser humano, ser racional, é sujeito consciente das situações
que vivencia (...) Precisa, portanto, de algo mais do que sobreviver: precisa
viver com dignidade(2010, p. 50-51).

Os parques públicos existem, ou assim deveria ser, para preencher, de certa forma,
esta lacuna. Harvey ressalta que “o apego a algum sentido de relação não alienada com a
natureza faz a vida suportável para o trabalhador” (1982, p. 28). Torna-se indispensável,
portanto, questionar, na prática, se este objetivo está sendo alcançado, ou melhor, se tem se
buscado alcançá-lo.
Existe uma realidade urbanística excludente, no município de Salvador, que
privilegia uma minoria, responsável por ensejar segregação sócio-ambiental? Diante do
exposto, sim, existe. Assim sendo, os cidadãos não deveriam se manifestar para impedir que

376
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

esta situação se perdure? O meio acadêmico não seria uma forma adequada de investigar e
discutir aprofundadamente tal realidade?
As discussões acadêmicas referentes à garantia de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado para todos, à sadia qualidade de vida, à dignidade da pessoa
humana e à busca por uma sociedade mais igualitária, pelo seu compromisso com o
progresso da cidadania, com o desenvolvimento urbano justo e adequado não podem estar
alheias a tais debates.

CONCLUSÕES

Na atual conjuntura urbana, presenciam-se diversidades sociais


múltiplas. Desigualdades social, cultural, étnica, associadas às inadequadas políticas
públicas, bem como às dificuldades de efetivação de diversos direitos inerentes à
dignidade da pessoa humana, são alguns exemplos;
Tornar o direito à natureza nas cidades, um direito de todos, é um
desafio que se propõe aos diversos setores de estudo, sejam eles jurídicos, técnicos,
sociais, urbanísticos;
A preocupação em disponibilizar o acesso a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado tem, cada vez mais, se tornado uma constante nos estudos
referentes ao urbanismo e ao direito à sadia qualidade de vida, nas cidades;
Esta temática é presenciada no Estatuto das Cidades, e especificamente,
no que se refere ao município de Salvador, no plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano do Município;
Os parques públicos não estão proporcionalmente distribuídos em
Salvador;
Há escassez de parques públicos nos bairros periféricos;
O município de Salvador evidencia segregação sócio-ambiental, ferindo
o dispositivo constitucional que garante a todos o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado;
As Políticas Públicas urbanísticas relativas ao acesso dos cidadãos à
natureza, no município de Salvador, têm privilegiado o mercado imobiliário;

377
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O modo de produção capitalista, preponderante no cenário urbano


nacional, tem ensejado o estabelecimento de diversos modos de segregação nas
cidades, em especial, nas metrópoles regionais;
Diante dos quadros de degradação ambiental, em prol do crescimento
urbano, tem existido tendência a lidar-se com a natureza como mercadoria rara, cara e,
portanto, acessível à parcela da população detentora de alto poder aquisitivo;
Sendo assim, restringindo-se ao município de Salvador, observa-se a
tendência à instalação de parques públicos em setores considerados nobres da cidade,
o que proporciona privilégios em termos de bem-estar ambiental à pequena parcela da
população residente em áreas próximas, em detrimento de imensa maioria de pessoas
que habitam bairros longínquos, desprovidas de recursos financeiros que as
possibilitem usufruir da natureza distante;
Somado a isso, evidencia-se o descaso da administração pública em
cuidar, sanear, quando existentes, os parques públicos localizados em setores
caracterizados pelo predomínio de moradores com baixo poder aquisitivo. Tal situação
pode ser caracterizada como segregação social e ambiental urbana.

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O CONTROLE BIOPOLÍTICO E O DIREITO URBANÍSTICO E AMBIENTAL


CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DO PROJETO BEIRA RIO
EM FOZ DO IGUAÇU

THE BIOPOLITICAL CONTROL AND THE CONTEMPORARY URBAN AND


ENVIRONMENTAL LAW: AN ANALYSIS OF THE PROJECT “BEIRA FOZ”
IN FOZ DO IGUAÇU

ANGELA CASSIA COSTALDELO1, JÚLIO CÉSAR GARCIA2

RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise crítica do controle biopolítico, a partir do
referencial teórico de Michel Foucault, e sua relação com os mecanismos de ordenação
territorial previstos no direito urbanístico e ambiental contemporâneo, em especial de alguns
instrumentos urbanísticos previstos no “Estatuto da Cidade”. A partir dos fundamentos
teóricos identificados, parte-se para uma descrição e análise do projeto “Beira Foz”, em fase
de desenvolvimento e implantação no município de Foz do Iguaçu, Estado do Paraná, com o
objetivo de verificar a aplicação do controle biopolítico em um caso concreto existente nas
intervenções urbanísticas em área de fronteira, com vistas a coibir crimes internacionais e
associações de populações de baixa renda com o crime organizado transfronteiriço. Com base
no método dedutivo e em revisão bibliográfica, o estudo defende a hipótese de que as
intervenções urbanísticas propostas pelo projeto “Beira Foz”, longe de se limitarem a
melhorias estéticas e do “puro” planejamento urbano, dizem respeito a mecanismos
legalmente “transvestidos” de urbanismo mas que atuam no incremento da presença do
Estado nas áreas de influência do projeto, com o objetivo de aumentar o controle sobre os
cidadãos, moradores e visitantes que neles estiverem.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Ambiental; Direito Urbanístico; Biopolítica; Michel
Foucault; “Estatuto da Cidade”; Tríplice Fronteira.

ABSTRACT
This essay addresses a critical analysis of the so called biopolitical control, from the
theoretical framework of Michel Foucault, and its relation to the mechanisms of territorial
control provided by the contemporary urban and environmental law, especially concerning
urban instruments provided by the federal law named The City Estatute. From this theoretical
approach the study parts to a description and analysis of the riverside project called “Beira
Foz”, under development and deployment in the city of Foz do Iguaçu, Parana State, in order
to verify the application of biopolitical control in this real case related to urban interventions
in the border area, in order to curb crimes and international associations of low-income
populations with cross-border organized crime. Based on the deductive method and literature
                                                                                                                       
1
Doutora em Direito, docente do curso de Doutorado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná, e Coordenadora do Núcleo de estudos do Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e
Desenvolvimento – PRÓ-POLIS
2
Mestre em Direito, doutorando no curso de Doutorado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná, e membro do Núcleo de estudos do Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e
Desenvolvimento – PRÓ-POLIS, docente do curso de Direito da Unioeste, campus de Foz do Iguaçu-PR, integrante do
GEDAI.

 
382
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

review, the study supports the hypothesis that the interventions proposed by urban design
“Beira Foz”, far from being limited to aesthetic improvements and "pure" urban planning,
actually are legal mechanisms with urban appearance working on increasing the presence of
the state in the areas of influence of the project, aiming to increase control over the citizens,
residents and visitors who are in them.
KEYWORDS: Environmental Law; Urban Law; Biopolitics; Michel Foucaul; The City
Estatute; Triple Border.

Introdução

A discussão acadêmica e intelectual sobre o poder e a soberania não pode ignorar as


contribuições de Michel Foucault. Além de formular a teoria da sociedade disciplinar, o
filósofo francês também foi além ao reconhecer uma transformação no exercício do poder a
partir do século XIX que denominou de biopoder ou biopolítica.
O presente artigo procura compreender esta manifestação do poder estatal com vistas
a analisar o caso concreto do projeto “Beira Foz”, a ser implementado em Foz do Iguaçu,
Estado do Paraná, como meio de controlar o fluxo de pessoas e bens na fronteira com o
Paraguai e a Argentina, esperando diminuir ou conter o alto índice de crimes e atividades
ilícitas transfronteiriças.
O projeto “Beira Foz” se assenta em uma série de intervenções urbanísticas, alinhado
com o Plano Estratégico de Fronteiras, estabelecido pelo Decreto Federal nº 7.496/2011, e que
permitirá a diversos órgãos de controle público, a exemplo da Polícia Federal e da Receita
Federal, em associação com órgãos estaduais e municipais, monitorar as atividades nas
margens dos rios Paraná e Iguaçu.
Apesar de ter sido amplamente divulgado na mídia, inclusive com indicação de que
já começaria a ser implantando efetivamente no ano de 2012, a busca por dados para a
presente pesquisa indicou que ainda não existe um projeto oficial, ao menos tornado público,
sobre o “Beira Foz”. Após realizar a busca em diversos sítios na internet e diversos contatos
com instituições indicadas como integrantes da coordenação do projeto, chegou-se a uma
versão aparentemente preliminar do projeto fornecida por email, em formato digital, pelo
Centro de Tecnologias Sociais do Parque Tecnológico de Itaipu – PTI.
Este artigo, a partir do método dedutivo e fundado essencialmente em referências
bibliográficas, inicia-se com uma apresentação sintética do conceito de biopoder formulado
por Michel Foucault.

 
383
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Não é objetivo desta pesquisa, aprofundar os conceitos, hipóteses e teorias de Michel


Foucault sobre o poder, nem mesmo sobre o próprio biopoder, mas sim, o de partir de seus
principais referenciais teóricos sobre o tema para analisar o caso concreto proposto.
Na sequência busca-se compreender alguns aspectos da ordenação territorial
promovida pelo Direito Urbanístico e Ambiental brasileiro. Esta é a deixa para relacionar a
ordenação urbanística, suas regras e instrumentos, como mecanismos de controle biopolítico,
aos moldes descritos por Michel Foucault.
Por fim, procura-se apresentar o projeto “Beira Foz”, seus principais objetivos e
características, para sustentar a hipótese de que tal iniciativa não se limita a propor melhorias
arquitetônicas, urbanísticas ou estéticas em Foz do Iguaçu, e muito menos a promover
melhorias sociais e ambientais. Na realidade, o projeto tem como principal escopo a
implantação de estratégias de controle pelo biopoder, intencionalmente articuladas para
garantir o maior controle e normatização das populações que atuam no espaço da fronteira.

1. O controle biopolítico

A partir das contribuições de Michel Foucault, a Filosofia contemporânea viu surgir


um incremento no debate sobre as manifestações do poder normalizador, ou seja, os meios de
constranger as subjetividades na direção de uma norma, de uma regra ou de um padrão.
Além do poder disciplinar, que age diretamente nos corpos dos sujeitos, no intuito de
moldá-los e conformá-los, Michel Foucault apresenta também o biopoder, enquanto
mecanismo normalizador que passa a atuar sobre populações.
De acordo com Ricardo Marcelo Fonseca (2004, p. 266), estes dois mecanismos
normalizadores não são excludentes ou incompatíveis entre si, mas sobrepostos, atuando tanto
no nível da disciplina quanto no nível do biopoder.
Para Michel Foucault (2005, p. 286) o surgimento do biopoder ou da biopolítica
constitui um dos fenômenos fundamentais do século XIX, que denomina de assunção da vida
pelo poder ou “uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de
estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico”.
Até este período da história, o soberano já mantinha o direito sobre a vida e a morte,
mas esta situação, na realidade, sobrepunha-se apenas sobre a morte, ou seja, ao controlar o
fazer morrer o soberano indiretamente podia deixar viver. Nas palavras de Michel Foucault
(2005, p. 287): “é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida”.
 
384
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O que a biopolítica provocou foi a inversão deste poder, que passa a ser o “poder de
‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer” (FOUCAULT, 2005, p. 287). Na prática, o Estado exerce
sua soberania ainda com a técnica disciplinar, porém agora alçada a um novo nível, com
novas tecnologias de poder que se dirigem não mais apenas ao “homem-corpo”, mas ao
homem vivo, a populações inteiras.
Neste sentido, afirma Michel Foucault (2005, p. 289):
A nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em
que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa
global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como
o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.
Nas sociedades contemporâneas, nenhum outro espaço é capaz de congregar os
fatores da massificação e da concentração de pessoas do que o espaço urbano. Os mecanismos
disciplinadores aplicados a estes territórios ultrapassam os meandros da política e são
internalizados no mundo jurídico. Este é o caso do Direito Urbanístico e Ambiental, que
elenca uma série de diretrizes, regras e instrumentos da ordenação das cidades, que muito
além dos aspectos arquitetônicos e estéticos, alcança o controle biopolítico das populações.

2. Aspectos da ordenação territorial do Direito Urbanístico-Ambiental brasileiro

Durante toda a história humana, as cidades tornaram-se o principal local de


concentração de pessoas. De acordo com um relatório da ONU (2011), pela primeira vez na
história mais pessoas passaram a viver em áreas urbanas do que rurais, alçando o número de
3,5 bilhões de pessoas vivendo em cidades.
Neste cenário, qualquer estudo do meio ambiente passa a exigir a consideração do
espaço urbano, didaticamente classificado como meio ambiente artificial. Conforme José
Afonso da Silva (2002, p. 21), trata-se do “espaço urbano construído, consubstanciado no
conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças,
áreas verdes, espaços livres em geral; espaço urbano aberto)”.3  
Portanto, o bem ambiental tutelado pelo artigo 225 da Constituição Federal alcança
também o espaço urbano, que deve garantir a vida com qualidade mediante a preservação do
equilíbrio ecológico, nos mesmos termos que quaisquer outras áreas, sejam elas naturais ou
rurais. Por outro lado, o constituinte brasileiro também tratou do espaço urbano de maneira
específica, ao tutelar a Política Urbana.

                                                                                                                       
3
No mesmo sentido ITURRASPE, Jorge Mosset; HUTCHINSON, Tomás; DONNA, Edgardo Alberto. Daño ambiental. v.
1. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni, 1999, p. 309.

 
385
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Em seu artigo 182, a Constituição Federal prevê a edição de uma lei federal que
estabeleça diretrizes gerais com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. E foi somente em 10 de julho 2001
que a Lei Federal nº 10. 257 foi publicada. Conhecida como “Estatuto da Cidade”, estabelece
as diretrizes gerais da política urbana brasileira (Art. 2º) e ainda apresenta uma série de
instrumentos (Art. 4º).
No tocante ao presente estudo, merecem destaque alguns objetivos previstos pelo
“Estatuto da Cidade”, e ainda a regulamentação do plano diretor e das operações urbanas
consorciadas.
Em primeiro lugar, a Política Urbana, contida no Capítulo II da Constituição da
República vigente, busca implantar um modelo de gestão democrática e participativa das
cidades, reconhecendo a igualdade de acesso a oportunidades e serviços por parte de todos os
moradores, independentemente de sua condição social ou econômica. Este aspecto pode ser
encontrado na garantia do direito as cidades sustentáveis (Art. 4º, I), e ainda na gestão
democrática (Art. 4º, II) e no modelo de cooperação (Art. 4º, III).
Porém, merece destaque a diretriz geral que estabelece a ordenação e o controle do
uso do solo. De acordo com o Art. 4º, inciso VI, um dos objetivos é evitar a utilização
inadequada dos imóveis urbanos, a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes, e a
poluição e degradação ambiental.
Para tanto, todas as cidades com mais de 20 mil habitantes devem implantar um
plano diretor.4 Este é o instrumento de planejamento e ordenação urbana por excelência,
devendo ser aprovado por lei municipal. Suas regras determinam quando a propriedade
urbana compre com sua função social (Art. 39), assegurando o atendimento das necessidades
dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades
econômicas.
Outro instrumento importante criado pelo “Estatuto da Cidade” diz respeito as
operações urbanas consorciadas. Criada por uma lei municipal específica e baseada no plano
diretor, a operação urbana consorciada delimita uma área onde é realizado um conjunto de
intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal. Estas ações devem contar
com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais,
melhorias sociais e a valorização ambiental. (Art. 32, § 1º)

                                                                                                                       
4
Também a Constituição Federal em seu artigo 182, § 1º estabelece esta obrigação.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

3. O controle biopolítico das cidades

As relações do biopoder com o ordenamento urbano são muito estreitas, e se


manifestam no modo de controle das populações a partir das conexões entre o poder e o
espaço.
Os estudos de Michel Foucault sobre o biopoder demonstram a sua preocupação
sobre o espaço como um problema a ser enfrentado (tanto no nível político quanto analítico),
em parte como decorrência do embate filosófico que Foucault travava contra a filosofia do
sujeito. (RABINOW, 2003, p. 354)
Já, segundo Paul Rabinow (2003, p. 355), a ordenação urbana é comumente vista sob
dois pontos de vista possíveis:
Quando se observa o tratamento intelectual e acadêmico dado a história do planejamento
urbano nos séculos XIX e XX, é estranhamente aparente que as questões de poder são todas
tratadas resumidamente de duas formas: ou em termos de cidades capitais e seus
monumentos, ou seja, a organização do espaço como uma questão essencialmente estética;
ou – e esta é a abordagem predominante – como a análise do espaço e do poder em
decorrência do domínio sobre a propriedade e o controle das instituições e um modo
disciplinar. A maneira como a segregação de populações, classes ou raças evoluiu é lida
como uma parcela deste ou daquele grupo. 5
Portanto, sem negar a importância das tradições formais da arquitetura, a abordagem
proposta por Michel Foucault permite ir além com a análise dos aspectos normativos e
disciplinares das cidades.
Tradicionalmente, o principal instrumento de planejamento urbano, o plano diretor,
realiza uma divisão espacial da cidade por funções e interesses, mas que estão sempre
submetidas ao grande eixo principal: a propriedade privada.
Agora sob o manto da função social, a propriedade encontra limites mais concretos
relacionados a interesses gerais e públicos, mas que de outra forma também mascaram
mecanismos de ordenação territorial que continuam sob o controle de grupos específicos de
interesses.
Em nome da função social ou das cidades sustentáveis, a legislação urbanística e as
políticas públicas urbanas classificam a população, distinguindo grupos econômicos e sociais,
                                                                                                                       
5
  If one regards the scholarly and intellectual treatment of the history of urban planning in the
nineteenth and twentieth centuries, is strangely apparent that when questions of power are treated at
all, it is almost entirely in one of two ways: either in terms of capital cities and their monuments, that
is, the organization of space as essentially an aesthetic issue; or – and on the left hand this is the
dominant mode – the analysis of space and power as ownership of property and control of institutions
in a disciplinary mode. How segregation of populations, classes, or races evolved is read as a plot of
this or that group. (tradução livre)
 

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

e por meio do zoneamento instauram sistemas de controle do uso do território. Em que pese o
direito à livre locomoção garantido pela Constituição Federal (Art. 5º, CF), na prática a
maioria dos cidadãos não tem acesso a diversos espaços urbanos, seja pela impossibilidade
econômica de chegar aos mesmos (áreas afastadas ou localizadas longe dos bairros
residenciais de baixa renda), seja pela impossibilidade fática (condomínios fechados, clubes
privados de lazer, etc.).
O extremo do controle sobre o espaço público urbano ocorreu recentemente em
Honduras, onde o governo decidiu privatizar cidades inteiras, novamente sob o argumento
oficial de combater a desigualdade social. Porém, na prática não é bem o que deverá ocorrer,
pois a título de exemplo, a primeira cidade a passar por este processo se localiza exatamente
ao lado de uma grande comunidade de indígenas Garifuna, que naturalmente se opõem ao
projeto pois em nada serão beneficiados pelo mesmo. As regiões vendidas, além do controle
rigoroso de acesso ao seu território, poderão possuir poderes semelhantes a Estados, tais como
um judiciário, executivo e legislativo próprios. 6
Com o desenvolvimento tecnológico chegando a todos os cantos do planeta, também
em Foz do Iguaçu as ruas passaram a ser monitoradas com câmeras, 24 horas por dia. As
regras de construção e as diretrizes do uso do espaço urbano se somam a estes recursos
permitindo a quem efetivamente administre a cidade em controlar e fiscalizar o uso de seus
espaços. Este é um típico exemplo de panóptico de Foucault.
Não é incomum leis municipais de ordenação urbana serem rapidamente alteradas
pela iniciativa de seus Poderes Executivo e Legislativo por interferência de um ou outro grupo
econômico. Em alguns casos são restrições ambientais que são desconsideradas. Em outros,
são limites construtivos que são desconsiderados. Entretanto, quando o interesse é conter e
afastar populações, o interesse público autoriza a criação de bairros afastados para a
realocação de comunidades inteiras. É o que ocorreu no famoso bairro Cidade de Deus no Rio
de Janeiro7, ou como ocorre com as favelas de Foz do Iguaçu8.

                                                                                                                       
6
MAURO, Filipe. Redação. Honduras aprova privatização de cidades com a justificativa de combater a desigualdade social.
In Opera Mundi Uol. Notícias. América Central. Reportagem publicada em 07/09/2012. Disponível em:
<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/24166/honduras+aprova+privatizacao+de+cidades+com+a+justificativa+de
+combater+a+desigualdade+social.shtml>. Acessado em: 18/11/2012.
7
WIKIPEDIA. Cidade de Deus. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_de_Deus_(bairro_do_Rio_de_Janeiro)>. Acessado em: 18/11/2012.
8
SERAFINI, Mariana. Processo de desfavelamento da região do Bambu deve começar em breve. In Click Foz do Iguaçu.
Reportagem publicada em 20/01/2012. Disponível em: <http://www.clickfozdoiguacu.com.br/foz-iguacu-noticias/processo-
de-desfavelamento-da-regiao-do-bambu-deve-comecar-em-breve>. Acessado em: 18/11/2012. Outro exemplo conhecido em
Foz do Iguaçu ocorreu com a criação do bairro Cidade Nova, extremamente afastado e isolado do restante da cidade e
localizado embaixo das redes de alta tensão que saem da Itaipu Binacional em direção a Estação de Furnas.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

De maneira prática, o biopoder permite aos governantes realizar a contenção das


populações, guiando os comportamentos por meio do que é permitido ou proibido em cada
espaço.
Um exemplo histórico do controle biopolítico de territórios e cidades ocorreu na
África do Sul com o apartheid. Para Jennifer Robinson (1997, p. 365-386), a ordenação
territorial das áreas residenciais africanas e a forma da cidade estavam diretamente
relacionadas ao exercício poder estatal para a dominação dos sujeitos excluídos dos direitos
democráticos da cidadania.
Outra manifestação do biopoder, de natureza internacional e importante para este
estudo, se encontra no controle de fronteiras, com a emissão de passaportes e vistos, que
estabelecem limites territoriais para a mobilidade humana. Para Mark Salter (2006, p. 167-
189) trata-se da construção de um ordem biopolítica internacional por meio da criação,
classificação e contenção de um regime de fiscalização e uma tecnologia política
internacional sobre o indivíduo que é conduzida por uma globalização do sistema
confessionário, de documentação e de biometria.
Numa região de fronteira como é o caso de Foz do Iguaçu, o grande fluxo de pessoas
e bens chama a atenção para o controle estatal e se torna um desafio para a aplicação do
controle biopolítico. É neste contexto que surge o projeto “Beira Foz” que será apresentado a
seguir.

4. O projeto “Beira Foz”

A partir do ano de 2012 uma equipe interdisciplinar liderada pela Itaipu Binacional e
contendo arquitetos, urbanistas, engenheiros, turismólogos, jornalistas, sociólogos e
pedagogos, veio a público apresentar o projeto urbanístico denominado “Beira Foz”.9
O projeto constitui-se em uma série de intervenções urbanísticas nas margens dos
rios Paraná e Iguaçu, na fronteira do Brasil, respectivamente com o Paraguai e a Argentina, no
município de Foz do Iguaçu. Conforme previsto no projeto:
O projeto compreende a implantação de espaços de convivência voltados ao lazer, visitação
turística, atividades culturais e preservação ambiental, constituindo um ambiente seguro para
a socialização, reforçando o elo entre habitantes e usuários das cidades de Foz do Iguaçu,

                                                                                                                       
9
ITAIPU BINACIONAL. Audiovisual 10'45'' - Projeto “Beira Foz”. Apresentação audio-visual publicada pela Itaipu
Binacional no site youtube em 13/04/2012. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=rOixQZhqvB8> Acessado
em: 16/11/2012.

 
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Puerto Iguaçu e Ciudad del Este, e promovendo novas oportunidades de inclusão social,
integração, e desenvolvimento econômico e urbano.10
A sua implantação ocorrerá por meio de uma operação urbana consorciada e está
assentado em quatro eixos temáticos estruturantes, a saber:
1. Segurança: implantação de três bases náuticas de vigilância permanente e apoio tático aos
órgãos de Polícia Federal e Ambiental, Receita Federal e Marinha do Brasil, denominadas de
Unidades de Policiamento Fronteiriço (UPFRON);
2. Turismo Sustentável: desenvolvimento de conexão urbanística e viária beirando os Rios
Paraná, desde a Itaipu até o Marco das Tres Fronteiras, e o Rio Iguaçu, desde o referido
Marco até a entrada do Parque Nacional do Iguaçu; a requalificação urbana da Ponte da
Amizade com a iluminação artística e paisagismo: intervenção no seu entorno com o projeto
público/privado da Vila Portes e Jardim Jupira; e revitalização do Marco das Três Fronteiras;
intervenções integradas à Beira Rio Paraná e à Beira Rio Iguaçu.
3. Meio Ambiente: Preservação de mata existente e recuperação de áreas de APP ou áreas
degradadas por ocupações irregulares ou caminhos indevidos de portos clandestinos;
proposta de ocupação de áreas já impactadas com equipamentos públicos e privados que
venham a se integrar com os recursos naturais, dando uma ocupação qualificada e
sustentável para a população e os turistas.
4. Desenvolvimento Socioeconômico: Promover a desfavelização com o desenvolvimento de
bairros integrados ao Projeto, atração de investimentos para o território nas áreas de turismo,
lazer e infraestrutura, gerando alternativas de trabalho, emprego e renda para a população
local.11

Apesar da aparência dada ao projeto nos mecanismos de divulgação oficial, não é


difícil constatar sua natureza biopolítica. A denominada região da Tríplice Fronteira é
internacionalmente conhecida por abrigar diversos grupos e esquemas do crime organizado,
que realizam diversas atividades ilícitas, tais como o contrabando, o descaminho e o tráfico de
drogas e de armas. A estes, se somam ainda a entrada de estrangeiros ilegais, a evasão de
divisas e o tráfico de animais.
A ausência de ocupação estatal nas margens do Rio Paraná, na divisa da cidade de
Foz do Iguaçu com Ciudad del Este no Paraguai, pode ser considerada uma das principais
causas desta situação, associado ainda a existências de favelas e ocupações irregulares em
diversos trechos das margens do Rio Paraná, que abrigam e escondem criminosos.
A estratégia central, portanto, é a de realizar uma “limpeza” urbanística em toda a
margem do Rio Paraná, eliminando pontos de entrada de produtos, armas e drogas
contrabandeadas e desarticular núcleos de atuação do crime organizado. Ao mesmo tempo, a
intervenção urbanística também atacará um passivo ambiental e social de Foz do Iguaçu, que
são as favelas localizadas às margens do Rio Paraná. Apesar de propagar a preocupação com

                                                                                                                       
10
PTI. Projeto Preliminar “Beira Foz”. Arquivo digital disponibilizado pela Coordenação do Projeto “Beira Foz” no Parque
Tecnológico Itaipu (PTI) via email em 14/11/2012.
11
PTI. Id. Ibid.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

o processo de desocupação das favelas e a destinação de seus moradores, o Projeto “Beira


Foz” até o momento não apresentou, de maneira concreta, o que será feito com estes cidadãos.
Para se ter uma ideia da gravidade do problema da região da tríplice fronteira, a
Revista Veja divulgou dados em uma reportagem que dão conta de que 68% das armas que
chegam às mãos de bandidos brasileiros vêm do Paraguai na região de fronteira em Foz do
Iguaçu.12 Em virtude das ações de contrabando na região, também aumentam os índices dos
demais crimes, em especial dos homicídios, e que deixa de ter impactos apenas locais para se
tornar uma questão de segurança nacional.
O projeto “Beira Foz” se alinha ao Decreto Federal nº 7496 de 8 de junho de 2011.
Este Decreto institui o Plano Estratégico de Fronteiras que tem como principal objetivo geral
o “fortalecimento da prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos transfronteiriços
e dos delitos praticados na faixa de fronteira brasileira” (Art. 1º)13.
Com base nos objetivos e ações específicos do Plano Estratégico de Fronteiras Arts.
3º e 4º), o caráter biopolítico do projeto “Beira Foz” resta inegável:
Art. 3o O Plano Estratégico de Fronteiras terá como objetivos:
I - a integração das ações de segurança pública, de controle aduaneiro e das Forças Armadas
da União com a ação dos Estados e Municípios situados na faixa de fronteira; […]
III - a troca de informações entre os órgãos de segurança pública, federais e estaduais, a
Secretaria da Receita Federal do Brasil e as Forças Armadas; […]
V - a ampliação do quadro de pessoal e da estrutura destinada à prevenção, controle,
fiscalização e repressão de delitos na faixa de fronteira.

Art. 4o O Plano Estratégico de Fronteiras será efetivado mediante a realização, entre outras,
das seguintes medidas:
I - ações de integração federativa entre a União e os estados e municípios situados na faixa
de fronteira;
II - implementação de projetos estruturantes para o fortalecimento da presença estatal na
região de fronteira; e
III - ações de cooperação internacional com países vizinhos.14 (grifos nossos)

Por meio do projeto “Beira Foz”, o acesso às margens dos rios Paraná e Iguaçu serão
controlados. Ao invés da simples ocupação militar ou policial, será usado o expediente
urbanístico. A remoção de favelas e a construção de equipamentos públicos permitirão a
diminuição do uso destas áreas para a execução de ações criminosas. Por outro lado, a

                                                                                                                       
12
Revista Veja. O mapa do contrabando. Infográfico. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/infograficos/o-mapa-do-
contrabando/caminho_das_armas.swf?unico=2>. Acessado em: 16/11/2012. No mesmo sentido a reportagem exibida pelo
programa Fantástico da Rede Globo sob o título “Veja ação de contrabandistas na fronteira com Paraguai”. Disponível em: <
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1665791-15605,00.html>. Acessado em: 16/11/2012.
13
BRASIL. Decreto Federal nº 7.496/2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2011/Decreto/D7496.htm>. Acessado em: 18/11/2012.
14
BRASIL. Decreto Federal nº 7.496/2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2011/Decreto/D7496.htm>. Acessado em: 18/11/2012.

 
391
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

instalação de três grandes bases de monitoramento policial em pontos estratégicos do rio


Iguaçu indicam a verdadeira intenção detrás do projeto.
Diante da impossibilidade física e dos custos políticos, diplomáticos e financeiros
para construção de um muro na divisa entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, a exemplo das
iniciativas norte-americanas em fronteiras com o México, e de Israel com a Palestrina, o
governo brasileiro buscou uma alternativa biopolítica para o controle minucioso de quem e de
como será utilizado o espaço da fronteira.
Mesmo diante dos legítimos interesses de segurança pública e do interesse nacional
existentes em um projeto desta natureza, o fato de que o mesmo não passou pelo crivo da
discussão pública e está sendo imposto ao Município e aos cidadãos, ao que tudo indica, por
um importante braço institucional do governo federal (a Itaipu Binacional), gera um grande
desconforto e receio das reais intenções por detrás da iniciativa.
Além do Município de Foz do Iguaçu e de outros agentes públicos federais (Polícia
Federal e Receita Federal), estão associados ao projeto grupos econômicos privados da
cidade, que possuem interesses econômicos diretos nas regiões afetadas.15
Em ano de eleições municiais (2012), o projeto chegou inclusive a ser apresentado ao
Ministro da Justiça, que em pouco tempo declarou publicamente que o mesmo teria início
ainda em 201216. Apesar das intervenções ambientais que exigem estudos de impacto
ambiental, e das intervenções urbanísticas que requerem estudos de impacto de vizinhança e
da legítima participação pública, diante das alterações do plano diretor e das regras de
zoneamento urbano, até o momento apenas algumas oficinas com mero caráter de
apresentação do projeto foram realizadas com grupos sociais específicos (admistradores17,
comerciantes, etc.).
Para além das características típicas do biopoder, o projeto “Beira Foz” demonstra
como este poder é exercido com grande liberdade e naturalidade pelas instâncias
governamentais, demonstrando que não parecem reconhecer limites ao controle do território,
impondo regras e limites sob diversos pretextos no momento e da maneira que consideram
apropriados, alijando valores e princípios republicanos.

                                                                                                                       
15
A área de intervenções urbanísticas, nas margens dos rios Paraná e Iguaçu, é composta de 10% de área públicas sendo sete
áreas municipais, quatro áreas estaduais e oito áreas federais. Os outros 90% são propriedades privadas necessitando um
trabalho conjunto entre poder público e iniciativa privada. Fonte: Projeto “Beira Foz”. Op. Cit.
16
PTI. Parque Tecnológico Itaipu. Sala de Imprensa. Execução do Projeto “Beira Foz” terá início em 2012, grante ministro
da Justiça. Reportagem publicada em 30/07/2012. Disponível em: <http://www.pti.org.br/imprensa/noticias/execucao-do-
projeto-Beira-Foz-tera-inicio-em-2012-garante-ministro-da-Justica%20>. Acessado em: 18/11/2012.
17
PTI. Parque Tecnológico Itaipu. Sala de Imprensa. “Beira Foz” é apresentado para membros do Conselho Regional de
Administração. Reportagem publicada em 15/08/2012. Disponível em: <http://www.pti.org.br/imprensa/noticias/beira-foz-e-
apresentado-para-membros-conselho-regional-administracao>. Acessado em: 18/11/2012.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Conclusões
A configuração do poder soberano no Estado contemporâneo, em especial com o
aumento de sua capacidade de interferir e determinar a condição de vida de grandes
populações, decorre de pelo menos uma certeza: vive-se num contexto de massificação social.
Uma das formas possíveis de se analisar esta situação é por meio dos referenciais
teóricos de Michel Foucault que identifica no biopoder uma nova tecnologia empregada pelo
Estado e que pode ser sintetizada na capacidade que possui de “fazer viver”, para além do
tradicional poder de “fazer morrer”. O poder agora é, portanto, biológico (bio) porque atua no
nível da vida como um todo, para além dos corpos dos indivíduos, afetando populações
inteiras.
O raciocínio nesta seara teórica tende naturalmente a relacionar-se com outras áreas
do conhecimento que também se preocupam com coletividades. Este é o caso do Direito
Urbanístico-Ambiental, que congrega normas de ordenação do território urbano, de seu
zoneamento, uso e ocupação.
Nesta pesquisa verificou-se a continuidade de uma tendência há tempos constatada
do denominado fenômeno de urbanização, segundo o qual a maior parte da população do
planeta já habita as cidades ou centros urbanos e que com o passar do tempo apenas se
agravará. Esta característica se torna ainda mais relevante pelo fato de que a concentração de
pessoas em um território relativamente menor permite e pressupõe novas regras de ordenação
e controle do solo e das políticas específicas adotadas.
Vários autores, alguns dos quais citados neste artigo, já verificaram a relação entre o
Direito Urbanístico e Ambiental e estratégias de controle biopolítico. Apesar de ser esta
apenas uma das dimensões do poder exercido nas sociedades urbanas, ela não pode deixar de
ser destacada devido a sua conotação massificante e absolutamente relacionada à vida (ou à
morte).
As mais recentes normas urbanísticas parecem destinadas ao embelezamento e
ordenação dos espaços urbanos com vistas a melhorias sociais, econômicas e das condições
gerais de vida. Porém, a partir da noção do biopoder, não é mais possível ignorar este aspecto
nas relações de poder entre o Estado e os cidadãos urbanos. Assim como outros instrumentos
normalizadores, os mecanismos do biopoder também incidem sobre a vida das pessoas, vistas
em classes, grupos ou populações inteiras, e determinam, de fato, o nível de liberdade e de
condições de vida permitidas.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

No Brasil, tanto a Constituição Federal, quanto o “Estatuto da Cidade”, apresentam


diversas diretrizes, normas e instrumentos que permitem o controle biopolítico. Foram
ressaltados o plano diretor e as operações urbanas consorciadas, pois ambos estão presentes
no caso concreto apresentado.
Ao tratar-se do projeto “Beira Foz”, salta aos olhos a preocupação governamental,
por um lado, de enfrentar atividades ilícitas e criminosas na região da fronteira de Foz do
Iguaçu, e de outro lado, de empresários e proprietários de áreas localizadas nas margens dos
rios Paraná e Iguaçu, de também eliminar estas atividades mas com vistas a valorização
econômica destes espaços, atualmente em condições de abandono.
Portanto, as intervenções urbanísticas propostas pelo projeto “Beira Foz”, longe de se
limitarem a melhorias estéticas e do “puro” planejamento urbano, dizem respeito a
mecanismos legalmente “transvestidos” de urbanismo, que atuam com o incremento da
presença do Estado nas áreas de influência do projeto, com o objetivo de aumentar o controle
sobre os cidadãos, moradores e visitantes que neles estiverem.
O curioso é que o caráter biopolítico, em que pese possa ser lido facilmente nas
“entrelinhas” da proposta, passa desapercebido, ao que tudo indica propositalmente, quando o
projeto é formalmente apresentado ao focar apenas em outras questões, deixando de lado a
segregação espacial, cultural, econômica e ambiental.
Infelizmente como intervenção soberana e de interesse nacional, o projeto “Beira
Foz” ainda é pouco conhecido do grande público e, aparentemente, se quer foi integralmente
desenvolvido. Apesar disto, as primeiras ações já tiveram início e demonstram que os reais e
principais objetivos já estão sendo planejados e implementados há muito mais tempo, a
começar pela nova aduana construída na fronteira entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este, e
nas declarações públicas do Ministro da Justiça sobre as próximas etapas e prazos.
Se a proposta ainda deixa mais dúvidas do que respostas, como aquelas relacionadas
ao destino que será dado às populações que ocupam parte destas áreas, ou ainda a
profundidade e a extensão do impacto ambiental, social e econômico que o projeto trará para
o local, uma questão é certa: a vida dos transfronteiriços estará, agora, um pouco mais nas
mãos do Estado.

 
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Referências

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7496.htm>. Acessado
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ITURRASPE, Jorge Mosset; HUTCHINSON, Tomás; DONNA, Edgardo Alberto. Daño


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MAURO, Filipe. Redação. Honduras aprova privatização de cidades com a justificativa


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Reportagem publicada em 07/09/2012. Disponível em:
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ONU. Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais. Divisão de População. Population


Distribution, Urbanization, Internal Migration and Development: An International
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PTI. Parque Tecnológico Itaipu. Sala de Imprensa. “Beira Foz” é apresentado para
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Disponível em: <http://www.pti.org.br/imprensa/noticias/beira-foz-e-apresentado-para-
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______. Parque Tecnológico Itaipu. Sala de Imprensa. Execução do Projeto “Beira Foz”
terá início em 2012, grante ministro da Justiça. Reportagem publicada em 30/07/2012.
Disponível em: <http://www.pti.org.br/imprensa/noticias/execucao-do-projeto-Beira-Foz-tera-
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do Projeto “Beira Foz” no Parque Tecnológico Itaipu (PTI) via email em 14/11/2012.

 
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396
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

INFRAÇÕES POR ACUMULAÇÃO E POLUIÇÃO AMBIENTAL: DESAFIOS E


PERSPECTIVAS DA TUTELA PENAL

INFRACCIONES POR ACUMULACIÓN Y CONTAMINACIÓN AMBIENTAL:


DESAFÍOS Y PERSPECTIVAS DE LA TUTELA PENAL

Daiane Ayumi Kassada1


Érika Mendes de Carvalho2

Resumo: O presente trabalho tem por escopo a análise da legitimidade da assimilação da figura dos crimes de
acumulação, especialmente importante em matéria de poluição ambiental. Nessa perspectiva, partirá da
configuração das condutas comissiva e omissiva de poluição do artigo 54, caput, (causar poluição, em níveis
tais, que possam resultar em danos à saúde humana) e §3°, da Lei 9.605/98 (deixar de adotar, quando assim o
exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível)
como delitos de perigo abstrato-concreto. A ausência de um resultado de lesão ou de perigo concreto será
compensada pela acentuada periculosidade das condutas, posto que violam o disposto na normativa extrapenal e,
se praticadas em contextos de acumulação, podem representar acentuado perigo à incolumidade dos bens
tutelados. De conseguinte, será apresentada a técnica do reenvio à normativa administrativa ambiental como um
instrumento hábil a reforçar a desvalor da conduta nos delitos de poluição quando configurados como crimes de
acumulação (art.54, caput, e §3°, Lei 9.605/98) e serão sugeridos limites ao modo como o Direito
Administrativo concederá esse suporte para a fundamentação e a concretização da configuração dos tipos penais
ambientais, especialmente o de poluição.
Palavras-chave: Crime de poluição; Delitos de acumulação; Perigo abstrato-concreto; Acessoriedade
administrativa.

Resumen: El presente trabajo tiene por objeto el análisis de la legitimidad de la incorporación de la figura de los
delitos de acumulación, especialmente importante en materia de contaminación ambiental. En esta perspectiva,
se tomará como punto de partida la configuración de las conductas comisiva y omisiva de contaminación del
artículo 54, caput, (causar contaminación, en niveles tales, que puedan resultar en daños a la salud humana) y §
3°, de la Ley 9.605/98 (dejar de adoptar, cuando así lo exigir la autoridad competente, medidas de precaución en
caso de riesgo de daño ambiental grave o irreversible) como delitos de peligro abstracto-concreto. La falta de un
resultado de lesión o de peligro concreto se compensará con la acentuada peligrosidad de las conductas, puesto
que infringen lo que dispone la normativa extrapenal y, si practicadas en contextos de acumulación, pueden
representar acentuado peligro a la incolumidad de los bienes tutelados. Luego, se presentará la técnica del
reenvío a la normativa administrativa ambiental como un instrumento hábil a incrementar el desvalor de la
conducta en los delitos de contaminación, cuando configurados como delitos de acumulación (art.54, caput, y
§3°, Ley 9.605/98) y se sugerirá límites al modo como el Derecho Administrativo concede soporte para la
fundamentación y concretización de la configuración de los tipos penales ambientales, especialmente el de
contaminación.
Palabras-clave: Delito de contaminación; Delitos de acumulación; Peligro abstracto-concreto; Accesoriedad
administrativa.

1.Introdução

1
Graduanda do Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá. Bolsista de Iniciação Científica do
CNPq. Integrante do Núcleo de Estudos Ambientais (NEAMBI) da UEM.
2
Doutora e Pós-doutora em Direito Penal pela Universidad de Zaragoza (Espanha). Professora Associada de
Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Núcleo de
Estudos Ambientais (NEAMBI) da UEM.

397
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O conceito de poluição, em sentido amplo, pode ser definido como degradação do


ambiente através da inserção pelo homem de substâncias que são estranhas à composição de
seus elementos ou substâncias em quantidade prejudicial3. No presente estudo, atenta-se ao
comprometimento da composição hídrica e atmosférica adequada à vida das pessoas e para o
equilíbrio do meio ambiente. Observa-se que, dependendo do elemento atingido, a alteração
ocasionada poderá ser classificada como poluição hídrica, atmosférica, do solo, sonora,
visual, radioativa, dentre outras. 4
As consequências oriundas da poluição têm externado e influenciado, especialmente
na esfera econômica e política5, tornando-se relevante a discussão acerca deste fenômeno.
Ainda que a definição de poluição seja genérica - qual seja, a degradação do meio
ambiente tendo em vistas os agentes poluentes emitidos através de ação antrópica -, a
expressão adquire delimitação na sua definição6, em consonância com a área do conhecimento
abordada.
Dessa forma, no âmbito jurídico-penal, nem toda degradação do meio ambiente
deverá ser considerada poluição, apenas a que resulte em lesão ou ameaça expressiva ao meio
ambiente ou aos seres humanos7, em razão da conciliação entre conservação do meio
ambiente, desenvolvimento econômico e tecnológico e o caráter subsidiário da intervenção
penal.
No âmbito penal, causar poluição configura o tipo penal estabelecido pelo art. 54, da
Lei 9.605/1998. Infere-se que o caput do referido dispositivo dispõe: “Causar poluição de
qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana,
ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena:
reclusão, de um a quatro anos, e multa”.
Sob a perspectiva deste dispositivo, a conduta tipificada consiste em causar
poluição, que significa produzir, provocar, ocasionar, dar ensejo à alteração no meio ambiente

3
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado. Sobre a tipificação da poluição em face do princípio da
legalidade. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis (Orgs.).Direito Penal do ambiente, consumidor,
patrimônio genético e saúde pública. São Paulo: RT, 2011, p.35.
4
Cf. SANTOS, Antônio Silveira Ribeiros dos; MARTINS, Renata de Freitas. Poluição: considerações
ambientais e jurídicas. Disponível em: <www.seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article> Acesso em: 10
jan 2013, p.98.
5
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado. Sobre a tipificação da poluição em face do princípio da
legalidade. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis (Orgs.). Direito Penal do ambiente, consumidor,
patrimônio genético e saúde pública. São Paulo: RT, 2011, p.27.
6
Vide PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p. 44.
7
PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 4 ed. São Paulo, RT, 2012, p.269.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

em intensidade apta a causar grave desequilíbrio ambiental que comprometa seriamente a


fauna, a flora ou a saúde humana8.
Observam-se, no tipo penal descrito, vários elementos normativos: “qualquer
natureza”, “em níveis tais”, “mortandade” e “destruição significativa” que exigem uma
maior precisão na apreciação de seus contornos concretos. A princípio, essas expressões
normativas fomentam discussões doutrinárias acerca de possível conflito com o princípio da
legalidade, notadamente no aspecto da taxatividade (determinação).
Nesse sentido, Luiz Regis Prado assevera que essas cláusulas normativas estão
abaixo do exigido pelo princípio da legalidade na vertente taxatividade, uma vez que são
termos muito amplos, hábeis a configurar uma “autêntica cláusula geral, que, além de relegar
a conformação do tipo de injusto à indeterminação casuística, acaba por conceder também
excessiva discricionariedade ao julgador”9. Corroborando essa crítica, Miguel Reale Júnior
argumenta que “fica ao alvitre do intérprete, com efetiva lesão ao princípio da legalidade,
dizer o que vem a ser ‘níveis tais’, sem se ter qualquer parâmetro sequer na legislação
regulamentar, à qual não se remete o tipo penal”10.
Todavia, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado defende, com razão, que esses
elementos normativos contidos no tipo penal, ao contrário, concretizam os princípios penais
de garantia, inclusive no que diz respeito à exigência de segurança jurídica.11 Nesse sentido,
assegura que a expressão qualquer natureza significa que o tipo penal busca tutelar todo tipo
de poluição, inclusive a poluição hídrica e a atmosférica. Já o termo em níveis tais indica que
a poluição causada deve ser grave12, capaz de comprometer seriamente o meio ambiente, a
saúde humana ou a flora e a fauna. No que diz respeito ao termo mortandade, engloba o
sentido da ocorrência de uma grande quantidade de morte de animais. Por fim, o termo
destruição significativa aduz à expressividade do extermínio dos exemplares da flora. 13
Dessa maneira, referida autora qualifica tais expressões como cláusulas normativas
que asseguram o respeito ao princípio da lesividade, de modo que o tipo só deverá
compreender em seu arcabouço normativo aquelas condutas mais graves ao meio ambiente,

8
Cf. PRADO, Luiz Regis, op.cit., p.271.
9
PRADO, Luiz Regis, op.cit., p.273-274.
10
REALE JR., Miguel. Meio ambiente e Direito Penal brasileiro. Ciências Penais. Revista da Associação
Brasileira de Professores de Ciências penais. São Paulo: RT, 2005, v.2, p.75.
11
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do direito penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p. 64.
12
NETTO, Alamiro Velludo Salvador; SOUZA, Luciano Anderson de (Coord.). Comentários à Lei de Crimes
Ambientais – Lei n. 9.605/1998. São Paulo: Quartier Latin, 2009.p.252.
13
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do direito penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p. 64-66.

399
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

que configurem efetivo comprometimento ou perigo concreto de lesão a seus elementos


naturalísticos.14
Devido às características do bem jurídico, a intervenção penal nessa seara recorre a
elementos normativos ou à técnica do reenvio a normas extrapenais15 e, por consequência,
defende-se a razoabilidade do recurso aos termos indicados pelo legislador na elaboração do
tipo penal em apreço.
Em decorrência da relevância dos desdobramentos nocivos ocasionados pela
poluição, torna-se necessário evitar - ou, ao menos, controlar - a emissão de poluentes na
atmosfera ou a contaminação hídrica através de ações antrópicas, imputando tais
consequências àquele (s) que os tenha (m) causado, já que a poluição provoca impactos
negativos altamente prejudiciais ao meio ambiente.

2. Infrações por acumulação como crimes de perigo abstrato-concreto

A poluição pode derivar da dispersão ou da concentração de poluentes. 16 Em ambas


as hipóteses, cabem questionamentos acerca do nexo de causalidade existente ou não entre a
conduta do indivíduo poluidor e os impactos resultantes desta.
E isso porque os elementos ambientais interagem de forma muito complexa, e
percepção dos resultados das intervenções humanas pode demandar um longo lapso temporal.
Ainda assim, há danos ambientais que apenas são constatados após a cumulação de condutas
praticadas por inúmeros agentes, que agiram de maneira independente entre si.17
É nesse sentido que se contextualiza a intervenção penal nos denominados delitos de
acumulação. Esta ideia foi proposta por Lothar Kuhlen18 quando da análise do §324 do
Código Penal alemão (delito de contaminação de águas). Segundo Kuhlen, “se devem
subsumir no tipo determinados atos concretos, ainda que eles, contemplados em si mesmos,

14
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas, op.cit., p. 66.
15
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado. Sobre a tipificação da poluição em face do princípio da
legalidade. In: DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis (Orgs.). Direito Penal do ambiente, consumidor,
patrimônio genético e saúde pública. São Paulo: RT, 2011, p.26.
16
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do direito penal aos novos
riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p. 47.
17
NETTO, Alamiro Velludo Salvador; SOUZA, Luciano Anderson de (coord.). Comentários à Lei de Crimes
Ambientais – Lei n. 9.605/1998. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.255.
18
Esta visão é criticada por Silva Sánchez: “O Direito Penal, que reagia a posteriori contra um fato lesivo
individualmente delimitado (quanto ao sujeito ativo e ao passivo), se converte em um direito de gestão (punitiva)
de riscos gerais e, nessa medida, está ‘administrativizando’. Pois o somatório de resíduos teria – aliás – um
inadmissível efeito lesivo. Mas, novamente, não se mostra justificável a sanção penal da conduta isolada que, por
si só, não coloca realmente em perigo o bem jurídico que se afirma proteger”. (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-
María. A expansão do Direito Penal. Aspectos da política-criminal nas sociedades pós-industriais. 2 ed. Trad.
Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2011, p.148 e 155).

400
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

não ponham em perigo nem sequer abstrato o bem jurídico protegido”.19 No entanto, quando
ocorrer um número suficiente de condutas concretas aptas a causarem um resultado lesivo ao
meio ambiente, configura-se, simultaneamente, a tipicidade formal e a tipicidade material20.
Nessa perspectiva, a acumulação se apresenta como um componente real, isto é, nos delitos
de acumulação conta-se antecipadamente com a realização concreta ou iminente de condutas
similares por parte de diversos sujeitos ativos.
Dessa forma, nos denominados delitos cumulativos ou por acumulação fundamenta-
se a sanção penal à conduta individual ainda que esta, por si só, não gere perigo ao bem
jurídico, desde que represente um risco. E isso porque o legislador conta com a possibilidade
real de que essa ação será praticada também por outros indivíduos, de maneira que todas essas
condutas sincronizadas certamente resultarão em lesão ao bem jurídico21.
Em síntese, nos delitos de acumulação não se exige a constatação concreta da
acumulação de nexos causais como contribuições individuais para o mesmo resultado material
(causalidade cumulativa), mas sim que condutas isoladas de diversos agentes, examinadas sob
uma perspectiva geral, quando somadas, possam realmente acarretar consequências lesivas ao
ambiente22. Nos domínios dos tipos penais relacionados à poluição, a análise da matéria
adquire acentuada importância, pois indica a necessidade de cuidadoso exame na
comprovação da existência do nexo de causalidade e na verificação da possibilidade ou não
de imputação objetiva do resultado da ação poluidora ao indivíduo responsável, ainda que
este, isoladamente, não lese ou exponha a perigo o bem jurídico protegido pelo artigo 54, da
Lei n° 9.605/1998, qual seja, o meio ambiente. Revela-se, pois, imprescindível delinear o
modo pelo qual a conduta será avaliada, bem como questionar a legitimidade dos chamados
delitos de acumulação.
Cabe destacar que a preocupação com a poluição e a efetiva intervenção penal nesse
âmbito estão intrinsecamente ligadas à busca de uma melhor qualidade de vida das pessoas23,
direta – com a tutela da saúde como bem jurídico coletivo - ou indiretamente – com o
resguardo do meio ambiente como bem jurídico transindividual.
Para um estudo mais atento, propõe-se o seguinte exemplo: o sujeito X dono de uma
empresa, sabe que o rio está contaminado com uma substância Y que causa deterioração às
propriedades químicas e físicas da água. No entanto, sabe também que para concretizar estas

19
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op.cit., p.158.
20
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op.cit., p.158.
21
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María, op.cit., p.155-156.
22
COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade – efetividade – tutela por outros
ramos do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p.93.
23
VIEIRA, Neise Ribeiro. Poluição do ar: indicadores ambientais. Rio de Janeiro: E-papers, 2009, p.19.

401
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

alterações negativas das propriedades hídricas, o lançamento da substância Z, esta emitida


pela sua empresa, em uma quantidade W não ocasionaria essa deterioração se não houvesse
outros sujeitos da mesma região realizando emissão semelhante. Dessa forma, o sujeito X tem
consciência de que sua conduta, per si, não resulta nenhum perigo já que a quantidade de
substância Z emitida não seria suficiente para desequilibrar as propriedades naturais dos
recursos hídricos envolvidos. De outro lado, tem conhecimento que outros sujeitos também
realizam, cotidianamente, essa mesma conduta, o que resultaria certamente em uma lesão ou
colocação de perigo evidente do bem jurídico meio ambiente, no particular aspecto da
incolumidade dos recursos hídricos. Ademais, a concentração obtida da referida substância,
resultado da cumulação das contribuições efetuadas por outros indivíduos, comprometeria os
recursos bióticos presentes no rio, bem como poderia expor a perigo concreto a saúde dos
seres humanos que ingerissem a água contaminada.
Nesse exemplo, nota-se a dificuldade de configuração da responsabilidade penal do
sujeito, especialmente quando a imputação do resultado lesivo encontra-se subordinada à
constatação de um nexo causal nos termos da teoria da equivalência das condições, perfilhada
pelo Código Penal brasileiro, pela qual “considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o
resultado não teria ocorrido” (art.13, caput, do Código Penal). Suprimida mentalmente,
segundo um processo hipotético de eliminação24, a conduta de X não poderia ser considerada
causa de um eventual resultado de lesão ou de perigo concreto, já que este teria acontecido
igualmente, em função da cumulação das demais condutas realizadas por outros sujeitos. ou
seja, de constatar um nexo de causalidade que possibilite que o sujeito passe a ser responsável
ao resultado que, aparentemente, não possui relação direta com o resultado, mas que diante de
um conhecimento global de que certamente o evento ocorreria, ainda que a sua conduta
individualizada não fosse suficiente para o resultado e mesmo diante de ausência de liame
subjetivo entre todos os agentes que concorreram para o evento lesão ou perigo de lesão ao
bem jurídico.
De conseguinte, a solução dada pela teoria da equivalência das condições não se
mostra ajustada à complexidade do meio ambiente, exigindo que seja repensada em seus
fundamentos para efetivamente resguardar o bem jurídico tutelado.
Antes de analisar em detalhe esse questionamento acerca do nexo de causalidade,
deve-se primeiramente, estudar o tipo penal do artigo 54, da Lei nº 9.605/1998 e verificar

24
Sobre a questão, vide PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. V.I. 12 ed. São
Paulo: RT, 2013, p.346-347.

402
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

quanto à materialidade, se o tipo trata de lesão/dano25 ou perigo de lesão (abstrato26,


concreto27 ou abstrato-concreto).
A primeira parte do tipo penal em análise tipifica a conduta de “causar poluição de
qualquer natureza em níveis tais que resultem (...) em danos à saúde humana, ou que
provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”, o que permite
concluir que se trata de um tipo penal de lesão uma vez que o legislador claramente exige a
produção de um resultado lesivo à saúde humana, mortandade de animais ou destruição
significativa da flora. Nesse caso, não se poderia legitimar a possibilidade dos delitos
cumulativos, uma vez que a conduta per si do sujeito já produz um resultado de lesão ao bem
jurídico. De outro lado, a segunda parte do art. 54 - qual seja “causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais... que possam resultar em danos à saúde humana” – faria referência,
segundo importante setor da doutrina ambiental28, à exigência de conduta vinculada,
causalmente, a um resultado de perigo concreto. A produção de uma situação de perigo para o
bem jurídico protegido deveria, assim, ser constatada pelo juiz no caso concreto, já que o
perigo constituiria elemento objetivo do tipo penal.29
Observa-se que o conceito de perigo, do ponto de vista material, poderia ser
analisado em duas faces: inicialmente, como a possibilidade ou a probabilidade de um
resultado lesivo que supõe o perigo concreto e que implica, por consequência, em um estado
de tensão ou anormalidade para o bem jurídico.30 Nesse sentido, o primeiro requisito é
necessário para que se configure o perigo concreto no caso em análise e a segunda condição é
imprescindível para a consumação do referido tipo penal.

25
Renato de Mello Jorge Silveira expõe que os delitos de dano “correspondem à mais evidente reprovação a
uma eventual conduta humana em discordância aos ditames legais. O dano é entendido como a efetiva lesão ao
bem jurídico. A destruição de um bem evidencia-se como a mais séria intensidade danosa infligida a um dado
bem jurídico”. (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal de Perigo.
São Paulo: RT, 2006, p.106).
26
Pierpaolo Bottini define que o tipo de perigo abstrato como sendo “a técnica utilizada pelo legislador para
atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado
externo”. (BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. São Paulo: RT, 2010, p.113).
27
Renato de Mello Jorge Silveira define o delito de perigo concreto como tipo penal o perigo como elemento
integrante do tipo tendo o mesmo de ser avaliado a sua realização no caso concreto. (SILVEIRA, Renato de
Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal de Perigo. São Paulo: RT, 2006, p.115).
28
PRADO, Luiz Regis, Direito Penal do ambiente, p.275; COSTA JR., Paulo José da; COSTA, Fernando José
da. In: MILARÉ, Édis; COSTA JR., Paulo José da; COSTA, Fernando José da. Direito Penal Ambiental. 2 ed.
São Paulo: RT, 2013, p.134-135; GOMES, Luiz Flávio, MACIEL, Silvio. Crimes ambientais. São Paulo: RT,
2011, p.231.
29
DE LA CUESTA AGUADO, Paz M. Causalidad de los delitos contra el medio ambiente. Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999, p.120.
30
AGUADO, Paz M. de La Cuesta, op.cit., p.130.

403
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O delito de perigo concreto implica, portanto, na produção de um resultado (de


31
perigo), que condiciona sua consumação. Ressalva-se a dificuldade de comprovação da
existência de nexo de causalidade entre a ação poluidora e o prejuízo produzido.
No entanto, o contexto do crime de poluição por acumulação deve ser entendido no
âmbito dos delitos de perigo abstrato, in casu, abstrato-concreto, já que compreende hipóteses
nas quais a conduta individual, considerada isoladamente, sequer revela-se apta a colocar em
perigo o bem jurídico, criando apenas uma situação de risco (art.54, §3°, Lei 9.605/98).
De outra forma, esta colocação de perigo só é possível quando se está diante da
certeza de que outros indivíduos também praticam a mesma conduta e que o resultado dessa
cumulação será fortemente prejudicial ao ambiente, o que torna necessário tutelá-lo
previamente, ainda que a priori não houvesse a comprovação de nenhum perigo concreto.
No tipo de perigo abstrato em sentido amplo, o perigo não é um elemento objetivo
que integra o tipo, mas basta a realização da conduta prevista pelo legislador para que o delito
se configure consumado. Logo, é suficiente a comprovação da realização da ação para a
consumação do delito, não fazendo o tipo penal qualquer menção ao resultado externo (de
lesão ou de perigo)32.
Mais do que isso, para legitimar os delitos cumulativos, seria adequados a concebê-
los como crimes de perigo abstrato-concreto. Segundo Pierpaollo Cruz Bottini, tais delitos,
para subsumirem-se ao tipo penal, demandam uma situação de perigo ao bem jurídico em
abstrato (constatada com a mera verificação da conduta perigosa), ao passo que não exigem a
ameaça efetiva bem jurídico concreto33.
E é precisamente nesse panorama dos delitos de perigo abstrato-concreto que os
delitos de poluição por acumulação se ajustam com perfeição. Isto ocorre porque, embora não
se constate perigo de lesão ou lesão ao meio ambiente, em abstrato, considerando a conduta
do indivíduo per si, em consonância com o conjunto de informações sobre os cursos causais
conhecidas à época – a saber, o conhecimento da potencialidade lesiva da conduta e da
probabilidade de ocorrência de lesão ou perigo ao bem jurídico, avaliadas do ponto de vista ex
ante -, é que essa ação do sujeito encontra-se eivada de materialidade lesiva.
No entanto, é preciso cautela no que concerne à avaliação da aptidão da conduta
realizada pelo agente para causar perigo concreto ao bem jurídico, sob o risco de sério
comprometimento dos princípios penais de garantia e, consequentemente, de contribuição

31
AGUADO, Paz M. de La Cuesta, op.cit., p.136.
32
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. São Paulo: RT, 2010, p.113.
33
BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op.cit., p.117.

404
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

para o nefasto caráter exclusivamente simbólico que contamina a expansão do Direito Penal
do ambiente.
Dessa forma, torna-se ainda mais complexo buscar um mecanismo de delimitação do
conceito de idoneidade da conduta para produzir lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico
ambiente, hábil a legitimar a intervenção punitiva no âmbito de situações de risco.
Nesse sentido, cabe reconhecer que os atos compreendidos no âmbito de perigo
abstrato-concreto têm aptidão para, em um momento posterior, cooperar para a lesão de
interesses fundamentais.34
É nesse âmbito desafiador que o crime de poluição por acumulação também desperta
certa complexidade já que, inserido no contexto de uma “sociedade de risco”35, os poluentes
emitidos ou derramados, dentre outras formas de poluição, os elementos poluidores contém
alto potencial lesivo, o que gera a necessidade de uma intervenção preventiva do resultado.
Por isso, a “norma penal surge como elemento de antecipação de tutela”.36
Considerar os delitos por acumulação como delitos de perigo abstrato-concreto
também contribui para superar a dificuldade de verificação prática do nexo de causalidade,
exigido como elemento do tipo nos delitos materiais e nos delitos de perigo concreto, posto
que “a relação causa-efeito com frequência só se dá em virtude de relações acumulativas e
sinérgicas, de modo que a causalidade é substituída por estadísticas ou pela produção de um
dano por elevação do risco”37, o que facilita enormemente a imputação.
Diante das dificuldades expostas, para afirmar que uma conduta possui aptidão para
causar perigo no âmbito dos delitos de poluição por acumulação, é necessário analisar, do
ponto de vista ex ante, o caráter geral de idoneidade lesiva da própria substância emitida ou
despejada pelo agente, por exemplo, no ambiente hídrico ou atmosférico38.
De acordo com o exemplo acima apresentado, um dos enigmas serão os efeitos
acumulados de distintas ações que completam os requisitos típicos, isto é, das ações de
diferentes sujeitos que vertem no ambiente hídrico substâncias contaminantes em doses
pequenas, mas cuja atuação conjunta altera gravemente a composição das águas, por
exemplo39.

34
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. São Paulo: RT,2010, p.119.
35
Termo cunhado por BECK, Ulrich. Risk society. Towards a New Modernity. London: SAGE, 2008, p.19 e ss.
36
BOTTINI, Pierpaolo Cruz, op.cit., p.121.
37
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001, p.102.
38
AGUADO, Paz M. de La Cuesta. Causalidad de los delitos contra el medio ambiente. Valencia: Tirant lo
Blanch, 1999, p.169.
39
AGUADO, Paz M. de La Cuesta, op.cit., p.213.

405
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Nota-se que a conduta do agente não preenche por si mesma o conteúdo do tipo, mas
colabora na aferição do resultado posterior, de forma a que se configure um resultado típico
(nos tipos de lesão ou de perigo concreto). Assim, questiona-se se o adequado é imputa-se
parcialmente a cada autor, segundo sua ação, o resultado causado ou a totalidade deste. Nota-
se que uma escolha mais acertada seria a primeira, a fim de evitar a objeção de violação do
princípio de culpabilidade.
No entanto, o que é ressalvado é a consideração de que as condutas em si serão
típicas tendo em vista a provável situação global de perigo. Nesse sentido, a delimitação de
que as circunstâncias devem ser valoradas pelo juiz e quais não, há de ser obtida
teleologicamente, a partir do papel que estes delitos são chamados a desempenhar, a saber,
proibir ou reprimir ex ante condutas idôneas ou adequadas a lesar bens jurídicos (e, portanto,
perigosas).
Segundo KUHLEN, a importância da intervenção penal nesses complexos delitos de
poluição por acumulação se deve à magnitude do bem jurídico meio ambiente40, uma vez que
intervenções perigosas se mostram cada vez mais recorrentes em razão da intensa e crescente
industrialização41 e utilização de produtos que possivelmente acrescentarão quantidade
significativa de componentes poluidores e/ou emissões de substâncias que a priori não são
conhecidas, mas que futuramente podem se revelar altamente nocivas ao bem jurídico
ambiente42.

3. Mecanismos de limitação do juízo de idoneidade lesiva da conduta e


administrativização do Direito Penal do Ambiente

Tendo em vista a dificuldade de limitar o conteúdo do que se deve avaliar como


conduta portadora de lesividade material, hábil a comprometer o bem jurídico ambiente,
aponta-se uma remissão à acessoriedade administrativa do Direito Penal. Deve-se reconhecer,
nessa perspectiva, que a configuração da legislação penal ambiental passa obrigatoriamente

40
Renato de Mello Jorge Silveira ressalva a ideia do contexto em que se encontra o meio ambiente nesse
aspecto: “a ideia aqui vertida diz respeito a microlesões de uma massa, que, eventualmente, podem vir a se
mostrar lesivas em seu conjunto. Assim, não é de e falar que uma única conduta seja perigosa, nem mesmo em
termos remotos, senão que a soma de muitos fatos individuais, unitariamente irrelevantes em consideração penal,
deve ser tida em conta” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal de
Perigo. São Paulo: RT, 2006, p.149).
41
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal. Aspectos da política-criminal nas sociedades
pós-industriais. 2 ed. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2011, p.159.
42
Sobre a matéria, vide COSTA, Lauren Loranda Silva. Os crimes de acumulação no Direito Penal Ambiental.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011, especialmente p.15 e ss.

406
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

por assumir um papel de reforço da normativa administrativa. Mas não só. Os tipos de injusto
em matéria ambiental apresentam um plus de desvalor da ação ou de desvalor do resultado
que complementam e qualificam o ilícito administrativo43.
A relação entre esses dois ramos do Direito é estreita, ainda que tenham esferas de
incidência devidamente determinadas e distintas.44 Assim, a adoção dos modelos de
acessoriedade administrativa está constantemente presente nos tipos penais orientados à tutela
ambiental, em razão da peculiaridade do bem jurídico. A técnica legislativa de reenvio às
disposições normativas exaradas da Administração Ambiental pode ser definida como o
“preenchimento de elementos do tipo penal por meio de conceitos, normas ou atos oriundos
do direito administrativo”45.
A doutrina confere destaque a dois modelos de acessoriedade administrativa. Há
casos de acessoriedade ao ato administrativo - que se caracteriza “quando a norma penal faz
remissão a um ato administrativo concreto (como licença, permissão, autorização)” – e, de
outro lado, tem-se a acessoriedade ao Direito Administrativo - “que se caracterizam pelo fato
de que a remissão é feita a uma norma administrativa, isto é, a uma lei ou ato normativo
(decreto, resolução portaria) dotado de alcance geral, cuja violação é pressuposto do ilícito
penal”46.
Observa-se que o arquétipo de relativa dependência do Direito Penal ao Direito
Administrativo consiste em determinar alguns requisitos do tipo penal, mas estes não são
suficientes, separadamente, para subsumir-se à tipicidade objetiva47. Além da observância de
normas administrativas, a conduta deve ser idônea a colocar em perigo ou a lesar o meio
ambiente. Ainda assim, do ponto de vista subjetivo, os elementos administrativos inseridos no
tipo penal são elementos típicos essenciais e que necessariamente devem estar abarcados pelo
dolo do agente48.
De outro lado, a acessoriedade ao ato administrativo configura-se quando o tipo
penal refere-se a um ato administrativo individual (v.g. licenças, autorizações, permissões) ou
a uma vedação ou interdição devidamente delineados na normativa administrativa. Nesse

43
Como reconhece grande parte da doutrina – assim, por exemplo, DE LA MATA BARRANCO, Norberto J.
Protección penal del ambiente y accesoriedad administrativa. Tratamiento penal de comportamientos
perjudiciales para el ambiente amparados en una autorización administrativa ilícita. Barcelona: Cedecs, 1996,
p.74.
44
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. São Paulo: RT, 2009, p.86.
45
COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade – efetividade - tutela por outros
ramos do direito. São Paulo: Saraiva, 2010, p.65.
46
GRECO, Luís. A relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo no Direito Penal Ambiental. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, 2006, v. 58, p.160.
47
Nesse sentido, PRADO, Luiz Regis, op.cit., p.92 e ss.
48
COSTA, Helena Regina Lobo da, op.cit., p.70-71.

407
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

aspecto, é necessário cautela para que o Direito Penal intervenha quando bem jurídico seja
direta ou indiretamente atingindo, afastando a sanção penal à mera desobediência
administrativa.49
Para assegurar a legalidade das remissões extrapenais, é indispensável que seja
observada a denominada teoria do complemento indispensável, “que do ponto de vista
técnico-legislativo a subordina a três requisitos essenciais: o caráter expresso da remissão
normativa, a necessidade de seu uso em função das características do bem jurídico protegido e
a descrição do núcleo essencial da proibição pela lei penal”50.
Nesse sentido, exige-se um cuidado técnico quanto à remissão de normas
administrativas, para que esta seja feita de modo claro, objetivo e determinado, com o intuito
de evitar que o sujeito incorra em erro de tipo, por insuficiência de visibilidade e percepção da
conduta típica, que carece de precisão.51
A legitimidade da acessoriedade administrativa no Direito Penal depende de sua
exteriorização nos limites do estritamente necessário para a circunscrição do âmbito do risco
permitido52. Ainda que no toca à legitimidade da técnica do reenvio administrativo, é
necessário que sejam rigorosamente observados os princípios penais que devem orientar a
intervenção penal e que o dispositivo extrapenal que complementa a descrição típica não
contenha o núcleo essencial da conduta incriminada. No processo de valoração das condutas
passíveis de tipificação penal, é de todo conveniente que o legislador penal determine com
precisão o núcleo da proibição e, na configuração do tipo penal, introduza elementos que
indiquem a maior gravidade do ilícito penal, a fim de fundamentar a maior gravidade da
consequência jurídica (de natureza penal) abstratamente prevista.
No que diz respeito ao art.54, da Lei 9.605/98, a expressão “em níveis tais” poderia
ser considerado como um elemento adicional que confere ao tipo penal uma maior desvalor
da ação, que, por si só, ao atingir níveis estipulados como inaceitáveis pela normativa
administrativa e preenchido os demais requisitos do tipo, será considerada perigosa, ainda que
não se tenha um resultado no caso concreto, já que representaria um risco à integridade do
bem jurídico.

49
COSTA, Helena Regina Lobo da, op.cit., p.74 e 79.
50
CARVALHO, Érika Mendes de. Limites e alternativas à administrativização do Direito Penal Ambiente.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, 2011, v. 92, p.314.
51
COSTA, Helena Regina Lobo da, op.cit., p.80 e 83.
52
GRECO, Luís. A relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo no Direito Penal Ambiental. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, 2006, v. 58, p.160.

408
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A inserção de elementos adicionais ou qualificadores – como o reenvio à normativa


administrativa - realça o desvalor da ação, demonstrado através do modo de realização da
conduta e/ou pelo descumprimento de deveres jurídicos específicos53.
Diante o exposto, é importante sublinhar que o incremento do desvalor da ação dos
crimes ambientais geralmente está relacionado à infração da normativa administrativa. Pois
bem, esta última constitui um elemento normativo que auxilia a delinear a conduta perigosa
em si e para “traçar com maior precisão e atualidade o conteúdo do injusto penal” 54. Assim, o
reenvio típico ao ato administrativo ou à normativa administrativa expressa apenas um
elemento normativo do tipo objetivo que participa como alicerce ao injusto específico.
Nesse sentido, assegura Luiz Regis Prado a importância do princípio da coordenação,
uma vez que a atuação do Direito Penal e do Direito Administrativo sancionador deve ser
efetuada de forma coordenada, a fim de evitar o conflito de competências entre os seus órgãos
de atuação.55

4. Conclusões

Quando um determinado tipo penal ambiental faz referência, em sua construção, a


bens individuais ou coletivos, há uma acentuada dificuldade em situá-lo como um delito de
lesão ou de perigo. É precisamente o caso do artigo 54, caput, da Lei 9.605/98. O núcleo
“causar” poluição de qualquer natureza em níveis tais parece indicar um delito de lesão ao
ambiente, já que a poluição altera as propriedades de distintos elementos naturalísticos (v.g.
ar, água) integrantes daquele bem jurídico. Tal alteração pode repercutir no funcionamento de
distintos ecossistemas, sem que isso venha necessariamente a produzir qualquer lesão à saúde
humana, por exemplo. Porém, quando esse último resultado material efetivamente ocorrer,
não há dúvida de que a conduta pode perfazer o tipo objetivo em apreço (causar polução de
qualquer natureza em níveis tais que resultem...em danos à saúde humana). Teríamos um
delito de lesão ao bem supraindividual ambiente e de lesão ao bem coletivo saúde humana56.

53
CARVALHO, Érika Mendes de, op.cit., p.312.
54
CARVALHO, Érika Mendes de, op.cit., p.316.
55
PRADO, Luiz Regis, op.cit., p.97-98.
56
Nessa perspectiva, assevera Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado que “considerando que o bem jurídico
imediatamente tutelado é o meio ambiente, e que a ação principal que compõe o tipo penal contém um resultado
danoso, qual seja: 'poluição', não há que se falar em crime de perigo, anda que a descrição do tipo faça referência
a situações de perigo - '[...] que possam resultar em danos à saúde humana', mas em crime de dano, ou, no
máximo, em um tipo híbrido em sua primeira parte (de dano e perigo ao mesmo tempo - poluição e risco para a
saúde), e um dano grave, na segunda parte (dano e dano - poluição e dano à saúde; mortandade de animais; ou
destruição da flora)”. Assim, conclui, “o resultado principal é a contaminação do ambiente. As expressões
utilizadas no tipo penal que acrescentam à conduta de poluir a exigência de um perigo ou dano maior a

409
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Entretanto, quando o tipo acrescenta a expressão “possam resultar em danos a saúde


humana” opta pela técnica do delito de perigo. Os delitos de perigo se consumam com
independência da produção de um dano concreto ou material ao bem jurídico e, por essa
razão, recebem severas críticas por parte da doutrina contrária à tutela de bens
transindividuais.
O discurso que rechaça essa proteção argumenta que haveria uma antecipação
exagerada da intervenção penal, oposta aos ditames da intervenção mínima e da
fragmentariedade, bem como dificilmente conciliável com o princípio da lesividade57. Nessa
perspectiva, a ausência de uma lesão concreta ao ambiente seria um claro indicativo da
desnecessidade da tipificação penal, que poderia ser substituída pelo recurso à tutela
extrapenal. De fato, a Lei 9.605/98 adianta de modo exagerado os limites da intervenção
punitiva em diversas hipóteses. Essa inflação legislativa penal em matéria ambiental é um
exemplo do “avassalador processo de criminalização”58, denunciado pela doutrina59, que
deságua na criticada administrativização do Direito Penal do Ambiente e que também pode
contribuir para a proteção exclusiva de funções (v.g. função de controle ou de gestão
ambiental), o que conduziria ao esvaziamento do sentido real da proteção jurídico-penal.
Alguns tipos penais da Lei 9.605/98 efetivamente apresentam traços característicos de um
processo de administrativização exacerbado e de uma proteção exclusiva das funções da
Administração Ambiental, e não do bem jurídico ambiente. Tudo isso contribuiu para
corroborar os argumentos expendidos pelo discurso de resistência à expansão do Direito
Penal.
É evidente que a disciplina jurídico-penal do ambiente impõe um grande desafio ao
legislador, qual seja, construir tipos penais que expressem uma autonomia da intervenção
penal frente à administrativa, sem que isso implique em ignorar, por exemplo, o conteúdo da
normativa extrapenal.
O tipo penal constante do artigo 54, caput, da Lei n° 9.605/98 adota, em sua segunda
parte – “ou possam resultar em danos à saúde humana” – e no §3° -“deixar de adotar quando

determinados objetos (saúde, fauna e flora) são cláusulas de exclusão de lesões insignificantes, que afastam a
tipicidade do fato. Por isso, defende-se a ideia de que o delito descrito no caput do art. 54 da Lei de Crimes
Ambientais é um crime de dano sui generis" (PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crimes de poluição:
uma resposta do Direito Penal aos novos riscos. Curitiba: Juruá, 2010, p.158).
57
Notadamente na sua vertente quantitativa, relacionada à extensão da lesão ao bem jurídico, que afasta “a
criminalização primária ou secundária de lesões irrelevantes de bens jurídicos” como “expressão positiva do
princípio da insignificância em Direito Penal” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 5 ed.
Florianópolis: Conceito, 2012, p.26).
58
REALE JR., Miguel. Instituições de Direito Penal. Parte Geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p.21.
59
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2003, p.96-100.

410
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano


ambiental grave ou irreversível” – a técnica dos delitos de perigo abstrato-concreto (ou
delitos de aptidão para a produção de um dano). As condutas típicas, isoladamente
examinadas, não produzem um resultado material de lesão ou de perigo concreto ao bem
jurídico, mas representam uma situação de risco à incolumidade do ambiente e/ou da saúde,
sendo necessária a intervenção penal ainda que não haja resultado. Tais condutas, examinadas
em um contexto global, quando praticadas por diversas pessoas, incrementariam uma situação
de intolerável perigo aos bens coletivos.
Diversamente dos delitos de perigo concreto - onde a exposição a perigo do bem
jurídico deve ser comprovada pelo julgador, já que figura como elemento normativo do tipo -,
os delitos de perigo abstrato e os delitos de perigo abstrato-concreto desobrigam o juiz de
avaliar a superveniência do perigo. Basta constatar que a conduta supera, por exemplo, os
níveis estipulados para a emissão de poluentes para que seja caracterizada como portadora de
uma potencialidade lesiva à saúde humana (art.54, caput, Lei n° 9.605/98); basta constatar
que o sujeito deixou de adotar as medidas de precaução exigidas pela autoridade competente
em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível para que a omissão se revele
merecedora de um especial juízo de desvalor. Nos denominados delitos de perigo abstrato-
concreto ou de aptidão para a produção de um dano, a conduta realizada (ação ou omissão)
deve ser perigosa, de acordo com um juízo de valor ex ante feito pelo juiz.
Ante a magnitude dos efeitos possíveis, o legislador penal adianta sua intervenção,
antecipando-se à produção de danos graves e irreversíveis ao patrimônio ambiental. É
fundamental, portanto, fixar com precisão o alcance da periculosidade da conduta, já que nos
delitos de perigo abstrato-concreto o juiz não precisará comprovar a presença de um nexo
causal e tampouco demonstrar a criação de uma situação real de perigo (concreto) ao bem
jurídico tutelado.
Nesse sentido, defende-se que o reenvio à normativa de caráter administrativo (v.g.
expresso com os termos “em níveis tais” – art.54, caput, Lei 9.605/98; “quando assim o exigir
a autoridade competente” – art.54, §3°, Lei 9.605/98) poderia funcionar como um importante
instrumento de auxílio para o magistrado na captação da periculosidade da conduta,
representando um desvalor (objetivo) adicional.
O fundamental, em todo caso, é que a tutela ambiental, notadamente em seara
jurídico-penal, observe escrupulosamente os princípios de garantia constantes da Constituição
Federal e, assim, atenda à exigência constitucional de tutela efetiva do bem ambiente.

411
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

5.Referências

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COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental: viabilidade – efetividade –
tutela por outros ramos do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010.
COSTA, Lauren Loranda Silva. Os crimes de acumulação no Direito Penal Ambiental. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2011.
DE LA CUESTA AGUADO, Paz M. Causalidad de los delitos contra el medio ambiente.
Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.
DE LA MATA BARRANCO, Norberto J. Protección penal del ambiente y accesoriedad
administrativa. Tratamiento penal de comportamientos perjudiciales para el ambiente
amparados en una autorización administrativa ilícita. Barcelona: Cedecs, 1996.
DOTTI, René Ariel; PRADO, Luiz Regis (Orgs.). Direito Penal do ambiente, consumidor,
patrimônio genético e saúde pública. São Paulo: RT, 2011.
GOMES, Luiz Flávio; MACIEL, Silvio (Orgs.). Crimes ambientais: comentários à Lei
9.605/98. São Paulo: RT, 2011.
GRECO, Luís. A relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo no Direito Penal
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LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. 2 ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris,
2003.
MENDOZA BUERGO, Blanca. El Derecho Penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas,
2001.
MILARÉ, Édis; COSTA JR., Paulo José da; COSTA, Fernando José da. Direito Penal
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NETTO, Alamiro Velludo Salvador; SOUZA, Luciano Anderson de (coord.). Comentários à
Lei de Crimes Ambientais – Lei n. 9.605/1998. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Crime de poluição: uma resposta do Direito Penal
aos novos riscos. Curitiba: Juruá, 2010.
_____ Sobre a tipificação da poluição em face do princípio da legalidade. In: DOTTI, René
Ariel; PRADO, Luiz Regis (Orgs.). Direito Penal do ambiente, consumidor, patrimônio
genético e saúde pública. São Paulo: RT, 2011.

412
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente. 4 ed. São Paulo, RT, 2012.
_____ Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. V.I. 12 ed. São Paulo: RT, 2013.
REALE JR., Miguel. Meio ambiente e Direito Penal brasileiro. Ciências Penais. Revista da
Associação Brasileira de Professores de Ciências penais. São Paulo: RT, v.2, p.67-83,
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SANTOS, Antônio Silveira Ribeiros dos; MARTINS, Renata de Freitas. Poluição:
considerações ambientais e jurídicas. Disponível em:
<www.seer.uscs.edu.br/index.php/revista_direito/article> Acesso em: 10 jan 2013.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito, 2012.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do Direito Penal. Aspectos da política-criminal
nas sociedades pós-industriais. 2 ed. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT,
2011.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Econômico como Direito Penal de Perigo.
São Paulo: RT, 2006.
VIEIRA, Neise Ribeiro. Poluição do ar: indicadores ambientais. Rio de Janeiro: E-papers,
2009.

413
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

PROCESSO ADMINISTRATIVO E CONSTITUIÇÃO DE MULTAS


AMBIENTAIS

PROCEDIMENTO AMMINISTRATIVO E COSTITUZIONE DELLE MULTE


AMBIENTALI

Luiz Gustavo Levate1

RESUMO

O meio ambiente enquanto patrimônio coletivo exige sua proteção tanto pelo Estado quanto
pela Sociedade. A proteção estatal deve se dar em todas as funções estatais. A função
executiva é aquela que proporciona a defesa mais rápida e imediata do meio ambiente, porque
a Administração Pública pode atuar de ofício aplicando multas aos infratores. No entanto, a
aplicação das multas ambientais não prescinde de um processo administrativo dentro do
paradigma do Estado Democrático de Direito. A processualização da atividade executiva foi
proporcionada pela autonomia do processo administrativo, bem como pela relação existente
entre processo, Constituição e direitos fundamentais. Entretanto, a previsão de processo
administrativo ambiental deve ser feita por meio de lei e não por decreto, pois este no
ordenamento jurídico brasileiro só pode complementar a lei, permitindo sua aplicação e fiel
execução. A previsão normativa sobre a propriedade e liberdade das pessoas, não pode se dar
senão por meio de lei. Ademais, dispor sobre processo administrativo para a constituição de
multas ambientais é algo diferente de organizar o funcionamento da administração Pública.
Assim, somente por meio de um processo administrativo que assegure direitos e garantias
fundamentais poderá haver uma constituição e cobrança de multas administrativas, que sejam
ao mesmo tempo válidas e legítimas.
Palavras chave. Multas ambientais – processo – previsão legal

RIASSUNTO
L’ambiente in quanto patrimoni di tutti esige che sai protetto tanto dallo stato quanto dalla
Societá. La protezione statale deve comprenderne tutte Le funzioni. Le funzioni esecutiva é
quella che proporzione La difesa piu rápida id immediata dell’ambiente, poiché La pubblica
Amministrazione puó attuare in ufficio, applicanto multe agli infrattori. In ogni caso,
l’applicazione delle multe ambientale non prescinde da um processo amministrativo dentro Il
paradigma dello Stato Democratico di Direitto.La processualizazzione dell’ attivitá esecutiva
é stata afferto dall’autonomia Del processo amministrativo, cosi come dalla relazione
esistente tra processo, Costittuzione e diritti fondamentali. Peró, la previsione Del processo

1
Doutorando em Direito Constitucional pela PUC-RIO. Mestre em Direito Ambiental pela Escola Superior
Dom Helder Câmara. Professor de Processo Civil da ESDHC. Procurador do Município de Belo Horizonte.

414
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

amministrativo ambientale deve essere realizzata attraverso La legge e non per decreto, in
quanto questi nell’ordinamento giuridico brasiliano puó, soltanto, complementare La legge,
permettendo la sua aplpicazzione e la fidele esecuzione. La previsione normativa sulla
proprietá e la libertá delle persone, non puóavvenire se non attraverso la legge. Oltre a cio,
disporre sul processo amministrativo per la costituzione di multe ambientale e uma cosa
diversa dall’organizzare il funzionamento della Pública Amministrazione. Cosi, soltanto
attraverso um processo amministrativo che assicuri diritti e garanzie fondamentale potré
esistere la costituzione e la riscossione delle multe amministrative che siano allo stesso tempo,
valida e legittime.
Key words: Multe ambientali - di processo - disposizione di legge

SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO. 2. A COBRANÇA DE MULTAS AMBIENTAIS PELO IBAMA NO


TRIÊNIO DE 2008 A 2010. ANÁLISE E SUGESTÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA
UNIÃO. 3. A PROCESSUALIZAÇÃO DA FUNÇÃO EXECUTIVA E O DIREITO
FUNDAMENTAL À PROCESSUALIZAÇÃO. 3.1 Autonomia científica do Processo
Administrativo. 3.2 A face procedimental dos direitos fundamentais: uma breve visita à
Gelinek, Häberle, Goerlich e Alexy. 3.2.1 A fundamentação constitucional do processo
administrativo na Constituição da República de 1988. 4. A PREVISÃO DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO. 4.1 A Deslegalização e Administração Pública. 4.1.1 Previsão
da Deslegalização nas Leis sobre Processo Administrativo Ambiental. 4.2 O Decreto no
ordenamento jurídico brasileiro. 4.2.1. O Decreto regulamentar ou de execução. 5.
CONCLUSÃO

1.INTRODUÇÃO

O grau de proteção que determinado ordenamento jurídico confere ao meio ambiente


vai ser tanto mais eficaz quanto maior for a proteção proporcionada pelas três funções
estatais.
Assim, é necessário haver leis que criem um sistema de proteção adequada ao meio
ambiente. Enquanto a função legislativa atua no plano abstrato, é indispensável também haver
um aparato judicial efetivo para assegurar a implementação dos direitos e deveres
relacionados ao meio ambiente. Entretanto, tão importante quanto é a função executiva que,
por ter o dever de aplicar a lei de ofício, representa o primeiro momento ou a medida
vestibular que tem aptidão a oferecer uma resposta rápida e imediata a qualquer agressão ou
ameaça de agressão ao meio ambiente.

415
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A Constituição Republicana de 1988 (BRASIL, 1988), ao tratar do meio ambiente


como direito fundamental adota uma concepção antropocentrista moderada ao consagrar a
teoria do desenvolvimento sustentável (o qual exige preocupações sociais, econômicas e
ambientais) como aquela que deve orientar a proteção ambiental.
O problema do presente artigo focaliza a proteção propiciada pela Administração
Pública ao discutir a necessidade de haver um processo administrativo, previsto em lei formal,
e que assegure os direitos e garantias processuais fundamentais do cidadão na constituição de
multas ambientais como medida concretizadora do Estado Democrático de Direito no âmbito
da função executiva, bem como para que seja possível a concretização sustentável dos
objetivos da República estampados no artigo 3º da Constituição Cidadã, que atinge, neste ano,
um quarto de século.

Metodologicamente, é indispensável apontar a notória relação entre Constituição,


Processo e Direitos Fundamentais, mormente em razão do atual estágio do Direito
Constitucional Contemporâneo, para a exata compreensão e inteligência do presente artigo.

O neoconstitucionalismo fez irromper um movimento de constitucionalização em


todos os ramos do Direito, não só com a previsão de institutos de cada um desses ramos na
Constituição (constitucionalização-elevação), mas, principalmente, porque a Constituição vai
orientar e condicionar toda a hermenêutica jurídica (constitucionalização-transformação),
devendo as leis infraconstitucionais ser interpretadas tendo como parâmetro a Constituição,
consoante os ensinamentos de Louis Favoreu (SILVA 2005).

Para se atingir os objetivos pretendidos no presente trabalho se faz necessário


analisar: (i) o fenômeno da processualização da atividade administrativa, que vai exigir a
existência de um processo e não um mero procedimento na constituição de multas ambientais
e (ii) a necessidade de que este processo tenha previsão em lei (em sentido formal). Esse
percurso é necessário, pois a processualização da atividade administrativa é um imperativo do
Estado Democrático de Direito.
É, ainda, de suma importância analisar a legislação administrativa ambiental sobre
processo e procedimento, o fenômeno da deslegalização do Direito, e estudar a função do
Decreto no ordenamento brasileiro, a fim de se demonstrar a roupagem constitucional deste
modelo de processo (se lei ou decreto).
Justifica-se a presente pesquisa, porque é possível perceber que muitas entidades
federativas e suas respectivas administrações indiretas ou não possuem nenhuma previsão de

416
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

processo administrativo para a constituição de multas ambientais ou essa previsão é feita por
instrumentos normativos infra-legais ou secundários (Decretos e Regulamentos).
O maior exemplo deste quadro está no Decreto Federal nº 6514/2008, que dispõe
sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo
administrativo federal para apuração destas infrações, regulamentando a lei 9605/1998. Vale
dizer, a União possui a regulamentação para a constituição de multas ambientais por meio de
processo administrativo, cuja regulação se dá, no entanto, por meio de uma norma infra-legal.
Importante ressaltar que a recente Lei Complementar nº 140/2011 (BRASIL, 2011)
em seu artigo 17 vem reafirmar a necessidade de existência de processo administrativo para a
constituição de multas ambientais ao obrigar o órgão administrativo competente para autorizar
ou licenciar um empreendimento ou atividade que cause impacto ambiental a “lavrar auto de
infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à
legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada”
Portanto, mais do que a determinação legal é necessário justificar juridicamente a
necessidade do processo administrativo na constituição de multas ambientais, não sem antes
ser demonstrada a atual situação da cobrança de multas ambientais por parte da União, por
meio do IBAMA, como forma de ilustrar esta cena.

2 A COBRANÇA DE MULTAS AMBIENTAIS PELO IBAMA NO TRIÊNIO DE 2008


A 2010. ANÁLISE E SUGESTÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO

No relatório e parecer prévio sobre as contas do governo da República do exercício de


2010, o Tribunal de Contas da União -TCU- (BRASIL, 2010) deu especial importância à arrecadação
de multas administrativas. No tópico referente às multas arrecadadas, foram colhidos dados estatísticos
do triênio de 2008 a 2010, analisando o comportamento da Administração Indireta na arrecadação de
multas aplicadas por Agências Reguladoras e outras entidades da administração descentralizada.

Ao analisar o relatório, constata-se que o pior desempenho é do IBAMA. Na série histórica


de multas aplicadas, a autarquia ambiental foi a quarta entidade em quantidade de multas aplicadas,
totalizando 71.303 autos de infração no referido período. Entretanto, em termos de valores, no mesmo
triênio, o IBAMA foi o campeão, aplicando multas em um total aproximado de 10,5 bilhões de reais,
ou 43,7% do valor total de multas geradas. Apesar disso, a autarquia ambiental só arrecadou cerca de
36 milhões de reais no período.

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No quadro 1, demonstra-se a comparação entre o montante dos valores aplicados e o


montante de multas arrecadadas, sendo que o pior desempenho é do IBAMA, arrecadando apenas
0,3% do total de multas por ele aplicadas.

Importante notar que, segundo o relatório, se somados os valores não arrecadados pelas 17
entidades analisadas no período, chegar-se-á a um total que supera as despesas liquidadas pela União
em funções orçamentárias como Organização Agrária, Ciência e Tecnologia e Cultura (BRASIL,
2010).
Uma vez detectado este cenário, o TCU apresenta três causas para a ineficácia da
arrecadação das multas administrativas. A primeira delas é a omissão na inclusão dos autuados no
Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), em desobediência
ao disposto no §1º do artigo 2º da lei 10.522/2002 (BRASIL, 2002). Segundo o relatório, neste
período, o IBAMA só inscreveu 2540 multas das 71.303 lavradas, o que representa um percentual
abaixo de 5% do total. O relatório destaca que o CADIN é um dos poucos mecanismos administrativos
capazes de, coercitivamente, estimular o pagamento dos débitos fiscais, e sua não utilização pode
implicar a redução do “quantum” a ser arrecadado.
A segunda causa apontada pelo TCU é o pequeno número de execuções fiscais ajuizadas
pelo IBAMA no período, representando a cobrança judicial (cerca de 31 milhões de reais) apenas
0,3% do valor das multas aplicadas. Vale dizer, do total de multas aplicadas (10,5 bilhões de reais), o
IBAMA só ajuizou 0,3% deste valor, o que, segundo o relatório, é uma das causas responsáveis pela
baixa eficácia na arrecadação.

418
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A terceira causa apontada pelo relatório é o fato de os créditos fiscais estarem sujeitos a um
prazo de prescrição de cinco anos para a promoção de sua cobrança, nos termos da lei 9873/91. Assim,
a demora no ajuizamento das execuções fiscais tem levado à prescrição da pretensão de cobrança de
grande número de multas administrativas, o que reduz a eficácia da cobrança realizada pelo governo
federal.
Entretanto, o TCU (2010, p.110), no mesmo relatório, mostra que um elevadíssimo
percentual das multas aplicadas (75%) é discutido administrativamente, e que tal fato impede a efetiva
arrecadação. Segundo o relatório, “como mencionado, a elevada quantidade de multas pendentes de
decisões definitivas no âmbito dos órgãos e entidades atua contra a efetivação da arrecadação, com
seus consequentes reflexos sobre os resultados da atuação dos entes de fiscalização”.
Diante deste quadro, o TCU (2010, p.110) sugere que sejam corrigidos os erros apontados,
requerendo “especial atenção” ao contencioso administrativo “cujos procedimentos devem ser
suficientemente ágeis para produzir decisões tempestivas, sem atentar contra o pleno exercício do
direito de defesa por parte das pessoas físicas e jurídicas sancionadas com multas”.
Assim, é possível perceber de forma sumária que a preocupação maior da União está
centrada na arrecadação de seus créditos, ou seja, na forma como é realizada “coercitivamente” a
cobrança da dívida (inscrição no CADIN e execução forçada), na identificação de seus empecilhos e
na sua eficácia, e não no momento mais importante, que é a formação destas multas, cuja constituição
deveria se dar por meio de um processo administrativo, que assegurasse o contraditório e a ampla
defesa.
Acreditamos que o TCU quer, na verdade, uma celeridade processual que propicie uma
cobrança mais ágil da dívida pública, e não uma celeridade que atenda uma garantia fundamental do
cidadão de razoável duração do processo. Paulo Coimbra Silva (no Prefácio de LEVATE e CAIXETA
CARVALHO, 2010, p.18), ao discorrer sobre a cobrança administrativa da dívida pública, ensina que
a não observância do direito ao processo administrativo com todas as garantias processuais
fundamentais “não contribui para uma maior eficácia na atividade arrecadatória, mas, ao contrário,
conduz à indesejável beligerância entre fisco e contribuintes, e ipso, facto, ao congestionamento do
abarbado Poder Judiciário”. Tal apontamento é de salutar observância para a constituição de qualquer
crédito público.
Destarte, ilustrada a questão, chega-se ao momento de estudar a importância do processo
administrativo na constituição de multas ambientais.

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3. A PROCESSUALIZAÇÃO DA FUNÇÃO EXECUTIVA E O DIREITO


FUNDAMENTAL À PROCESSUALIZAÇÃO

Ilustrada a situação da cobrança das multas administrativas pelas pessoas da


administração indireta federal, para cumprir os objetivos do presente estudo, é necessário
verificar se é possível aplicar no processo administrativo ambiental as conquistas
constitucionais e democráticas alcançadas pelo processo civil. Para tanto, será analisado o
fenômeno conhecido como processualização da atividade administrativa.
O processo traz uma garantia quádrupla: ao cidadão são asseguradas tanto a
participação na formação da vontade estatal quanto a fiscalização das atividades do Estado,
atendendo, assim, os anseios do Estado Democrático de Direito. E, ao Estado, permite-se,
além de legitimar sua atuação, atingir o interesse público da melhor maneira possível, para
que ele cumpra de forma eficiente suas funções constitucionais. Portanto, a participação, a
fiscalização, a legitimação e a eficiência administrativa são as quatro garantias propiciadas
pelo processo.
Entretanto, o processo tem aptidão de oferecer outras vantagens, pois: (i) permite um
melhor controle dos atos administrativos e da formação das relações jurídicas administrativas
(vg. contratos, convênios e etc), seja pelo Judiciário, pelos Tribunais de Contas, ou pela
autotutela e (ii) permite a observância dos direitos subjetivos do particular, sejam eles
fundamentais ou não. Em razão disso, a doutrina consagra uma processualização da atividade
administrativa.
Destarte, essa nova característica da atividade administrativa é um imperativo do
Estado Democrático de Direito. Tal fato autoriza consagrar um direito fundamental à
processualização, porque o processo é capaz (ou pelo menos deve ser) de se abrir ao
pluralismo de valores tão caros à Democracia. Deve também ser idôneo a realizar direitos
fundamentais, principalmente em um ordenamento jurídico brasileiro, que possui uma
Constituição suprema elevada à condição de ordem objetiva de valores, cujo epicentro é a
dignidade da pessoa humana.
Feitas essas considerações é possível estudar os fatos geradores desse fenômeno: a)
autonomia científica conquistada pelo processo administrativo, o que revela sua
independência seja em relação ao direito administrativo material, seja em relação ao processo
civil, e b) relação que deve ser estabelecida entre Constituição, Direitos Fundamentais e
Processo.

420
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3.1 Autonomia científica do processo administrativo

Não obstante a maior longevidade e evolução do processo civil, cujo surgimento em


Roma é apontado por Amaral Santos (2008), vários fatores contribuíram para que o processo
administrativo alcançasse sua autonomia tardiamente. Os processualistas sempre quiseram
reservar o vocábulo processo para o âmbito jurisdicional, uma vez que toda a evolução
histórica do processo começou no âmbito civil e as leis regulavam em sua maior monta, desde
a antiguidade, a relação privada entre os indivíduos. Por influência e maior desenvolvimento
do Direito Romano, havia no início uma concepção privatística do processo.
Avançando no tempo, mesmo a partir da Idade Média, a origem divina e o poder
absoluto dos reis, que faziam com que seus atos e os do Estado (The King can do no wrong)
ficassem imunes a qualquer jurisdição retardaram a criação da concepção publicística do
processo, bem como seu desenvolvimento no âmbito da administração pública, já que o ato
administrativo reinou absoluto até o século XX.
No Brasil, o estudo do processo administrativo é feito em conjunto com o direito
material e na cadeira de Direito Administrativo, não sendo ensinado como disciplina
autônoma nas universidades.
Seja como for, a doutrina tentou reservar o termo “processo” para a função judicial e
o termo procedimento para a função executiva, não sem antes qualificar este último com o
adjetivo pejorativo “mero”: mero procedimento, consoante observação de Cândido Rangel
Dinamarco (2009).
Contribuiu para esta situação o fato de que “ainda que a atual noção de procedimento
não esteja por certo limitada ao âmbito da atividade administrativa, é neste último que
emergiu historicamente sua disciplina”, segundo ensina Fazzalari (2006, p. 110), o que
ensejou a utilização deste vocábulo ao invés de processo no âmbito da Administração Pública.
Assim, costuma-se fazer referência a processo jurisdicional para se referir a processo
judicial. Entretanto, é precisa a observação de Dinamarco (2009, p. 76), para quem “todos os
órgãos e poderes têm e exercem jurisdição nos limites de sua competência institucional,
quando aplicam o Direito e decidem controvérsia sujeita à sua apreciação [...]; a decisão
judicial é espécie do gênero jurisdicional”.
Ultrapassadas essas barreiras, é preciso consignar que a Espanha foi pioneira em
editar em 1889 uma lei sobre processo administrativo (Lei Azcarate), consoante os

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ensinamentos de Medauar (2008). Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2011), desde
1927, na Áustria, Merkl já entendia que o fenômeno processual não era exclusivo da função
jurisdicional, sendo comum a todas as demais funções estatais, com o que, de acordo com o
mestre brasileiro, anuíam Carnelutti, Bartolomé Fioini e Royo Villanova.
O processo administrativo se apresenta atualmente como forma de atuação
intríenseca à função administrativa, assim como é o processo na função judicial e o processo
parlamentar da função legislativa. Adolfo Merkl ensinava àquela época que

el derecho procesal administrativo no es más que um caso particular del derecho


procesal [...] y el procedimiento administrativo un caso particular del procedimiento
jurídico em general. La teoria procesal tradicional consideraba el <proceso> como
propiedad de la justicia, identificándolo con el procedimiento judicial, [...] pero,
desde el punto de vista jurídico-teórico, no es sostenible esta reducción, porque el
<proceso>, por su propia naturaleza, puede darse en todas las funciones estatales,
posibilidade que, em realidad, se va actualizando en medida cada vez mayor.
(MERKL 1975, p.279)2

Depois de Merkl, autores como Themístocles Brandão Cavalcanti, no Brasil, em


1938, como o italiano Sandulli, em 1940, Villar y Romero, na Espanha, na mesma época, e
Benvenuti, na Itália, em 1952, defendem a ideia da existência de um processo administrativo
autônomo que foi ganhando cada vez mais corpo, conforme nos revela Odete Medauar
(2008).
Posteriormente, na França, Jean Rivero (1981, p. 246) defendia que “a autonomia do
direito administrativo tanto se afirma no terreno do processo como no fundo do direito”, sem
negar, entretanto que “[...] o processo comum influenciou largamente o processo da jurisdição
administrativa”. Já Cretella Júnior, com base em Tezner, aponta a existência autônoma do
processo administrativo ao lado dos processos judiciais ao ensinar que:

Nos vários sistemas jurídicos, o processo administrativo que, antes de tudo é


processo, está regulamentado por uma série de regras características, típicas, que o
distinguem de seus congêneres – processo penal, processo civil, processo falimentar,
processo trabalhista- também autônomos, com métodos próprios, normas
diferenciadas, princípios e objetos particulares. Entretanto, pelo conteúdo espiritual
de que se reveste o direito processual administrativo, apresenta o mesmo valor que o
direito processual civil ou criminal. (CRETELLA JÚNIOR, 2010, p 40-41)

2
o direito processual administrativo não é mais que um caso particular do direito processual [...]e o processo
administrativo é um caso particular do processo jurídico em geral [...] a teoria processual tradicional considerava
o ‘processo’ como propriedade da Justiça, identificando-o com processo judicial, [...] mas, deste ponto de vista
jurídico teórico não é sustentável esta redução porque o ‘processo’, por sua própria natureza, pode dar-se em
todas as funções estatais possibilidade que, em realidade, se vai atualizando em medida cada vez maior.
(tradução nossa)

422
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Neste diapasão, com a evolução da ciência processual e do próprio direito


constitucional, o processo deixou de ser um fenômeno exclusivamente do Poder Judiciário
para ser considerado, na lição de Bueno (2009, p.387), como “método inerente à atuação do
Estado, à produção da vontade do Estado”.
Portanto, é insuscetível de glosa falar em processo como modo inafastável de atuação
do Estado, ou ainda na lição de Sundfeld (2004, p.91) de “modo normal de agir do Estado”,
comprovando-se mais uma vez a existência de uma teoria geral do processo.
O que há de comum e determinante entre os tipos de processo são os idênticos
princípios e regras que sobre ele incidem, principalmente os que têm estatura constitucional.
A presença de princípios e regras distintos decorre da especialização de cada rama processual,
o que não infirma a existência daquela teoria, que se pretende geral.
Destarte, parece não haver empecilhos na aplicação da evolução constitucional e
democrática do processo civil no processo administrativo. Muito pelo contrário. Como será
estudado, há determinação constitucional neste sentido.
Revelada a autonomia científica do processo administrativo como primeiro passo em
direção à processualização da função administrativa, é necessário marcar a relação entre
Processo, Direitos Fundamentais e Constituição.

3.2 A face procedimental dos direitos fundamentais: uma breve visita à Jelinek, Häberle,
e Alexy

O segundo passo em direção à referida processualização se dá com o confronto


entre Constituição, Direitos Fundamentais e Processo, o que exige o estudo da face
procedimental dos direitos fundamentais. A constitucionalização do processo e sua relação
com os direitos humanos não é nova. Os direitos e garantias fundamentais do cidadão irão ter
uma eficácia radioativa e contaminante sobre o processo.
Em 1892, Georg Jellinek elaborou uma teoria segundo a qual a relação entre o
indivíduo e o Estado, ou ainda entre Estado e direitos individuais se subdividiria em quatro
status. O positivo, o ativo, o negativo e o passivo.
De acordo com Alexy (2008, p 254-275), o status positivo corresponderia ao direito
de exigir prestações positivas ao Estado, enquanto o negativo corresponderia ao direito de
exigir a omissão do Estado na esfera de liberdade do indivíduo. Já o status passivo significa a
sujeição do indivíduo ao poder do Estado. O último seria o ativo que corresponderia ao direito

423
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de participar na formação da vontade do Estado (status da cidadania ativa). José Miguel


Garcia de Medina ilustra esta relação revelada por Jellinek transportando-a para a seara do
processo,

Pode-se dizer, seguindo esta teoria, que o direito de exigir do Estado a prestação
jurisdicional corresponde ao denominado status positivo (ou status civitatis). Mas o
status positivo não esgota o papel das partes, no processo. No status passivo (ou
status subiectionis) leva-se em conta a sujeição do indivíduo ao Estado; no negativo
(status libertatis), a liberdade frente ao Estado. Assim, o status libertatis tem a ver
com a faculdade de agir em juízo, que condiciona o início da atividade jurisdicional;
sob outra face, ao exercer o direito de ação a parte reclama do órgão a prestação
jurisdicional que lhe deve ser conferida pelo Estado (status positivo); mas o pedido
apresentado pelo autor pode ser ou não julgado procedente, e a este resultado se
submeterão as partes, o que é manifestação do status subiectionis. Além destas
formas de status, reconhece-se que as partes têm status activus processualis.
(MEDINA, 2010, p. 16-17)

Já as Constituições Européias promulgadas após a Segunda Guerra Mundial


trouxeram garantias constitucionais de índole processual. Héctor Fix-Zamudio (1974, apud
Baracho 1984, p 139), entendia já em 1974 que “a verdadeira garantia das disposições
fundamentais consiste, essencialmente, em sua proteção processual”.
Foi também na década de 70 do século passado que Peter Häberle, com base na
teoria de Jellinek, desdobrou a ideia de status ativo em status activus processualis. Para
Häberle, aqui residiria o aspecto procedimental dos direitos fundamentais.
Assim, para que os direitos fundamentais cumprissem sua missão, não bastaria que
esses fossem declarados e considerados apenas como direitos subjetivos materiais,
necessitando, deveras, serem encarados como normas de organização em sua faceta
procedimental com possibilidade de sua reclamação em juízo.
No Brasil, Calmon de Passos (2000) estuda a processualização do direito também
sob uma perspectiva democrática de sua produção, que, de acordo com ele, deve ter uma
dimensão linguística e intersubjetiva. Segundo o autor, com base, também, em Härbele,

Se o direito é uma das formas de emprestar sentido e significação ao agir do homem,


ele reclama, para sua compreensão, ser analisado do ponto de vista da comunicação
humana, donde a ineliminável dimensão intersubjetiva e lingüística de sua produção.
Torna-se, pois, fundamental instritucionalizar-se o que provisoriamente pode ser
denominado de status activus processualis, concebido como o reconhecimento do
direito fundamental de se participar, ativa e responsavelmente, nos procedimentos
que objetivam produzir normas jurídicas, em todos os seus níveis, bem como na
institucionalização das respectivas estruturas organizativas. (PASSOS, 2002, s.p).

Quem mais recentemente desenvolveu esta ideia foi Robert Alexy (2008). Ao tratar
em sua obra “Teoria dos Direito Fundamentais” dos direitos Sociais ou de 2ª dimensão, o
doutrinador alemão, após conceituá-los como direitos dos indivíduos de exigir prestação

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

positivas do Estado, subdivide-os em a) direitos de proteção; b) direitos de organização e


procedimento e c) direitos à prestação em sentido estrito.
Neste momento, interessa-nos tratar dos direitos de organização e procedimento. Tais
direitos procedimentais podem ter como destinatários, segundo o mestre alemão, o Tribunal,
quando entendido como proteção jurídica efetiva, ou o legislador, quando seu objeto for a
criação de normas procedimentais.
De nada adianta ter um direito fundamental declarado se não for possível perseguir
sua proteção efetiva perante um Tribunal. Destarte, a proteção efetiva ou a faceta
procedimental de determinado direito fundamental compõe o núcleo essencial deste mesmo
direito.
Coube a Alexy desenvolver essa teoria da face procedimental dos direitos
fundamentais, para o direito alemão, com base na teoria do status ativo de Jellinek, revelador
de que

Inúmeras posições jurídicas procedimentais de direito ordinário existem em virtude


de normas de direito ordinário. Se sua existência for exigida pelos direitos
fundamentais - e isso é o que em grande medida ocorre – o conteúdo jurídico-
procedimental das normas de direitos fundamentais consiste também na proibição de
sua eliminação, ou seja, em protegê-las contra atos de revogação. (ALEXY, 2008, p.
477)

Assim, mais uma vez se revela importante a relação entre Constituição, Processo e
Direitos Fundamentais. Em razão disso, confere-se destaque ao status ativo de Jellinek,
elevado à categoria de status activus processualis por Peter Häberle, como forma de participar
efetivamente, por meio do procedimento, da formação da vontade do Estado, demonstrando-
se junto a Medina a importância deste contraponto com o Estado Democrático de Direito

Segundo este autor [Häberle], o status activus processualis é a síntese de todas as


normas e formas que dizem respeito à participação procedimental, através do
Estado, daqueles que tiveram seus direitos fundamentais atingidos. O status activus
processualis, assim, corresponde ao direito de participar “no procedimento da
decisão da competência dos poderes públicos”. Tal participação não se limita ao
direito de se manifestar e de ser ouvido, mas, mais que isso, consiste em poder
influir decisivamente nos destinos do processo. Não se confundem as situações em
que se encontram as partes, no processo, frente ao Estado, no status positivo e no
status ativo: além de poder exigir do Estado a proteção jurídica inerente ao direito
material (status positivo), a parte deve poder participar ativamente do processo
(status activus processualis). O status activus processualis tem importante papel, no
Estado Democrático de Direito, já que através deste se assegura a plenitude das
outras formas de status. (MEDINA, 2010, p. 17)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Portanto, Alexy (2008) e Härbele (1972) dão destaque ao aspecto procedimental dos
direitos e garantias fundamentais materiais. Não obstante, é necessário sobrelevar a
importância de direitos e garantias constitucionais de índole processual.
Apesar de partirem dos direitos fundamentais, Härbele e Alexy analisam o direito de
participação em um viés democrático (status activus processualis), onde, para eles, residiria o
aspecto procedimental dos direitos fundamentais – direito de participação e direito à proteção
jurídica efetiva por meio de procedimentos, podendo, assim, exigi-los em juízo (dever de
existir procedimentos) .
Entretanto, existem de direitos fundamentais de caráter procedimental ou processual
(garantias processuais constitucionais e fundamentais como ampla defesa, contraditório, juiz
natural, motivação das decisões, dentre outros.). Tais garantias processuais compõem um rol
extenso de direitos fundamentais na Constituição Brasileira, aplicáveis tanto ao processo
judicial, quanto ao administrativo.
Com efeito, a definição de “processo” para Rosemiro Pereira Leal (2009), pode
abranger tanto um quanto o outro a demonstrar, mais uma vez, a processualização da
atividade administrativa e o seu núcleo comum: a previsão constitucional de princípios
processuais comuns para ambos os processos. Assim, o autor (2009) conceitua processo
como

o conjunto de princípios e institutos jurídicos reunidos ou aproximados pelo Texto


Constitucional com a denominação jurídica de Processo, cuja característica é
assegurar, pelos princípios do contraditório, da ampla defesa, da isonomia, do direito
ao advogado e do livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e
expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de
procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal), como
instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados”. (LEAL, 2009. p.
100).

Destarte, ao lado das garantias processuais constitucionais, a face procedimental dos


direitos fundamentais vem comprovar a intrínseca relação entre Constituição, Processo e
Direitos Fundamentais, ao demonstrar que a proteção jurídica efetiva de um direito
fundamental, que se dá por meio do procedimento (rectius, processo), requer seja aquela
faceta considerada como pertencente de forma indissociável ao núcleo deste direito.
Ademais, essa face procedimental vem apresentar a possibilidade e a necessidade de
o cidadão, por meio do status activus processualis, exercer sua cidadania de forma a
participar decisivamente da formação da vontade do Estado.
Resta, agora, demonstrar como a Constituição normatiza os direitos e garantias
processuais para estar completa a noção de processualização da atividade executiva.

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3.2.1 A fundamentação constitucional do processo administrativo na Constituição da


República de 1988.

Falar em “processo” em um Estado Democrático de Direito, como é o caso do Estado


Brasileiro é, sem dúvida, bem mais diverso que falar em “processo” em um Estado que não
seja nem Democrático nem de Direito.
Nessas condições, a natureza jurídica do processo – o que ele é ou deixa de ser
juridicamente – depende, sempre e em qualquer caso, como de resto, de qualquer instituto do
Direito, das opções políticas feitas em determinado momento da história do homem por dado
ordenamento jurídico.
Portanto, é da Constituição Federal (BRASIL, 1988) que, em primeiro lugar, deve
ser extraído o modelo de Estado e verificar em que medida este modelo influencia a forma de
exercício de seu poder (BUENO, 2009).
No atual paradigma, tal fato deve se revelar com sua passagem pelo filtro do
processo democrático com efetiva e decisiva participação do interessado, em razão do
fenômeno da processualização da atividade administrativa.
Historicamente, as constituições brasileiras anteriores a 1988 se referiam de forma
tímida ao processo administrativo e, ainda, somente na sua feição disciplinar, como na
Constituição de 1934, art. 169 (BRASIL 1934); na Constituição de 1937, art. 156, c
(BRASIL, 1937); na Constituição de 1946, art. 189, II(BRASIL, 1946); na Constituição de
1967, art. 103, II (BRASIL, 1967) e na Emenda 1/69, art. 105, II (BRASIL, 1969). Quanto ao
processo judicial, a Constituição de 1824 já tratava da matéria desde então.
Na Constituição da República de 1988, a fundamentação constitucional que dá ao
processo pedigree reside na consagração do paradigma jurídico-constitucional do Estado
Democrático de Direito em seu artigo 1º, que vê, no procedimento discursivo-dialógico, a
legitimação do processo. Destaque maior são os artigos: 5º, incisos XXXIV - Direito de
petição; LIV – devido processo legal -; LV - contraditório e ampla defesa -; LVI – proibição
de provas ilícitas -; XXXVII; LX – publicidade dos atos processuais; LXXII - habeas-data-;
LXXIV – assistência jurídica integral e gratuita; LXXVIII – duração razoável do Processo.
Nesse sentido, pode-se verificar como foi generoso o constituinte originário ao se
utilizar do vocábulo processo como um complexo normativo constitucionalizado e garantidor
de direitos fundamentais. Ao contrário do Direito alemão, a Constituição brasileira erige as
garantias processuais como direito fundamental e como cláusula pétrea. Nela se encontram os

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princípios estruturais e informativos do processo, como visto acima. Trata a Constituição de


1988 não só do processo jurisdicional, mas também do legislativo (artigo 59) e do
administrativo em diversas passagens.
O enlace entre o processo jurisdicional e o administrativo, a comprovar a existência
de uma Teoria Geral do Processo e a aplicação das conquistas constitucionais e democráticas
do processo jurisdicional no administrativo, encontra-se justamente na previsão conjunta entre
os dois ramos processuais dos princípios institutivos do processo (contraditório, isonomia e
ampla defesa) no inciso LV do artigo 5º (aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes, BRASIL, 1988). Não podemos olvidar que a isonomia
está dentro do conceito de contraditório como igualdade de condições.
Ademais, reforça tal posição o fato e de diversos princípios informativos como o da
duração razoável do processo no inciso LXXVIII do mesmo artigo (a todos, no âmbito
judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação, Brasil, 1988), e o da necessidade de motivação de
decisões judiciais e administrativas no âmbito dos tribunais (artigo 93, incisos, IX e X)
(BRASIL, 1988), fazerem referência a ambos os modelos processuais.
Demonstra-se com o método investigativo eleito (indutivo) que, apesar das
particularidades de cada ramo processual e até mesmo o fato de se desenvolverem perante
funções estatais diversas, os processos administrativo e judicial possuem um tronco comum,
que é a Constituição da República de 1988. Ela consagra princípios informativos e estruturais
comuns a ambos os fenômenos processuais.
Diante disso, seja no campo legal, doutrinário, filosófico, sociológico, da dogmática
e da zetética é possível aplicar no processo administrativo as conquistas democráticas e
constitucionais já alcançadas no processo judicial.
Assim, é inconteste que a autonomia científica do processo administrativo e a relação
entre Processo, Direitos Fundamentais e Constituição fazem irromper a processualização da
atividade administrativa como um direito fundamental, pois esta é, repita-se, um imperativo
do Estado Democrático de Direito.
Diante disso, não há como os créditos fiscais oriundos de multas ambientais não
serem constituídos por outra forma, que não o processo administrativo. Nada obstante, torna-
se indispensável enfrentar a questão da previsão normativa deste processo administrativo: ele

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

deve se dar por meio de lei em sentido formal ou pode ser feito por ato normativo de segundo
grau em forma de Decreto?

4. A PREVISÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Antes de se estudar a necessidade ou não de o processo administrativo ser previsto


em lei, é preciso demonstrar um breve quadro, mostrando como foi promovida a positivação
de alguns processos administrativos (Geral e Tributário) antes de se adentrar no campo
ambiental.
Em 1999, a União regulou, por meio da lei 9784, o processo administrativo no
âmbito da Administração Pública Federal, que estabeleceu suas normas básicas. Tal fato
representou um grande avanço no ordenamento jurídico brasileiro, por não haver,
anteriormente, uma lei geral de processo administrativo federal, que dispusesse de forma
integrada sobre todos os princípios de índole material e formal da Administração Pública de
incidência no âmbito processual, apesar da previsão constitucional de alguns destes
princípios.
Não obstante, a Constituição não estabelece aquela estrutura normativa e organizada
do processo (o procedimento), elencando, apenas, alguns princípios e regras. Referida lei
dispôs, ainda, em seu artigo 69, que os processos administrativos específicos serão regidos
por lei própria, mas poderão, no entanto, sofrer a incidência subsidiária desta lei geral
(LGPAF).
É necessário destacar que, na verdade, em alguns pontos, a lei 9784/99 faz observar
as garantias processuais fundamentais no processo administrativo em maior grau que as
próprias leis regedoras do processo judicial.
De outro lado, no âmbito tributário o processo administrativo federal é regulado pelo
Decreto 70.235 de 1976. A situação desta norma é interessante, pois editada antes da
Constituição de 1988.
Sem tomar partido sobre a recepção ou não desta norma pela Constituição da
República de 1988, é de se pontuar que parte da doutrina do Direito Tributário entende como
ocorrido em relação a esta norma o fenômeno da recepção constitucional (já que não haveria
inconstitucionalidade formal superveniente), gozando esta, atualmente, do status de lei
ordinária.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Já autores como Paulo Adyr Dias do Amaral (2011), revendo posição anterior, tem
entendimento contrário, defendendo a não recepção. Para Paulo Adyr Dias do Amaral (2011,
p. 81, grifos do autor), o referido decreto é inconstitucional, pois a recepção não tem o condão
de “converter Decreto (ato unilateral e solitário expedido pelo Chefe do Poder Executivo) em
Lei (ato democrático de expressão da vontade geral - vontade esta manifestada pelo
Parlamento). Isso seria contrário à própria ideia de Estado Democrático de Direito”.
O autor justifica sua posição por entender que mesmo no regime constitucional
anterior a competência para legislar sobre qualquer tipo de processo já era da União, por meio
do Congresso Nacional (art. 8º, XVII, “b” da Constituição de 1969, BRASIL, 1969). Assim,
para Amaral (2011, p. 82) “é clara a conclusão de que o principal diploma brasileiro (na
verdade o único) no campo do processo administrativo tributário é a LGPAF” (Lei Geral do
Processo Administrativo Federal).
Por sua vez, em matéria ambiental o processo administrativo federal está previsto no
Decreto Federal nº 6514/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao
meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações,
regulamentando a lei 9605/1998. Importante notar que a edição do Decreto está nele mesmo
justificada pelo artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição da República e pelas
leis 9.605/1998, 9.784/1999, 8.005/1990, 9.873/1999, e 6.938/1981.
Diante disso, é necessário verificar se há, nas referidas leis, autorizações para que o
processo administrativo ambiental seja regulamentado por decreto e se tal expediente é
constitucional. É preciso, outrossim, investigar se, com base no art. 84, incisos IV e VI, alínea
“a”, da Constituição da República, o Chefe do Executivo pode regulamentar por decreto o
processo administrativo ambiental. Essa pesquisa será feita estudando-se o fenômeno da
deslegalização na Administração Pública, bem como com a análise do Regulamento no
Direito brasileiro.

4.1 A Deslegalização e Administração Pública

A “deslegalização” é um fenômeno recente que consiste na renúncia lícita pelo


próprio legislador da regulação de determinadas matérias por lei em sentido formal,
delegando tal função e disciplina ao Executivo. Segundo Diogo Figueiredo Moreira Neto
(2007, p. 218), a deslegalização consiste “na retirada, pelo próprio legislador, de certas
matérias, do domínio da lei (domaine de la loi) passando-as ao domínio do regulamento
(domaine de l’ordonnance)”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Com efeito, no século XX, instaurou-se a denominada “crise da lei”, pois o


Legislativo, em decorrência de suas idiossincrasias institucionais e da própria regulação
minuciosa do processo legislativo na Constituição e no Regimento dos Parlamentos, não
conseguia acompanhar com a mesma rapidez a evolução e complexidade das situações
sociais, que atingiam todo o Direito.
Como forma de resolver esse problema, o legislador passou a se utilizar de dois
expedientes, principalmente no campo do Direito Administrativo: (i) o emprego dos
denominados conceitos jurídicos indeterminados, deixando a cargo do administrador a
concreção da previsão abstrata, aberta e ampla da lei, consoante o caso concreto e as
exigências sociais e tecnológicas, para que não fosse necessária a alteração constante da lei e
(ii) criou agências reguladoras com poder normativo, cujo conhecimento técnico permitia que
por meio de regulamentos fosse feita aquela mesma concretização da previsão abstrata e
genérica da lei, consoante os condicionamentos fáticos e técnico-científicos de cada situação.
Diante de tal fato, passou a haver interação constante entre as funções legislativa e executiva.
No entanto, tal interação não pode significar uma renúncia do Legislativo quanto a
sua missão constitucional e institucional de servir de espaço e canal democrático de debate de
idéias, a fim de expressar a vontade de seus mandatários, com intuito de congregar e articular
os valores plurais de determinada sociedade e expressá-los por meio da lei geral e abstrata.
Conforme será melhor estudado, o regulamento somente pode complementar e
explicitar a lei, porque ela não desce a minúcias. Fora destes limites, a lei não pode transferir
ao Executivo a disciplina de certas matérias, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade
estampado no inciso II do artigo 5º da Constituição Republicana de 1988 (BRASIL, 1988).
Ora, se ninguém pode fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei,
esse direito fundamental impede que a tarefa constitucional de inovação e de criação de
direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções seja abdicada pelo legislador em
favor do administrador. As funções e obrigações atribuídas pela Constituição são indelegáveis
e irrenunciáveis, sob pena de delegação disfarçada de competência ou atribuição.
Cabe-nos ressaltar, entretanto, que essa delegação da função de complementação da
lei pelo fenômeno da “deslegalização” deve ser feita dentro de certos limites, devendo a lei
estabelecer certos parâmetros e quadrantes para a atuação do executivo por meio dos
regulamentos.
De criação estadunidense, a Doutrina dos Princípios Inteligíveis (Intelligible
Principle Doctrine) entende que a lei deve estabelecer limites mínimos dos quais o

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

administrador não pode se afastar, pois do contrário estaria incidindo em


inconstitucionalidade, atuando para além do espaço de conformação que a lei lhe permite. A
liberdade do administrador é uma liberdade restrita e condicionada, devendo observar os
standards e parâmetros legais, de forma a apenas complementar a atuação do legislativo, para
que o ordenamento jurídico possa acompanhar a evolução e peculiaridades das relações
sociais.
Tal fato, de forma alguma, pode significar inovação da ordem jurídica, mas apenas a
concretização do comando normativo. Alexandre Santos de Aragão discorre sobre a referida
doutrina surgida no direito anglo-saxão:

Nos EUA, onde também havia forte setor doutrinário e jurisprudencial no sentido de
que as leis com tal (baixa) densidade normativa seriam inconstitucionais por
constituírem delegações de poderes legislativos, a Suprema Corte, apesar de ainda
haver reações de alguns autores e de algumas Cortes estaduais, acabou se firmando,
como expõe JOHN H. REESE, no sentido de ‘ser proibida apenas a transferência
ilimitada de poderes. Normalmente, a transferência limitada advém da linguagem
utilizada na lei autorizando a Administração a editar normas apropriadas para
cumprir as finalidades assinaladas na lei. A transferência de poderes normativos
também pode estar implícita na linguagem legislativa, ainda que não haja atribuição
normativa expressa’. WILLIAM F. FUNK explica: ‘o Congresso legisla e a
Administração executa as leis; para que a Administração execute as leis, estas leis
devem conter um princípio claro (intelligible principle) para guiar a Administração,
já que, do contrário, a Administração estaria legislando por conta própria.
(ARAGÃO, 2008, p. 330-331)

Na mesma passagem, o autor explica que recentemente a Suprema Corte dos Estados
Unidos entendeu ser constitucional disposição infralegal que estabeleceu padrões mínimos de
qualidade do ar para proteger a saúde pública.
A Corte entendeu que havia na lei um princípio inteligível do qual decorria uma
disposição suficientemente clara para que o regulamento dispusesse sobre referidos padrões,
até mesmo porque o conhecimento científico sobre o caso dependia de conhecimentos
técnicos que, além de não serem da sabedoria do legislador, poderiam ser variáveis e mudar
constantemente. (ARAGÃO, 2008).
Consoante os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, p.367), essa
parcela do poder normativo do Executivo só pode aludir a “conceitos precisáveis mediante
averiguações técnicas, as quais sofrem influxos das rápidas mudanças advindas do progresso
científico e tecnológico, assim como das condições objetivas existentes em dado tempo e
espaço”, como já ficou demonstrado acima.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ainda de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2011, p.367), essa
imposição só deve ser aceita enquanto for adequada e necessária para se atingir o objetivo da
lei e torná-la aplicável, útil e eficaz, não podendo, entretanto, “sacrificar outros interesses
também por ela [lei] confortados”.
Feito isso, é necessário verificar se, em matéria de processo ambiental, ocorreu o
fenômeno da “deslegalização” e se aquela doutrina é nele aplicável.

4.1.1 Previsão da Deslegalização nas Leis sobre Processo Administrativo Ambiental

Não sendo mais estranho nem o fenômeno da “deslegalização” nem a doutrina dos
princípios inteligíveis é indispensável verificar se estas leis fizeram tal previsão para que o
Decreto 6514/2008 regulasse o processo administrativo ambiental federal.
Como já foi observado, o Decreto Federal nº 6514/2008 dispõe sobre as infrações e
sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para
apuração destas infrações, regulamentando a lei 9605/1998.
Ao analisar esta lei, verifica-se que ela dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas ilícitas praticadas contra o meio ambiente, e dá outras
providências (BRASIL 1998). O capítulo VI da lei 9605/1998 trata da infração administrativa
e o parágrafo 4º do seu artigo 70 dispõe que “as infrações ambientais são apuradas em
processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório,
observadas as disposições desta Lei” (BRASIL, 1998).
Ora, é evidente que a lei 9605/98 determina que o processo administrativo deve
observar suas disposições, não fazendo nenhuma transferência de atribuição regulamentadora
para instrumentos normativos secundários. No entanto, referida lei só dispõe sobre prazos
processuais, não estabelecendo nenhum procedimento para que se realizasse o contraditório e
incidissem todos os demais princípios e garantias processuais.
Tal fato, entretanto, não autoriza que a regulação do processo administrativo seja
feita por decreto, porque nem a lei autorizou isso. Em momento oportuno, será estudada a
existência de decretos autônomos em nosso ordenamento além de se verificar se seria esse o
caso do Decreto 6514/2008. (BRASIL, 2008)
Apesar de, em sua parte preambular, esse decreto dispor que o Presidente da
República o expede em razão do previsto no capítulo VI da Lei 9605/98, será demonstrado
que não há tal previsão nesta lei.

433
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Acontece que o referido decreto faz remissão à Lei 9784/99 (LGPAF). Ao analisar a
referida lei, pode-se observar que o único artigo que poderia ter alguma conexão com o
processo administrativo ambiental nele (no Decreto) previsto é o artigo 69 da LGPAF, que
prevê a sua aplicação subsidiária em outros processos administrativos específicos que
estivessem regidos por lei própria (BRASIL, 1999).
Não obstante a previsão da aplicação subsidiária da lei geral do processo
administrativo federal, essa dar-se-á segundo a própria lei, se os outros processos estiverem
previstos em lei em sentido formal ou em decretos que tiverem sido recepcionados pela nova
ordem constitucional com o status de lei. Não se está aqui defendendo que a lei geral não
possa ser aplicada subsidiariamente em Decretos. Entretanto, a justificativa apresentada no
preâmbulo do Decreto 6514/98 (BRASIL, 1998) de que ele estaria sendo expedido em razão
do disposto na lei geral do processo administrativo demonstra motivação equivocada, o que já
é o bastante para afirmar que mais uma vez não há transferência da atividade regulamentadora
de lei para o decreto que pretendeu disciplinar o processo administrativo ambiental.
Ademais, o artigo 95 do Decreto 6514/2008 ao fazer referência à Lei Geral do
Processo Administrativo Federal apenas nos remete aos princípios e critérios previstos no
artigo 2º desta lei.
De igual modo, a referência às leis 9.873/1999 e 6.938/1981 não valida nem torna
eficaz o decreto que regulamenta o processo administrativo ambiental. A primeira lei dispõe
exclusivamente sobre prazo prescricional da pretensão punitiva da Administração. Já a
segunda dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, mas em todos os casos as
disposições são de natureza material, não fazendo referência alguma a processo e muito
menos a suas regulamentações por decreto.
Portanto, a análise das leis até agora declinadas permite afirmar que não há nelas
nenhuma transferência de atividade normativa da lei para decreto.
Entretanto, há naquele decreto referência à Lei 8005/90 (BRASIL, 1990). Tal lei
dispõe sobre a cobrança de créditos do IBAMA e seu artigo 6º prevê que “o Presidente do
IBAMA baixará portaria disciplinando o procedimento administrativo para autuação,
cobrança e inscrição na dívida ativa dos débitos a que se refere esta lei, assegurados o
contraditório e o amplo direito de defesa” (BRASIL, 1990, grifos nossos). Há aqui expressa
transferência de atividade regulatória da lei para ato normativo secundário. Entretanto,
questiona-se se seria o caso de aplicação da doutrina dos princípios inteligíveis? Essa
transferência de função foi válida?

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Quando do estudo da Intelligible Principle Doctrine, demonstramos que esta só


pode ser utilizada quando houver necessidade de se fazer a previsão de determinadas matérias
que exigissem conhecimentos técnicos estranhos à atividade e competência do legislador, bem
como quando houvesse a necessidade de se dar uma pronta resposta às constantes
modificações ocorridas nas relações sociais, mas sem que houvesse em um e outro caso
inovação na ordem jurídica.
É possível perceber que a previsão de um processo para a constituição de multas
ambientais não exige conhecimentos técnicos que sejam estranhos ao legislador. Ao contrário,
exige atuação ativa deste, pois o modo de ser do processo revela a preferência política de um
determinado Estado, bem como visa a assegurar e a efetivar direitos e garantias fundamentais
do cidadão.
Ademais, por mais que o processo também tenha que acompanhar a realidade social
sobre a qual o Direito se sustenta, a rapidez de que fala a doutrina dos princípios inteligíveis
tem a ver com a mudança de critérios científicos que exigem constantemente a alteração da
norma, o que não é o caso do processo.
Pode-se ressaltar ainda que não se pode falar que a referida lei traz em seu bojo
todos os princípios inteligíveis que vão direcionar a criação complementar a ser realizada pelo
administrador. A lei 8005/90 (BRASIL, 1990) só faz referência ao contraditório e à ampla
defesa que, apesar de serem princípios estruturais do processo ao lado da isonomia, não
traduzem toda a realidade de um processo que deve ser constitucional e democrático.
Não há previsão, v.g. sobre legitimidade, fases processuais, decisões, recursos,
necessidade ou não de representação por advogado e uma gama de outros princípios e regras
que deveriam estar presentes para que também a lei 8005/90 fosse inteligível a ponto de
permitir a regulação de processo administrativo por meio de decreto. Basta olhar a
constituição para verificar a generosidade com que ela prevê princípios e garantias
processuais.
Não se pode olvidar que o direito ambiental material é campo fértil para a aplicação
da doutrina dos princípios inteligíveis, quando determina, v.g, níveis de emissão de gases, de
dejetos, volume do som para assegurar o direito de tranquilidade e sossego, espécies animais
em extinção e etc. Todas estas situações são complementares ao direito material e dependem
de conhecimentos técnicos que demandam rápida resposta. Entretanto, esse não é o caso do
processo ambiental.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Assim, não há campo para, com base nas leis citadas pelo Decreto 6514/2008, se
permitir a previsão de processo administrativo ambiental por meio de regulamento.
Entretanto, no vestíbulo do decreto há referência aos incisos IV e VI, alínea “a do artigo 84
da Constituição da República.
Não fosse o bastante, o parágrafo único do artigo 94 do referido Decreto dispõe que
o objetivo do seu capítulo VI é dar unidade às normas esparsas que versem sobre
“procedimentos ambientais”, bem como “nos termos do que dispõe o art. 84, inciso VI, alínea
“a”, da Constituição, disciplinar as regras de funcionamento pelas quais a administração pública
federal, de caráter ambiental, deverá pautar-se na condução do processo” (BRASIL, 2008).
Em razão disso, é necessário analisar os incisos IV e VI do artigo 84 da Constituição
da República, para verificar se a previsão de processo administrativo ambiental por meio de
decreto é possibilitar a “fiel execução de lei” ou se dizem respeito à organização da atividade
da Administração Pública.

4.2 O Decreto no ordenamento jurídico brasileiro.

O estudo da função do regulamento prevista na Constituição de 1988


(BRASIL,1988) pode encerrar a questão da possibilidade ou não de processos administrativos
serem previstos por meio de decretos, uma vez que já foram apontadas as limitações impostas
às leis no deslizamento de suas funções.
A lei e o legislador não podem abdicar de suas atribuições, porque tais obrigações
estão previstas e são concedidas pela Constituição, e somente ela pode fazer exceções aos
seus mandamentos.
Os decretos são atos normativos secundários, inferiores às leis, e que servem de
veículo para os regulamentos, cuja natureza jurídica é de ato administrativo de eficácia
externa. Sua principal função é complementar a lei e a competência para a sua expedição é
exclusiva dos Chefes do Executivo das entidades federativas.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2011), o nomen júris regulamento
não é uníssono na doutrina jurídica mundial, cumprindo fins diversos em cada ordenamento
jurídico, possuindo como denominador comum apenas sua abstração e generalidade, bem
como o fato de não ser elaborado pelo Legislativo. Vale, porém, chamar atenção para
existência de decretos individuais e concretos, como aqueles que nomeiam ou exoneram
servidores ou que declaram a desapropriação de um imóvel.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Entretanto, a principal diferença entre a lei e o decreto não é o fato de se originarem


de Funções Estatais distintas (legislativa e executiva, respectivamente), nem o fato de a lei ser
superior ao decreto (como será pontuado, há casos em que o decreto pode se contrapor a uma
lei), mas o fato de só a lei poder inovar na ordem jurídica. Somente ela é ato normativo
primário (à exceção da medida provisória, que tem força de lei) com aptidão para criar
direitos e obrigações, o que é bem diferente de se permitir a execução da lei.
Traçadas essas linhas gerais, constata-se que a Constituição da República de 1988 faz
previsão do Decreto e suas funções especialmente no artigo 84, incisos IV e VI. No primeiro
caso, temos os decretos regulamentares ou de execução. No segundo caso, há necessidade de
se pesquisar sua natureza jurídica a fim de verificar se é possível falar, no direito brasileiro,
nos decretos autônomos reconhecidos na teoria geral do direito constitucional.
Dito isto, pode-se proceder ao estudo dos incisos IV e VI do artigo 84 da
Constituição Brasileira (BRASIL, 1988).

4.2.1. O Decreto regulamentar ou de execução.

A previsão constitucional do decreto regulamentar reside no inciso IV da


Constituição de 1988, que dispõe ser da competência do Chefe do Executivo expedir decretos
e regulamentos para fiel execução da lei (BRASIL 1988).
A doutrina costuma traduzir essa “fiel execução da lei” na complementação da lei
pelo regulamento. Assim é que o decreto de execução orienta a aplicação da lei, aclarando,
explicando, facilitando e explicitando seus mandamentos.
A lei não desce a minúcias da matéria que disciplina, devendo o regulamento fazê-lo.
Entretanto, essa função regulamentar encontra limites, como já visto: não pode se arvorar da
função legislativa criando direitos e obrigações, excedendo sua função complementar.
Portanto, o regulamento é sempre subordinado e acessório da lei, desempenhando uma tarefa
de caráter administrativo.
Celso Antônio Bandeira de Mello entende que todas essas expressões são muito
vagas e imprecisas, não revelando, em sua plenitude, as estritas delimitações do poder
regulamentar. Aponta o autor, de forma precisa, os propósitos do regulamento:

(i) limitar a discricionariedade administrativa, seja para (a) dispor sobre o modus
procedendi da Administração nas relações que necessariamente surdirão entre ela e
os administrados por ocasião da execução da lei; (b) concretizar fatos, situações ou
comportamentos enunciados na lei mediante conceitos vagos cuja determinação
mais precisa deva ser embasada em índices, fatores, ou elementos configuradores a
partir de critérios ou avaliações técnicas segundo padrões uniformes, para garantia

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

do princípio da igualdade e da segurança jurídica; (ii) decompor analiticamente o


conteúdo de conceitos sintéticos, mediante simples discriminação integral do que
neles se contém. (MELLO, 2011, p. 370).

O regulamento tem grande valia na área da discricionariedade administrativa, pois


permite a operacionalização técnica e a densificação da lei, aptas a conduzir a um tratamento
isonômico dos cidadãos. Importante ressaltar que aquele não pode estar sujeito ao humor e
aos caprichos do administrador.
Nunca é demais reforçar: a lei não desce a minúcias. O regulamento deve apenas
complementar a lei, explicitando o que está implícito, sem que isso importe na criação de
direitos e obrigações ou na invasão de área reservada à lei, pois tal expediente representaria
usurpação da função legislativa e ofensa ao princípio da legalidade na sua expressão maior: na
reserva de lei.
Acontecendo tal fato, a própria Constituição prevê a reação contra essa
inconstitucionalidade, pois o Congresso Nacional deve “sustar os atos normativos do Poder
Executivo que exorbitem do poder regulamentar [...]”, consoante o disposto no inciso V do
artigo 49 da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988).
Entretanto, o que se percebe é que o Decreto 6514/2008, em matéria de processo, não
complementou a lei 9605/98. Além de ela dizer que o processo administrativo observaria suas
disposições, referido Decreto não aclarou ou orientou a aplicação da lei de crimes e infrações
ambientais.
Ficou criado, em verdade, todo o arcabouço processual para a constituição das
multas ambientais, extrapolando ultra legem suas funções.
Nem se fale seja o caso de decreto autônomo, não existente no direito brasileiro e
que ao fazer a previsão de processo administrativo por meio de decreto estar-se-ia
organizando o funcionamento da administração pública. Tal entendimento era possível
quando ainda não se vislumbrava a autonomia científica do processo administrativo, sendo
este considerado mero apêndice do Direito Administrativo material, algo já superado como
visto acima.
Bandeira de Mello (2011, p. 365 ) defende que o regulamento tem lugar “sempre
que necessário um regramento procedimental para a regência da conduta que órgãos e agentes
administrativos deverão observar e fazer observar, para cumprimento da lei (...)” e quando se
instaurarem relações entre Administração e administrados, principalmente quando for
possível certa discricionariedade, exemplificando com o regulamento do imposto de renda

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

que dispõe sobre o modo de apresentação de lançamentos tributários, horário de entrega das
declarações e etc.
Ademais disso, legislar sobre processo administrativo ambiental é inovar no
ordenamento jurídico, pois há a criação de direitos e obrigações para as partes processuais, o
que exige a observância do princípio da legalidade (inciso II do artigo 5º da CR/88). O
descumprimento de uma norma processual pode gerar prejuízo à parte, o que é muito
diferente de dar fiel execução à lei ou organizar a atividade administrativa (incisos IV, “a” e
IV do artigo 84, respectivamente). Como já se afirmou, é tão íntima a relação entre o
processo, o modo de atuação estatal e sua legitimidade; entre ele, a Constituição e os direitos
e garantias fundamentais, que sua previsão por ato normativo secundário o desprestigia
inconstitucional e democraticamente.
Assim, a previsão da garantia do devido processo não só legal, mas constitucional,
quando dispõe que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal” (art. 5º, LIV, BRASIL 1988) na Constituição de 88 reforça e reafirma tudo o
quanto foi dito até agora sobre a impossibilidade da constituição de multas ambientais se dar
sem processo ou por meio de processo, cuja previsão não seja legal. A disciplina relativa à
liberdade e patrimônio das pessoas deve vir prevista em lei e não em regulamento.
Assim, é forçoso repetir e aqui se insiste á derradeira: a processualização é um
imperativo do Estado Democrático de Direito de modo que as multas ambientais devem ser
constituídas por meio de um processo administrativo, que tenha previsão em lei, por
mandamento da própria Constituição, que exige um devido processo, pelo menos, legal.

5. CONCLUSÃO

Para que a proteção do meio ambiente seja eficaz é necessário que a constituição e
cobrança de multas ambientais se dê de forma válida e legítima, pois do contrário, a anulação
de multas por inobservância do devido processo legal pode levar à impunidade e deixar o
meio ambiente sem um de seus principais mecanismos de proteção. A constituição de multas
administrativas deve se dar por meio de um processo que garanta à parte a observância de
seus direitos e garantias fundamentais. A processualização é um imperativo do Estado
Democrático de Direito, sendo que este fenômeno é explicado e justificado tanto pela

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

autonomia do processo administrativo, quanto pela relação entre direitos fundamentais,


Constituição e processo.
Não obstante a necessidade de processo para a constituição de multas ambientais,
onde seja assegurado à parte todos os direitos e garantias fundamentais, seja os de índole
material, seja os de índole formal, a disciplina processual deve se dar por meio de lei em
sentido formal. O Decreto federal nº 6514/2008 é ilegal e inconstitucional, porque não se está
diante da aplicação da novel doutrina dos princípios inteligíveis, bem como por não existir no
direito brasileiro os denominados decretos autônomos ou independentes. Em nosso
ordenamento os regulamentos só podem dar fiel cumprimento à lei ou dispor sobre o
funcionamento e organização da Administração Pública, o que é bem diverso de disciplinar
um processo administrativo para se constituir multas ambientais, por estar em jogo o
patrimônio (propriedade) e liberdades fundamentais do cidadão. Nestes casos, somente podem
vir previsto por meio de decreto normas de apoio ao processo. Portanto, a constituição das
multas ambientais deve ser feita à luz e sob a regência da lei do Processo Administrativo
Federal (9784/99), até que uma lei específica discipline a matéria.
E assim deve ser, pois a lei traz maiores garantias ao cidadão do que o Decreto,
sendo indispensável que haja um processo administrativo para a constituição de multas
ambientais e que essa disciplina se dê por lei formal, para que se tenha por atendido o
paradigma jurídico-constitucional do Estado Democrático de Direito.

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Disponível em:
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em: 28 de mar. 2012.

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28 de mar. 2012.

BRASIL. Decreto nº 6.514, de 22 de julho de 2008.Dispõe sobre as infrações e sanções


administrativas ao meio ambiente, estabelecendo o processo administrativo federal para
apuração dests infrações, e dá outras providências. Disponível
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/D6514.htm Acesso
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BRASIL. Lei nº 8.005, de 22 de março de 1990.Dispõe sobre a cobrança e a atualização dos


créditos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama) e dá outras providências .Disponível em
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8005.htm> Acesso: 28 de mar. 2012.

BRASIL. Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999.Estabelece prazo de prescrição para o


exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, e dá outras
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BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.Dispõe sobre a Política Nacional do Meio


Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.
Disponível em< www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm> Acesso em 28 de mar.
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BRASIL. Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. Fixa normas, nos termos dos
incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 d a Constituição Federal, para a
cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações

441
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das


paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer
de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei n o 6.938, de 31
de agosto de 1981. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp140.htm .
Acesso em 19 de setembro de 2012.
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442
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O REDIMENSIONAMENTO DO ÔNUS DA PROVA NO CONTEXTO DA


SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL E PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL
DO MEIO AMBIENTE.

THE RESIZE THE BURDEN OF PROOF IN THE CONTEXT OF


GLOBAL CORPORATE RISK AND CONSTITUTIONAL PROTECTION
THE ENVIRONMENT.

Marcelo Antonio Theodoro1


Luize Calvi Menegassi Castro2

RESUMO. Na medida em que se percebe que o ecossistema possui limitada capacidade de


suporte e auto sustentação, surge na sociedade a preocupação da concretização do direito
consagrado fundamental pela constituição, qual seja, ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado para a presente e futuras gerações. Para tanto, acurada análise à sociedade global
de riscos em que se encontra inserido o modelo de mercado escolhido se revela necessária,
especialmente em razão dos riscos oriundos das atividades econômicas desenvolvidas, que
muitas vezes se mostram imprevisíveis, ocultos e não descobertos pela comunidade científica.
Nesse contexto, os instrumentos processuais disponíveis devem ser aptos a veicular a matéria
e disponibilizar meios para a sua efetiva proteção, oportunidade em que a possibilidade do
redimensionamento da prova, à luz do princípio da precaução, pode se mostrar veículo
processual capaz de proteger e salvaguardar os direitos ambientais diante das incertezas
científicas e tecnológicas.
PALAVRAS-CHAVE. Meio ambiente; proteção constitucional; direitos fundamentais;
deveres de proteção do estado; sociedade de risco global; incertezas científicas; gestão de
riscos; princípio da prevenção; princípio da precaução; incerteza científica;
redimensionamento da prova; ônus da prova.

ABSTRACT. To the extent that one realizes that the ecosystem has limited capacity to
support and sustain self emerges in society's concern implementation of the fundamental right
guaranteed by the brazilian constitution, which is, to an ecologically balanced environment
for present and future generations. Therefore, accurate analysis of risks to the global society
in which is entered the market model chosen proves necessary, especially given the risks
deriving from economic activities, which often show unpredictable, hidden and undiscovered
by the scientific community. In this context, the procedural tools available to be able to
convey the matter and provide means for their effective protection, at which the possibility of
resizing the evidence in the light of the precautionary principle, procedural vehicle may prove
able to protect and safeguard environmental rights in the face of scientific and technological
uncertainties.
KEY-WORDS. Environment; constitutional protections; rights; duties of state protection;
global risk society; scientific uncertainty; risk management; precautionary principle;
precautionary principle; scientific uncertainty; resizing of proof; the burden of proof.

1
Marcelo Antonio Theodoro. Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR), Professor Adjunto de Graduação e Mestrado em Direito da Universidade Federal do Mato Grosso
(UFMT), Pesquisador do Grupo de Pesquisas “Direito Ambiental e Ecologia Política na sociedade de risco”.
2
Luize Calvi Menegassi Castro. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Candido
Mendes (UCAM), Mestranda em Direito Agroambiental pela Universidade Federal do Estado de Mato Grosso
(UFMT), Professora da Universidade de Cuiabá (UNIC), Advogada.

443
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1 INTRODUÇÃO
Não há dúvidas de que hodiernamente revela-se latente a preocupação da sociedade
para com os danos ambientais ocasionados pelos agentes nocivos oferecidos pelas atividades
desenvolvidas sem consciência socioambiental e apartadas deste atual Estado constitucional
do meio ambiente.
A busca pelo equilíbrio entre o crescimento econômico aliado ao desenvolvimento de
atividades sustentáveis devem sempre nortear tanto os que desenvolvem atividades que
oferecem potencial risco ao meio ambiente, como aqueles que fiscalizam e empreendem a
aplicação dos normativos constitucionais e legais, sob pena de constituir verdadeiro
empecilho à concretização do direito fundamental ao meio ambiente, notadamente no que se
refere à tutela coletiva.
Há uma clara percepção de que a sociedade atual vem avançando de forma
considerável, todavia insuficiente no caminho da preservação dos recursos naturais advindos
do meio ambiente. Isto se deve a exploração desenfreada durante muitas décadas, do mercado
econômico, e ainda em razão do desenvolvimento da sociedade, desaguando na necessidade
de que os instrumentos processuais devessem acompanhar e estar aptos a proporcionar a
proteção efetiva do meio ambiente equilibrado, do qual a sociedade é carecedora.
Assim, é crescente a ideia de que a visão privatista e individualista mostra-se ineficaz
quando da proteção específica do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado para a presente e para as futuras gerações, entretanto, a investigação acerca da
flexibilização das regras do encargo probatório deve ser realizada à luz dos direitos difusos e
da sociedade de risco global em que estamos inseridos.
As reflexões a serem empreendidas possuem a finalidade de analisar a crescente
teoria do ônus dinâmico da prova, de forma a redimensionar e proporcionar instrução
probatória correlata e apta à concretização da proteção ambiental no contexto da sociedade
moderna reflexiva.
Neste ínterim, é sabido, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos
termos da previsão constitucional, retrata desde a promulgação da constituição da Republica
Federativa deste país, a preocupação com a preservação dos recursos ambientais existentes
para as futuras e vindouras gerações. Direito este de caráter eminentemente difuso,
constituindo-se, pois, direito fundamental a todo cidadão.
Nesse sentido, a convicção jurisdicional acerca da distribuição do encargo probatório
ambiental, deve se pautar além dos já mencionados princípios constitucionais, que serão

444
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

oportunamente analisados, mas também pelo dever institucional de promoção da igualdade


substancial entre as partes, sem esquecer que ambas se encontram inseridas e se amoldam à
uma sociedade consubstanciada pela mudança constante e ainda dentro de um contexto de
incertezas.
Outrossim, é sabido que a ideia de constitucionalização do direito provoca verdadeira
“invasão dos direitos fundamentais em todos os ramos”,3 instituto este, se bem interpretado,
mostra-se perfeitamente apto à assegurar à sociedade dos males advindos pela expansão do
mercado de consumo e do desenvolvimento econômico, ainda infelizmente em sua grande
parte, não sustentável, degradante e incerto, reforçando ainda mais a necessidade da
investigação acerca dos instrumentos processuais disponíveis para a concreta proteção e
preservação do meio ambiente.
É premente, pois, de modo crescente a consciência de que o futuro somente será
possível, se respeitados e observados os direitos fundamentais do cidadão, dentre eles o de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Somente uma releitura dos mecanismo processuais e seus respectivos procedimentos
adequados em busca de um efetivo acesso à justiça, compreendido como um “direito
fundamental à tutela jurisdicional adequada e justa”, nas palavras de Marinoni e Mitidiero.4
Assim, o presente artigo analisará o redimensionamento da prova a partir da tutela
constitucional do direito ambiental, no contexto de uma sociedade globalizada gerida pelas
incertezas científicas e tecnológicas, como meio de proporcionar de maneira concreta o
alcance e a fruição dos direitos fundamentais.

2 A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL AO MEIO AMBIENTE


A preocupação com a plena continuidade da vida e a indispensabilidade do meio
ambiente para tal objetivo, culminou em discussão de nível mundial, entretanto, foi
consagrada quando em 1972, em Estocolmo, deliberou-se sobre o status fundamental que o
meio ambiente apresenta para a humanidade, culminando com a codificação do primeiro
princípio na Declaração de Estocolmo, asseverando que:
Princípio 1: O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e
ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de
qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar,

3
SAMPAIO. José Herval Júnior. Direitos fundamentais e estado constitucional In: LEITE, George Salomão,
SARLET, Ingo Wolfgang (coord). Estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais; Coimbra (Pt) : Coimbra Editora, 2009. p. 324.
4
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 627.

445
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as


gerações presentes e futuras. A este respeito, as políticas que promovem ou
perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão
colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira são
condenadas e devem ser eliminadas.

Com isso, a degradação ambiental tornou-se uma preocupação recorrente, o que deu
ensejo a novas discussões, especialmente quanto a necessidade de novos instrumentos legais
que alterassem a visão utilitarista e primitiva da sociedade para uma concepção
preservacionista e capaz de proporcionar à coletividade uma vida digna com o desfrute
responsável dos recursos naturais.
No entanto, no Brasil, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de
1988, já existiam diversas leis esparsas5 objetivando a proteção do meio ambiente, a saber
podem ser citadas a Lei n.4.771/65 que instituiu o Código Florestal, a Lei n. 6.938/81 que
codificou a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e também a Lei n. 7.347/85 que
positivou a ação civil publica, dentre outras que poderiam ser citadas, com o intuito de
conciliar os interesses das varias classes sociais e econômicas e regular as atividades
desenvolvidas pela sociedade.
Neste escopo, a Constituição Federal promulgada em 1988, mais especificamente o
art. 225, caput, c/c o art.5º, §2º, atribuiu à proteção ambiental e – pelo menos em sintonia com
a posição prevalente no seio da doutrina e jurisprudência – o status de direito fundamental do
indivíduo e da coletividade, além de consagrar a proteção ambiental como um dos objetivos
ou tarefas fundamentais do Estado – Socioambiental – de Direito Brasileiro. 6
A constituição vigente ao consagrar que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para
as presentes e futuras gerações, elevou esta garantia ao patamar de direito fundamental e ao
consagrar em si os bens jurídicos relevantes de uma dada sociedade cultural, reflete normas
decorrentes de anseios sociais e culturais, constituindo-se em um verdadeiro “pacto de
gerações”.7
Em verdade, o art.225 da Constituição Federal se revela uma extensão do art.5º,
enquanto conjunto de valores indispensáveis para o desfrute de uma vida digna, e, que via de
consequência estabelecem uma gama de deveres ao Poder Público.
5
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2005. p. 57
6
SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010. p. 13.
7
HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Mexico: UNAM, 2001. p. 15 e ss.

446
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Neste espeque, o texto constitucional vigente possui grande relevância no que se


refere ao surgimento do “constitucionalismo ambiental, especialmente na noção ampliada e
integrada dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”. 8
Assim, no âmbito da legislação positivada no ordenamento jurídico interno,
permeando inicialmente pelos postulados principiológicos consagrados na Constituição
Federal, bem como pela legislação ambiental, a manutenção da biodiversidade está
intimamente atrelada à continuidade da vida, devendo, pois, ser preservada e sustentada tal
como um direito fundamental do individuo e da sociedade.
A noção do constitucionalismo ambiental, especialmente no sentido “ampliado e
integrado dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais”9 é hoje uma realidade
imprescindível, e não pode, de forma alguma, ser ignorada.
A necessidade do desenvolvimento econômico sustentável da população é premente,
reforçando ainda mais a necessidade da utilização das técnicas processuais disponíveis em
nossa legislação para a proteção e preservação do meio ambiente. Urge-se, pois, de modo
crescente a consciência de que o futuro somente será possível, se respeitados e observados os
direitos fundamentais do cidadão, dentre eles o de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
De acordo com Jorge Reis Novais:
Quando o enunciado normativo propõe que o meio ambiente ecologicamente
equilibrado não é apenas um bem, mas também um valor essencial à
qualidade de vida, propõe, na verdade, que essa proteção subjetiva não pode
ser atingida se, primeiro, não forem proporcionadas as condições materiais,
fáticas e normativas indispensáveis para o acesso a esses níveis adequados e
suficientes de vida. 10

Nesse raciocínio, os demais princípios constitucionais, tais como o garantidor do


estado democrático de direito, devido processo legal, razoabilidade e proporcionalidade, bem
como os princípios inerentes do direito ambiental, mas de igual forma previstos pela
Constituição brasileira, a exemplo do desenvolvimento sustentável, prevenção, precaução,
responsabilidade, mínimo existencial ecológico e proibição do retrocesso ecológico,
justificam, pois que o judiciário, no cumprimento de suas funções, empreenda mecanismos
com a finalidade de concretizar os níveis de proteção pactuados pela sociedade,

8
SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010. p. 13.
9
Ibid., p.13.
10
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003. In: AYALA, Patryck de Araújo. Devido processo ambiental e o direito
fundamental ao meio ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 165.

447
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

proporcionando condições concretas de acesso aos direitos fundamentais, in casu, ao meio


ambiente ecologicamente equilibrado.
Por oportuno, os princípios da precaução e da prevenção devem ser interpretados à
luz da proteção constitucional ao meio ambiente, assim, diante de uma premente lesão ao
equilíbrio do meio ambiente, ocasionada através do desenvolvimento de atividade
potencialmente degradante, deve o Estado empreender esforços na intenção de garantir o
direito difuso protegido, a fim de que seja demonstrado que a atividade não representa riscos
ao meio ambiente, através de uma visão sustentável e com intuito de prevencionista.
É neste pensar, e principalmente consubstanciado nos princípios que justificam a
tutela ambiental, dentre eles o da precaução, bem como diante da patente vulnerabilidade do
meio ambiente frente aos agentes nocivos e degradantes no contexto de uma sociedade
gerenciadora de riscos invisíveis e imprevisíveis, os instrumentos processuais disponíveis tais
como o que possibilita a flexibilização das regras do ônus da prova, deve ser interpretado e
aplicado à luz da proteção constitucional ao meio ambiente sadio a todas as gerações, como
forma concreta de proporcionar o alcance e a fruição dos direitos fundamentais.

3 A SOCIEDADE DE RISCO GLOBAL


Em análise à relação existente entre o mercado e o meio ambiente, percebe-se
nitidamente uma linha tênue que interliga os dois elementos, isto porque, as atividades
desenvolvidas pelo homem, em razão do modelo econômico adotado pela sociedade atual,
acarreta na criação de diferentes espécies de riscos para a sociedade, advindos da busca pelo
sucesso tecnológico e industrial.
As atividades desenvolvidas visando o tão almejado progresso, são em sua essência,
produtoras de riscos no campo político, científico, econômico, ecológico e ético, pois quando
o homem as realiza empreende escolhas e se utiliza dos saberes até então identificados.
Assim, todas as atividades, em razão das escolhas realizadas, acarretam a criação de maiores
ou menores riscos, conhecidos ou não conhecidos, à continuidade das futuras gerações.
O Estado possui, portanto, o dever de encontrar meios de gerenciar os riscos
decorrentes das atividades desenvolvidas pelo homem por meio das ações de seus órgãos e
instituições reguladoras, em busca não só de empreender atos preventivos, mas especialmente
imbuídos do intuito precaucional ante as incertezas tecnológicas e científicas que a longo
prazo, quando, e, se descobertas, podem ser irreversíveis para a sociedade.
Justamente em razão dos acontecimentos não previstos ocasionados pelos riscos até
então desconhecidos, verificou-se a transição da sociedade industrial para uma sociedade de

448
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

risco, onde a elevação do risco enquanto elemento estruturante da nossa sociedade resultou
da confrontação com efeitos que, anteriormente, eram inimagináveis e foi ampliada pela
intensificação do estado e da divulgação de informação científica que, em lugar de certezas,
manifesta cada vez mais dúvidas.11
Nesse contexto, o professor alemão Ulrich Beck diante da evidente dificuldade
encontrada pelo Estado em enfrentar a problemática causada pela intenção do progresso
econômico, oferece como solução a análise acurada da sociedade sob um contexto não só de
perigo, mas especialmente da gestão dos seus riscos, que são, em verdade, repartidos pela
coletividade.
No entanto, antes da análise da sociedade de riscos, faz-se necessário diferenciá-lo
do perigo, pois estes, “enquanto circunstâncias fáticas, naturais ou não, que sempre
ameaçaram as sociedades humanas”,12 traduzem-se nos desastres naturais, pragas, dentre
outros acontecimentos que não se pode, em hipótese alguma, entabular previsões ou
probabilidades.
De outra banda, o risco traz consigo a ideia da probabilidade, do cálculo, do controle,
pois é o produto das escolhas do homem. Com o crescimento e a inovação tecnológica, as
atividades produzidas, de qualquer ordem, seja científica, social, institucional ou política, são
empreendidas através das escolhas, e com isso, vem a responsabilidade e as consequências
dessas opções, pela própria atividade a ser desenvolvida ou inclusive sobre a maneira de
realizá-la.
Assim, na concepção de Ulrich Beck13, os riscos são artificiais, no sentido de que são
produzidos pela atividade do homem e vinculados a uma decisão deste, como um resultado da
intervenção humana nas incertezas e nos perigos.
Desenvolvendo a ideia da sociedade mundial do risco, o contexto social vivido deve
ser dividido em duas fases, a saber, primeira e segunda modernidade. A primeira modernidade
se traduz pela fase industrial já vivida pela sociedade, onde a existência da autoridade
científica era capaz de eliminar os riscos advindos da atividade industrial por meio de
procedimentos de cálculos, avaliações de probabilidade e científicas, tendo como parâmetro
de representação do risco o acidente.14

11
AYALA, Patryck de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental na sociedade de risco. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.18
12
GOLDBLATT, David. Teoria social e ambiente. Lisboa: Piaget, 1996. p.231.
13
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
passim.
14
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. op.cit.passim.

449
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Essa perspectiva do risco foi totalmente alterada quando se constatou que “os riscos
da sociedade moderna, sendo, pois, os sociais, políticos, ecológicos e individuais advindos da
inovação tecnológica, escapam das instituições de controle e proteção da sociedade
industrial”,15 surgindo assim, a segunda modernidade, chamada de modernidade reflexiva,
tendo como referencial os macro perigos, imprevisíveis e incontroláveis.
Justamente neste contexto, com a proximidade entre os países industriais,
crescimento da classe média, e, consequentemente com o aumento do consumo na sociedade
aconteceu a transição da sociedade industrial, assim, onde existiam perigos e riscos
previsíveis e controláveis, deparou-se com riscos nunca antes previstos e incontroláveis, tanto
para a indústria como para o Estado. Surgindo então, a preocupação de como proporcionar
segurança para a presente, bem como, para as futuras gerações diante de contextos de
imprevisibilidade.
Neste sentir, em análise à mencionada transição, as ameaças trazidas pelo
desenvolvimento tecnológico ecoam no fenômeno nominado de irresponsabilidade
organizada,16 que seria, em suma, a sensação de impotência diante do risco desconhecido.
José Morato Leite e Patryck Ayla17 observam a existência de uma linha de evolução
retilínea onde incialmente corre-se perigo, depois pode-se enfim saber que se corre perigo e
conhecer o estado de periculosidade (risco) e terminando por assumir, finalmente, a
representação do estado de impotência perante o risco, inexistindo maneiras de se evitar ou
diminuir a probabilidade de sua ocorrência (irresponsabilidade organizada).
Assim, a sociedade moderna se caracteriza pela existência dos riscos, sendo, pois, de
primeira ordem a necessidade de tutelá-los, deixando um pouco de lado a ideia da liberdade e
do bem-estar social, ambos advindos do Estado de direito.
Impõe-se, na verdade uma nova leitura, uma nova maneira de enfrentar os percalços
trazidos pelo desconhecido, em especial uma nova forma de ação dos órgãos responsáveis,
dos institutos disponíveis no Estado para o gerenciamento desses riscos, uma vez que a
sociedade moderna reconheceu a insuficiência e a ineficiência da tecnologia e da
racionalidade científica como instrumentos de produção das posições de segurança coletiva.18

15
BECK, Ulrich. La invención de ló político. Para uma teoria de La modernización reflexiva. Tradução de
Irene Merzani. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1999. p.32.
16
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. . 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
passim.
17
AYALA, Patryck de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental na sociedade de risco. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.14.
18
Ibid., p.16.

450
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Diante da compreensão dos riscos, bem como da gestão desses riscos, a análise deve
ser mais profunda quando se questiona acerca dos níveis aceitáveis de risco que a sociedade
aquiesce em se submeter, quando a discussão ganha contornos populares e especialmente
políticos.
Em verdade, deve-se ter em mente, que quando se fala em avaliar os níveis de
proteção e os riscos que a sociedade vai aceitar se submeter em nome do progresso científico,
tecnológico e do desenvolvimento econômico, esta discussão compreende equilibrar e
equacionar os interesses das classes industriais e sociais, e sem embargos, tal tarefa se revela
uma grande missão social e política.
Entretanto, não se pode olvidar que o papel estatal no que se refere à análise da ética,
da moralidade, conceitos estes essenciais para a aceitação dos riscos, muitas vezes são
ignorados em nome da necessidade estatal de arrecadação, manutenção do desenvolvimento
econômico e de determinados seguimentos, oportunidade em que se verifica a atuação do
poder jurisdicional para o restabelecimento dos parâmetros e análises condizentes com os
níveis de proteção e riscos permitidos pela sociedade.
Especialmente quando se trata do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito
este consagrado a todo o cidadão por força constitucional, retoma-se a ideia da linha tênue
existente entre o desenvolvimento econômico e o meio ambiente, ante as escolhas realizadas
inclusive pelo próprio Estado, em busca do progresso tecnológico, científico. Vê-se instalada,
portanto, uma crise ambiental, quando não se compreende o alcance normativo do disposto no
Art.170, caput, inciso VI da carta magna, que assegura o desenvolvimento econômico por
meio de uma existência digna, da justiça social e pautada na defesa do meio ambiente.
Diante deste impasse e dentro de um contexto de sociedade de risco, extraí-se do
normativo que as escolhas estatais políticas, bem como o desenvolvimento do mercado devem
que ser pautados na existência digna e da justiça social, conceitos esses que permeiam e se
entrelaçam com as escolhas éticas e morais que a sociedade faz dos níveis aceitáveis dos
riscos.
Assim, as sociedades de risco se valem dos chamados “limites de tolerabilidade, ou
seja, as externalidades negativas são muitas vezes considerados riscos socialmente toleráveis,
em virtude de o risco constituir o padrão da sociedade normal”,19 sendo, pois, imprescindível
que sejam estabelecidos formas de controle, limites para o crescimento econômico.

19
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2005. p. 193.

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Nesse contexto, considerando que as escolhas estatais dos níveis de proteção do meio
ambiente e dos riscos que serão assumidos pela coletividade passam pelos conceitos da ética,
da moralidade, e principalmente da necessidade do debate esclarecido no seio da sociedade,
muitas vezes, a função judicial no contexto do Estado de Direito deve ser ampliada, a fim de
que os interesses da sociedade quando não preservados pelos instrumentos estatais e
administrativos, possa a jurisdição avaliar e garantir o nível de proteção pretendido pela
sociedade para a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado para a presente e
para as futuras gerações.

4 O PROCESSO JUDICIAL (CONSTITUCIONAL) AMBIENTAL COMO MEIO DE


ACESSO À JUSTIÇA AMBIENTAL
Não há como negar que nesse novo milênio, a evolução dos direitos fundamentais,
como reafirmação interna dos direitos humanos, ganha contornos amplos e em busca de uma
concretização, abarcando todas as chamadas gerações de direitos fundamentais.
Na lição de Pérez Luño, “como um sistema de valores dotados de uma unidade de
sentido”,20 que permite o assentamento da afirmação solene da dignidade da pessoa.
Por outro turno, essa unidade axiológica ainda segundo o professor da Universidade
de Sevilha, “responde a uma estrutura aberta e dinâmica, corolário do pluralismo político”,21
que da mesma forma pode ser encontrado no sistema constitucional, como valor superior
(fundamental).
Neste sentido, se deve Peter Harbele, propõe um processo de interpretação
constitucional que envolva todos “as potências públicas participantes materiais do processo
social”.22 Desta feita, seguindo na trilha intencionada por Harbele, a interpretação é feita por
todos os atores sociais que vivem a norma, mesmo que de forma inconsciente, implicando
numa “interpretação constitucional antecipada”.23
Há, portanto, um claro deslocamento do direito constitucional, de um sistema
fechado, e, de vocação interpretativa unívoca, para um sistema aberto e pluralista que permite
a solução dos conflitos de maneira ampla, além do amparo exclusivamente juridiscional.

20
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Perspectivas e Tendências Atuais do Estado Constitucional. Trad. José
Luis Bolzan de Morais, Valéria Ribas do Nascimento. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012 p.17
21
Ibid., p. 17.
22
HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre. Sérgio Antonio Fabris Editor,1997. p. 13.
23
Ibid., p. 14

452
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Luño afirma que se estaria diante do “status activus procesualis”24 como um


complemento da famosa classificação de Jellinek, permeando a atuação jurisdicional da
participação decisiva dos indivíduos nos procedimentos que a afetam.
Desta maneira, a nova visão do processo constitucional, como meio de proteção dos
interesses difusos, perpassa pela participação ativa da sociedade, através das garantias
constitucionais de índole instrumental, como por exemplo, a Ação Popular, prevista no art. 5º
LIII da Constituição Brasileira, que expressamente cataloga o meio ambiente como direito
fundamental.
O reconhecimento da fundamentabilidade do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado é decorrência desta visão ampla e pluralista dos direitos
fundamentais, e desta forma, o direito ao meio ambiente, não pode prescindir das garantias
constitucionais a ele dispostas ao largo do texto constitucional, também representados pelo
que Paulo Afonso Leme Machado chama de “direito ao processo judicial ambiental”.25
Diante desta tendência reconhecida, e ainda, diante do contexto da sociedade de risco
em que estamos inseridos, é preciso dimensionar, que espécie de tutela processual ambiental
se deseja, ou melhor, se apresenta como capaz de dar efetividade à proteção ambiental.
Neste curso, não se pode esquecer da lição de Bryan Garth e Mauro Cappelletti26 na
célebre obra intitulada Acesso à Justiça, resultado do famoso Projeto Florença.
Os autores problematizaram os resultados de um processo calcado na experiência
individualista e seus mecanismos convencionais, cujos procedimentos não atendem a
expectativa de concretude da prestação jurisdicional justa, mas quando muito, do mero
formalismo da atuação jurisdicional do Estado.
Desta forma, “há necessidade de novos mecanismos procedimentais que tornem
esses direitos exequíveis”.27 Neste ínterim, os autores identificam vantagens que podem ser
obtidas ao se implementar tais mecanismos diferenciados dos tradicionais, como por exemplo:
a) a exploração de uma ampla variedade de reformas de forma a adaptar o
dinamismo da sociedade à possibilidade de busca de suas soluções que
podem não vir do direito como instituição do Estado simplesmente; b)
adequação das normas processuais aos tipos de litígios, de modo a superar as
complexidades inerentes a complexidade de cada caso; c) levar em
consideração as partes no processo, diante das suas peculiaridades e

24
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Op.cit. p. 21.
25
MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12.ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 116.
26
CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. 1a. ed. 2002. Trad. Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1988. passim.
27
Ibid., p.69.

453
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

potencialidades de resolução dos conflitos por diferentes focos, como a


barganha,experiência e outros fatores28.

Finalmente ressaltam os autores, “deve-se levar em conta também que o resultado de


uma demanda de interesse difuso possui repercussões individuais e coletivas”.29 Assim, há
necessidade de separar as duas dimensões tendo em vista as diferentes implicações.
Deste modo, “o acesso à justiça deve levar em conta todos os fatores mencionados,
demonstrando, pois, a necessidade desse novo enfoque para a realidade em que vivemos”.30
Esta reflexão importante permite desenvolver uma análise pontual, acerca do
instituto do ônus da prova, e de sua releitura a partir da perspectiva da proteção ambiental,
perpassando pelo princípio da precaução no contexto da sociedade de risco.
Neste ponto, entre o reconhecimento de que a constituição brasileira preconiza um
sistema aberto e pluralista, e ainda, que o processo, visto pelo prisma da efetividade da
prestação jurisdicional, a rediscussão dos procedimentos aplicados no processo ambiental,
ganha fôlego. E essa rediscussão, deve partir dos princípios que informam o chamado Estado
de Direito Ambiental, notadamente o princípio da precaução, e a consequente defesa, de uma
mudança de perspectiva, ou seja, redimensionamento do instituto processual do ônus da
prova.
Naturalmente o objetivo deste redimensionamento é a busca da “tutela jurisdicional,
adequada e justa”, para alcançar a efetividade da proteção ao direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.

5 O REDIMENSIONAMENTO DO ÔNUS DA PROVA


Estamos diante de um novo modelo de organização social, onde as atividades são
exercidas pelo homem em prol do desenvolvimento da sociedade, entretanto, os riscos são
desconhecidos, incertos e imprevisíveis, dando ensejo a preocupação com os padrões de
segurança oferecidos ao meio ambiente pela estrutura governamental.
Neste ínterim, a invisibilidade e o anonimato dos estados de risco e de perigo
revelam seu aspecto mais nocivo e dogmaticamente mais tormentoso como problema a ser
suportado e enfrentado pelas futuras gerações31, que obstaculizam a concretização da proteção
ambiental. E mais, José Morato Leite e Patryck Ayla dissertam que:

28
CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. 1a. ed. 2002. Trad. Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1988. p.69.
29
Ibid., 69.
30
Ibid., p.71-73.
31
AYALA, Patryck de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental na sociedade de risco. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.104.

454
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Os problemas dogmáticos que derivam da apreciação concreta dos efeitos da


irresponsabilidade organizada permitem afirmar não que as sociedades
contemporâneas não sabem lidar com os problemas oriundos do risco, ou
não sabem conviver com os riscos, ou que não estão cientes dos problemas
produzidos pelo risco, mas que, conhecendo ou não as consequências
concretas desse ou daquele risco, conhecem a existência de riscos, e não
oferecem propostas idôneas a lidar com os mesmos.32

Ainda, diante da sociedade moderna reflexiva, da fragilidade anunciada do meio


ambiente diante dos agentes nocivos, e, primando por empreender eficácia material aos
preceitos constitucionais, resta imprescindível compreender os instrumentos processuais
disponíveis na tutela jurisdicional ambiental estruturantes da almejada proteção.
Neste diapasão, inserido em uma sociedade de risco global, visando a facilitação e,
concretização de mecanismos capazes de oferecer à sociedade o acesso e a fruição plena – em
sua concepção material - do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, necessária se faz à análise do redimensionamento da prova enquanto um
instrumento da gestão dos riscos na sociedade moderna, utilizando-se de padrões de
racionalidade e segurança, visando assim, a prevenção e a precaução à problematização da
degradação ambiental.
Para tanto, os princípios da prevenção e da precaução se revelam pilares dos novos
modelos de atuação coletiva, como princípios estruturantes, essências do direito ambiental33,
uma nova roupagem às relações do conhecimento em um contexto de insegurança e
imprevisibilidade.
Assim, o princípio da prevenção busca a supressão ou minoração dos efeitos danosos
que já se conhecem, ou seja, se presta a atenuar e resolver o que a ciência já diagnosticou
através de estudos, identificando os efeitos negativos e exigindo condutas específicas e
destinadas para evitar as suas consequências danosas por meio de políticas públicas e
instrumentos administrativos e jurisdicionais.
No que respeita aos seus instrumentos, na seara administrativa podem ser citados o
licenciamento ambiental, estudo prévio de impacto ambiental, zoneamento industrial, sanções
administrativas de interdição de atividade, manejo ecológico, auditorias e gestões ambientais.
Já no que toca aos instrumentos jurisdicionais, as tutelas de urgência, sejam de efeito
mandamental ou executivo, ação civil pública e a ação popular veem desempenhando bem a
função imprescindível de prevenir os danos resultantes das atividades já conhecidas e

32 32
AYALA, Patryck de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental na sociedade de risco. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.16.
33
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2. ed., São Paulo: Editora Max Limonad, 2001, p.169.

455
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

confirmadas como degradantes e poluidoras, especialmente quando os mecanismos


administrativos falham.
Agindo em momento e contexto distinto, o princípio da precaução enfrenta a
incerteza dos saberes científicos, labuta em terreno desconhecido, por meio de previsões e
probabilidades incertas quanto a existência de risco, pauta-se na possibilidade de dano diante
de perigos abstratos.
A ideia da precaução é uma reformulação da exigência cartesiana da necessidade de
uma dúvida metódica. Ela revela uma ética da decisão necessária em um contexto de
incerteza,34 isto porque, somente em análise pautada na moralidade e na ética, pode-se avaliar
o contexto de incertezas em que a atividade desenvolvida se verifica, qual a possibilidade das
condutas humanas acarretarem danos ambientais muitas vezes irreversíveis, e ainda, avaliar a
ausência de evidências científicas, estudos, e verificações quanto aos efeitos futuros tanto para
o meio ambiente, quanto para os seres humanos.
Assim, quando se está diante de atividades em que os seus efeitos ainda são incertos
e desconhecidos aos especialistas confiados em seus saberes, o exercício ativo da dúvida é
sempre um bom aliado e induz instintivamente as condutas imbuídas pela precaução, ou seja,
atuar mesmo diante da ausência de certeza científica.
Deve se ter em mente, que ambos os princípios da prevenção e da precaução não se
repelem, pelo contrário, os referidos postulados devem ser aplicados de maneira conjunta,
complementar, considerando que uma mesma atividade econômica desenvolvida pode envidar
perigos concretos e abstratos, sendo que este último clama pela transparência dos entes
governamentais no que tange ao esclarecimento da população e ao debate público que deve
ser realizado, para que a sociedade possa avaliar e optar o modelo de proteção e o nível de
risco que se sujeitará.
Neste ponto, a problemática ganha contorno complexo vez que se o perigo já é
conhecido, as discussões acontecem dentro dos corredores científicos, entretanto, se o perigo
é abstrato, portanto, invisível, incerto, não há estudo probabilístico que auxilie ou impeça a
ocorrência dos danos futuros, surgindo assim, a necessidade da atuação não só do poder
estatal, mas também da sociedade, para avaliar e identificar a proteção desejada.
No entanto, justamente diante da necessidade da atuação da sociedade para apontar
os riscos que pretendem assumir, muitas vezes as informações sobre as atividades não são

34
LASCOUNE, P. La précaution um noveau satndart de jujement. In: Espirit, Nov.,1997,p.131. Apud:
BERGEL, Salvador. El princípio precautorio y La transgenis de lãs variedades vegetales. In: BERGEL,
Salvador; DIAZ, Alberto. Biotecnologia y sociedade. Buenos Aires: Ciudad Argentina,2001.p.77.

456
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

repassadas a contento, os instrumentos estatais falham (justamente porque foram feitos para
prevenir os perigos já conhecidos), e o poder judiciário ganha campo para atuar, vez que é
invocado a se retirar do estado inerte para restabelecer o equilíbrio das relações e atender aos
comandos constitucionais de proteção ao meio ambiente mesmo diante de um contexto de
incertezas.
Assim, almejando a concretização da proteção constitucional do meio ambiente no
seio da sociedade de risco global, diante das atividades com potenciais degradantes
desconhecidos, o poder jurisdicional deve se valer dos postulados principiológicos e legais
para concretizar a proteção que se espera, e para tanto, à luz dos princípios da prevenção e da
precaução, vê-se a introdução de técnicas que visam à facilitação ou à superação das
dificuldades da demonstração do nexo de causalidade para o estabelecimento da relação de
imputação do dano ambiental, onde o principal deles é representado pela inversão do ônus da
prova, típico recurso de índole precaucional.35
Observa-se, então, que o poder jurisdicional para garantir o nível de proteção
pretendido pela sociedade diante do desconhecido, se vale especialmente do princípio da
precaução para justificar a utilização de técnicas que facilitem a obtenção da proteção, uma
vez que o contexto de probabilidade indicia perigo abstrato e incerto que pode ocasionar
desastres de grande monta, especialmente quando se tratam de atividades radioativas,
modificações genéticas e outras que acarretam maior grau de periculosidade invisível.
O professor Oliver Godard explica que a cada momento vivido pela sociedade, “o
conjunto de exigências pesa sobre as medidas a serem tomadas, devendo, pois, serem
proporcionais ao nível de proteção desejado, no estado dos conhecimentos disponíveis e
reversíveis, e sempre coerentes”.36
Com o fito de primar pela aplicação desigual dos regramentos legais, quando
evidenciada a desigualdade das partes, in casu, o meio ambiente vulnerável frente aos agentes
nocivos provocados pelas atividades do homem, o redimensionamento do encargo probatório
conduz à flexibilização do ônus, e, permite ao judicante “avaliar qual das partes está em
melhores condições de produzir determinada prova”.37

35
AYALA, Patryck de Araújo; LEITE, José Rubens Morato. Direito ambiental na sociedade de risco. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p.154.
36
GODARD, Olivier. O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais. In:
VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flavia Barros (orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004. p. 169.
37
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e o meio ambiente. São Paulo: Forense Universitária,
2003, p. 208 – 21.

457
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Quando se trata de incerteza científica da atividade supostamente poluidora, é o


princípio da precaução ambiental que determina que “o ônus de provar que os danos advindos
ao meio ambiente não são do suposto poluidor a este cabe, de modo que a dúvida é sempre em
prol do meio ambiente”.38
Deste modo, o princípio da precaução, em suma, significa contínuo cuidado, zelo
para com o meio ambiente, devendo ser interpretado e aceito como uma bússola norteadora do
desenvolvimento e aplicação concreta das políticas públicas, uma vez que pretende em sua
essência, que sejam implementadas medidas com o fito de afastar o risco de lesão ambiental,
ainda que não se tenha qualquer certeza de ordem científica acerca do suposto agente nocivo.
De mais a mais, sendo o direito à prova um desdobramento do devido processo legal
e elemento de garantia constitucional de ação e ampla defesa, merece atenção especial do
julgador, especialmente quando se esta diante de um direito fundamental do indivíduo, difuso
e intergeracional intimamente ligado à dignidade e ao bem-estar.
Desta feita, o ato de provar, direito este garantido pelo ordenamento jurídico, é
inequivocadamente, respaldado pelos princípios constitucionais da ampla defesa e do
contraditório. E partindo desse pressuposto, nos termos da lição de Artur Carpes:
Pensar o processo à luz dos direitos fundamentais postula, nesse sentido, a
compreensão do direito ao processo justo como o mais fundamental dos
direitos, na medida em que imprescindível para a tutela dos direitos
fundamentais materiais. 39

Fredier Didier Jr. ensina em sua obra que a importância da função principiológica
dos postulados é inequívoca, apresentando uma função de início ou origem, “também
chamado de verdades primeiras, são o ápice do sistema, as premissas das quais por extração
dedutiva, em uma cadeia fechada de silogismos, se extrairiam as demais normas”.40
Em estudo ao ordenamento vigente, vislumbra-se que a repartição do encargo
probatório é “a espinha dorsal do processo”41, e, nesse sentido, o Código Processual Civil
prevê em seu art.333 a teoria estática do encargo probatório, em suma, incumbe ao autor,
quanto ao fato constitutivo do seu direito, e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo,
modificativo ou extintivo do direito do autor. Assim, no entendimento de José Frederico

3838
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública e o meio ambiente. São Paulo: Forense Universitária,
2003, p.21.
39
CARPES, Artur. Ônus dinâmico da prova. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 44.
40
DIDIER, Fredie Jr; ZANETI, Hermes Jr. Curso de direito processual civil. Vol. 4. Salvador: JusPodivm,
2011. p. 101.
41
ROSENBERG, Leo. La carga de la prueba. Trad. Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: Ejea, 1956. p. 55.

458
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Marques, “o ônus de provar, sob o enfoque da teoria imutável, compreende a necessidade de


provar para vencer a causa”.42
Neste caminhar e segundo a sua concepção objetiva, a lição de Fredier Didier e
Hermes Zaneti Jr. ensina que:
O ônus da prova é uma regra dirigida ao juiz (uma regra de julgamento,
portanto), que indica como ele deverá julgar caso não encontre a prova dos
fatos; que indica qual das partes deverá suportar os riscos advindos do mau
êxito na atividade probatória. 43

Não obstante a prevalência da teoria rígida do encargo probatório vem sendo


superada, restando crescente a ideia do redimensionamento do encargo probatório, com o fito
exclusivo na obtenção da verdade real.
Assim, passa-se ao estudo e à compreensão do redimensionamento do ônus da prova,
enquanto mecanismo potencialmente capaz de proporcionar equilíbrio entre as partes quando
se está diante de atividade econômica geradora de perigos abstratos e desconhecidos.
Vejamos.
Vem sendo admitida a possibilidade da distribuição dinâmica do ônus de provar, ou
seja, sob uma análise do caso em concreto, imputar o ônus à parte que no momento dispõe de
melhor condição probatória técnica e informacional da questão debatida.
Advinda do direito comparado, mais precisamente, do direito argentino, a referida
teoria, teve como percussores Jorge W. Peyrano e Inés Lépori White, que assim dissertam e
sua obra:
A chamada doutrina das cargas probatórias dinâmicas pode e deve ser
utilizada pelo Judiciário em determinadas situações em que não forem
adequadas e válidas as previsões legais que repartam os encargos
probatórios. Sem importar-se com a condição da parte, seja autor ou réu, ou
com a natureza dos fatos – constitutivos, impeditivos, modificativos ou
extintivos – o ônus probandi é deslocado e recai sobre a cabeça que estiver
em melhores condições técnicas, profissionais ou fáticas para produção de
provas. 44

Sergio José Barberio dispõe que:


Propõe-se a flexibilização do esquema básico, ou a dinamização daquele
módulo estático previsto na lei, em determinados casos concretos,
especialmente naqueles em que, face as suas peculiaridades, a prova se torna
excessivamente difícil para a parte onerada. 45

42
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1987. p.187.
43
DIDIER, Fredie Jr; ZANETI, Hermes Jr., op. cit. p. 76.
44
PEYRANO, Jorge W. LEPORI WHITE, Inés (org.). Cargas probatórias dinâmicas. Santa Fé: Rubinzal-
Culzoni, 2008. p. 20.
45
BARBERIO, Sergio José. Cargas. In: PEYRANO, Jorge W. LEPORI WHITE, Inés., op.cit. p. 103.

459
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Entretanto, vale asseverar que a admissão da mencionada teoria, nem de longe


pretende com isso revogar o sistema do direito positivo, mas de complementá-lo à luz dos
princípios inspirados no ideal de um processo justo, comprometido, sobretudo com a verdade
real e com os deveres de boa-fé e lealdade que transformam os litigantes em “cooperadores do
juiz no aprimoramento da boa prestação jurisdicional”,46 especialmente quando se tem à baila
litígios afetos à atividades com consequências para a sociedade e para o meio ambiente de
perigo abstrato, invisível, desconhecido.
Desta feita, tem se questionado se, o ônus de provar, que nasceu de uma concepção
privatista e individual, hodiernamente se mostra capaz de tutelar direitos difusos,
especialmente quando se refere a um direito pertencente ao indivíduo, mas também à
coletividade, e, diante de uma prova negativa, ou como desenvolvida pela doutrina, diabólica,
dentro do contexto de riscos que esta nova modalidade de sociedade impõe.
Acerca da prova diabólica, os ilustres juristas Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e
Rafael Oliveira consideram que a prova diabólica é aquela que é impossível, senão muito
difícil, de ser produzida.47 O mencionado professor cita em sua obra dizeres de Alexandre
Freitas Câmara no sentido de que prova diabólica ou negativa é expressão que se encontra na
doutrina para fazer referência àqueles casos em que a prova da veracidade da alegação a
respeito de um fato é extremamente difícil, nenhum meio de prova sendo capaz de permitir tal
demonstração. 48
E este, é justamente o ponto nodal que justifica a realização de uma releitura da
distribuição do ônus da prova, de forma a flexibilizá-la e distribuí-la da melhor maneira
possível nas demandas relacionadas à proteção constitucional do meio ambiente dentro do
contexto da sociedade de risco global.
Esta nova visão do ônus de provar pretende “uma melhor concretização do sistema
processual civil à luz do modelo constitucional, sendo, pois, a existência de um direito
fundamental à prova”49 já que uma das partes pode ser ver impossibilitada de produzi-la.

46
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual
civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 436.
47
DIDIER JUNIOR, Fredier; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil.
Vol. 4. Salvador: JusPodivm, 2011. p. 92.
48
CÂMARA, Alexandre Freitas. Doenças preexistentes e ônus da prova: o problema da prova diabólica e uma
possível solução. Revista dialética de direito processual. São Paulo: Dialética, 2005, n.31, p.12. In: DIDIER,
Fredie Didier Jr; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. op. cit. p. 92.
49
BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum, 2:
tomo I, 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 276.

460
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

E negar a redistribuição isonômica do encargo probatório seria o mesmo que negar o


direito à produção de prova, medida esta apartada do espírito emanado pelos direitos
fundamentais previstos na Constituição Federal.
Interessante realizar o registro de que com a promulgação do Código de Defesa do
Consumidor, houve inovação no que se refere à atividade probatória no âmbito consumerista.
O regramento advindo para salvaguardar o art.5º, XXXII, da Constituição Federal, que
consagrou o dever do Estado em promover, na forma da lei, a defesa do consumidor, visando
assim, equilibrar as relações de consumo, previu em seu art. 6º, VIII como direito básico do
consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímil a alegação ou
quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.
Em verdade, a teoria ora analisada não se trata do mesmo instituto positivado na lei
consumerista, especialmente porque do redimensionamento não ocorre realmente uma
inversão, proporciona a redistribuição do encargo probatório ante a sua patente
vulnerabilidade material, um verdadeiro acalento processual quando o julgador analisa qual
das partes naquele momento possui melhores condições informacionais, científicas e
tecnológicas de produzir a prova, seja porque não possui condições financeiras de produzir
elementos probatórios ou porque não possui ou se mostra impossível produzir documentação
hábil a demonstrar o alegado se não conhece a fundo a atividade desenvolvida.
De mais a mais, constata-se que em situações afetas ao meio ambiente, “a incerteza é
o pressuposto que move a adoção das medidas de precaução, que são justificadas exatamente
a partir de situações de risco não provado ou não demonstrado de forma suficiente”.50 Assim,
o que se pretende com o surgimento e perfeita implantação do princípio da precaução, é a
proibição do desenvolvimento de qualquer atividade que possa degradar o espaço ambiental.
Ademais, ainda que diante dos riscos invisíveis, e considerando a inexistência de
fronteiras para as consequências dos danos ambientais, todos os Estados Nacionais possuem o
compromisso doméstico e internacional de buscar meios que sejam eficazes e
economicamente viáveis para a prevenção da degradação ambiental, vedando-se a
postergação de posturas.51

50
AYALA, Patryck de Araújo. Princípio da precaução na constituição brasileira: aspectos da proteção jurídica da
fauna. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira & IRIGARAY, Carlos Teodoro José Hugueney (orgs.). Novas
perspectivas do direito ambiental brasileiro: visões interdisciplinares. Cuiabá: Cathedral, 2009. p.139.
51
AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução como impedimento constitucional à produção de
impactos ambientais. In: "A priori". Disponível em: <a href=http://www.apriori.com.br>. Acesso em: 14 fev.
2012.

461
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Defende a aplicação da redistribuição dinâmica do encargo probatório, o


processualista Luiz Guilherme Marinoni questionando inclusive a restrição da técnica da
inversão do ônus da prova aos casos expressamente previstos em lei, justificando que a sua
aplicação deve ser possível toda vez em que a adequada tutela da situação material o exigir.52
Oliver Godard expõe em seus ensinamentos que as medidas aplicadas pelo judiciário
fundadas sobre o princípio da precaução devem sempre ser proporcionais ao nível de proteção
procurado (pois em muitos casos a proibição total torna-se a única resposta possível para um
determinado risco), devendo:
As ações serem coerentes com as medidas similares já adotadas em campos
equivalentes em que são disponíveis os dados científicos, aceitabilidade da
população e das suas prioridades, serem reexaminados à luz de novos dados
científicos, e, devem ser capazes de atribuir a responsabilidade de produzir
provas científicas necessárias para permitir uma avaliação mais completa do
risco, pois quando existem procedimentos de autorização para exercer a
atividade a responsabilidade recai sobre as empresas exercentes, quando
inexistem procedimentos, pode recair sobre os poderes públicos, sobre os
usuários, produtores ou importadores, sem que isso se torne uma regra
geral.53

Desta forma, vê-se claramente do pensamento exposto, que a intenção não é engessar
a atividade probatória com imputações de responsabilidades para cada situação, o caminho na
verdade, se revela totalmente contrário, é de a cada caso posto sob exame, o julgador poderá
fundado do princípio da precaução analisar todos os elementos que compõe o litígio, e,
mediante decisão baseada na ética e na moralidade estabelecer os encargos pertencentes a
cada parte.
E conclui o professor afirmando que “o princípio da precaução não consiste em
inverter o ônus da prova, concepção paradoxalmente marcada por um cientificismo arcaico,
mas em organizar a prevenção dos riscos em relação à evidência de prova, esta podendo ser a
favor ou contra”.54
Não deve ser desconsiderado que afastar o dano ambiental e a degradação do meio
ambiente, em si mesmo, é um elemento decisivo em qualquer regime construído sobre o

52
MARINONI, Luiz Guilherme. Formação da convicção e inversão do ônus da prova segundo as
peculiaridades do caso concreto. Disponível em: < http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/2201> Acesso em:
14 fev. 2012.
53
GODARD, Olivier. O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais. In:
VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flavia Barros (orgs.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del
Rey, p.168.
54
GODARD, Olivier. O princípio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais. In:
VARELLA, Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flavia Barros (orgs.). op. cit. p.168.

462
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

princípio do desenvolvimento sustentável, uma vez que ideia da sustentabilidade pressupõe o


afastamento de danos irreversíveis ou degradação.
A aplicação de um direito ambiental constitucionalizado, que visa a concretização da
proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deve ser moldado com base em
decisões éticas, responsáveis, tolerantes e sob as luzes da dignidade da pessoa humana e do
bem-estar social.
E a reflexão do princípio da precaução dentro da sociedade de risco global se revela
fio condutor para a concretização da proteção desejada, dimensionando o ônus de provar de
forma justa e equilibrada, tornando a atividade probatória embuída de segurança jurídica e
ampla defesa.
Desta forma, neste novo modelo de organização social, pode-se afirmar que nenhuma
atividade econômica poderá ser desenvolvida sem as cautelas ambientais, e, cabe ao julgador,
no âmago das suas funções jurisdicionais identificar as provas que devem ser realizadas para
investigar os perigos abstratos e os potenciais prejuízos e agressões ao meio ambiente, a fim
de redimensionar os encargos probatório de acordo com as potencialidades científicas e
tecnológicas das partes.
Por derradeiro, resta latente que a efetividade da proteção constitucional conferida ao
meio ambiente, e, consequentemente ao direito ambiental, para que seja concreta deve passar
por acurada gestão dos riscos, e nesta trilha de pensar, o redimensionamento do ônus da
prova, à luz do princípio da precaução, pode atuar como um instrumento da gestão dos riscos
na sociedade moderna, por meio de padrões de racionalidade e segurança.

5 CONCLUSÕES
Diante da análise empreendida neste estudo, pode se concluir que:
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental
consagrado nos principais diplomas constitucionais ocidentais, inclusive na Constituição
Federal de 1988.
Todavia a previsão expressa na Constituição em que pese a relevância para o
surgimento do constitucionalismo ambiental, carece ser efetivada à luz dos princípios
informadores do direito ambiental, igualmente previstos na constituição, entre os quais se
destacam os princípios da precaução e da prevenção.
Neste sentido também é de se entender que a sociedade atual, passou de uma
sociedade industrial para uma sociedade de riscos, vez que o desenvolvimento econômico e o

463
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

progresso da humanidade trouxe consigo riscos decorrentes dessa busca desenfreada pelo
desenvolvimento industrial, tecnológico, científico, entre outros.
Não se pode ignorar, portanto, os perigos ainda que abstratos, e os riscos produzidos
com o desenvolvimento econômico, bem como os decorrentes da utilização não sustentável
dos recursos naturais pela sociedade, surgindo, então a necessidade de regulamentação das
atividades por meio de instrumentos capazes de compreender a vulnerabilidade do meio
ambiente, bem como o nível de proteção a ser adotado pela coletividade.
O Estado, nesta quadra, podendo ser considerado um Estado de Direito Ambiental,
ou simplesmente um Estado Ambiental no pensar do direito germânico, incorporado aos
Estados que vem reconhecendo a fundamentabilidade do direito ao meio ambiente, deve ser
um gestor desses riscos.
Desta forma, tem que lançar mão da modificação de paradigmas inflexíveis, rígidos
de proteção ambiental, não apenas no campo normativo, mas na concretização desta proteção.
Neste pensar, a efetividade dos instrumentos de proteção passa por uma análise do
objetivo maior do Direito processual (constitucional) ambiental, desde a percepção de que é
necessário utilizar novos mecanismos para alcançar uma tutela jurisdicional adequada e justa,
até redimensionar instrumentos desta tutela.
Assim, as ações empreendidas visando a concretização deste direito fundamental,
tanto pela iniciativa pública como pela privada, devem ser permeadas pelos princípios da
prevenção e da precaução, tendo em vista o nível de proteção escolhido pela sociedade,
devendo o Estado atuar como um gestor atento às abstrações e incertezas que o modelo
societário atual impõe.
Neste ínterim, a redistribuição do ônus de provar pode ser entendida como um
instrumento apto a dividir as obrigações e deveres entre as partes à luz do processo
(constitucional) coletivo, capaz de proporcionar equilíbrio durante a investigação, bem como
durante os procedimentos que visam a proteção do meio ambiente frente às atividades
degradantes e especialmente diante das que apresentam riscos abstratos, invisíveis e
desconhecidos dos saberes da ciência.
E para tanto, se propõe desde a esfera administrativa até a esfera judicial o
redimensionamento no conceito do ônus da prova com o fito de proporcionar equilíbrio e
efetividade na concretização do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado para a presente, bem como para as futuras gerações.

464
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

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466
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

FOIE GRAS1: UMA VISÃO ANALÍTICA DO CÓDIGO DE SAÚDE E SEGURANÇA


DA CALIFÓRNIA (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA) FRENTE À SILENTE
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

FOIE GRAS: AN ANALYTICAL VISION OF CALIFORNIA HEALTH AND SAFETY


CODE (UNITED STATES) FACE TO SILENT BRAZILIAN LEGISLATION.

Pedro Arruda Junior2


Kiwonghi Bizawu3
RESUMO
Procura-se analisar no presente artigo o Código de Saúde e Segurança dos Estados Unidos da
América no tocante ao foie gras ante as lacunas legislativas que permitem que a iguaria da
culinária francesa contribua aos maus-tratos de aves como os patos e gansos. Por meio da
pesquisa bibliográfica e do método analítico-dedutivo utilizado, busca-se identificar, as
legislações pertinentes para proteger a fauna e, consequentemente, condenar os maus-tratos
contra as aves acima referidas. Sabe-se que a Fauna é parte integrante do meio ambiente
natural que recebe proteção constitucional no artigo 225, §1º, inciso VII e infraconstitucional
pela Lei 5197/67, conhecida como lei de proteção à fauna, assim como pela Lei de Crimes
Ambientais. A comercialização dos produtos provenientes dos maus-tratos e da matança das
aves levaram o Estado norte-americano da Califórnia, em meados de 2012 a aprovar as
alterações em seu Código de Saúde e Segurança, proibindo a venda de foie gras. Daí a
necessidade de uma análise comparada como mecanismo de formação de opinião pública a
fim de alterar a legislação pátria.
PALAVRAS-CHAVE: Fauna; Maus-tratos; Foie-Gras; Código de saúde e segurança.

1
Do francês (fígado gordo); Fígado de pato/ganso aumentado pela quantidade de gordura localizada,
proveniente de uma superalimentação do animal. Iguaria da culinária francesa, geralmente servido como patê.

2
Advogado. Especialista em Ciências Penais pela UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Extensão
em História do Direito pela FDUL – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal). Professor de
Direito Ambiental e Coordenador Pedagógico do Curso de Direito do CESA – Centro de Estudos Superiores
Aprendiz (Barbacena/MG). Mestrando em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela ESDHC –
Escola Superior Dom Helder Câmara (Belo Horizonte/MG).

3
Advogado, sacerdote, Mestre e Doutor em Direito Internacional, professor de Direito Internacional, Pró-Reitor
do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e Professor de
Fundamentos de Metodologia da Pesquisa no Curso de Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento
Sustentável na Escola Superior Dom Hélder Câmara em Belo Horizonte – MG.

467
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ABSTRACT
It seeks to analyze in this article the Health and Safety Code of the United States regarding
the foie gras before the loopholes that allow the dedicacy of French cuisine contribute to
mistreatment of birds such as ducks and geese. Trough literature research and analytical-
deductive method used, we seek to identify the relevant laws to protect the fauna and thus
condemn the mistreatment of birds above. It is known that the Fauna is an integral part of the
natural environment that receives constitutional protection under Article 225, §1, section VII
and infraconstitutional by Law 5197/67, known as the law of protection of fauna, as well as
the Environment Crimes Act. The products from the mistreatment and killing of the birds led
the U.S state of California, in mid-2012 to approve changes to its Health and Safety Code,
banning the sale of foie gras. Hence the need for a comparative analysis as a mechanism of
formation of public opinion in order to amend legislation homeland.
KEYWORDS: Fauna; Maltreatment; Foie-gras; Health and Safety Code.

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO; 2 MEIO AMBIENTE: NOTAS INTRODUTÓRIAS; 3 PROTEÇÃO
JURÍDICA DA FAUNA; 3.1 Importância da Fauna; 3.2 Proteção jurídica propriamente dita;
4 ALIMENTAÇÃO FORÇADA DE ANIMAIS: ÉTICA AMBIENTAL E FOIE GRAS; 5
CÓDIGO DE SEGURANÇA E SAÚDE DA CALIFÓRNIA; 6 A LACUNA DA
LEGISLAÇÃO CIVIL E A DESPROPORCIONALIDADE DA LEI PENAL; 7
CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO
A Fauna, parte integrante do meio ambiente natural, recebeu proteção constitucional
no artigo 225, §1º, inciso VII e infraconstitucional pela Lei 5197/67, também conhecida como
lei de proteção à fauna, assim como pela Lei de Crimes Ambientais. Entretanto, as lacunas
legislativas estão permitindo que uma iguaria da culinária francesa denominada foie gras,
cresça através de maus-tratos em aves como os patos e gansos. A relevância do tema decorre
do próprio status constitucional de direito fundamental atribuído ao meio ambiente e a
necessidade de coibir as atividades e condutas lesivas ao meio ambiente e, no caso em tela, à
fauna em face da matança de aves para atender um determinado setor comecial.
O foie gras é o fígado das aves acima relacionadas com hipertrofia, ou seja, o
aumento demasiado de seu órgão vital mediante o acúmulo de gordura. Os criadores

468
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

conseguem atingir tal fato mediante a alimentação forçada destes animais, causando-lhes
vários ferimentos. A partir disso, surge a necessidade de repensar na eficácia de medidas
protetoras para coibir tais práticas delituosas e destrutivas da fauna, acarretando danos
irreparáveis ao meio ambiente, objeto do primeiro capítulo, enquanto importante bem
jurídico.
No capítulo 2 será dado o enfoque sobre o meio ambiente, suas características e
denominações, assim como o debate acerca da divisão didática do meio ambiente, findando
com a delimitação da fauna no meio ambiente natural.
Por conseguinte, no capítulo 3, a fauna receberá uma análise legislativa e doutrinária
de seus componentes, assim como ressaltando a sua importância para o ser humano.
No capítulo 4 a delimitação será da alimentação forçada de animais, momento em
que se trará uma análise de ética ambiental frente ao foie gras, além de estruturar a
necessidade de legislação que busque coibir a venda do produto em tela.
Em prosseguimento, o capítulo 5 analisará o Código de Saúde e Segurança do estado
norte-americano da Califórnia, o qual proibiu expressamente a venda de foie gras, sendo, para
tanto, uma verdadeira mudança de paradigmas que exige, com mais racionalidade, uma
atitude cidadã comprometida com a defesa da fauna e do meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Por fim, o último capítulo (6) versará sobre a legislação brasileira e suas lacunas sob
a ótica da desproporcionalidade da lei penal para o revendedor da iguaria gourmet, e citará
eventual conclusão para a problemática assentada no método analítico-dedutivo.

2 MEIO AMBIENTE: NOTAS INTRODUTÓRIAS

A expressão “meio ambiente” foi inicialmente utilizada por Geoffroy de Saint-Hilaire


em sua obra Études progressives d’un naturaliste, no ano de 1835.
Não há um consenso entre os estudiosos do direito ambiental acerca da conceituação
técnica de meio ambiente, pois trata-se de expressão de grande amplitude, a qual pode ser
vista sob várias óticas. Milaré expressa esta complexa semântica:
O vocábulo “natureza” é expurgado de todos os discursos como se fosse indecente,
no mínimo pueril, por evocar o que ele designa. A expressão “meio ambiente” se
impôs, aparentemente mais digna de crédito [...]. A escolha não é neutra.
Etimologicamente, a expressão “meio ambiente” designa o que está em volta e,
nesse contexto, mais precisamente, o que cerca a espécie humana. Essa visão
antropocêntrica é conforme ao espírito de nossa civilização arrogante, cuja única
referência é o homem e cuja ação tem sempre em mente o domínio total da Terra
[...]. Tal concepção é um dos pontos de ruptura fundamentais com a filosofia

469
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ecologista que apreende o ser humano como um organismo entre milhares de outros
e considera que todas as formas de vida têm direito a uma existência autônoma.
(2011 apud Ferry, 2009. p. 142).

Por seu turno, na seara jurídica, Beltrão (2011, p. 22) ensina que direito ambiental
pode ser conceituado como o “conjunto de princípios e normas jurídicas que buscam regular
os efeitos diretos e indiretos da ação humana no meio, no intuito de garantir à humanidade,
presente e futura, o direito fundamental a um ambiente sadio”.
A Resolução 306/02 do CONAMA, em seu Anexo I, inciso XII, menciona que meio
ambiente é o “conjunto de condições, leis, influência e interações de ordem física, química,
biológica, social, cultural e urbanística, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é conhecida por ter sido
pioneira no garantismo ambiental, a qual reservou capítulo específico:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e
futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e
fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão
permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a
integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente
causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto
ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio
ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem
em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
animais a crueldade.
§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio
ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público
competente, na forma da lei.
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os
infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á,
na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
§ 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações
discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.

470
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

§ 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida
em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. (BRASIL, 2012)

A Magna Carta de 1988 não define expressamente o conceito de meio ambiente, e


por isso, utilizou-se do artigo 3º, inciso I da Lei 6938/81, para tanto. Assim, pode ser definido
como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.
Ultrapassadas as disposições conceituais, imperioso destacar um novo debate
doutrinário, a divisão didática do meio ambiente.
Em um panorama técnico, cumpre frisar que o meio ambiente é uno, ou seja,
indivisível, sendo composto por várias normas legais e consuetudinárias. Porém, para um
melhor entendimento da disciplina, importante efetuar uma cisão didática.
Aqui, destaca-se uma grande discussão doutrinária acerca do quantum de facetas.
Para Amado (2011, p. 301), o meio ambiente é dividido em: a) meio ambiente natural; b)
artificial (local onde se aloca o meio ambiente do trabalho) e, por fim, c) cultural. Por seu
turno, Sirvinskas (2011) e Fiorillo (2011), apoiam 4 vertentes, quais sejam: a) meio ambiente
cultural; b) meio ambiente do trabalho; c) meio ambiente artificial e d) meio ambiente natural.
O posicionamento mais adequado, ao que parece é a última visão, tendo em vista que o meio
ambiente do trabalho possui instrumentos próprios de proteção, conforme se verá em
momento oportuno. Tanto o é que os últimos autores reservam capítulos próprios em suas
obras tratando dos instrumentos de cada uma das quatro variações de meio ambiente.
A corrente quadripartite é sustentada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
que reconheceu a presença dos quatro meio ambientes na ADI-MC 3540/DF de 03/02/2006.
E, neste cenário de discussão doutrinária demarcar-se-á o meio ambiente natural a
fim de direcionar a investigação científica com foco na fauna.
O meio ambiente natural ou físico é constituído pela atmosfera, pelos elementos da
biosfera, pelas águas (inclusive pelo mar territorial), pelo solo, pelo subsolo (inclusive
recursos minerais), pela fauna e flora. É diretamente tutelado pelo caput do art. 225 da
Constituição Federal.
Numa visão infraconstitucional, tem-se a Lei 6938/81, conhecida como Lei da
Política Nacional do Meio Ambiente, a qual faz referência como sendo meio ambiente natural
a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o
solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora, com base no artigo 3º, inciso V da
referida lei.

471
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Em virtude da imensidão de temáticas que o meio ambiente natural abarca, os


instrumentos jurídicos de defesa vão se ampliando. Entretanto, o escopo principal deste artigo
será a investigação da fauna como estrutura protetiva dos animais e análise do Código de
Saúde e Segurança da Califórnia (EUA) frente a silente legislação brasileira no que se refere à
venda do foie gras, iguaria da culinária francesa feita com base na alimentação forçada.
A partir desses fatos, surge a necessidade de discorrer acerca da proteção jurídica da
fauna.

3 PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAUNA

Sabe-se que, na visão antropológica, os animais, apesar de serem classificados como


seres vivos, nem sempre tiveram o devido lugar no processo de defesa e proteção ao meio
ambiente, enquanto bem constitucionalmente e juridicamente tutelado, pois sempre serviram
de alimentos ao ser humano-consumidor em virtude de sua sobrevivência. Diante da
complexidade econômica do mundo moderno movida pela busca de lucro, torna-se imperiosa
a proteção da fauna para não ser vista apenas como recursos para satisfazer as novas
tendências culinárias do ser humano, mas como parte do meio ambiente natural e garantidor
da biodiversidade.

3.1 Importância da Fauna

Fauna pode ser conceituada nas lições de Fiorillo (2011, p. 279) como “coletivo de
animais de uma dada região”.
O início da colonização do Brasil foi marcado, especialmente, pela exploração dos
recursos naturais sem uma consciência protetiva para a presente e futuras gerações. Naquela
época o ambiente parecia ser infinito e qualquer extrativismo era aceito. Assim, várias matas e
florestas foram devastadas.
Por sua vez, considerando a grande diversidade da fauna brasileira, muitas espécies
foram levadas para Europa, assim como o extermínio foi marco predominante da religião e da
subsistência da época.
Como é cediço, a fauna é uma das facetas estruturais do próprio meio ambiente. Um
desequilibro das espécies animais pode acarretar um descontrole extremo da cadeia alimentar,
atingindo assim, uma densidade e extensão de dano imensurável.

472
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Além desta estrutura dos ecossistemas, a fauna também é de grande importância nos
fatores: alimentar, turístico e beleza cênica, além do educativo.
A relevância alimentar se dá em virtude de que a raça humana sempre fez uso dos
animais como fonte de subsistência através da caça. A noção de vegetarianismo surgiu na
época moderna, sendo que os traços históricos sempre remetem à caça de subsistência.
Inicialmente, os animais que eram sacrificados para a alimentação humana girava em torno
dos bovinos e dos suínos. Contudo, recentemente, é comum a ingestão de carne de rã, de
capivaras, tatus, dentre outras espécies. Todas na cultura ocidental. Por seu turno, a cultura
oriental sempre possuiu uma alimentação de animais exóticos como carne de cobra,
escorpiões, aracnídeos, dentre vários outros. Independente da cultura, conclui-se que a fauna é
cotidianamente presente na alimentação das pessoas.
Por sua vez, a característica turística e de beleza cênica é bem rotineira. A manutenção
da fauna silvestre possibilita uma exploração do turismo. A criação e manutenção de parques
e reservas naturais possibilita que as pessoas observem a enorme beleza plástica dos animais,
o que, de fato, amplia a consciência protetiva. Outro elemento de turismo ecológico são os
próprios zoológicos que permitem a convivência de várias espécies num mesmo local. A
gestão é dada por profissionais da área, os quais tentam criar características dos próprios
habitats, tornando-os o mais próximo da realidade de cada animal, visando uma melhor
adaptação e expectativa de vida saudável.
Por fim, o espectro educativo possibilita aos pesquisadores conhecer a vida animal
através do binômio observação-estudo, concretizando a evolução da ciência. A evolução da
ciência ambiental permite, inclusive, uma proteção das espécies, como por exemplo, no
resgate de baleias encalhadas, de captura e readaptação de pinguins, dentre vários outros. O
homem em prol da natureza.
Apesar de toda esta importância, ainda existem pessoas ou até mesmo comunidades
que consideram os animais como coisas, acreditando que podem fazer qualquer tipo de ação
com os mesmos. Merecem destaque, as pequenas comunidades interioranas, onde são
facilmente localizáveis indivíduos que saem de suas casas com gaiolas e alçapão com a
finalidade de capturar aves, criá-las e até mesmo vendê-las. Outro fator que também pode ser
visualizado é a crueldade propriamente dita, como por exemplo, matar cães e gatos afogados
em rios; ceifar a vida de aves; rinhas de galos; dentre várias outras atividades.
Por conseguinte, a fauna é sujeito de intervenções econômicas de grande calibre. O
Brasil, por ser país extenso e de clima tropical, abarca uma infinidade de espécies animais,
desde as mais comuns até as exóticas. Em virtude disso, há uma grande prática de crime de

473
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tráfico de animais. É costumeiro encontrar em beiras de estradas sujeitos vendendo aves


exóticas, micos, ou até mesmo outros animais mais raros. Já no âmbito internacional, a mídia
vem destacando o tráfico internacional de animais brasileiros, os quais costumam atingir
outros países geralmente dopados e agrupados em malas ou pequenos recipientes. Muitos
deles não suportam este deslocamento e acabam morrendo no trânsito de países. Todo este
tráfico movimenta este comércio ilegal. Daí a necessidade de dar guarida no processo protetor
da fauna em face das atividades e condutas lesivas do ser humano.

3.2 Proteção jurídica propriamente dita

No que se refere à fauna, verifica-se que houve uma evolução descompassada das
legislações ao redor do mundo, sendo que um dos marcos legislativos protecionistas dos
animais surge em meados do Século XVII, conforme ensina Heron (2009, p.61):

Somente no século XVII, vão surgir as primeiras leis de proteção aos animais, como o
Código de 1641, da Colônia inglesa de Massachusetts Bay, considerada ainda hoje a
primeira lei do mundo ocidental a proteger os animais domésticos contra a crueldade.

Um dos diplomas mais festejados foi a Lei Martin de 1822, a qual proibia qualquer tipo de
crueldade contra os animais, especialmente nas touradas e rinhas de galo. É preciso salientar que,
após a tal diploma legal, vários países legislaram sobre o tema, como por exemplo Lei Grammont
da França que vedava os maus tratos a animais em locais públicos.
A partir da década de 1970, ativistas passaram a reivindicar maiores avanços na política de
proteção aos animais.
O principal marco desse período foi a publicação do livro “Libertação animal”, do escritor
australiano Peter Singer. A obra de Singer, além de denunciar veementemente os abusos sofridos
pelos animais nos laboratórios científicos e nas fazendas industriais, questionou também a forma
como esse tratamento violava o princípio fundamental de justiça.
No cenário nacional, a fauna recebeu proteção constitucional no artigo 225, §1º, inciso VII o
qual dispõe que incube ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou
submetam os animais a crueldade”. No âmbito infraconstitucional, há a Lei 5197/67, também
conhecida como lei de proteção à fauna, a qual, em seu artigo 1º mencionou que os animais de
quaisquer espécies pertencem ao Estado:

Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento


e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo
proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha. (BRASIL, 2012).

Como é possível perceber da análise do referido diploma legal, a lei de proteção à


fauna restringiu o aspecto protetivo àqueles animais considerados silvestres. Apesar disso,
deve-se destacar que os animais domésticos também devem ser respeitados, considerando que
também são animais e pertencem a fauna. O único motivo para que o legislador trata-se
expressamente de fauna silvestre se refere ao caráter de urgência, sob pena de extinção de
espécies.
Como instrumentos de proteção à fauna podem-se destacar: Lei 10519/02 que dispõe
acerca de promoção, fiscalização da defesa sanitária animal na prática de rodeios. A referida
lei estabelece obrigações às companhias de rodeio para que obedeçam a critérios de proteção
dos profissionais (boiadeiros) assim como prezam pela integridade física animal.
Outra legislação protetiva da fauna é a Lei 11794/08 estabeleceu critérios para criação
e utilização de animais em atividades de ensino e pesquisa científica.
Importante mencionar que, no plano internacional, há a Declaração Universal dos
Direitos dos Animais, editada pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura no ano de 1978 na capital da Bélgica. Além desta, outra
norma internacional de destaque acerca desta temática é o Primeiro Encontro Nacional pelos
Direitos dos Seres Vivos, promovido em 1997 no México, a qual foi um marco acerca da
preocupação com a dor e sofrimento causados pela atividade humana.
O artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais expressa:
Artigo 2º

1.Todo o animal tem o direito a ser respeitado.

2.O homem, como espécie animal, não pode exterminar os outros animais ou
explorá-los violando esse direito; tem o dever de pôr os seus conhecimentos ao
serviço dos animais

3.Todo o animal tem o direito à atenção, aos cuidados e à proteção do homem.


(UNESCO, 2012).

Já o artigo 3º da mesma Declaração Internacional expressa que “nenhum animal será


submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2.Se for necessário matar um animal, ele deve
de ser sacrificado instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia”. Assim,
verifica-se total incongruência ativa, ou seja, no diploma legal menciona que a morte deverá
ser momentânea e indolor, mas com as diretrizes do foie gras percebe-se que o elemento de
maior preponderância é a crueldade e a dor, conforme será disposto no capítulo seguinte.

475
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Por fim, após a evolução do pensamento jurídico-científico percebeu-se que o


entendimento que os animais devem ser tratados como coisas foi superado, sendo que há
inúmeros diplomas positivados de proteção, além de que, após a promulgação da Constituição
da República de 1988 a fauna passou ter tutela jurídica constitucional.

4 ALIMENTAÇÃO FORÇADA DE ANIMAIS: ÉTICA AMBIENTAL E FOIE GRAS

A alimentação forçada de animais é um mecanismo de engorda, geralmente com


interesse econômico. É muito comum em galináceos, suínos e até mesmo bovinos.
Com a elevada venda de animais para o abate, diversas técnicas e produtos
vitamínicos são experimentados a fim de uma evolução de peso rápida para satisfação do
criador. Ocorre, porém, que nem sempre esta maneira de alimentar os animais é saudável,
podendo ocasionar ferimentos e uma extrema violência. O escopo do presente artigo é
analisar especificamente a produção do foie gras e seu complexo binômio ética-economia.
O foie gras é um fígado, de ganso ou pato, doente, engordado de maneira forçada,
várias vezes ao dia. Esta alimentação técnica ocorre mediante a incisão de jatos de comida
através de um tubo metálico de 20-30cm no esôfago do animal.
Estas aves aquáticas são confinadas em pequenas gaiolas, evitando a locomoção.
Durante várias vezes por dia, o “profissional responsável” retira os animais, um a um, insere a
sonda metálica através do bico, introduz grandes quantidades de comida e retorna a ave para o
confinamento. Este é o procedimento durante todo o dia, por semanas.
Na natureza, os patos e gansos têm a possibilidade de estender o esôfago para
suportar mais alimento. Geralmente isto ocorre no início do inverno para que o animal tenha
alimento para passar alguma temporada. O fígado destas aves pode aumentar de tamanho,
absorvendo a comida e transformando em gordura, a qual vai sendo utilizada em tempos de
menor alimentação (geralmente no inverno). Este efeito “sanfona” do fígado é comum.
Porém, a criação para foie gras é diferente: criam-se os animais com o intuito de aumentar o
fígado de maneira mecanicista, o que gera lesões aos animais, conforme será exposto a seguir.
Entre várias lesões causadas nos patos/gansos podem-se destacar: a) ferimentos no
esôfago em virtude da inserção de cânula metálica agrupada aos movimentos de fuga
(movimentação da ave); b) diarreia profunda, chegando, em alguns casos, a expelir parte do
intestino; c) Risco de asfixia presente em virtude do excesso de comida inserida no estômago

476
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

e esôfago, aliado às crises de vômito; d) ferimento nas patas em virtude do confinamento


extenso em gaiolas; dentre várias outras.
Sobre esse procedimento, imperioso ressaltar:

Os animais para abate passam a vida inteira em confinamentos (criatórios), muitos


sem jamais terem conhecido a luz do sol. Alguns em locais fétidos e insalubres até
para os seres humanos que lá trabalham. Outros passam a vida deitados ou
necessariamente em pé, em espaços minúsculos, sem condições de movimentos
regulares. A separação dos filhotes também é um sofrimento para o animal, além do
processo de engorda e de manutenção que são igualmente sofríveis. Para levar a
carne ao mercado o mais rápido possível, os processos de engorda são pavorosos.
Introduzem hormônios que produzem doenças nos animais, usualmente o câncer, e
contaminam o meio ambiente. Através de processos químicos (medicamentos) ou
físicos (introdução à força de alimentos pela via oral), os animais são estimulados a
comerem o tempo todo. A indústria produtiva sabe que o sofrimento animal é ruim,
porque pode diminuir o peso do animal, danificar a carne ou causar estresse a ponto
de o animal liberar hormônios prejudiciais à saúde humana. Todavia, o que
prevalece é o lucro. (NOGUEIRA, 2012, p. 207).

Diante do exposto algumas dúvidas surgem, como, por exemplo, por que os patos e
gansos? Isso ocorre em virtude de que as aves aquáticas têm a elasticidade do esôfago para
armazenar comida para passar temporadas sem alimentação (geralmente no inverno). Outro
questionamento é a motivação, a qual é facilmente desvendada, ou seja, o cunho econômico.
Na França, o produto é extremamente tradicional em datas comemorativas e de alto valor
pecuniário.
Este alimento foi objeto de inúmeras manifestações de ativistas, podendo se destacar
o Humane Society of USA, o Animal Legal Defense Fund, as ONGs francesas Stopgavage e
L214.
Acerca da própria ética em produzir este alimento que divide os chefes de cozinha e
os ambientalistas, as lições de Milaré (2011, apud Lipovetsky, p. 158) expressam a
modificação do campo semântico da ética geral e sua enérgica ampliação diante da análise do
comportamento humano:
A ideia de que ‘a Terra está em perigo de morte’ impôs uma nova dimensão de
responsabilidade, uma concepção inédita das obrigações humanas que ultrapassa a
ética tradicional, circunscritas às relações inter-humanas imediatas. A
responsabilidade humana deve, agora, estender-se às coisas extra-humanas, englobar
a dimensão da biosfera inteira, uma vez que o homem possui os meios para pôr em
perigo a vida futura no Planeta. Segundo os ‘fundamentalistas’, temos que
reconhecer, independentemente do bem humano, o valor da ecosfera em si, tempos
que redescobrir a dignidade intrínseca da natureza; segundo a maioria, temos que
respeitá-la por nós, concebê-la como um patrimônio comum a transmitir às gerações
futuras. Qualquer que seja a profundidade desta clivagem, a Ética clássica, centrada
no próximo e na proximidade dos fins, já não parece suficiente, a técnica moderna
engendrou efeitos tão inéditos, tão potencialmente catastróficos, que é necessária
uma ‘transformação’ dos princípios éticos. A civilização tecnicista tem necessidade
de uma ‘ética do futuro.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Conforme sustentação do autor citado acima, a responsabilidade mudou de dimensão,


ampliando seus horizontes para as relações inter-humanas. As ações humanas devem se
pautar nos preceitos éticos, seja de natureza trabalhista ou ambientalista. O foie gras foge a
ética ambiental de forma latente.
Além disso, as palavras de Nogueira acerca da modificação de hábitos provenientes da
informação (2012, apud Singer, p. 206-207):

Para Singer, a ética alimentar vem sendo negligenciada na cultura atual, com
escolhas ruins das pessoas, porque essas desconhecem a origem desses produtos e a
sua interferência moral e salutar na vida dos humanos. ‘A produção animal se
beneficia da ignorância do publico acerca dos métodos de produção’. Ele entende
que muitos mudariam sua dieta alimentar se soubessem como são tratados os
animais, a origem dos alimentos que ingerem e como são produzidos. Ele recorda
que, a partir do ano de 1975, o consumo de carne de vitela caiu um quarto em razão
de informações divulgadas por ONGs sobre como é produzida aquela carne. Pela
mesma razão (acesso à informação), o oposto ocorreu com os alimentos orgânicos,
que se apresentam atualmente como um dos setores que mais cresce na indústria. Se
o consumidor deixar de comer o frango abatido, ignorando-o no congelador do
supermercado, a lei da oferta e da procura regulará o comércio, de forma a produzir
mais produtos vegetais, com melhores preços, variedades e qualidade.

O trâmite de engorda inerente à produção do foie gras, justifica, por si só, a abolição
do mesmo. Em virtude disso, vários países já baniram tal iguaria. Todavia, o maior foco de
análise será o Código de Saúde e Segurança da Califórnia, o qual entrou em vigor em julho de
2012 e proibiu além da criação de patos e gansos para a finalidade de alimentação forçada, a
vedação do comércio, conforme será exposto no capítulo seguinte.

5 CÓDIGO DE SAÚDE E SEGURANÇA DA CALIFÓRNIA

Traçados os elementos de conceituação e estudo sobre fauna, ética e alimentação,


ingressar-se-á no Código de Saúde e Segurança da Califórnia. Contudo, imperioso mencionar
alguns Estados que baniram esta iguaria gourmet proveniente da crueldade e maus tratos
contra indefesas aves.
Inicialmente, imperioso destacar que algumas províncias da Áustria, República
Tcheca, Dinamarca, Finlândia, Alemanha, Itália, Luxemburgo, Noruega, Polônia, Irlanda,
Suécia, Suíça, Holanda, Inglaterra, Turquia, Israel, Argentina não produzem o foie gras.
Contudo, permitem a importação e revenda. (Wikipedia, 2012. s/p).
Com o crescente banimento do foie gras, poucos países o produzem, sendo importante
destacar os produtores ativos: Bélgica, Bulgária, Espanha, Hungria e França.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Em relação à França, mister o destaque que a iguaria em estudo é considerada


patrimônio cultural e gastronômico, conforme Lei 2006-11/06 (Código Rural), no artigo L
654-27-1, que expressa “o foie gras é parte do patrimônio cultural e gastronômico protegido
na França. Significa foie gras, o fígado de um pato ou ganso engordado especialmente por
meio de sonda”4 (tradução livre).
Por derradeiro, inicia-se a análise da legislação da Califórnia (EUA). O Código de
Saúde e Segurança deste estado reserva seção especial para tratar da iguaria em debate, qual
seja Seções 25980-25984. Tal legislação foi aprovada em meados de 2004, porém, apenas
entrou em vigor em julho de 2012.
O Artigo 25980 do referido diploma legal é muito claro ao conceituar aves, assim
como alimentação forçada, sendo imperioso destacar:
25980. Para os fins desta seção, os termos seguintes têm o significados seguintes:
(A) Uma ave inclui, mas não se limitando a, pato ou ganso.
(B) Alimentação forçada de uma ave é um processo pelo qual se faz com que um
pássaro se alimente mais do que um outro de mesma espécie consumisse
voluntariamente. Métodos de alimentação forçada incluem, mas não se limitando a,
fornecimento de alimentos através de tubo ou outro dispositivo inserido no esôfago
da ave. (USA, 2012. tradução livre). 5

Em prosseguimento à análise, o artigo 25981 expressa uma norma de conduta ética,


ressaltando a proibição de alimentar forçadamente os animais para ampliar o fígado da
espécie. Caso típico e voltado para o foie gras. Percebe-se que a legislação norte-americana,
neste ponto, fez questão em proteger as aves aquáticas. Além disso, estende o âmbito
protetivo da norma, repugnando a atuação de terceiros. Assim sendo, a alimentação forçada
de patos/gansos é proibida quanto para atuação direta, quanto indireta. É válido transcrever a
norma citada: “25981. Uma pessoa não pode forçar uma ave a se alimentar com o propósito
de ampliar o fígado do animal, além do tamanho normal, ou contratar uma pessoa para fazê-
lo” (tradução livre).6
As condutas proibidas por um Estado, qualquer que seja, sem um mecanismo enérgico
de concretização da legislação, torna-se completamente inócuo. Diante esta meta e, buscando

4
Le foie gras fait partie du patrimoine culturel et gastronomique protégé en France. On entend par foie gras, le
foie d'un canard ou d'une oie spécialement engraissé par gavage.
5 25980. For purposes of this section, the following terms have the following meanings:
(a) A bird includes, but is not limited to, a duck or goose.
(b) Force feeding a bird means a process that causes the bird to consume more food than a typical bird of the
same species would consume voluntarily. Force feeding methods include, but are not limited to, delivering feed
through a tube or other device inserted into the bird's esophagus.

6
25981. A person may not force feed a bird for the purpose of enlarging the bird's liver beyond normal size, or
hire another person to do so.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

uma efetivação da proteção à fauna, em especial para as aves aquáticas sujeitos do debate, o
Estado da Califórnia inseriu multa para as pessoas que descumprirem a legislação de
banimento ao foie gras, conforme artigo 25983, alíneas “a”, “b” e “c” do Código de Saúde e
Segurança do referido Estado norte-americano, in verbis:

25983. (A) Um oficial de paz, oficial de uma sociedade humana como qualificado
nos termos do Artigo 14502 ou 14503 do Código das Sociedades, ou funcionário de
um departamento de controle de animais ou animais regulamentação de um órgão
público, como qualificado sob a Seção 830,9 do Código Penal, pode emitir uma
notificação a uma pessoa ou entidade que viole esta capítulo. 7

(B) A notificação emitida nos termos deste artigo exige o pagamento de multa civil
no valor de até mil dólares ($1000) por cada violação, assim como multa de mil
dólares por dia de descumprimento. A multa civil deve ser a pagar à agência local de
início do processo para compensar os custos com a agência relacionada ao tribunal
correspondente.

(C) A pessoa ou entidade que viole este capítulo pode ser processado pelo
procurador distrital do condado em que o violação ocorreu, ou pelo advogado da
cidade da cidade em que o violação ocorreu. (USA, 2012. tradução livre).

Toda esta análise, proporciona o real interesse do estado da Califórnia em proteger os


animais, mesmo que indiretamente. De nada adiantaria proibir a conduta de alimentação
forçada se não banir a venda do produto. Soma-se o caráter pecuniário como mecanismo de
controle da atuação de restaurantes e indivíduos.
Contudo, é de importância ímpar ressaltar que toda a alteração na legislação dos
Estados Unidos da América no que concerne ao foie gras se deu, na maior parte das vezes,
por ativistas ambientalistas. No caso específico do estado da Califórnia, a discussão foi
liderada pela Organização PETA (People for the Ethical Treatment of Animals). A referida
organização movimentou-se pautada de cinco elementos fortemente estruturados desta iguaria
politicamente e ambientalmente antiética, quais sejam: Alimentação forçada é selvagem; Foie
Gras é doente – literalmente; Foie Gras me faz – e também os patos – vomitar; Patos não são

7
25983. (a) A peace officer, officer of a humane society as qualified under Section 14502 or 14503 of the
Corporations Code, or officer of an animal control or animal regulation department of a public agency, as
qualified under Section 830.9 of the Penal Code, may issue a citation to a person or entity that violates this
chapter.
(b) A citation issued under this section shall require the person cited to pay a civil penalty in an amount up to
one thousand dollars ($1,000) for each violation, and up to one thousand dollars ($1,000) for each day the
violation continues. The civil penalty shall be payable to the local agency initiating the proceedings to enforce
this chapter to offset the costs to the agency related to court proceedings.
(c) A person or entity that violates this chapter may be prosecuted by the district attorney of the county in which
the violation occurred, or by the city attorney of the city in which the violation occurred.

480
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

sapatos; Todos estão unidos neste propósito. Tais requisitos foram descritos por MULLINS
(2012, s/p)8 e descritos nos próximos parágrafos.
Em relação ao primeiro slogan da campanha para banir a iguaria da Califórnia,
Alimentação forçada é selvagem, destacou-se que esta prática é equivalente a um
afogamento, onde insere-se alimentos e vitaminas contra a vontade do animal, destacando a
crueldade da medida.
Em prosseguimento, o segundo elemento trata o Foie Gras como doença –
literalmente, colocando em destaque que a alimentação forçada causa variações no fígado das
aves aquáticas, fazendo-o aumentar de tamanho em até dez vezes, resultado de doença
denominada esteatose hepática, a qual foi o foco da proibição do produto. O consumidor não
pode ser atingido por um alimento “doente”. Além disso, conforme expresso em linhas
anteriores, as aves também sofrem de hemorragia interna, infecções, dentre várias outras
causas de redutibilidade da saúde do animal.
Por conseguinte, proceder-se-á a análise do terceiro caractere da campanha que
compreendia o forte termo: “Foie Gras me faz – e também os patos – vomitar”; A expressão é
impactante e direta, fazendo o receptor da imagem a efetuar breve e rápida reflexão sobre o
assunto. A organização norte-americana ainda destacou que, diferente das afirmações dos
comerciantes de Foie Gras, os patos/gansos têm reflexo de vômito e, de fato, muitas vezes o
fazem após serem alimentados à força. Soma-se ao fato que nesta ação involuntária, muitas
vezes, pode causar asfixia do animal, levando-o à morte instantânea.
“Patos não são sapatos” é a quarta expressão a ser analisada. Pesquisas e vídeos
apaisana foram objeto de conclusão do ambiente físico de produção da iguaria francesa em
debate. Constatou-se que as aves ficam trancafiadas em compartimentos menores que caixas
de sapatos e que, na maioria das vezes, não se movimentavam. Assim, a movimentação de
asas, patas pode gerar tremendo desconforto à estas aves.
Por fim, o ativismo foi balizado no termo: Todos estão unidos neste propósito. Tal
concepção indica que a alimentação forçada vem sendo denunciada mundialmente por
especialistas da área animal. As opiniões convergentes do grupo científico permitiu a
proibição em vários países, conforme citados acima.
Diante da análise de toda esta argumentação acerca da alteração do Código de Saúde e
Segurança da Califórnia, duas conclusões são possíveis. A primeira refere-se ao embasamento

8MULINS, Alisa. Top five reasons to ban foie gras. Disponível em:
<http://www.peta.org/b/thepetafiles/archive/2012/07/01/top-5-reasons-to-ban-foie-gras-nationwide.aspx>
Acesso em 14/11/2012.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

da campanha para banir o foie gras. Verifica-se que há embasamento científico para toda a
movimentação dos ativistas a fim de retirar este prato antiético das mesas das pessoas ao
redor do mundo. Por seu turno, a segunda consideração constitui na alteração da lei
propriamente dita. As mudanças ocorreram de forma pontual, o que possibilita a execução
total da norma, vez que prevê a conduta proibitiva de criação de aves para um fim específico
assim como a venda do produto alimentício em tela, assim como há extensão da
responsabilidade para prepostos e terceiros e, por derradeiro, a aplicação pecuniária para o
descumprimento da medida.
Contudo, no Brasil, há lacuna legislativa em relação à esta iguaria gourmet. É o que
será exposto e debatido no próximo capítulo.

6 A LACUNA DA LEGISLAÇAO CIVIL E A DESPROPORCIONALIDADE DA


LEI PENAL

Após todo o trânsito acerca da proteção da fauna e sua evolução legislativa, da


alimentação forçada de aves aquáticas, assim como pela análise do Código de Saúde e
Segurança do estado da Califórnia (Estados Unidos da América), adentrar-se-á no lacunoso
caminho da legislação civil nacional acerca dos maus-tratos contra animais e a
desproporcionalidade da lei penal.
No Brasil, o meio ambiente como um todo veio ter uma visibilidade e viabilidade
após a Constituição da República de 1988, a qual inovou ao dedicar capítulo específico para a
proteção ao ambiente, retirando a visão utilitarista que permaneceu por décadas. Apesar disto,
há uma ineficiência do sistema legislativo no Brasil, considerando-se, a imensidão de
diplomas legais.
Para a investigação científica de lacunas na legislação civil, importante destacar o
que se busca defender. O foie gras é tido com o abate de aves aquáticas, as quais tiveram uma
superalimentação forçada. No Brasil há o Decreto 30691/52, que disciplina o abate
humanitário de animais de açougue, conforme artigo 135 do referido decreto:
Art. 135. Só é permitido o sacrifício de animais de açougue por métodos
humanitários, utilizando-se de prévia insensibilização baseada em princípios
científicos, seguida de imediata sangria. (Redação dada pelo Decreto nº 2.244, de
1997)

§ 1º Os métodos empregados para cada espécie de animal de açougue deverão


ser aprovados pelo órgão oficial competente, cujas especificações e procedimentos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

serão disciplinados em regulamento técnico. (Redação dada pelo Decreto nº 2.244,


de 1997)

§ 2º É facultado o sacrifício de bovinos de acordo com preceitos religiosos


(jugulação cruenta), desde que sejam destinados ao consumo por comunidade
religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países que façam essa
exigência. (Redação dada pelo Decreto nº 2.244, de 1997)

Em artigo complementar, necessário se faz a incrementação da norma acima citada,


mencionando quais espécies estariam abarcadas com este padrão de menor sofrimento. O
artigo 21 do Decreto classifica os estabelecimentos de carnes e derivados. No caso em
discussão (aves), ressalte-se o item 3, §3º:
Art. 21. Os estabelecimentos de carnes e derivados são classificados em:
[...] 3 - Matadouros de pequenos e médios animais; (Redação dada pelo Decreto nº
1.255, de 1962)[...]

10 - Matadouros de aves e coelhos; (Incluído pelo Decreto nº 1.255, de 1962)[...]

§ 3º Entende-se por "matadouro de aves e pequenos animais" o estabelecimento


dotado de instalações para o abate industrialização de: a) aves; b) caça; c) suínos,
com pêso máximo de sessenta (60) quilos; d) coelhos; e) ovinos; f) caprinos,
dispondo de frio industrial e, a juízo da D.I.P.O.A.. de instalações para o
aproveitamento de subprodutos não comestíveis.[...] (BRASIL, 2012).

Assim, interpretando os dois artigos conclui-se que as aves devem ser abatidas sem
sofrimento, o que destoa completamente do procedimento de engorda para foie gras.
Contudo, o Decreto 30691/52 ainda permite a degola (sem insensibilização) nos casos de
cunho religioso, o que, de fato, pode trazer uma obscuridade e faceta de descontrole Estatal.
Tal fato é expresso por Nogueira (2012, p.212) mencionando o “desvio de finalidade” de
carnes na Inglaterra:

Singer denuncia que, na Inglaterra, grande parte dos abates tidos como religiosos
não são para exportação a países que exigem o ritual, mas sim para abastecer o
próprio mercado interno. Daniel Lourenço afirma que a degola cruenta, sem prévia
insensibilização, causa intensa dor física e psíquica nos animais. Ele cita Levai para
lembrar que mesmo o abate não ritualístico causa sofrimento, pois os estímulos
elétricos, o cheiro de sangue e a vocalização dos outros animais na rampa e no boxe
aterrorizam os demais, sendo necessário, muitas vezes, utilizar o bastão elétrico (os
animais apresentam pupilas dilatadas e midríase ocular que são sinais de pânico e
sofrimento). O autor discute inclusive a legalidade do abate ritualístico,
questionando até que ponto esse ritual (kosher ou halal), sem a insensibilização
prévia, seria constitucional, posto que o artigo 225, §1º, VII, da Constituição proíbe
a crueldade contra o animal.

A ele parece contraditório que o Regulamento de Inspeção Industrial de Produtos de


Origem Animal, aprovado pelo Decreto n. 30691/52 e suas alterações, ao mesmo
tempo em que proíbe o abate não humanitário (sem insensibilização prévia),
autoriza a degola cruenta, se destinados ao consumo de países que exijam o abate
religioso para comercialização. Sérgio Greif afirma também ser um contrassenso
utilizar o termo “abate humanitário” para se referir ao abate bovino com
insensibilização. Para ele esses termos só se harmonizariam se fosse o interesse do
próprio animal, caso padecesse de uma enfermidade que exigisse a eutanásia.

483
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Percebe-se que este sistema legislativo não é amplamente seguro ao passo que deixa
como caráter o que é religião. Num aprofundamento de análise chegar-se-á a uma discussão
acerca de direitos fundamentais (vida) dos animais.
Seriam os animais sujeitos de direito? Este questionamento deve ser visto sob a ótica
confirmatória, visto que a proteção à fauna tem status constitucional, podendo ser considerada
direito fundamental.
O direito à vida sofreu reflexões e evoluções conceituais e de abrangência, sendo que
incluiu-se a dignidade como elemento formador e, inevitavelmente, incluiu-se ao debate o
direito à vida animal como direito fundamental. Neste cenário, NOGUEIRA (2012, p. 278)
ensina:
Os direitos fundamentais nasceram da necessidade de proteger-se a vida humana,
principalmente em face do poder estatal. Posteriormente, evoluíram para a proteção
da vida humana com dignidade, ou seja, uma vida que tenha um mínimo existencial,
como liberdade, integridade física e alimentação, que dê condições ao homem para
ser feliz e fazer jus ao título de sujeito moral. Agora, o mundo contemporâneo
tornou-se demasiadamente complexo, acordou-se para o fato de que homem e
natureza são interdependentes, contudo, paradoxalmente, travam uma luta velada,
homens x natureza. As guerras já não são feitas somente entre humanos. A natureza,
à medida que é destruída paulatinamente pelos homens, resiste mostrando sua força
em graves sinistros ambientais (chuvas torrenciais, furacões, tsunamis, etc).

Uma releitura crítica sobre a fundamentação da natureza jurídica dos direitos


fundamentais constata que ela não se encontra no homem, mas sim na vida.
Fundamento da existência de tudo, sem a qual nada existe, nem a própria
humanidade. Nos Estados anteriores, para se garantir uma vida digna para o homem,
era necessário apenas impor limites ao poder estatal. No Estado Democrático de
Direito, para garantir a mesma dignidade humana é preciso impor limites ao poder
humano sobre os animais, enfim no Estado Liberal como um limite para atuação dos
governantes desse aos governados. Era um instrumento de limitação ao poder
estatal. Visando assegurar aos indivíduos um nível máximo de fruição da sua
autonomia e liberdade.

Cumpre destacar que há no Brasil o Decreto 6514/08 que disciplina as infrações e


sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para
apuração destas infrações. Conforme artigo 29 do referido diploma legal a conduta de Praticar
ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados,
nativos ou exóticos gera multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais)
por indivíduo.
Por seu turno, a legislação penal brasileira também incrimina a conduta de maus
tratos contra animais, independente da classe (silvestres, domésticos/domesticáveis, nativos
ou exóticos). Tal assertiva é constatada da análise do artigo 32 da Lei 9605/98, qual comina
pena de detenção para os agentes:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa
§1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal
vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos
alternativos.
§2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se ocorre a morte do animal.

Como pode se ver, o tipo penal incrimina a conduta de “abuso”, ou seja, qualquer
violação dos limites naturais da espécie, um ingresso no meio de vida do animal, como por
exemplo: confinamentos; já o tipo de “maus-tratos” é o mais amplo possível abarcando todas
as situações que criem alienações físicas na fauna, dor ou até mesmo desconforto; em relação
ao tipo “ferir”, sua compreensão é bem simplificada atendo-se ao fato de causar ferimentos
nos animais; por fim, porém não menos importante, o tipo “mutilar” que pode ser entendido
como destruição parcial, ou seja, perda de membros ou partes significativas do corpo.
Soma-se também a causa de aumento, prevista no §2º, a qual amplia a sanção penal
de 1/6 a 1/3 se houver a morte do animal.
Partindo-se do pressuposto que a alimentação forçada de animais é uma prática de
maus-tratos, dois entendimentos devem ser cindidos. O primeiro condiz com a situação da
criação saudável para o abate, logo, a morte do animal é inevitável. Não é esta conduta que o
preceito primário do artigo 32 da Lei 9605/98 busca. O objeto principal de proteção jurídica é
a morte proveniente de maus-tratos. Assim, as espécies que vierem à óbito em virtude desta
alimentação incorreta deverá ser recriminada pelo Estado.
Entretanto, esta enérgica resposta Estatal não é aplicável à venda da iguaria gourmet
antiética. Neste caso, há uma lacuna na legislação nacional, além de existir uma
desproporcionalidade da sanção penal, a seguir exposta.
Inicialmente cumpre frisar que, no Brasil, a conduta de maus-tratos está disciplinada
em seara dúplice, quais sejam criminal e cível. A criminal pune com pena de detenção e multa
o agente causador dos maus-tratos contra animais.
Por seu turno, há ainda multa por maus-tratos e mutilação de espécies da fauna
brasileira. Apesar de multa em ambas as esferas, o tipo descrito não é completamente perfeito
ao caso que pretende-se incrementar.
Conforme dito em linhas anteriores, a permissão de comercialização e venda livre do
foie gras gera, em efeito cascata, o aumento da produção da iguaria culinária e,
consequentemente, o acúmulo destas práticas com aves aquáticas.
A lacuna legislativa deveria ser suprida com o incremento de alguns artigos ou
parágrafos na legislação civil e penal, proibindo definitivamente o comércio de foie gras no

485
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Brasil, como foi feito no Estado da Califórnia (EUA) e em muitos países europeus, como
mecanismo contemporâneo-protetivo dos animais.

7 CONSIDERAÇOES FINAIS

Ante toda a argumentação traçada algumas conclusões podem ser retiradas e algumas
reflexões sopesadas.
Inicialmente, no que tange a fauna, imperioso ressaltar que o meio ambiente foi visto
durante séculos como fonte extrativista, sendo que o aspecto protetivo presente nos dias de
hoje foi fruto de evolução do pensamento ao redor do mundo, merecendo destaque para a
Convenção de Estocolmo, para Lei de Política Nacional do Meio Ambiente e, por fim pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual foi um dos marcos histórico-
ambiental mais relevantes da memória nacional porque tratou o meio ambiente em capítulo
próprio e com uma visão protecionista.
Insta ressaltar, portanto, que a fauna é um elemento da natureza essencial para a vida
humana e o seu desequilíbrio pode afetar diretamente a própria raça humana e outros seres
vivos componentes do ecossistema e biodiversidade. A matança desgovernada de determinada
espécie animal pode acarretar uma desestabilização dos ecossistemas.
A prática de alimentação forçada é um procedimento contra a raça animal. Durante o
decurso de todas as análises da temática ficou clarividente o “abate” das aves aquáticas em
busca de um fígado que pode considerar-se doente, que é servido como iguaria da culinária
francesa. O cunho econômico e gastronômico como incentivadores dos maus-tratos. Mesmo
assim o Estado está silente.
Visando coibir tal conduta, vários Estados proibiram a alimentação forçada,
deixando, entretanto, liberada a venda do produto, o que causa um efeito cascata: proíbe-se a
prática (meio), mas possibilita-se a venda (fim). Não há um fim sem o meio. Portanto,
totalmente paradoxal. Diante deste cenário o estado norte-americano da Califórnia baniu a
alimentação forçada e a venda de foie gras.
No Brasil, a lacuna legislativa entre a prática de maus-tratos e a venda do produto
deixa a desejar. Não é proporcional aplicar sanções penais a um vendedor, considerando que
não há tipificação legal específica. A impunidade não pode predominar. Assim sendo, outro
caminho não resta a não ser a modificação da legislação ordinária a fim de proibir a venda do
foie gras para simetrizar a Constituição de 1988 e a legislação infraconstitucional, sempre em
prol da sociedade (humana e não humana – animais).

486
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

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488
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

TUTELA AMBIENTAL: A PROTEÇÃO ASSEGURADA PELA


CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988 E AS DISCUSSÕES ACERCA DA SUA
CONCRETIZAÇÃO NO CENÁRIO INTERNACIONAL

ENVIRONMENTAL PROTECTION: PROTECTION BY THE CONSTITUTION


OF 1988 AND THE CITIZEN DISCUSSIONS ABOUT HIS ACHIEVEMENT IN
THE INTERNATIONAL SCEN
Renata Mayumi Sanomya1
Laeti Fermino Tudisco2

RESUMO
O presente artigo pretende apresentar um estudo acerca dos inúmeros benefícios
advindos do manejo sustentável do meio ambiente, sua relevância no cenário mundial e
no ordenamento jurídico, trazendo a baila a importante relação que guarda com os
ditames constitucionais e infraconstitucionais. Entre os meios eficazes que tratam da
proteção ambiental, demonstrou-se a relevância de discorrer de forma mais aprofundada
sobre os princípios específicos e instrumentos jurídico-ambientais desse ramo autônomo
do direito. No que concerne à seara internacional, destacou-se questões relevantes no
que tange as espécies de fontes internacionais ambientais para, posteriormente, tecer
breves considerações acerca das conclusões mundiais e sua relevância para a
conservação do meio ambiente, com o escopo de conjugar a conservação do meio
ambiente com o desenvolvimento das atividades econômicas.
PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Constituição Federal de 1988; Princípios;
Conclusões Mundiais.

ABSTRACT
The present article aims to present a study about the numerous benefits arising from
sustainable management of environment, its relevance on the world stage and in the
legal system, showing the important relationship that keeps with the constitutional and
infra dictates. Among the effective ways dealing with environmental protection, the
relevance of discussing about the specific principles and environmental legal
instruments was demonstrated. Regarding international harvest, stood out relevant
issues concerning the species of international environmental sources to, subsequently,
discuss the world conclusions and their relevance for the conservation of environment,
aiming to combine environmental conservation and the development of economic
activities.
KEYWORDS: Environment; 1988 Constitution; Principles; World Conclusions.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo inicia-se com a análise do crescimento da relevância que o


tema ambiente vem conquistando no cenário mundial e no ordenamento jurídico.
Consequentemente, serão feitas importantes exposições acerca do instituto em questão.

1
Mestranda em Direito Negocial UEL/PR, bolsista CAPES/DS, especialista em Direito Internacional e
Econômico pela UEL/PR; renatasanomya@yahoo.com.br.
2
Mestranda em Direito Negocial UEL/PR, bolsista CAPES/DS, especialista em Direito Constitucional
Contemporâneo pelo IDCC/PR; laety_87@hotmail.com.

489
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Preliminarmente, serão vistos o conceito, a classificação e a evolução histórica,


realizando um exame dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam
da proteção ambiental.
Além disso, por se tratar de um ramo autônomo do direito e possuir princípios
próprios, específicos e interligados entre si, se mostrará pertinente também, discorrer de
forma mais aprofundada acerca de cada um desses elementos.
Em seguida, será avaliada a importância que os instrumentos jurídico-
ambientais representam, na medida em que, constituem verdadeiras armas no combate
ao dano ambiental. Para tanto, foram citados alguns desses instrumentos, sendo que,
sobre alguns deles foram tecidas breves considerações.
Após, no que se refere à seara internacional, serão apresentadas as espécies de
fontes internacionais ambientais definidas no estatuto da Corte de Haia, ressaltando o
status que possuem no ordenamento jurídico por se tratarem de meios eficazes de
proteção das normas ambientais.
Neste último capítulo, ainda, será examinado o conceito e a amplitude
alcançada quando se menciona a expressão concretização, para, posteriormente,
adentrarmos especificamente nas conclusões mundiais, destacando a Conferência de
Estocolmo, o Relatório Brundtland, a Rio/92 e o Protocolo de Quioto.
Por derradeiro, serão lembrados os entraves que se opõe à efetiva proteção
ambiental, tomando como base questões políticas e econômicas que interferem de
maneira considerável, demonstrando a dificuldade de conjugar a conservação do
ambiente com o desenvolvimento das atividades econômicas.

2 AMBIENTE

Inicialmente serão apontados conceitos fundamentais sobre o ambiente,


ressaltando a proteção que o ordenamento jurídico dedica ao tema em questão.
Após, serão analisadas as subdivisões do ambiente de acordo com a doutrina
majoritária bem como o Texto Constitucional.
Por fim, a crescente importância da matéria será comprovada com o exame da
evolução histórica e o atual status alcançado, inclusive no plano internacional.

2.1 Aspectos conceituais e classificação

490
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A evolução da sociedade e o desenvolvimento tecnológico tornam o conceito


de ambiente cada vez mais presente no vocabulário cotidiano, demonstrando a crescente
relevância da matéria tanto em âmbito nacional como internacional.
O surgimento de diversos sentidos para a expressão ambiente pode prejudicar o
adequado referencial para sua compreensão, evidenciando a necessidade de
conceituação e análise aprofundada acerca do tema.
Segundo o doutrinador José Afonso da Silva (1981 apud LEMOS, 2008, p. 27),
“meio ambiente é a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais
que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida humana”.
Já a Lei n° 6.938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
em seu artigo 3°, inciso I, conceitua o vocábulo como “o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege
a vida em todas as suas formas”.
Assim, de acordo com o escritor Edis Milarè, in verbis (2000 apud DUARTE,
2003, p. 69):

No conceito jurídico de “meio ambiente” podemos distinguir duas


perspectivas: uma concepção estrita (e arcaica), onde o meio ambiente é
considerado apenas como o patrimônio natural e suas relações com e entre os
seres vivos; e uma concepção ampla, na qual o meio ambiente abrange toda a
natureza original (natural) e artificial, assim como os bens culturais
correlatos. Tem-se, assim, de um lado, o meio ambiente natural (ou físico)
constituído pelo solo, água, ar, energia, fauna e flora, e de outro, o meio
ambiente artificial (ou humano), formado pelas edificações equipamentos e
3
alterações produzidas pelo homem (natureza urbanística). ”

Por se tratar de um assunto de recente formulação teórica e abrangência ampla,


o conceito de ambiente enseja um elevado número de polêmicas e divergências,
possibilitando diferentes classificações para os bens que o compõem. Nesse sentido,
adotando a doutrina majoritária admite-se a subdivisão em ambiente natural, artificial,
cultural e ambiente do trabalho.
Nas palavras de Patrícia Faga Iglecias Lemos:

O meio ambiente natural é composto: a) pelos recursos naturais de


característica planetária, quais sejam, o solo, a água, o ar atmosférico, a flora
e a fauna; b) pelos ecossistemas brasileiros e sua função geoeconômica; e, c)
4
pela biodiversidade e patrimônio genético.”

3
DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em crise. Curitiba:
Juruá, 2003. p. 69.
4
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente.
2 ed. reformulada e atualizada da obra Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: RT,
2008. p. 28.

491
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O ambiente natural, ainda, encontra-se descrito no artigo 225, caput e no seu §


1°, incisos I, III e VII da Constituição Federal, os quais dispõem:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para
as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas; [...]
III – definir em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a
supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que
comprometa a integridade dos atibutos que justifiquem sua proteção; [...]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies
ou submetam os animais a crueldade. [...].

Por outro lado, o ambiente artificial é formado pelas construções humanas


juntamente com as áreas rurais transformadas pela intervenção do homem. O
desenvolvimento urbano e a proteção constitucional prevista no artigo 182 resultaram
na Lei n° 10.257/01, a qual estabelece diretrizes para que os Municípios instituam seus
planos diretores.
Além disso, existem outros dispositivos constitucionais que tratam desta
matéria, como, por exemplo, o art. 21, inc. XX, que dispõe sobre a competência da
União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, no que tange à habitação,
saneamento básico e transportes urbanos, o art. 5º, inc. XXIII, o qual dita que a
propriedade atenderá a sua função social.
Nota-se assim que o meio ambiente urbano é tutelado de maneira mediata e
imediata. O art. 225 da Constituição Federal tutela de forma mediata, pois protege o
meio ambiente de forma geral. Todavia, o meio ambiente artificial recebe a tutela
imediata, no caput do art. 182 da Carta Magna; redigindo nos seguintes termos:

A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público


municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes.

Dessa forma, diante do conteúdo pertencente ao meio ambiente artificial, não


há como negar a relação do mesmo com a dinâmica das cidades. Assim, ele está ligado
ao conceito de direito à sadia qualidade de vida, do direito a satisfação dos valores da
dignidade humana e da própria vida.

492
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A Constituição Federal, observando tais apontamentos, fixou então como


objetivo da política urbana a realização de pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade, e a garantia do bem-estar dos seus habitantes.
Com relação ao ambiente cultural destaca-se a importância da preservação do
patrimônio cultural, constituído pelos patrimônios turístico, histórico, artístico,
científico, entre outros.
Devido à sua relevância para a cultura histórica do país recebe amparo
constitucional, o qual institui:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Finalmente, o ambiente do trabalho diz respeito à qualidade do local em que o


trabalhador exerce sua atividade profissional, tendo sua proteção garantida em
dispositivos constitucionais:

Art. 7°. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:
XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de
saúde, higiene e segurança;
XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou
perigosas, na forma da lei;
XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de
dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na
condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Diante do exposto torna-se possível compreender a importância e os motivos


da tutela constitucional destinada ao assunto, compreendendo o ambiente em sua forma
mais ampla.

2.2 Evolução Histórica

O crescimento populacional, o desenvolvimento dos centros urbanos e o


fenômeno da industrialização acarretaram uma degradação ambiental de proporções

493
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

consideráveis, fazendo com que o homem se preocupasse cada vez mais com o
ambiente e sua preservação.
Essa “consciência ecológica” chamou a atenção de toda a sociedade e do poder
estatal para os problemas ambientais que se agravavam com o passar dos anos e para a
desenfreada expansão capitalista.
Por esses motivos, viu-se a necessidade de criação de normas e princípios que
regulamentassem a preservação dos recursos naturais na tentativa de garantir a
manutenção do equilíbrio ecológico em razão da qualidade de vida indispensável à
pessoa humana.
A Constituição Federal de 1988, considerada um marco na legislação
ambiental brasileira, trouxe uma inovação no que diz respeito à categoria de bens,
criando a categoria de bens de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de
vida.
Tais bens, também chamados bens ambientais, se diferenciam dos públicos e
dos privados na medida em que pertencem a um conjunto indeterminável de pessoas e
cuja proteção interessa não apenas aos indivíduos isoladamente considerados, mas à
coletividade como um todo.
“Cabe advertir, ainda, que o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado
constitui espécie de interesse difuso, o qual integra o gênero de direitos chamados de
metaindividuais ou transindividuais.” 5
Em âmbito mundial vale lembrar a Constituição da Bulgária de 1971, a
Constituição Cubana e a Portuguesa, ambas de 1976, a Espanhola de 1978, a Chilena de
1981 e, finalmente, a Constituição Chinesa de 1982, as quais traziam em seus textos a
preocupação com a preservação do ambiente.

3 PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL

Os princípios representam a base do ordenamento, significando o início, o


ponto de partida, ou seja, normas elementares que servem como alicerce de um sistema.
Conforme se extrai das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (1997 apud
SILVA, 2000, p.95), princípio jurídico é:

5
KUWAJIMA, Itiro; LEAL JÚNIOR, João Carlos. Breve ensaio sobre a relevância do direito ambiental
na contemporaneidade. Revista Jurídica Empresarial, Porto Alegre, v. 3, n. 15 , p.137-169 , ago. 2010.

494
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

...mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição


fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito
e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
6
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Os princípios ambientais visam proporcionar para as presentes e futuras


gerações as garantias de preservação da qualidade de vida, conciliando elementos
econômicos e sociais para possibilitar o crescimento de acordo com a ideia de
desenvolvimento sustentável.
Desse modo, o direito ambiental, devido ao fato de ser revestido de valor
supranacional, é um ramo autônomo do direito, sendo, portanto, composto por
princípios próprios, específicos e interligados entre si.

3.1 Princípio democrático

Também encontrado no capítulo que trata dos direitos e deveres individuais e


coletivos, este princípio, que tem como base a democracia, se desdobra no direito à
informação e à participação do cidadão na elaboração das políticas públicas ambientais.
“Ao invés da submissão às decisões prontas, permite-se ao cidadão participar
do debate, da formulação, da execução e da fiscalização das políticas ambientais, em
contribuição à democracia participativa.” 7
Assim, no sistema constitucional brasileiro essa participação pode se dar por
meio do dever jurídico universal de proteger e preservar o ambiente e do direito de
opinar sobre as políticas públicas ambientais adotadas, através de mecanismos
legislativos, administrativos e judiciais.

3.2 Princípio da precaução

Este princípio, também denominado princípio da prudência ou cautela,


constitui uma garantia contra impactos ambientais que podem ser causados por novos
produtos ou tecnologias.

6
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed. revista e atualizada nos termos
da reforma constitucional (até a emenda constitucional n. 24, de 9.12.1999). São Paulo: Malheiros, 2000.
p. 95.
7
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e Coletivos: direito ambiental. São Paulo: RT, 2009.
p. 50.

495
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Assim, “sempre que houver perigo da ocorrência de um dano grave ou


irreversível, a ausência de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como
razão para se adiar a adoção de medidas eficazes, a fim de impedir a degradação
ambiental.” 8
Nessas situações, onde não existe certeza científica com relação aos danos e de
sua reversibilidade, prima-se pelo emprego da prudência por meio da análise de custo e
benefício entre o grau de risco aceitável e o benefício que advirá da atividade.

3.3 Princípio da prevenção

Apesar de guardar estreita relação com o princípio da precaução, o da


prevenção se diferencia daquele na medida em que se aplica nos casos de impactos
ambientais já conhecidos priorizando medidas que evitem a ocorrência de danos.
“Com isso, impende reconhecer que toda a ação do direito ambiental está
voltada para uma tutela preventiva, pois a coação a posteriori revela-se ineficaz.” 9
Finalmente, cabe lembrar que tanto o licenciamento ambiental como os estudos
prévios sobre impacto ambiental são realizados e solicitados pelas autoridades públicas
tendo como base o princípio ora discutido.

3.4 Princípio do poluidor pagador

O referido princípio parte do pressuposto de que os recursos ambientais


utilizados na produção e no consumo são insuficientes e o seu uso contínuo e sem
planejamento acarretará em uma redução e degradação de proporções consideráveis.
Neste particular, inclusive, vejam-se os apontamentos do doutrinador José
Rubens Morato Leite:

O princípio poluidor pagador tem reflexos na economia ambiental, na ética


ambiental, na administração pública ambiental e no direito ambiental, pois
tenta imputar na economia de mercado e no poluidor custos ambientais e,
com isso, visa a combater a crise em suas origens ou na fonte. [...} Assim,

8
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2 ed. revista,
atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2003. p. 46.
9
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente.
2 ed. reformulada e atualizada da obra Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: RT,
2008. p. 158.

496
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

este princípio tenta, no plano econômico, atenuar as falhas do mercado,


10
provocadas pela incorreta utilização dos recursos.

O próprio artigo 225 do Texto Constitucional, em seu § 3° dispõe:

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente


sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e
administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos
causados.

Portanto, “independente de culpa ou dolo, o poluidor é obrigado a indenizar e


reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade,
assim como arcar com os custos diretos e indiretos de medidas preventivas e de controle
da poluição.” 11

3.5 Princípio da responsabilidade

Conforme o já citado § 3° do artigo 225 da Constituição Federal, qualquer


atividade lesiva ao meio ambiente implica no emprego de medidas repressivas ao
responsável pela quebra da ordem jurídica.
Aqui, vale ressaltar as palavras de José Rubens Morato Leite:

Ressalte-se que, uma vez ocorrido o dano ambiental, este é de difícil


reparação, recuperação, ou indenização e, não obstante, o sistema de
responsabilidade funciona como uma resposta da sociedade àqueles que
atuam degradando o ambiente e devem responder pelos seus atos, sob pena
de falta de imputação ao agente poluidor e insegurança jurídica no Estado de
12
Direito do Ambiente.

Desta forma, admite-se que a responsabilidade é objetiva, ou seja,


independentemente de culpa, o causador do dano ambiental poderá ser responsabilizado
nas esferas administrativa, civil e, inclusive criminal.

3.6 Princípio do desenvolvimento sustentável

10
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 2 ed.
revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2003. p. 57.
11
PIRES, Natália Taves. Breves comentários sobre a principiologia regente do direito ambiental
brasileiro. Revista Jurídica Empresarial, Porto Alegre, n. 13, mar./abr. 2010. p. 9.
12
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. 2 ed.
revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2003. p. 67 e 68.

497
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Para que a proteção e conservação ambiental sejam efetivas, há a necessidade


de equilibrar o desenvolvimento econômico e o direito ao ambiente saudável.
Nesse sentido os ensinamentos da doutrinadora Patrícia Faga Iglecias Lemos:

O princípio do desenvolvimento sustentável deve ser entendido em


consonância com os demais princípios de proteção ambiental. O bem que
propicia o desenvolvimento econômico, social, cultural, político é o mesmo
que importa para a manutenção da sadia qualidade de vida. Por isso, não tem
sentido que o desenvolvimento se dê de forma desordenada e cause dano ao
13
meio ambiente.

Diante das considerações feitas, constata-se a importância da convivência


harmônica do homem com a natureza através da utilização racional dos recursos
ambientais de modo a preservar um ambiente sadio e a qualidade de vida da população.

4 INSTRUMENTOS JURÍDICO-AMBIENTAIS

A Lei n° 6.938/81 prevê diversos instrumentos de prevenção do dano ao


ambiente, dentre os quais podemos destacar: o zoneamento ambiental; o estudo prévio
de impacto ambiental; a reserva legal; o licenciamento ambiental; os termos de
ajustamento de conduta; entre outros.
“Por meio deles é que se decide se uma proteção ambiental será ou não
concedida, isto é, representam o ponto de partida para a compreensão mais aprofundada
do cenário jurídico ambiental em relação à proteção ambiental no Brasil.” 14
Por se tratar de instrumentos que buscam a efetiva tutela ambiental e devido à
seriedade do assunto em tela, alguns desses elementos serão analisados, ainda que
superficialmente, no presente capítulo.

4.1 Do zoneamento ambiental

13
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente.
2 ed. reformulada e atualizada da obra Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: RT,
2008. p. 155.
14
RAMOS, Erasmo Marcos. Direito Ambiental Comparado: Brasil-Alemanha-EUA: uma análise
exemplificada dos instrumentos ambientais brasileiros à luz do direito comparado. Maringá: Midiograf II,
2009. p. 117.

498
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A lei de Política Nacional do Meio Ambiente, que prevê o zoneamento


ambiental em seu artigo 9°, inciso II, foi regulamentada pelo Decreto n° 4.297 de 2002
que estabelecia diretrizes para o zoneamento ambiental.
Na tentativa de manter o equilíbrio dos ecossistemas e o uso sustentável dos
recursos naturais este instrumento, portanto, tem como base os princípios da precaução
e preservação, já estudados anteriormente.
Também conhecido como zoneamento ecológico-econômico, consiste em um
estudo aprofundado da região para constatar os impactos ambientais decorrentes da
atividade humana e a capacidade do meio de suportá-las.
“Procura, assim, uma gestão integrada das políticas territoriais, ambientais e de
desenvolvimento em um espaço determinado, que pode ser um município, um Estado-
membro, uma região e até o país.” 15
Enfim, essa medida não jurisdicional tem por fundamento o planejamento da
utilização do solo e a delimitação de zonas ambientais segundo suas potencialidades e
restrições, atendendo, assim, ao princípio da função social da propriedade.

4.2 Estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e Licenciamento ambiental

Impacto ambiental pode ser definido como qualquer deterioração do ambiente


que decorra da atividade humana. Assim, o artigo 225, §1°, inciso IV da Constituição
Federal estabelece que, incumbe ao Poder Público “exigir, na forma da lei, para
instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do
meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”.
Em 1990, por meio do Decreto n° 99.274, ficou estabelecida a atribuição do
Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) para fixar as diretrizes
autorizadoras do licenciamento ambiental.
Nessa ocasião, portanto, cabe citar o artigo 1°, inciso III da Resolução 237/97
do CONAMA, segundo o qual, a avaliação de impactos ambientais abrange:

[...] todos e quaisquer estudos relativos aos aspectos ambientais relacionados


à localização, instalação, operação e ampliação de uma atividade ou
empreendimento, apresentado como subsídio para a análise da licença
requerida, tais como: relatório ambiental, plano e projeto de controle

15
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e Coletivos: direito ambiental. São Paulo: RT, 2009.
p. 58.

499
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ambiental, relatório ambiental preliminar, diagnóstico ambiental, plano de


manejo, plano de recuperação de área degradada e análise preliminar de risco.

Na apreciação de Erasmo Marcos Ramos:

Uma característica muito importante do EIA é o seu caráter preventivo. Com


a criação deste instrumento foram percorridos novos caminhos “preventivos”
no mundo jurídico, pois no EIA está implícita uma tentativa de evitar o
16
surgimento do dano ambiental.

Fica claro, então, que qualquer atividade ou obra com potencial para modificar
o ambiente requer a solicitação de um estudo e o prévio licenciamento para sua
permissão.
Logo, o licenciamento ambiental é uma atividade exercida pelo Poder Público,
o qual possui discricionariedade para deferi-la ou não, sempre com escopo no equilíbrio
que deve haver entre o desenvolvimento econômico sustentável e a proteção do
ambiente.

5 TUTELA DO AMBIENTE NO DIREITO INTERNACIONAL

A seguir serão feitas considerações acerca de cada uma das espécies de fontes
internacionais ambientais, discutindo sua importância no âmbito internacional.
Posteriormente, será introduzido o assunto relativo às conclusões mundiais,
fazendo um paralelo entre as conferências internacionais com foco na concretização e
suas consequências para o direito internacional.

5.1 Fontes do direito internacional ambiental

A Corte da Haia foi o primeiro Tribunal Internacional e, em 1920, ao


estabelecer seu estatuto, definiu como fontes de normas internacionais os tratados, o
costume internacional e os princípios gerais de direito, sem esquecer-se de mencionar a
jurisprudência, a doutrina e a equidade como instrumentos eficazes no auxílio para a
determinação das normas jurídicas.

16
RAMOS, Erasmo Marcos. Direito Ambiental Comparado: Brasil-Alemanha-EUA: uma análise
exemplificada dos instrumentos ambientais brasileiros à luz do direito comparado. Maringá: Midiograf II,
2009. p. 156.

500
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

5.1.1 Tratados Internacionais

Os tratados internacionais podem ser definidos “como um acordo formal


internacional entre pessoas jurídicas de direito internacional público, destinado a
produzir efeitos jurídicos, qualquer que seja a sua denominação.” 17
Nesse momento, compete lembrar as palavras do professor Guido Fernando
Silva Soares:

A simples constatação da pletora dos tratados, acordos, convenções e demais


atos internacionais assinados entre os Estados, relativos à proteção do meio
ambiente, revela a riqueza das fontes do “jus scriptum”, representado pelos
atos solenes, quer gerais, quer especiais, estabelecidos entre os Estados, seja
18
os de alcance global, seja os de alcance regional e mesmo local.

Devido à relevância do tema, alguns desses atos internacionais serão analisados


isoladamente nos próximos capítulos, como por exemplo, a Conferência de Estocolmo,
a Rio/92 e o Protocolo de Quioto.

5.1.2 Costume Internacional

O costume nada mais é do que as atitudes e modos comuns do povo, e a partir


do momento em que se tornam gerais e duradouros passam a ser considerados
regulamentos no círculo social.
Sobre o assunto expõe Guido Fernando Silva Soares:

O costume internacional, no que respeita ao Direito Internacional do Meio


Ambiente, tem sido revelado pela sua freqüente invocação perante os
julgadores ou árbitros, em litígios internacionais entre Estados, ou revelado
pela prática reiterada de determinados atos pelos Estados, e, nos casos em
que estabelecem normas de natureza proibitivo-penal, podem ser oponíveis
aos demais Estados. Um exemplo esclarecedor consistiria na prática de atos
que são obrigatórios em virtude de tratados ou convenções internacionais
gerais, dos quais um Estado não parte dos mesmos, se vê compelido a
praticar, sob pena de sanções legítimas impostas unilateral ou no conjunto de
19
outros Estados.

17
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio
ambiente. 2 ed. reformulada e atualizada da obra Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São
Paulo: RT, 2008. p. 63.
18
SOARES, Guido Fernando Silva. As responsabilidades no Direito Internacional do Meio Ambiente.
Campinas: Komedi Editores, 1995. p. 72.
19
SOARES, Guido Fernando Silva. As responsabilidades no Direito Internacional do Meio Ambiente.
Campinas: Komedi Editores, 1995. p. 121 e 122.

501
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Nessa linha de pensamento, o Fórum de Siena sobre Direito Internacional do


Meio Ambiente, realizado em 1990, adotou o posicionamento de que tais regras
poderiam ser aplicadas também no caso de países não signatários das referidas
convenções.

5.1.3 Princípios Gerais de direito

No tocante ao Direito Ambiental Internacional, os princípios gerais de direito


são, reconhecidamente, aqueles que pertencem às legislações de diversos Estados, assim
como os constantes do ordenamento jurídico internacional.
São eles, portanto, uma prática geralmente aceita pelas nações. “Na verdade,
todos os princípios relevantes para a tutela do meio ambiente, como interesse global,
são relevantes.” 20

5.1.4 Fontes Auxiliares

Também denominadas fontes materiais, encontram-se expressamente elencadas


no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
Assim, na terminologia do próprio Estatuto, a doutrina internacional diz
respeito à doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, sendo que não
se pode esquecer a contribuição das ONGs dedicadas ao estudo do Direito Ambiental
internacional.
Finalmente, outra fonte auxiliar de extrema relevância é a jurisprudência
internacional, representada “pelos precedentes da Corte Permanente de Justiça
Internacional, e da sua sucessora, a atual Corte Internacional de Justiça, o órgão
judiciário da ONU.” 21

5.2 Conclusões mundiais e sua concretização no cenário internacional

20
LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Direito Ambiental: responsabilidade civil e proteção ao meio ambiente.
2 ed. reformulada e atualizada da obra Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. São Paulo: RT,
2008. p. 66.
21
SOARES, Guido Fernando Silva. As responsabilidades no Direito Internacional do Meio Ambiente.
Campinas: Komedi Editores, 1995. p. 132 e 133.

502
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Consoante visto, a importância do direito ambiental, tanto no cenário nacional


quanto internacional, cresce com o passar dos anos e, assim, merecem suas conquistas
análise mais aprofundada.
Considerando a discussão acerca da concretização no que tange o Direito,
revela-se:

Sob uma óptica geral, a averiguação da efetividade de um tratado, ou de


qualquer outro dispositivo normativo internacional, tem como objetivo, em
suma e inclusive, investigar se os agentes, para os quais foi destinado, estão,
realmente, cumprindo a regra do dispositivo, de forma que seja possível
22
verificar se a norma está cumprindo sua função.

“A efetividade depende, assim, preponderantemente, de um balanço positivo


entre as condições de capacidade institucional e os incentivos econômicos ao conjunto
de atores envolvidos” 23
Conclui-se do exposto que, as normas internacionais devem ser criadas com o
escopo de pacificação dos interesses dos sujeitos internacionais, viabilizando o respeito
e a convivência harmônica entre eles, em um ambiente onde inexiste um governo
comum.

5.2.1 Conferência de Estocolmo

Considerada um marco da consolidação do direito internacional ambiental, esta


conferência, também conhecida como Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano, foi realizada na Suécia no ano de 1972.
Explica Fabiano Melo Gonçalves de Oliveira:

Durante os seus trabalhos, surgiram duas correntes: (a) os preservacionistas,


corrente radical, liderados pelos países desenvolvidos, que defenderam a
suspensão da intervenção do homem no meio ambiente; e os (b)
desenvolvimentistas, composta pelos países em desenvolvimento, entre os
quais o Brasil, que afirmavam, em síntese, que os países em desenvolvimento

22
AZEVEDO, Andrea; LIMA, Gabriela. Construção do conceito de efetividade no direito. In: BARROS-
PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias (Orgs.). A efetividade do direito internacional
ambiental. Brasília: Editora UNICEUB, UNITAR e UnB, 2009. p. 21 e 22.
23
VARELLA, Marcelo Dias. Efetividade do direito internacional ambiental: Análise comparativa entre as
convenções da CITES, CDB, Quioto e Basiléia no Brasil. In: BARROS-PLATIAU, Ana Flávia;
VARELLA, Marcelo Dias (Orgs.). A efetividade do direito internacional ambiental. Brasília: Editora
UNICEUB, UNITAR e UnB, 2009. p. 48.

503
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

aceitavam a poluição e que a preocupação deveria ser com o crescimento


24
econômico.

Após diversos encontros preparatórios editou-se a Declaração de Estocolmo


sobre Meio Ambiente Humano, composta por 26 princípios, cujo objetivo era conservar
e melhorar o meio ambiente.
Assim, ensina Marise Costa de Souza Duarte:

Desse modo, se atribui à Conferência de Estocolmo o mérito de, a partir dali,


passar a se visualizar a necessidade de adoção de novos instrumentos e
políticas globais no tratamento dos problemas ambientais, em razão da
percepção surgida quanto à interdependência planetária de todos os seres
25
vivos.

Esta conferência, portanto, “serviu para inserir no plano internacional a


dimensão ambiental como condicionadora e limitadora do modelo tradicional
econômico e dos recursos naturais do planeta.” 26

5.2.2 Relatório Brundtland

Também denominado “Relatório Nosso Futuro Comum”, foi apresentado, em


1987, pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente, versando precipuamente sobre a
necessidade de conjugar a conservação do ambiente com as atividades econômicas.
Nele, foram assinalados os principais problemas ambientais, agrupados em três
categorias, conforme esclarece o professor Sidney Guerra:

a) poluição ambiental, emissões de carbono e mudanças climáticas, poluição


da atmosfera, poluição da água, dos efeitos nocivos dos produtos químicos e
dos rejeitos nocivos, dos rejeitos radioativos e a poluição das águas interiores
e costeiras.
b) diminuição dos recursos naturais, como a diminuição de florestas, perdas
de recursos genéticos, perda de pasto, erosão do solo e desertificação, mau
uso de energia, uso deficiente das águas de superfície, diminuição e
degradação das águas freáticas, diminuição dos recursos vivos do mar.
c) problemas de natureza social tais como: uso da terra e sua ocupação,
abrigo, suprimento de água, serviços sanitários, sociais e educativos e a
27
administração do crescimento urbano acelerado.

24
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e Coletivos: direito ambiental. São Paulo: RT, 2009.
p. 21.
25
DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em crise. Curitiba:
Juruá, 2003. p. 45.
26
GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006.
27
GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006.

504
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ademais, “as sugestões e as exigências que se encontram no relatório


transformam-se posteriormente em tratados e convenções internacionais e, também, em
direito nacional em muitos países.” 28
Nesse sentido, esse Relatório “definiu os contornos do conceito clássico de
desenvolvimento sustentável, como aquele “que atende às necessidades das gerações
atuais sem comprometer a capacidade de as futuras gerações terem suas próprias
necessidades atendidas” 29

5.2.3 Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

Devido à sua enorme importância, contou com a presença de 116 chefes de


Estado e de governo e mais de 10.000 participantes, contabilizando um total de 179
países.
Sobre a Conferência leciona Erasmo Marcos Ramos:

O princípio fundamental da Conferência Rio 1992 é, assim, o princípio do


desenvolvimento sustentado. Tal princípio norteador já era conhecido desde o
relatório Brundtland. Contudo, a partir da Conferência esse princípio passou
a ter um caráter mais legal e foi recepcionado por muitos ordenamentos
jurídicos. [...] Neste cenário de desenvolvimento é importante entender que
foram necessárias décadas para chegar a um consenso internacional quanto
ao princípio norteador. Sempre foi muito difícil encontrar um consenso
internacional sobre esta questão, pelo fato dos interesses que estão por traz da
questão ambiental serem praticamente incomensuráveis. Assim, o próprio
consenso em relação ao princípio já representava um grande passo rumo à
30
parceria global.

A Rio/92 ou Cúpula da Terra deu origem a significantes documentos


internacionais, quais sejam, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Agenda 21, a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas e a
Convenção sobre Diversidade Biológica ou da Biodiversidade.
A primeira, apesar de ser considerada uma recomendação, traz, em seus 27
princípios, conceitos basilares para compreensão não só do direito ambiental na seara

28
RAMOS, Erasmo Marcos. Direito Ambiental Comparado: Brasil-Alemanha-EUA: uma análise
exemplificada dos instrumentos ambientais brasileiros à luz do direito comparado. Maringá: Midiograf II,
2009. p. 108.
29
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e Coletivos: direito ambiental. São Paulo: RT, 2009.
p. 21.
30
RAMOS, Erasmo Marcos. Direito Ambiental Comparado: Brasil-Alemanha-EUA: uma análise
exemplificada dos instrumentos ambientais brasileiros à luz do direito comparado. Maringá: Midiograf II,
2009. p. 112.

505
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

internacional como também serve de alicerce para o desenvolvimento principiológico na


legislação ambiental interna dos países.
Já a Agenda 21 é um “documento programático, um plano de ação com uma
série de instrumentos e iniciativas para a proteção do meio ambiente no âmbito
internacional, nacional, regional e local, integrando sociedade civil e governos.” 31
A Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas encontra-se vinculada ao
Protocolo de Quioto, na medida em que tem por escopo estabilizar as concentrações de
gases de efeito estufa.
Finalmente, a Convenção sobre Diversidade Biológica ou da Biodiversidade
representa o mais efetivo instrumento internacional no que tange à proteção da
biodiversidade.

5.2.4 Protocolo de Quioto

O efeito estufa é um fenômeno decorrente da absorção, por determinados gases


presentes na atmosfera, da radiação infravermelha emitida pela superfície terrestre,
ocasionando o aquecimento global.
Em razão do agravamento desse efeito, foi adotado no Japão, em 1997, um
Protocolo que representou um respeitável marco em matéria ambiental internacional,
pois foi o primeiro a impor limites às emissões de gases pelos Estados.
Aberto para assinatura em março de 1998, precisava da ratificação de, pelo
menos, 55 Partes da Convenção, incluindo os países desenvolvidos (que representavam,
no mínimo, 55% das emissões totais de dióxido de carbono em 1990), para que pudesse
entrar em vigor.
Fruto da preocupação com o aquecimento global, sua finalidade precípua
consistia no estabelecimento de metas capazes de reduzir a emissão dos gases de efeito
estufa na atmosfera, principalmente pelos países industrializados, além de criar formas
de desenvolvimento de maneira menos impactante aos países em pleno
desenvolvimento.
Além disso, segundo Sidney Guerra:

31
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e Coletivos: direito ambiental. São Paulo: RT, 2009.
p. 23.

506
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Kyoto sinaliza para os diversos atores internacionais quanto a necessidade de


mudanças dos sistemas energéticos e fontes renováveis de energia, haja vista
que a solução dos problemas relativos a alterações climáticas requer adoção
de medidas e comportamentos diferenciados no sistema energético atual,
baseado em energia não renovável e contaminantes (petróleo, carvão e gás),
32
que são utilizadas de forma excessiva e com desperdício.

Os países signatários, então, ainda que em níveis diferenciados, se


comprometeram a alcançar as metas estabelecidas de redução dos gases, sem
diminuição da qualidade de vida, sendo o seu prazo final o ano de 2012.
Embora a relevância do Protocolo de Quioto seja inquestionável no âmbito de
proteção ao ambiente, vários políticos e estudiosos o julgam fadado ao fracasso com
base na análise de aspectos econômicos e políticos, à guisa de exemplificação as
palavras de Guilherme do Prado Lima e Larissa Villarroel:

[...] no Protocolo de Quioto, apesar de vários países participarem (inclusive


alguns dos mais relevantes), não se observa a adoção massiva de políticas,
portanto o resultado de redução de GEEs está mais difícil de ser vislumbrado.
[...] A falta de consenso acadêmico a respeito das causas do aquecimento
global e da necessidade de determinação de medidas de redução do gás
carbônico na atmosfera, que poderá afetar o nível de atividade econômica de
determinado país, é um dos fatores que contribuem para a fraca efetividade
33
do Protocolo de Quioto

Vale dizer, ainda, que “o impacto da comunidade científica sobre o Protocolo


de Quioto, [...], pode ser classificado como decadente, em parte, pela exacerbação do
consumismo característico da sociedade moderna.” 34
Seguindo essa linha de pensamento, as palavras dos já citados autores a
respeito do assunto:

[...] observamos grande número de atores envolvidos na produção e na


emissão dos gases observados pelo Protocolo, o que dificulta as negociações.
Além disso, observamos forte resistência à aceitação dos custos econômicos
da redução de emissões por parte dos principais países emissores, como no
caso dos Estados Unidos da América, o que enfraquece e desmotiva os outros

32
GUERRA, Sidney. Direito internacional ambiental. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2006.
33
LIMA, Guilherme do Prado; VILLARROEL, Larissa. A efetividade dos protocolos de Montreal e de
Quioto: uma análise comparativa. In: BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias
(Orgs.). A efetividade do direito internacional ambiental. Brasília: Editora UNICEUB, UNITAR e UnB,
2009. p. 228 e 242.
34
LIMA, Guilherme do Prado; VILLARROEL, Larissa. A efetividade dos protocolos de Montreal e de
Quioto: uma análise comparativa. In: BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias
(Orgs.). A efetividade do direito internacional ambiental. Brasília: Editora UNICEUB, UNITAR e UnB,
2009. p. 236.

507
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

signatários do Protocolo, além da falta de consenso político para a elaboração


35
de normas de alcance internacional.

Em suma, apesar de não possuir a efetividade merecida no cenário


internacional, não alcançando seus objetivos, o Protocolo em questão possui
consequências globais e, em razão disso, requer a cooperação internacional entre os
Estados na tentativa de solucionar problemas de ordem universal.

6 CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como um de seus objetivos abordar como o direito


ambiental obteve o status atual, alcançando grande importância como ramo autônomo
do direito, tanto em âmbito nacional como também na seara internacional.
Para tanto, fez-se necessário, no primeiro capítulo, discorrer sobre um conceito
cada vez mais difundido de ambiente, e tecer breves considerações acerca da
classificação, adotada pela maioria dos doutrinadores, além de analisar sua evolução
histórica.
No segundo capítulo, o artigo trouxe os princípios basilares que regem o direito
ambiental, destacando a importância que eles detêm no ordenamento jurídico, sempre
demonstrando a necessidade de utilização dos mesmos como verdadeiros instrumentos
de preservação da qualidade de vida.
Já o terceiro capítulo trata dos instrumentos jurídico-ambientais, sendo alguns
deles estudados de forma mais aprofundada, devido à sua relevância na tentativa de
prevenção do dano ambiental, buscando a efetiva proteção que o instituto merece.
Após, discutiu-se o papel de cada uma das espécies de fontes do direito
internacional ambiental, observando sua aplicação e o alcance obtido com o passar dos
anos e a evolução da sociedade.
Neste sentido, restou comprovada a necessidade de criação de normas e
princípios capazes de regulamentar a preservação dos recursos naturais, como forma de
conservar o equilíbrio ecológico existente, recebendo o assunto abordado proteção
constitucional irrevogável.

35
LIMA, Guilherme do Prado; VILLARROEL, Larissa. A efetividade dos protocolos de Montreal e de
Quioto: uma análise comparativa. In: BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias
(Orgs.). A efetividade do direito internacional ambiental. Brasília: Editora UNICEUB, UNITAR e UnB,
2009. p. 246.

508
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Finalmente, ainda no capítulo entitulado tutela do ambiente no direito


internacional, procurou-se expor uma perspectiva geral do conceito de concretização,
com o fito de melhor explicar as conclusões mundiais, seus principais aspectos e as
conquistas que representam em nível global.

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PIRES, Natália Taves. Breves comentários sobre a principiologia regente do direito


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509
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BARROS-PLATIAU, Ana Flávia; VARELLA, Marcelo Dias (Orgs.). A efetividade do
direito internacional ambiental. Brasília: Editora UNICEUB, UNITAR e UnB, 2009.

510
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

BIOCOMBUSTÍVEIS: INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO


FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE

BIOFUELS: EFFECTIVE TOOL FOR THE FUNDAMENTAL RIGHT TO THE


ENVIRONMENT

Alexandre Walmott Borges1


Mário Ângelo de Oliveira Júnior2

RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a adoção de fontes renováveis de energia no
ordenamento jurídico, fruto da implementação dos biocombustíveis na matriz energética
nacional como instrumento concretizador do direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado presente na Carta Magna de 1988. O direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, consagrado na Carta Magna de 1988, pode ser classificado,
segundo a melhor doutrina, como um direito fundamental da terceira dimensão.
Tais direitos apresentam nota distintiva dos direitos fundamentais das dimensões
antecedentes, pois se desprendem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu
titular, destinando-se à proteção de grupos humanos. Sendo assim, caracterizando-se como
direitos de titularidade coletiva ou difusa. Observando a reestruturação do setor energético
nacional, devido à progressiva inserção de fontes renováveis de energia e o tratamento
constitucional direcionados aos biocombustíveis.

Palavras-Chaves: Direitos fundamentais; meio ambiente; bicombustíveis.

ABSTRACT

This study aims to analyze the adoption of renewable energy sources in the legal system, the
result of implementation of biofuels in the national energy matrix as a tool concretizing the
fundamental right to an ecologically balanced environment present in the 1988 Constitution.
The right to an ecologically balanced environment, enshrined in the 1988 Constitution, can be
classified according to the best doctrine as a fundamental right of the third dimension.

1
Doutor em Direto pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor do programa de Mestrado em Direito
Público da Universidade Federal de Uberlândia.
2
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia.

511
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Such rights have distinctive note of fundamental rights dimensions of history, because they
give off, in principle, the figure of the man-individual as its owner and is designed for the
protection of human groups. Thus, characterizing the collective rights of ownership or diffuse.
Observing the restructuring of the national energy sector due to the progressive integration of
renewable energy and biofuels constitutional treatment directed.

Keywords: Fundamental Rights; environment; biofuels.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

INTRODUÇÃO

O catálogo dos direitos fundamentais apresentado pelo Constituinte de 88, tanto no


aspecto formal quanto material, é fruto, da evolução dos direitos fundamentais através de uma
perspectiva histórico-evolucionista, apresentada a partir das dimensões dos direitos
fundamentais.
Estas dimensões expressam, essencialmente, os anseios culturais, políticos e
jurídicos de uma determinada sociedade em um momento temporalmente delimitado,
culminado com a positivação normativa, tarefa do legislador constituinte e ordinário, dos
preceitos característicos de cada dimensão.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, consagrado na Carta Magna
de 1988, pode ser classificado, segundo a melhor doutrina, como um direito fundamental da
terceira dimensão. Tais direitos apresentam nota distintiva dos direitos fundamentais das
dimensões antecedentes, pois se desprendem, em princípio, da figura do homem-indivíduo
como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos. Sendo assim, caracterizando-
se como direitos de titularidade coletiva ou difusa. Dentre os direitos fundamentais da terceira
geração, destaca-se os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao
meio ambiente, direito a conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural.
A preocupação com a qualidade do meio ambiente é dos assuntos de grande
relevância, tanto em âmbito internacional quanto nacional. Exige-se dos Estados-soberanos,
políticas, medidas e instrumentos que garantam uma eficaz preservação do meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Clama-se por uma nova política mundial, visando o
esclarecimento, a conscientização, e quebras de paradigmas da população referente às
questões ambientais. Isto porque as necessidades comuns dos seres humanos podem passar
tanto pelo uso como pelo não uso do meio ambiente
As políticas ambientais desenvolvidas em âmbito internacional exigiram do
legislador nacional significativa adequação, ideológico-normativa em sua tarefa legiferante.
Nessa esteira, a efetivação fática do direito fundamental ora em comento, dar-se-á, a partir da
empregabilidade dos biocombustíveis na matriz energética nacional, uma vez que a referida
medida representa a consubstanciação deste direito fundamental.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

1 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Os termos direitos fundamentais e direitos humanos costumam ser utilizados como


sinônimo quando se referem a direitos e conquistas intrinsecamente relacionados à natureza
humana. A expressão direitos fundamentais (“droits fondamentaux”) surgiu na França (1770)
no movimento político cultural que deu origem à Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789).
Todavia, a diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais pode
ser observada em aspectos fáticos e doutrinários. Isso porque, os direitos humanos se
encontram consagrados nos tratados e convenções internacionais, apresentando, portanto
feições internacionais, não adstritas a realidades locais. Os direitos fundamentais são os
direitos humanos consagrados e positivados na Constituição de cada país, fruto da ideologia
característica de cada Estado Soberano. Em síntese, podemos conceber os direitos
fundamentais como os direitos humanos consagrados no plano interno, como sendo as normas
positivas constitucionais.
A Carta de 1998 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no
Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e
direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir
dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o
documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no
Brasil (PIOVESAN, 2011, p. 76).
A Constituição Federal de 1988 elenca em seu título II os direitos e garantias
fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos
sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. Para Canotilho os direitos
fundamentais têm como objetivo a
função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva (1) constituem
num plano jurídico-objetivo, normas de competência negativa para os poderes
públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências na esfera jurídica individual
(2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, poder de exercer positivamente direitos
fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos de
forma a evitar: agressões lesivas por parte dos mesmos (CANOTILHO, 1999,
p.541).
A situação topográfica dos direitos fundamentais positivados no início da
Constituição, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais, demonstra maior rigor
lógico e principiológico adotado pelo constituinte originário, visto que, os direitos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

fundamentais podem ser compreendidos como parâmetro hermenêutico para toda Carta
Magna de 1988. Nesta perspectiva,
a acolhida dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no
catálogo dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma
incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já que
nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam positivados
nos capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes, ao menos em
princípio e ressalvadas algumas exceções, reconhecido caráter
meramente programático (SARLET, 2010, p.66).
Inspirado nas lições de Georg Jellinek, reportamo-nos à classificação proposta pelo
ilustre jusfilósofo alemão Robert Alexy, pelo menos parcialmente adotada (inobstante com as
devidas adaptações ao direito positivo) pelo eminente publicista de Coimbra, José Joaquim
Gomes Canotilho.
A classificação de Alexy (que divide os direitos fundamentais em direitos de
defesa e direitos a prestações) parte de uma estreita vinculação com uma concepção dos
direitos fundamentais como direitos subjetivos com sede na Constituição, no sentido de
posições subjetivas individuais justiciáveis, distinguindo-os de normas meramente objetivas
(ALEXY, 2008, p.520).
Inspirados nas lições de Robert Alexy com ajustes necessários para realidade
brasileira, Ingo Wolfgang Sarlet define direitos fundamentais como todas as posições
jurídicas concernentes às pessoas (naturais ou jurídicas, consideradas na perspectiva
individual ou transindividual) que, do ponto de vista do direito constitucional positivo foram
expressa e implicitamente integradas à Constituição e retiradas da esfera de disponibilidade
dos poderes constituídos, além de todas as posições jurídicas que, por seu conteúdo e
significado, possam lhes ser equiparadas, mesmo que não dispostas na Constituição formal
(SARLET, 2010, p. 167).
Os direitos de defesa caracterizam-se por exigir do Estado, preponderantemente, um
dever de abstenção – característica negativa – em que se buscam limitações ao poder estatal
frente a questões individuais e coletivas.
Por outro lado, os direitos de prestações possuem um caráter essencialmente positivo,
impondo ao Estado o dever de agir. Exigem-se do Estado condutas ativas, tanto para proteção
de certos bens jurídicos contra terceiros quanto para promoção ou garantia das condições de
fruição desses bens. Sendo de certa forma, a junção de preceitos supracitados, os direitos de
participação possuem caráter negativo/positivo, pois tem por função garantir a participação
individual na formação da vontade política da comunidade.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A implementação dos biocombustíveis na matriz energética brasileira está


diretamente relacionada à classificação no que tange aos direitos de participação. Os direitos
fundamentais são, essencialmente, direitos invioláveis, em vista da impossibilidade de
desrespeito por determinações infraconstitucionais, ou por atos de autoridades públicas, e
universais, por abarcarem todos os indivíduos, independentemente de raça, credo, sexo, idade
ou condição social. São também interdependentes e complementares, porque a aplicação ou a
efetivação de um repercute necessariamente na dos outros, e porque a aplicação de um deve
ser sopesada com a dos outros, em cada caso prático
Importante destacar a distinção realizada pela doutrina quanto o conceito e
abrangência de direitos e garantias fundamentais: os direitos nos reconhecem certas posições
jurídicas frente ao Estado, enquanto as garantias conferem proteção àqueles direitos, nos
casos de violação; os primeiros nos asseguram direitos, enquanto as garantias conferem
proteção a esses direitos nos casos de eventual violação. Desse modo, ao direito fundamental
de locomoção (art. 5º, XV), corresponde a garantia fundamental do habeas corpus (art. 5º,
LXVIII). A Carta Magna não teve o preciosismo de separar os direitos das garantias
fundamentais, conforme pode ser observado ao longo do corpo textual.

1.1 Os direitos fundamentais e suas dimensões

O caráter dinâmico e constitutivo dos direitos fundamentais é inquestionável. Desde


o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por
diversas transformações, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto no que se concerne
à sua titularidade, eficácia e efetivação. Razão pela qual se fala, para alguns autores, como o
Professor Antônio Enrique Perez Luño, em um processo de autentica mutação histórica
vivenciado pelos direitos fundamentais (PÉREZ LUÑO, 1995, p.205).
Com objetivo de ilustrar tal processo utilizaremos, essencialmente, a classificação
realizada por Karel Vasak, e posteriores modificações doutrinárias. Desta forma, a ideia dos
direitos, humanos e fundamentais, poderia ser compreendida mediante a identificação de três
gerações. Dentre as observações realizadas quanto à apresentação dos direitos fundamentais
em gerações, destaque-se, primeiramente, a defesa realizado por alguns autores como a
existência de uma quarta e até mesmo de uma quinta e geração de direitos humanos e
fundamentais.
Apontamento de suma importância para o presente estudo é destacar as fundadas
críticas que vêm sendo dirigidas contra o próprio termo “gerações”. Isto porque, o

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

desenvolvimento dos direitos fundamentais tem caráter de um processo cumulativo e


complementar, e não de alternância e exclusão.
Sendo assim, o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da
substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual para alguns autores seria
recomendável utilizar o termo “dimensões” dos direitos fundamentais. O termo “dimensão”
concretiza a ideia de que tanto as constituições quanto os direitos nelas consagrados se
encontram em constante processo de transformação, culminando com a recepção, nos
catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas
posições jurídicas, cujo conteúdo e tão variável quanto às transformações ocorridas na
realidade social, política, cultural e econômica ao longo dos tempos.
Os direitos fundamentais de primeira dimensão, relacionado ao tema liberdade
defendido pelos revolucionários franceses, têm como titular os indivíduos, são os direitos e
garantias individuais e políticos clássicos, oponíveis, essencialmente, ao Estado, impondo-lhe
um dever de abstenção. Nesse período constata-se o surgimento das primeiras Constituições
escritas, nas quais são consagrando os direitos fundamentais ligados ao valor liberdade,
denominados de direitos civis e políticos.
Os direitos fundamentais de segunda dimensão, ligados a uma concepção de
igualdade material, são os direitos sociais, econômicos e culturais, advindos da Revolução
Industrial (Século XX), frutos dos constantes conflitos entre proletariados e os detentores dos
meios de produção. Clama-se por prestações materiais e jurídicas exigíveis para a redução das
desigualdades no plano fático de responsabilidade estatal. Nesse contexto não se exige mais
uma abstenção (caráter negativo), mas sim uma prestação/comissão (caráter positivo) por
parte do Estado.
Os direitos da terceira dimensão são característicos da concepção de fraternidade ou
solidariedade, engloba o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de
vida, direito de comunicação, dentre outros. São direitos que exigem a participação e
colaboração de nações desenvolvidas e subdesenvolvidas. São compreendidos como direitos
transindividuais – são titulares pessoas indeterminadas – destinados precipuamente à proteção
do gênero humano. Neste diapasão, será analisada posteriormente a constante adoção dos
biocombustíveis na matriz energética nacional, fruto de preceitos dos direitos da terceira
dimensão.
A quarta dimensão de direitos fundamentais, recentemente defendida por alguns
teóricos, está associada à pluralidade. São direitos como a democracia, a informação e o

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pluralismo. São resultados da globalização política e sua consequente inserção no sistema


jurídico nacional (BONAVIDES, 1997, p.480).
O desenvolvimento da concepção de direitos fundamentais construído no decorrer
das dimensões citadas possibilita ao legislador ordinário realizar uma concretização legal das
políticas e mecanismos desenvolvidos nos diversos nichos da sociedade e da economia
brasileira.

1.2 Direito Fundamental ao Meio Ambiente

Como supracitado, o direito fundamental ao meio ambiente é um típico direito de


terceira dimensão, que assiste de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero
humano circunstância essa que justifica a especial obrigação que incumbe ao Estado e á
própria coletividade, de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e de preservá-
lo em benefício das presentes e futuras gerações. Evitando-se, desse modo, que irrompam, no
seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao
dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos
quantos compõem o grupo social (MACHADO, 2005, p.121).
Os direitos de terceira geração materializam poderes de titularidade coletiva
atribuídos, genericamente, e de modo difuso, a todos os integrantes dos agrupamentos sociais,
consagram o principio da solidariedade e constituem, por isso mesmo, ao lado dos
denominados direitos de quarta geração. Na precisa lição de Paulo Bonavides dentre os
direitos de terceira dimensão, ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado:
Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescente
historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de
humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a
cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam
especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou
de uma determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em
termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram
com familiaridade, assinalando-lhes o caráter fascinante de coroamento de
uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos
fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao
desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio
comum da humanidade (BONAVIDES, 1997, p.481).
O direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurídica de
titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a
expressão significativa de um poder deferido, não ao indivíduo identificado em sua

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, atribuído à própria


coletividade social.
A aplicação das normas de Direito Ambiental propõe um sistema de controle capaz
de manter a proteção ambiental e, ao mesmo tempo, atender as necessidades sociais.
Semelhante objetivo envolve o uso consciente dos recursos ambientais para o
desenvolvimento sócio-econômico, permitindo às futuras gerações que usufruam de uma
existência sadia, sem escassez de bens essenciais.
Fabíola Santos classifica o meio ambiente como o maior de todos os interesses
difusos (ALBUQUERQUE, 1999, p. 10). Luís Paulo advoga que não é possível classificar o
bem ambiental nem como bem público nem como bem privado, já que este se situa em uma
faixa intermediária denominada como difusa (SIRVINSKAS, 2005, p. 32).
O caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 aborda o direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado para “todos”, ou seja, não há distinção entre categorias
de cidadãos, na medida em que, sendo um direito difuso, não há maneira de se determinar a
quantidade de pessoas ou espécies atingidas em decorrência do desequilíbrio sócio-ambiental.
Assegura que todos os residentes no Brasil possuem o direito de viver em um meio ambiente
ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida, além disso, conceitua o
meio ambiente como “bem de uso comum”, não podendo, assim, ser objeto de apropriação
por qualquer particular.
Ademais, o art. 225 desempenha o papel de norteador do meio ambiente em nossa
Carta maior, guardando, em seu bojo, os princípios aos quais a legislação inferior deve se
submeter, mensura tanto a obrigação estatal na garantia de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado, como os deveres inerentes à coletividade, vez que, expressamente, se trata de um
bem de uso comum do povo que deve ser preservado e mantido para as presentes e futuras
gerações.
A tutela jurídica tem como objeto de estudo não somente os elementos constitutivos
do meio ambiente. Pode-se proferir que há dois objetos de tutela, no caso: em função da
qualidade do meio ambiente e outro em função a qualidade de vida. Também existem dois
objetos de tutela, no caso: que é saúde, o bem estar e a segurança da população, que vem
resumindo a expressão “qualidade de vida”.
A Constituição Federal do Brasil declara que “todos tem direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado”. Neste caso o objeto do direito de todos não é o meio ambiente
em si, não é qualquer meio ambiente. Celso Antônio e Marcelo Abelha Rodrigues
estabelecem que

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ao tomar o art. 225 da CF, para análise da natureza jurídica do direito sobre o
qual recai o bem ambiental, o primeiro ponto que nos salta aos olhos é o uso
do vocábulo “todos”, logo no início do artigo. Este termo vem determinar
quem seria o titular do correspondente direito a que se segue. Ao dizer que
todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, quer-se
identificar quais seriam os titulares deste direito. Assim, recaindo sobre
todos esta titularidade, significa que o direito ao meio ambiente é ao mesmo
tempo de cada um e de todos, no sentido de que o conceito ultrapassa a
esfera do indivíduo para repousar-se sobre a coletividade (FIORILLO;
RODRIGUES, 1997, p.79).
O titular do bem público é o Estado, que deve geri-lo em nome e em benefício da
coletividade, ao passo que o titular do bem ambiental é o próprio povo. Na verdade, o povo é
também o titular dos bens públicos, mas a diferença é que, em relação aos bens ambientais,
essa titularidade deve ser exercida diretamente pelo povo, e não por intermédio do Estado. O
inciso I do art. 2º da lei nº 6.938/81 classifica o meio ambiente como um patrimônio público a
ser, necessariamente, assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo. De acordo com
Rui Carvalho, “depreende-se do caput do art. 225 da Constituição Federal que o bem
ambiental é caracterizado por ser um bem essencial à qualidade de vida e por ser um bem de
uso comum do povo” (PIVA, 2000, p.149).
Pelo status de direito fundamental o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado clama do legislador ordinário e dos administradores pátrios políticas públicas
concretizadores deste preceito constitucional. Neste contexto, a implantação de uma política
constitucional dos biocombustíveis fundamenta-se, embrionariamente nos princípios do
direito ambiental decorrentes da fundamentalidade formal e material dos direitos
fundamentais.
Mesmo que exista significativa divergência quanto a vigência e um possível rol de
princípios reconhecidos no Direito Ambiental no ordenamento jurídico brasileiro, é
inquestionável que os princípios jurídicos ambientais devem ser buscados em nossa
Constituição e nos fundamentos éticos que iluminam as relações entre os seres humanos
(ANTUNES, 2010, 22). Dentro desta perspectiva a política constitucional dos
biocombustíveis fundamentar-se-á, essencialmente, nos princípios do desenvolvimento
sustentável e da preservação ambiental.

2. MATRIZ ENERGÉTICA BRASILEIRA E A INSERÇÃO DOS


BIOCOMBUSTÍVEIS

Nos séculos XIX e início do século XX o sistema econômico característico de alguns


países no cenário mundial, principalmente o Brasil, era o Estado Liberal. Característico dos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

países capitalistas centrais, o liberalismo – ideologia econômica preponderante – pregava a


intervenção mínima do Estado na vida social, intervindo apenas em condições estritamente
necessárias.
O liberalismo implementado nesse período ocasionou significativa ausência
normativa à ciência jurídica. Isto porque, o século XIX foi um período de crise para o direito
ao ter sua eficácia e normatividade contestadas por diferentes formas de positivismo
econômico, que pretendia se impor ao direito a partir da premissa de que as leis econômicas
derivam de fatos naturais. A ciência jurídica tornou-se inócua, baseada na suposição de que
seriam as relações econômicas, submetidas a leis naturais e imutáveis que estruturariam a
sociedade.
O período em que se desenvolveu e consolidou o ideal do Estado liberal, foi marcado
pela ausência absoluta de políticas e normas coordenadas sobre os combustíveis. A influência
do modelo normativo liberal e sua ideologia político-econômica, correlacionada com aspectos
naturais, humanos e econômicos justificam esta ausência normativa.
Neste contexto, tais características são presenciadas nas primeiras Constituições
Federais de 1824 e 1891. Desenvolvidas em um período de uma economia agrário-
escravocrata, em que grande parte da população vivia em zonas rurais, de pequena demanda
energética, visto que a utilização de combustíveis fosseis atendia apenas necessidades estatais
como de iluminação pública. Tais fatores corroboraram pela ausência de um modelo
normativo específico do setor energético.
O constante desenvolvimento das cidades, característico do processo de urbanização,
e a crescente industrialização da sociedade no início do século XX possibilitaram, ao
legislador nacional, o tratamento embrionário da legislação referente ao setor energético,
destaque aos combustíveis fósseis.
A economia nacional é afetada abruptamente pela a crise do petróleo na década de
70, isto porque havia uma forte dependência nacional das matrizes energéticas alienígenas. A
crise do petróleo, supramencionada, tem como principal mérito, alertar os países
desenvolvidos e em desenvolvimento, para o iminente colapso energético e a necessidade de
se investir em pesquisa e desenvolvimento de soluções alternativas e sistêmicas no setor
energético.
A promulgação da Constituição Federal em 1988, juntamente com a Política
Nacional do Meio Ambiente apresentada pela Lei 6.938/81 e recepcionado pela Constituição,
são os alicerces, mesmo que de forma embrionária, da nova ordem normativa dos
biocombustíveis. Característico dos direitos fundamentais da terceira geração, como

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

observado, o direito a um meio ambiente equilibrado, exige do legislador ordinário e


administrador pátrio tutela específica e delimitada sobre direitos e políticas advindas da
questão ambiental. A Carta Magna ao apresentar o meio ambiente à categoria de direito
fundamental promove significativa alteração dos princípios definidores dos objetivos
fundamentais do Estado brasileiro (SILVA, 2009, p.10).
No entanto, o crescente aumento pela demanda energética fruto do exponencial
crescimento da população global, enseja um grave problema econômico-social: insuficiência
das fontes de energia para manter o crescimento econômico e, sobretudo a harmonia do
organismo social.
A matriz energética é compreendida como a representação da quantidade de recursos
energéticos oferecidos e disponibilizados por um país ou por uma determinada região, sendo,
portanto, toda energia passiva para ser transformada, distribuída e consumida nos processos
produtivos.
A matriz energética brasileira divide-se em duas fontes primárias de energia:
renováveis e não renováveis. As fontes de energia não renováveis são: o petróleo e seus
derivados, o gás natural, o carvão mineral e a nuclear. Essas fontes são passíveis de
esgotamento por serem utilizadas em uma velocidade maior e de dependerem de um grande
período temporal para sua formação. A energia proveniente da cana-de-açúcar e seus
derivados, a hidráulica, a decorrente da queima de lenha e carvão vegetal são consideradas
fontes de energia renovável.
O Ministério de Minas e Energia, órgão do Poder Executivo Federal, realiza
anualmente o Balanço Energético Nacional (BEN) visando a documentar o consumo, a
produção e a comercialização de todas as espécies energéticas em âmbito nacional. O Balanço
Energético Nacional é o instrumento fundamental para conhecer atentamente a matriz
energética nacional, possibilitando o planejamento de políticas públicas no setor energético.
A diversificação da matriz energética torna-se tema de extrema importância e debate
na política nacional, conforme apresentado em recentes programas do governo federal
(SILVA, 2009, p.12). A preservação e exploração ambiental – decorrentes da concepção de
desenvolvimento sustentável – apresenta oportunidade singular para a redução das
desigualdades regionais e sociais e para afirmação geopolítica do país, no que diz respeito às
energias sustentáveis (SALAME, 2009, p. 506-507).
A empregabilidade dos biocombustíveis na matriz energética nacional pautada por
preceitos constitucionais é um importante instrumento de concretização do direito
fundamental elencado no art. 225 da Carta Magna de 88 e dele decorrentes.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

3. BIOCOMBUSTÍVEIS E POLÍTICA ENERGÉTICA NACIONAL

A complexidade dos problemas ambientais emergentes é um dos principais fatores


que tem compelido o Estado a promover mudanças significativas na estrutura e matriz
energética do Estado brasileiro. O texto constitucional não apresenta a definição de uma
política setorial específica no domínio da energia (FERREIRA; LEITE, 2010, p. 102). No
entanto, a Emenda Constitucional nº 9 de novembro de 1995 inaugura o setor petrolífero
nacional, exigindo princípios que norteassem o recente plano estratégico de desenvolvimento
previsto sucintamente, na Lei Suprema nacional.
Nesse diapasão, a lei nº 9.478 passa a ter vigência em 1997, principal instrumento do
marco regulatório nacional do domínio do setor energético nacional, embrião de uma política
de sustentabilidade ambiental. Ao dispor em seu art. 2º sobre a criação do Conselho Nacional
de Política Energética, a referida lei estabeleceu a revisão periódica das matrizes energéticas
utilizadas nas diversas regiões do país, considerando, para tanto, as fontes alternativas na
seguinte análise. Devido a está revisão periódica, surge um das possibilidades de se questionar
o sistema energético nacional.
Importante destacar, que mesmo de maneira singela a lei nº 9.478/97 não deixou de
fazer referência aos biocombustíveis em sua redação original, ao elencar em art. 1°, IV e VIII,
respectivamente, que a Política Energética Nacional visará à proteção do meio ambiente e à
utilização de fontes alternativas de energia com o aproveitamento econômico dos materiais
disponíveis.
A necessidade de se alterar a Política Energética Nacional, e o consequente modelo
normativo que a fundamenta acarreta na implementação dos biocombustíveis na matriz
energética. Os combustíveis de origem vegetal são denominados de biocombustíveis,
originários de biomassa renovável para uso em motores a combustão. O Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas (2009) (Intergovernamental Panel on Climate
Change) da Organização das Nações Unidas (ONU) conceitua biocombustível como sendo:
Qualquer combustível líquido, gasoso ou sólido, produzido a partir de
matéria orgânica animal ou vegetal, como por exemplo, o óleo de soja, o
álcool de fermentação do açúcar, licor negro como combustível proveniente
do processo de fabricação do papel, da madeira, entre outros3.

3
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima - IPCC, foi estabelecido em 1988 pela Organização
Meteorológica Mundial - OMM e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA para
avaliar a informação científica, técnica e socioeconômica disponível no campo de mudança do clima.

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O conceito de biocombustíveis no ordenamento jurídico nacional é apresentado


através do inciso XXIV da lei 9.478/87, como o “combustível derivado de biomassa
renovável para uso em motores a combustão interna ou, conforme regulamento, para outro
tipo de geração de energia, que possa substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem
fóssil”.
Pequeno adendo, impossibilitando ausência conceitual, a biomassa - principal fonte
dos biocombustíveis - é resultado do processo fotossintético realizado pelos vegetais. Através
da fotossíntese, as plantas capturam energia do sol e a transformam em energia química, essa
energia pode ser convertida em eletricidade, combustível ou calor. As fontes orgânicas que
são usadas para produzir energia usando este processo são denominadas de biomassa.
Portanto, ao tratar a Política Energética Nacional, a Lei nº 9.478/97, destaca-se pela
expressiva importância normativa, uma vez que, inaugura no sistema jurídico nacional
preceitos específicos do setor energético precipuamente, no âmbito as fontes renováveis de
energia.
O mandamento legal, ora apresentado, dispõe sobre as atividades relativas ao
monopólio do petróleo, além de instituir o Conselho Nacional de Política Energética e a
Agência Nacional do Petróleo. Criada com o objetivo de estabelecer a regulação jurídica do
aproveitamento das fontes e recursos energéticos do país, a lei nº 9.478/97 constituindo-se,
desta forma, marco legal na reestruturação da matriz energética brasileira.
O petróleo e seus derivados e o gás natural ganha destaque no cenário nacional, em
um primeiro momento, principalmente com a Criação da Agência Nacional de Petróleo,
denominada após a Lei nº 11.097/05 de Agência do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.
A alteração da nomenclatura não se trata apenas de uma questão terminológica,
simboliza a intenção do Poder Público em remodelar a matriz energética brasileira. Somente
com a Medida Provisória nº 214/04, convertida na lei 11.097/05, regulamenta-se,
devidamente, sobre a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira, mesmo que
somente esta modalidade de biocombustível fosse destacada, estes começam a ocupar espaço
mais relevante na Política Energética Nacional.
O incentivo à produção de biocombustíveis começou em 1975 com a criação do
Programa Nacional do Álcool (Proálcool) em decorrência de duas crises: a baixa nos preços
internacionais do açúcar e a alta dos preços internacionais do petróleo, esta última provocada
no contexto da criação da Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP), que reuniu
os principais produtores do combustível fóssil.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ademais, importante destacar os fatores que corroboram, como mencionado, para o


cenário nacional no que tange ao desenvolvimento do setor energético, a partir da crise do
Petróleo na década de 1970 até o ano de 2006. Visto que a partir da lei 11.097/05, constata-se
significativa alteração governamental na implementação dos biocombustíveis.
Apesar de ainda incipiente, a legislação pátria referente aos biocombustíveis, através
da lei 11.097/05 presencia-se importante avanço normativo, pois o biodiesel é introduzido na
matriz energética brasileira através da adição de um percentual mínimo de 5% de biodiesel ao
óleo diesel comercializado ao consumidor final, dentro de um prazo de oito anos (art.2º da lei
11.097/05). Nesse contexto, conforme apresentado pelo Balanço Energético de 2012, ano base
2011, a estrutura da oferta de energia interna pode ser constatada, a embrionária, mas
destacável ramificação das fontes de energia brasileiras, no gráfico que se segue.
A Oferta Interna de Energia é a quantidade de energia que se coloca à disposição
para ser transformada, distribuída e/ou para o consumo final. Conforme observado, as fontes
de energia não renovável, como Petróleo e Derivados; Gás Natural; Carvão Mineral e
Derivados; Urânio e Derivados, ainda predominam no cenário nacional. No entanto a
crescente implementação de fontes renováveis, principalmente no âmbito dos biodieseis,
demonstra a potencial renovação da matriz energética nacional.
Dentre as fontes de energia renovável presentes na matriz energética nacional,
destaque à Energia Hidráulica e Eletricidade e à Lenha. De maneira sucinta, fazem-se
necessárias, algumas ponderações sobre estas fontes de energia, pois estão presentes na matriz
energética brasileira em longa data.
A energia hidrelétrica é gerada pelo aproveitamento do fluxo das águas em uma
determina usina. Para tanto, exige-se expressiva corroboração de fatores naturais para
instalação de uma Usina Hidráulica. Nesse diapasão, o Brasil merece destaque por possuir
fatores naturais (climáticos, geológicos e topográficos) que o colocam em posição
privilegiada no cenário mundial.
O consumo de lenha e de carvão vegetal sofre significativa redução participativa na
matriz energética nacional, fruto do processo de modernização vigente no setor energético
pátrio. Sobretudo, a substituição de fontes de energia com maior rendimento energético, tais
como gás natural e a eletricidade, e fatores de cunho ambiental, desloca gradativamente a
utilização da lenha por diversos setores da economia brasileira.
Outrossim, em resultados preliminares, o Balanço Energético Nacional de 2012
demonstra que a biomassa da cana-de-açúcar é uma das principais protagonistas da oferta

525
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

interna de energia renovável, em âmbito nacional 4. A progressiva alteração, mesmo que de


forma singela, da participação de energias renováveis na matriz energética brasileira, pode ser
constatada pelos gráficos a seguir, utilizando-se como paradigma a oferta interna de energia,
fruto de mecanismos normativos e medidas governamentais que serão oportunamente
apresentadas.
Mesmo com a lei 9.478/97, alterada posteriormente pela lei 11.097/05, constata-se a
inexistência de uma política uniformizada para os biocombustíveis no Brasil, obstáculo
significativo para a concretização dos combustíveis de origem vegetal na matriz energética
nacional. No entanto, o álcool combustível juntamente com o biodiesel ganha crescente
destaque a partir do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), na década de 1970, e com o
Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB).
A edição da Medida Provisória n. 532 convertida na Lei 12. 490/11 alterou
significativamente a Lei 9.4.78/97 conferindo melhor tratamento e implantação da política dos
biocombustíveis no cenário nacional. Constate-se, de maneira incontestável a interversão
direta do Estado no âmbito energético. Isto porque o Estado como agente e regulador da
atividade econômica exerce na forma da lei – importante crítica quanto à ausência de
legislação específica e claramente delimitada no âmbito dos biocombustíveis – função de
planejamento e fiscalização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A diversificação da matriz energética torna-se tema de extrema importância e debate


na política nacional, conforme apresentado em programas do governo federal. A preservação
e exploração ambiental – decorrentes da concepção de desenvolvimento sustentável –
apresenta oportunidade singular para a redução das desigualdades regionais e sociais e para
afirmação geopolítica do país, no que diz respeito às energias sustentáveis.
Dentre importantes características da Carta Magna de 1988, destaca-se três que
podem ser consideradas como extensivas ao título dos direitos fundamentais, são elas: seu
caráter analítico e pluralista; seu forte cunho programático e dirigente. Estes atributos
conferidos pelo Constituinte de 1988 acarretaram ao legislador ordinário árduo trabalho

4
Empresa de Pesquisa Energética elabora e publica anualmente o BALANÇO ENERGÉTICO
NACIONAL(BEN), mantendo tradição iniciada pelo Ministério de Minas e Energia. O BEN tem por finalidade
apresentar a contabilização relativa à oferta e ao consumo de energia no Brasil, contemplando as atividades de
extração de recursos energéticos primários, sua conversão em formas secundárias, importação e exportação, a
distribuição e o uso final da energia.

526
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

normativo, tanto no aspecto limitativo (limitação formal e material) quanto na exigência de


regulamentação legislativa (através de programas, fins, imposições legiferantes e diretrizes a
serem implementadas).
A complexidade dos problemas ambientais emergentes e pela necessidade de
políticas estatais que promovam a inserção dos biocombustíveis na matriz energética
nacional, não adstritos a aspecto excluisvamente econômico, mas calcado nos preceitos
apresentados pelos direitos fundamentais.
Desta forma, o modelo normativo dos biocombustíveis deve ser analisado a partir de
perspectiva concretista dos direitos fundamentais sociais materialmente existente. O art. 5º
§2º da Constituição Federal apresenta que a mera localização topográfica do dispositivo no
capítulo I do Título II, não se restringe a uma interpretação taxativa dos direitos fundamentais
presentes neste catálogo. O referido dispositivo legal encerra uma autêntica norma geral
inclusiva, impondo até mesmo o dever de uma interpretação sintonizada com o teor da
Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A adoção dessa fonte renovável de energia vem de encontro com os anseios
internacionais, e as necessidades de uma eficaz política de desenvolvimento sustentável
reconhecida e exigida pela Carta Magna de 1988. A constante empregabilidade do etanol e do
biodiesel, espécies de biocombustíveis, demonstram uma embrionária, mas devida, atuação do
legislação ordinário e do Executivo federal, através de diversos órgãos governamentais
conforme apresentado. Ademais, a conscientização da população brasileira da importância de
empregar essa espécie de combustível é outro fator crucial para implementar os preceitos
apresentados pelo legislador constituinte no art. 225 da Carta Política. A soma de mecanismos
e instrumentos, tanto governamentais quanto da sociedade civil, será de suma importância
para concretizar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as
presentes e futuras gerações.

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528
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

CONCRETIZANDO O SOCIOAMBIENTALISMO: O SISTEMA DE PAGAMENTO


POR SERVIÇOS AMBIENTAIS COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO DO MEIO
AMBIENTE E REDUÇÀO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS

REALISING SOCIOENVIRONMENTALISM: SYSTEM OF PAYMENT FOR


ENVIRONMENTAL SERVICES AS A MECANISM OF ENVIRONMENTAL
PROTECTION AND REDUCTION OF SOCIAL INEQUALITIES

Daniela Lopes de Faria1

RESUMO
O presente artigo pretende analisar o sistema de pagamento de serviços ambientais como um
instrumento econômico de proteção ao meio ambiente. Para tanto, parte-se primeiramente de
uma análise da economia ecológica, que é um pressuposto do sistema de pagamento por serviços
ambientais, para após realizar uma análise comparativa entre os instrumentos de comando e
controle e os instrumentos econômicos e sua eficácia e custo-benefício na preservação ambiental.
Construída esta base, passa-se para a análise em si do pagamento de serviços ambientais,
definindo os serviços ambientais, e analisando-se as complexas questões de destinatários do
benefício e da valoração do serviço prestado. Como não pode deixar de ser, enumeram-se as
principais críticas ao sistema de pagamento por serviços ambientais e por fim apresentam-se
exemplos internacionais de programas de pagamento de serviços ambientais, bem como as
iniciativas nacionais. Conclui-se, enfim, que o pagamento de serviços ambientais não é uma
solução mágica para crise ambiental, porém é um mecanismo que visa corrigir a falha do
mercado que não reconhece o valor intrínseco que a natureza tem e os benefícios que ela traz ao
bem-estar da sociedade. O sistema de pagamento de serviços ambientais se bem planejado e
desenhado, com receitas financeiras fixas, com o devido monitoramento do cumprimento das
obrigações, possibilitando a participação popular na formulação desta política pública e,
conseqüentemente, trazendo um sentimento de empoderamento para as comunidades

1
Advogada. Presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/RO. Conselheira do Conselho Estadual de
Recursos Hídricos de Rondônia. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Católica de Rondônia. Mestranda
em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

529
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

beneficiárias dos pagamentos, pode ser um instrumento eficaz não somente na proteção do meio
ambiente, mas também na redução da pobreza e das desigualdades sociais.

Palavras-Chaves: economia ecológica; instrumentos econômicos; pagamento por serviços


ambientais; socioambientalismo; desigualdades sociais

ABSTRACT
This article analyzes the system of payment for environmental services as an economic
instrument of environmental protection. To do so, first there is an analysis of ecological
economics, which is a presupposition of the system of payment for environmental services, and
later on a comparative analysis between the command and control and economic instruments and
their effectiveness and cost-effectiveness in environmental preservation. Upon this basis, we pass
to the analysis itself of the payment of environmental services, the definition of environmental
services and the complex issues of who should be the recipients of this benefit and the valuation
of the service. It is also listed the main criticism of the system of payment for environmental
services and finally it is presented examples of international payment programs for
environmental services, as well as national initiatives. It is concluded, finally, that the payment
of environmental services is not a magic solution to the environmental crisis, but it is a
mechanism to correct the market failure that does not recognize the intrinsic value that nature has
and the benefits it brings to the well being of society. The system of payment for environmental
services if well planned and designed, with fixed financial incomes, with appropriate monitoring
of compliance, enabling popular participation in the formulation of public policy and thus
bringing a sense of empowerment to communities benefiting from payments can be an effective
tool not only in protecting the environment, but also in reducing poverty and social inequalities.

Key-Words: ecological economy; economical instruments; payments for environmental


services; socioenvironmentalism; social inequalities

Sumário: 1. Introdução 2. Economia Ecológica: instrumentos econômicos vs. comando e


controle 3. Pagamento por serviços ambientais (PSA) 3.1. O que são serviços ambientais? 3.2.
Quem deve ser contemplado com o pagamento? 3.3. Como é definido o valor do PSA? 3.4. O

530
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

que dizem os opositores ao PSA? 3.5. Exemplos internacionais de PSA 3.5.1 Fonafifo – Costa
Rica 3.5.2 Profafor – Equador 3.6. Exemplos nacionais de PSA 3.6.1 Proambiente 3.6.2 Bolsa
Floresta 4. Conclusão

1. Introdução

É inegável que estamos vivendo um cenário de crise ambiental. François Ost (1997, p.
09) ensina que esta crise é uma crise de vínculo e de limite. “Crise do vínculo: já não
conseguimos discernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; crise do limite: já
não conseguimos discernir o que deles nos distingue.” Um dos instrumentos para tentar frear esta
crise, e que vem ganhando cada vez mais interesse, é o pagamento por serviços ambientais
(PSA), que além de tutelar a natureza pode ter finalidades sociais, buscando minimizar
desigualdades sociais a que estão sujeitas populações tradicionais e comunidades carentes.
Serviços ambientais, de forma simplificada, podem ser definidos como os benefícios que as
pessoas obtêm dos ecossistemas, como a polinização, a purificação do ar e da água, a
biodiversidade. Se todos os serviços prestados pela natureza fossem contabilizados
monetariamente, o valor da fatura seria algo em torno de US$ 60 trilhões, segundo um estudo
publicado na revista Nature em 1997 (MONTEIRO, 2011).
O pagamento por serviços ambientais surge então como uma alternativa para incentivar
as pessoas a preservarem a natureza, fundando-se no princípio do provedor-recebedor ao invés
do princípio poluidor-pagador (FOLETO, 2011). Ao longo deste artigo, e para um melhor
entendimento do sistema de pagamento por serviços ambientais, faz-se um estudo mais
detalhado da economia ecológica e dos benefícios que os instrumentos econômicos de proteção
ao meio ambiente têm em relação aos instrumentos de comando e controle; do que constituem os
serviços ambientais; de quem deve ser selecionado para prover o serviço e receber o pagamento
por isto; como é definido o valor deste pagamento; e quais são as maiores críticas ao sistema de
pagamento por serviços ambientais. Analisam-se também casos internacionais de aplicação de
programas de PSA e exemplos locais no Brasil.

2. Economia ecológica: instrumentos econômicos vs. comando e controle

531
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

A ciência econômica é o estudo de como a sociedade administra seus recursos escassos


(MANKIW , 2011, p. 04) Ou seja, a economia parte do pressuposto de que todos os recursos não
são eternos, e que a escassez (scarcity) é inerente a qualquer produto, meio de produção, ou
serviço, influenciando, portanto, toda a estrutura econômica da sociedade, em maior ou menor
grau – haja vista que a abundância, antônimo próprio da escassez, significa que se há no mercado
demais de um determinado produto ou serviço, ele não se mostra extremamente necessário ao
consumidor, pois que todos podem, em certo momento, comprá-lo.2
E, assim, considerando a escassez dos recursos naturais, enquanto princípio-matriz da
ciência econômica, a economia ambiental defende que todo recurso natural deve ter um preço no
mercado, assim como que as externalidades negativas ambientais (ex: poluição) devem ser
internalizadas nos custos dos produtos, de forma a refletir seu custo socioambiental real
(DERANI, 2008, p. 90).
Para clarear o conceito de externalidade MANKIW (2011, p. 196) ensina que esta ocorre
“quando uma pessoa realiza uma atividade que influencia o bem-estar de um cidadão, mas não
paga nem recebe compensação por este efeito.” Se o impacto for adverso, é chamada de
externalidade negativa, e por sua vez, se for positivo, externalidade positiva. Em outras palavras,
as externalidades negativas ambientais, por mais que não sejam, em regra, internalizadas nos
custos de produção, devem, assim sê-las, visto que trazem um custo socioambiental inerente à
atividade produtora, - o que gera para os cidadãos (bystanders), que sofrem as conseqüências,
um prejuízo advindo da produção do respectivo bem ou serviço.3
Um dos pioneiros da economia ambiental foi G. Hardin que enunciou a “tragédia dos
bens comuns”, os quais são explorados excessivamente com vistas a um benefício individual,
desconsiderando-se o fato de que são limitados (OST, 1997, p. 150). Seguindo este raciocínio
Ronald Coase afirma que “tudo que não pertence a ninguém é usado por todos e cuidado por
ninguém” (DERANI, 2008, p. 91), isto porque as vantagens são privadas e os custos
socializados, não havendo qualquer incentivo para a preservação ambiental. Sendo assim, as

2
E necessidade é, nesse contexto, fator direto do preço que se pode pagar por um bem em um dado momento.
Quanto mais necessário, e escasso, for o bem, mais caro será, e vice-versa.
3
Vale mencionar um breve exemplo, trazido por N. Gregory Mankiw: Uma empresa produtora de alumínio lança
poluentes no ar em razão da atividade industrial realizada. O ar poluído causa um dano ambiental que será absorvido
pela sociedade. Ou seja, o custo da produção do alumínio deveria não só incluir os custos reais de produção, mas
também aqueles causados à sociedade como um todo, que é, no caso, a externalidade negativa da atividade de
produzir alumínio.

532
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

pessoas passam a se comportar como um passageiro clandestino (free rider), procurando


maximizar o seu interesse à custa de outrem (OST, 1997, p. 151).
H. Lepage nos traz um exemplo bem ilustrativo deste tipo de comportamento.
Imaginemos

duas indústrias poluentes instaladas nas margens de um lago, no qual


derramam as suas águas usadas. Se bem que o valor das suas instalações
ganhasse consideravelmente com a instalação de dispositivos de filtragem
das águas, nenhuma das duas indústrias tem qualquer interesse pessoal em
proceder a esta operação. Colocada numa situação de „dilema do
prisioneiro‟, cada uma das duas sabe perfeitamente que, não sendo
proprietária do lago, não poderá impedir a sua vizinha de usufruir,
gratuitamente, do investimento que ela própria consentiu.( (OST, 1997, p.
151).

Outro exemplo é o caso dos oceanos, que por não ser terra de ninguém, cada vez mais é
explorado além de suas capacidades de reposição e poluído, levando à extinção de inúmeras
espécies marinhas. Diante deste cenário, Hardin propõe que a tragédia dos bens comuns somente
pode ser remediada através da apropriação privada dos bens comuns ou da gestão pública destes
bens. Os ecologistas de mercado rejeitam a última opção por acreditarem que instrumentos
econômicos de preservação ambiental são mais eficientes do que os instrumentos de comando e
controle da administração pública. (OST, 1997, p. 151-153).
As políticas de comando e controle se baseiam em uma regulação direta do mercado,
impondo normas ambientais que devem ser obedecidas, tais como padrões de qualidade e
licenças. Contudo, são várias as críticas feitas a estas políticas, como a falta de incentivos a
reduzir o nível de poluição abaixo do admitido e por desestimular investimentos em novas
tecnologias ambientalmente corretas. Ademais, demandam um elevado custo administrativo na
fiscalização do cumprimento das normas ambientais, sem contar o risco de corrupção
(CAMPOS, 2011).
Glenn Jenkins e Ranjit Lamech ao estudar os incentivos baseados no mercado (market-
based incentives – MBI) chegaram à conclusão de que eles são mais eficazes e menos custosos
para as empresas que as políticas de comando e controle. A lei de Coase estabelece que tributos
ambientais e subsídios são equivalentes economicamente. Ora, se intuitivamente a sociedade
sabe que a poluição tem um custo social, então deve estar disposta a pagar o poluidor para que

533
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

ele descontinue a atividade poluidora. O efeito líquido é o mesmo que se obteria no caso de
imposição de tributos ao poluidor, sendo que o nível do tributo ou subsídio deve corresponder ao
custo determinado pela estimativa do dano ambiental (JENKINS; LAMECH, 1994, p. 03)
Em suma, os instrumentos econômicos são utilizados na proteção do meio ambiente,
aplicando-se àquelas atitudes que são lícitas, porém devem ser controladas, reduzidas, bem como
àquelas atitudes ambientalmente mais adequadas que devem ser fomentadas.

3. Pagamento por serviços ambientais (PSA)

Dentro do contexto da economia ecológica delineada acima surge o pagamento por


serviços ambientais que pode ser definido como uma transação voluntária de um serviço
ambiental bem-definido ou um uso de terra que provavelmente irá assegurar este serviço, na qual
há pelo menos um comprador do serviço e no mínimo um provedor do serviço, e se e somente se
o provedor do serviço assegurar a provisão dele (condicionalidade) (ENGELA, PAGIOLA,
WUNDER, 2008).
Nota-se que existem dois tipos de compradores, aqueles que são os reais usuários dos serviços
ambientais e aqueles que agem em favor dos usuários dos serviços, como, via de regra, o
Governo, uma ONG ou uma agência internacional. Há quem diga que o PSA que é financiado
pelos usuários do serviço tem maior probabilidade de ser eficiente, visto que os atores têm maior
informação sobre o valor real do serviço prestado, têm um incentivo claro para assegurar que o
mecanismo esteja funcionando corretamente e podem observar diretamente se o serviço está
sendo entregue, além de terem a habilidade de renegociar ou cancelar o acordo se necessário. O
exemplo mais comum de programas nos quais o usuário que financia o PSA é o de conservação
de mananciais de água para uma boa qualidade desta. O PSA financiado pelo Governo por sua
vez não tem nenhuma destas vantagens e ainda enfrenta pressões políticas, sendo mais provável
sua ineficiência. (ENGELA, PAGIOLA, WUNDER, 2008).

3.1 O que são serviços ambientais?

Serviços ambientais são serviços que a natureza presta que sustentam a vida vegetal,
animal e humana, são benefícios que a natureza traz ao ser humano e às atividades humanas.

534
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

São variados esses serviços, contudo podemos citar como os mais visíveis e conhecidos: a
purificação do ar e da água, o controle de pragas, a polinização de colheitas e vegetação, a
renovação da fertilidade do solo, a regulação do clima, a decomposição de resíduos. Já em 1815
José Bonifácio de Andrade e Silva reconhecia a importância destes serviços, afirmando que:

Se os canais de rega e navegação aviventam o comércio e a lavoura, não pode havê-los


sem rios, não pode haver rios sem fontes, não há fontes sem chuvas e orvalhos, não há
chuvas e orvalhos sem umidade, não há umidade sem matas...de mais, sem bastante
umidade não há prados, sem prados poucos ou nenhum gados, e sem gados nenhuma
agricultura. Assim tudo é ligado na imensa cadeia do Universo (...) (NOVION; VALLE,
2009, p. 05)

Os serviços ambientais transmitem uma idéia essencial à sociedade atual, a de “que os


ecossistemas são socialmente valiosos de formas que não podem ser imediatamente
intuídas”(BOYD, BANZHAF, 2007).
Os serviços ambientais também são conhecidos como serviços ecossistêmicos, sendo
usados como sinônimos pela maioria dos autores, entretanto há quem afirme que serviços
ambientais designam apenas alguns serviços prestados pelo ecossistema, enquanto serviços
ecossistêmicos compreendem todos os serviços de forma integrada e holística, rejeitando que os
serviços sejam vistos de forma isolada, compartimentalizados. Por outro lado, há quem diga que
serviços ambientais advém de uma visão antropocêntrica que somente foca no benefício que traz
ao ser humano, e por sua vez serviços ecossistêmicos diz respeito aos processos naturais que
produzem estes serviços (NOVION; VALLE, 2009, p. 136/137).

3.2. Quem deve ser contemplado com o pagamento?

O programa de PSA deve ser bem elaborado e ter sempre em mente qual serviço
ambiental que ele pretende privilegiar, isto porque é impossível remunerar todos os serviços que
a natureza nos presta, não haveria orçamento de país que daria conta. Portanto, o programa deve
selecionar os serviços que pretende remunerar, sendo os mais comuns o hidrológico de
manutenção de qualidade da água nos mananciais de abastecimento e o não desmatamento e
reflorestamento para fins de seqüestro de carbono e proteção da biodiversidade. Escolhido o
serviço ambiental que se pretende proteger torna-se mais fácil selecionar os potenciais
provedores daquele serviço.

535
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Além do objetivo principal que é a preservação dos serviços ambientais, a maioria dos
programas governamentais de PSA possui objetivos secundários como diminuição da pobreza e
desenvolvimento regional, enquanto os programas nos quais os usuários dos serviços que
financiam o PSA em regra não possuem objetivos acessórios. Apesar disso, se notou que nestes
últimos os provedores de serviços ambientais mais pobres conseguiram acesso ao programa e
ganharam benefícios por sua participação. Isto ocorreu apesar destes programas não terem como
finalidade a diminuição da pobreza, comprovando que direcionar o pagamento explicitamente
aos mais pobres não é uma condição para que o PSA beneficie-os (WUNDER; ENGEL;
PAGIOLA, 2008).
Apesar destes argumentos, acredita-se que deve ser adotada uma visão holística,
socioambiental, que leva em consideração não só a proteção ambiental, mas também o respeito à
sociodiversidade, incentivando as práticas e conhecimentos tradicionais das populações
tradicionais e das comunidades indígenas, mas também possibilitando que cidadãos menos
favorecidos possam ser beneficiados socialmente pelo PSA, tanto quanto o meio ambiente será
beneficiado por ele. Em especial no contexto da América Latina e do Brasil no qual há tanta
desigualdade social, acredita-se ser essencial cuidar do meio ambiente sem descurar dos
problemas sociais que ainda persistem, como a pobreza e a fome. Logo, é essencial que o
programa de PSA tenha como um de seus objetivos a redução da pobreza para que sejam
entabulados efetivamente esforços nesse sentido e para que possam ser feitas pesquisas acerca do
impacto social do PSA nestes grupos.
Ainda que não se tenha dados suficientes para se afirmar o quão significativos são os
benefícios sociais dos PSA, sabe-se que em determinadas comunidades mesmo que sejam
pequenos os ganhos advindos do PSA estes são importantes, pois existem poucas alternativas de
ganhos financeiros (WUNDER; ENGEL; PAGIOLA, 2008). Os programas de PSA não são uma
solução mágica para a redução da pobreza, mas pode haver uma sinergia importante quando o
programa é bem pensado e desenhado e as condições locais são favoráveis (PAGIOLA.
ARCENAS, PLATAIS, 2005).
Em outra perspectiva, devem-se levar em conta no momento de seleção dos participantes
do PSA o problema dos riscos morais. Tomemos um caso para melhor exemplificar: O agricultor
A tem atitudes ambientalmente corretas enquanto o agricultor B que partilha do mesmo
manancial tem atitudes que diminuem a qualidade da água. Há quem afirme que o objetivo é

536
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melhorar o status quo da água logo o agricultor A deve receber menos que o agricultor B, que se
melhorar suas práticas ambientais levaria a uma melhoria significativa da água. Se for
estruturado um programa deste modo, qual a mensagem que se passa às pessoas? A de que
estamos remunerando os antigos poluidores? E tomando ao extremo, isso não daria azo a pessoas
que de má-fé passem a piorar suas práticas ambientais visando pagamentos maiores no futuro?
Ou seja, acabar-se-ia incentivando a própria coisa que se pretende suprimir, o mau uso da terra e
sua degradação? (SALZMAN, 2010, p. 147-149).
Pois bem, para evitar estas contradições tem-se o exemplo, que a seguir é mais bem
detalhado, do Fonafifo que exige de seus beneficiários que eles demonstrem que não realizaram
desmatamentos nos últimos dois anos. Por maior cautela este prazo pode ser aumentado, mas
sempre se tendo em mente que o programa visa beneficiar boas práticas socioambientais e não o
contrário.

3.3. Como é definido o valor do PSA?

Quanto vale a biodiversidade? Quanto vale a água limpa e de qualidade? Quanto vale
uma árvore em pé? E uma floresta inteira? Essas são questões difíceis de responder, mas aos
poucos a técnica vai encontrando meios, caminhos que podem levar a alguma resposta, ainda que
não definitiva.
Ainda não há um sistema de valoração de serviços ambientais unificado no mundo,
fazendo com que cada autor apresente seu método e resultados decorrentes dele e tornando a
comparação entre os diferentes métodos e achados muito complexa. De maneira geral, o valor
dos serviços ambientais pode ser dividido em três tipos: 1) ecológico – determinado pela
importância no equilíbrio e integridade do ecossistema; 2) sociocultural – determinado pela
importância como fonte de bem-estar à sociedade sustentável; 3) econômico – que se subdivide
nos seguintes métodos de valoração: valoração direta do mercado; valoração indireta do
mercado; valoração contingente e valoração de grupo (GROOT; WILSON; BOUMANS, 2002)
A valoração direta do mercado é auto-explicativa, é o valor que o serviço possui quando
já existe um mercado de serviços ambientais estabelecido. Já a valoração indireta ocorre quando
não há mercados explícitos de serviços ambientais, sendo necessário recorrer a meios indiretos
de avaliação de valores para estabelecer-se o quanto as pessoas estão dispostas a pagar por

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

aquele serviço e o quanto estão dispostas a receber como compensação pela prestação do serviço
ambiental. São várias as técnicas que podem ser empregadas para chegar à valoração indireta do
serviço, dentre elas: 1) custo evitado: serviços que permitem que a sociedade evite custos que
ocorreriam na sua ausência. (ex: controle de enchentes que evita danos à propriedade); 2) custo
de restituição: serviços que podem ser substituídos por tecnologias humanas. (ex: tratamento de
resíduos naturais de pântanos); 3) Fator de receita: serviços que aumentam receitas. (ex: melhoria
da qualidade da água que ocasiona o aumento da captura de peixes e consequentemente a receita
dos pescadores); 4) custo de viagem: quando o uso dos serviços exige viagens, as despesas de
viagem podem ser vistas como um reflexo do valor implícito do serviço. (ex: áreas distantes de
ecoturismo atribuem o valor que as pessoas estão dispostas a pagar para viajar para lá); 5) preço
hedônico: A demanda de serviços pode ser refletida nos preços que as pessoas vao pagar para
mercadorias associadas. (ex: o preço de imóveis em praias são superiores ao preço de imóveis
idênticos em locais não litorâneos (GROOT; WILSON; BOUMANS, 2002).
A valoração contingente ocorre quando a demanda do serviço é suscitada pela colocaçao
de alternativas hipotéticas em pesquisas sociais, como por exemplo um questionário que pede
aos entrevistados que eles expressem sua disposição em pagar pela melhoria da qualidade da
água em um lago ou rio para que possam desfrutar de atividades como natação, canoagem ou
pesca. Por sua vez, a valoração por deliberação de grupo parte do princípio da democracia
deliberativa e que a decisão pública deve advir de debates públicos (GROOT; WILSON;
BOUMANS, 2002).
Pois bem, a delineação correta do valor do serviço ambiental é essencial para a definição
de políticas públicas bem sucedidas, em especial porque o valor do PSA também deve ser
atrativo o suficiente para que as pessoas se sintam compelidas a participarem do programa e ao
mesmo tempo não alto o bastante que desequilibre a balança custo-benefício do programa.

3.4. O que dizem os opositores ao PSA?

A maior crítica à economia ecológica e ao sistema de pagamento de serviços ambientais


é que “reduz simultaneamente o social e o ecológico aos fins restritos da troca mercantil” (OST,
1997, p. 161). François Ost critica, em especial, que a economia ecológica tem uma visão
reducionista da natureza, desconsiderando o holismo inerente à teia da vida:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

Ora, como ignorar, hoje, que a realidade ecológica é simultaneamente translocal e


transtemporal: simultaneamente global e complexa e, logo, decididamente estranha à
divisão puramente contabilizável e à avaliação exclusivamente monetária? Sem dúvida
que, nestes vastos conjuntos inapropriáveis e não contabilizáveis podem ser isoladas
zonas e retirados recursos que encontram um preço num mercado, mas os conjuntos,
enquanto tais (patrimônio genético, ciclos bioquímicos, clima, etc.) escapam a este
reducionismo. (OST, 1997, p. 162)

Muitos argumentam que o problema ambiental é uma questão ética, e assim sendo,
questionam se o PSA incentiva ou destrói uma ética de cuidado com a terra, a natureza? Essa não
é uma indagação simples de ser respondida. Os opositores do PSA defendem que a obrigação de
cuidado com o meio ambiente além de ética é legal, favorecendo então os instrumentos de
comando e controle, que instituem obrigações e sanções para o descumprimento delas. Para eles
o princípio orientador é o poluidor-pagador, e o pagamento de atitudes que preservam o meio
ambiente mandam uma mensagem errada de que somente se deve preservar o meio ambiente se
eu receber algo em troca (seja dinheiro, subsídios, isenções fiscais), monetarizando a relação
homem-natureza, e transformando-a em mera mercadoria.
Sabe-se que o mundo ideal no qual todos preservam o meio ambiente porque é o correto a
se fazer tanto eticamente quanto legalmente ainda não se transformou em realidade. É fato que a
poluição e o desmatamento atingem níveis cada vez maiores, e infelizmente é fato que a natureza
ou “uma árvore em pé” não têm preços de mercado condizentes com sua importância para a vida
humana e na maioria das vezes é mais barato degradar do que preservar o meio ambiente.
Portanto, o sistema de pagamento por serviços ambientais vem corrigir esta falha de mercado,
dando o devido valor à natureza e compensando o proprietário que toma atitudes
socioambientalmente adequadas, visto que o benefício da prestação dos serviços ambientais é
sentido por todos nós.
Deixando-se de lado a questão ética de monetarizar a relação homem-natureza, partindo-
se de um ponto de vista estritamente econômico, uma política pública de pagamento de serviços
ambientais pode ser ineficiente. Esta ineficiência pode ocorrer de três modos: 1) Oferecimento de
pagamentos insuficientes para induzir comportamentos e usos de terra socioambientalmente
desejados, fazendo que usos indesejados da terra persistam; 2) Induzimento da adoção de usos de
terra socioambientalmente desejados a um custo superior ao valor do serviço ambiental prestado;

539
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3) Pagamento de adoção de práticas socioambientalmente desejadas que teriam sido adotadas


voluntariamente (PAGIOLA, 2008).
Outro obstáculo à implementação de PSA é a resistência dos indivíduos beneficiados
pelos serviços ambientais para realizar os pagamentos – similar ao descrito por H. Lepage quanto
à tragédia dos comuns – devido ao desejo de usufruir destes benefícios à custa do governo e de
outros. Exemplificando, na Costa Rica o Fonafifo faz contratos voluntários de PSA com os
beneficiários, contudo encontrou particular resistência em casos nos quais os mananciais de água
eram utilizados por diversas pessoas e com relação à indústria de turismo, que é altamente
fragmentada, também houve dificuldades na negociação de contratos no qual o serviço protegido
era a biodiversidade (PAGIOLA, 2008).

3.5. Exemplos internacionais de PSA

Para o melhor entendimento do PSA faz-se necessário realizar um breve estudo de


diferentes casos internacionais de utilização do sistema de pagamentos de serviços ambientais.
Assim, selecionaram-se dois casos que se espera sejam ilustrativos da experiência prática e das
dificuldades e sucessos na instalação de uma política pública de PSA ou de um mercado privado
no qual são negociados estes serviços.

3.5.1 Fonafifo – Costa Rica

O programa Fundo Nacional de Financiamento Florestal (Fonafifo), estabelecido pela Lei


nº 7.575 de 1996, tem abrangência nacional em Costa Rica, remunerando os serviços ambientais
de conservação de água, biodiversidade, beleza paisagística, bem como seqüestro de carbono. As
atividades financiadas são o reflorestamento e a conservação das florestas, sendo que os
interessados em ser beneficiários do programa devem comprovar a titularidade da terra,
demonstrar que não realizaram desmatamentos nos últimos dois anos e apresentar um plano de
manejo certificado por um técnico florestal autorizado (NOVION; VALLE, 2009, p. 183).
As competências são divididas da seguinte maneira: 1) Os contratos até 2003 eram assinados
pelo Sistema Nacional de Áreas de Conservação (SINAC) ou por ONGs como a Fundecor, tendo
sido a partir de então atribuição da Fonafifo que instalou oito escritórios regionais para cumprir

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

com tal tarefa (PAGIOLA, 2008); 2) O monitoramento do cumprimento do contrato fica à cargo
do SINAC e dos engenheiros florestais certificados; 3) O Fonafifo é encarregado de captar e
administrar os recursos financeiros do programa. Os contratos constituem obrigação propter rem,
ou seja, mesmo que vendida a terra, o compromisso de conservação da floresta ou de
reflorestamento é mantido. Por sua vez, a Fonafifo tem como fontes de receita 3,5% do imposto
sobre combustíveis fósseis, os valores recebidos com a venda dos créditos de carbono
conseguidos com o programa, acordos bilaterais com grandes consumidores de água e doações
do Fundo Ambiental Global e financiamento do Banco Mundial (NOVION; VALLE, 2009, p.
184, 186)
A introdução em 2005 de uma tarifa no serviço de fornecimento de água para a
conservação dos mananciais é uma mudança considerável do procedimento anterior de acordos
voluntários de pagamentos pelo serviço hidrológico e quando inteiramente implementada gerará
US$ 19 milhões anuais, dos quais 25% serão direcionados para o PSA, valor consideravelmente
superior do que o gerado pelos acordos voluntários (PAGIOLA, 2008)
O valor a ser pago pelos serviços ambientais é definido anualmente através de decreto
presidencial. A título de ilustração, em 2007 ficou definido que seria pago US$ 320 por hectare
de floresta protegida e US$ 816 por hectare de reflorestamento. (NOVION; VALLE, 2009, p.
185)
O estudo do PSA em Costa Rica é importante porque o país é reconhecido
internacionalmente por ser pioneiro em aplicação de instrumentos econômicos na conservação
do meio ambiente, e tem feito um progresso substancial na cobrança dos usuários de água, e um
progresso mais limitado na cobrança da biodiversidade e dos usuários de seqüestro de carbono,
este último porque o Protocolo de Kyoto limitou a venda de créditos de carbono a casos de
reflorestamento e a grande maioria das áreas inscritas no Fonafifo diz respeito à conservação de
floresta.(PAGIOLA, 2008)

3.5.2 Profafor – Equador

Profafor (Programa Face de Florestação) é uma empresa privada equatoriana que é uma
extensão da Fundação Face (Florestas para a Absorção das Emissões de Dióxido de Carbono),
criada para compensar as emissões de carbono de uma termoelétrica construída na Holanda. O

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serviço ambiental remunerado é o reflorestamento para fins de seqüestro de carbono, e o


programa é realizado nas Províncias de Imbabura, Pichincha, Chimborazo, Cañar, Azuay e Loja,
Manabí, Esmeraldas, sendo beneficiários proprietários privados e comunitários. (NOVION;
VALLE, 2009, p. 161)
No início, o Profafor utilizava espécies exóticas de alto crescimento para o
reflorestamento, contudo em 1999 passou a utilizar árvores nativas. Como se trata de uma
empresa privada prevalece a lógica de mercado, sendo o valor pago por hectare negociado com a
comunidade (pagamento único que varia de US$ 100,00 a US$ 200,00) que não dispõe dos
conhecimentos e da força econômica do Profafor, em especial quando se trata de comunidades
tradicionais. Como o objetivo da Profafor é compensar sua emissão de CO2 ao menor custo
possível ele não tem interesse em desenvolver socioambientalmente as comunidades locais. As
cláusulas contratuais são desiguais, tendo a comunidade que arcar com a maioria dos custos de
transação porque as mudas, a assistência técnica e capacitação do líder da comunidade são
descontadas do valor que remunerará o seqüestro de carbono. Enquanto propriedade do carbono
seqüestrado é da empresa, a da madeira é da comunidade, porém muitas vezes a comunidade
aceita as desigualdades contratuais desconhecendo o modo que é feito a exploração da madeira e
se esta será rentável ou não ((NOVION; VALLE, 2009, p. 161-164).
As áreas contratadas são visitadas uma vez por ano e em caso de descumprimento das
condições os contratos podem ser modificados ou cancelados, neste caso a Profafor exige a
restituição dos valores pagos. Em geral, se pode identificar como bem sucedidas àquelas
comunidades com maior organização social e possuidoras de grandes áreas de terra, em especial
terras degradadas que tem custo de oportunidade próximo a zero. As comunidades exitosas
investem os valores em escolas, maquinário e criação de micro-crédito, entre outras coisas. Por
sua vez, as comunidades menos sucedidas possuem organização social mais fraca e poucas
terras, havendo casos extremos de líderes comunitários que fugiram com o dinheiro do programa
de PSA (WUNDER, ALBÁN, 2008).

3.6. Exemplos nacionais de PSA

Do mesmo modo, há programas no Brasil que já se utilizam do sistema de PSA, sendo


importante estudar os modelos já existentes para que eles possam ser aperfeiçoados e para que

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

seja proposta uma política pública nacional de PSA, levando em consideração os êxitos e
fracassos dos programas locais em andamento.

3.6.1 Proambiente

O Programa de Desenvolvimento Socioambiental da Produção Familiar Rural


(Proambiente) teve início por iniciativa da sociedade civil em 2000 e perdurou até 2003, quando
então foi incluído no Plano Plurianual da União de 2004/2007 e renovado no Plano Plurianual de
2008/2011. Ele é aplicado na Amazônia Legal, tendo 11 pólos e aproximadamente 300 famílias
em cada, remunerando os seguintes serviços ambientais: desmatamento evitado, sequestro de
carbono, conservação do solo e da água, preservação da biodiversidade e redução da
inflamabilidade da paisagem.( (NOVION; VALLE, 2009, p. 173-176)
São beneficiários produtores familiares, incluindo agricultores familiares, pescadores
artesanais, extrativistas, populações tradicionais e comunidades indígenas, devendo atender aos
seguintes requisitos: 1) utilizar mão-de-obra predominantemente familiar, permitindo-se a
contratação de trabalhadores temporários quando a atividade sazonal exigir; 2) renda bruta anual
de até R$ 100.000,00 (cem mil reais), sendo 80% desta renda advinda de atividades rurais; 3)
possuir residência fixa há pelo menos um ano; 4) explorar área de até quatro módulos fiscais no
caso de agricultores familiares e seis módulos rurais no caso de agropecuaristas; 5) no caso de
pescadores será considerada a modalidade de pesca e os apetrechos usados; 6) povos indígenas
aldeados ou reconhecidos pela FUNAI não estão condicionados a estas regras. (NOVION;
VALLE, 2009, p. 173/174)
O Proambiente agrega o controle social das políticas através de um Conselho Gestor
Nacional e Conselhos Gestores em cada pólo, bem como uma adesão coletiva através de
cooperativas ou associações, e uma elaboração de um Plano de Desenvolvimento do Pólo que é
uma análise do contexto socioeconômico e ambiental local e um Plano de Utilização das
Unidades de produção que contém entre outros, dados do estabelecimento rural e objetivos de
manejo sustentável. Além disso, são realizados Acordos Comunitários de Serviços Ambientais,
nos quais constam as formas de medições da prestação dos serviços ambientais, a avaliação de
desempenho de cada membro da comunidade e os processos comunitários de resolução de
conflitos. (NOVION; VALLE, 2009, p. 176/177)

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

O Proambiente remunera os serviços ambientais com meio salário mínimo por mês, valor
este baseado na meta de cessação de uso de fogo no sistema produtivo. Contudo, são vários os
obstáculos enfrentados por este e pelos programas similares abaixo descritos, sendo os principais
a ausência de um marco legal regulamentando os serviços ambientais, a falta de vontade política
na implementação da política pública e a inexistência de fontes financeiras contínuas para a
operacionalização do programa. (NOVION; VALLE, 2009, p. 120)

3.6.2 Bolsa Floresta

O Programa Bolsa Floresta foi criado pela Lei Estadual do Amazonas nº 3.135 de 2007
que dispõe sobre Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável
do Amazonas. Os serviços ambientais remunerados por este programa são a conservação da
floresta e recursos hídricos, preservação da biodiversidade e a redução da emissão de gases de
efeito estufa e são beneficiárias as populações residentes das Unidades de Conservação
Estaduais. Atualmente, o programa possui mais de 35 mil pessoas atendidas em 15 Unidades de
Conservação, totalizando uma área de 10 milhões de hectares. (FUNDAÇÃO AMAZONAS
SUSTENTÁVEL, 2012)
O Programa evoluiu e se desdobrou em quatro modalidades: 1) Bolsa Floresta Renda -
incentivo à produção sustentável; 2) Bolsa Floresta Social - investimentos em saúde, educação,
transporte e comunicação; 3) Bolsa Floresta Associação - fortalecimento da associação e controle
social do programa; 4) Bolsa Floresta Familiar - envolvimento das famílias na redução do
desmatamento. A Bolsa Floresta Familiar é no valor de R$ 50,00 ao mês, e a Bolsa Floresta
Associação é de 10% da soma de todas as Bolsas Floresta Familiares. Por sua vez, a Bolsa
Floresta Renda e a Bolsa Floresta Social são investimentos no montante cada qual de R$
140.000,00 por ano para cada Unidade de Conservação. (FUNDAÇÃO AMAZONAS
SUSTENTÁVEL, 2012)
No início do programa foi realizado um levantamento socioeconômico das famílias
inscritas para realizar um acompanhamento do impacto que a Bolsa Floresta trará para estas
pessoas, bem como oficinas de formação sobre mudanças climáticas e sustentabilidade. Além
disso, a política pública conta com a participação da sociedade civil organizada e de
representantes dos povos indígenas, garantindo que o programa reflita a realidade social e não

544
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seja mais uma política pública imposta de cima para baixo com pouca efetividade. Neste
contexto a Bolsa Floresta Associação é essencial para um controle social da política pública e
para que a comunidade tenha um empoderamento.
Em pesquisa para medir o grau de satisfação dos comunitários inseridos no Programa
Bolsa Floresta Floresta das Reservas de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro, Uatumã e
Juma, foi constatada, em geral, uma satisfação com o programa. Todavia boa parte dos
comunitários entende que o valor da Bolsa Floresta Familiar deveria ser superior ao atual de R$
50,00 por mês, valor este que, segundo a pesquisa, é em sua maioria utilizado para comprar
alimentos. (FUNDAÇÃO AMAZONAS SUSTENTÁVEL, 2012)

4. Conclusão

Diante de todas as considerações feitas chega-se à conclusão de que o PSA não é uma
solução mágica para crise ambiental, porém é um mecanismo que visa corrigir a falha do
mercado que não reconhece o valor intrínseco que a natureza tem e os benefícios que ela traz ao
bem-estar da sociedade. Ora, se os benefícios de um meio ambiente sano são sentidos por todos
nós porque não compensar o proprietário de terras que as utiliza sustentavelmente, e que muitas
vezes economicamente tem prejuízos por isso, pois sabe-se que, em regra, é mais barato degradar
do que preservar o meio ambiente.
O PSA se bem planejado e desenhado, com receitas financeiras fixas, com o devido
monitoramento do cumprimento das obrigações de uso de terra desejáveis, possibilitando a
participação popular na formulação desta política pública e, conseqüentemente, trazendo um
sentimento de empoderamento para as comunidades beneficiárias dos pagamentos, pode ser um
instrumento eficaz não somente na proteção do meio ambiente, mas também na redução da
pobreza e das desigualdades sociais.
Os exemplos trazidos, além de muitos outros que não foram possíveis relatar aqui, são
essenciais para o aprendizado e adaptação do sistema de pagamento de serviços ambientais,
levando sempre em conta a realidade ambiental e social do local de implementação do programa,
assim como definindo os serviços que se pretende remunerar e as metas a se alcançar.
A crise ambiental é um fenômeno que atinge a todos indistintamente, ainda que haja uma
maior vulnerabilidade dos pobres, sendo assim, é necessário utilizar todos os meios possíveis e

545
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 4 - Direito Ambiental I

eficazes de proteção ao meio ambiente (combinando os instrumentos de comando e controle com


os instrumentos econômicos), concretizando uma consciência ambiental planetária.

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