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Coordenação e Organização

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


Estéfani Luise Fernandes Teixeira
Lucas Lazzaretti
Camila Maciel
Ana Paula Adede Y Castro
Alexandre Torres Petry

Múltiplas faces de uma pandemia: reflexões acerca


dos impactos ocasionados pela covid-19

Porto Alegre, 2022


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Todos os direitos reservados

Coordenação e Organização

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


Estéfani Luise Fernandes Teixeira
Lucas Lazzaretti
Camila Maciel
Ana Paula Adede Y Castro
Alexandre Torres Petry

M922

Múltiplas faces de uma pandemia: reflexões acerca dos impactos


ocasionados pela covid-19/. Mariana Polydoro de Alburquerque Diefenthaler.
Estéfani Luise Fernandes Teixeira...[et.al] (Organizadores e Coordenadores).
Porto Alegre: OABRS, 2022. p. 158.

ISBN: 978-65-88371-20-6

1.Direito à saúde 2. Covid-19 I Título

CDU 368.42
Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10/1517

CDU 368.42
A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos
assinados, são de responsabilidade dos seus autores.

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COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

PREFÁCIO - Neusa Bastos - Vice-Presidente da OAB/RS........................................................ 8

APRESENTAÇÃO - Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler, Presidente da Comissão


Especial de Direito a Saúde e Estéfani Luise Fernandes Teixeira, Membro e coordenadora do
GT pesquisa da Comissão Especial de Direito a Saúde da OAB/RS ......................................... 9

A ECONOMIA DOS CUIDADOS COMO PRIORIDADE DA VIDA, DA


SUSTENTABILIDADE E DO PLANETA: A RESPOSTA E A RECUPERAÇÃO NA
AMÉRICA LATINA E NO CARIBE - Andrea Marta Vasconcellos Ritter ........................... 10

TENDÊNCIAS DE AUDITORIA EM SAÚDE EM SISTEMAS PÚBLICOS - Carla Silva da


Rosa .......................................................................................................................................... 19

DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS: REFLEXÕES ACERCA DAS RELAÇÕES


TÓXICAS EM TEMPOS DE ISOLAMENTO SOCIAL - Estéfani Luise Fernandes Teixeira,
Camila Maria Maciel e Mariana de Oliveira de Assis ............................................................ 34

EPIDEMIA DA SAÚDE MENTAL DURANTE A COVID-19 E POLÍTICAS PÚBLICAS


EFETIVAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE-SUS - Estéfani Luise Fernandes Teixeira,
Mariana de Albuquerque Plydoro Diefenthaler e Vanessa Schmidt Bortolini ........................ 46

SUPERENDIVIDAMENTO E SUA RELAÇÃO ENTRE A HIPERCONEXÃO DO


CONSUMIDOR E O COMÉRCIO ELETRÔNICO DURANTE O PERÍODO DE PANDEMIA
- Estéfani Luise Fernandes Teixeira, Francine Cansi e Bianda Andrade de Castro .............. 58

A SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL E A TRAGÉDIA DOS COMUNS – Fábio Luis


Brack e Cássia Franck Ferreira ............................................................................................... 71

COVID-19 E BURNOUT ENTRE OS PROFISSIONAIS DA SAÚDE - Gustavo Felipe Berça


Ogata e Kenza Borges Sengik .................................................................................................. 80

A RELATIVIZAÇÃO DAS RECOMENDAÇÕES DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA


SAÚDE E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO BRASILEIRO EM TEMPOS DE
COVID-19 - Jarbas Paula de Souza Junior ............................................................................. 90
TRATAMENTO JURÍDICO DA COVID-19 NO BRASIL: AS DIRETRIZES DA
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) NO CONTEXTO DA ADPF 672 – Leonel
Ferreira Rocha e Bernardo Leandro Carvalho Costa ........................................................... 100

O ATIVISMO JUDICIAL NOS TEMPOS DA PANDEMIA DE COVID-19: UMA


GARANTIA À EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE OU UMA ATUAÇÃO
ARBITRÁRIA? – Laura Araujo Ribeiro Lino e Marcelo de Oliveira Riella ........................ 109

A PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL E A COMPULSORIEDADE DE VACINAÇÃO:


A BUSCA POR PROPORCIONALIDADE EM TEMPOS DE CRISE - Marcelo de Oliveira
Riella – Micaela Porto Filchtiner Linke................................................................................. 120

DIREITO À SAÚDE NO PERÍODO PANDÊMICO: REFLEXÕES SOBRE OS ASPECTOS


LEGAIS E SOCIAIS – Marcos Paulo Garcia de Andrade ................................................... 131

OS IMPACTOS DA TECNOLOGIA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE- Melissa


Daandels ................................................................................................................................. 141

REFLEXOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NO ACESSO A JUSTIÇA – Veridiana Tavares


Martins ................................................................................................................................... 149
8

PREFÁCIO

Nos 37 anos da Escola Superior de Advocacia da OABRS (ESA), recebo o honroso convite
para prefaciar o livro em formato E-book, composto de artigos científicos, intitulado como
“Múltiplas faces de uma pandemia: reflexões acerca dos impactos ocasionados pelo covid-19”.
A coordenação e organização do E-book, além da Escola Superior da Advocacia, tem a
participação da Comissão Especial de Direito à Saúde da OAB/RS e do Grupo de Estudos
Direito à Saúde da ESA/RS.
Nesse sentido, é importante frisar o quanto nosso planeta foi impactado pelos efeitos do Covid
19, não sendo diferente no nosso país e, no caso em apreço, Direito Médico e da saúde, por ser
aliado dos profissionais da saúde que foram – e ainda são - linha de frente no combate da
pandemia.
Sendo assim, é importante destacar que o escopo do E-book é a publicação das produções
científicas oriundas de estudos e experiências práticas em pesquisas inerentes aos impactos
ocasionados pela covid-19 nas diversas áreas do direito da saúde e seus reflexos.
É importante mencionar que o incentivo ao estudo contínuo sobre temas relevantes para o
Direito e sociedade civil tem todo apoio do Presidente da OAB/RS, Leonardo Lamachia, e
também da Escola Superior da Advocacia da OAB/RS, na pessoa do seu Diretor-Geral, Rolf
Madaleno, aos quais parabenizo pelo estímulo ao aprimoramento do conhecimento da
Advocacia Gaúcha com iniciativas como esta, que contribui ainda mais para o aperfeiçoamento
profissional dos colegas advogados e advogadas.
Por fim, parabenizo todos os colegas que contribuíram para a construção desse E-book,
abrilhantando essa coletânea com seus trabalhos tão bem fundamentados e que nos propõe uma
reflexão para os impactos da Covid-19 em diversas áreas do Direito, mas também na mudança
comportamental da nossa sociedade.

Desejo uma ótima leitura a todos!

Neusa Bastos,
Vice-Presidente da OAB/RS.
9

APRESENTAÇÃO

Apresentar esta obra é um privilégio. Trata-se de oportuna coletânea de estudos sobre direito à
saúde, idealizado pelos organizadores e articulistas da Comissão Especial de Direito à Saúde
da Ordem dos Advogados do Brasil - Rio Grande do Sul – OAB/RS. Os autores são estudiosos
que se dedicam à reflexão sobre o direito à saúde, debruçando-se sobre temas relevantes e
inquietantes, no que concerne aos impactos ocasionados pelo coronavírus, a requerer muitas
pesquisas e estudos para informar e conscientizar a população.
O presente e-book foi idealizado com a finalidade celebrar os 37 anos da Escola Superior de
Advocacia – ESA e homenagear o Dr. Leonardo Lamachia, Presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil - Rio Grande do Sul - OABRS, os quais foram dedicados aos estudos e
ao em Direito.
A trajetória acadêmica do homenageado compreende grande experiência na advocacia, sendo
um renomado profissional. A ESA foi fundada em 1985, por inciativa da OAB/RS, sendo a
primeira de sua espécie, por força da Resolução n. 24/1985. O Presidente da OAB/RS à época,
em reunião ordinária de 03 de setembro de 1985 do Egrégio Conselho Seccional, aprovou a
criação da ESA com destinação a centralizar e coordenar – na condição de departamento
cultural do conselho seccional – as atividades culturais, por meio de cursos, estudos, seminários,
congressos, publicações e demais programações que visem à elevação do nível cultural dos
advogados gaúchos.
Conforme se observa destas páginas, a obra contempla estudos que atendem profissionais de
diversas áreas, fomenta dúvidas, provoca inquietações e reflexões e, sobretudo, aponta
caminhos.
Nesse sentido, é uma preciosa contribuição para a comunidade, auxiliando na compreensão de
temáticas atuais e por vir, sendo recomendada a leitura. Portanto, os organizadores, articulistas
e a Comissão Especial da Saúde, em nome da presidente Dra. Mariana Diefenthäler,
homenageiam a Escola Superior de Advocacia, pelos seus 37 anos, e o Dr. Leonardo Lamachia,
por sua dedicação, trajetória, contribuição e ensinamentos à Ciência Jurídica brasileira, com
votos de sucesso e agradecimento de: Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthäler, Estéfani
Luise Fernandes Teixeira, Ana Paula Adede y Castro, Camila Maciel e Lucas Lazzaretti.

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


Presidente da Comissão Especial de Direito a Saúde - CEDS-OAB/RS

Estéfani Luise Fernandes Teixeira


Membro e coordenadora do GT pesquisa da Comissão Especial de Direito a Saúde da
OAB/RS
10

A ECONOMIA DOS CUIDADOS COMO PRIORIDADE DA VIDA, DA


SUSTENTABILIDADE E DO PLANETA: A RESPOSTA E A RECUPERAÇÃO NA
AMÉRICA LATINA E NO CARIBE

Andréa Marta Vasconcellos Ritter1

Resumo: A crise de saúde mundial da pandemia da COVID-19, que ainda não terminou, atingiu
de forma avassaladora as mulheres, que ainda sofrem os reflexos da pandemia, mas
visivelmente, são as mulheres que respondem às múltiplas faces de uma pandemia e que, em
conjunto com a sociedade do cuidado, impulsionarão a recuperação em prol das políticas e
ações em favor da equidade de gênero, autonomia, desenvolvimento e sustentabilidade.
Necessária a reflexão sobre a economia dos cuidados, os cuidados remunerados e não
remunerados que não são recepcionados pelo Direito e que sofreram considerável golpe, com
a pandemia, afetando sobremaneira a saúde das mulheres cuidadoras e também, das pessoas
que carecem de cuidados. Este artigo dispõe sobre economia dos cuidados, os cuidados
invisíveis, desempenhados majoritariamente, pelas mulheres e que estão transversalizados com
questões sociais, econômicas, de saúde e de educação, que pela importância, devem avançar
para uma sociedade do cuidado e este é o objetivo da articulação da Agenda Regional de
Gênero, na América Latina e Caribe. O objetivo é destacar essa cuidatoria que deve estar no
centro da priorização da sustentabilidade, da vida e do planeta, com a necessidade de um
sistema integral de cuidados avançando para uma sociedade dos cuidados, que engrandecerá o
Estado de direito. A pesquisa é documental e de caráter qualitativo. A conclusão é que os
cuidados, são prioridade da vida e devem ser centrais no Sistema de Cuidados e Agendas, pois
se trata de tornar visível o invisível, relegitimar a democracia e reconhecer que interessa colocar
a cuidatoria na primeira ordem e a perspectiva de gênero ser aplicada para reduzir a
desigualdade. Imperioso reconhecer o direito ao cuidado em conjunto com medidas, respostas
para o combate dos efeitos da Covid-19 na consecução de um objetivo comum, entre Estado,
Instituições, família e comunidade, com mobilidade para além do ordenamento jurídico,
evoluindo para a sociedade do cuidado.
Palavras-Chave: Sociedade do Cuidado – Mulheres – Saúde – Pandemia

1. INTRODUÇÃO

A pandemia mundial de enfermidade pelo coronavirus (COVID-19) e suas


consequências, como o isolamento social, aprofundou a base estrutural da desigualdade de
gênero, atingiu as relações de trabalho e evidenciou um tema que de longa data, invisível,

1
Advogada inscrita na OABRS 24451, Sócia de Roque e Vasconcellos Advogados Associados, Bacharel em
Relações Internacionais, Pós graduação em Direito Público e Privado e em Estratégias e Estudos Internacionais,
Mestre em Direito das Relações Internacionais e Professora Universitária, endereço eletrônico
amritter@terra.com.br.
11

desconsiderado, que é a “cuidatoria ou economia do cuidado”, em geral um trabalho exercido


de forma remunerada ou não remunerada.

Mostrou a pandemia, a injusta organização social do trabalho, os compartimentos


extratrabalhista e a necessidade de avançar significando e visibilizando o trabalho doméstico
de cuidados quase na sua totalidade, desempenhado pelas mulheres, sendo imperioso alterar a
estrutura de desenvolvimento econômico e social, para colocar no centro, a vida, economia dos
cuidados e a sustentabilidade.

Visando o impedimento da aceleração da pandemia, isolamento social e o lockdown, a


OIT, CEPAL e ONU Mulheres, emitiram importante documento 2 que traz o papel crucial que
as mulheres empregadas no setor do trabalho doméstico ocupam dentro da resposta, pelo papel
central que desempenham no cuidado de crianças, pessoas doentes e dependentes e também na
manutenção dos lares, incluindo também a prevenção do contágio do vírus.

Antes da pandemia, tal trabalho de cuidados, remunerado ou não, era totalmente


invisibilizado, precário e sem acesso às políticas públicas e consoante dados, o contingente de
pessoas que participam de atividade econômica é composto por 52,5 % de mulheres e 79,0 %
de homens na América Latina3 que no Brasil representa 46,3% de mulheres trabalhando e
14,9% desocupadas, eis que a pandemia, ampliou o número de mulheres sem renda, invisíveis
e que exercem a cuidatoria dentro e fora de seus lares, com sobrecarga de trabalho e consequente
ampliação do tempo gasto para os cuidados, inclusive com os cuidados de limpeza para mitigar
o contagio.

A sociedade ainda não retornou para o “antigo normal”, mas necessária a reflexão sobre
a cuidatoria, sobre a sociedade do cuidado, pois se o tema não for devidamente incluído no
centro dos sistemas integrais de cuidados, as cuidadoras e as pessoas que necessitam de
cuidados, irão perecer ainda mais e as consequências serão avassaladoras para toda a sociedade.

O trabalho de cuidados foi agravado pela pandemia, que muito impactou a saúde física
e mental das cuidadoras e familiares e ainda cumulou mais carga no trabalho de cuidados, maior

2
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL). Trabalhadoras
remuneradas do lar na América Latina e no Caribe frente à crise do COVID 19. https://www.cepal.org/pt-
br/publicaciones/45725 acesso em 08/2020
3
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL), Anuario Estadístico de
América Latina y el Caribe, 2020 (LC/PUB.2021/1-P), Santiago, 2021.
12

exposição ao risco de contágio e condições desiguais na rotina de cuidados e tal aumenta a


desigualdade de gênero, raça e de classe.

Necessária nova formulação de políticas públicas em um novo mundo jurídico, social e


econômico, com mais equidade e com o olhar para o gênero feminino, pois as mulheres são
mais atingidas com a pandemia, seus efeitos e consequências.

Assim, cabe salientar que os estudos e dados da CEPAL, ONU Mulheres e Fundação
Osvaldo Cruz, são importantes para caracterizar o impacto, as multifaces de uma pandemia e
vitais para dimensionar as necessidades de financiamento dos Sistemas de Cuidados,
planejamentos, ações e políticas públicas, para a promoção da saúde, dignidade, igualdade,
direitos, para quem cuida e quem é cuidado.

A crise sanitária Global da Pandemia causou profundas mudanças nas relações de


trabalho, na saúde, havendo impacto social e econômico e sobremaneira o cenário demanda
discussão e ações proativas do poder público e de toda a sociedade e “A sociedade do cuidado
como horizonte para uma recuperação sustentável com igualdade de gênero” será o tema
principal da XV Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe.4

Neste artigo, a pretensão é tratar sobre economia dos cuidados, que são desempenhados
majoritariamente, pelas mulheres e que estão transversalizados com questões sociais,
econômicas, de saúde e de educação, que pela importância, devem avançar para uma sociedade
do cuidado e este é o objetivo da articulação da Agenda Regional de Gênero, na América Latina
e Caribe.a cuidatoria.

A pandemia trouxa mudanças impactantes que se operaram com agressividade, no


mundo da economia do cuidado, não só mudanças e transformações nas relações de trabalho,
mas a pandemia do Coronavírus acelerou o processo das relações virtuais, a digitalização e ao
mesmo tempo, sobrecarregou os cuidados, com tarefas que sequer estavam as cuidadoras
capacitadas, preparadas e se é uma cultura sem volta, mais necessária ainda é a reflexão e a
instituição de redes, alianças, círculos e sistemas de cuidados, dentre outros, formados pelo
poder público e a sociedade civil.

4
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL) la-sociedad-cuidado-como-
horizonte-recuperacion-sostenible-igualdad-genero-sera-tema,
https://conferenciamujer.cepal.org/15/es/noticias/acesso 29/10/2022
13

Como resolver as discriminações, as demandas da economia do cuidado, os problemas


de saúde, as desigualdades de gênero e o trabalho doméstico extremamente exigente e zeloso
como é o de cuidados? Talvez a resposta seja trazida pela Pandemia do Covid-19, que mostrou
e ampliou a legião de mulheres cuidadoras, invisíveis e que devem ser tuteladas pelo Direito,
pelo Estado e pela Sociedade, eis que todas as pessoas durante a maior parte de sua vida
dependem de cuidados de outros.5

2. CUIDADORIA E A SAÚDE DAS MULHERES

Em que pese à importância do trabalho remunerado, abalada pela pandemia, que


desempregou várias trabalhadoras ou reduziu salários, a estrutura dos trabalhos não
remunerados, no Brasil e na América Latina, está distribuída de forma injusta, desigual e sem
considerar a responsabilidade pelos cuidados ou a saúde das cuidadoras.

Neste sentido, vale a Cuida-Covid: Pesquisa nacional sobre as condições de trabalho e


saúde das pessoas cuidadoras de idosos na pandemia6 que trouxe dados alarmantes sobre a
saúde dos cuidadores que sofrem muita pressão, stress, problemas psíquicos, devido a carga
desmesurada de trabalho.

A citada pesquisa foi realizada pela Fundação Osvaldo Cruz, entre os meses de agosto
e novembro de 2020 e revelou que 40% das cuidadoras estão com estado de saúde moderado
ou ruim e o mesmo percentual tem risco de COVID por doenças cardiovasculares e pulmonares.

Ainda a pesquisa mostrou que quase a metade dos cuidadores tem acesso ao SUS e que
48,5% estão com problemas de coluna, com dor aumentada e alguns com incapacidade, o que
afeta os cuidados necessários, necessitando a cuidadora de cuidadores.

No tocante à saúde mental, as cuidadoras disseram que tem sentimento de solidão,


insônia, tristeza, depressão, bem como que estão ansiosas e nervosas.

Cabe dizer que 73,6% das cuidadoras trabalham com idosos todos os dias e que houve
aumento da carga de trabalho para até 24 horas.

5
Ritter, Andréa Marta Vasconcellos. A visibilidade do trabalho não remunerado das mulheres e a
cuidadotoria como propulsora da recuperação socioeconômica. Revista Eletronica da ESA/RS, Vol. 09,
Numero 1, 2021. https://admsite.oabrs.org.br/arquivos/file_611c182e9eb10.pdf
6
Fundação Osvaldo Cruz. Cuida-Covid: Pesquisa nacional sobre as condições de trabalho e saúde das pessoas
cuidadoras de idosos na pandemia principais resultados https://www.covid19.cuidadores.fiocruz.br/?p=pesquisa
acesso 05/10/2021
14

Tal pesquisa é importante e mister que a economia do trabalho se encontre no centro da


sustentabilidade e da vida, sob pena de colapsar, eis que visível os nós estruturais da
desigualdade de gênero e urgente evitar retrocesssos e acelerar o passo rumo a um estilo de
desenvolvimento que ponha os cuidados no centro da sustentabilidade e da vida.

A atividade de cuidados desenvolvida pelas cuidadoras e domésticas não remuneradas


ainda não está monetizada e necessário, evoluir para a sociedade de cuidados, avançar sob a
perspectiva de gênero para a redução das desigualdades e promoção do crescimento econômico,
autonomia e o desenvolvimento sustentável, mas no momento, há necessidade de promover a
sociedade do cuidado, contabilizar o trabalho de cuidados, a fim de reconhecer, redistribuir e
reduzir.

Com efeito, o sistema integral de cuidados, distribui socialmente o trabalho de cuidados


que está quase que exclusivamente ao cargo das mulheres e necessário avançar, pois há uma
ineficiente divisão sexual de trabalho e atualmente a pirâmide etária se inverteu, com o aumento
do número de idosos, que com a expectativa maior de vida, mais cuidados irão requerer por
parte das mulheres, devendo também, considerar, nesta lógica, as pessoas que são totalmente
dependentes e as crianças.

Assim, a cuidatoria deve ser considerada de forma transversal, tendo em vista as várias
conexões com a Agenda 2030, como vida, sustentabilidade, saúde e bem-estar, educação de
qualidade, igualdade de gênero, trabalho decente e crescimento econômico, ainda intersecções
com o meio ambiente, com a sustentabilidade e a promoção da ida no planeta, neste momento
de COVID-19, com setores econômicos que necessitam sobreviver e crescer, alterando a
estrutura de mercado e produtiva, com inclusão das cuidadoras invisíveis como mola
propulsora, resposta e recuperação da vida no mundo sustentável.

3. A SUSTENTAÇÃO DA VIDA – SISTEMAS INTEGRAIS RESPOSTA E


RECUPERAÇÃO DA AMÉRICA LATICA E CARIBE

A pandemia avassaladora reafirmou a importância e a centralidade dos cuidados,


colocando em destaque a insustentabilidade do atual modelo, estrutura e organização e neste
cenário a ONU Mulheres em conjunto com a CEPAL, em 2020, publicaram importante
documento Cuidados na América Latina e no Caribe em tempos de COVID-19. Em
15

direção a sistemas integrais para fortalecer a resposta e a recuperação7, sobre os cuidados


na América Latina e Caribe em tempos de Covid-19.

Aduz o documento que os sistemas integrais de cuidado podem se tornar um verdadeiro


motor da recuperação socioeconômica da região e a crise da COVID-19 deve se transformar
em uma oportunidade para fortalecer as políticas de cuidado na região, a partir de um enfoque
sistêmico e integral.

Importante dizer que isso significa incorporar todas as populações que necessitam de
cuidados e gerar sinergias com as políticas econômicas, de emprego, saúde, educação e proteção
social, a partir da promoção da corresponsabilidade social e de gênero, avançando ate a
sociedade do cuidado.

Neste diapasão, cabe trazer que na América Latina e no Caribe, nos últimos 20 anos, os
governos da região aprovaram uma série de acordos para o desenho e implementação de
políticas e cuidados, destacando a importância do papel do Estado e a coordenação com as
Instituições, assim como os níveis nacional e local, com enfoque interseccional.

A recuperação da pandemia deve ser urgente e para as Organizações Internacionais já


citadas, a crise deve se transformar em uma oportunidade para fortalecer as políticas de
cuidados, desde um enfoque sistêmico e integral, com a incorporação de todos os que são
cuidados, articulando políticas econômicas de emprego e saúde.

Cabe destacar a importância das Conferências de Mulheres e as Agendas Regionais e


neste ponto, o Compromisso de Santiago, de 2020 8 que inclui um conjunto de acordos relativos
aos cuidados, tais como: políticas contracíclicas para dinamizar a economia do cuidado;
contabilizar os efeitos multiplicadores da economia do cuidado; sistemas integrais de cuidado,
desde uma perspectiva de gênero, interseccionalidade, interculturalidade e direitos, finalizando
com a coordenação entre países sobre as cadeias globais de cuidados.

No Brasil há muito para evoluir, eis que não está na Constituição Federal, o direito ao
cuidado e de igual forma, o Brasil, não mantém um sistema integral de cuidados, sendo
necessário um plano, um modelo que garanta o direito das pessoas a receber cuidados, cuidar-

7
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL). Cuidados na América
Latina e no Caribe em tempos de COVID 19. Em direção a sistemas integrais para fortalecer a resposta e a
recuperação. https://www.cepal.org/es/publicaciones/45916-acesso em setembro de 2020.
8
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL) Compromisso de Santiago
Instrumento Regional para responder Crise da Covid 19.
16

se e cuidar em condições de qualidade e igualdade, com o envolvimento do Poder Público, das


famílias, mercado, comunidade, redes, movimentos e outros que são importantes para a
cuidatoria, em recuperação.

Apesar do auxílio emergencial, no Brasil, as desigualdades de gênero estão


aprofundadas, há retrocesso para as mulheres, o que limita o empoderamento, autonomia e o
desenvolvimento pleno das mulheres.

Necessário que o Brasil priorize políticas públicas e privadas, implantadas para médio
e longo prazo, com a finalidade de criar sistemas de cuidado que priorizem a transversalidade
e que visem à transformação do mercado de trabalho para permitir a redução do tempo e o misto
entre trabalho remunerado e os cuidados não remunerados, com a corresponsabilidade entre as
famílias, Estado, mercados e sociedade civil.

Neste sentido, para as citadas Organizações Internacionais, necessário avançar as


políticas de cuidado com base nos pilares de bem estar, que envolvem fundamentos de direitos,
igualdade de gênero, economia e sustentabilidade e desenvolvimento.

Cristalino que a cuidatoria deve sair urgente da invisibilidade, que os cuidados são parte
substantiva do desenvolvimento, que há uma integração entre as políticas econômica, social e
do trabalho, e especialmente, que o setor privado é solidário com o público para a promoção de
um sistema integral de cuidados a ser desempenhados entre a União, Estados e Municípios.

A crise é uma oportunidade para a Região reafirmar o compromisso e a vontade de toda


a sociedade construir o consenso dos Estados da América Latina e Caribe para realmente ser
realidade uma distribuição equitativa do poder, recursos, tempo entre mulheres e homens e
transitar a um modelo de desenvolvimento baseado na igualdade e sustentabilidade.

4. CONCLUSÕES

Necessário refletir sobre o papel que deve desempenhar o Estado e os governos no


planejamento institucional e evolução das políticas dirigidas a fortalecer a corresponsabilidade
social no cuidado humano.

A perspectiva deve ser em direção à sociedade do cuidado, com igualdade, equidade


que supere a injustiça que representa a desigualdade que reproduz o modelo de trabalho
doméstico e de cuidado não remunerado.
17

Na sociedade do cuidado, caberá ao Estado promover, garantir e proteger o direito de


todas as pessoas ao cuidado e incrementar a autonomia das mulheres através da geração de
melhores empregos, melhor redistribuição ao trabalho doméstico e de cuidados nos lugares,
devendo a vida familiar ser conciliada com a do trabalho, melhorando consideravelmente, a
saúde da mulher cuidadora e das pessoas que estão sob os seus cuidados.

Há crise nos cuidados e a reorganização é função social através de políticas públicas,


eis que o cuidado é elemento essencial da estrutura social e econômica e a pandemia revelou a
realidade e a problemática do cuidado antes invisível, idealizado e restringido ao espaço
privado, como público, político e de importância para a vida e sustentabilidade.

As múltiplas faces da pandemia destacaram as doenças, o impacto social e econômico


e que é possível o financiamento do Estado em um Sistema de Cuidados desenvolvido entre os
entes da Federação, que atenda a população dependente, desde a 1ª infância, pessoas sem
capacidades, idosos e cuidadores, considerando os princípios da universalidade, solidariedade,
autonomia e corresponsabilidade.

Mostrou a pandemia uma nova realidade, que as mulheres são partes do mundo laboral
e ainda uma massiva maioria, que tem a função de cuidar, em uma sociedade onde a carga de
cuidados é crescente e que são necessárias políticas públicas comprometidas, devendo os
cuidados e as cuidadoras serem colocadas no centro da resposta, da recuperação, sendo o motor
de propulsão, do desenvolvimento, com transcendência entre as políticas públicas.

Cabe destacar que o cuidado é direito de bem-estar, direito de cidadania social,


universal, direito de receber cuidados, direito de escolher se deseja ou não cuidar no ambiente
familiar não remunerado se trata de não tomar como obrigatório das mulheres e das famílias,
sem possibilidade de eleição.

Há escassez de prestações públicas de cuidados, como saúde, previdência e assistência


social e o cuidado deve ter um olhar de bem-estar e enfoque de gênero e figurar nas políticas
públicas em caráter transversal e interseccional com as demais políticas de saúde, educação,
previdência e assistência social.

O tema urgente, estratégico e requer avançar para uma sociedade de cuidados, em uma
Agenda de igualdade de gênero que emerge a paridade, o desenvolvimento econômico, a
sustentabilidade, que também estão nos cuidados, mas necessários bens, recursos,
18

financiamentos e políticas públicas para a promoção de um sistema integral, articulado de


cuidados e responsabilidades.

Uma vez centrados em planos e sistemas e com as políticas transformadas em políticas


de Estado, os cuidados resultarão em uma humanidade e os sistemas integrais de cuidado irão
recuperar e desenvolver a economia e manter vidas com sustentabilidade, atingindo as Metas
da Agenda 2030, sendo as mulheres a linha de frente, nas respostas para a recuperação da
pandemia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL), Anuário


Estadístico de América Latina y el Caribe, 2020 (LC/PUB.2021/1-P), Santiago, 2021.
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL)
Compromisso de Santiago Instrumento Regional para responder Crise da Covid 19.
COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL). Cuidados
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em setembro de 2020.
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COMISIÓN ECONÓMICA PARA AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE (CEPAL).
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19. https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/45725 acesso em 08/2020
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https://www.covid19.cuidadores.fiocruz.br/?p=pesquisa acesso 05/10/2021
RITTER, Andréa Marta Vasconcellos. A visibilidade do trabalho não remunerado das
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Eletrônica da ESA/RS, Vol. 09, Número 1, 2021.
https://admsite.oabrs.org.br/arquivos/file_611c182e9eb10.pdf
19

TENDÊNCIAS DE AUDITORIA EM SAÚDE EM SISTEMAS PÚBLICOS

Carla Silva da Rosa1

Resumo: A Auditoria é percebida como ferramenta imprescindível na gestão do Sistema Único


de Saúde (SUS). O objetivo deste artigo foi relatar de forma sistemática e objetiva como as
relações de Auditoria se estabelecem nesse âmbito, apontando as prováveis tendências de
atuação do Profissional Auditor em sistemas Públicos levando em consideração a importância
da competência técnica dos mesmos, para estes fins. A pesquisa teve cunho descritivo e
encontra-se baseada em artigos científicos pré-existentes. Surgiram muitas definições para
Auditoria, porém todas convergem ao concordar que ela é uma ferramenta para otimização dos
serviços prestados como um todo, sempre de acordo com a realidade local – situação esta última
apontada no estudo como o grande desafio para as equipes envolvidas no processo. Ficando a
questão das tendências na maioria das vezes atrelada a fatores circunstanciais capazes de
promover reflexão individual e coletiva, na orientação das atividades em equipe. E neste
contexto o papel da Auditoria no tangente à qualidade dos serviços prestados é decisivo. Pois
por intermédio de sua aplicação, desenvolvimento e operacionalização; indicadores de
desempenho são trabalhados e metas são alcançadas. Haja vista que em relação às tendências
futuras para atuação do Profissional Auditor em Sistemas Públicos de Saúde questões como
ética, qualificação e competência técnica constituem-se em importantes diferenciais.
Palavras-chave: Auditoria. SUS. Gestão em Saúde. Tendências

1 INTRODUÇÃO

A Auditoria é uma Ciência antiga, conforme o histórico cronológico que se tem registro.
No entanto, sua profissionalização e também aceitação seja considerada relativamente nova e
desafiadora para os profissionais envolvidos em suas diferentes interfaces. Cada serviço público
possui suas padronizações rotineiras. E na área de saúde isso não é diferente. Inclusive são
conhecidas mais comumente como POP (Procedimento Operacional Padrão).

Pensar, desenvolver, aplicar e numa fase mais avançada avaliar processos seguidos de
suas padronizações no tangente a desempenho é, e sempre será no mínimo desafiador para
qualquer equipe de trabalho na área de gestão.

1
Graduada em Enfermagem e Obstetrícia pela UNISINOS. Pós-graduada em MBA em Auditoria em Saúde pela
UNINTER. Pós-graduada em Controle de Infecção Hospitalar pelo INSTITUTO SÃO CAMILO SUL, Pós-
graduada em Enfermagem do Trabalho pelo INSTITUTO SÃO CAMILO SUL, Pós-graduada em Saúde da
Família pela UNILASALLE, Pós-graduada em Metodologia do Ensino pela UFGRS, Pós-graduada em
Administração Hospitalar com Ênfase no Gerenciamento dos Serviços de Enfermagem pelo IACHS/PUCRS
20

No entanto, a real verificação de eficiência da aplicação desses procedimentos é campo


emergente na área de Auditoria em Saúde Pública.

Conduzindo a linha de pensamento desta forma, aflora a questão: qual, ou quais


tendências se aplicam para a obtenção de processos eficazes de Auditoria em Saúde Pública, de
acordo com a realidade local?

E avançando um pouco mais nesta mesma linha de pensamento, o que podemos


cientificamente apontar como tendências eficazes de Auditoria em Saúde com foco no Sistema
Único de Saúde (SUS), indica a importância de se compreender o conceito de Auditoria em
Saúde, seguido de suas formas de aplicação na esfera SUS.

Segundo o documento Qualificação do Relatório de Auditoria no SUS, pelo contexto


do Sistema Nacional de Auditoria (SNA) a auditoria consiste:

Auditoria é o processo sistemático, documentado e independente de se avaliar


objetivamente uma situação ou condição para determinar a extensão na qual critérios
são atendidos, obter evidências quanto a esse atendimento e relatar os resultados dessa
avaliação a um destinatário predeterminado (Tribunal de Contas da União, 2011, p.
10).

Ou ainda, num segundo o conceito e visão do próprio SNA no mesmo documento, a


Auditoria consiste:
A auditoria, na concepção trazida pelo SNA, é um instrumento de qualificação da
gestão que visa fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) por meio de
recomendações e orientação ao gestor para a alocação e utilização adequada dos
recursos, a garantia do acesso e a qualidade da atenção à saúde oferecida aos cidadãos
(Ministério da Saúde, Departamento de Auditoria no SUS, 2017, p. 14).

De acordo com Azevedo, Gonçalves e Santos (2018), quanto às formas de


operacionalização, a Auditoria no Sistema Único de Saúde, elas podem se dividir em:

Direta – Auditoria realizada com a participação de técnicos de um mesmo componente do SNA


(Sistema Nacional de Auditoria).

Integrada – Auditoria realizada com a participação de mais de um dos componentes do SNA.

Compartilhada – Auditoria realizada com a participação de técnicos do SNA, junto com


os demais técnicos de outros órgãos de controle interno e externo, e estes são os tipos de
auditoria.

As mesmas formas de operacionalização podem ser classificadas de acordo com o tipo,


em:
21

Conformidade – Examina a legalidade dos atos de gestão dos responsáveis sujeitos a sua
jurisdição, quanto ao aspecto assistencial, contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial.

Operacional – Avalia os sistemas de saúde, observados aspectos de eficiência, eficácia e


efetividade.

E de acordo com a sua natureza em:

Regular ou ordinária – Ações inseridas no planejamento anual de atividades dos componentes


de auditoria; e podem ser:

Especial ou extraordinária – Ações não inseridas no planejamento, realizadas para apurar


denúncias ou para atender alguma demanda específica.

Atualmente, os Sistemas Públicos de Saúde possuem diretrizes que visam a garantia de


seus processos. No entanto, tendo em conta preceitos de Epidemiologia cada setor ligado a estes
processos possui a sua realidade local; e é justamente para este tipo de situação que se faz
necessário entender como estas relações se estabelecem.

A Auditoria em Sistemas de Saúde Públicos contribui para oferecer uma melhor qualidade
na prestação de serviços para a população em geral. O que implica na sua íntima ligação com a
Ciência da Epidemiologia, que em um conceito mais genérico representa o estudo sobre as
populações. Também estimula o avanço na área de Gestão Pública dentro de um país, estado
e/ou região/localidade atuando como parceria determinante no combate às fraudes. Por isso,
entende-se ser desafiadora por exigir profissionais qualificados, comprometidos e éticos.

Além disso, a Auditoria em Saúde tem recebido crescente espaço no campo de estudos e
pesquisas, justamente por sua capacidade de proporcionar conhecimento aprofundado para
gestores locais acerca das questões de qualidade dos serviços prestados, forte tendência para os
tempos atuais aonde uma ferramenta bem aplicada pode mudar o curso ou o destino de
indicadores de desempenho.

Sendo assim, novos campos de atuação se abrem diante de profissionais preparados para
se tornarem eficazes dentro de todo um Sistema de Gestão Estratégica. E neste contexto a
Auditoria em Saúde surge como um recurso imprescindível a ser empregado nas instituições
públicas, entre elas, o de saúde.
22

O objetivo deste artigo é evidenciar através de uma revisão bibliográfica sistemática


como estas relações de Auditoria se estabelecem no Sistema Único de Saúde (SUS),
apresentando suas possibilidades e mais especificamente, apontando tendências de acordo com
a realidade local, analisando a importância do direcionamento de profissionais qualificados para
tais estratégias e sua ligação direta com indicadores de desempenho obtidos.

2 AUDITORIA EM SAÚDE, ATUAÇÃO DO PROFISSIONAL AUDITOR E


TENDÊNCIAS

A sociedade é um segmento para o qual muitos estudos se aplicam, e dentro desta óptica
de pensamento podemos desenvolver várias linhas de entendimento e pesquisa, no tange à área
da saúde.

2.1 AUDITORIA EM SAÚDE

A área de Auditoria apresenta um vasto campo de oportunidades dentro da área de saúde.


Sendo assim, partindo do pressuposto de seu amplo espectro de possibilidades operacionais
pode-se afirmar que a Auditoria é um tipo de Ciência regida por várias vertentes norteadoras
oriundas de um misto de interfaces, podendo estas envolver desde critérios definidos por
legislação, algumas normatizações técnicas e administrativas, orientações para prestação e
utilização de serviços, tabelas contendo procedimentos e também honorários; até os protocolos
técnico-científicos que visam garantir as boas práticas no âmbito.

Por fim todos critérios que contribuem para que se entenda o motivo de Auditoria em
Saúde ser detentora de um policonceito. A seguir algumas destas definições eram apresentadas.

Para Crepaldi (2002, p. 23): “De forma bastante simples, pode-se definir auditoria como o
levantamento, estudo e avaliação sistemática das transações, procedimentos, operações, rotinas
e das demonstrações financeiras de uma entidade. ”
Chiavenato (2002, p. 125) refere que:

Auditoria é um sistema de revisão de controle, para informar a administração sobre a


eficiência e eficácia dos programas em desenvolvimento, sua função não é somente
indicar os problemas e as falhas, mas também, apontar sugestões e soluções, portanto,
tem um caráter eminentemente educacional. (CHIAVENATO, 2002, p.125)
23

A auditoria na área da saúde é um espaço em constante expansão e vem sendo utilizada


como ferramenta de gestão há mais de meio século, também compreendida como o produto de
uma análise sistemática e formal das atividades, numa determinada realidade local e
preferencialmente deve ser realizada por um Profissional Auditor especificamente designado
para a função; ou seja, que não esteja diretamente envolvido nas atividades laborais cotidianas,
com o objetivo de assegurar a conformidade legal, o controle dos processos e a qualidade
processual dos serviços prestados.

Logo, partindo de um pressuposto que delimita este tipo de vínculo é que precisamos
explorar exaustivamente, ao que a Auditoria em Sistemas de Saúde Pública se propõe de uma
maneira geral e também registrar acontecimentos relevantes da cronologia histórica da
Auditoria no mundo e no Brasil.

Conforme Ayach, Moimaz e Garbin (2013) a Auditoria em Saúde é uma ferramenta que
verifica os processos e resultados da prestação de serviços, pressupondo o desenvolvimento de
um modelo de atenção adequado, de acordo com as legislações vigentes.

Conforme relata Rosa (2012, p. 21) no cenário mundial um dos acontecimentos de


destaque para a Auditoria em Saúde, deu-se em 1972, o Congresso Americano, por meio do
Social Security Act, criou a Professional Standard Review Organization, com o objetivo de
regulamentar a avaliação dos serviços de saúde. Estabeleceu-se uma ampla rede de especialistas
e unidades de auditoria dedicados ao monitoramento da assistência hospitalar.

No Brasil o mesmo autor registra que em 1988, a própria Constituição Federal (BRASIL,
1988) impõe a necessidade dos processos de auditoria, sendo que seu Art. 197 dispõe:

São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público


dispor, nos Termos da Lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo
sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física
ou jurídica de direito privado (BRASIL, 1988, Art. 197).

De acordo com o disposto na Constituição Federal de 1988, foi criado o Sistema Único
de Saúde (SUS), que estabeleceu convergência universal e igualitária às práticas de saúde, com
uma territorialização e categorização, dissociação com direção singular em cada esfera
governamental.

Estes registros relacionados ao contexto histórico da Auditoria em Saúde a nível mundial


e subsequente no Brasil evidenciam a importância da consideração da realidade local como
24

mediador de tendência acerca de sobre qual modo operacional utilizar para obter leituras que
fidelizem os cenários vigentes.

A aplicabilidade, bem como a garantida de pleno funcionamento processual dependem


muito de como as interfaces que compõem esta relação se conectam. Adversidades muitas vezes
acabam sendo consequências inerentes da implantação de novas rotinas; e no caso do trabalho
do Profissional Auditor elas permeiam toda a evolução das práticas, sendo paradigmáticas ao
se justaporem como filtros situacionais ou de leitura de realidade local, para cognição.

2.2 Atuação do profissional auditor e tendências

De acordo com Azevedo, Gonçalves e Santos (2018) atualmente a sociedade brasileira


vive um período histórico de turbulência política e econômica. Por um lado, surge a
preocupação com o destino e utilização dos recursos públicos, por outro a preocupação com a
qualidade dos serviços prestados, inserindo-se assim, os objetivos principais da auditoria.

Tendo essas questões em pauta, se torna imprescindível a atuação de profissionais com


competência técnica adquirida para estes fins.

Pinto e Melo (2010) afirmam que cada vez mais surgem oportunidades para o profissional
enfermeiro atuar na área de auditoria de contas hospitalares. A auditoria configura-se como uma
ferramenta gerencial utilizada pelos profissionais da saúde, em especial os enfermeiros, com a
finalidade de avaliar a qualidade da assistência de enfermagem e os custos decorrentes da
prestação dessa atividade.

Enfermeiros são profissionais que partem da graduação com duas competências básicas:
cuidar e gerenciar, e ao longo de seus feitos laborais e através da interface multidisciplinar
inerente aos seus respectivos cotidianos acabam, em sua maioria por dominar o processo de
gestão local com maestria contribuindo de forma relevante para a otimização de resultados dos
indicadores de qualidade em suas equipes.

Esses profissionais possuem competência técnica adquirida para estes fins; e,


diariamente se deparam com os desafios impostos pelas realidades locais nas quais se
encontram inseridos; o que não os permite escolher com antecedência qual método operacional
de auditoria utilizar. Mas sim conhecê-los e dominá-los enquanto Ciência, para a partir de um
diagnóstico situacional, ou seja, focado na realidade loca de seus setores de trabalho, reunirem
25

critérios para definir o melhor instrumento para resenha e registro de acordo com a classificação
explanada no ato de introdução deste estudo.

Além disso, o mundo inteiro enfrentou uma Pandemia em função do novo Corona Vírus
(COVID-19) o que certamente, já implica num novo olhar acerca dos desafios vigentes na área
em questão. Fato que inerente e consequentemente acaba por direcionar o pensamento e as
ações para tendências futuras dentro da área de Auditoria em Saúde em Sistemas Públicos, para
uma nova janela, que desde já sinaliza a necessidade de se pensar nas formas de reorientação
processual das questões que se encontrarem diretamente implicadas a tais circunstâncias.

Como o cenário ainda é bastante incerto em relação a este assunto, pois os países do mundo
inteiro, por intermédio de seus governantes seguiram e seguem as determinações da ONU
(Organização das Nações Unidas) e até que seja encontrada uma solução efetiva (vacina) resta
à comunidade de Auditores se preparar para encontrar mudanças que estarão diretamente
ligadas à futura nova realidade.

Concorrente a isso temos a questão da habilitação e aceitação dos profissionais que atuam
na área de desenvolvimento de potencial humano com vistas à Auditoria em Saúde. Afinal, num
campo de desafios constantes e emergentes a implementação de mudanças é de extrema
relevância, sem perder o foco na realidade local.

Scarparo, Ferraz, Chaves e Gabriel (2014) salientam em termos de realidade local, por
exemplo, que o trabalho do Enfermeiro Auditor decorrerá de um ideário profissional, o qual
estará articulado com o seu campo de conhecimento e práticas de gestão.

Conforme Kruger (2018) as fraudes no Sistema de Saúde Pública no Brasil são uma
realidade bastante dispendiosa. O mesmo autor ainda registra que, um levantamento realizado
pela Controladoria Geral da União (CGU) detectou que, entre 2002 e 2015, o desvio de dinheiro
da Saúde Pública atingiu cerca de R$ 5,04 bilhões, o equivalente a 27,3% do total de fraudes
em todas as áreas do Governo.

De acordo com um estudo realizado por Lara (2017) sobre as “Evidências de Práticas
Fraudulentas em Sistemas de Saúde Internacional e no Brasil” publicado no mesmo ano pelo
Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), as principais fraudes no serviço público de
saúde estão relacionadas com:

● Propinas e corrupção nos contratos;


26

● Roubo;
● Negociação de leitos hospitalares;
● Redução da qualidade do serviço assistencial;
● Negligência no atendimento ao paciente;
● Documentos fiscais falsos;
● Aquisição de recursos com preços acima do mercado;
● Falsa compra de materiais;
● Desvio de verba para pagar fornecedores,
● Práticas ilegais na contratação de médicos.
A mesma fonte ainda aponta que a Auditoria em Sistemas de Saúde contribui para o
Sistema Único de Saúde (SUS) oferecer uma melhor qualidade na prestação de serviços de
saúde para a população. Para avançar na gestão pública do Brasil e combater as fraudes no SUS,
a área da saúde necessita de profissionais capacitados, éticos e comprometidos para serem
auditores.

O serviço de Auditoria pode ser visto como um processo educativo no qual não se busca
responsáveis pela falha, mas questiona o porquê da não conformidade. Essa mudança de
percepção estimula a participação da equipe na identificação e na resolução dos eventos
adversos, citam Bazzanella e Slob (2013).

Entendemos que a prática do Enfermeiro Auditor pode se constituir em uma intervenção


de relevância, que vá além da função de servir apenas aos interesses das organizações onde
atuam, estando inserida em uma política de saúde e num contexto de organização de saúde cuja
finalidade explicite o que se espera desta prática, tal como a contribuição para a qualidade da
assistência de enfermagem e a atenção à saúde da população de um modo geral, além de
consolidar a construção do SUS, citam Melo e Pinto (2010).

Além do que, a propensão da atuação do Profissional Auditor em áreas como regulação de


custos e otimização de processos de qualidade, apontam para um caminho inovador; aonde tudo
o que é produzido na Gestão Estratégica de Sistemas de Saúde, do que podemos de chamar de
Gestão por Competências.

Num conceito bem objetivo a Gestão por Competências é um estilo de modelo processual
que trabalha com a identificação de conhecimentos, capacidades, saberes de uma equipe e os
27

interliga com as habilidades, fazeres fundamentais desta mesma equipe para a execução e
garantia de uma estratégia; previamente definida pela Instituição.

Nos últimos tempos o conceito de competências encontra-se estrategicamente abrangente


e associado, e pode ser entendido com um portfólio de soluções, sendo estas: parte física
(infraestrutura), intangíveis (imagem, marcas etc…), organizacionais (cultura organizacional e
sistemas administrativos) e também os recursos humanos.

Segundo Ruas, Antonello e Boff (2005):

A crescente utilização da noção de competência no ambiente empresarial brasileiro tem


renovado o interesse sobre esse conceito. Seja sob uma perspectiva mais estratégica
(competências organizacionais, competências essenciais), seja sob uma configuração
mais específica de práticas associadas à gestão de pessoas (seleção, desenvolvimento,
avaliação e remuneração por competências), o que é certo que a noção de competência
tem aparecido como importante referência dentre os princípios e práticas de gestão no
Brasil. (RUAS;ANTONELLO;BOFF, 2005, p.36)

Sobre a Gestão por Competências ainda pode-se dizer que é a forma que a área de recursos
humanos de uma determinada estratégia se utiliza enquanto ferramenta, para detectar e gerir
posturas profissionais capazes de renderem ao máximo suas potencialidades em prol de um
negócio/setor, buscando trabalhar interfaces de melhorias e constantes otimizações processuais,
polindo arestas e agregando conhecimento.

No campo de Auditoria, podemos citar como exemplo o trabalho do Profissional Auditor


Enfermeiro com conhecimentos específicos na área de Auditoria, como um grande agregador
de valor na realidade local aonde se encontrar inserido, pois sua atuação culminará em um
diferencial competitivo de processo que ele é capaz de sustentar graças ao seu inerente
compromisso com as questões de Educação Continuada.

Já que a Auditoria além de visar melhorias no ambiente aonde se aplica, ela também torna-
se ferramenta aliada ao estimular a revisão e consequente melhoria das práticas laborais, como
um todo. Pois seus processos estão intimamente ligados com a busca, garantia e a permanente
comprovação da conformidade legal dos itens auditados. Considerando os tópicos
anteriormente dispostos, surge neste contexto a importante necessidade do estudo das relações
de Auditoria em Saúde em Sistemas Públicos, alguns de seus determinantes e impactos gerados
e as tendências para a sua aplicação.
28

3 METODOLOGIA

O presente estudo de cunho descritivo foi realizado por intermédio de uma pesquisa
bibliográfica, seguida de análise de conteúdo cujos achados foram organizados de forma
qualitativa.

Para que a elaboração do mesmo fosse possível, houve um levantamento bibliográfico


sobre os marcos históricos relevantes da Auditoria em Saúde, tanto a nível Mundial como a
nível nacional; a importância do engajamento de profissionais com competência técnica
definida para estes fins e suas respectivas inserções em realidades locais distintas e também o
enquadramento da ferramenta de Auditoria como um processo educativo.

A leitura de revisão de artigos científicos, obtidos em pesquisa nas bases acadêmicas


Google Acadêmico e SCIELO, com foco na temática proposta contribuindo para a estruturação
do estudo e na apresentação de ideias.

Considerando o método indutivo e procedimentalmente bibliográfico de forma geral


alguns tópicos foram observados, revisados e correlacionados com artigos e outros textos de
caráter científico já publicados.

Para as Tendências de Auditoria em Saúde em Sistemas Públicos há uma infinidade de


tópicos que se misturam. Filtrá-los e redirecioná-los para estabelecer uma correlação com os
objetivos estabelecidos por este estudo foi o grande desafio no tangente à conceituação e a
análise de ideias como um todo.

Desta forma a questão problema foi respondida através da complementação das percepções
obtidas pela interface inerente dos referenciais na fundamentação teórica, que abordou a
Auditoria em Saúde, Atuação do Profissional Auditor e Tendências.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Auditoria em Saúde em Sistemas Públicos a critério do Sistema Único de Saúde (SUS)


é um desafio constante e de magna complexidade para os profissionais envolvidos com este
contexto, tendo em vista toda a sua composição interdisciplinar que a eleva a um patamar de
ferramenta decisiva para o estabelecimento de critérios/metas e o alcance dos resultados
almejados.
29

Atualmente, o campo da Auditoria tem assumido, além da análise técnica em saúde, a


função de reorientação nos processos de gestão. E por esta razão, este é um campo de trabalho
em ascendência em nosso país, mas que na mesma proporção ainda é bastante desigual muito
em função da forma pelo qual é consequentemente composto.

Pois, além de competência ética e técnica para o desenvolvimento das funções


preconizadas, os profissionais inseridos neste cenário estratégico de trabalho também são
exigidos no tangente a habilidades interpessoais. Visto que o ambiente de atuação muda de
acordo com a capacidade de autonomia de gestão, o que se encontra diretamente refletido na
realidade local.

Aqui então se pode destacar a relevante contribuição da relação da estratégia de Gestão


por Competências e sua relação com Indicadores de Desempenho e sua otimização, de acordo
com a realidade local. Pois a capacitação do Profissional Auditor tendo em conta está
contextualização é fundamental para que ele possa pensar, desenvolver e operacionalizar suas
tarefas com excelência, utilizando-se de suas competências para agregar valor ao processo.

Por isso, cada vez mais investir em Educação Continuada para as equipes como um todo
deve ser competência basilar. Sistemas operacionais que constroem resultados pró ativos para
qualquer cenário de gestão, partem do investimento de uma gênese sólida nesse sentido.
Quando há constante investimento na área de capacitação permanente para os profissionais de
saúde e em específico para os Profissionais Auditores; estes últimos, em função da autonomia
que adquirem dentro das estratégias assistenciais aonde se encontram inseridos lançam-se entre
as equipes e suscitam a participação plena dos demais ao promoverem em suas práticas, ações
interdisciplinares. E, desta forma elevam a patamares de relevância a sua forma de pensar, fazer
e desenvolver a construção do saber na área da saúde, ao mesmo tempo que protagonizam
constituição de legado.

Profissionais Auditores qualificados encontram-se aptos a evitar desperdícios, reduzir


custos e garantir que todos os usuários tenham acesso integral à saúde; o que vai de encontro a
um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS) que é o da Integralidade.

O fato da Auditoria se constituir como uma ferramenta potente no apoio à qualificação dos
serviços prestados para uma determinada população, a torna sempre tendência por critério
básico.
30

Então sendo a tendência tudo aquilo que é capaz de fazer com que um caminho seja seguido
e/ou um modelo seja referenciado como exemplo, pode-se também justificar por esta linha de
raciocínio a necessidade de se criar, expandir e ofertar mais espaços de atuação para
Profissionais Auditores atuarem no SUS, pois o quesito satisfação do cliente em relação a
estratégia, é um indicador cujo índice vem decaindo em termos conceituais nos últimos anos.

A Auditoria influencia diretamente no desenvolvimento de indicadores em saúde e na


qualidade da assistência, possibilitando o desenvolvimento de critérios de avaliação e geração
de novos conhecimentos. Portanto, comprometer-se com este tipo de processo é garantir um
sistema de gestão que fortalecedor do SUS na qualidade de importante ferramenta gerencial
para o planejamento das práticas assistenciais, organizando e fiscalizando a assistência em
saúde dentro de padrões financeiros.

Afinal, os diferentes níveis de autonomia sejam econômicos, de gestão e também


indicadores sociais podem se constituir positivamente como catalisadores processuais; e em
premissas negativas, como embargadores. Pois também há de se considerar a lacuna deixada
por problemas na área de fiscalização.

O atual momento de Mundo Pandêmico (COVID -19) controlado, via oferta de acesso às
vacinas desenvolvidas por intermédio de engajamento de toda a Comunidade Científica para as
populações, ainda é questão de muitas incógnitas mas que, no entanto, para aqueles que
conseguem prospectar visão e pensamentos com foco num futuro não distante, talvez já possam
começar a pensar e a desenvolver estratégias de adequação e readequação operacionais, levando
sempre em conta a classificação dos modos operacionais de auditoria já apontados neste estudo.

Em corroboração ao parágrafo anterior, também se faz oportuno aqui salientar o quanto,


independente de estratégias, a área de gestão e seus respectivos agentes devem estar cada vez
mais preparados para lidar com as equipes considerando-as organismos vivos, e com isso
fortalecer conceitos na área de transitoriedade.

Buscar o entendimento do efeito da transitoriedade das interações ambientais; em tempo


permanente e como um todo, já se constitui num dos fortes legados que o mundo pós COVID-
19 está deixando para as áreas de Gestão no planeta.

Durante este estudo surgiram vários conceitos para Auditoria, no entanto todos em sua
maioria convergem para a questão e que ela trabalha em prol da qualidade do SUS, competindo
31

aos Profissionais Auditores serem éticos e qualificados para a execução de um trabalho que
realmente seja capaz de traduzir as necessidades de um setor ou de um Sistema Estratégico de
Gestão.

A realidade local é algo que está intimamente ligado ao trabalho de diagnóstico situacional
que este Profissional Auditor encontrará no caminho que tiver de percorrer para estabelecer os
limites de seu trabalho. Parâmetros tais como: qual estilo de processo aplicar, quais
normatizações, técnicas e procedimentos administrativos todos dependerão dos insumos
(humanos e patrimoniais) que o mesmo terá à disposição para a o desenvolvimento do seu
trabalho irão compor impreterivelmente, o seu Universo de boas práticas.

No patamar de Ciência este estudo contribuiu na conclusão de que a Auditoria na área da


Saúde apresenta-se como diferencial de extrema relevância no desenvolvimento de potencial
humano ou de educação continuada, dentro das equipes visto que ela estimula profissionais a
refletirem individual e coletivamente, ao fornecer subsídios para orientação de atividades.

Dando continuidade temática ratifica-se a importância da adequação e readequação


operacionais no SUS com foco na posteridade, ou seja, pós-mundo pandêmico pode-se arriscar
e registrar as seguintes linhas de pensamento: que talvez partam das iniciativas como a da
Atenção Primária e da Gestão populacional os semblantes de significância maior para
reorganização do Sistema Público de Saúde, considerando os seus aspectos de integralidade. E,
em linhas semelhantes de raciocínio, tal ideia também poderá ser inclusive extensiva à realidade
local dos Sistemas Privados de Saúde. Pois as três estratégias apontadas possuem relação direta
com as questões que dizem respeito à satisfação da clientela em relação aos serviços prestados,
constituindo com as informações compiladas um indicador capaz de ditar novas tendências
operacionais.

Por conseguinte, ainda se pode concluir em termos de tendências para a área de Auditoria
em Saúde no SUS o crescimento do engajamento da participação social na busca de soluções
que ajudem a visar melhorias com relação ao índice de satisfação da clientela. Para tais ações
o crescente acesso da população à Era Digital e também a alguns mecanismos de Inteligência
Artificial serão realidades positivas e agregadoras.

No entanto, considerando esta perspectiva de busca de tendências na Área de Auditoria em


Sistemas Públicos não existem muitos trabalhos científicos com foco nesta temática em
específico.
32

Logo, podemos inferir e reforçar esta inferência ao registrar que o trabalho do Profissional
Auditor Qualificado para a função é grande diferencial e contribuirá para conformidade e
subsequente, legitimidade de toda e qualquer informação em saúde produzida para estes fins
num cenário de mudanças em constante vigência.

Mudanças são feitos processuais e como tais pode-se dizer a inegável contribuição da
Auditoria em Saúde e suas respectivas interfaces, aqui subentendidos na estratégia como raio
de alcance.

Destarte, que ao seguir tendências e ao procurar nas mesmas, atemporalidade, que toda e
qualquer estratégia e seus recursos nesta área possam ser doravante sempre auditados por
Profissionais Auditores éticos, capacitados e que estejam dispostos a maximizarem suas
práticas conferindo às mesmas, um diferencial competitivo.

REFERÊNCIAS

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de Saúde: o Papel do Auditor no Serviço Odontológico, 2013.

AZEVEDO, Giovana Aparecida, GONÇALVES, Nathalia Santos, SANTOS, Daniela Copetti


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Melhoria da Qualidade no Serviço Prestado, UNINTER, 2013.

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DF, Senado, 1988.

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PARTICIPATIVA – Auditoria no SUS no Contexto do SNA: Qualificação do Relatório de
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33

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34

DIREITOS HUMANOS E FUNDAMENTAIS: REFLEXÕES ACERCA DAS


RELAÇÕES TÓXICAS EM TEMPOS DE ISOLAMENTO SOCIAL

Estéfani Luise Fernandes Teixeira1


Camila Maria Maciel2
Mariana de Oliveira de Assis3

Resumo: O presente artigo pretende examinar os impactos ocasionados pelo isolamento social
e o poder das redes sociais para denunciar as relações tóxicas. Em tempos de pandemia, tornou-
se fundamental adotar as recomendações das entidades médicas e governamentais para a não
propagação do vírus e proteção da sociedade em seu âmbito individual e coletivo. Nesse
contexto, ocorreu uma mudança profunda e cultural nas relações humanas. O isolamento
prolongado ocasionou um colapso nas relações humanas, sociais e econômicas, sem ter estudos
suficientes para a cura e respostas, iniciaram-se conflitos internos, externos e familiares.
Aponta-se, no artigo, que antes da pandemia as relações laborais em sua maioria das vezes eram
em lugar diverso e que migraram para a modalidade home office, quando possível. Desse modo,
misturaram-se lazer, trabalho, relações familiares, entre outras dimensões da vida. Ademais,
objetiva-se demonstrar, o aumento da violência doméstica familiar no período do
distanciamento social, tendo em vista que, o agressor e a vítima permaneceram no mesmo local.
Nesse ponto, para proteção da mulher, a ascensão feminina no ciberespaço através das redes
sociais, caracterizada pelo crescente uso das tecnologias, tem revolucionado o mundo ao
permitir o acesso facilitado à informação e a comunicação instantânea das vítimas. Por fim,
aponta-se o surgimento de uma campanha para denunciar o abusador quando não é possível
fazê-lo pela internet, a campanha do batom vermelho: “Sinal Vermelho Contra Doméstica em
Tempos de Pandemia”.
Palavras-chave: Violência doméstica; Isolamento Social; Direitos e garantias fundamentais;
Redes Sociais; Relações Familiares.

INTRODUÇÃO

A pesquisa analisa o aumento da violência doméstica durante o isolamento social nas


relações familiares e a ascensão das redes sociais como possibilidade de ajudar as vítimas por
meio do facilitado acesso à informação.

1
Mestra em Direito pela UPF. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUCRS. Associada
do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul- IARGS. Membro e Coordenadora do GT de Pesquisa da
Comissão Especial do Direito à Saúde da OAB/RS. Vice-Presidente da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS,
Subseção de Canoas. Advogada. Consultora. E-mail: estefani.f.teixeira@gmail.com
2
Advogada. Membro da Comissão Especial do Direito à Saúde da OAB/RS. E-
mail:advogada@camilamaciel.com.br.
3
Especialista em Direito Médico e da Saúde pela UERJ e Gestão Pública e Direito Administrativo pela FMP/RS.
Graduada em Direito. Conciliadora Judicial TJRS. Membro da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS, Subseção
de Canoas. E-mail: mariana.oliveirassis@gmail.com.
35

O tema merece atenção frente à inserção dos meios tecnológicos para o combate dos
abusos contra as mulheres.

O artigo aborda também a campanha do batom vermelho: Sinal Vermelho Contra a


Violência Doméstica, que chama a atenção para quando não é possível a denúncia virtual, em
virtude de o agressor ter quebrado o celular da vítima, escondido o notebook e demais formas
de agressão.

Viveu-se, em virtude da pandemia de COVID-19, em isolamento social, numa


sociedade cercada das mais distintas tecnologias, o que potencializou a informação, propagação
de conhecimento de forma instantânea.

Houve uma transformação cultural e humana proporcionada pelo COVID-19, onde as


pessoas da mesma casa permaneceram juntas de forma constante, com isso misturando as
relações pessoais, profissionais, entre outras.

Dessa forma, ocorreu o aumento na violência doméstica contra a mulher, conforme o


relatório na Associação das Nações Unidas (ONU, 2020), nesse período, pois a vítima ficou
exposta diariamente com seu abusador e, por vezes, silenciada pois permanecia em
confinamento.

O presente artigo tem por escopo analisar a proteção da mulher no período do


isolamento social e as relações familiares, demonstrando a importância da tecnologia e da
ascensão das redes sociais para a democratização feminista.

Mediante isso, apresenta soluções cabíveis para a vítima realizar a denúncia, tutelando
os direitos e garantias fundamentais, a proteção da mulher e demonstrando que a informação se
tornou imprescindível a partir da situação vivida nos tempos de isolamento social.

Nessa esteira, devido ao aumento da violência doméstica contra a mulher, as entidades


governamentais e privadas apresentaram campanhas de suma importância para essas mulheres
agredidas denunciarem os abusadores. Tais campanhas contribuíram para buscar o respeito
constitucional/legal e moral dos direitos fundamentais da mulher.

Em termos metodológicos, utilizou-se a abordagem indutiva, cuja técnica de análise tem


como base a pesquisa bibliográfica. Serão utilizados como métodos de procedimento o
comparativo e funcionalista, objetivando pesquisar o instituto do direito e a imposição da
36

aplicação das leis de proteção em prol da mulher. O método de interpretação jurídica é


sociológico.

Espera-se, com o presente artigo, contribuir para a conscientização da inconcebível


realidade do aumento da violência doméstica contra a mulher apresentada no período de
isolamento, especialmente tutelando direitos intrínsecos à mulher e com isso protegendo-a.

Igualmente, é esperado analisar o fenômeno do “ciberfeminismo” nas redes sociais para


informar e conscientizar a vítima que sofreu abusos no tempo da pandemia ou que ainda esteja
sofrendo. Por fim, busca-se contribuir para tornar públicas a preocupação e as importantes
campanhas que entidades estão propiciando para denunciar os agressores.

1 ISOLAMENTO SOCIAL E RELAÇÕES FAMILIARES

O mundo, nos últimos anos, passou por incertezas e desafios, principalmente quando se
tratou do isolamento social e relações familiares.

A pandemia de COVID-19 mudou culturalmente as relações humanas. Encarceradas em


nossos próprios lares, vivemos diversas personagens: uma intensa e interna, pessoal e familiar,
e outra, de relacionamentos sociais e laborais, misturando-se de forma vertiginosa as relações
de lazer, trabalho e familiares.

Em plena pandemia, fez-se necessário adaptar-se às novas formas de trabalho para se


manter ativa no mercado, dessa forma, no contexto, “[...] a tecnologia atrela-se ao trabalho para
facilitar e otimizar o fazer humano” (FINCATO, 2010, p. 9), além de conciliar os cuidados
domésticos – tais como cuidar da casa e dos filhos e demais tarefas.

De forma repentina, fomos obrigadas a reestruturar a maneira como vivíamos em


sociedade, criando hábitos, até aquele momento, pouco difundidos, tendo como foco a
preservação tanto individual quanto coletiva.

Fez-se necessário observar atentamente às recomendações das entidades médicas e


governamentais acerca das medidas preventivas ao vírus, pois estas eram necessárias à
efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana, notadamente a saúde, a vida, a
integridade física e psíquica.
37

Nesse ponto, a utilização de máscara ao sair de casa, a constante higiene das mãos, o
distanciamento social, bem como a restrição de mobilidade foram condutas essenciais, efeitos
de uma nova ordem social numa sociedade assustada com o desconhecido.

Nesse sentido, agimos às cegas, presenciando um desenfreado progresso de doenças


psiquiátricas, ansiedade, estresse, depressão, pânico, entre outras. O mundo não estava
preparado para essa crise emocional, econômica e social. Saímos da zona de conforto da certeza
e entramos em um estado de descrença e alerta constante.

No contexto brasileiro, percebemos uma transformação estrutural, organizacional e


cultural nas relações humanas e familiares devido ao confinamento. Com efeito, a rotina de ir
ao trabalho e retornar para casa diariamente se extinguiu, pois nos dias de isolamento o home
office foi a tendência.

O espaço laboral entrelaçou-se com as atividades familiares e de descontração,


ocasionando conflitos advindos da convivência familiar constante. Cabe mencionar que a falta
de privacidade e intimidade dos integrantes da casa geraram conflitos internos e externos,
resultando em divergências entre pessoas que compartilhavam o lar.

Antes do auge da pandemia, a nossa casa era vista, na maioria dos casos, como abrigo,
com a adoção das medidas restritivas impostas devido à disseminação da doença, o
confinamento, na maior parte do tempo, veio a transformar esse ambiente acolhedor em um
meio potencialmente conflitante, o que abalou a harmonia familiar, acabou por expor, em
índices ainda mais elevados, uma realidade cruel: a violência contra a mulher.

Em outras palavras, o isolamento social apresentou um significativo aumento das


relações tóxicas, exacerbando comportamentos nocivos e abusivos que resultaram em graves
violações dos direitos da mulher de forma silenciosa, fazendo com que se tornassem ainda mais
vulneráveis. Em razão disso, percebeu-se a necessidade de se impor medidas preventivas e
protetivas mais contundentes em prol da saúde física e psíquica da mulher.

Ante o exposto, percorrido o sinuoso terreno do isolamento social e relações familiares


dentre os quais o cumprimento dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana é uma
imposição legal constitucional, tornou-se necessário o estudo do abuso físico e emocional
contra a mulher em tempos de confinamento no âmbito brasileiro, bem como os seus
desdobramentos. É o que passa a analisar nas linhas que seguem.
38

1.1 Abuso emocional e físico contra a mulher em tempos de confinamento

Em meio aos cuidados da proteção à contaminação causada pelo novo coronavírus, nos
deparamos com a obrigação de também atender às condições e requisitos morais/legais e
constitucionais impostos à proteção das mulheres expostas a situações de violência doméstica
e familiar. Com isso, garantindo-se medidas assistenciais de prevenção e proteção no tempo de
confinamento.

Entende-se que a partir da elaboração de políticas públicas mais efetivas ao combate


dos abusos e criação de serviços de apoio psicológico, jurídico e social são possibilidades de
amparo ainda mais contundentes em favor das vítimas.

Dessa maneira, é possível respeitar as diversas leis relacionadas à proteção à mulher,


tratados internacionais e os dispositivos da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Importante mencionar que violência

[...] é o uso da força física e psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa fazer
algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é
impedir a outra pessoa a manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver
gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. (TELES;
MELO, 2017, p. 90).

Sendo assim, considera-se violência um meio de coagir, de submeter outrem ao seu


domínio, uma violação dos direitos supremos da pessoa humana. A violência pode atingir a
intimidade física, psíquica e moral da vítima.
Segundo estudo realizado por pesquisadores da área de ciências humanas e sociais, os
principais tipos de violência contra as mulheres são: “violência sexual, violência doméstica ou
familiar, assédio sexual, assédio moral e feminicídio” (JESUS, 2015, p. 71).
Sublinha-se que a Lei Maria da Penha proclama que a toda mulher, independentemente
de classe, cor, raça, etnia, orientação sexual, entre outros, são garantidos os direitos
fundamentais da pessoa humana (BRASIL, 2006, art. 2º).
São asseguradas às mulheres todas as formas de proteção, diante de medidas de
prevenção e de assistência, com o intuito de eliminar a violência doméstica e familiar.
De acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas, no período de
distanciamento social, agravou-se a violência contra mulheres, pois ela ocorre dentro dos lares.
39

Isso se dá “[...] porque as mulheres em situação de violência encontram-se fechadas junto com
seus agressores, com oportunidades muito limitadas de sair de suas casas ou de buscar ajuda. ”
(ONU, 2020, p. 1).

Outrossim, salienta-se que as medidas adotadas de confinamento “[...] poderiam fazer


com que os agressores aumentem o isolamento das mulheres em situação de violência dentro
de casa. ” (ONU, 2020, p. 1).

Como “justificativa” infundada, os agressores alegaram que a perda de sua atividade


laboral, a instabilidade econômica familiar e o estresse são fatos que podem gerar uma sensação
de perda de poder. (ONU, 2020, p. 2).

Em vista disso, a situação contribui para elevar a frequência e a gravidade da violência


doméstica, bem como comportamentos nocivos e abusivos que resultam em um aumento de
abuso sexual on-line, ou nas ruas quando os agressores saem de casa. (ONU, 2020, p. 2).

Percebe-se que, até o presente momento, as mulheres intimidadas silenciavam diante


das agressões, espancamentos, humilhações e ameaças, por medo, por falta de apoio (TELES;
MELO, 2017, p. 1206), até chegar à chamada “quarta onda do feminismo” (SILVA, 2019),
quando a informação, acesso facilitado a internet, redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter,
Youtube), demais plataformas digitais, depoimentos de outras vítimas demonstrando, entre
outras formas de acesso a relatos, mostra que as palavras oriundas do seu companheiro agressor,
sim, são inverdades, cruéis abusos e devem ser denunciados.

Diante de todo exposto, viu-se a vulnerabilidade das vítimas, essencialmente no


distanciamento social. Em contrapartida, em tempos de ascensão tecnológica, tem-se o poder
de propagação da informação pelas redes sociais, o acesso facilitado e o compartilhamento de
informação fidedigna, bem como a liberdade de expressão, tornam-se uma moeda valiosa para
a democratização.

No próximo tópico, será analisada a denominada “quarta onda do feminismo” e a


ascensão feminista na rede.

1.2 ASCENSÃO FEMINISTA NA REDE: CIBERESPAÇO COMO FERRAMENTA


EFETIVA PARA A PROPAGAÇÃO E INFORMAÇÃO DAS VÍTIMAS
40

A universalização da internet é um movimento “irreversível e irrefreável” que


ocasionou uma revolução em relação à comunicação e informação, e o feminismo não demorou
a chegar com força na internet (SILVA, 2019, p. 25).

Nas palavras da autora, “nunca se experimentou a comunicação global e rápida como


experimentamos hoje e, devido às peculiaridades da explosão do feminismo dentro desse
contexto, já é possível afirmar com segurança que vivemos um momento de quarta onda do
feminismo”. (SILVA, 2019, p. 26). Silva, ao tratar do assunto complementa:

Logo, já adiantamos que a quarta onda do feminismo é caracterizada principalmente


pelo uso maciço das plataformas de redes sociais com fim de organização, articulação
e propagação da ideia de que a igualdade entre os sexos ainda é uma ilusão. Já se diz
que quarta onda do feminismo responde ao ressurgimento do interesse no feminismo
iniciado por volta de 2012, associado ao uso das plataformas de redes sociais – tais
como do Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e Tumblr. Assim, a quarta onda do
feminismo surge mediante o avanço das tecnologias de informação e comunicação,
sendo usadas para contestar a misoginia, o sexismo, a LGBTfobia e vários tipos de
desigualdades e violências de gênero. (SILVA, 2019, p. 26).

Nesse contexto, a força do ambiente virtual apresenta-se como forma facilitadora para
a libertação dos laços emocionais abusivos, em virtude da propagação de informação pelos
meios virtuais. Assim, a internet possui papel crucial no despertar das vítimas de violência
doméstica, afinal dá voz para muitas mulheres que antes não conheciam a sua própria origem,
independentemente de classe social.
Com o advento da internet, surge o “ciberfeminismo” fazendo com que essas vozes
antes silenciadas ecoassem por uma vida fisicamente e psiquicamente saudável.
A ascensão das redes sociais, portanto, passou a proporcionar que as vítimas relatem
suas histórias quando preparadas, reflitam sobre suas vidas, bem como compartilhem
depoimentos e juntas aprendam a se amar do jeito que são.
Desse modo, compreendendo os tipos de abusos, as características dos abusadores,
sentindo-se acolhidas por outras mulheres que passaram pelas mesmas agressões e podem
ajudá-las de alguma forma, criando-se, portanto, uma rede virtual e do bem que pode mudar as
próximas páginas de suas histórias.
No próximo tópico adentra-se no surgimento da campanha do batom vermelho.
41

2 “NÃO TIRA O BATOM VERMELHO”

A expressão “não tira o batom vermelho” foi difundida nas redes sociais por uma
influenciadora digital chamada Jout Jout. Sem pretensões, ela fez um vídeo na plataforma
Youtube contando a história de uma menina que a encontrou no metrô com os olhos cheios de
lágrimas dizendo que a influenciadora contribuiu de forma significativa para o divórcio de sua
amiga que estava em um relacionamento destrutivo, há muito tempo, mas se mantinha em
negação. A autora e influenciadora arrepiou-se e resolveu dar voz a essas histórias e a muitas
outras. (JOUT, 2016, p. 150).
A moça que contou a história da sua melhor amiga referia-se a um vídeo chamado “Não
tira o batom vermelho”, que viralizou velozmente nas redes, pois trata-se de como identificar
se você está vivendo em um relacionamento abusivo (JOUT, 2016, p. 151). Mulheres de locais
diversos do Brasil agradeceram à influenciadora, pois, com as informações de seus vídeos,
também conseguiram extinguir esses laços.
A felicidade de conseguir libertar mulheres encarceradas emocionalmente tomou conta
de Jout Jout e prosseguiu com os seus vídeos para informar as vítimas de abuso. A autora com
propriedade aduz:

As pessoas querem alguém que fale o que elas já sabem, às vezes o que precisam é do
respaldo de desconhecidos para poder fazer algo a respeito. A gente precisa de
reafirmação o tempo todo para não dar um passo errado, arriscar tudo, fazer uma coisa
muito fora do comum. (JOUT, 2019, p. 151).

O batom vermelho tem o poder de empoderar a mulher, levantar sua autoestima, deixá-
la feliz e pronta para enfrentar o mundo. É uma maquiagem que é um símbolo de expressão
feminina. Um homem quando pede para a mulher “tirar o batom vermelho” por parecer uma
mulher vulgar, certamente se revela um abusador.

Posteriormente, diante da potencialização da violência doméstica em tempos de


isolamento social surge a campanha do batom vermelho, lançando um sinal vermelho contra a
violência doméstica. Na próxima seção, será analisado o surgimento da campanha no próximo
tópico.

2.1 Surgimento da campanha do batom vermelho: sinal vermelho contra violência


doméstica
42

Durante o período de confinamento, surgiu a campanha com a iniciativa da Associação


dos Magistrados Brasileiros e do Conselho Nacional de Justiça, com demais entidades,
propiciando que a vítima denunciasse os casos de violência doméstica de forma discreta para
não alertar o abusador.

Desse modo, a vítima fazia um X em sua mão e ia até a farmácia mais próxima; os
atendentes entenderiam o seu pedido de socorro e denunciariam o abusador.

A conselheira Maria Cristiana Ziuova diz:

O protocolo é, de fato, simples: com um “X” vermelho na palma da mão, que pode ser feito
com caneta ou mesmo um batom, a vítima sinaliza que está em situação de violência. Com
o nome e endereço da mulher em mãos, os atendentes das farmácias e drogarias que aderirem
à campanha deverão ligar, imediatamente, para o 190 e reportar a situação. O projeto conta
com a parceria de 10 mil farmácias e drogarias em todo o país. Confira aqui a lista com as
redes de farmácia que assinaram o termo de adesão à campanha. (ZIUOVA, Cristiana apud
BANDEIRA, 2020)

A campanha teve por escopo ajudar as vítimas a denunciarem de forma silenciosa seus
agressores. Em tempos de distanciamento social, as mulheres ficaram confinadas em casa e não
conseguiram ir até uma delegacia fazer uma denúncia sem alertar o abusador, até mesmo de
forma virtual, pois o agressor retirou seu celular, quebrou seu computador, entre outras
atrocidades, dessa forma tinham dificuldade de efetuar um pedido de ajuda. Portanto, para os
criadores da campanha, ir a uma farmácia comprar remédios seria o momento propício para
pedir socorro.
A repercussão da campanha Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica foi ampla
nas redes sociais. Figuras públicas de renome publicaram em suas mídias sociais uma foto com
o X de batom vermelho na mão, dando ainda mais ênfase, apoio e disseminação à causa. Diante
disso, “Não tira o batom vermelho”, além de exaltar a beleza feminina, pode salvá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência doméstica contra a mulher é um dos fenômenos sociais mais denunciados


no mundo, sendo o Brasil um dos líderes desse ranking (D’ÁVILA, 2019, p. 143), em tempos
de isolamento.
43

A cidade do Rio de Janeiro teve o registro de 50% (cinquenta por cento) de aumento
nas denúncias por violência de gênero durante o período da quarentena, conforme o relatório
da ONU Mulheres (ONU, 2020)

A esse respeito, cabe ressaltar, que além de um dever constitucional, legal, a proteção
contra da mulher contra a violência doméstica trata-se de uma questão de direitos humanos,
moral.

Não obstante, os índices são muito altos e no mundo tenhamos a ascensão de diversos
abusos: emocionais, sexuais, físicos, de gênero entre muitos outros.

Em contrapartida, a ascensão da internet (ciberespaço e ciberfeminismo) proporciona a


propagação da informação, com isso alertando e libertando as mulheres de amarras emocionais
e favorecendo o fenômeno da democratização da informação.

Nesse desdobramento, devido ao poder da universalização da informação e amplo


acesso das tecnologias de informação e comunicação, tem-se a propagação pelas mídias sociais
que alertam sobre as características do abusador, como se origina essa situação e se a mulher
está sendo violentada.

Assim, é possível compartilhar experiências com outras vítimas de abuso – não


silenciar, e sim denunciar.

Nesse contexto, a mulher consegue libertar-se de laços construídos pelo seu companheiro,
estando ciente que as palavras humilhantes proferidas pelo abusador são inverídicas e que, uma
“tapinha”, entre qualquer tipo de violência, doí muito: psiquicamente, moralmente,
emocionalmente, fisicamente e deve ser denunciado. Destarte, é sabido que o acesso à
informação e a liberdade de expressão são a forma de garantir a democracia em nosso país.

No período de isolamento social, aumentaram os casos de violência doméstica contra a


mulher no Brasil, pois as vítimas estavam em confinamento (cárcere) com seus parceiros.
Portanto, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ e a Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB), atentos, elaboraram uma campanha de sucesso denominada: Sinal Vermelho Contra a
Violência Doméstica.

Ademais, essa campanha teve uma forte disseminação e repercussão nas redes,
considerando que ir a uma farmácia para comprar fármacos com um X de batom vermelho é
mais acessível do que ir até uma delegacia efetivar a denúncia.
44

Por todo o exposto, as entidades públicas e privadas demonstraram preocupação com o


aumento da violência doméstica, desse modo protegendo-as e garantindo o cumprimento legal.

Atuando na forma de contenção e prevenção, realizando campanhas públicas e medidas


eficazes de tolerância zero para com os abusadores, em uma rede social mobilizada para o bem,
comprometida com a solidariedade, colaboração e divulgação, vamos conseguir diminuir ou
eliminar a violência contra a mulher, reprovável e inaceitável desde sempre.

REFERÊNCIAS

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doméstica na pandemia. Agência CNJ de Notícias, [Brasília], 10 jun. 2020. Disponível em:
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doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, [2015]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 06 abr. 2019.

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45

TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São
Paulo: Brasiliense, 2017. (Coleção Primeiros Passos).
46

EPIDEMIA DA SAÚDE MENTAL DURANTE A COVID-19 E POLÍTICAS


PÚBLICAS EFETIVAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE-SUS

Estéfani Luise FernandesTeixeira1


Mariana de Albuquerque Polydoro Diefenthaler2
Vanessa Bortolini 3

Resumo: O presente artigo tem por escopo realizar uma reflexão sobre o direito fundamental à
saúde e o aumento dos transtornos mentais em decorrência da pandemia da COVID-19,
apresentando os impactos do distanciamento social e dos transtornos mentais coletivos. Nesse
contexto, examina-se o adoecimento mental da população em larga escala. Promove-se uma
reflexão acerca das relações como justa igualdade de oportunidades nas relações humanas.
Dessa forma, averiguando quais medidas governamentais devem ser efetivadas para
proporcionar um Estado Democrático de Direito estabelecido pela CRFB/88. Oportunamente,
analisando a recente aprovação do Projeto de Lei 2.083/2020, que prevê apoio psicológico e
psiquiátrico no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Por fim, a metodologia proposta para
atingir os objetivos é hipotético-dedutiva com cunho exploratório e realizada por meio de
levantamento bibliográfico.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Pandemia; COVID-19; Saúde; Sistema único de
saúde – SUS; Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

O artigo tem por escopo analisar o direito fundamental à saúde no setor da saúde
brasileira, notoriamente no Sistema Único de Saúde (SUS), para a aplicabilidade efetiva dos
valores supremos constitucionais. Nesse segmento, se averigua as medidas de prevenção
adotadas de isolamento social associadas ao adoecimento da população no período pandêmico.
Destarte, é fundamental garantir saúde digna aos pacientes e para a tutela de direitos
fundamentais e garantias deles decorrentes, dispostas na Constituição da República Federativa

1
Mestre do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, RS,
Brasil. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS). Bacharela em Direito pela PUCRS. Membro da Comissão Especial de Direito à Saúde da OAB/RS.
Advogada e consultora.
2
Advogada. Presidente da Comissão Especial de Direito a saúde da OABRS. Mediadora CNJ. Especialista em
Processos Civil pela Unisinos. Pós-graduação em psicologia forense básica e avançada pela Unisinos. Mestranda
em Direito pela, Universidade Fernando Pessoa em Portugal.
3
Procuradora do Conselho Regional de Medicina do Estado do RS – CREMERS. Mestranda em Direito da
Empresa e dos Negócios (UNISINOS). Especialista em Direito Médico e da Saúde (PUC-PR). Membro da
Comissão Especial de Direito à Saúde da OAB/RS.
47

do Brasil de 1988 (CRFB). Sendo assim, se faz necessária a organização e planejamento do


SUS por meio de políticas públicas para ofertar um suporte eficiente objetivando minimizar os
impactos inerentes ao adoecimento mental da população durante o isolamento social.
No tocante à saúde, a disseminação mundial do coronavírus impactou fortemente todas
as relações, sendo prioridade a manutenção da vida humana. As pessoas não estavam
preparadas socialmente, economicamente e pessoalmente para o enfrentamento de uma
pandemia, o que impactou na saúde também mental da população.
O número de transtornos mentais ocasionados pelo coronavírus, essencialmente em
países com maior desigualdade social, impressionou e preocupou as autoridades, entidades,
pessoas e órgãos responsáveis.
Devido ao agravamento e preocupação com a população o Senado Federal aprovou o
projeto de lei n. 2.083/2020, que cria um programa específico de acolhimento de pessoas em
sofrimento emocional causado pela pandemia da COVID-19.
Dessa forma, reconhecer a imposição essencial da observância aos direitos e garantias
fundamentais e, principalmente, ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é
pressuposto fundamental ao desenvolvimento de quaisquer relações humanas, especialmente as
que envolvam a saúde.
Buscou-se refletir acerca de medidas para estruturar uma sociedade com justa igualdade
de oportunidades no setor da saúde, bem como acerca da atuação ativa do governo para que se
tenha em Estado Democrático de Direito estabelecido pela CRFB.
Por fim, sendo o meio acadêmico o ambiente no qual devam ser discutidas e arejadas,
transformadas e reconstruídas as ideias, em tempos de colapso no setor da saúde, a pesquisa
encontra campo fértil ao seu desenvolvimento, pois representa tema atual e, mormente no que
diz respeito às políticas públicas eficazes e o direito fundamental à saúde.

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

O sistema de saúde no Brasil é constituído por uma rede complexa de prestadores e


compradores de serviços que disputam entre si, estabelecendo uma combinação público-
privada. A sua estrutura é constituída em três subsetores: público, privado e suplementar, os
quais estão interconectados, podendo os pacientes usufruírem dos setores mencionados
48

consoante a facilidade de acesso ou a possiblidade de pagamento.4 No que tange ao sistema


público de assistência à saúde, denominado SUS, há muitas adversidades para a garantia da
cobertura universal e equitativa preconizada pela Constituição, sendo um dos maiores desafios
a incrementação do orçamento para destinação adequada.

De acordo com o Ministério da Saúde, o SUS é um dos maiores e mais complexos


sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento para avaliação
da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até o transplante de órgãos, garantindo
acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país. Com a sua criação o SUS
proporcionou acesso universal ao sistema público de saúde, sem discriminação.

A atenção integral à saúde, e não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um
direito de todos os brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com
qualidade de vida, visando à prevenção e à promoção da saúde. A gestão das ações e dos
serviços de saúde deve ser solidária e participativa entre os três entes da Federação: a União,
os Estados e os Municípios. A rede que compõe o SUS é ampla e abrange tanto ações quanto
os serviços de saúde. Engloba a atenção primária, média e de alta complexidade, os serviços
de urgência e emergência, a atenção hospitalar, as ações e serviços das vigilâncias
epidemiológica, sanitária e ambiental e assistência farmacêutica 5.

Entende Supremo Tribunal Federal (STF) que “o direito à saúde é prerrogativa


constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas,
impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso
a tal serviço”.6 A seu turno, os direitos de segunda geração exigiriam do Estado uma proteção
efetiva dos indivíduos como coletividade, buscando meios de propiciar a todos, igualmente,
condições dignas de sobrevivência.

4
DUNCAN, Bruce B. et al. Condições de saúde da população brasileira.In: DUNCAN, Bruce B. et al.Medicina
ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 9.
5
BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura, princípios e como funciona. Brasília,
[s.d.]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude. Acesso em: 01mar. 2021.
6
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.
734.487. Relatoria: Ministra Ellen Gracie. Julgado em: Brasília, 03 ago. 2010. Publicado em: Brasília, 20 ago.
2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201814. Acesso em: 01mar.
2021
49

Ademais, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990) dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento,7 bem como sobre
os princípios norteadores (universalidade, equidade, integralidade) e as orientações
organizacionais (hierarquização, regionalização, descentralização e participação social). 8 Na
mesma direção, a CRFB, em seu artigo 196, aduz que a saúde é um direito de todos e um dever
do estado “[...] garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços a sua
promoção, proteção e recuperação”.9 Na mesma linha, a previsão do art. 198 da Constituição,
que estabelece a competência comum, bem como a organização em rede, regionalizada e
hierarquizada, a qual constitui um sistema único, prevendo uma ação conjunta e coordenada
entre os entes federativos na realização do princípio fundamental de proteção à saúde.10

A CRFB, salvo alguns dispositivos implícitos, não estabelece exatamente o conteúdo


do direito à saúde, sua proteção ou sua promoção, fato que, por sua vez, não pode afastar a
intervenção judicial no que for admissível pela Administração Pública. A seu turno, é viável
extrair da CFRB que o direito fundamental à saúde contempla os valores de prevenção e
promoção, em seu artigo 196.11 Resta mais “[...] apropriado não falar de um direito a saúde,
contudo, mas de um direito à proteção e promoção da saúde”.12

Os termos “redução de risco de doença” e “proteção” guardam relação direta com a


ideia de saúde preventiva, ou seja, cumprimento de obrigações que tenham o viés de obstar o
surgimento da doença ou o dano à saúde, individual ou pública, utilizando-se dos princípios da
precaução e prevenção.

Já a expressão “promoção” tem por objetivo dar melhor qualidade de vida ao paciente
por intermédio de ações que visem estabelecer as conjunções de vida e saúde dos indivíduos.

7
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm. Acesso em: 01mar. 2021.
8
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990...
9
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:01mar. 2021.
10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988...
11
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”. Cf. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988...
12
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. p. 10353.
50

Assim, oferta-se o mínimo existencial, que não poderá reduzir-se ao mínimo vital a propiciar
somente a existência física, mas sim assegurando uma vida efetivamente saudável.13

Nesse contexto, a CFRB, além de estabelecer no art. 6º que são direitos sociais, dentre
outros, a saúde,14apresenta uma ordem social com um vasto universo de normas que destinam
programas, tarefas, diretrizes e fins a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade, pelo que
se destacam dispositivos constitucionais constantes da ordem social, que fixam a saúde como
direitos de todos e dever do Estado (art. 196)15.

Em nosso país, ainda se tem uma situação muito precária, notoriamente no setor da
saúde pública pela influência direta na gênese das patologias com maior prevalência. As
políticas públicas atuais não são capazes de reverter esse quadro, contudo, um conjunto de
políticas sociais, pode contribuir significativamente para a promoção da cidadania de uma
parcela expressiva da população brasileira.16

Nesse contexto, de modo especial, importante frisar que o direito a saúde é um direito
individual, ligado à proteção da vida, da integridade física e corporal, bem como da referida
dignidade inerente ao ser humano.17 Em face dessa prerrogativa, a despeito da dimensão
coletiva e difusa de que possa se revestir, o direito à saúde deverá ser tutelado individualmente,
pois cada indivíduo possui um organismo diferenciado.

Tendo em conta a temática apresentada, notadamente no que diz com a relevância do


direito à saúde, bem como quanto à precariedade de alguns aspectos relacionados a sua
prestação pelo SUS, consoante referido nas linhas acima, passar-se-á, adiante, à análise do
coronavírus e políticas públicas.

13
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. p. 10354.
14
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição”. Cf.BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de
1988...
15
PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e perspectivas. In:
CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcos Orione Gonçalves; Correia; BARCHA, Érica Paula. Direitos
fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 862.
16
PUSTAI, Odalci José; FALK, João Werner. O sistema de saúde no Brasil.In: DUNCAN, Bruce B. et al.Medicina
ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 18.
17
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. p. 10353.
51

CORONAVÍRUS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Nesse desiderato, o surgimento da pandemia revelou um impacto econômico, social e


cultural na sociedade, pelo que a sociedade não estava preparada para um vírus dessa proporção:

[...] representa um momento singular na história da humanidade e que mudou


drasticamente o modo de vermos o mundo e as relações interpessoais nele inseridas,
na medida em que representou desafios globais nas mais diversas dimensões: jurídica,
política, legislativa, sanitária, médica, tecnológica, industrial, de engenharia, etc. 18

Nesta senda, o isolamento social ocasionado pelo coronavírus transformou a rotina dos
indivíduos da casa. Antes da pandemia tínhamos uma rotina de trabalho, momentos de lazer,
de estar com a família, mas em tempos de pandemia misturam-se as relações, ocasionando, em
muitos casos, doenças psicológicas, psíquicas, estresse, síndrome de Burnout, doenças advindas
da hiperconectividade, traumas coletivos pela perda de familiares.

No contexto brasileiro, tivemos um crescimento expressivo do número global de mortes


de forma célere. Diante desse número expressivo de óbitos, bem como de pessoas infectadas é
faz-se necessário rever as políticas públicas de precaução e prevenção eficazes contra o vírus:

[...] políticas públicas são programas de ação governamental voltados à concretização


de direitos. Considerando-se hoje a abrangência dos direitos funda- mentais, que em
sucessivos pactos internacionais, depois ratificados e internados nas ordens jurídicas
nacionais, vêm sendo ampliados. é preciso realçar a importância da
interdisciplinariedade no direito com políticas públicas, pois alguns institutos e
categorias tradicionais do direito – como o direito de danos – hoje rarefeitos buscam
novo sentido ou nova força restabelecendo contato com outras áreas do
conhecimento.19

Destarte, devemos ficar atentos aos dispositivos da CRFB, essencialmente no direito


fundamental à saúde e dignidade da pessoa humana, bem como tutelando os direitos e garantias
fundamentais e direitos humanos. Igualmente, as pessoas devem seguir de forma contundente
as medidas recomendas pelos órgãos responsáveis. Além disso, torna-se necessário “[...]
minimizar as desigualdades sociais e a promoção do bem de todos (art. 3º, III e IV); ao prever
a inviolabilidade de interesses existenciais do ser humano (art. 5º, V e X); ao prever a proteção

18
BONNA, Alexandre Pereira. Direito de danos, políticas púbicas e a COVID-19: a pandemia que exige um novo
conceito de responsabilidade civil.In: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo;
DENSA, Roberta. Coronavírus e responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 423.
19
BONNA, Alexandre Pereira. Direito de danos, políticas púbicas e a COVID-19: a pandemia que exige um novo
conceito de responsabilidade civil. p. 425.
52

de inúmeros direitos sociais (arts. 6º a 11º); ao estabelecer como dever do Estado a proteção do
consumidor e estipular que a ordem econômica deve observar a defesa do consumidor (arts. 5º,
XXXII e 170, V).”20

Diante o exposto, torna-se vital em tempos de pandemia aprovar medidas facilitadoras


para o acesso à saúde, abrangendo o maior número de indivíduos, essencialmente para as
pessoas que dependem do SUS. Com efeito, a inserção de novas tecnologias na área da saúde,
proporcionando atendimento eficiente durante a pandemia ocasionada pela COVID-19, é
essencial para propiciar amplo e fácil acesso a um médico para a população, com isso se
tornando um sistema universal de saúde eficiente, eficaz e justo em prol dos seres humanos.
Nessa linha, Miguel Kforuri Neto sustenta que “[...] a definição de Rawls, acerca da
obra ‘[uma] teoria da justiça’ como equidade, torna-se útil para validar a menção de equidade,
disposto no art. 994, parágrafo único, do Código Civil.”21 Assim, a teoria da justiça como
equidade busca precisar o núcleo central de um consenso por justaposição, isto é, ideias
intuitivas comuns que, coordenadas numa concepção política de justiça, se revelarão suficientes
para garantir um regime constitucional justo. Isso é o que podemos esperar de melhor não
necessitamos mais.22
Dessa forma, a equidade faz parte da aplicação do direito e encontra-se em diversas leis
esparsas no ordenamento jurídico. Todavia, o desafio é conceituá-las e aplicá-las.23 Contudo,
faz-se fundamental o magistrado ao decidir analisar o caso concreto. Além de aplicar os
dispositivos da lei observar a equidade.
Maria Helena Diniz lembra Aristóteles, em sua ética a Nicômoco: desempenha a
equidade o papel de um corretivo, de um remédio aplicado pelo julgador para sanar defeitos
oriundos da generalidade da lei, pois a aplicação fiel de uma norma a um caso concreto poderá
ser injusta ou inconveniente. A equidade é, teoricamente, de que deve lançar o aplicador, para
temperar os rigores de uma fórmula demasiado e genérica, fazendo com que está não contrarie
os reclamos da justiça. Considera, portanto, a equidade uma virtude informada pela justiça.24

20
BONNA, Alexandre Pereira. Direito de danos, políticas púbicas e a COVID-19: a pandemia que exige um novo
conceito de responsabilidade civil. p. 428-429.
21
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidades civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do
Consumidor. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 479.
22
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidades civil dos hospitais. p. 480.
23
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidades civil dos hospitais. p. 479.
24
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidades civil dos hospitais. p. 480.
53

Sendo assim, a equidade deve prevalecer sobre a legalidade positiva, pois possibilita
uma consecução mais perfeita da justiça e do direito.25
John Rawls aduz que a concepção da justiça apresenta uma teoria pura da justiça, uma
concepção que o autor chama de justiça de equidade. Em razão disso, concebe as ideias e os
objetivos centrais dessa concepção como os de um pensamento filosófico. Dessa forma, o autor
consolida que a justiça como equidade pareça razoável e útil, mesmo que não seja.26

Rawls acredita que dois princípios de justiça poderiam emergir do contrato hipotético.
O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de
expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se às considerações sobre utilidade social e bem-
estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e econômica. Embora não requeira
uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e
econômicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade.27

Portanto, sobreleva mencionar que o motivo principal do autor para buscar essa
alternativa é a fragilidade da doutrina utilitarista como fundamento das instituições da
democracia constitucional, embora o utilitarismo para John Rawls não possa explicar as
liberdades de direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma exigência de
importância absolutamente primordial para uma consideração das instituições democráticas.
Por fim, esboçou-se uma expressão mais geral e abstrata da ideia do contrato social usando,
para isso, a ideia da posição original. Explicando as liberdades e os direitos básicos e sua
prioridade, foi o primeiro objetivo da justiça como equidade. O seu segundo objetivo foi
integrar a explicação a um entendimento da igualdade democrática, o que conduziu ao princípio
da igualdade equitativa de oportunidades e ao princípio da diferença.28

Nas palavras de Nonet e Selznick, “[...] um sistema responsivo é sensível às


desvantagens práticas que os excluídos da sociedade enfrentam e busca igualar do jogo no
campo jurídico, seja proporcionando ajuda, seja adaptando as normas”.29 A seu turno, Suelen
da Silva Webber e Leonel Severo Rocha aduzem que

25
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidades civil dos hospitais. p. 480.
26
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
27
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. Versão
Kindle.
28
RAWLS, John. Uma teoria da justiça.
29
NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição do sistema jurídico responsivo. [S.l.]:
Revan, 2010. p. 8-19.
54

[...] na tentativa de se encontrar um modelo de Direito capaz de ser legítimo, forte e


isento de corrupções, mas que permita atender incluídos e excluídos, cuja matriz é
capaz de lidar com as tensões e comunicações sociais, sem o uso da força, é que a
Sociedade evolui para o Sistema Responsivo. Este está além dos paradigmas de um
Sistema Fechado ou um Sistema Aberto.30

Nessa linha, em contexto de caráter urgente, trata-se de buscar a efetivação do direito


responsivo no setor da saúde em todas as esferas e a postura que se espera do Poder Judiciário
na tomada de decisões nesses processos. Além disso, antes de adentrar na celeuma, sobreleva
corroborar a importância de tutelar os Direitos Humanos, bem como as garantias e direitos
fundamentais da pessoa humana. Dessa forma, brevemente, é fundamental discorrer sobre o
princípio maior da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CFRB).

John Rawls tem como propósito criar uma sociedade justa. Para o filósofo, é um tipo de
organização social, onde há perfeita distribuição dos bens e dos desejos. Numa das primeiras
oposições considera-se que os bens materiais sejam escassos; e os desejos humanos, ilimitados.
Porém, os bens sociais são limitados e escassos: escassez dos bens sociais.

O autor cria uma espécie de conciliação entre liberdade representada nos desejos e
igualdade na concepção de distribuição de bens sociais, logo uma espécie de reconciliação dos
princípios liberais anteriores a II Grande Guerra (direitos fundamentais, liberdades individuais)
com princípios igualitaristas, uma ideia de igualdade política, material, e demais implicações,
ou seja, o filósofo não pretende abandonar uma sociedade liberal, mas sim propor uma forma
de pensar organização política de intervencionismo com políticas igualitaristas para corrigir o
que o liberalismo, em sua opinião, não tem por essência. Essa junção em conjugar
individualismo formal dos direitos fundamentais e o igualitarismo de bem estar social é o
objetivo do filosofo. Conciliando chama-se de justiça como equidade.31

Por todo o exposto, é essencial preservar as garantias fundamentais basilares previstas


na Constituição de 1988 no que diz respeito às garantias e direitos fundamentais, especialmente
tutelando a dignidade da pessoa humana.

30
WEBBER, Suelen da Silva; ROCHA, Leonel Severo. Direito e Sociedade em transição: respostas sociológicas
para decisões judiciais autopoiéticas. [S.l.: 201-]. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=914101ec47c52b48. Acesso em: 26 out. 2020. p. 15.
31
RAWLS, John. Uma teoria da justiça.
55

Nesse contexto, o Senado Federal aprovou projeto que cria, no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS), um programa específico para atender as pessoas que precisam de ajuda
psicológica, psiquiátrica, causado pela pandemia de covid-19.

Ante o exposto, percorrido o sinuoso terreno do coronavírus bem como, dos direitos e
garantias fundamentais, dentre os quais o direito à saúde e dignidade da pessoa humana devem
ser respeitados, pensando e colocando em prática a equidade e minimizando ou eliminado as
desigualdades sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

John Rawls argumenta que a “[...] maneira pela qual podemos entender a justiça é
perguntando a nós mesmos com quais princípios concordaríamos em uma situação inicial de
equidade.”32Com isso, torna-se cada vez mais importante o reconhecimento e tutela aos direitos
fundamentais no que tange a saúde no Brasil, especialmente para os indivíduos menos
favorecidos. Nesse contexto, vislumbrando uma sociedade com justa igualdade de
oportunidades no setor da saúde, bem como acerca da atuação ativa do governo para que se
tenha em Estado Democrático de Direito estabelecido pela CRFB.

Diante disso, salienta-se que para se ter uma sociedade justa com os direitos efetivados,
ou seja, no presente ensaio, uma saúde eficaz faz-se necessário instituir políticas públicas
eficientes que visem o ideal de justiça que John Rawls. Dessa forma, valem-se de um contrato
social ao que utilizam o denominado véu da ignorância para tornar possível. John Rawls
raciocina que, para definir os princípios que governarão nossa vida coletiva para elaborar um
contrato social, deve-se selecionar determinados princípios, salientando que “[...] pessoas
diferentes têm princípios diferentes, que refletem seus diversos interesses, crenças morais e
religiosas e posições sociais.”33 Logo, precisa-se chegar a um consenso.

Nas palavras de Michael J. Sandel, “[...] mesmo o consenso refletiria o maior poder de
barganha de alguns sobre o dos demais”,34 pelo que não há motivos para acreditar que um
contrato social elaborado dessa maneira seja um acordo justo. Nessa linha, utiliza-se o véu da
ignorância em que hipoteticamente não sabemos quem somos, não sabemos a classe social,

32
RAWLS, John. Uma teoria da justiça.
33
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 233.
34
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 233.
56

gênero, religião, raça, etnia e nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. É dessa forma que
John Rawls, sem essas informações, considera um contrato social justo, um acordo com
equidade.

Por fim, assim deveriam ser as políticas públicas inovadoras no setor da saúde.
Propiciando uma análise do coletivo, partindo-se do pressuposto de não analisar os interesses
próprios. John Rawls acredita que “[...] dois princípios de justiça poderiam emergir do contrato
hipotético”.35 O primeiro princípio dispõe as mesmas liberdades básicas para todos os
indivíduos, tais como a liberdade de expressão e religião. Assim, sobrepõe-se a considerações
sobre utilidade social e bem-estar geral.36 O segundo princípio é “[...] inerente à equidade social
e econômica”.37 Dessa forma, preceitua-se que embora não “[...] requeira uma distribuição
igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e econômicas que
beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade.”38

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Roberto Medeiros. Rio de janeiro:
Zahar, 2008.

BONNA, Alexandre Pereira. Direito de danos, políticas púbicas e a COVID-19: a pandemia


que exige um novo conceito de responsabilidade civil.In: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO
FILHO, Carlos Edison do Rêgo; DENSA, Roberta. Coronavírus e responsabilidade civil.
Indaiatuba: Foco, 2020.

BRASIL registra 52 mil casos de Covid em 24 horas; média móvel aponta alta de 35% em 2
semanas. G1, [s.l.], 01 jan. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/12/01/casos-e-mortes-por-
coronavirus-no-brasil-em-1-de-dezembro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml.
Acesso em: 01março. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 mar. 2021.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços

35
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 235.
36
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 235.
37
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 235.
38
SANDEL, Michael J. Justiça. p. 235.
57

correspondentes e dá outras providências. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm. Acesso em: 01 mar. 2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura, princípios e como
funciona. Brasília, [s.d.]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude.
Acesso em: 01 mar. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Agravo Regimental em Agravo de


Instrumento n. 734.487. Relatoria: Ministra Ellen Gracie. Julgado em: Brasília, 03 ago. 2010.
Publicado em: Brasília, 20 ago. 2010. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201814. Acesso em: 01 mar.
2021.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK,


Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

DUNCAN, Bruce B. et al.Condições de saúde da população brasileira.In: DUNCAN, Bruce B.


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KFOURI NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidades civil dos hospitais: Código Civil e Código
de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 479.

NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Direito e sociedade: a transição do sistema jurídico


responsivo. [S.l.]: Revan, 2010.

PILAU SOBRINHO, LitonLanes. Comunicação e direito à saúde. Espanha: Punto Rojo, 2016.

PIOVESAN, Flávia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos: desafios e


perspectivas.In: CANOTILHO, J. J. Gomes; CORREIA, Marcos Orione Gonçalves; Correia;
BARCHA, Érica Paula. Direitos fundamentais sociais. São Paulo: Saraiva, 2015.

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2015. Versão Kindle.

WEBBER, Suelen da Silva; ROCHA, Leonel Severo. Direito e Sociedade em transição:


respostas sociológicas para decisões judiciais autopoiéticas. [S.l.: 201-]. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=914101ec47c52b48. Acesso em: 01 mar. 2021.
58

SUPERENDIVIDAMENTO E SUA RELAÇÃO ENTRE A HIPERCONEXÃO DO


CONSUMIDOR E O COMÉRCIO ELETRÔNICO DURANTE O PERÍODO DE
PANDEMIA

Estéfani Luise Fernandes Teixeira1


Francine Cansi2
Bianca Andrade de Castro3

Resumo: O presente artigo reflete sobre o superendividamento pelo e-commerce no contexto


de pandemia e isolamento social a partir da proteção de dados pessoais sensíveis dos
consumidores. Para tanto, a partir de uma leitura sociológica e utilizando o método
funcionalista, examina-se a vulnerabilidade dos consumidores diante do tratamento de dados
pessoais pelo varejo on-line com a acentuação trazida pela hiperconexão durante o período
pandêmico. Com o advento da Lei do Superendividamento, tem-se que a educação financeira
se mostra como solução para evitar ou diminuir conflitos consumeristas que levem ao
superendividamento dos consumidores.

Palavras-chave: Vulnerabilidade do consumidor; Pandemia; E-commerce; Educação para o


consumo; Lei n. 14.181/2021 (Superendividamento)

INTRODUÇÃO
A pesquisa analisa o aumento do superendividamento na atualidade principalmente no
contexto vivenciado pelo período pandêmico e durante o isolamento social nas relações de

1
Mestre em Direito pela Universidade de Passo Fundo RS. Especialista em Direito Material e Processual do
Trabalho - PUC/RS (2018). Pesquisadora acadêmica, integrou do Grupo de pesquisa Jurisdição Constitucional e
Democracia, sob a coordenação do Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho, sediado na UPF. Pesquisadora
acadêmica, integrou o Grupo de pesquisa, Análise econômica do direito, sob a coordenação da Profa. Dra. Karen
Beltrame Fritz, sediado na UPF. Pertenceu ao grupo de pesquisa Novas Tecnologias, Processo e Relações de
Trabalho, sob a coordenação da Profa. Dra. Denise Pires Fincato e Relações de Trabalho e Sindicalismo, sob a
coordenação do Prof. Dr. Gilberto Stürmer, sediado na PUC/RS. Graduada em Direito. PUC/RS (2017). Advogada
e consultora. http://lattes.cnpq.br/8764597431847436
2
Doutora em Ciência Jurídica Univali e Doutora en Agua y Desarollo Sostenible del Instituto Universitario del
Agua y de las Ciencias Ambientales (IUACA), Universidade de Alicante/ Espanha. Mestre em Desenvolvimento
Regional: Estado Instituições e Democracia. Advogada. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais( Direito)
Universidade de Passo Fundo- UPF/RS. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Especialista
em Direito Processual Civil. Professora Faculdade Corporativa da Associação Brasileira de Advogados- Uniaba-
Brasília DF. http://lattes.cnpq.br/1894496805941576 ; https://orcid.org/0000-0002-1434-4862
3 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade de Passo Fundo. Advogada. Graduada
em Direito na Universidade Luterana do Brasil. Especializada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho com
atualização pela Personalitté Educacional. Curso pelo Instituto Work Ab de Saúde e Segurança nos Diferentes
Modelos de Trabalho Pós-pandemia: diálogos transdisciplinares. Curso de Direito do Trabalho e Assédio Moral
pela (UNIFTEC 2021) http://lattes.cnpq.br/0370718248786711
59

consumo e o aumento vertiginoso do comércio eletrônico. O tema merece atenção frente à


inserção dos meios tecnológicos para o consumo descomunal das pessoas na pandemia,
ocasionada pela COVID-19 e a vulnerabilidade desses consumidores.

No contexto atual, vive-se numa sociedade cercada das mais distintas tecnologias, o que
potencializa a propagação de informação e conhecimento de forma instantânea, ao que se tem
a manipulação dos algoritmos sobre os hábitos dos internautas hiperconectados. Passa-se por
uma transformação cultural e social, em que as pessoas da mesma casa permanecem
hiperconectadas, ocasionando na mistura das relações pessoais com as profissionais e tornando-
se ainda mais recorrente a compra pelo comércio digital.

Dessa forma, ocorreu grande aumento das pessoas superendividadas, ou seja, sem
dinheiro para quitar seus débitos e sua subsistência. Nesse período, foi aprovada a Lei do
Superendividamento, que dispõe sobre a prevenção e tratamento, como uma alternativa para
evitar a exclusão social desses consumidores.

O presente artigo tem por escopo analisar a vulnerabilidade dos consumidores, as


estratégias do varejo digital, a Lei do Superendividamento e a educação para um consumo
inteligente, com a apresentação de possíveis soluções mediante a tutela de direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos.

A globalização e os avanços trazidos pela tecnologia têm impactado a vida das pessoas.
Nesse sentido, isso se deve ao crescimento célere no ambiente de consumo digital, ocasionando,
por vezes, novos conflitos, pelo que se torna necessário repensar as soluções cabíveis para
proporcionar um consumo saudável e inteligente, a exemplo da educação financeira para esta
nova forma de consumo.

Espera-se, com o presente artigo, contribuir para a conscientização da realidade do


comércio digital, demonstrar a manipulação e má fé do varejo, o aumento de forma acentuada
do superendividamento no período pandêmico e de isolamento social, que permanece no
contexto atual, especialmente tutelando direitos intrínsecos ao consumidor e com isso o
protegendo.

Igualmente, é esperado analisar alternativas inteligentes para ensinar as pessoas a


consumir nas redes sociais, como forma de informar e conscientizá-las. Por fim, busca-se
contribuir para tornar mais publicizadas a preocupação e as importantes campanhas que
60

entidades estão propiciando nesse período para contribuir com um consumo inteligente.
Destarte, diminuindo ou até mesmo eliminando o superendividamento no comércio digital.

1 O NOVO PERFIL DE CONSUMO E CONSUMIDOR POR MEIO DO E-COMMERCE

O espaço virtual é caracterizado como uma relação de anarquia. A cada minuto milhares
de indivíduos criam e consomem um incalculável conteúdo digital na Internet que não tem
limites e regras. A Internet é o maior espaço sem governo no mundo. Hoje, estamos na era do
Big Data, em que “[...] o êxtase e o estado da arte de mineração dos dados, mais precisamente
essa tecnologia, permite que um volume descomunal de dados seja estruturado e analisado para
uma gama indeterminada de finalidades”.4

Com o objetivo de ilustrar o Big Data, Bioni 5 explica uma ação de uma empresa por
parte da varejista americana Target para identificar as consumidoras grávidas. Segundo a
analogia estratégica da empresa no período gravídico as futuras mães consomem muito mais
produtos:

A equipe de análise de Target conseguiu verificar que tal perfil de consumidoras


adquiria uma determinada lista de produtos. Isso permitiu não só prever o estado da
gravidez, mas também, o período da gestação para daí, lhes direcionar produtos de
acordo com a respectiva fase da gravidez.6

Dessa forma, o autor esclarece que “[...] os algoritmos foram programados para
reestabelecer tal correlação, segmentando, dentre as milhares de consumidoras, aquelas com tal
perfil para fins de ação publicitária”7, o que importa em controle fraudulento sobre o
consumidor, conduta que viola direitos e garantias constitucionais.

Acrescenta-se que esta prática se destina a despertar o desejo, seduzindo os


consumidores para comprarem cada vez mais e mais sem necessidade para “[...] não parar a
caça global de lucros”.

4
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro:
GEN Forense, 2018, p.39.
5
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro:
GEN Forense, 2018, p.42
6
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro:
GEN Forense, 2018, p.42
7
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro:
GEN Forense, 2018, p.42
61

Nossa sociedade é uma sociedade de consumo, pois “Quando falamos de uma sociedade
de consumo, temos em mente algo mais que a observação trivial de que todos os membros dessa
sociedade consomem; todos os seres humanos, ou melhor, todas as criaturas vivas ‘consomem
desde tempos imemoriais”8

Em virtude da COVID-19, ocorreu vertiginoso aumento no varejo por meios digitais,


acarretando profunda mudança no modo de consumir. Dentro de uma perspectiva de análise
rasa, pode-se dizer que foi bom para o comércio que se reinventou, utilizando estratégias para
induzir o indivíduo ao consumo constante.

Os transtornos psiquiátricos de ansiedade, depressão, entre outros – cada vez mais


comuns na sociedade moderna –, tornam ainda mais fértil o terreno para o êxito da indústria do
comércio digital, uma vez que grande parte das pessoas vislumbram a felicidade por meio do
consumo digital. Tal sensação acaba por ser demasiadamente volátil e estimula cada vez mais
um ciclo vicioso ao consumismo, sendo este o novo perfil de indivíduo, voltado ao consumo
desenfreado e desnecessário.

Por conseguinte, a globalização e as novas relações culturais, econômicas e sociais por


meio do ciberespaço é instantânea, célere, irreversível, irrefreável e sem precedentes.

Diante do exposto, realizada essa reflexão sobre a ascensão digital, o novo perfil das
relações de consumo e do consumidor no comércio digital analisa-se a vulnerabilidade dos
consumidores nas mídias digitais e o aumento do superendividamento dos brasileiros,
principalmente durante o isolamento social no contexto pandêmico.

2 GLOBALIZAÇÃO: VULNERABILIDADE DOS CONSUMIDORES NAS MÍDIAS


DIGITAIS E SUPERENDIVIDAMENTO DOS BRASILEIROS

Na contemporaneidade, ocorreu um aumento do faturamento do comércio eletrônico,


conforme supracitado, e da manipulação dos dados na Internet, tornando o consumidor um alvo
da má-fé da indústria do e-commerce. Assim, torna-se evidente a mudança que as redes sociais
proporcionaram no que tange às formas e relacionamentos de consumo no comércio nas
plataformas digitais, influenciando significativamente o consumidor.

8
BAUMAN, Zygmunt. Globalização. ed. Digital Cidade: Rio de Janeiro, Zahar, 2012, p.83. Versão e-
book.
62

As TICs, no mundo pós-moderno, permitem aos indivíduos acesso mais facilitado à


informação e aumento de conhecimentos e relacionamentos. O chamado fenômeno da
globalização provoca o distanciamento entre as pessoas (ou a interação virtual como avatares)
por meio dos aparatos tecnológicos e Internet, propiciando as relações instantâneas virtuais. No
caso em comento, entre o comércio online e consumidores.

Destarte, a globalização tem sido pesquisada e conceituada por muitos autores. De Masi
trabalha com dez fases de globalização, qualificando de acordo com os objetivos propostos nas
diversas fases de expansão. Castells9 estuda a globalização econômica, sendo a expansão do
trabalho o ponto comum entre os autores. Bauman10 pontua que, para determinado grupo, a
globalização

[...] é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa
infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo,
um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma
medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” — e isso significa
basicamente o mesmo para todos.

No mundo das redes sociais e publicidade, a exponencialidade do fluxo e da agregação


11
dos dados pessoais torna-se ainda mais evidente entre pessoas na Internet. Bioni aduz que
“[...] o zero-price advertisement buniness model quebrou com a tradicional bilateralidade das
relações de consumo, tornando-as plurilaterais”. [grifos do autor]. Nessa linha, sustenta que
“[...] há uma complexa rede de atores que operacionalizam a entrega da publicidade on-line
para rentabilizar os serviços e produtos ‘gratuitos’ on-line”.

Ainda segundo Bioni12“[...] o zero-price advertisement business model consiste em


um novo tipo de negócio, que esconde uma série de sujeitos para a sua operacionalização. É
uma intrincada e complexa rede de atores que atua colaborativamente para a entrega de
publicidade direcionada (comportamental)”. [grifos do autor] Nesse ínterim, o autor utiliza
como exemplo para “[...] ilustrar esse modelo de negócio encorados na publicidade

9
CASTELLS, Manuel. La era de la información: la sociedad red. 2. ed. Madrid: Alianza, 2001,
v. 1, p.96.
10
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. ed. Digital Cidade: Rio De Janeiro, Zahar, 2012, p.6
Versão e-book.
11
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.
Rio de Janeiro: GEN Forense, 2018, p.28.
12
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.
Rio de Janeiro: GEN Forense, 2018, p.29.
63

comportamental os aplicativos de mensageria WhatsApp pelo Facebook, na ordem de US 19


bilhões de dólares – uma das maiores transações da história desse ramo”. Saliente-se que o
WhatsApp não surgiu somente como um aplicativo de mensagens privadas, mas também com
a promessa que os dados pessoais dos titulares não seriam revertidos para fins de publicidade
comportamental.

Segundo o autor, é por essa razão que é paradigmática a aquisição do WhatsApp pelo
Facebook, pois muito explica a respeito da promulgada monetização dos dados pessoais,
especialmente como estratégia comercial que influencia toda a celeuma regulatória no que tange
à proteção dos dados pessoais.13

A vulnerabilidade do consumidor frente à manipulação de dados na Internet é


flagrante, pois nos novos tempos as TICs nos permeiam por meio de nossos aparelhos
tecnológicos: celular, notebook, computadores, tablets, etc. E, nesse diapasão, resta claro que o
consumidor perdeu o seu poder de decisão devido esse bombardeio constante de publicidade
excessiva para o consumo que, por vezes, é desnecessário.

A Internet – o mundo das redes e mídias digitais –, conforme anteriormente descrito,


tornou-se espaço sem governo, sem regras e com poucas perspectivas de regulação, tendo em
vista que cada país tem sua Constituição, normas e diretrizes. Sendo assim, por ora, não há
possibilidades de uma constituição digital, no máximo a regulação de cada país, tais como a
Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil e a General Data Protection Regulation – GDPR na
União Europeia, entre outros.

Neste sentido, o CDC dispõe em seu artigo 54-A, § 1º, que superendividamento é
a “[...] impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade
de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
De plano já restam excluídas as pessoas jurídicas do conceito. A seu turno, Marques, Lima e
Vial14 definem o superendividamento “[...] como a impossibilidade global do devedor-pessoa
física, consumidor, leigo e de boa-fé́ , de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo

13
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.
Rio de Janeiro: GEN Forense, 2018, p.35.
14
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia. Superendividamento dos consumidores
no pós-pandemia e a necessária atualização do Código de Defesa do Consumidor. [São Paulo, 2021, p.3]
Disponível em:https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/105-
dc.pdf?d=637581604679873754. Acesso em: 15 out. 2022.
64

(excluídas as dívidas com o Fisco, oriunda de delitos e de alimentos)”. Nessa linha, Canto
15
afirma que

A experiência brasileira recomenda que matérias que sejam da essência das relações
de consumo (como o crédito, o superendividamento e o comércio eletrônico) façam
parte do corpo do CDC e beneficiem-se de sua estabilidade legislativa e principiologia
microssistêmica. Evita-se, dessa maneira, que se formem, pela especialização, novos
microssistemas, verdadeiros guetos normativos, divorciados, e até antagônicos ao
espírito e letra do CDC.

Mister registrar que “[...] é preciso estabelecer um sistema de tratamento do


superendividamento para os consumidores pessoas físicas no Brasil que não seja a simples
exclusão da pessoa da sociedade”16. Do mesmo modo, em tempos de pandemia de hiperconexão
e isolamento social, aumentaram os casos de superendividamento nas plataformas digitais,
situação que exige a necessidade de cada consumidor buscar a educação financeira a fim de
minimizar os efeitos deste novo perfil de consumo.

Portanto, nas próximas linhas será analisado a educação para o consumo inteligente e
consequentemente a Lei n. 14.181/2021, intentando a prevenção e tratamento para o
superendividamento.

3 EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO INTELIGENTE: A LEI N. 14.181/2021 PARA


PREVENÇÃO E TRATAMENTO PARA O SUPERENDIVIDAMENTO

Esse movimento que fizemos compulsoriamente por conta da pandemia nos fez
avançar ou regredir? A resposta pode ser encontrada ao começarmos a refletir sobre as
plataformas que deram sustentação de uma forma ou outra aos diferentes processos da ação
humana no mundo.

Com a reinvenção e o novo modelo de negócio (e-commerce), é nítido o aumento das


pessoas superendividadas e se torna necessário educar para consumir; refletir sobre o consumo
inteligente; revenir o superendividamento; e tratá-lo. No que tange à educação, a Constituição
de 1988, em seu art. 4º, inc. IX, dispõe como princípio a educação e formação de

15
CANTO, Rodrigo Eidelvein do. Vulnerabilidade dos consumidores no comércio eletrônico. ed. 1, São Paulo,
Revista dos Tribunais, 2019, posição 3912. Versão e-book.
16
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia. Superendividamento dos consumidores
no pós-pandemia e a necessária atualização do Código de Defesa do Consumidor. [São Paulo, 2021, p.7]
Disponível em:https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/105-
dc.pdf?d=637581604679873754. Acesso em: 15 out. 2022.
65

consumidores e fornecedores com os seus direitos e deveres para melhoria das relações de
consumo.

Além do CDC, existe o plano nacional de consumo e cidadania com as diretrizes da


educação para o consumo, bem como evidencia os conflitos ocasionados e como evitá-los por
meio da educação do consumidor.

A educação em todos os sentidos é de grande importância, tanto do ponto de vista


individual quanto do coletivo. O acesso à informação fidedigna e o bom esclarecimento, em
escolas, faculdades, balcões, materiais lúdicos, cartilhas, nas plataformas digitais, palestras,
entre muitas possibilidades, é o caminho para mudarmos a realidade do superendividamento
dos consumidores jovens, adultos, idosos, de todas as classes e faixa etária.

17
O Banco Central do Brasil contribuiu com um guia de excelência de educação
financeira do consumidor, dispondo que

[...] a educação financeira é mais eficaz quando o consumidor está motivado por certa
circunstância de vida, como a necessidade de adquirir uma casa. Nesse momento,
chamado “teachable moment”, ele estará mais “aberto” para aprender qual a melhor
forma de gerenciar sua vida financeira e avaliar opções de financiamento. [grifos do
autor]

Todavia, faz-se necessário propor políticas públicas em um campo multidisciplinar, bem


como observar os indivíduos por serem diversificados e para melhor atender suas demandas.
Nesse contexto, necessário dissertar sobre a Lei n. 14.181/202118a qual modifica o CDC e o
Estatuto do Idoso para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a
prevenção e o tratamento do superendividamento. A lei em comento entrou em vigor em julho
de 2021, ficando conhecida como a Lei do Superendividamento, e tem o condão de proteger os
consumidores com diversas dívidas ao criar mecanismos para barrar as propostas estratégicas
das instituições financeiras. Destarte, a Lei do Superendividamento:

[...] criou um instrumento de renegociação em bloco das dívidas nos tribunais


estaduais de Justiça. Num procedimento semelhante às recuperações judiciais
realizadas por empresas, a pessoa física pode fazer uma conciliação com todos os
credores de uma única vez, criando um plano de pagamentos que caiba no bolso
(MÁXIMO, 2021).

17
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso em: 18 set. 2021.
18
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso em: 18 set. 2021.
66

Importante ressaltar a prevenção e o tratamento para o superendividamento. Conforme


citado, o tratamento do superendividamento deve ser abordado pela questão da educação
financeira. Assim, “[...] o fenômeno social, econômico e jurídico do superendividamento dos
consumidores é mundial e foi agravado com a pandemia de Covid-19”19 (MARQUES; LIMA;
VIAL, 2021, p. 6). Ainda se tratando da proteção de dados pessoais, torna-se essencial o que
Sarlet (2021, p. 21) diz:

[...] a proteção de dados pessoais alcançou uma dimensão sem precedentes no âmbito
da chamada sociedade tecnológica, notadamente a partir da introdução do uso da
tecnologia da informática e da ampla digitalização que já assumiu um caráter
onipresente e afeta todas as esferas da vida social, econômica, política e cultural
contemporânea no mundo, fenômeno comumente designado de Ubiquitous
Computing.

Importante ressaltar que a Lei Geral de Proteção de Dados objetiva proteger os dados
dos titulares e entrou em vigor no ano de 2021. A proteção de dados pessoais emerge no âmbito
da sociedade de informação como possibilidade de tutelar direitos da personalidade do
indivíduo contra os potenciais riscos a serem causados pelo tratamento de dados pessoais.

Sendo assim, uma vez compreendida esta interação, torna-se imperioso munir-se de uma
legislação que visa proteger os dados, resguardando garantias e direitos fundamentais. A
proteção de dados pessoais, em síntese, é a defesa dos dados de uma pessoa, mormente os que
dizem respeito aos direitos de personalidade, direitos humanos e direitos fundamentais.

Neste ínterim, importante trazer a letra do art. 54-A, caput e § 1º, do CDC após a
alteração trazida pela da Lei do Superendividamento, que assim dispõe:

Art. 54-A. Este Capítulo dispõe sobre a prevenção do superendividamento da pessoa


natural, sobre o crédito responsável e sobre a educação financeira do consumidor.
§ 1º Entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor
pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e

19
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia. Superendividamento dos consumidores no
pós-pandemia e a necessária atualização do Código de Defesa do Consumidor. [São Paulo, 2021, p.6] Disponível
em:https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/105-dc.pdf?d=637581604679873754.
Acesso em: 15 out. 2022.
67

vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da


regulamentação.20

De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), o


superendividado é a pessoa que já está com a sua renda comprometida; o consumidor que não
tem condições de realizar a quitação dos débitos a ponto de entrar no caráter alimentar, da sua
subsistência, ou seja, de quitar contas básicas como alimentação e moradia.21
Outra alteração do CDC 22pela Lei do Superendividamento diz respeito à prevenção e
ao tratamento do superendividamento, a partir do que agora é disposto em seu art. 6º, incs. XI
a XIII, a saber:

Art. 6º. [...]:


XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de
prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo
existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da
dívida, entre outras medidas;
XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na
repactuação de dívidas e na concessão de crédito;
XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como
por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso. [...].

Assim sendo, no caso do consumidor endividado, ele pode não conseguir pagar a
totalidade da dívida, mas consegue de forma parcial e esses débitos não comprometem a sua
subsistência. O consumidor ainda consegue levar uma vida econômica estável. Já no
superendividamento não existe meios de quitar os débitos e isso, em alguns casos, compromete
a sua subsistência.

Esclarecido esses pontos, a prevenção e o tratamento são alternativas para evitar a


exclusão social desse consumidor. Resta claro na lei há o Princípio da Educação Financeira dos
Consumidores, o qual, em verdade, se trata do dever de informação. De certa forma, ensinar
para esse consumidor as novas formas de consumo e como devem organizar a sua vida

20
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso em: 18 set. 2021.
21
DALL’AGNOL, Laísa. Superendividamento? Saiba o que é e como fugir. Agora, São Paulo, 1 jul. 2019.
Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/grana/2019/07/superendividamento-saiba-o-que-e-e-como-
fugir.shtml. Acesso em: 19 set. 2021.
22
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. CNJ Serviço: o que muda com a Lei do Superendividamento? Brasília,
6 ago. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-o-que-muda-com-a-lei-do-superendividamento/.
Acesso em: 17 set. 2021.
68

econômica para não recair novamente em débitos. A nova lei do superendividamento acaba
sendo um alívio necessário organizacional para o consumidor.

Por fim, importante ressaltar que, em tempos de hiperconexão e período pandêmico,


aumentou o consumo digital e consequentemente o superendividamento das pessoas. A Internet
propicia uma gama de alternativas interessantes para manter o consumidor informado, mas
também pode vir a ser utilizada sem boa-fé, de forma que crie mecanismos para fazer as pessoas
comprarem mais e mais sem necessidade, conforme proferido anteriormente e aliado aos
transtornos mentais no período vivenciado que teve um amento vertiginoso.

Em razão disso, a educação financeira se torna uma grande aliada e deve ser ensinada,
desde cedo, nas escolas, nos balcões, nas entidades responsáveis, no mundo digital etc., pois o
acesso à informação torna-se essencial para diminuir ou eliminar esse consumo impensado e
desenfreado. A Lei do Superendividamento reforça princípios essenciais do CDC, bem como,
regulamenta a prevenção e o tratamento, sendo um ganho para a sociedade ao ensinar a
população a um consumo disciplinado e responsável, mesmo com as estratégias dos varejos no
e-commerce.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno da globalização proporcionou o surgimento de tecnologias, as quais


diminuíram a distância entre as pessoas no mundo inteiro por meio dos aparatos tecnológicos e
a Internet. Todavia, o ciberespaço virou uma terra sem governo. Um espaço onde não se respeita
os direitos e garantias dos cidadãos para termos um Estado Democrático de Direito, pelo que
ocorrem atrocidades nas quais as empresas utilizam-se do seu poder econômico e estratégias
para manipular pessoas no espaço virtual.

A Internet trouxe muitos benefícios para as relações de consumo, escopo do presente


artigo, todavia, também propicia aos cidadãos uma necessidade de comprar cada vez mais por
meio da manipulação do e-commerce. Nesse ponto, como visto, é possível, pelo fenômeno do
Big Data e manipulação dos algoritmos, obter os mais diversos dados e informações dos
indivíduos acerca de determinados assuntos e traçar um perfil de consumidor e de compras.
69

Ressalta-se a importância da nova Lei do Superendividamento em tempos de pandemia


para propiciar o parcelamento das dívidas dos consumidores e por tratar da prevenção e do
tratamento do consumo exacerbado.

Em razão disso, como forma de prevenção e tratamento, como já dito, umas das mais
eficazes soluções que deve ser exercida por todos é a educação financeira do consumidor, tendo
em vista que a educação é quesito essencial para a resolução dos conflitos. Portanto, é notória
a adaptação do consumidor as novas relações de consumo. Todavia, é necessário educar ou
reeducar os consumidores já no ensino básico, proporcionar disciplinas de consumo inteligente
e economia no ensino fundamental, nas redes sociais, balcões dos consumidores, entre outras
formas de divulgação da informação fidedigna para vivermos em uma sociedade mais
harmônica, menos imediatista e mais responsável nas relações de consumo.

REFERÊNCIAS

BANCO CENTRAL DO BRASIL. Guia de excelência de educação na oferta de serviços


financeiros. 2. ed. Brasília: BCB, 2014, v. I. Disponível em:
https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/guia_de_excelencia_internet.pdf. Acesso: 17 set. 2021.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização. ed. Digital Cidade: Rio de Janeiro, Zahar, 2012. Versão
e-book.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. ed. Digital Cidade: Rio De Janeiro, Zahar, 2012.
Versão e-book.

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento.


Rio de Janeiro: GEN Forense, 2018.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. CNJ Serviço: o que muda com a Lei do
Superendividamento? Brasília, 6 ago. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-
o-que-muda-com-a-lei-do-superendividamento/. Acesso em: 17 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de


1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto
do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e
o tratamento do superendividamento. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14181.htm. Acesso em: 17 set.
2022.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e


dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm.
Acesso em: 18 set. 2021.
70

CANTO, Rodrigo Eidelvein do. Vulnerabilidade dos consumidores no comércio eletrônico.


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71

A SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL E A TRAGÉDIA DOS COMUNS

Fábio Luis Brack1


Cássia Franck Ferreira2

Resumo: O objetivo geral do presente estudo consiste em esclarecer como a mitigação do


caráter taxativo do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) perante os planos de saúde
privados do país, como um dos reflexos da memória deixada pela pandemia do COVID – 19,
arrisca a atividade econômica – e a função social - das empresas privadas do respectivo ramo,
vez que visa a oferta de serviços de forma irrestrita que, em um curto espaço de tempo, pode
implicar no aumento do ônus financeiro dos planos de saúde e dos beneficiários,
desestimulando o setor, por uma minoria que exige cuidados extraordinários muito aquém dos
procedimentos comumente previstos nas listagens referenciais do órgão regulador (ANS). Ao
final, o artigo faz uma ponderação sobre como os efeitos da COVID – 19 geraram intensos
debates e demandas atreladas a melhora do acesso à saúde, buscando encontrar entendimentos
a fim de melhorar a promoção à saúde sem prejudicar o exercício da atividade econômica das
empresas de planos de saúde, resguardando, por consequência, a continuidade de tais serviços
e a proteção de seus beneficiários.

Palavras Chaves: Tragédia dos comuns. Saúde Complementar. Rol de Procedimentos e


Eventos em Saúde. Rol da ANS. Agência Nacional de Saúde.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como temática a alteração da Lei n.º 9.656/1998 pela Lei n.º
14.454, publicada no Diário Oficial da União (D.O.U.) em 21 de setembro de 2022, que permitiu
a cobertura de exames, procedimentos, medicamentos e/ou tratamentos de saúde que não estão
incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar listados pela Agência
Nacional de Saúde (ANS), para elencar a dicotomia existente entre o direito universal a saúde
como dever estatal e as prerrogativas da saúde privada sob a ótica da teoria conhecida como
“tragédia dos comuns” como um dos inúmeros reflexos da pandemia do COVID -19 no Brasil.

A referida alteração legislativa é decorrente da união de diversos fatores e demandas,


sendo possível citar como principal a memória ainda latente do cenário pandêmico mundial frente
a decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no EREsp 1.886.929, a qual

1
Advogado OAB/RS 58.666. Professor. Mestre em Direito das Empresas e dos Negócios pela Unisinos; Membro
da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS E-mail: fabio@brackebarbi.com.br
2
Advogada OAB/RS 116.901. Pós-graduada em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Verbo Educacional.
E-mail cassia@brackebarbi.com.br
72

determinou que os planos de saúde somente estariam vinculados a proporcionar os tratamentos


listados pela Agência Nacional de Saúde (ANS), ou seja, o édito condenatório reconheceu a
taxatividade do rol, contudo, esclareceu que esta poderia ser relativizada em casos excepcionais.

Em tempo, mesmo não sendo objeto do presente, importante ressaltar que a alteração
referenciada vai de encontro ao entendimento exarado na ADI 1.931/2018, a qual entendeu, em
decisão declaratória positiva, que é de competência da Agência Nacional de Saúde Suplementar
emitir normas que definam o limite de coberturas à que se submetem as empresas Operadoras de
Planos de Saúde.

In casu, a saúde é um direito universal, assegurado pelo artigo 196, caput, da


Constituição Federal de 1.988, o qual estabelece que se trata de direito de todos e consiste,
expressamente, em um dever do Estado que deve implementar políticas sociais e econômicas
para sua efetivação.

Neste contexto, verifica-se que o direito à saúde é uma garantia de ordem fundamental
estabelecido pela Constituição Federal, o qual se reveste de essencialidade perante a atuação
estatal, exigindo da administração pública medidas concretas para sua efetivação.

Evidenciada a alteração legislativa que vincula planos de saúde suplementar a oferecer


tratamentos médicos de forma irrestrita como consequência do temor e angústia herdados da
pandemia do COVID – 19, faz-se ímpar associá-la ao conceito do texto conhecido como a
Tragédia dos Comuns, o qual consiste no entendimento de que recursos possuem limitações e,
quando dispostos de maneira irrestrita, decorrem em uma utilização demasiada por situações
pontuais e individuais que impactam expressivamente na entrega dos serviços em nível coletivo.

Em síntese, conquanto a medida de mitigar o caráter taxativo do Rol da Agência


Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aos planos de saúde caracterize-se como uma resposta as
agruras experimentas pela sociedade em decorrência do COVID – 19, pois cenário nunca antes
enfrentado no Brasil pela sociedade moderna, verifica-se que o posicionamento adotado concede,
implicitamente, acesso irrestrito a tratamentos extraordinários que, com o tempo, podem por
confrontar interesses individuais e coletivos, colocando em risco uma manutenção saudável dos
planos privados no país.
73

1. A PANDEMIA DO COVID – 19 E SEUS REFLEXOS NA MITIGAÇÃO DO ROL


TAXATIVO DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE (ANS)

O advento da pandemia do vírus COVID – 19 provocou mudanças expressivas na


sociedade, exigindo medidas político-sociais para transformar conceitos e padrões enraizados.
Isso porque, os impactos da experiência superam a área da medicina, intervindo em relações
laborais, acadêmicas e interpessoais, ou seja, extrapolando a área biológica, o vírus COVID – 19
exigiu a recriação de vários aspectos da coletividade para seu controle e superação.

As consequências da pandemia denominada COVID - 19 interligam diversas áreas da


vivência humana, entretanto, é inegável que o cenário pandêmico mundial incentivou discussões,
majoritariamente, no tocante ao acesso à saúde e suas prerrogativas. No Brasil, face às 687.574
mortes apuradas - conforme dados estatísticos fornecidos pelo Governo Federal3 - iniciaram-se
debates – e pressões setoriais - acerca da saúde suplementar e seu papel perante o Sistema Único
de Saúde (SUS).

Devido ao cenário descrito, a Lei n.º 9.656/1998, referente aos planos e seguros privados
de assistência à saúde, foi alterada pela Lei n.º 14.454, publicada no Diário Oficial da União
(D.O.U.) em 21 de setembro de 2022.

A alteração legislativa ocorreu para estabelecer novos critérios que permitem a


cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e
eventos em saúde suplementar listados pela Agência Nacional de Saúde (ANS), mesmo que por
medida de exceção.

A modificação adveio do Projeto de Lei (PL) n.º 2.033/2022, cujo propósito foi
estabelecer que o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (REPS), atualizado pela Agência
Nacional de Saúde (ANS), sirva apenas como referência para os planos privados de saúde
contratados, ampliando o acesso a exames, medicamentos, procedimentos e tratamentos não
previstos de forma contratual ou normativa.

A mudança legislativa ocorreu sob a influência de demandas sociais correlatadas a


memória da pandemia do vírus COVID – 19. Entretanto, a obrigatoriedade de cobertura irrestrita
de tratamentos médicos pela iniciativa privada desrespeita a estrutura organizacional e
econômica dos planos de saúde, os quais ostentam o caráter de pessoas jurídicas de direito

3
Painel Coronavírus. Disponível em < https://covid.saude.gov.br/>. Acesso em 22/10/2022.
74

privado e que detém, a partir de agora, incumbências equivalentes ao Sistema Único de Saúde
(SUS), ainda que extrapolem o portfólio de serviços contratados e inviabilizem seu propósito
financeiro.

2. O DIREITO A SAÚDE E A TRAGÉDIA DOS COMUNS

O direito ao acesso a tratamentos irrestritos através da iniciativa privada favorece uma


pequena parcela de beneficiários, pois se trata sempre de medidas excepcionais, inobstante o
impacto financeiro que um único evento pode implicar. Ocorre, porém, que a maioria de
beneficiários restarão onerados de forma excessiva pelas despesas de tratamentos e
procedimentos não previstos no Rol da Agência Nacional de Saúde (ANS).

No presente caso, conceder ao Rol estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS)
caráter referencial é possibilitar aos usuários dos planos de saúde tratamentos que extrapolem o
conteúdo previsto contratualmente e que tem o condão de impactar, severamente, no balanço
financeiro atuarial das empresas do ramo, as quais irão repassar tal discrepância,
consequentemente, aos demais beneficiários dos serviços.

A dicotomia existente entre o interesse pessoal, qual seja, no presente caso, o interesse
de uma minoria que exigem tratamentos dispendiosos, e o bem-estar da maioria dos beneficiários,
os quais exigem os cuidados padrões previstos nas normas contratuais, foi bem exemplifica no
artigo denominado “A Tragédia dos Comuns”, escrito por Garret Hardin.

O conceito da teoria da Tragédia dos Comuns consiste no posicionamento de que os


recursos disponíveis a determinado grupo sempre possuem limitações e, quando fornecidos de
maneira irrestrita, pode decorrer na utilização demasiada por situações pontuais que impactam
expressivamente na entrega dos serviços coletivos.

Especificamente, Garret Hardin conta a história de pastores de ovelhas que colocavam


os animais em terras públicas pré-determinadas e, através do rendimento financeiro alcançado,
agindo como seres racionais, alguns acabavam por pretender inserir animais adicionais na
propriedade, objetivando auferir maiores ganhos.

Em suas reflexões, o artigo expõe que a inclusão de animais sem restrições tornaria as
terras populosas e, por conseguinte, seria reduzida a capacidade da área de se recuperar para
manutenção de elevado rebanho, prejudicando assim à manutenção das ovelhas de forma
75

coletiva. De fato, e em resumo, por interesse de alguns que pretendiam maximizar seus ganhos
com o aumento de seus animais, a totalidade do campo seria inutilizada, prejudicando toda a
coletividade, e levando ao que o autor denominou de “Tragédia dos Comuns”.

Nas palavras de Hardin, ruína é o destino para o qual todos os homens correm, cada
um perseguindo seu próprio interesse em uma sociedade que acredita na liberdade dos bens
comuns. E continua, aduzindo que a seleção natural favorece as forças de negação psicológica4,
ou seja, negamos que agimos em interesse próprio por imposição da seleção natural, como atores
no palco coletivo, contrariamente a manutenção do mais puro conceito de sociedade.

O cenário narrado pelo escritor Garret Hardin não é diferente da discussão sob exame.
Isso porque, ao excluir o caráter taxativo do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde,
atualizado periodicamente pela Agência Nacional de Saúde (ANS), determinando que este sirva
apenas como referência para os planos privados de saúde contratados, ampliando o acesso a
exames, medicamentos, procedimentos e tratamentos não previstos de forma contratual ou
normativa, o legislador oferece acesso irrestrito aos recursos dos planos de saúde aos
beneficiários.

Ao fornecer acesso sem garantias contratuais e normativas, transformando de fato os


planos de saúde em contratos sem objeto delimitado, concede a todo e qualquer usuário o direito
de ter acesso e despender de tratamentos que extrapolem qualquer previsão de custos,
impossibilitando a busca de um equilíbrio econômico-financeiro do acordo.

Como já dito, a saúde universal trata-se de um direito social que demanda da esfera
estatal o emprego de medidas efetivas para sua promoção e acessibilidade.

Embora os planos de saúde consistam em um braço da saúde de forma, ele se dá de


forma suplementar ao Estado, eis que as respectivas empresas privadas não conseguem – e nem
devem – substituir o ônus público de oferecer tratamento médico e hospitalar à população de
forma irrestrita. Na verdade, hoje se discute até mesmo há que ponto o próprio Estado tem essa
obrigação, onde determinados um evento individual poderá impedir a realização de inúmeros
outros, com base na existência de recursos finitos.

4
HARDIN, Garret. A tragédia dos Comuns. Tradução por José Roberto Bonifácio. Revista Science, vol. 162.
1.968. p. 1245-1246
76

Os planos de saúde pertencem à iniciativa privada e somente conseguem se manter


ativos no mercado através de cálculos atuariais que consistem, sinteticamente, na ponderação das
parcelas adimplidas pelos usuários e a estimativa de procedimentos que estes utilizarão.

Conceder o acesso a procedimentos não especificados, muitas vezes excessivamente


onerosos, trata-se de uma medida que visivelmente colocará as referidas empresas em déficit
financeiro e que, por consequência, assim como ocorreu com os pastores do artigo narrado, a
atividade em exercício se tornará insustentável.

Em apartada síntese, quando uma pequena parcela dos usuários de planos e saúde dispõe
de procedimentos extraordinários, o recurso utilizado com excesso e sem limitações reduz a
capacidade dos demais em utilizar com regularidade o plano inicialmente contratado.

Além disso, porém não menos importante, é de se reconhecer como fato que os planos
de saúde são um produto comercial, com seus riscos calculados para a construção de um “preço
de venda”. Frente à nova realidade imposta, e sendo necessária a criação de um “fundo”
financeiro para sinistros até então inexistentes, e considerando que tais imposições contemplam
os milhões de contratantes para os quais essa nova variável não estava prevista no momento do
acordo, os contratantes “futuros” terão encargos maiores, no intuito de sustentar os custos dos
contratantes “passados”.

Nessa seara, é evidente que as pessoas mais jovens, sobre as quais os problemas de
saúde não têm uma maior imposição estatística, se verão frente a escolha do risco e o alto valor
de compra, ocasionando um envelhecimento da população ligada aos planos de saúde e, por
decorrência, um aumento de custos assistenciais, em um círculo inescapável de termo aos
recursos finitos.

Logo, tendo em vista que a utilização sem restrições dos planos de saúde pode culminar
na diminuição do acesso da população e dos próprios benefícios a estes, é necessário que o
legislador e a administração pública concedam maior atenção ao referido risco, tendo em vista
que o acesso e qualidade dos referidos recursos podem ser severamente comprometidos, tornando
real a relação aqui delineada sobre a ausência de taxatividade do rol da Agência Nacional de
Saúde (ANS) e a Tragédia dos Comuns.
77

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme delineado, o presente artigo teve como propósito esclarecer como a retirada
do caráter taxativo do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) perante os planos de saúde
privados do país, como reflexo da pandemia do COVID – 19, arrisca a atividade econômica – e
função social - das empresas privadas do respectivo ramo, vez que visam a oferta de serviços de
forma irrestrita que, ao logo do tempo, pode implicar no aumento do ônus financeiro de planos
de saúde e beneficiários, culminando na analogia disposta na obra “Tragédia dos Comuns”, de
Garret Hardin.

Como direito social estabelecido pela Constituição Federal, a saúde, sua promoção,
oferecimento e efetividade constituem incumbências exclusivas da Administração Pública, a qual
deve atuar sempre em busca da melhor atuação em benefício da coletividade. Neste ponto, é
inegável que, no Brasil, devido a diversos fatores a saúde pública não é efetiva de forma
igualitária a toda população.

Tendo em vista a realidade descrita, tem-se que a existência de entidades privadas de


saúde constituem um importante papel na promoção da saúde a população, que atuam lado a lado
com o Sistema Único de Saúde (SUS), mas sempre perseguindo propósitos complementares.

Mesmo face ao caráter de atuação apenas complementar, vez que a promoção da saúde
constitui ônus público, a mudança legislativa que determina que o Rol de Procedimentos e
Eventos em Saúde (REPS) serve apenas como referência para os planos privados contratados,
ampliando o acesso a exames, medicamentos, procedimentos e tratamentos não previstos de
forma contratual ou normativa, constitui um retrocesso a valorização e importância dos planos e
cooperativas de saúde.

Inegavelmente, a respectiva inovação ocorreu em resposta as exigências da sociedade


criadas pela experiência da pandemia do vírus COVID – 19. Entretanto, a vinculação de cobertura
irrestrita de tratamentos pela iniciativa privada será responsável por alterar, severamente, o
modelo organizacional e econômica dos planos de assistência à saúde.

Consoante já mencionado, às instituições destinadas a prestação de saúde suplementar


ostentam o caráter de pessoas jurídicas de direito privado. Dessa forma, ao delegar,
implicitamente, o dever de cobertura de procedimentos de forma irrestrita aos planos de saúde,
78

incumbência exclusivamente estatal, estes passaram a partilhar, indevidamente, atribuição


equivalente ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Extrapolar o portfólio de serviços contratados e inviabilizar o propósito financeiro das


empresas referenciadas é uma medida delicada que pode impactar de forma severa o acesso aos
serviços e procedimentos médicos ofertados. Isso porque, reitere-se, os planos de saúde
pertencem à iniciativa privada e somente conseguem atender seus beneficiários se não estiverem
inseridos em um mercado de incertezas, como hoje se verifica.

Dessa forma, determinar a obrigatoriedade do fornecimento de procedimentos não


especificados em contrato e/ou pelo órgão regulador, por vezes onerosos acima de qualquer
padrão, consiste em medida que pode colocar as referidas empresas de saúde suplementar em
déficit financeiro e que, por consequência, assim como ocorreu com os pastores do artigo da
Tragédia dos Comuns, tornará a atividade insustentável, prejudicando empresas e a coletividade
de beneficiários, em prol de poucos.

Conclui-se, assim, através da presente analogia, que a responsabilidade pela promoção


da saúde é uma incumbência estatal, não podendo ser delegada de forma indiscriminada ao setor
privado - que até mesmo ao Estado não é imposto em virtude do Princípio como a Reserva do
Possível - para subsidiar procedimentos sem respaldo estrutural e financeiro, com evidente
ausência de limites referenciais. Em síntese, inegável que os efeitos da COVID – 19 geraram
internados debates e demandas atreladas a melhora do acesso à saúde, contudo, no presente caso,
é importante aplicar a analogia do artigo Tragédia dos Comuns, encontrando entendimentos
equilibrados a fim de melhorar o acesso e promoção à saúde sem prejudicar o exercício da
atividade econômica de empresas de planos de saúde, resguardando, por consequência, a
continuidade de tais serviços e a proteção de seus beneficiários.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em:
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Acesso em 21.11.2022.
79

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de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios
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80

COVID-19 E BURNOUT ENTRE OS PROFISSIONAIS DA SAÚDE

Gustavo Felipe Berça Ogata1


Kenza Borges Sengik2

Resumo: Este artigo visa trazer à tona um problema alarmante entre os profissionais da saúde,
o burnout, que se potencializou e mostrou suas faces mais temíveis durante a pandemia de
COVID-19. Apresentar-se-á algumas dessas vertentes, como elas vem se apresentando, as
possíveis atenuantes e agravantes dessa condição.

Palavras-chave: COVID-19; saúde; linha de frente.

Abstract: This article aims to bring to light an alarming problem among health professionals,
burnout, which has increased and showed its most fearsome faces during the COVID-19
pandemic. Some of these aspects will be presented, as they have been presenting themselves,
the possible mitigating and aggravating factors of this condition.

Key-words: COVID-19; health; frontline.

1. INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19, mostrou-nos um problema crítico no sistema de saúde, que


é o adoecimento dos profissionais da saúde e o aumento expressivo de casos de burnout entre
os mesmos, o que motivou a elaboração do presente trabalho. Objetiva-se, através de uma
metodologia bibliográfica juntamente com a apresentação de dados estatísticos, demonstrar a
importância da atenção e reconhecimento da humanidade dos colaboradores da área da saúde.

Ademais, abordar-se-á o fracasso da política de humanização da prestação dos serviços


de saúde em relação ao burnout, bem como os riscos em possuir uma equipe doente para tratar
doentes, como é o caso de erros médicos devido a um julgamento precipitado por parte do
profissional. Por fim, apontar-se-á possíveis medidas para atenuar a incidência do burnout na
área da saúde relacionando isso com as vantagens para implementação daquelas em três
vertentes: hospital, colaboradores e pacientes.

1
Acadêmico do 5º ano do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Email:
ra109227@uem.br.
2
Mestra em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (CESUMAR). Advogada inscrita na OAB/PR sob
o n.º 42.545.E-mail: kbsengik2@uem.br.
81

2. Desenvolvimento
2.1. O que é burnout

O termo vem da língua inglesa e carrega consigo o sentido de que o profissional vem
sendo consumido pelo trabalho. Tal conceito emergiu na década de 1970, em um primeiro
momento “como um problema social e não acadêmico”, não sendo desenvolvido entorno de
uma teoria, mas embasada em anos de pesquisa exploratória. Em 1974, Freudenberger já
observava os sintomas de burnout em meio aos profissionais da saúde.

Conforme observações de Maslach, tal quadro deve ser analisado de forma


multidimensional, com atenção a três principais pontos: exaustão emocional;
despersonalização; e a perda da realização pessoal. De acordo com observações realizadas por
Freudenberger e Seligmann-Silva, pode-se notar uma gradação dos sintomas apresentados por
profissionais da saúde, quais sejam, perda do entusiasmo devido à sobrecarga somada a
frustração, que segue a um quadro de tédio, irritabilidade e mau humor, sucedidos pela negação,
perda de controle emocional (sinais de depressão e ansiedade), perturbações do sono e perda de
disposição para o trabalho.

Em janeiro de 2022 o burnout entrou pala a Classificação Internacional de Doenças (CID-


11), definida como “uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de
trabalho que não foi gerenciado com sucesso”. De acordo com tal definição, divide-se a
caracterização da síndrome em três aspectos: 1) “sentimento de exaustão ou esgotamento de
energia”; 2) “aumento do distanciamento mental do próprio trabalho ou sentimentos de
negativismo ou cinismo relacionados ao próprio trabalho” ; e 3) “redução da eficácia do
profissional” .

A incidência desses três aspectos em profissionais da saúde é extremamente arriscado. Isso


porque, na saúde não se tem espaço para erros, a mínima decisão poderá causar um dano
exacerbado ao paciente, que acarretará em responsabilidade tanto do profissional quanto,
eventualmente, do hospital.

2.2. Do fracasso das políticas de humanização

Não é algo atual a demanda por humanização na prestação dos serviços na área da saúde. Em
2003, o Governo Federal, através do Ministério da Saúde, lançou a Política Nacional de
82

Humanização, visando a implementação de um serviço humanizado através de uma espécie de


rede de soluções de gerenciamento de protocolos que englobaria gestores, trabalhadores e
usuários do Sistema único de Saúde (SUS).
Com o advento da pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2, pode-se inferir que, em 19
anos, a política citada tem caminhado timidamente. Fala-se da demanda reprimida por
tratamentos de doenças crônicas e cirurgias eletivas3 que tem assolado os hospitais pós
pandemia. Ocorre que, há outra demanda reprimida que está em nível crítico, que é a atenção
aos profissionais de linha de frente, principalmente médicos, enfermeiros e técnicos.
O projeto de Humanização dos serviços prestados pelo SUS não enfatiza o principal que
é o reconhecimento da humanidade dos próprios profissionais que estão no dia-a-dia tomando
decisões críticas, geralmente de vida e morte, em um cenário cada vez mais sucateado, em que
se faltam dignidade e reconhecimento, com jornadas de trabalho desumanas combinadas à
cobranças excessivas.
A inclusão dos profissionais no processo de tomada de decisões é uma ótima iniciativa,
porém, na realidade, as decisões – como bem foi demonstrado pela pandemia – muito mais são
tomadas de forma política que técnica, o que aumenta ainda mais o grau de insatisfação dos
colaboradores. Assim, “na prática, delegam-se problemas, e não os poderes para resolve-los”4.
Não há poder de mudança, capacitação, recursos (humanos e materiais) ou até mesmo
protocolos unificados de tratamento que tenham foco nas pessoas e não em ideologias.
Esse cenário foi o estopim. De acordo com a PEBMED5, em 2020 cerca de 78% dos
profissionais da saúde apresentaram sinais de burnout no período da pandemia. A prevalência
foi de 79% entre os médicos, 74% entre enfermeiros e 64% entre técnicos de enfermagem. A
cada momento percebe-se a perda do entusiasmo entre tais colaboradores e seu adoecimento,
indicado, principalmente, através dos altos níveis de incidência de depressão, ansiedade e
síndrome do pânico.

3
De acordo com pesquisa disponibilizada pela CNN Brasil, houve queda de aproximadamente 70% nos
atendimentos para consultas, exames e cirurgias eletivas (CNN. Corrida de pacientes crônicos a hospitais pós-
pandemia preocupa especialistas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/corrida-de-pacientes-
cronicos-a-hospitais-pos-pandemia-preocupa-especialistas/. Acesso em: 03 de outubro de 2022).
4
MASLACH, Christina. LEITER, Michael P. Trabalho: fonte do prazer ou desgaste? Campinas/SP: Papirus,
1997, p. 22.
5
PEBMED. 78% dos profissionais de saúde tiveram sinais de Burnout durante pandemia. Disponível em:
https://medicinasa.com.br/burnout-profissionais-de-saude/. Acesso em: 03 de outubro de 2022.
83

Ao decorrer do trabalho, apresenta-se as relações do burnout à dados colhidos durante e


pós-pandemia, ligando-os à prestação de serviços da saúde, erros, responsabilidade civil,
objetivando como se pode diminuir a incidência de tal síndrome entre os profissionais da saúde
com o reconhecimento do fracasso da compreensão dos mesmos como seres humanos.

Necessário, desde já, enfatizar que esse trabalho não se trata de abstração teórica ou
utópica tendenciosa. Não é a intenção, aqui, apontar o dedo aos profissionais da saúde e os
utilizar como bodes expiatórios para o sistema que não os enxerga ou finge não o fazer.

2.3. Relação da falta de humanização do profissional da saúde, valores institucionais e


burnout

Demandas excessivas, responsabilidades que excedem as da contratação, falta de


reconhecimento, ideologização da saúde e diferença entre valores das instituições e
profissionais. O enfrentamento da COVID-19, trouxe-nos uma questão alarmante que vinha
sendo colocada debaixo do tapete: o esgotamento das equipes de trabalhadores da linha de
frente e as consequências decorrentes desse quadro.

Quando se fala em burnout, pode-se ter uma falsa impressão de que quem sofre é apenas
o profissional, o que não ocorre. Utilizando-se como baliza os aspectos apresentados pelo CID-
11, em um primeiro momento, apresenta-se as possíveis consequências dos mesmos quando
ocorrem entre profissionais da saúde e posteriormente serão apresentadas as relações desses
sintomas e possíveis erros de procedimento com eventual responsabilização através da
apresentação de casos reais, a fim de exemplificar a ocorrência de cada fator abordado.

Inicialmente fala-se em esgotamento, exaustão do profissional que se relaciona


diretamente a exaustão emocional apontado por Maslach6. A pandemia, de certa forma, deixou
mais evidente esse sintoma que, em amnésia de conveniência, ninguém reparava. Há muito
tempo, principalmente médicos, enfermeiros e técnicos vem cumprindo uma jornada desumana
de trabalho. Plantões seguidos cumulados com atendimento em consultório próprio e
terceirizados, uma equação extremamente perigosa que pode gerar consequências agudas.

No início desse trabalho, falou-se em humanização, prestação de serviço humanizado.


Uma parte é estabelecer rapport, conexão, com o paciente, o que será relacionado ao segundo

6
MASLACH, C; SCHAUFELI, W. B.; LEITER, M. P. Job burnout. Annual Review Psychology, 52, p. 397 – 422.
84

aspecto abordado. No entanto, outra necessidade crítica é a seguinte: como cobrar de alguém
um serviço humano se o prestador é visto como máquina e depois cobrar sobre mecanização do
trabalho?

São cobranças em todas as frentes, pressão extrema vinda dos gestores, equipes e
familiares, decisões de vida e morte a todo momento. Se não há suporte ao profissional
(autonomia mitigada e baixo poder de decisão), se ele não é tratado humanamente, ele passa a
perder o entusiasmo, a trabalhar de forma mecânica, afastando-se dos colegas e pacientes, o
que diminui de forma expressiva a empatia, sensibilidade desse colaborador.

Mecanização na saúde é algo extremamente complicado. Vez que, embora existam


protocolos específicos de atendimento, esses precisam ser adaptados de acordo com o quadro
clínico do paciente, aplicando ao caso real os protocolos exigidos. Dessa forma, tratar os
diferentes de forma igual, mecanizada, sem empatia, sem empenho, leva, possivelmente a um
erro de procedimento e/ou prestação deficiente de serviços, bem como a frustração do próprio
prestador do serviço.

A automatização leva ao segundo aspecto do burnout, que é o distanciamento do


colaborador com o trabalho, impessoalidade e notável diminuição da compaixão nas relações
entre profissionais e de profissionais com pacientes. Tal aspecto se relaciona à dimensão da
despersonalização do colaborador7, em que se perde, aos poucos, a sensibilidade para com as
dores dos outros. Isso desencadeia uma forte frustração no colaborador, perda de esperança, de
vontade de cuidar.

Por fim, tem-se a perda do rendimento profissional, o que acarreta, consequentemente


na qualidade do serviço prestado e na ocorrência de erros. Perde-se a vontade de trabalhar, o
entusiasmo, o encantamento, o que está diretamente ligado a transtornos psiquiátricos como
depressão, ansiedade e pânico. Em 2020, de acordo com dados colhidos pela Central Única dos
Trabalhadores8, 289.677 profissionais foram afastados por transtornos mentais, um aumento de
mais de 50% quando comparado aos dados de 2015.

7
Idem.
8
CUT. Em 5 anos, número de afastamentos por transtornos mentais cresce mais de 50%. Disponível em:
https://www.cut.org.br/noticias/em-5-anos-numero-de-afastamentos-por-transtornos-mentais-cresce-mais-de-50-
7fe5. Acesso em: 04 de outubro de 2022.
85

De acordo com a Associação Paulista de Medicina (APM)9, 92,1% dos médicos


entrevistados disseram verificar outros profissionais, em seus locais de trabalho, enfrentam
problemas emocionais. Ainda conforme a pesquisa, as situações mais recorrentes são:
ansiedade (64%); estresse (62%); sensação de sobrecarga (58%); exaustão física e emocional
(54,1%); mudanças bruscas de humor (34,4%); e dificuldade de concentração (27%).

De pronto é claro que com esses sintomas as decisões tomadas pelos profissionais da
saúde, que já são críticas, tornam-se muito perigosas, principalmente no que tange a
probabilidade de danos irreversíveis e responsabilização do hospital, médico e equipes. A falta
de investimento em atenção aos profissionais da saúde é uma promissória de valor muito alto
que os gestores vem assinando e que será cobrada em forma de processos de responsabilização
cada vez mais onerosos, posto que, não se trata apenas do dinheiro, mas também da imagem da
instituição.

2.4. COVID-19 e burnout

Analisando os três aspectos apresentados no tópico anterior, nota-se que, além da falta
de suporte, autonomia e reconhecimento, já citados, há um que necessita ser enfatizado e que
se destacou durante a pandemia que são os valores institucionais que, muitas vezes, diferem-se
dos do profissional. Um caso recente que escancara essa realidade é o caso da Prevent Sênior
em que médicos denunciaram a pressão exercida pelos gestores da mesma a fim de obriga-los
a prescrever o kit Covid, bem como a prática de alteração de prontuários e atestados de óbito10.

Enquanto isso, o Ministério da Saúde passou pela direção de quatro ministros, cada um
com uma diretriz, o que fez com que as Secretarias Estaduais criassem diretrizes próprias de
enfrentamento e o Conselho Federal de Medicina (CFM) ficar em cima do muro. Verifica-se
uma atuação reguladora fracassada, tendo o judiciário que intervir como um churrasqueiro
apressado que deixa a varejeira pousar na carne, limpa o que está visível e a serve com tudo

9
APM. Os médicos e a Pandemia de COVID-19. Disponível em:
https://associacaopaulistamedicina.org.br/noticia/covid-19-81-dos-medicos-enxergam-segunda-onda-tao-ou-
mais-grave. Acesso em: 04 de outubro de 2022.
10
SÃO PAULO, Câmara Municipal. CPI ouve ex-médicos da Prevent que denunciaram atuação da empresa
durante a pandemia. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/cpi-ouve-ex-medicos-da-prevent-que-
denunciaram-atuacao-da-empresa-durante-a-pandemia/. Acesso em: 04 de outubro de 2022.
86

aquilo que não é visto e que, pode causar uma intoxicação aqueles que comem. Não
necessariamente irá causar um problema a curto prazo, mas é questão de tempo.

Com 687.423 óbitos acumulados por COVID-1911, nota-se que não precisou de tanto
tempo para que os vermes da varejeira aparecessem juntamente com os sintomas. De 2015 a
2020 o número de casos por responsabilidade civil por erro médico dobraram 12. Os bons
profissionais, muitas vezes, não tiveram amparo do CFM ou Ministério da Saúde, tendo que
tomar decisões críticas, como decidir quem receberá leito nas Unidades de Terapia Intensiva
(UTIs)13.

2.5. Como podemos aprender com a aviação?

Apesar de toda a experiência com a pandemia, parece que não se aprendeu muito.
Profissionais que cuidam da saúde foram adoecidos, tendo o burnout sido cada vez mais
recorrente, potencializando-se com esses três anos de enfrentamento ao Coronavírus e, ao que
tudo indica, não há nenhuma política efetiva sendo colocada em prática para os recuperar, pelo
contrário, as cobranças sobre eles continuam.

O judiciário não é meio efetivo para sanar esse tipo de problema. É necessário um
esforço conjunto buscando três aspectos predição, prevenção e correção. Uma área em que a
aplicação dessa metodologia funcionou aqui no Brasil foi na aviação comercial.

O país era um dos mais perigosos para voar comercialmente, com diversos acidentes
aéreos anualmente14, o que passou a ser um empecilho para a internacionalização das rotas e
abertura do mercado para empresas estrangeiras. Para solucionar tais questões foram feitas,
principalmente, investigações profundas realizadas pelo Centro de Investigação e Prevenção de
Acidentes Aeronáuticos (CENIPA).

11
BRASIL. Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 19 de outubro de 2022.
12
AMPLA. Aumenta o número de processos por responsabilidade civil do médico. Disponível em:
https://revistaampla.com.br/aumenta-o-numero-de-processos-por-responsabilidade-civil-do-medico/. Acesso em:
05 de outubro de 2022.
13
SUAREZ, J. Dois doentes, um respirador e um médico para decidir. Disponível em:
https://apublica.org/2020/04/dois-doentes-um-respirador-e-um-medico-para-decidir/. Acesso em: 05 de outubro
de 2022.
14
ALMEIDA, C. A.; FARIAS, J. L.; SANTOS, L. C. B.; SANTOS, F. F.; AZEVEDO, C. P. C.; MATHEUS, F.
L.; SERRA, L. A. Ocorrencias Aeronauticas: Panorama Estatistico da Aviação Brasileira – Aviação Civil 2006-
2015. Centro deInvestigação e prevenção de Acidentes aeronáuticos (CENIPA). Brasília. 2016. Fl. 35. Disponível
em: https://www2.fab.mil.br/cenipa/index.php/estatisticas/panorama. Acesso em 19 de outubro de 2022.
87

Os relatórios não buscam apenas punir, não é a busca principal, sendo ela a verificação
de qual a cadeia de erros que levou ao acidente - assim como ocorre com os erros médicos -
considerando desde erros humanos até falhas de equipamento. São observados, por exemplo,
os diálogos entre piloto, copiloto, engenheiro de bordo, comissários e torre, combustível
utilizado para abastecimento, fuselagem recuperada de forma microscópica para verificar o
impacto sofrido pela aeronave, dentre outros aspectos.

Com os relatórios são criados: checklists, cockpit resource management (CRM), recalls,
alterações de estruturas dos aeroportos, da logística, etc. Essas alterações são preventivas, que
buscam evitar possíveis erros decorrentes de falhas; corretivas, que consistem na manutenção
de peças que já apresentam defeito; e preditiva, a qual visa complementar a preventiva,
prevendo a vida útil dos equipamentos antes que falhem, realizando a antecipação de problemas
potenciais.

Em aproximação com a prestação de serviços da saúde, o checklists e o CRM são os


protocolos, guias de manejo, códigos de ética e os recall¸ fornecidos por auditorias e
investigações que irão trazer a efetividade dos regulamentos, diretrizes implantadas,
demonstrando o que precisa ser modificado, mantido ou interrompido. Isso vai muito além da
simples correção que tem sido aplicada pelo judiciário.

2.6. Da possível atenuante

No que tange o tema aqui trabalhado, uma forma de atenuar a incidência do burnout
seria: a) realizar uma análise de recorrência de erros de atuação na prestação de serviços da
saúde e verificação de fatores que levaram a eles (humanos, de equipamento ou falta de
equipamento, estrutura, dentre outros), viabilizada através de cruzamento de auditoria dos
hospitais; b) verificação dos acertos de cada hospital em protocolos adotados; c) plano de ação;
d) aplicação do plano com investimento expressivo nas soluções encontradas; e) checagem
anual da efetividade dos serviços através de novo cruzamento de auditorias; f) verificação de
pontos positivos e negativos, modificando, descontinuando e continuando com medidas de
acordo com seu grau de efetividade; g) volta-se ao ponto c em ciclo de análise na metodologia
PDCA (planejar, fazer, checar e agir).
Aplicando na prática sobre o burnout ficaria dessa forma: a) criação de perfis de
segurança, por um gabinete de riscos formada por gestores dos hospitais, com análise dos
88

colaboradores e protocolos de acompanhamento psicológico, cruzando o número de


profissionais com transtornos psiquiátricos com situações de pressão e rendimento do mesmo;
b) análise de fatores que podem estar influenciando no desenvolvimento desses transtornos, tais
como protocolos, distribuição de trabalho, sobrecarga, recursos materiais e humanos, salários.
Esses indicativos podem ser obtidos através de consulta aos próprios servidores de forma
anônima, por exemplo; c) plano de ação; d) aplicação do plano; e) cruzamento de resultados
entre os hospitais, compartilhando medidas de sucesso e fracasso, modificando, descontinuando
e continuando com medidas de acordo com seu grau de efetividade; f) volta-se ao ponto c em
ciclo de análise na metodologia PDCA (planejar, fazer, checar e agir).

É claro que para isso ser possível é necessário dar segurança aos colaboradores para que
possam falar sem quaisquer consequências negativas, bem como, investimento, capacitação e
boa vontade dos hospitais para criação de um consórcio para enfrentamento conjunto dessa
crise juntamente às regionais de saúde. Pode parecer algo distante da realidade atual, mas, há
uma necessidade de esforço conjunto e árduo para uma alteração de cultura hospitalar antes que
não tenhamos mais quem possa tratar o paciente por se tornar um deles.

3. CONCLUSÕES

À luz do exposto, é sabido que o exercício de funções relacionadas ao setor da saúde,


principalmente no que tange os profissionais de linha de frente, pressupõem abdicação e
dedicação extremas e para isso é necessário uma rede de apoio que inclui gestores, equipes,
terapeutas e pacientes. Porém, não é o que acontece. A posição atual é a mercantilização da
saúde em detrimento da qualidade de vida dos colaboradores.

O adoecimento daqueles que tratam é um fator crítico e crescente a cada dia. Sem a
devida atenção, perderemos, cada vez mais, vidas, não só dos pacientes, como também dos
próprios profissionais, que estão perecendo a cada segundo. É preciso agir de forma honesta,
clara e em conjunto para que seja viável uma melhora na condição de trabalho e diminuição da
incidência de burnout entre os profissionais da saúde. Uma tarefa árdua, que não será do dia
para a noite, mas que envolve cultura, conscientização e humanidade.
89

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, C. A.; FARIAS, J. L.; SANTOS, L. C. B.; SANTOS, F. F.; AZEVEDO, C. P. C.;
MATHEUS, F. L.; SERRA, L. A. Ocorrencias Aeronauticas: Panorama Estatistico da Aviação
Brasileira – Aviação Civil 2006-2015. Centro deInvestigação e prevenção de Acidentes
aeronáuticos (CENIPA). Brasília. 2016. Fl. 35. Disponível em:
https://www2.fab.mil.br/cenipa/index.php/estatisticas/panorama. Acesso em 19 de outubro de
2022.

AMPLA. Aumenta o número de processos por responsabilidade civil do médico. Disponível


em: https://revistaampla.com.br/aumenta-o-numero-de-processos-por-responsabilidade-civil-
do-medico/. Acesso em: 05 de outubro de 2022.

APM. Os médicos e a Pandemia de COVID-19. Disponível em:


https://associacaopaulistamedicina.org.br/noticia/covid-19-81-dos-medicos-enxergam-
segunda-onda-tao-ou-mais-grave. Acesso em: 04 de outubro de 2022.

BRASIL. Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em 19 de


outubro de 2022.

CNN. Corrida de pacientes crônicos a hospitais pós-pandemia preocupa especialistas.


Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/corrida-de-pacientes-cronicos-a-
hospitais-pos-pandemia-preocupa-especialistas/. Acesso em: 03 de outubro de 2022.

CUT. Em 5 anos, número de afastamentos por transtornos mentais cresce mais de 50%.
Disponível em: https://www.cut.org.br/noticias/em-5-anos-numero-de-afastamentos-por-
transtornos-mentais-cresce-mais-de-50-7fe5. Acesso em: 04 de outubro de 2022.

MASLACH, C; SCHAUFELI, W. B.; LEITER, M. P. Job burnout. Annual Review Psychology,


52, p. 397 – 422.

MASLACH, Christina. LEITER, Michael P. Trabalho: fonte do prazer ou desgaste?


Campinas/SP: Papirus, 1997, p. 22.

PEBMED. 78% dos profissionais de saúde tiveram sinais de Burnout durante pandemia.
Disponível em: https://medicinasa.com.br/burnout-profissionais-de-saude/. Acesso em: 03 de
outubro de 2022.
SÃO PAULO, Câmara Municipal. CPI ouve ex-médicos da Prevent que denunciaram atuação
da empresa durante a pandemia. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/cpi-
ouve-ex-medicos-da-prevent-que-denunciaram-atuacao-da-empresa-durante-a-pandemia/.
Acesso em: 04 de outubro de 2022.

SUAREZ, J. Dois doentes, um respirador e um médico para decidir. Disponível em:


https://apublica.org/2020/04/dois-doentes-um-respirador-e-um-medico-para-decidir/. Acesso
em: 05 de outubro de 2022.
90

A RELATIVIZAÇÃO DAS RECOMENDAÇÕES DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL


DA SAÚDE E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO BRASILEIRO EM
TEMPOS DE COVID-19

Jarbas Paula de Souza Junior1

Resumo: A presente pesquisa tem como objeto de estudo o cenário de calamidade global
instaurado pela Pandemia Covid-19, especialmente no que condiz a possibilidade de
responsabilização civil do Estado brasileiro por omissão, em decorrência da relativização das
recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), vez tratar-se à saúde de uma
prestação constitucionalmente indispensável à proteção do ser humano, restando
desautorizados excessos e omissões. Partindo-se de premissas gerais, sem a intenção de exaurir-
se o assunto, serão analisadas e identificadas as características constitutivas básicas da
Organização Mundial da Saúde, suas atribuições, bem como a força vinculante de subordinação
às suas orientações.
Palavras-chave: Covid-19. OMS; Dever de proteção; Responsabilidade civil estatal.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como propósito o estudo do cenário de calamidade global


instaurado pela Pandemia Covid-19 no Brasil, especificamente no que condiz a possibilidade
de responsabilização civil do Estado em decorrência da relativização das recomendações de
Organismos Internacionais, particularmente, as oriundas da Organização Mundial da Saúde
(OMS), em que pese tratar-se à saúde de uma prestação constitucionalmente indispensável à
proteção do ser humano, restando desautorizados excessos e omissões.

Partindo-se de premissas gerais, sem a intenção de exaurir-se o assunto, serão analisadas


e identificadas as características constitutivas básicas da Organização Mundial da Saúde, suas
atribuições diante da atual conjuntura, bem como a força vinculante de subordinação às suas
decisões.

De toda sorte, dividiu-se a pesquisa em objetivos geral e específicos, conforme delineia-


se abaixo. O objetivo geral da pesquisa foi analisar a possibilidade, considerando o desrespeito
às recomendações oriundas de Organismos Internacionais, particularmente, a Organização

Mestre em Direito pela Faculdade Meridional – IMED, Pós Graduado em Direito Processual Civil (URI-FW),
1

Direito Tributário (Unoesc), Direito Médico e Hospitalar (EPD-SP) e Direito da Medicina (Coimbra-PT).
91

Mundial da Saúde, de responsabilização civil do Estado brasileiro por omissão no combate da


Pandemia Covid-19.

Por sua vez os objetivos específicos da pesquisa relacionaram-se a analisar os aspectos


gerais da Organização Mundial da Saúde e a força vinculante dos seus atos e a explorar os
fundamentos e requisitos da responsabilização civil do Estado, particularmente, perante o
enfoque constitucional dos direitos e garantias fundamentais.

2 ASPECTOS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE E A


COERCITIVIDADE DE SEUS ATOS NORMATIVOS AOS ESTADOS MEMBROS

Com o surgimento da Pandemia Covid-19 ganhou voga, no cenário internacional, a


atuação de uma organização vinculada a Organização das Nações Unidas, criada logo após a
Segunda Guerra Mundial com o objetivo de regular o padrão da saúde internacionalmente,
estamos falando da Organização Mundial da Saúde.

A Organização Mundial da Saúde foi fundada em 07 de abril de 1948, a partir de uma


proposta apresentada por Brasil e China, no ano de 1945, respaldando sua instituição na
concepção de que todos os seres humanos têm direito a um padrão elevado de saúde2.

Atualmente a Organização Mundial da Saúde, além de integrar a agência da


Organização das Nações Unidas (ONU), é o órgão responsável pela construção de estudos,
relatórios e estatísticas que se preocupam com os níveis de saúde internacionais.

Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde o objetivo da OMS “é ajudar a


comunidade internacional a prevenir e responder a graves riscos de saúde pública que têm o
potencial de atravessar fronteiras e ameaçar pessoas em todo o mundo3”.

Podem-se citar, como exemplos, de atuação da Organização Mundial de Saúde, as


campanhas de vacinação da pólio (1952-1957), a vacinação contra sarampo e rubéola (1963),

2
BERNARDO, Paulo. Brasil teve papel direto na fundação da OMS: entenda o que é a função da
organização. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-teve-papel-direto-na-fundacao-
da-oms-entenda-o-que-e-e-a-funcao-da-organizacao,70003256316. Acesso em: 06 ago. 2020.
3
OPAS. Organização pan-americana da saúde. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=885:opas-oms-
nobrasil&Itemid=672. Acesso em: 06 ago. 2020.
92

o programa de imunização de vacinas para o mundo todo (1974), a eliminação da varíola


(1979), a atuação no controle da AIDS, dentre outras diversas atuações no combate a moléstias
que vitimaram e ainda vitimam a humanidade4.

Desta forma, constata-se ter a Organização Mundial da Saúde a responsabilidade,


juntamente com os Estados e demais atores internacionais, de consolidar, de forma irrestrita e
universal, os instrumentos para manutenção da saúde. Passa, assim, a saúde a ser entendida
como um direito “direito global”, uma “saúde global5”.

A Organização Mundial da Saúde possui, entre outras funções, consoante o artigo 2º, da
sua Constituição6, a de “atuar como autoridade diretora e coordenadora dos trabalhos
internacionais em assuntos relativos à saúde”, bem como “estabelecer e manter colaboração
efetiva com as Nações Unidas, as agências especializadas, as repartições governamentais de
saúde, os grupos profissionais e quaisquer outras organizações que pareçam indicadas”.

Reza o artigo 21 a Constituição da Organização Mundial da Saúde que a Assembleia da


Saúde poderá adotar regulamentos concernentes, “às medidas sanitárias e de quarentena ou
outro qualquer processo com o fim de impedir a propagação de doenças de um país a outro7”.

Ultrapassada a introdutória análise e identificação das características constitutivas


básicas da Organização Mundial da Saúde, bem como de suas atribuições, verifica-se, diante
da crise sanitária internacional - instaurada pela Pandemia Covid-19 e da celeuma implantada
sobre a obrigatoriedade de observância das suas recomendações -, a necessidade de se
identificar a natureza dos atos exarados pela Organização Mundial da Saúde.

Nessa perspectiva o artigo 21, do citado diploma de saúde8, dispõe que a Assembleia
poderá adotar regulamentos concernentes “às medidas sanitárias e de quarentena ou qualquer
outro processo com o fim de impedir a propagação de doenças de um país a outro”, da mesma
maneira que poderá regulamentar “padrões com respeito a processos de diagnósticos para uso
internacional” e “padrões relativos à garantia, pureza e atividade dos produtos biológicos,
farmacêuticos e similares que se encontram no comércio internacional.”.

4
OMS. Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://www.who.int/es. Acesso em: 06 ago. 2020.
5
CABRAL, Cristiane Helena de Paula Lima. Ob. cit. p. 193.
6
O Brasil ratificou e aprovou a referida Constituição da Organização Mundial da Saúde pelo Decreto nº 26.042,
de 17 de dezembro de 1948.
7
BRASIL, Decreto nº 26.042 (Constituição da Organização Mundial da Saúde). Op. cit. s/p.
8
Ibidem.
93

Além de tudo, o artigo 62 da Constituição da Organização Mundial da Saúde assenta


que cada Estado Membro apresentará anualmente um relatório sobre as medidas tomadas em
relação às recomendações que lhe forem feitas pela Organização e em relação às convenções,
acordos e regulamentos.

Ao tratar da submissão dos Estados Membros às recomendações expedidas pela


Organização Mundial da Saúde destaca Cabral9 que:

[...] considerando às medidas propostas pela OMS para a contenção e prevenção da


COVID-19, os Estados devem tomar medidas para adotá-las, uma vez que elas
possuem força obrigatória, independentemente da sua natureza, seja hard Law
(Constituição da OMS e o Regulamento) ou soft Law (os inúmeros protocolos), não
havendo no que se falar em ausência de cumprimento.

Todavia, as deliberações da Organização Mundial da Saúde por se tratarem de medidas


de caráter supranacional, meramente simbólicas, ressentem-se, assim como ocorre com o
direito internacional, de instrumentos voltados para a eficácia da efetividade das suas decisões
- suas decisões não possuem força vinculante e de subordinação.

Ocorre que, inexiste, no ambiente do direito internacional e, consequentemente, na


Organização Mundial da Saúde, meios coercitivos para se fazer cumprir as suas diretrizes,
salvo, eventual, medida de exposição dos Estados Membros “infratores” no cenário
internacional, ficando a cargo de cada Estado Membro a adoção das recomendações da OMS,
seja para a contenção de doenças ou para outra medida qualquer. A ausência de um órgão com
poderes jurisdicional de polícia e sancionatórios, com atribuição e competência para julgar os
Estados Membros, diante de circunstancial violação das suas deliberações, coloca em xeque a
própria existência da OMS.

3 DO DEVER DE PROTEÇÃO DO ESTADO EM RELAÇÃO À SAÚDE NO


COMBATE A PANDEMIA COVID-19

A problemática atual, atinente a responsabilidade civil do Estado, em muito se distingue


daquela decorrente da sociedade pós-industrial. A evolução social nos conduziu a um novo
modelo de desenvolvimento, passamos de uma sociedade agrícola e industrial, para uma

9
CABRAL, Cristiane Helena de Paula Lima. Ob. cit. p. 195.
94

sociedade da informação, extremamente interligada e globalizada, lastreada em novos desafios


e, como conseguinte, instrumentalizada por novos direitos dos cidadãos e deveres do Estado.

Ferrajoli10 expõe, em uma breve resenha, sob título “O vírus põe a globalização de
joelhos”, o caráter universal da contaminação:

Apesar das conquistas tecnológicas, do crescimento das riquezas e da invenção de


armas cada vez mais letais, continuamos – todos, simplesmente como seres humanos
– a estar expostos às catástrofes. Com uma diferença em comparação com todas as
tragédias do passado: o caráter global das catástrofes atuais, que afetam todo o
mundo, a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, de cultura, de língua,
de religião e até de condições econômicas e políticas.

A catastrófica situação de emergência sanitária internacional, vivenciada após o


surgimento do vírus Covid-19 ensejou, por parte do Estado, uma maior atenção na adoção de
providencias eficientes para o enfrentamento da crise global de saúde. Competia ao Estado
garantir a preservação dos direitos fundamentais, máxime o direito à saúde, em face dessa
inevitável agressão instaurada pela Pandemia Covid-19, ainda, que não seja, vale ressaltar, um
“segurador, garantidor universal”.

É nesta conjuntura “de tutela estatal de direitos fundamentais” que se discorrerá acerca
da responsabilidade civil do Estado, tanto por ação como por omissão, no contexto da Pandemia
Covid-19.

De atentar, prefacialmente, que o ordenamento jurídico brasileiro proclamou que a


responsabilidade civil do Estado, em regra, é objetiva, a teor do que reza o artigo. 37, § 6º, da
Constituição Federal. Destaca-se que referida responsabilidade civil do Estado, sem culpa, não
é uma novidade introduzida com a Constituição Federal de 1988, esse dever de indenizar já
encontrava previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição de 1946.

A responsabilidade objetiva do Estado está alicerçada na teoria do risco administrativo,


sendo que aludida teoria, nas palavras de Cavalieri Filho11 pode ser assim formulada:

[...] a Administração Pública gera riscos para os administrados, entendendo-se como


tal a possibilidade de dano que os membros da comunidade podem sofrer em
decorrência da normal ou anormal atividade do Estado. Tendo em vista que essa
atividade é exercida em favor de todos, seus ônus devem ser também suportados por

10
FERRAJOLI, Luigi. O vírus põe a globalização de joelhos. Revista do Instituto Humanitas UNISINOS. 2020.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597204-o-virus-poe-a-globalizacao-de-joelhos-artigo-de-
luigi-ferrajoli. Acesso em: 7 ago. 2020.
11
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 14. ed. São Paulo: Atlas. 2020, p. 286.
95

todos, e não apenas por alguns. Consequentemente, deve o Estado, que a todos
representa, suportar os ônus da sua atividade, independentemente de culpa dos seus
agentes.

Impende atentar que não há que se confundir a teoria do risco administrativo com a
teoria do risco integral12. Seguindo a linha doutrinária de Cavalieri Filho13, tal distinção se faz
necessária “para que o Estado não venha a ser responsabilizado naqueles casos em que o dano
não decorra direta ou indiretamente da atividade administrativa.”.

Oportunamente agrega Cavalieri Filho14 que, acaso se admitisse a teoria do risco integral
na avaliação da responsabilidade da Administração Pública, “ficaria o Estado obrigado a
indenizar sempre e em qualquer caso o dano suportado pelo particular, ainda que não decorrente
de sua atividade, posto que estaria impedido de invocar as causas de exclusão do nexo causal.”.

Ocorre que, apesar da teoria do risco administrativo dispensar a análise da culpa, a


verificação da relação de causalidade, entre o dano perpetrado e a atividade executada pelo
Estado, é essencial para caracterização do dever de indenizar, independentemente da
modalidade da responsabilização – objetiva ou subjetiva. Entretanto, a imputação de
responsabilidade objetiva ao Estado, comporta algumas exceções, sendo causas de exclusão do
dever de indenizar estatal: o fato exclusivo da vítima, o caso fortuito ou força maior e o fato
exclusivo de terceiro.

Nessa toada, o risco administrativo do Estado e, logicamente, sua responsabilização


civil, tanto podem se originar de atos comissivos como também de atos omissivos. Como
exemplos na conjuntura da Pandemia Covid-19, poder-se-ia citar: o dano sofrido por cidadão
que morre em decorrência da ausência de leito ou respirador em número insuficiente, etc.

À vista disso, optou-se por adotar a corrente doutrinária de Juarez de Freitas15, dentre
outros constitucionalistas modernos, que bem relaciona à responsabilidade civil do Estado a
eficácia, direta e imediata, dos direitos fundamentais, vedando-se excessos e omissões.

12
De acordo com Cavalieri Filho (2020, p. 196) “A teoria do risco integral é uma modalidade extremada da
doutrina do risco destinada a justificar o dever de indenizar até nos casos de inexistência de nexo causal [...]. Na
responsabilidade fundada no risco integral, todavia, o dever de indenizar é imputado àquele que cria o risco, ainda
que a atividade por ele exercida não tenha sido a causa direta e imediata do evento. Bastará que a atividade de
risco tenha sido a ocasião, mera causa mediata ou indireta do vento, ainda que se tenha tido por causa direta e
imediata fato irresistível ou inevitável, como a força maior e o caso fortuito.”.
13
CAVALIERI FILHO, Sergio. Op. cit. p. 287.
14
Ibidem.
15
Autor das obras: 1) Responsabilidade Civil do Estado e o princípio da proporcionalidade: vedação de excesso e
de inoperância. São Paulo: Malheiros, 2006; 2) A responsabilidade extracontratual do Estado e o princípio da
96

Isto posto, incumbe-nos ponderar que a tónica correspondente a responsabilidade civil


do Estado encontra refúgio na tutela dos direitos fundamentais. Nesse sentido, argumenta
Freitas16 que:

[...] o Estado brasileiro precisa ser responsável pela eficácia direta e imediata dos
direitos fundamentais, já em suas obrigações negativas, já em suas dimensões
prestacionais. Será, nessa perspectiva, proporcionalmente responsabilizável, tanto por
ações como por omissões [...].

Dessa maneira, torna-se irrelevante, para referida concepção da responsabilidade estatal,


a prova da culpa. Da mesma forma, a querela sobre a previsibilidade ou não do dano, visto que,
como linha de tendência, há que se sopesar meramente se houve ou não a observância das
medidas preventivas de cuidado e proteção.

Portanto, na análise da eventual responsabilidade estatal, decorrente de caso fortuito ou


fenômeno da natureza – a Pandemia Covid-19 é um caso típico -, bastaria examinar-se se, o
agravamento da situação de calamidade pública, deu-se, única e exclusivamente, pela ausência
da adoção das correlatas medidas preventivas indicadas cientificamente ao Estado.

Nesse condão, necessário reforçar que, hodiernamente, o Estado não só é obrigado a se


abster de violar direitos fundamentais, como deve impreterivelmente salvaguardar os bens
jurídicos fundamentais de injustas violações, como se atuasse como um “garantidor de direitos
fundamentais”.

O momento de instabilidade mundial na área de saúde, decorrente da Pandemia Covid-


19, foi emblemático neste sentido. Destarte, é notório que a Covid-19 vitimaria uma extensa
parcela da população brasileira, independentemente das medidas preventivas adotadas. O vírus
infectou cidadãos em praticamente todo o globo terrestre, sendo ilógico imaginarmos que o
território nacional seria exceção.

Ocorre que, consoante Bisneto, Santos e Cavet17:

proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 2005; e A Constituição, a responsabilidade


do Estado e a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais. Constituição e crise política. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006.
16
FREITAS, Juarez. Op. cit. p. 381.
17
BISNETO, Cícero Dantas; SANTOS, Romualdo Baptista dos; CAVET, Caroline Amadori.
Responsabilidade civil do estado por omissão e por incitação na pandemia da covid-19. Revista IBERC. v.
3, n. 2, maio/ago. 2020. Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/111.
Acesso em 07 de ago. de 2020, p. 79.
97

A ineficiência ou a ausência de adoção de medidas políticas, sociais e econômicas que


visam à prevenção da disseminação da COVID-19 e seus desdobramentos, pela
Administração Pública, pode gerar o dever de reparar os danos causados aos que
forem lesados. Entretanto, não é qualquer omissão do Estado que ensejaria a
responsabilidade civil. Seria necessária uma omissão qualificada (específica), ou seja,
aquela que, além de decorrer de um dever legal particular, é causa direta e imediata
do dano.

Lamentavelmente, nem sempre as recomendações divulgadas por entidades, como a


Organização Mundial da Saúde, são eficientes para impulsionar os entes estatais na adoção de
medidas de prevenção. Logo, nem todos os efeitos da Pandemia COVID-19 podem ser
caracterizados como inevitáveis, hipótese em que incorrerá o ente estatal a subsunção na figura
da responsabilidade civil subjetiva por omissão.

Staffen18 é cirúrgico ao discorrer sobre a irresponsabilidade estatal no enfrentamento a


Pandemia Covid-19:

Líderes de Estado e de governo que omitem ou embaraçam informações sobre os


casos de COVID-19, não apenas se mostram irresponsáveis. Acabam por deixar todos
em risco e vulnerabilidade, desde pessoas não infectadas até equipes médicas.
Dificultam medidas de eficácia sanitária em nível local e também transfronteiriço e,
obstacularizam os compromissos que assumiram quando se tornaram signatários da
Organização Mundial da Saúde. De forma subsidiária, rompem com o Estado de
Direito e agravam depressões nos mercados e na economia, cuja interdependência
global é inegável.

A negligência estatal, assim, poderá despontar, caso se ateste que a adoção tempestiva
de medidas profiláticas, como o fornecimento oportuno de equipamentos de proteção individual
aos profissionais da saúde pública ou fechamento de fronteiras e o cancelamento de voos,
principalmente internacionais, teria contribuído para combater a contaminação, reduzindo o
risco de contagio e a velocidade de propagação do vírus.

A eventual interligação entre a omissão estatal e a infecção de milhares de pessoas por


Covid-19 deverá ser objeto de análises futuras no Brasil, no intuito de verificar-se a existência
ou não do nexo de causalidade entre o não-agir público e os danos experimentados. Pondera
Frazão19 que “fica claro que as excludentes de responsabilidade apenas poderão ser

18
STAFFEN, Márcio Ricardo. COVID-19 e a pretensão jurídica transnacional por transparência. Revista
Eletrônica Direito & Política. 2020. Disponível em:
https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/16382/9272. Acesso em: 9 ago. 2020, p. 142.
19
FRAZÃO, Ana. Risco da empresa e caso fortuito externo. Disponível em: http://civilistica.com/wp-
content/uploads1/2016/07/Fraz%C3%A3o-civilistica.com-a.5.n.1.2016-3.pdf. 2016. Acesso em 07 de ago. de
2020, p. 23.
98

consideradas como tal, para fim de afastar a imputação, quando foram consideradas estranhas
ao risco”.

4 CONCLUSÃO

A crise sanitária internacional instalada pela Pandemia Covid-19, na atual “Era da


Informação”, comprovou, indubitavelmente, o quão suscetível e vulnerável se encontra a
humanidade. Eclodiram situações jamais vivenciadas na Era Moderna, como o colapso de
inúmeros sistemas de saúde em todo mundo, em função da sobrecarga de pacientes infectados
a necessitar, simultaneamente, de assistência médica.

Evidenciou-se, mais do que nunca, a importância de se reinventar o Direito


Internacional e o papel das Organizações Internacionais, sobretudo, a Organização Mundial da
Saúde, porquanto referidos organismos internacionais se ressentem de mecanismos eficientes
para impor suas decisões (ausência de força vinculante e de subordinação).

O desprezo aos direitos humanos - considerados como um patrimônio da humanidade-,


representado pela relativização das recomendações da Organização Mundial da Saúde, foram
uma constante indesejável, mas presente nas diversas ações governamentais mundo afora.

Esta infeliz rotina não foi diferente no Brasil, em nosso território chegamos ao disparate
de não só desrespeitar as orientações da Organização Mundial da Saúde, como sequer
conseguirmos obter um consenso, a respeito de qual norma seguir no enfrentamento da Covid-
19, entre os membros do atual governo.

É notório, que o Estado não se trata de um “segurador, garantidor universal” e, como


referido alhures, respeitadas as recomendações de prevenção contra a Covid-19, inseridas
dentro de protocolos cientificamente reconhecidos, ainda que, insuficiente para eliminar por
completo os riscos de contágio, não há que se falar em responsabilidade civil e dever de reparar
pelo Estado.

Neste sentido, devemos considerar que a não observância das recomendações


preventivas no combate a Pandemia Covid-19 poderá ensejar a responsabilização civil do
Estado, independentemente de culpa (tanto por condutas comissivas como por omissões),
protegendo-se a vítima e não restando nenhum dano sem reparação, desde se comprove que a
99

deficiência de atuação do Estado contribuiu para implementação ou agravamento dos danos


decorrentes do contágio do vírus Covid-19.

REFERÊNCIAS

BERNARDO, Paulo. Brasil teve papel direto na fundação da OMS: entenda o que é a função
da organização. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-teve-papel-
direto-na-fundacao-da-oms-entenda-o-que-e-e-a-funcao-da-organizacao,70003256316.
Acesso em: 06 ago. 2022.
BISNETO, Cícero Dantas; SANTOS, Romualdo Baptista dos; CAVET, Caroline Amadori.
Responsabilidade civil do estado por omissão e por incitação na pandemia da covid-19.
Revista IBERC. v. 3, n. 2, maio/ago. 2020. Disponível em:
https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/111. Acesso em 07 de ago. de
2022.
CABRAL, Cristiane Helena de Paula Lima. Organização mundial da saúde e sua atuação no
âmbito da saúde pública internacional. In: BAHIA, Saulo José Casali Bahia; MARTINS, Carlos
Eduardo Behrmann Rátis (Coord.). Direitos e deveres fundamentais em tempos de coronavírus.
v. 2. São Paulo: Editora Iasp, 2020.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 14. ed. São Paulo: Atlas.
2020.
FERRAJOLI, Luigi. O vírus põe a globalização de joelhos. Revista do Instituto Humanitas
UNISINOS. 2020. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597204-o-virus-
poe-a-globalizacao-de-joelhos-artigo-de-luigi-ferrajoli. Acesso em: 7 ago. 2022.
FRAZÃO, Ana. Risco da empresa e caso fortuito externo. Disponível em:
http://civilistica.com/wp-content/uploads1/2016/07/Fraz%C3%A3o-civilistica.com-
a.5.n.1.2016-3.pdf. 2016. Acesso em 07 de ago. de 2022.
FREITAS, Juarez. A responsabilidade extracontratual do estado e o princípio da
proporcionalidade: vedação de excesso e de omissão. Revista de Direito Administrativo. n.
241. Rio de Janeiro, 2005.
OMS. Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://www.who.int/es. Acesso em: 06
ago. 2022.
OPAS. Organização pan-americana da saúde. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=885:opas-oms-
nobrasil&Itemid=672. Acesso em: 06 ago. 2022.
STAFFEN, Márcio Ricardo. COVID-19 e a pretensão jurídica transnacional por transparência.
Revista Eletrônica Direito & Política. 2020. Disponível em:
https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rdp/article/view/16382/9272. Acesso em: 9 ago.
2022.
100

TRATAMENTO JURÍDICO DA COVID-19 NO BRASIL: AS DIRETRIZES DA


ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS) NO CONTEXTO DA ADPF 672

Leonel Severo Rocha1


Bernardo Leandro Carvalho Costa2

Resumo: o presente artigo tem como objetivo demonstrar a relevância das diretrizes da
Organização Mundial da Saúde (OMS) no tratamento jurídico da Covid-19 no Brasil. Para tal,
faz-se uma análise dos atos influenciados pelas recomendações de referida organização no
âmbito brasileiro. Na sequência, menciona-se a Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) nº
672, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), como um
exemplo de utilização das diretrizes sanitárias globais para a garantia da aplicação do Direito à
Saúde no Brasil. Em aportes conclusivos, demonstra-se a imprescindibilidade das diretrizes da
Organização Mundial da Saúde para o tratamento jurídico da Covid-19 no Brasil.

Palavras-chave: ADPF 672; Covid-19; CFOAB; Organização Mundial da Saúde (OMS);


Direito à Saúde.

1 INTRODUÇÃO

A Pandemia Covid-19 evidenciou a relevância da atuação do sistema global da saúde


na produção de recomendações e diretrizes que influenciaram diretamente a produção de
legislação, a atuação diária de governantes e indivíduos e as decisões de tribunais do mundo
inteiro.

Nesse sentido, chega-se a um momento histórico em que as organizações internacionais


especializadas, a exemplo da Organização Mundial da Saúde (OMS) passam a serem
imprescindíveis para a resolução jurídica de conflitos oriundo de pandemias globais.

Ocorre que, no início da Pandemia da Covid-19, alguns países, a exemplo do próprio


Brasil, resistiram na aplicação das recomendações de organizações especializadas, sobretudo
em relação à diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por consequência, a judicialização do controle de atos contrários às recomendações da


Organização Mundial da Saúde (OMS) foi característica desse período, com destaque para a

1
Advogado (OAB/SC). Doutor pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris (1989) com pós-
doutorado em Sociologia do Direito pela Universita degli Studi di Lecce - Itália. Professor Titular da Universidade
do Vale do Rio dos Sinos. Coordenador do Grupo de Pesquisa Teoria do Direito (CNPq).
2
Advogado (OAB/RS). Delegado da Escola Superior da Advocacia (ESA) da OAB/RS. Doutorando em Direito
Público (Unisinos e Paris 1 Panthéon-Sorbonne). Bolsista CAPES/PROEX. Membro do grupo de pesquisa Teoria
do Direito (CNPq).
101

atuação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) nos autos da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 672.

Como resposta a essa problemática, a hipótese do presente artigo é a de que as diretrizes


emanadas da Organização Mundial da Saúde (OMS) foram imprescindíveis para a atuação das
diferentes entidades que demandaram a aplicação do Direito à Saúde no Brasil.

Partindo desse propósito, utilizando-se da metodologia pragmático-sistêmica e da


técnica de pesquisa de documentação indireta, com revisão de bibliografia nacional e
estrangeira, buscar-se-á, no presente artigo, comprovar a hipótese acima levantada em
considerações finais.

2 AS DIRETRIZES DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE NO CONTEXTO DA


ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTO Nº 672

Desde o surgimento do coronavírus 2019 (COVID-19), pela primeira vez constatada em


Wuhan, na China, em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde tem atuado
quotidianamente na expedição de diretrizes a seus países-membros, demais Estados e ao próprio
cidadão, com o intuito de auxiliar tecnicamente na detecção e no tratamento da doença.3
Assim, uma vez caracterizada como um problema de natureza global do Sistema da
Saúde, a OMS passou a trabalhar em colaboração com o auxílio de experts mundiais no tema,
os governos que a integram e demais colaboradores para divulgar amplamente os
conhecimentos científicos sobre o novo vírus, sua propagação e seus riscos, emanando
diretamente da Organização conselhos rotineiros aos países e indivíduos sobre as medidas a
serem tomadas para proteção da saúde e diminuição da propagação do surto da doença. 4 Ao
longo da história da Organização, trata-se da sexta vez em que se declara porte público de
natureza internacional ao tratamento de determinado problema de saúde global. Todavia, como
afirmado rotineiramente, a COVID-19 é, sem dúvida, o caso mais grave.5

3
ORGANISATION MONDIALE DE LA SANTÉ. Lignes directrices. Disponível em : <
https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-guidance >. Acesso em 31 out.
2022.
4
FLAMBÉE DE MALADIE À CORONAVIRUS 2019 (COVID-19).Organisation Mondiale de la Santé.
Disponível em : < https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>. Acesso em 31 out.
2022.
5
WHO-PRESS CONFERENCES. 27/07/2020 (vídeo). Organisation Mondiale de la Santé. Disponível em : <
https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>. Acesso em 31 out. 2022.
102

Com o intuito de dar cumprimento a esses propósitos, a Organização Mundial da Saúde


tem realizado com frequência diversas conferências à imprensa6, resumindo a atualizando os
resultados obtidos sobre as pesquisas realizadas sobre a COVID-19, bem como expedidas
diretrizes aos Estados e cidadãos sobre o tema.7 As conferências à imprensa são conduzidas
pela atual presidente da Organização e contam com a participação de diversos experts na área
da Saúde, bem como com pronunciamentos de cooperação de líderes de diferentes países. As
diretrizes, por sua vez, são atualizadas rotineiramente a tratam de vários temas conectados ao
tratamento e prevenção contra o vírus.

No Brasil, as diretrizes da Organização Mundial da Saúde resultaram na promulgação


da Lei nº 13.979/20208 (Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019)
e no Decreto nº 10.212/20209 (Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário
Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de
maio de 2005). Neste último é mencionada a própria assembleia da OMS como fundamentação
da legislação inclusive, como perceptível acima. Além da legislação já mencionada, o governo
federal tem aditado outros atos normativos com o intuito de regulamentar as ações a serem
adotadas para prevenção e combate do coronavírus, além da redução dos prejuízos econômicos
oriundos da Pandemia.

Ainda, destaca-se a edição da Lei Complementar nº 17310, de 27 de maio de 2020, que


estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19),

6
WHO-PRESS CONFERENCES. Organisation Mondiale de la Santé. Disponível em : <
https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>. Acesso em 22 jul. 2020.
7
LIGNES DIRECTRICES POUR LE NOUVEAU CORONAVIRUS (2019-NCOV). Organisation Mondiale
de la Santé. Disponível em : < https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-
guidance>. Acesso em 31 out. 2022.
8
BRASIL. Lei nº 13.979/2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública
de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: <
http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735>. Acesso em 31 out.
2022.
9
BRASIL. Decreto nº 10.212/2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional,
acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10212.htm>. Acesso em 22 jul. 2020.
10
BRASIL. Lei complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Estabelece o Programa Federativo de
Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), altera a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000,
e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm>. Acesso em
31 out. 2022.
103

alterando a Lei Complementar nº 10111, de 04 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade


Fiscal), além de outras providências. Neste ato normativo, destacam-se definições sobre o
orçamento dos entes federativos ao longo da Pandemia, a nulidade de determinados atos da
Administração que contrariem referida lei complementar e a determinação de suspensão de
diversas atividades, entre as quais se encontram a concessão de novas vantagens e benefícios a
servidores e a realização de concursos públicos.
Todavia, o Estado brasileiro é definido como uma República Federativa (art. 1º da
Constituição Federal)12, de regime presidencialista. Por consequência, há uma repartição nas
competências legislativas, nos termos dos artigos 22 e seguintes da Constituição Federal. 13 No
Brasil, essa definição levou a diversos questionamentos acerca de possíveis incompatibilidades
entre a legislação emanada da Federação, dos Estados e dos diferentes municípios.

Como consequência, imbuído nessa discussão, o governo federal passou a editar vários
atos que, segundo representantes de Estados e municípios, tentavam barrar os atos normativos
por eles editados diante da situação. Em destaque- ponto crucial para o questionamento judicial-
foi a resistência ao distanciamento social no início da Pandemia.

Por um lado, a Federação passou a defender seu papel indispensável na internalização


das medidas globais para o combate à COVID-19, mesmo que contrariasse os protocolos
internacionais de prevenção e combate à Doença. Por outro, fundados no princípio federativo
(repartição de competências), Estados e municípios sustentam sua autonomia para tomar
decisões no tocante à matéria. Em razão disso, tais entes, baseados na já mencionada Lei
13.979/2020 e com fulcro constitucional nos artigos 23, II e 24, IX, da Constituição Federal
(competência), a despeito da contrariedade do Governo Federal, determinaram medidas
recomendadas pela OMS, tais como suspensão de aulas, recomendação de adoção de trabalho

11
BRASIL. Lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas
para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp101.htm>. Acesso em 31 out. 2022.
12
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 31 out. 2022.
13
Entre referidos dispositivos destacam-se os seguintes: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios: [...] II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das
pessoas portadoras de deficiência; Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre: [...] IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa,
desenvolvimento e inovação;” BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 31 out. 2022.
104

remoto, fechamento de shoppings, comércios e parques, interrupção de atividades culturais e


recreativas e outras mais.

O referido conflito de competência chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio da


propositura da Arguição de Descumprimento De Preceito Fundamental (ADPF 672) do Distrito
Federal, tendo como requerente o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil –
CFOAB. Para sustentar a competência de Estados e município na regulamentação de medidas
específicas no combate à COVID-19, o requerente afirmou que a atuação do Governo Federal,
além de contrária às diretrizes globais de combate à Pandemia, seria insuficiente para diminuir
a perde de prejuízos na área econômica, com vista à garantia da manutenção da produção, de
empregos e renda de variados setores da economia, com destaque para trabalhadores informais
e população de baixa renda.14
Nesse sentido, segundo a pretensão do requerente, os seguintes preceitos constitucionais
estariam sendo violados pela atuação do Governo Federal: direito à saúde (art. 6º, caput, e art.
196 da CF), direito à vida (art. 5º, caput, da CF), princípio federativo (art. 1º, caput, da CF),
uma vez que a competência constitucional dos Estados (artigos 23, II, e 24, XII, da Constituição
Federal) estaria sendo descreditada e esvaziada pelos atos do Presidente na República, e a
independência e harmonia entre os poderes (art. 2º da Constituição Federal).15
Interessante notar na argumentação do requerente e nas manifestações do requerido a
menção contínua ao cumprimento/descumprimento das diretrizes da OMS poro Governo
Federal, Estados e municípios. Na manifestação da Advocacia-Geral da União consta a seguinte
afirmação: “[...] todas as ações concretas do Governo demonstram estar de acordo com as
políticas adotadas no mundo, com as recomendações da OMS”.16 Portanto, apesar da discussão
constitucional no âmbito interno (princípios constitucionais e regras de competência da
Constituição Federal), as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) servem
como parâmetro para o julgamento do caso.
Na oportunidade, o requerente formulou pedido de medida cautelar com o intuito de
determinar que o Governo Federal se abstivesse de cometer atos que afrontassem as políticas

14
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 672 / DF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf.> Acesso em 31 out. 2022.
15
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 672 / DF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf.> Acesso em 31 out. 2022.
16
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 672/ DF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf.> Acesso em 31 out. 2022.
105

de isolamento social determinadas por Estados e Municípios, seguindo os protocolos da OMS,


bem como para a determinação de medidas econômicas que beneficiassem os setores da
economia mais atingidos pela Pandemia.
Afirmando que os ditames da separação de poderes e do princípio federativo, cláusulas
pétreas da Constituição Federal, deveriam servir como base para a interpretação da Lei
13.979/20 e do Decreto Legislativo 6/20, bem como dos Decretos presidenciais 10.282 e
10.292, ambos de 2020 (Regulamentam a Lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020), além da
garantia impositiva dos princípios informadores e regras de competência (artigos 22 e seguintes
da Constituição Federal) no tocante à proteção da saúde pública (artigos 196 e 197 da
Constituição Federal), em decisão liminar, deu-se razão ao requerente no sentido de concessão
de medida cautelar “para que seja determinado o respeito às determinação dos governadores
e prefeitos quanto ao funcionamento das atividades econômicas e as regras de aglomeração”.17
Também em sede de controle abstrato de constitucionalidade (MEDIDA CAUTELAR
NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.341 - DISTRITO FEDERAL)18,
por solicitação de um partido político, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), Supremo
Tribunal Federal deferiu em parte medida cautelar para tornar explícita no campo pedagógico
e na dicção do Supremo, a competência concorrente” prevista na Constituição, reconhecendo a
possibilidade de Estados e municípios legislarem no âmbito da saúde, especialmente tomando
medidas necessários para o combate à COVID-19.
Com base nas decisões referidas, Estados e municípios passaram a determinar regras
específicas para o combate e a prevenção à COVID-19. No caso específico do Estado do Rio
Grande do Sul, os decretos preveem a classificação das regiões do Estado em diferentes
bandeiras (laranja, vermelha e preta), de acordo com o número de unidades de tratamento
intensivo disponíveis em cada cidade.19 Na medida em que as cidades progridem ou regridem
nessa direção (passagem de uma bandeira a outra), as atividades locais passam a ser permitidas
ou proibidas por decreto municipal. Um dos exemplos dessa mudança contínua é a própria

17
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 672/ DF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf.> Acesso em 31 out. 2022.
18
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 6.341 Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf.> Acesso em 31 out. 2022..
19
RIO GRANDE DO SUL. Decretos Estaduais. Disponível em: < https://coronavirus.rs.gov.br/decretos-
estaduais>. Acesso em 31 out. 2022.
106

capital do Estado, Porto Alegre, com a edição contínua de decretos de alteração sobre as
permissões e proibições.20
Além da produção contínua de legislação entre Federação, Estados e municípios, outros
órgãos têm trabalhado com recomendações para o período de enfrentamento à Pandemia. Nesse
sentido, destaca-se a atuação do Ministério Público do Trabalho na edição de notas técnicas
sobre pontos específicos das controvérsias desse período. Esse é o caso da Nota Técnica MPT
| GT COVID-19, que trata especificamente da proteção à saúde dos professores durante a
pandemia.21

No tocante à atuação dos gestores públicos, mormente na interpretação e produção da


legislação durante o período, destaca-se, em âmbito estadual, o trabalho realizado pelo Tribunal
de Contas do Estado do Rio Grande do Sul na elaboração de orientações à Administração
Pública no período de Pandemia. Atualmente, há 02 (dois) boletins informativos elaborados
para o esclarecimento de dúvidas sobre a Administração Pública diante desta situação.22

Em síntese, há diversos outros mecanismos normativos a serem citados no âmbito do


Estado brasileiro, sejam os emanados pelo governo federal, pelos Estados, municípios ou até
demais órgãos em termos de orientações e recomendações. Todavia, buscou-se demonstrar
neste texto a internalização imediata das diretrizes da Organização Mundial da Saúde nessas
legislações e documentos.

Assim, percebe-se o modo como as diretrizes oriundas do Sistema da Saúde, emanadas


de uma organização que está para além dos Estados nacionais, influenciam diretamente a
produção de legislação dos países, a atuação rotineira de seus agentes e servem como
fundamentação para decisão de tribunais no Brasil ao longo da Pandemia do Covid-19.

20
PORTO ALEGRE/RS. Decretos Municipais. Disponível em: < https://prefeitura.poa.br/coronavirus/decretos>
Acesso em 31 out. 2022.
21
NOTA TÉCNICA MPT | GT COVID-19 – Proteção à saúde dos professores durante a pandemia. Disponível
em: < http://abet-trabalho.org.br/nota-tecnica-mpt-gt-covid-19-protecao-a-saude-dos-professores-durante-a-
pandemia/>. Acesso em 31 out. 2022.
22
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Orientações aos gestores públicos
sobre o Coronavírus. Disponível em: <
http://www1.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/tcers/institucional/esgc/ead/orientacoes_corona>. Acesso em 31 out.
2022.
107

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se viu ao longo do artigo, as organizações especializadas são imprescindíveis para


a resolução de problemas globais. No caso ora demonstrado, as diretrizes da Organização
Mundial da Saúde (OMS) são imprescindíveis para o combate a Pandemia.

Líderes de alguns países, como é o caso do Brasil, negaram a aplicação das diretrizes da
Organização Mundial da Saúde (OMS) em um momento inicial da Pandemia.

Por consequência disso, foi necessário levar ao Poder Judiciário essa situação. Com
destaque nesse ponto, destacou-se a atuação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil (CFOAB), com a propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 672 junto ao Supremo Tribunal Federal.

Referida ação buscava a aplicação de medidas que assegurassem a aplicação do Direito


à Saúde no Brasil. Todavia, a garantia dessa aplicação não seria possível sem um parâmetro
global de controle. Esse parâmetro foi obtido nas diretrizes da Organização Mundial da Saúde
(OMS).

Por essa razão, conclui-se, nos termos do artigo ora apresentado, que as diretrizes da
Organização Mundial da Saúde (OMS) foram imprescindíveis para que fosse garantida a
aplicação do Direito à Saúde no Brasil, tendo como exemplo destacado a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 672 na judicialização dessa questão.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 31 out. 2022.

BRASIL. Decreto nº 10.212/2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário


Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23
de maio de 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/decreto/D10212.htm>. Acesso em 31 out. 2022.

BRASIL. Lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças


públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp101.htm>. Acesso em 31 out. 2022.

BRASIL. Lei complementar nº 173, de 27 de maio de 2020. Estabelece o Programa Federativo


de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), altera a Lei Complementar nº 101,
108

de 4 de maio de 2000, e dá outras providências. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp173.htm>. Acesso em 31 out. 2022.

BRASIL. Lei nº 13.979/2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de


saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto
de 2019. Disponível em: < http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-
de-2020-242078735>. Acesso em 31 out. 2022.

FLAMBÉE DE MALADIE À CORONAVIRUS 2019 (COVID-19).Organisation Mondiale de la


Santé. Disponível em : < https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-
2019>. Acesso em 31 out. 2022.

LIGNES DIRECTRICES POUR LE NOUVEAU CORONAVIRUS (2019-NCOV). Organisation


Mondiale de la Santé. Disponível em : < https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-
coronavirus-2019/technical-guidance>. Acesso em 31 out. 2022..

LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

NOTA TÉCNICA MPT | GT COVID-19 – Proteção à saúde dos professores durante a


pandemia. Disponível em: < http://abet-trabalho.org.br/nota-tecnica-mpt-gt-covid-19-protecao-a-saude-dos-
professores-durante-a-pandemia/>. Acesso em 23 jul. 2020.

ORGANISATION MONDIALE DE LA SANTÉ. Constitution. Disponível em : <


https://www.who.int/fr/about/who-we-are/constitution>. Acesso em 31 out. 2022.

PORTO ALEGRE/RS. Decretos Municipais. Disponível em: <


https://prefeitura.poa.br/coronavirus/decretos> Acesso em 31 out. 2022.

RIO GRANDE DO SUL. Decretos Estaduais. Disponível em: <


https://coronavirus.rs.gov.br/decretos-estaduais> Acesso em 31 out. 2022.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 6.341 / DF. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf . Acesso em 31 out. 2022.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 672 / DF. Disponível em: <


http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf . Acesso em12 out. 2020.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Orientações aos


gestores públicos sobre o Coronavírus. Disponível em: <
http://www1.tce.rs.gov.br/portal/page/portal/tcers/institucional/esgc/ead/orientacoes_corona>. Acesso em 31
out. 2022.

WHO-PRESS CONFERENCES. 27/07/2020 (vídeo). Organisation Mondiale de la Santé.


Disponível em : < https://www.who.int/fr/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>.
Acesso em 31 out. 2022.
109

O ATIVISMO JUDICIAL NOS TEMPOS DA PANDEMIA DE COVID-19: UMA


GARANTIA À EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE OU UMA ATUAÇÃO
ARBITRÁRIA?
Laura Araujo Ribeiro Lino1
Marcelo de Oliveira Riella2

Resumo: O presente artigo visa a analisar a atividade jurisdicional do Poder Judiciário no


contexto da pandemia de Covid-19, a qual assolou de modo deletério mundialmente a
coletividade no ano de 2020. Ante este cenário, o Judiciário mostrou-se tendente a adotaruma
postura proativa, próxima do ativismo judicial, diante de um contexto político atípico e da
carência de estratégias dos demais Poderes para o combate do vírus SARS-CoV2. Apartir disso,
cumpre observar os limites da jurisdição à luz de conceitos clássicos do direito constitucional,
quais sejam a democracia, os direitos fundamentais e a legitimidade; institutos estes que
estreitam as relações entre Direito e política. Enfim, intui-se esmiuçar o sistema de freios e
contrapesos que norteiam o federalismo adotado no Brasil. Além do que, almeja-se
compreender a efetividade da garantia do direito à saúde aos cidadãos, partindo da análise de
casos paradigmáticos ocorridos no período dapandemia de Covid-19, bem como da postura dos
julgadores perante tal circunstância atípica de calamidade pública.
Palavras-chave: Ativismo Judicial; Pandemia de Covid-19; Direito à Saúde; Efetividade.

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, vivemos inseridos em um âmbito social complexo, o qual permaneceem


constante transformação e, sendo o Direito seu reflexo, esse o acompanha através dasalterações
sociais, econômicas, políticas e jurídicas. Desse modo, algumas mudanças vêmpermeando o
Direito, diante de novos enfrentamentos da realidade atual, visto que há problemas que exigem
soluções distintas das que costumeiramente são prestadas.
Nesse sentido, o Poder Judiciário, em um contexto de crescente judicialização das
demandas políticas e sociais, tem adotado uma postura proativa, atuando de modo ativo a partir
da inação dos demais Poderes (Executivo e Legislativo). Em especial, constata- se, diante do
cenário de flagrante disseminação do vírus do SARS-CoV2, que a atuação protagonista do

1
Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Bolsista de
Iniciação Científica, BPA, e estagiária de direito. E-mail: laura.lino01@edu.pucrs.br.
2
Graduado em Direito pela PUCRS. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de
Direito Processual Civil. Advogado inscrito na OAB/RS sob o nº 65.682. Membro da Comissão Especial do Direito
à Saúde da OAB/RS. E-mail: riellamarcelo@gmail.com.
110

Poder Judiciário, que dispôs de proatividade a partir da adoção de decisões acentuadas,


mostrando-se, assim, apto a atuar com uma conduta protagonista e a garantir a defesa dos
direitos fundamentais.
Diante desse contexto, vislumbra-se que, a partir dessa conduta do Judiciário, surgem
importantes e divergentes posicionamentos por parte da doutrina tendentes a rechaçar ou a
sustentar tal atuação ativa. Assim, há o entendimento de que essa tendênciaviolaria o sistema
de freios e contrapesos, bem como os preceitos fundamentais preconizados pela Constituição
Federal de 1988. Ao revés disso, há outra perspectiva deque a adoção dessa postura ativa do
Judiciário seria indispensável para garantir a efetivação de direitos fundamentais,
especialmente, ante circunstâncias atípicas, tal comose observou durante a pandemia de Covid-
19.

2. O ATIVISMO JUDICIAL: SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS

No Brasil, o fenômeno do ativismo judicial apresenta-se como tema de intenso debate


para a doutrina e para a jurisprudência, visto que envolve uma “ruptura” na teoriada separação
dos poderes a partir da adoção de uma postura proativa do Poder Judiciário.Essa circunstância
pode decorrer da inação do legislador diante de temas polêmicos, da falta de efetivação de
direitos fundamentais, bem como da ausência de um planejamento estratégico para o exercício
das funções típicas e atípicas dos demais Poderes (Executivo e Legislativo), que perante o
contexto histórico, político ou social possibilita aos juízes à adoção de uma postura
discricionária.

Nesse sentido, a teoria da separação dos poderes, também denominada de sistemade


freios e contrapesos, desenvolvida por Montesquieu, fundada em subsídios teóricos dos
pensadores John Locke e Aristóteles, possuía, em sua origem, o objetivo de descentralizar o
poder estatal, que comumente era concentrado nas “mãos” de um soberano. A partir disso,
Montesquieu almejou, com essa teoria, evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos
indivíduos.3

A separação dos poderes, positivada no artigo 2º da Constituição Federal de 1988 e

3
Nesse sentido: RODRIGUES, Ana Luíza de Morais. Ativismo judicial causas e fundamentos. RevistaJurídica
TJDFT. p. 142. Apud MONTESQUIEU, Charles Secondat. De l’esprit des lois. Paris: Éditions Gallimard,
1995. Disponível em: https://revistajuridica.tjdft.jus.br/index.php/rdj/article/view/44/32. Acesso em 19 out.
2022.
111

prevista com status de cláusula pétrea no artigo 60, § 4º, III, do texto constitucional,
estabeleceu um controle mútuo entre os Poderes, visto que cada um possuía certa autonomia
para exercer determinada função, mediante a possibilidade de intervenção nascompetências dos
demais poderes, visando a conter eventuais abusos destes, de modo a trazer maior equilíbrio
para a respectiva atuação de cada um deles.4 Assim, o contrapesoestaria no fato de que todos
os Poderes possuem funções distintas, e ainda com a prerrogativa de intervir nas competências
dos demais, almejando, desta forma, estabelecer a atuação independente e harmônica aos
Poderes.5

Desse modo, a adoção de uma postura ativa e criativa do Poder Judiciário não traza baliza
liberativa para que os julgadores possam ter uma discricionaridade absoluta para decidir
conforme suas próprias convicções valorativas sem qualquer pretensão de atingir uma verdade
ou de se atingir a uma resposta certa. Sobre isso, cumpre trazer à baila o entendimento do
filósofo Dworkin, o qual aduz que o juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis,
de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventarnovos direitos retroativamente”.6

Nesse sentido, há o posicionamento favorável à adoção do ativismo judicial, ao


argumento de que, a partir desta postura ativa, seria possível atingir a efetivação dedireitos
fundamentais e a interpretação das normas constitucionais para o alcance de suafinalidade.
Sobre isso, o Ministro Luís Roberto Barroso tece comentários sobre estefenômeno jurídico
e sobre a atuação do julgador; esse entende que o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de
modo específico e proativo de interpretar a constituição, expandindo o seu sentido e alcance”.7
Ao revés desta posição, Lênio Streck e José Luiz Bolzan de Morais aduzem criticamente que o
ativismo judicial é uma postura equivalente a um decisionismo ou uma discricionariedade dos
juízes, que – valendo-se do contexto crescente de judicialização das demandas políticas e
sociais – acabariam decidindo à revelia da lei e do texto constitucional”.8

4
DE OLIVEIRA, Amanda Carvalho. O ativismo judicial em tempos de pandemia: uma análise do fenômeno
acerca do princípio da separação dos poderes. p.6. Jun. 2022. Disponível em:
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o-ativismo-judicial-em-tempos-de- pandemia-uma-
analise-do-fenomeno-acerca-do-principio-da-separacao-dos-poderes/. Acesso em: 20 out.2022.
5
RODRIGUES, Ana Luíza de Morais. Ativismo judicial causas e fundamentos. Revista Jurídica TJDFT. p. 142.
Apud MONTESQUIEU, Charles Secondat. De l’esprit des lois. Paris: Éditions Gallimard, 1995. Disponível em:
https://revistajuridica.tjdft.jus.br/index.php/rdj/article/view/44/32. Acesso em 19 out. 2022.
6
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 127.
7
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (SYN)THESIS, v.
5, n. 1, p. 23-32, 2012. B. p. 6.
8
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro: LumenJúris, 2008,
p. 138.
112

Diante do comentado cenário atípico, verifica-se, porém, que, frente à inércia do Poder
Executivo - que atuou desprovido de efetividade para administrar os interesses públicos e para
elaborar planos com o objetivo de implementação desses - e da morosidade do Poder
Legislativo na elaboração de leis, o Poder Judiciário tem adotado esse comportamento !ativo”
no sentido de tomar decisões que propiciem a concretização de direitos fundamentais, a partir
de uma postura amparada por sua função precípua de zelar pelo efetivo cumprimento dos
enunciados constitucionais.9

3. A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19

O nefasto contexto da pandemia de Covid-19 desencadeou a adoção de uma postura


ativa ao Poder Judiciário, objetivando implementar medidas com o intuito de combater o vírus
do SARS-CoV2, o qual assolou em âmbito mundial a coletividade.
Diante desse contexto pandêmico, relevantes questões, especialmente, do ponto de vista
político, social ou moral estavam sendo decididas em caráter final pelo Poder Judiciário, o que
acarretou a transferência de poderes para este, em detrimento dos demais. Isso ocorreu devido
a inércia do legislador diante de situações polêmicas, bem como a ausência de efetiva liderança
do Poder Executivo. Comumente, esse fenômeno é denominado de entrincheiramento
constitucional de direito, ou seja, a ausência de uma postura ativa dos demais Poderes para
efetivar direitos fundamentais e para implementar,diante dessa inação, medidas estratégicas que
originalmente eram de competência destesPoderes.10
Durante esse período, as situações de calamidade pública combinadas com a ausência
de políticas públicas efetivas, bem como da carência de uma estratégia de combate ao Covid-
19 por parte dos demais Poderes propiciaram o contexto favorável à atividade proativa do Poder
Judiciário, possibilitando que este atuasse de modo a fornecerrespostas positivas para muitas
demandas sociais, consequentemente, adotando uma postura tendente ao ativismo judicial.
Assim, especialmente nesse momento pernicioso, enriquece-se o debate doutrinário no que
tange ao fenômeno do ativismo judicial no Brasil, visto que a polêmica traz à tona dois pontos
fundamentais para um Estado Constitucional de Direito, quais sejam, a democracia e a

9
COSTA, Elenild de Góes, MOURA, Josilene Botelho. Ativismo judicial e judicialização da saúde:impactos da
pandemia de covid-19 no judiciário brasileiro. Revista Direito. UnB | janeiro – abril, 2021,V. 05, N.2, p. 93-121.
10
PELEJA JR, Antônio Veloso. Ativismo Judicial em Tempos de COVID-19. Disponível em:
http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/downloads/Imprensa/NoticiaImprensa/file/24%20-
%20ATIVISMO%20JUDICIAL%20EM%20TEMPOS%20DE%20COVID.pdf. Acesso em: 21 out. 2022.
113

legitimidade.
Desse modo, sob a ótica tendente a rechaçar tal postura, parte da doutrina suscitou
críticas, no sentido de que essa atividade traria insegurança jurídica aos cidadãos,
desnaturalizaria a função típica dos Poderes, além do que se mostraria tendente a ameaçardireitos
fundamentais e valores democráticos.11 A contrário sensu, percebe-se a posição doutrinária que
sustenta de modo favorável tal fenômeno jurídico, observa-o como a atividade de suprir lacunas
deixadas pelo legislador, bem como atesta a participação mais ampla e intensa do Poder
Judiciário na concretização dos valores, fins e direitos constitucionais, além do mais entende
que, com isso, se busca a efetivação de políticas públicas.12
Entretanto, entende-se que é essencial atingir um equilíbrio na adoção dessa conduta
proativa do Poder Judiciário, de modo que este não perfaça comportamento ativista tendente a
suprimir a política, o governo e a função do legislativo, sucedendo a uma inversão de papéis
entre os demais Poderes e as suas competências. Todavia, o PoderJudiciário deve atuar em busca
da efetivação de políticas públicas por meio de decisões que estejam em harmonia com o
sistema democrático. Além disso, é essencial que haja maior diálogo entre os poderes da
República, objetivando um esforço conjunto no sentidode minimizar impactos nos momentos de
crise, para que não ocorram lapsos no exercíciodas funções dos três Poderes, tal qual se verificou
no momento da epidemia de Covid- 19.13
Nestes termos, as decisões judiciais com cunho político devem ser pautadas em uma
atuação equilibrada dentre aquelas incumbências típicas e atípicas concedidas com a
redemocratização. É fundamental que a ingerência do Judiciário nas funções dos demaisPoderes
não substitua a atuação de gestor público do Executivo, de modo a interferir no mérito dos atos
da administração pública, bem como de ferir os princípios da legalidade e da separação dos
poderes. Logo, para preservar a atuação harmônica entre estes é indispensável que as medidas
direcionadas a amenizar o abalo econômico e as demais mazelas sociais advindas de crises
partam do Governo a partir de estudos técnicos e científicos, e não do Judiciário.

Enfim, o excepcional período da crise sanitária decorrente da Covid-19 legitimou a

11
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF. 1. Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2014.
12
OLIVEIRA, Ramom Tácio de. Ativismo Judicial – Multiplicidade de sentidos. 1. Ed. Curitiba: Prismas, 2015.
13
TRAJANO, Maynara Cavalcante Trajano. COSTA, Alexandre Victor Murata. O direito à saúde emtempos de
pandemia e o ativismo judicial. Revista ibero-americana de Humanidades, Ciências e Educação. São Paulo,
v.7.n.12.dez. 2021. ISSN - 2675 – 3375. p. 1362-1374.
114

atuação ativista do Poder Judiciário14, que almejou fornecer a tutela estatal necessária edevida
aos cidadãos brasileiros.

4. EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ANÁLISE DE CASOS


PARADIGMÁTICOS

Diante do cenário ora exposto, constata-se que os brasileiros vivenciaram, em 2020, um


momento demasiadamente atípico, pautado por períodos de isolamento social e de restrições,
até mesmo no âmbito laboral, que desencadearam uma mudança sistemática na rotina dos
cidadãos e de toda a coletividade, assolada pela pandemia de Covid-19.

O Poder Judiciário, diante da omissão dos demais Poderes públicos durante o contexto
de constante expansão do vírus SARS-CoV2, atuou, muitas vezes, visando a salvaguardar
direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos. Nesse escopo, percebe-se que a
tomada de decisões, naquele momento, configurava não só a adoção deum posicionamento ativo
por parte dos julgadores, mas exprimiam importante conotação,ao desencadear consequências
práticas relevantes e decisivas à vida dos brasileiros, especialmente, devido aos impactos à
saúde decorrentes dessa postura.15

Durante esse período, houve a interferência das Cortes Supremas em decisões oriundas
do Executivo que objetivavam combater a crise da saúde pública. Sobre isso, vislumbra-se o
simbólico entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, assentado a partir do artigo
3º da Lei 13.979/2020, interpretado nos termos da Constituição Federal de 1988, de que a
União poderia legislar sobre medidas de enfrentamento do estado de emergência, decorrente da
pandemia de Covid-19. Todavia, o pleno exercício desta competência devia resguardar a
autonomia dos outros entes.16

Entretanto, ainda que extremamente significativa e representativa, a decisão não possuía


teor “transformador” sobre o direito fundamental à saúde, visto que a Constituição Federal de
1988 prevê que a competência sobre a temática, no plano administrativo, é comum entre os

14
Sobre essa atuação proativa referimo-nos àquelas adotadas em consonância à Carta Magna, implementadas em
momentos de inação dos demais Poderes e, logo, realizadas com o intuito de tutelar os direitos fundamentais e de
preservar os valores sociais inerentes aos cidadãos brasileiros.
15
PELEJA JR, Antônio Veloso. Ativismo Judicial em Tempos de COVID-19. Disponível em:
http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/downloads/Imprensa/NoticiaImprensa/file/24%20-
%20ATIVISMO%20JUDICIAL%20EM%20TEMPOS%20DE%20COVID.pdf. Acesso em: 21 out. 2022.
16
DE OLIVEIRA, Amanda Carvalho. O ativismo judicial em tempos de pandemia: uma análise do fenômeno
acerca do princípio da separação dos poderes. p. 11-13.
115

entes federativos e, no plano legislativo, é concorrente,conferindo a responsabilidade de editar


normas gerais à União e de legislar sobre matérias específicas e locais aos entes descentralizados
(Estados, municípios e o DF).17

A relevância desta decisão está centrada no ponto da percepção, por parte do Judiciário,
de que diante de um cenário de constantes tenções políticas reafirmou a possibilidade de que os
Estados, o Distrito Federal e os municípios adotassem, no plano legislativo e administrativo,
medidas para o combate à epidemia de Covid-19.18

Ademais, a partir do deferimento das Arguições de Descumprimento de Preceito


Fundamental (ADPF) nº 668 e 669, ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
Metalúrgicos, identifica-se a postura ativista do Poder Judiciário que atuoucom o objetivo de
concretizar direitos fundamentais em consonância ao que preconiza a Constituição Federal de
1988. As ADPFs (nº 668 e 669)19 possuíam o objetivo de vedar a produção e circulação de
campanhas do Governo que incentivavam a retomada das atividades plenas durante o contexto
da pandemia de Covid-19 com a promoção do slogan “O Brasil não pode parar”.20 O ministro
Luís Roberto Barroso aduziu em seu voto que acampanha promovida pelo Governo federal não
teria viés informativo ou educacional, mas sim incentivava a retomada das atividades e a
produção de informações que menosprezariam a existência de um cenário pandêmico,
minimizando os danos do vírus SARS-CoV2, fato que iria de encontro com as recomendações
sanitárias da OrganizaçãoMundial da Saúde e com o artigo 37, § 1º da Constituição Federal de
1988.21

Percebe-se que a atuação do Poder Judiciário, neste caso, mostrou-se demasiadamente


acertada, uma vez que atuou com o objetivo de salvaguardar a saúde ea vida da população

17
SARLET Ingo Wolfgang. O STF e os direitos fundamentais na crise da Covid-19 — uma retrospectiva.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-15/direitos-fundamentais-stf-direitos- fundamentais-covid-
19. Acesso em: 22 out. 2022.
18
DE OLIVEIRA, Amanda Carvalho. O ativismo judicial em tempos de pandemia: uma análise do fenômeno
acerca do princípio da separação dos poderes. p. 10-13.
19
BRASIL. Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 668 e 669. Brasília: Supremo
Tribunal Federal, 2020
20
Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 668 e 669/DF: “Assim, ante a ausência de
demonstração concreta pelas requerentes da existência de atos direcionados à veiculação oficial pelo governo
federal ou pela Presidência da República de campanha publicitária denominada “O Brasil não pode parar”, as
ADPFs 668/DF e 669/DF não merecem ser conhecidas, por falta de apresentação de documentação apta à
comprovação da existência do ato do poder público nelas apontado como lesivo a preceitos fundamentais.”
21
DE OLIVEIRA, Amanda Carvalho. O ativismo judicial em tempos de pandemia: uma análise do fenômeno
acerca do princípio da separação dos poderes. p. 12-13.
116

brasileira. Sobre isso, ressalta-se que a campanha publicitaria promovida pelo Governo Federal
traria graves ameaças à vida e à saúde dos cidadãos22; conforme o entendimento do juiz de
direito Antônio Veloso Peleja Júnior23, essa decisão do Supremo Tribunal Federal invocou a
proteção do direito à vida, à saúde e à informaçãoda população, agindo, assim, em conformidade
ao que determina o texto constitucional no artigo 5º, caput, XIV e XXXIII, artigo 6º e artigo
196, bem como a incidência dos princípios da prevenção e da precaução, nos termos do artigo
225 da Constituição Federalde 1988, os quais orientam que “na dúvida quanto à adoção de uma
medida sanitária, deve prevalecer a escolha que ofereça proteção mais ampla à saúde”.24

Por conseguinte, é necessário que a atuação protagonista do julgador seja sempre


pautada na imparcialidade e na forma técnica, de modo que a decisão judicial seja
adequadamente fundamentada. Logo, o ativismo deve estar lastreado na busca pela efetivação
de políticas públicas por meio de decisões judiciais em harmonia com o sistema democrático,
respeitando, sempre, os limites entre o Direito e a política.

5. CONCLUSÃO

Em suma, a crise sanitária decorrente da Covid-19 não gerou somente um estadode


calamidade pública, visto que trouxe consequências práticas à saúde e à vida dos brasileiros,
bem como reflexos diretos na economia e nos padrões comportamentais de toda a sociedade, o
que impulsionou uma atitude proativa de todos os cidadãos e, sobretudo, das autoridades
públicas.

Vislumbra-se, diante da expansão da judicialização da política e a politização das


decisões judiciais, caracterizando assim o ativismo judicial, que a conduta protagonista do
Poder Judiciário ocorreu devido à ausência de uma liderança do Poder Executivo, bem como
diante da completa morosidade do Poder Legislativo para a implementação de leis.Desse modo,
as medidas adotadas durante a crise da pandemia de Covid-19, tal como a edição de atos
normativos, mostravam-se insuficientes para sanar as necessidades sociaisem tempo condizente

22
Supremo Tribunal Federal ADPF 668 e 669 - Fonte:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=752453503&prcID=5884084&ad=s.
Acesso em: 19 out. 2022.
23
PELEJA JR, Antônio Veloso. Ativismo Judicial em Tempos de COVID-19. Disponível em:
http://www.tjmt.jus.br/intranet.arq/downloads/Imprensa/NoticiaImprensa/file/24%20-
%20ATIVISMO%20JUDICIAL%20EM%20TEMPOS%20DE%20COVID.pdf. Acesso em: 21 out. 2022.
24
Ibid.
117

com o estado de calamidade pública que se instaurava. A partir disso, o Poder Judiciário, nesses
momentos, adotou uma postura ativa e protagonista, visando a garantir direitos e a salvaguardar
valores e garantias constitucionais, almejando aplicar diretamente a Constituição Federal de
1988 ante este cenário.

Nesse sentido, a atividade do Poder Judiciário, que exerce atribuições com o deverde zelar
pela efetividade dos enunciados dispostos na Constituição Federal de 1988, tais como o direito
à vida, à saúde, à segurança, à educação, vem atuando proativamente, através do ativismo
judicial, com o intuito de reivindicar dos demais Poderes da República a responsabilidade no
sentido de efetivar tais garantias. Entretanto, verifica-seque essa atividade ativa não é bem aceita
pelos demais poderes, por denotar superioridadeante aos demais entes, igualmente instituídos
pelo poder constituinte originário.25

Por conseguinte, percebe-se que a judicialização da saúde tem se mostrado, emcertos


pontos, imprópria e exacerbada a partir da intervenção judicial, sobretudo no quetange à afronta
da autonomia administrativa do Estado, destinando recursos oriundos às políticas públicas
voltadas a promoção da saúde coletiva em detrimento de casos isolados.Por fim, percebe-se que
a atuação do Poder Judiciário como “poder político”, nos momentos de inação dos demais
Poderes, deve ser exercida com parcimônia, ainda quesob o pretexto de legitimar a efetividade
da prestação jurisdicional e de garantir direitosfundamentais. Enfim, o Poder Judiciário vem
adotando tal postura com o fito de representar os anseios sociais, em que pese haja condutas
que extrapolam esta dinâmica e que de modo acertado são altamente criticadas, quando
implementadas à luz dos preceitos fundamentais da Carta Magna e com viés de preservar a
harmonia entre os Poderes, fomentam a defesa de princípios, em especial o princípio da
dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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THESIS, v. 5, n. 1, p. 23-32, 2012. B.

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito àsaúde,


fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial.

25
COSTA, Elenild de Góes, MOURA, Josilene Botelho. Ativismo judicial e judicialização da saúde: impactos da
pandemia de covid-19 no judiciário brasileiro. Revista Direito. UnB | janeiro – abril, 2021,V. 05, N.2 | ISSN 2357-
8009| p. 93-121.
118

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de Janeiro: Forense, 2014.

COSTA, Elenild de Góes, MOURA, Josilene Botelho. Ativismo judicial e judicialização da


saúde: impactos da pandemia de covid-19 no judiciário brasileiro.Revista Direito. UnB | janeiro
– abril, 2021, V. 05, n.2, p. 93-121.

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Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/o- ativismo-
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119

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e pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF – PROBIC).

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120

A PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL E A COMPULSORIEDADE DE


VACINAÇÃO: A BUSCA POR PROPORCIONALIDADE EM TEMPOS DE CRISE

Marcelo de Oliveira Riella1


Micaela Porto Filchtiner Linke2

Resumo: Este artigo debruça-se sobre os impactos da pandemia da COVID-19 no Brasil, com
especial ênfase à compulsoriedade de vacinação e a busca por proporcionalidade em tempos de
crise. Com isso, objetivou-se analisar a obrigatoriedade de vacinação contra a COVID-19 no
Brasil à luz da crise sanitária enfrentada desde março de 2020 no país. A partir da análise das
Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587 julgadas em dezembro de 2020 pelo
Supremo Tribunal Federal do Brasil, observou-se a prevalência do caráter coletivo de direito à
saúde, que – sem admitir qualquer forma de violência – impõe a vacinação como dever social.
Em contrapartida, constatou-se a necessidade de exame de proporcionalidade, inclusive e
especialmente em tempos de crise, a fim de que não haja a imposição de medidas
desproporcionais, que culminem na violação de demais direitos fundamentais, na consecução
de objetivos constitucionais.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais Sociais; Direito dos Desastres; Saúde pública;


Macrovisão.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo debruça-se sobre os impactos da pandemia da COVID-19 no Brasil,
com especial ênfase à compulsoriedade de vacinação e à busca por proporcionalidade em
tempos de crise. A temática é atual face às controvérsias e aos dilemas que pautaram o cenário
de desastre pandêmico instaurado no país em março de 2020, reverberando pelos anos seguintes
e apontando para a necessidade de exame crítico das medidas impostas.

1
Graduado em Direito pela PUCRS. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Academia Brasileira de
Direito Processual Civil. Advogado inscrito na OAB/RS sob o nº 65.682. Membro da Comissão Especial do Direito
à Saúde da OAB/RS. E-mail: riellamarcelo@gmail.com.
2
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCRS em Teoria Geral da Jurisdição e Processo, bolsista
CAPES/PROEX. Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 123.411. E-mail: linke.micaela@gmail.com.
121

Desse modo, o objetivo central da pesquisa foi analisar a proporcionalidade da


compulsoriedade de vacinação como medida de promoção de saúde pública face à crise
instaurada pela pandemia da COVID-19. Para tanto, utilizou-se de método de abordagem
dedutivo, partindo-se de premissas gerais acerca dos pontos que compõem a problemática
tratada, por meio – essencialmente - de revisão bibliográfica da doutrina sobre o tema e de
análise documental das decisões do Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587.

No intuito de alcançar o objetivo proposto, inicialmente discorreu-se sobre a pandemia


da COVID-19, seu surgimento e sua caracterização como um desastre. Em sequência,
examinou-se a compulsoriedade de vacinação declarada constitucional pelas decisões do
Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587, para,
por fim, analisar criticamente a necessária busca por proporcionalidade em tempos de crise.

2. TEMPOS DE CRISE: O DESASTRE DA PANDEMIA DA COVID-19 NO BRASIL

Em um século marcado pela evolução tecnológica e pela globalização, as recorrentes


descobertas de novos agentes infecciosos, a perturbação do meio ambiente, a ausência de
limites de fronteiras e a circulação de pessoas e mercadorias em ritmo cada vez mais acelerado
pelo mundo apontavam para a possibilidade cada vez mais eminente de uma pandemia e da
necessidade de utilização da tecnologia para combatê-la.3 Inobstante, a população em geral
surpreendeu-se com a magnitude dos eventos que sucederam a emergência de uma infecção
respiratória contagiosa em novembro de 2019, na cidade de Wuhan, a maior área metropolitana
da província de Hubei, na China, sendo reportada, em 31 de dezembro de 2019 – pelas
autoridades chinesas –, à Organização Mundial da Saúde - OMS - a identificação de 44
pacientes com pneumonia causada por agente não identificado.4

3
GRAHAM, Barney; SULLIVAN, Nancy. Emerging viral diseases from a vaccinology perspective: preparing for
the next pandemic. In: Nature Immunology. Vol. 19. Berlin: Springer Nature, 2018. pp. 20–28.
4
CASCELLA, Marco; RAJNIK, Michael; CUORNO, Arturo; DULEBOHN, Scott; DI NAPOLI, Raffaela.
Features, Evaluation and Treatment Coronavirus (COVID-19). Bethesda: StatPearls Publishing LLC, 2020.
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK554776/ Acesso em: 07 Set. 2022.
122

O primeiro relatório oficial da OMS em 21 de janeiro de 2020 anunciou a existência de


um novo coronavírus (2019-nCoV)5 e, no dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da
Saúde declarou a existência de uma pandemia com relação a doença denominada COVID-19,
já com 118.000 casos em 114 países e com 4.291 mortes.6 O Brasil – que já contava com casos
importados desde fevereiro – pareceu demorar a reagir diante da crise que se apresentava à
população mundial.

As orientações da OMS7 –face à promulgação do Regulamento Sanitário Internacional8,


acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005,
por meio do Decreto nº 10.212/20209, vinculantes no Brasil segundo Valerio Mazzuoli10 - foram
incorporadas por governos estaduais e municipais ao longo do território nacional. Todavia, em
consideração à extensão territorial do Brasil e as desigualdades sociais que se estendem em
todas as localidades, diferentes lugares foram afetados de maneiras distintas, bem como as
divergências e as tensões entre e dentro dos braços estatais proporcionaram reações
dissemelhantes no Brasil.

O cenário apontou para a caracterização do ocorrido como um desastre à luz do conceito


legal compreendido no disposto no artigo 2º, inciso II, do Decreto nº 7.257 de 2010, como sendo
o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema
vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos
econômicos e sociais”11-12, o que é bastante relevante para a análise da situação à luz da crise
instaurada. Frente à global necessidade imediata de frear a disseminação da doença,

5
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Novel Coronavirus (2019-nCoV) - SITUATION REPORT – 1 -21
JANUARY 2020. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-
reports/20200121-sitrep-1-2019-ncov.pdf?sfvrsn=20a99c10_4. Acesso em 28 Set. 2022.
6
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. WHO Director-General's opening remarks at the media briefing on
COVID-19. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-
the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020. Acesso em: 13 Set. 2022.
7
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Critical preparedness, readiness and response actions for COVID-
19. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail/critical-preparedness-readiness-and-response-
actions-for-covid-19. Acesso em: 05 Set. 2022.
8
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Regulamento Sanitário Internacional. 3 ed. 2016. Disponível em:
https://www.who.int/ihr/publications/9789241580496/en/. Acesso em: 18 Set. 2020.
9
BRASIL. Decreto nº 10.212/2020. Brasília: Presidência da República, 2020.
10
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil? Disponível em:
https://www.oab.org.br/noticia/58018/artigo-as-determinacoes-da-oms-sao-vinculantes-ao-brasil-porvalerio-de-
oliveira-mazzuoli. Acesso em: 19 set. 2022.
11
BRASIL. Decreto nº 7.257/2010. Brasília: Presidência da República, 2010.
12
ZANETI JÚNIOR, Hermes. Direito Processual dos Desastres. Palestra online ministrada no Grupo de Estudos
Araken de Assis (GEAK), coordenado pela Professora Mariângela Guerreiro Milhoranza da Rocha, em 22 de maio
de 2020.
123

implementaram-se medidas de distanciamento social e iniciou-se a mobilização, inclusive no


país, de diversos laboratórios farmacêuticos para elaborar uma vacina eficaz contra o vírus13.

Isso porque, diante da ausência de remédio efetivo no tratamento e na cura da doença e


da preferência por métodos profiláticos a fim de evitar a sobrecarga do atendimento médico-
hospitalar, o desenvolvimento de uma vacina demonstrou-se como medida essencial para a
solução efetiva da pandemia instaurada e para a preservação da saúde pública. Dessa maneira,
já no final do ano de 2020, em um recorde da humanidade, já se tinham alguns laboratórios
farmacêuticos produzindo vacinas com graus significativos de eficácia: nos Estados Unidos da
América surgiu a Pfizer da BioNtech e a Moderna de Institutos Nacionais de Saúde do país; no
Reino Unido, a Universidade de Oxford desenvolveu a AstraZeneca; na China tem-se a
Sinovac-Coronavac e na Rússia a Sputnik V do Instituto Gamaleya.

Na conclusão dos testes, órgãos de saúde de diversos países iniciaram avaliações para
aprovar seu uso público e difundido como medida de contenção da crise e de remediação do
desastre da pandemia da COVID-19. No Brasil - país que já é conhecido globalmente pelo seu
Programa Nacional de Imunizações14, existente há mais de 40 anos15, sendo um exemplo
mundial - a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan, em conjunto com o
Ministério da Saúde, trabalharam a fim de esquematizar a produção e a distribuição nacional
de vacina para a enfermidade por meio do Sistema Único de Saúde, tendo em vista que a Lei nº
13.979/202016, promulgada no início do cenário pandêmico, previa a obrigatoriedade da
vacinação e de outras medidas profiláticas adotadas por autoridades no âmbito de suas
competências.

3. A COMPULSORIEDADE DE VACINAÇÃO

Em meio ao movimento de desenvolvimento e de distribuição de vacinação, haja vista


as circunstâncias céleres em que este progrediu, cresceram os debates sobre a
constitucionalidade da vacinação obrigatória, movidos pelo ceticismo disseminado sobre as

13
LI, Yingzhu; TENCHOV, Rumiana; SMOOT, Jeffrey; LIU, Cynthia; WATKINS, Steven; ZHOU, Qiongqiong.
A Comprehensive Review of the Global Efforts on COVID-19 Vaccine Development. In: ACS Central Science,
2021, 7, 4, pp. 512-533.
14
Sobre o Programa Nacional de Imunizações, vide: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-
e-programas/programa-nacional-de-imunizacoes-vacinacao
15
BRASIL. Lei nº 6.259. Brasília: Congresso Nacional, 1975.
16
BRASIL. Lei nº 13.979. Brasília: Congresso Nacional, 2020.
124

vacinas e sobre a constante mudança de informações e incertezas sobre a doença. Com isso,
ajuizaram-se duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nº 6586 e nº 658717, e um Agravo
em Recurso Extraordinário, nº 1267879.18

As Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587, ajuizadas pelo Partido


Democrático Brasileiro e pelo Partido Trabalhista Brasileiro respectivamente, versaram sobre
a compulsoriedade de vacinação para a COVID-19 prevista na lei nº 13.979 de 202019, de
enfrentamento à emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus responsável pelo surto de 2019. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal julgou-
as parcialmente procedentes em dezembro de 2020 à luz do direito fundamental à saúde
positivado no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil20, fixando tese de
interpretação conforme a constituição no sentido de que se permite a vacinação compulsória
com a imposição de medidas indiretas para o seu cumprimento - a qual não se confunde com a
vacinação forçada, haja vista que está garantido o direito de consentimento – desde que
disponível gratuita e universalmente, acompanhada de ampla informação, respeitada a
dignidade humana e os direitos fundamentais e de acordo com critérios de razoabilidade e
proporcionalidade, sendo a União, os Estados e os Municípios competentes para a sua
implementação dentro de suas respectivas esferas.21

O julgamento conjunto de ambas as ações diretas de inconstitucionalidade embasou-se


dentre outros fundamentos levantados na existência já consolidada de vacinação obrigatória no
Brasil no Plano Nacional de Imunização desde a lei nº 6.259 de 1975 22, é legítima desde que
respeitados os direitos à intangibilidade, à inviolabilidade e à integridade do corpo humano23,
pois há no direito à saúde viés coletivo, sendo a vacinação ato de cidadania. Ainda, os votos
pontuaram a importância da vacinação para a obtenção de imunidade de rebanho, tão desejada
no que tange à COVID-19 e à promoção da saúde pública nos moldes constitucionais.

17
BRASIL. Acórdão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2020.
18
BRASIL. Acórdão em Repercussão Geral do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.267.879/SP. Brasília:
Supremo Tribunal Federal, 2020.
19
BRASIL. Lei nº 13.979. Brasília: Congresso Nacional, 2020.
20
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1988.
21
BRASIL. Acórdão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2020. p. 3.
22
BRASIL. Lei nº 6.259. Brasília: Congresso Nacional, 1975.
23
BRASIL. Acórdão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2020. p. 17.
125

No que tange ao direito fundamental à saúde, este restou positivado como direito
fundamental social explícito na Constituição da República Federativa do Brasil, em critérios
gerais e específicos, sendo estabelecido pelo diploma máximo do ordenamento jurídico pátrio
como dever do Estado a prestação do serviço de saúde de maneira universal e gratuita aos que
necessitarem a fim de assegurar o direito à vida e a dignidade humana. 24 Ainda, o direito à
saúde opera como direito de defesa com posições subjetivas negativas “quando se trata da
possibilidade de impugnar medidas que venham a afetar a saúde de alguém, ou menos interferir
nos níveis de proteção da saúde já concretizados pelo Estado”25 e como direito positivo quando
exige prestações estatais ou medidas de caráter normativo26, sendo princípio basilar para a
ordenação social.27

Logo, é inquestionável que o direito à saúde está intrinsecamente vinculado ao direito


à vida em sentido amplo e à inviolabilidade da integridade física (corporal e psicoemocional)
das pessoas humanas28, ocorre que sua titularidade simultaneamente individual e
transindividual29 combinada com o prisma prestacional30 do direito à saúde embasa medidas
como a obrigatoriedade de vacinação. Razões pelas quais, concluiu-se como justa e
proporcional a determinação de vacinação compulsória – por meio de restrições de acesso a
determinados lugares e de exercício de certas atividades, por exemplo - para que a crise sanitária
instalada no país fosse superada tão logo possível, sendo medida – portanto – adequada,
proporcional e necessária para a concretização do direito à saúde à luz do Supremo Tribunal
Federal.

24
VASCONCELOS, Fernando A. de; BRANDÃO, Fernanda H. de V. Direito à Saúde, Desenvolvimento e
Cidadania no Estado Democrático de Direito. In: BASSO, Ana Paula; et all. Direito e Desenvolvimento
Sustentável: Desafios e Perspectivas. Curitiba: Editora Juruá, 2013. pp. 239-251.
25
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017. p. 355.
26
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017. p. 356.
27
REINHARDT, Jörn. Conflitos de direitos fundamentais entre atores privados: “efeitos horizontais indiretos” e
pressupostos de proteção de direitos fundamentais. In: Direitos Fundamentais & Justiça. Belo Horizonte, ano 13,
n. 41, jul./dez. 2019. pp. 59-91. p. 86.
28
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017. p. 631.
29
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 226.
30
Acerca do objetivo final ao qual se vinculam os direitos sociais prestacionais, indica-se: SARLET. Ingo
Wolfgang. A Dignidade (da Pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10. ed.
rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.p. 135-136.
126

4. A BUSCA POR PROPORCIONALIDADE

À luz do delineado sobre o direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro e do


analisado no acórdão da vacinação compulsória no Brasil, Ações Diretas de
Inconstitucionalidade nº 6.586 e 6.58731, observa-se que a questão ilustra a complexidade dos
desafios impostos pela pandemia da COVID-19 ao país e a importância da luta pela eficácia
dos valores constitucionais. Ponto em que adentra a relevância de adequado juízo de
proporcionalidade frente à imposição de medidas profiláticas obrigatórias como a vacinação.

O princípio da proporcionalidade surge no conflito entre garantias fundamentais


privadas e públicas como critério hermenêutico na criação, aplicação e interpretação
normativa.32 No ordenamento jurídico brasileiro, consolidou-se como princípio
constitucionalmente implícito, vinculado explicitamente ao direito administrativo no caput do
artigo 2º da Lei nº 9.78433, podendo ser definido como vedação ao excesso e,
concomitantemente a proibição de insuficiência ou ausência de atuação, apontando que, “o
Estado não deve agir com demasia, tampouco de modo insuficiente, na consecução de seus
objetivos”34, ou seja, o administrador público precisa sacrificar o mínimo para preservar o
máximo.35

Assim, a avaliação de proporcionalidade perpassa a análise de adequação – de sua


conveniência para a obtenção do objetivo almejado -, de necessidade – da inexistência de outro
caminho menos oneroso ou idôneo para o alcance do mesmo fim – e da proporcionalidade em
sentido estrito – das consequências negativas e positivas, de modo que estas não sejam
superadas por aquelas, somado a exame de legitimidade, da finalidade apresentada e da
motivação oferecida.”36 Face a estas ideias e considerando que o Brasil já lida há décadas com
o Plano de Imunização Nacional que determina a vacinação compulsória com a imposição de

31
BRASIL. Acórdão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587. Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2020.
32
ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção dos interesses
individuais homogêneos. 2ªed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 37.
33
BRASIL. Lei nº 9.784. Brasília: Congresso Nacional, 1999.
34
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 39.
35
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 38-40.
36
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Malheiros, 2004. p. 76.
127

medidas coercitivas indiretas – de restrição de acesso a determinados espaços e vedação de


exercício de atividades especificadas – sem tê-lo anteriormente questionado, vê-se que a
decisão de declaração de constitucionalidade da obrigatoriedade de vacinação é coerente frente
à legislação brasileira e necessária para a proteção da mais ampla gama de direitos.

No entanto, vê-se relevante mencionar que dentre as medidas coercitivas previstas em


outros textos normativos – haja vista que não estão especificadas as restrições passíveis na lei
nº 13.979 de 202037 – encontra-se a proibição de matrículas em creches, no ensino fundamental
e médio às crianças não vacinadas. Entende-se que é este um dos ônus mais significativos
impostos àqueles que recusarem a vacinação, pois a educação também é direito fundamental
social reconhecido expressamente no artigo 6º da Constituição da República Federativa do
Brasil38, sujeito ao regime jurídico desta espécie, e objeto de regulamentação detalhada nos
artigos 205 a 214 da lei máxima como complexo de deveres e direitos.39

Desse modo, a restrição a educação em qualquer contexto deve ser analisada com alto
grau de zelo a fim de que não haja violação ao direito à educação, majoritariamente de crianças
e adolescentes que possuem prioridade absoluta na ordem jurídica brasileira e a negativa de
matrícula a qualquer criança ou adolescente no sistema de ensino brasileiro é um tipo de
violência. Logo, conquanto proporcional a determinação de obrigatoriedade de vacinação no
país a fim de promover a saúde pública, entende-se necessário o aprofundamento do exame
sobre as restrições decorrentes da negativa de vacinação especialmente no que tange a grupos
vulneráveis como as crianças e os adolescentes, para que não se tolham direitos fundamentais
na ânsia de concretizá-los.

5. CONCLUSÃO

Por conseguinte, o cenário alastrado de crise social decorrente da pandemia da COVID-


19 implicou que o poder público se dedicasse ainda mais à proteção dos grupos sociais
vulneráveis, porquanto cenários de crise amplificam sua hipossuficiência na mesma medida em
que devem os órgãos competentes aumentarem sua proteção40, com o escopo de manter a

37
BRASIL. Lei nº 13.979. Brasília: Congresso Nacional, 2020.
38
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Assembleia Nacional Constituinte, 1988.
39
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017.
40
LINERA, Miguel Ángel Presno. Estado de alarma por coronavirus y protección jurídica de los grupos
vulnerables. In: El Cronista del Estado Social y Democrático de Derecho, 86-87, 2020. pp. 54-65. p. 2.
128

dignidade humana e o fornecimento de um mínimo existencial à sua população. Nesse sentido,


a despeito de ser parte do exercício pleno da cidadania a afirmação das liberdades individuais
ao lado da preservação dos direitos sociais41, a vacinação compulsória se mostra ato de
solidariedade e a imunidade coletiva é bem público da nação que deve ser buscado através de
meios necessários, adequados e proporcionais - concretizando o direito fundamental social à
saúde de maneira preventiva - e, em última instância, em consonância aos fins últimos da
sociedade brasileira, e, ainda que estipule ônus possíveis e proporcionais de serem
implementados, sem – contudo – autorizar qualquer forma de violência para sua efetivação,
exigindo constante vigilância coletiva.

REFERÊNCIAS

ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais: para além da proteção
dos interesses individuais homogêneos. 2ªed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014.

BRASIL. Acórdão das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.586 e nº 6.587. Brasília:


Supremo Tribunal Federal, 2020.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Assembleia Nacional


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41
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Cidadania no Estado Democrático de Direito. In: BASSO, Ana Paula; et all. Direito e Desenvolvimento
Sustentável: Desafios e Perspectivas. Curitiba: Editora Juruá, 2013. pp. 239-251. p. 245.
129

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Acesso em: 13 Set. 2022.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Novel Coronavirus (2019-nCoV) - SITUATION


REPORT – 1 -21 JANUARY 2020. Disponível em: https://www.who.int/docs/default-
source/coronaviruse/situation-reports/20200121-sitrep-1-2019-ncov.pdf?sfvrsn=20a99c10_4.
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130

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Constituição Federal de 1988. 10. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2019.

VASCONCELOS, Fernando A. de; BRANDÃO, Fernanda H. de V. Direito à Saúde,


Desenvolvimento e Cidadania no Estado Democrático de Direito. In: BASSO, Ana Paula; et
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ZANETI JÚNIOR, Hermes. Direito Processual dos Desastres. Palestra online ministrada no
Grupo de Estudos Araken de Assis (GEAK), coordenado pela Professora Mariângela Guerreiro
Milhoranza da Rocha, em 22 de maio de 2020.
131

DIREITO À SAÚDE NO PERÍODO PANDÊMICO: REFLEXÕES SOBRE OS


ASPECTOS LEGAIS E SOCIAIS

Marcos Paulo Garcia de Andrade1

Resumo: Objetiva-se com o presente artigo, abordar os aspectos legais e sociais da


aplicabilidade do Direito à Saúde no contexto da Pandemia Covid-19 que impactou a sociedade
em todos os setores. Trata-se de uma revisão bibliográfica de caráter exploratório e abordagem
qualitativa. Delimitou-se como objetivo geral compreender a aplicabilidade do Direito à Saúde
para os indivíduos no cenário da pandemia. Para tal, determinou-se três objetivos específicos:
1) Apresentar a legislação vigente do Direito à Saúde no âmbito jurídico-legal brasileiro; 2)
Discutir sobre a colisão dos Direitos fundamentais e as medidas preventivas de combate à
disseminação do Novo Coronavírus; e 3) Analisar a jurisprudência especializada.
Palavras-Chaves: Direito à Saúde. Pandemia. Análise Jurisprudencial.

1. INTRODUÇÃO

O Direito à Saúde é regulamentado pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988)


em seu Art. 6º e demais instrumentos normativos, como a Lei 8.080/90 que determina as
atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS). Com o cenário da pandemia Covid-19,
discussões acerca dos conflitos entre os direitos individuais e coletivos ganharam destaque na
literatura científica.

Diante disso, delimitou-se para esta pesquisa a seguinte questão-problema: Como o


Direito à Saúde tem sido abordado pela doutrina e aplicado nas decisões judiciais em tempos
de pandemia?

Espera-se propiciar reflexões para os profissionais do Direito sobre o conflito de


interesses individuais e coletivos no âmbito da pandemia. Duas hipóteses são levantadas
previamente: a) A eficácia do Direito à Saúde é essencialmente um problema da Administração
Pública; e b) Em crises sanitárias emergenciais - como a pandemia - deve-se prevalecer o bem-
estar e a saúde coletiva;

1
Graduado em Direito pela Universidade FEEVALE, Especialista em Direito Tributário, Consumidor, Trabalho
e Direito Aplicado aos Serviços de Saúde pela Faculdade Dom Alberto, inscrito na OAB/RS sob nº 114.741, e-
mail: marcos.andrade.advocacia@gmail.com
132

Delimitou-se como objetivo geral desta pesquisa compreender a aplicabilidade do


Direito à Saúde para os indivíduos no cenário da pandemia Covid-19. Para tal, foram definidos
três objetivos específicos: 1) Apresentar a legislação vigente do Direito à Saúde no âmbito
jurídico-legal brasileiro; 2) Discutir sobre a colisão dos Direitos fundamentais e as medidas
preventivas de combate à disseminação do Novo Coronavírus; e 3) Analisar a jurisprudência
especializada.

Quanto aos aspectos metodológicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica de caráter


exploratório quanto aos objetivos e de abordagem qualitativa.

Por fim, optou-se por estruturar o Referencial Teórico intitulado “Direito à Saúde no
período pandêmico: reflexões sobre os aspectos legais e sociais” a fim de facilitar a
compreensão do assunto em duas seções, sendo estas: “Direito Fundamental à Saúde” e “O
Direito à Saúde no contexto da pandemia Covid-19: análise jurisprudencial”.

2. DIREITO À SAÚDE NO PERÍODO PANDÊMICO: reflexões sobre os aspectos legais


e sociais

2.1 Direito fundamental à saúde

A saúde é um Direito Social previsto no Art. 6º da Constituição Federal (BRASIL,


1988). Trata-se de uma das atribuições estatais nos três níveis da Administração Pública - o
Federal, o Estadual e o Municipal -, sendo orientada pelos preceitos constitucionais e
operacionalizada através da implementação da Lei nº 8.080, de 19 de dezembro de 1990 (Lei
8.080/90), que versa acerca do Sistema Único de Saúde (SUS).

A saúde, sendo um Direito Fundamental adquirido por meio de ambos os instrumentos


normativos supracitados, é um serviço público à disposição de todo cidadão brasileiro. Dois
apontamentos iniciais devem ser formulados a partir da dessa constatação.

A primeira é que a promoção da saúde, enquanto Direito Fundamental, é um problema


público cuja responsabilidade cabe ao Estado. Contudo, assinala-se que as iniciativas privadas
de saúde estão previstas na legislação - respectivamente, no Art. 4º, parágrafo 2° da Lei
8.080/90 e Art. 199 da CF/88. Tais iniciativas são permitidas, no escopo de ambas as normas,
133

na condição de complemento a uma atuação que é, essencialmente, estatal. No mesmo segmento


encontram-se as organizações privadas sem fins lucrativos e a sociedade civil, a título de
exemplo.

O segundo apontamento é que a “descentralização político-administrativa, com direção


única em cada esfera de governo” prevista no Art. 7º, inciso (inc.) IX, da Lei 8.080/90, dá
margem à tamanha regionalização das ações previstas que tanto a implementação dessas
atividades quanto o seu acompanhamento, são evidentemente dificultosos.

Forte exemplo de tal dificuldade pode ser encontrada nos resultados do estudo realizado
por Mello et al (2017). Ao investigar o que consta na literatura científica sobre a regionalização
do SUS nos estados e municípios brasileiros, os autores identificaram desigualdade na
qualidade de atendimento, contextos socioeconômicos regionais desfavoráveis à realização das
políticas públicas federais, ausência de qualificação do corpo técnico no serviço público, falta
de unidade entre os municípios e os estados, atividades feitas de forma isoladas e não unificadas
com o direcionamento federal, baixo nível de fiscalização e interferências por parte dos atores
políticos locais (MELLO et al, 2017).

Claudio José Amaral Bahia e Ana Carolina Peduti Abujamra tecem comentários sobre
a concretização do direito à saúde no âmbito jurídico-legal brasileiro, como lê-se a seguir:

Enquanto o poder constituinte (originário) almejou construir um Estado Democrático


e Social de Direito, com papel ativo na busca da redução das desigualdades sociais,
as políticas públicas recentemente levadas a cabo pelo Poder Executivo, com o
beneplácito do Legislativo, têm caminhado, muitas vezes, em direção contrária,
reduzindo-se, minimizando-se e enfraquecendo-se o alcance de tais ideais, mediante
a transferência da prestação dos serviços públicos, inclusive os essenciais, como a
saúde, para a iniciativa privada (BAHIA; ABUJAMRA, 2019, p. 297).

A reflexão dos autores baseia-se na oposição entre aquilo que especificam os princípios
fundamentais - da garantia indiscriminada à dignidade e à soberania (BRASIL, 1988), mais
especificamente - e a lógica neoliberal que atingiu a Administração Pública. Nesse sentido,
Viana e Silva (2018, p. 2107) afirmam que “o bem comum precisa ser defendido ou insulado
tanto da devassa provocada pelo capital financeiro quanto pela erosão e fragmentação
provocada pelo neoliberalismo nas instituições públicas e nos sistemas de proteção social”.
134

Dirceu Siqueira e Fabricio Fazolli, ao discorrer sobre o Direito à Saúde, afirmam a sua
relevância para o cumprimento do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Para os autores,
o direito à saúde deve ser atrelado ao “direito da personalidade” (SIQUEIRA; FAZOLLI, 2015,
p. 186), tendo em vista o seu caráter essencialmente individual.

Não se pode ignorar, todavia, que o alcance da saúde do indivíduo causa impactos na
saúde coletiva. Reflete-se, neste ponto, que o direito à saúde deve ser observado a partir de
ambos os seus desdobramentos, sendo eles o individual e o coletivo.

2.2 O direito à saúde no contexto da pandemia covid-19: análise jurisprudencial

As discussões sobre os conflitos entre a subjetividade dos direitos e a saúde coletiva


não são recentes. A título de exemplificação, a pandemia do Zika vírus acarretou na
investigação de Sérgio Rego e Marisa Palácios, que buscaram apreender com maior exatidão a
complexa relação dos interesses público-privados no que concerne às situações de emergência
sanitárias (REGO; PALÁCIOS, 2016).

No ano de 2020, com a instauração da pandemia do SARS-CoV-2 (Novo Coronavírus),


medidas preventivas foram tomadas pelas instituições públicas a fim de impedir a disseminação
do vírus. Até dezembro de 2021 foram contabilizados mais de 600 mil óbitos decorrentes da
infecção (BRASIL, 2021). De acordo com Campello, Oliveira e Amaral (2021, p. 22) “Em
tempos de pandemia por Covid-19, todavia, os próprios direitos sociais imanentes ao direito à
cidade entraram em rota de colisão com o direito à saúde”, o que significa afirmar que o
confronto de direitos ocorreu e, como consequência, a judicialização da saúde torna-se uma
pauta indispensável para o debate da promoção da saúde no Brasil.

Sobre a judicialização do direito à saúde, cabe ressaltar a explicação de Luiz Roberto


Barroso, citado por Rayssa Caldeira:

Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social


estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas
tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo (...). Como intuitivo, a
judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com
alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação
da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma
tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional
brasileiro (BARROSO, 2015 apud CALDEIRA, 215, p. 237).
135

A judicialização do direito à saúde se dá, portanto, quando as políticas públicas de saúde


não estão sendo formuladas de maneira adequada, em acordo com os princípios normativos -
no caso do Poder Legislativo - ou, ainda, estão sendo equivocadamente executadas por parte do
Poder Executivo. Entre os principais problemas encontrados por Caldeira, observam-se a
burocracia para a efetivação das ações, os esquemas de corrupção e os erros no planejamento
dos programas de intervenção elaborados pelas forças estatais (CALDEIRA, 2015).

No presente contexto, cabe destaque à Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (Lei


13.979/20), que versa acerca do combate ao Novo Coronavírus no âmbito federal:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância


internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas
competências, entre outras, as seguintes medidas:
I - isolamento;
II - quarentena;
III - determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
III-A - uso obrigatório de máscaras de proteção individual;
IV - estudo ou investigação epidemiológica;
V - exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI - restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de:
VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que
será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
VIII - autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de
quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos
à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no
combate à pandemia do coronavírus (BRASIL, 2020, online).

Destacar-se-á que tanto o inc. III quanto o inc. III-A do Art. 3º da Lei pontuam uma
obrigatoriedade amplamente debatida na doutrina. Não por acaso autores discorrem sobre as
“medidas drásticas de restrição aos direitos fundamentais em nome da preponderância do direito
à saúde” (CORREIA; MARINHO; TAKAOKA, 2020, p. 27) que estão contidas na referida lei.
O fenômeno das competências concorrentes também é observado em estudos sobre a temática.
Nesses casos, “o princípio da proporcionalidade atua nessas questões e pondera de forma a
equacionar e resolver os direitos em conflito” (ABUD; DE SOUZA, 2020, p. 40).
136

Após a exposição da doutrina sobre a temática e as reflexões aqui propostas, torna-se


relevante analisar a jurisprudência a fim de compreender a aplicabilidade do direito à saúde no
contexto da pandemia. Apresenta-se trecho de ementa do Supremo Tribunal Federal (STF):

Decisão: Trata-se de medida cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito


Fundamental (ADPF), proposta pelo diretório nacional do Partido Social Democrático
(PSD), contra o art. 2º, II, a, do Decreto n. 54.563, de 12.3.2021, do Estado de São
Paulo, que vedou a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de
caráter coletivo. Eis o teor do texto normativo impugnado:
Art. 2º As medidas emergenciais instituídas por este decreto consistem na vedação de:
(...)
II - realização de:
a) cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo;
Alega o Autor que “o referido ato normativo, um decreto, sob a justificativa de
instituir medidas de contenção à transmissão do novo coronavírus, estabeleceu
restrições totais ao direito constitucional à liberdade religiosa e de culto das religiões
que adotam atividades de caráter coletivo, criando tanto proibição inconstitucional,
quanto discriminação inconstitucional, tendo em vista a existência de práticas
religiosas que não possuem ritos que envolvem atividades coletivas” (eDOC 1, fls. 1-
2). Ao proceder à vedação em causa, o ato impugnado incorreria em violação ao
direito à liberdade religiosa e de culto (art. 5º, VI, da CF/1988) [...] Da
constitucionalidade das medidas temporárias de restrição ao exercício de atividades
religiosas coletivas determinadas pelo Decreto Estadual Mesmo que se cogitasse que
o Decreto impugnado nesta ADPF configura uma restrição no núcleo essencial do
direito fundamental de liberdade religiosa, não há como examinar a
constitucionalidade dessa restrição senão utilizando as balizas fixadas por este
Supremo Tribunal Federal para adoção de medidas sanitárias de combate à pandemia
de COVID-19. [...] Como finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a
solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor
realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas
recomendações da Organização Mundial da Saúde. 2

Na decisão do relator Ministro Gilmar Mendes, optou-se por priorizar o direito à saúde
frente ao direito fundamental de liberdade religiosa. Nesse caso, as diretrizes do STF são a da
consecução das orientações feitas pelos órgãos da saúde a nível internacional - como é o caso
da OMS - e nacional - como é o caso do MS. Privilegia-se, na decisão, a saúde coletiva frente
aos interesses individuais de um grupo religioso, tendo em vista a situação de calamidade
pública que é o combate à disseminação do vírus.

A seguir, uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS):

2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF: 811 SP 0050295-20.2021.1.00.0000. REQTE.(S) : PARTIDO


SOCIAL DEMOCRÁTICO - PSD NACIONAL, INTDO.(A/S) : GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO
PAULO. Relator: GILMAR MENDES. Brasília, DJ: 05/04¹2021, DP: 06/04/2021. Disponível em:
https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1190170941/medida-cautelar-na-arguicao-de-descumprimento-de-
preceito-fundamental-adpf-811-sp-0050295-2020211000000. Acesso em: 25 de novembro de 2021.
137

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. USO DE


MÁSCARA COBRINDO O NARIZ E A BOCA NAS DEPENDÊNCIAS DO
CONDOMÍNIO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. OBRIGATORIEDADE DO
USO DE MÁSCARA, EM TEMPO DE PANDEMIA, ALÉM DE DECORRER DO
PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE (ART. 3º, I, DA CF), TEM POR BASE O
DISPOSTO NO ART. 3º A DA LEI 13.979/2020 E NO ART. 15 DO DECRETO
ESTADUAL Nº 55240/2020. ADEMAIS COMO ARRIMO NO ART. 5º, CAPUT,
DA CF, QUE TRAZ COMO GARANTIA FUNDAMENTAL A
INVIOLABILIDADE DO DIREITO À VIDA, O USO DA MÁSCARA DURANTE
A PANDEMIA NÃO PODE SER VISTO COMO UMA OPÇÃO INDIVIDUAL, AO
TALANTE DE CADA UM, MAS COMO UM IMPERATIVO DE CIDADANIA,
COM PRIMAZIA DA COLETIVIDADE EM DETRIMENTO DE ESCOLHAS
PRIVADAS. OUTROSSIM, A ASSERTIVA DO AGRAVANTE, DE QUE O
DECRETO ESTADUAL QUE PREVÊ O USO DE MÁSCARAS DURANTE A
PANDEMIA NÃO ESTARIA SUBSUMIDO NO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
FORMAL, PREVISTO NO ART. 5º, II, DA CF, NÃO SE SUSTENTA, POIS O
MEMO USO DE MÁSCARAS TAMBÉM TEM PREVISÃO NO ART. 3º DA LEI
13.979/2020.
DECISÃO AGRAVADA, QUE DETERMINOU AO AGRAVANTE A
UTILIZAÇÃO DE MÁSCARA COBRINDO O NARIZ E A BOCA NAS
DEPENDÊNCIAS DO CONDOMÍNIO MANTIDA. AGRAVO DESPROVIDO.
UNÂNIME.3

A decisão do TJ-RS, no mesmo sentido da decisão do STF demonstrada acima, também


prioriza o direito à saúde frente a liberdade individual na propriedade privada. Pontua-se,
todavia, que a decisão não prevê ilegalidade na obrigatoriedade do uso de máscaras na área
comum do condomínio e, nesse sentido, a limitação da liberdade individual dos condôminos é
justificada no ordenamento jurídico.

Observa-se, portanto, a saúde como pauta de interesse coletivo no período pandêmico.


Em harmonia com os pressupostos teóricos do pesquisador José Ricardo Cunha, defende-se
neste trabalho que a autonomia, perante uma comunidade, se exerce através da relação com o
outro e, para além, proporciona uma experimentação do mundo enquanto promove a
participação integrada sob um senso de coletividade (CUNHA, 2018).

3 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Vigésima Câmara Cívil. AI: 51409027320218217000
RS. Relatr: Dilso Domingos Pereira. Rio Grande do Sul. DJ: 29/09/2021, DP: 01/10/2021. Disponível em:
https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1318910839/agravo-de-instrumento-ai-51409027320218217000-rs.
Acesso em: 25 de novembro de 2021.
138

3. CONCLUSÃO

Ao término deste trabalho, pode-se concluir que o Direito à Saúde no contexto da


pandemia deve ser observado e aplicado através de uma ótica coletiva e com prioridade em
relação aos outros direitos individuais. Fundamenta-se tal afirmação com a análise da
jurisprudência especializada exposta no decorrer desta pesquisa, as decisões recentes do
Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS).

Dito isso, foi possível averiguar as hipóteses levantadas e observou-se que a eficácia do
Direito à Saúde é, de fato, essencialmente um problema da Administração Pública. Diante disso,
verificou-se também - com o auxílio da doutrina especializada e jurisprudência - que em crises
sanitárias emergenciais deve-se prevalecer o bem-estar e a saúde coletiva.

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conter a COVID-19 no Brasil: limitação legítima ao direito fundamental de autodeterminação.
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Acesso em: 25 de out. de 2022.
141

OS IMPACTOS DA TECNOLOGIA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Melissa Daandels1

Resumo: Como legado da pandemia da Covid-19, novas tecnologias na área da saúde crescem
de forma exponencial, criando novos paradigmas neste setor transdisciplinar ao exigir do
médico adaptações iminentes no seu modo de cuidar o paciente. Diversos são os reflexos
experimentados cm virtude da aplicação da tecnologia nas rotinas em saúde, especialmente no
exercício da Medicina e na interação entre os profissionais médicos e os pacientes. Necessárias
para que o tratamento possa ser realizado com a eficácia esperada, a implementação da
tecnologia na área da saúde e a adequada informação (como prática médica efetiva) modificam
a conduta humana de modo a reconectar a relação existente entre o médico e o paciente,
permitindo a retomada da proximidade e da confiança e tornando o cuidado mais humano e
personalizado, especialmente para a melhoria efetiva na qualidade do atendimento e no cuidado
do paciente.

Palavras-chave: Confiança. Cuidar. Informação. Relação médico-paciente. Tecnologia.

1 INTRODUÇÃO

Reflexos da pandemia da COVID-19, a área da saúde vivencia constantes e efetivas


transformações na atualidade, em busca de novas soluções e a consolidação de pontes
relacionais para o tratamento e o cuidado dos pacientes.
Toda a sociedade conectada vem sendo organizada em volta de interações realizadas
pela tecnologia nos cuidados com o paciente, modificando os processos de conclusão de
diagnósticos, bem como tornando possível a detecção precoce de patologias, o monitoramento
de pacientes em tempo real, os processos decisórios de internação e maior precisão dos
tratamentos.
Com efeito, as novidades tecnológicas decorrentes dos avanços apresentados pelas
ciências médicas se materializam sob a forma de novos equipamentos, medidas e
procedimentos de cuidados em saúde, que decorrem de inovações determinantes de novas

1
Advogada. Pós-Graduada em Direito Processual Civil. Pós-Graduada em Direito Médico. MBA em gestão
jurídica hospitalar e da saúde. Certificada em Lei Geral de Proteção de Dados e Compliance pelo Hospital Sírio
Libanês (SP) e em Ética e Compliance pelo Hospital Albert Einstein (SP). Secretária-Geral da CEDS da OAB/RS,
Subseção Canoas. Membro da CEDS da OAB/RS.
142

atividades profissionais, com novas capacitações e formalização de novos processos de se


relacionar com o paciente no exercício da Medicina.
São novas frentes que, anteriormente inexistentes, vem a estabelecer uma transformação
nas formas de cuidado do paciente, proporcionando diagnósticos mais precisos, influenciando
o profissional na tomada de decisões e, em tempos mais curtos, permitindo a adoção de
tratamentos com mais efetividade e segurança, tanto para os pacientes como para os médicos.
Fundamentais para promover mudanças no comportamento e no modo de agir das
pessoas em sociedade, a tecnologia pode (e deve) ser aproveitada na área da saúde para o bem
comum, de modo a melhorar a qualidade do atendimento e o bem-estar das pessoas, bem como
para garantir que o foco das relações humanas de interação seja sempre o paciente.
De fato, o próprio paciente se encontra em posição de destaque: já não é mais um
indivíduo passivo, mas sim um participante interativo, conectado em rede, com acesso quase
que ilimitado à informação e com elevado poder de decisão sobre a sua saúde.
Enquanto o paciente exige maior transparência e participação nas decisões sobre os seus
cuidados de saúde, o médico se depara com a mudança na sua forma de trabalhar e de interagir
com o paciente, transformando a própria relação médico-paciente.
Nesse sentido, a implementação da tecnologia no setor da saúde traz uma necessidade
de disrupção de modelos tradicionais nas demandas em saúde, o que deve acontecer sempre em
benefício do paciente, de modo adequado e seguro, reestruturando a relação de confiança e de
cuidado que se constrói entre ele e o profissional.
Com foco, portanto, na eficiência dos sistemas e na qualidade do atendimento ao
paciente, a expectativa no setor da saúde, com o avanço em tempo real das tecnologias, é
promover a integração de novas ferramentas digitais à vida do profissional de saúde, de modo
que tenha as condições e informações adequadas e necessárias para a tomada de decisões e a
melhoria na qualidade do atendimento ao paciente.

1.1 A tecnologia sem fronteiras na saúde

A área da saúde vive um momento de profundas e contínuas transformações


intensificadas pela tecnologia e inovação. Essas tecnologias modernas têm contribuído, em
grande medida, para a solução de problemas antes quase impensáveis, e que se consagra em
melhores condições de vida e saúde para os pacientes.
143

Com efeito, afirma Carvalho (2019, p. 54), “a sociedade contemporânea configura um


ambiente novo baseado em comunicação e informação, cujas regras, modos de convivência e
operação estão sendo construídos, em tempo real, em todo o mundo". Contudo, a área da saúde
se reveste de maior complexidade, porquanto trata com o ser humano, seu cuidado e sua vida.
De fato, a tecnologia na área da saúde permite diagnósticos cada vez mais precisos, bem
como tratamentos personalizados cada vez mais eficientes e específicos. Aplicativos digitais
monitoram sinais vitais, emitem diagnósticos e os profissionais de saúde tem acesso a
informações a respeito do estado físico dos pacientes.
Soluções digitais se disseminam pelo setor de saúde, como plataformas para tornar o
aconselhamento médico, o diagnóstico e o monitoramento mais acessíveis e de melhor
qualidade, oferecendo serviços como laudos de exames de imagem via internet ou sistemas de
monitoramento do paciente à distância, enquanto outras buscam melhorar a integração entre
clínicas, laboratórios, hospitais e médicos.
Com o acesso aos dados clínicos de cada paciente, em tempo real, e a visão do conjunto
dos pacientes, bem como do banco de dados com evidencias médicas coletadas em milhões de
casos, foi possível aprofundar o conhecimento sobre o perfil de cada paciente e de sua condição
de saúde, com novas possibilidades de aprimoramentos de sua jornada e no desfecho de seu
tratamento. (KLAJNER; LOTTENBERG; SILVA, 2019).
Nesse sentido, doutrinam Dallari e Monaco (2021, p. 349) “a inteligência artificial pode
ser utilizada para diversas finalidades, dentre elas, a identificação de patologias, como na
hipótese de um profissional que possui um laudo inconclusivo e utiliza-se de uma robusta base
de dados para realizar a comparação do resultado com outros casos similares”.
As tecnologias atualmente disponíveis permitem até mesmo que startups utilizem
algoritmos2 para a realização de atividades preditivas e classificações de acordo com as
instruções inseridas pelo programador, ensejando a realização de tarefas específicas, como a
tradução de textos, o reconhecimento de voz e a realização de classificação de perfil.
Com a ferramenta do prontuário eletrônico da saúde3, permite-se ao médico uma visão
completa e integrada da condição de saúde de cada paciente, o que o torna essencial para agilizar

2
“Um algoritmo pode ser definido, de modo simplificado, como um conjunto de regras que define precisamente
uma sequência de operações para várias finalidades”. (HARTMANN; SILVA, 2019, p. 74)
3
Já o prontuário eletrônico médico é a versão digital dos tradicionais prontuários registrados em papel nos
consultórios médicos, nas clinicas e nos hospitais. Esses prontuários contêm os dados clínicos de cada paciente,
elaborados pelo médico ou equipe médica no consultório, clinica ou hospital e são usados para o diagnóstico e
144

o tempo de cuidado e guiar a tomada de decisão das equipes de atendimento, bem como para
“evitar que a cada consulta o paciente precise repetir todas as informações sobre a sua condição
de saúde e que os médicos peçam novamente os mesmos exames solicitados anteriormente”.
(KLAJNER, LOTTENBERG; SILVA, 2019, p. 38).
De fato, a introdução dos diversos instrumentos da tecnologia da informação e a
profusão de modernos e sofisticados equipamentos na área da saúde trouxeram muitos
benefícios e rapidez na luta contra as doenças, revolucionando a forma de tomada das decisões
e gerando impacto nas relações sociais e econômicas, na saúde e na ciência por meio da criação
de novos meios para coletar, manipular, analisar e exibir dados.
Segundo Klajner; Lottenberg; Silva (2019, p. 50), “as novas tecnologias também vem
melhorando a qualidade do atendimento e a experiência dos pacientes: aumentou a rapidez no
atendimento na atenção primária, os diagnósticos são mais precisos e o encaminhamento do
paciente a especialistas, quando necessário, é mais rápido”.
Nesse cenário, comemora Carvalho (2019, p.15), “uma instituição de saúde inteligente,
seja ela hospital, clínica médica ou o próprio consultório médico, investe nas novas tecnologias
sem perder o foco na motivação em equipe, obtendo, desta forma, excelentes resultados que
repercutem diretamente na motivação dos pacientes, que percebem a dedicação e o cuidado no
trabalho sendo espontaneamente fidelizados”.
De modo natural, cumpre-se o engajamento do paciente, pois este encontrará na
mediação por tecnologias uma forma de relação de continuidade remota com a equipe de saúde,
contribuindo de forma eficiente para o tratamento de sua saúde.
É a era das coisas, serviços e pessoas se conectando por meio de redes inteligentes,
suscitando uma mudança radical e de qualidade, em busca de um sistema de saúde mais
acessível, inteligente, humanizado e personalizado e com uma efetiva melhoria na qualidade do
atendimento percebida pelos pacientes, nos resultados e na sustentabilidade do sistema de
saúde.
Nesse cenário, e considerando-se que a utilização da tecnologia na área da saúde vem
promovendo uma mudança de paradigma - impulsionada pelo aumento da disponibilidade de
dados de assistência médica e pelo rápido progresso das técnicas de análise – em contraponto

tratamento. São mais valiosos do que os registros em papel porque permitem que os provedores acompanhem os
dados ao longo do tempo, identifiquem os pacientes para visitas e exames preventivos e possam monitorá-los
mais facilmente, melhorando a qualidade dos serviços de saúde (KLAJNER; LOTTEMBERG; SILVA, 2019, p.
39).
145

ao distanciamento provocado pela transformação digital e a intermediação das tecnologias,


fundamental a adoção de um novo olhar para o paciente.

1.2 A tecnologia na transformação do cuidado com o paciente

Com a implementação das novas tecnologias na área da saúde, acelerada pela pandemia
da COVID-19, profundas transformações ocorreram na dinâmica que envolve a interação do
médico e o paciente.
De fato, o advento da internet fomentou a criação de novos canais de comunicação entre
o profissional e o usuário do sistema de saúde e tem modificado as possibilidades para o médico
se relacionar com seus pacientes, transformando, inclusive, a forma como estes interagem com
a própria saúde.
A difusão das informações por meio digital impactou no perfil do paciente que, hoje,
muito mais informado, tem também maior poder de decisão e autonomia sobre o que fazer com
relação à sua saúde o que, por consequência, tornou o trabalho dos médicos mais interpretativo,
intuitivo e personalizado, em busca da oferta de serviços mais ágeis e práticos (KLAJNER;
LOTTENBERG; SILVA, 2019).
Diante de um amplo acesso à informação, os usuários do sistema de saúde tornam-se
mais exigentes com os serviços oferecidos, porquanto não buscam tão somente a qualidade no
atendimento: eles desejam que toda a experiência vivenciada e disponível em saúde seja
otimizada e atenda às suas expectativas, de modo a influenciar na relação médico-paciente.
Via de regra, ensina Timbó (2020, p. 90), a “relação médico-paciente é pautada na
confiança depositada bilateralmente, que tende a se renovar entre as partes, e que tem a marca
distintiva de ambas estarem envolvidas na persecução de um objetivo principal em comum: o
restabelecimento da saúde do paciente”.
Nesta relação bilateral e sinalagmática, sustenta DANTAS (2021), cumpre ao médico
não somente o comprometimento, de forma essencial e desde sempre, com a saúde e a vida de
seus pacientes, mas também o dever de informá-los sobre as possíveis abordagens para o seu
tratamento, envolvendo-o na escolha consciente, para fins de recebimento do seu
consentimento.
No que diz respeito ao acesso à informação, as novas tecnologias transformaram esse
encontro entre o profissional e o usuário da saúde de modo que ambos discutem e compartilham
146

responsabilidades pelas decisões, tornando os pacientes não somente mais próximos aos
médicos e com maior poder de decisão sobre a sua saúde, mas, também, exigindo do médico a
oferta de serviços mais individualizados e personalizados.
Como o acesso à informação adequada e precisa é fundamental para os pacientes, e,
uma vez que nesse encontro ambas as partes discutem e compartilham responsabilidades
mútuas e recíprocas pelas decisões, exige-se dos médicos uma mudança comportamental, de
modo a transformar todo o cuidado do paciente.
Trata-se de um modo contemporâneo de pensar, que demanda do profissional a
incorporação e utilização correta de equipamentos, com o escopo de evitar erros e desperdícios;
a compreensão do impacto negativo da indicação de exames desnecessários para a
sustentabilidade do sistema e para o próprio paciente, bem como a visualização, pelo
profissional, do seu paciente como o centro do seu cuidado. (KLAJNER; LOTTENBERG;
SILVA, 2019).
É preciso entender, ainda, que o uso da tecnologia, por si só, não agregará valor ao
atendimento se não souber exatamente os dados ou resultados que espera obter com a sua
aplicação. Afinal, sustenta Carvalho (2019, p. 122), “o abuso em procurar respostas na
tecnologia pode levar também ao aumento de posturas intervencionistas que não agregam
qualidade ou valor à vida das pessoas”, fazendo com que se perca o foco no paciente e a
capacidade de enxerga-lo como um todo.
Deveras, o paciente deve ser o centro do sistema em saúde, onde o equilíbrio está
atrelado não somente ao estabelecimento de uma boa relação do profissional com seus
pacientes, mas, também, à busca simultânea da melhoria na experiência do paciente com o
cuidado, o que envolve também a qualidade, segurança e informação, tratando-o de acordo com
a sua condição clínica, de forma personalizada e mais humana.
A proposta, aponta Klajner; Lottenberg; Silva (2019, p. 131), “é focada na promoção
da saúde, e não na doença, e os cuidados de saúde são organizados em uma rede de prevenção
e acompanhamento”, onde a experiência do paciente está diretamente ligada à adesão aos
tratamentos e a sua melhor recuperação.
Isso revela uma mudança radical e de qualidade, em busca de um sistema de saúde mais
acessível, inteligente, humanizado e personalizado, com uma efetiva melhoria na qualidade do
atendimento percebida pelos pacientes, nos resultados e na sustentabilidade do sistema de
147

saúde, de modo que a interação médico-paciente se apoie na tecnologia, mas não se limite a ela
(CARVALHO, 2019).
Nesse cenário, portanto, é preciso reconhecer-se a necessidade crescente de desenvolver
uma interação comunicativa mais próxima e aberta entre pacientes e médicos, possibilitando
melhor qualidade do atendimento e cuidados aos usuários da saúde, de modo a aproveitar as
oportunidades e desafios que a tecnologia oferece e criar condições para abordá-los
adequadamente.

CONCLUSÃO

O uso das tecnologias tem inovado o setor da saúde em todo o mundo, de modo a
incorporar uma verdadeira transformação digital neste setor, onde a pandemia causada pela
COVID-19 se mostrou como uma forte impulsionadora na sua aderência.
De fato, a tecnologia possibilita a prevenção do surgimento de doenças e antecipação
de diagnósticos e terapêuticas, permitindo a realização de exames mais complexos e até mesmo
em tempo real, evoluindo para procedimentos menos invasivos e possibilitando um
atendimento de qualidade aos pacientes e aos problemas da saúde.
Além disso, como benefícios evidentes advindos da tecnologia na área da saúde, pode-
se mencionar maior rapidez na descoberta de novos tratamentos, compilação de mais dados de
forma organizada no auxílio ao diagnóstico, celeridade na detecção de sintomas, descoberta e
desenvolvimento de novos medicamentos.
Em um cenário abastecido de informação, ciência e poder, as tecnologias surgem
trazendo soluções inovadoras e disruptivas, tornando os pacientes mais proativos sobre os
cuidados com a própria saúde, o que demanda e incentiva reflexões sobre o próprio processo
de construção da confiança que pauta o cuidado à saúde na relação médico-paciente.
A saúde, que é (e deve ser) centrada no cuidado à pessoa humana, precisa se apropriar
dos benefícios que a tecnologia proporciona para provocar o acesso à informação, com
velocidade e eficiência, de modo que esta ferramenta dinamize a relação médico – paciente. A
transformação digital deve ser centrada no paciente e não na tecnologia.
Com efeito, em um momento de aceleradas mudanças e incertezas, o caminho adequado
para o futuro requer que as relações humanas se tornem centrais, a fim de que as imprescindíveis
148

pontes em construção revelem bons resultados para os pacientes e para a sociedade como um
todo.

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149

REFLEXOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NO ACESSO A JUSTIÇA

Veridiana Tavares Martins1

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 provocou grande impacto na economia, sistema de saúde,


bem como no ordenamento jurídico brasileiro. O isolamento social, provocado pelas medidas
sanitárias, assim como um aumento sem precedentes número de processos judiciais exigiu que
o Poder Judiciário buscasse formas de garantir o acesso à justiça a todos e trabalhar com vista
à adequada prestação jurisdicional.

Neste ponto, diante dos efeitos da judicialização, foi preciso reforçar e enaltecer novas
forma de tratamento de conflitos, bem como de que acesso à justiça e direito de ação não são
excludentes de soluções consensuais de controvérsias.

Aqui, forma alternativa de resolução de controvérsias que já havia sido inserida no


ordenamento jurídico brasileiro e que ganhou grande destaque nesse período de crise foi a
mediação.

Dentro deste contexto esse estudo se debruçará sobre o novo conceito de acesso à justiça
e os métodos de tratamento de conflitos já validados no ordenamento brasileiro, especialmente
a mediação e como essa refletiu como forma mais indicada para áreas como as atinentes aos
conflitos da saúde.

1. TRATAMENTO DE CONFLITOS E O ACESSO A JUSTIÇA

A palavra “conflito” sempre foi muito associada a ideia de confrontos bélicos, guerras
ou brigas. No cenário dos operadores do direito isso não era muito diferente. Contudo, na última
década, o conceito de conflitos vem ganhando novo sentido no ordenamento jurídico brasileiro,
especialmente com a publicação da Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) que “Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos

1
Advogada, OAB/RS 68.362, Mediadora de Conflitos Capacitada pela Escola da Magistratura – AJURIS.
Especializanda em MASCs – Meios Adequados de Solução de Conflitos e Docência no Ensino Superior na
Faculdade Verbo Educacional, e-mail veridianamartins@gmail.com
150

de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências”,

A referida resolução trata da organização dos serviços de conciliação, mediação e outros


métodos consensuais de solução de conflitos, bem como da criação de Juízos de resolução
alternati.va de conflitos, verdadeiros órgãos judiciais especializados na matéria, como os
Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs) nos
Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça, e os Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania (Cejuscs) nas Comarcas.

Contudo, apesar da instituição dessa nova política pública a expressão “conflito” era
compreendida de forma muito insipiente, começando a tornar-se matéria-prima dos operadores
jurídicos a partir do Código de Processo Civil de 2015, Lei nº 13.105/15, que introduziu a
mediação como uma etapa do processo, e da Lei nº 13.140/15, a Lei da Mediação, marco legal
da mediação no Brasil.

A introdução dessa nova forma de tratamento de conflitos pelo Poder Judiciário trouxe
não apenas um novo significado para a ideia de conflito como passou a ressignificar a ideia de
acesso à justiça.

Dentro deste cenário que vinha se estabelecendo no país, o CNJ editou o Manual de
Mediação Judicial onde esclareceu que acesso à justiça e acesso ao Judiciário são coisas
distintas. Acesso ao Judiciário resume-se unicamente em levar as demandas dos necessitados
ao Poder Judiciário, enquanto acesso à justiça implica em incluir os jurisdicionados que estão
à margem do sistema para que possam ter seus conflitos resolvidos ou receberem auxílio para
que resolvam suas próprias disputas, ou seja,

[...] o acesso à justiça está mais ligado à satisfação do usuário (ou jurisdicionado) com
o resultado final do processo de resolução de conflito do que com o mero acesso ao
poder judiciário, a uma relação jurídica processual ou ao ordenamento jurídico
material aplicado ao caso concreto [...] acesso à Justiça passa a ser concebido como
um acesso a uma solução efetiva para o conflito por meio de participação adequada –
resultados, procedimento e sua condução apropriada – do Estado.2

Disto verifica-se que o acesso à justiça através do Poder Judiciário somente ocorrerá se
este garantir a prestação jurisdicional efetiva, ou seja, com resultados que atendam as
necessidades dos jurisdicionados. Para tanto, faz-se necessário que essa tutela ocorra no tempo

2
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação
Judicial, 6ª Ed. Brasília: CNJ, 2016, 39
151

adequado, sob pena de não atender mais aos interesses do litigante. Declarar ou até mesmo
entregar “o direito” a destempo não serve para tratar o conflito e sim apenas para que o
Judiciário se livre dele. Tal interpretação de acesso à justiça encontra consonância com o inciso
LXXVIII ao art. 5º da CRFB o qual diz que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são
assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”
O processo judicial tem se mostrado uma forma anacrônica de tratamento de conflitos,
pois o tempo do processo não é o tempo da sociedade. O poder jurisdicional do Estado oferece
ao cidadão uma alternativa “unissex de tamanho único”, a qual serve, mas nem sempre da
melhor forma possível3.
Contudo, a evolução legislativa vem possibilitando que seja assegurada ao cidadão o
tratamento mais adequado a cada conflito, considerando as especificidades de cada caso, em
similitude a ideia norte-americana do Tribunal Multiportas.
O conceito do Tribunal Multiportas surgiu no final da década de 1970, nos Estados
Unidos, e compreende uma forma de organização do Poder Judiciário como um centro de
resolução de disputas, o qual possibilita a escolha de diferentes procedimentos para cada caso,
em função das características específicas de cada conflito4.
Ou seja, em vez de existir uma única “porta” (o processo judicial) o Tribunal Multiportas
constitui um sistema amplo com várias opções de procedimentos no qual as partes podem ser
direcionadas ao mais adequado a cada disputa.

[...] a escolha do método de resolução mais indicado para determinada disputa precisa
levar em consideração características e aspectos de cada processo, tais como: custo
financeiro, celeridade, sigilo, manutenção de relacionamentos, flexibilidade
procedimental, exequibilidade da solução, custos emocionais na composição da
disputa, adimplemento espontâneo do resultado e recorribilidade.5

O art. 3º do Código de Processo Civil compreende esta ideia.

3
MARTINS, Veridiana Tavares. Mediação: uma alternativa fraterna para o tratamento de conflitos. In:
BARZOTTO, Luiz Fernando; MULLER, Felipe de Matos; COLPO, Luciana Dessanti, BARZOTTO, Luciane
Cardozo (org.). Direito e Fraternidade: outras questões. Porto Alegre: Editora Sapiens, 2017, p.271
4
MALLMANN, Manuela Scalco. Fórum de Múltiplas portas ou Tribunal Multiportas. In: MARODIN, Marilene;
MOLINARI, Fernanda (org.). Mediação de Conflitos: paradigmas contemporâneos e fundamentos para a prática.
Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016, p.89.
5
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação
Judicial, 6ª Ed. Brasília: CNJ, 2016, 17
152

Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.


§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos
deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do
Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Atualmente, tratar um conflito judicialmente significa pedir ao Juiz, imbuído do poder


que lhe foi conferido pelo Estado, de dizer quem ganha e quem perde o litígio, impondo por
meio da força o Direito. A sentença judicial prolatada pelo juiz “determina um ganhador ou um
perdedor, e também soluciona o conflito, mesmo que a ‘solução’ seja passageira e possa vir a
dar origem, posteriormente a uma nova demanda judicial”6
Assim, a busca por uma nova política no tratamento de conflitos tem se mostrado
necessária em razão de que a tutela jurisdicional não estar apresentando-se como a melhor
forma de obter a paz social.

[...] abrir mão da lógica processual judiciária de ganhador/perdedor para passar a


trabalhar com a lógica ganhador/ganhador desenvolvida por outros meios de
tratamento (dentre os quais a mediação), que auxiliam não somente na busca de uma
resposta consensuada para o litígio, mas também na tentativa de desarmar a contenda,
produzindo, junto as partes, uma cultura de compromisso e participação.7

Hoje a Resolução nº 125/2010 do CNJ não caminha sozinha quanto a premissa do


tratamento adequado de conflitos. Os valores consensuais trazidos pelo Código de Processo
Civil de 2015, bem como pela Lei da Mediação abrem-nos os olhos para uma nova realidade:
a mediação como instrumento de acesso à justiça e no tratamento de conflitos.

2. A MEDIAÇÃO NO TRATAMENTO DOS CONFLITOS

A mediação é uma forma de autocomposição de conflitos, ou seja, é um método não


adversarial, onde os próprios conflitantes, através do diálogo facilitado por um mediador,
buscam a satisfação de seus verdadeiros interesses.
O parágrafo único do art. 1º da Lei da Mediação conceitua mediação como “a atividade
técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas
partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a
controvérsia”

6
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. 2.ed.
Ijuí: Editora Unijui, 2016, p. 159/160.
7
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento de conflitos. 2.ed.
Ijuí: Editora Unijui, 2016, p. 162
153

Neste aspecto o CNJ vem empregando esforços para que a mediação seja respeitada em
seu papel no tratamento dos conflitos, orientando como deverá se dar a formação dos
mediadores já que, como referido acima, trata-se de uma atividade técnica, apresentando no
Anexo 1 do Manual de Mediação8 o conteúdo programático do curso básico de mediadores.
O mediador deve ter conhecimento multidisciplinar adequado para o bom desempenho
de seu papel. Eligio Resta9 atribui ao mediador o papel de “tradutor” que deve ficar no meio
das linguagens diversas e servir de meio, entre uma e outra.

Enquanto as partes litigam e só vêem seu próprio ponto de vista, cada um de maneira
especular em relação a outra, o mediador pode ver as diferenças comuns aos
conflitantes e recomeçar daqui, atuando com o objetivo de as partes retornarem a
comunicação, e exatamente o munus comum a ambas.
[...]
O mediador é agora meio para a pacificação, remédio para o conflito graças ao estar
entre os conflitantes, nem mais acima, nem mais abaixo, mas ao seu meio; [...]10

Por ser a mediação uma alternativa consensual de tratamento de conflitos a igualdade


se faz como condição sine qua non para sua realização, pois sem igualdade não pode se
estabelecer o consenso, ou seja, o consenso somente é obtido entre iguais, visto que entre os
desiguais vale o poder e a autoridade, conforme afirma Luis Fernando Barzotto11.
A mediação, ao fazer com que os conflitantes reestabeleçam a comunicação
enfraquecida pelo conflito, torna-os capazes de deliberarem sobre uma solução pacífica para a
controvérsia. Desta forma, faz das partes protagonistas do próprio destino, pois não estão
submetidas à decisão de um terceiro (o Juiz). O resultado final será de cunho fraterno, pois os
litigantes poderão decidir juntos (como irmãos) e não de cunho paterno pela imposição do
Estado.
A mediação apresenta-se como uma alternativa de tratamento de conflitos que se afirma
em ideias de responsabilidade compartilhada pelo resultado final, reforçando as relações de
reciprocidade entre os sujeitos, assim como o sentimento de cooperação e parceria.
Para Eligio Resta12 o caráter “cooperativista” da mediação é o que mais a afasta dos
mecanismos tradicionais de resolução de conflitos do juízo, sendo construída sobre uma

8
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.). Manual de Mediação
Judicial, 6ª Ed. Brasília: CNJ, 2016, p.275-189
9
RESTA, Elígio. O direito fraterno. Tradução: Sandra Regina Vial. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p.131
10
RESTA, Elígio. O direito fraterno. Tradução: Sandra Regina Vial. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p.126
11
BARZOTTO, Luis Fernando. Teoria do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p.124.
12
RESTA, Elígio. O direito fraterno. Tradução: Sandra Regina Vial. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, p.118
154

dimensão pactuada e convencional, por ele chamada de “justiça de proximidade”, orientada por
uma filosofia de justiça restaurativa, que envolve modelos de composição e gestão de conflitos
menos impositiva.
O sucesso da mediação está no comprometimento das partes com a solução por elas
encontrada, tal fato se dá através de sua participação efetiva na construção da solução do
conflito. Ou seja, quando os litigantes decidem juntos a forma de tratamento do conflito, a
resistência ao seu cumprimento é muito menor, pois sentem-se parte do resultado.
Importante observar também que a mediação, além de ser orientada pela relação fraterna
e de igualdade entre os cidadãos, privilegia também a autonomia da vontade das partes fazendo
valer princípio da liberdade.
Disto pode-se afirmar que a mediação é a forma mais democrática de tratamento e
solução de conflitos, na qual a cidadania é exercida, ante aos princípios da liberdade, igualdade
e fraternidade.
Os valores consensuais trazidos pela evolução legislativa dão luz à concretização do que
vem preconizado no preâmbulo da CRFB “...uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias…”.
Este novo aparato legislativo brasileiro apresenta em seu cerne os métodos consensuais
de tratamento de conflitos como caminho para a paz social e solução pacífica das controvérsias,
destacando-se a mediação como chave mestra para tal fim.

3. REFLEXOS DA PANDEMIDA DA COVID-19 NO ACESSO A JUSTIÇA

O estado de calamidade pública deflagrado pela pandemia da COVID-19 levou ao


isolamento social, suspensão e alteração de muitas atividades, inclusive no Poder Judiciário.
Em 19 de março de 2020 a CNJ editou a Resolução nº 313/20 que suspendeu os prazos
processuais até dia 30 de abril, modificando a rotina dos tribunais e exigindo uma revisão do
conceito “de acesso à justiça”.

O CNJ ao editar o Manual de Mediação Judicial esclareceu que acesso à justiça e acesso
ao Judiciário são coisas distintas. Acesso ao Judiciário resume-se unicamente em levar as
demandas ao Poder Judiciário. Acesso à justiça implica em incluir os jurisdicionados que estão
à margem do sistema para que possam ter seus conflitos resolvidos ou receberem auxílio para
155

que resolvam suas próprias disputas.

Sob esse novo olhar, pode-se afirmar que o “acesso à justiça” está mais ligado à
satisfação do cidadão com a solução de conflito do que com o mero acesso ao Poder Judiciário.
Essa conclusão conduz à uma mudança de mentalidade e comportamento dos advogados -
essenciais para administração da justiça - especialmente ao se verificar que há um movimento
dos operadores do Poder Judiciário que acompanha essa nova ideia.

Dito isso, o Poder Judiciário passou a adotar medidas que não permitissem que a
pandemia provocada pela COVID-19 afetasse o acesso à justiça aos cidadãos. Destaca-se aqui
a Recomendação nº 01/2020 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), de 25 de
março de 2020, que recomendava aos Tribunais do Trabalho “adoção de diretrizes excepcionais
para o emprego de instrumentos de mediação e conciliação de conflitos individuais e coletivos
em fase processual e fase pré-processual por meios eletrônicos e videoconferência”, uma das
primeiras a orientar os Tribunais na adoção de práticas autocompositivas como forma de
enfrentamento da crise que estava se vivenciando.

Desde então, o Poder Judiciário passou a trabalhar na construção de medidas pautadas


especialmente na mediação como forma efetiva de assegurar o acesso à justiça aos cidadãos.

Em dezembro de 2020 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul implementou um


Projeto-Piloto voltado a autocomposição de temas relacionados a Saúde Pública e Suplementar
com a instauração do Cejusc-Saúde, obtendo os primeiros resultados positivos em janeiro de
202113, alinhando-se aos objetivos da Agenda 2030 da ONU.

A Agenda 2030 é um compromisso global, coordenado pela Organização das Nações


Unidas (ONU) e propõe ação de governos, instituições, empresas e a sociedade em geral para
o enfrentamento dos maiores desafios do mundo contemporâneo. O plano indica 17 Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (os ODS) com o fito de erradicar a pobreza e promover vida
digna para todos.

Dentre os ODS da Agenda 2030 merece destaque aqui: “Objetivo 16 - Paz, Justiça e
Instituições Eficazes” que se refere ao compromisso dos países em promover sociedades

13
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em:
<https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/cejusc-realiza-primeiro-acordo-em-projeto-piloto-de-conciliacao-em-
temas-da-saude/ > Acesso em 29 out.2022
156

pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, em proporcionar o acesso à justiça


para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

Como forma de atingir o ODS 16 fora aprovada, no XIII Encontro Nacional do Poder
Judiciário14, a Meta 9 do CNJ a qual consiste em integrar a Agenda 2030 ao Poder Judiciário a
partir da realização de ações de prevenção ou desjudicialização de litígios.

Ainda, também com vistas a difundir e auxiliar o processo de implementação da


Agenda 2030, o CNJ publicou a Resolução nº 325/2020 a qual dispõe sobre a Estratégia
Nacional do Poder Judiciário 2021-2026, com a definição de Macrodesafios.
Dentre dos Macrodesafios da Estratégia do Poder Judiciário para os próximos anos
está a “Prevenção de Litígios e Adoção de Soluções Consensuais para os Conflitos”, a qual
refere-se ao fomento de meios extrajudiciais para prevenção e para resolução negociada de
conflitos, com a participação ativa do cidadão. Visa estimular a comunidade a resolver seus
conflitos sem necessidade de processo judicial, mediante conciliação, mediação e arbitragem.
Abrange também parcerias entre os Poderes a fim de evitar potenciais causas judiciais e
destravar controvérsias existentes.
Nesta seara, no que se refere à judicialização do direito a saúde o CNJ em 16/06/2021
publicou a Recomendação nº 100/21, recomendando o uso de métodos consensuais de solução
de conflitos em demandas que versem sobre o direito à saúde, com a implementação de Centros
Judiciários de Solução de Conflitos de Saúde (Cejusc), para o tratamento adequado de questões
de atenção à saúde, inclusive aquelas decorrentes da crise da pandemia da Covid-19, na fase
pré-processual ou em demandas já ajuizadas.
A referida recomendação veio institucionalizar uma forma de atuação já praticada pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que a partir da recomendação publicou o Ato
Conjunto nº 002/2021-P, de dispões sobre criação do Centro Judiciário de Solução de Conflitos
virtual da saúde (Cejusc-Saúde) para a implantação da mediação on-line pré-processual e
processual relacionada a questões advindas de quesitos da saúde.
Esse cenário nos mostra que a criação de órgãos como os Cejusc-Saúde e o uso da
mediação se alinham aos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, sendo instrumento
que visa promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, na

14
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2020/01/Metas-Nacionais-aprovadas-no-XIII-ENPJ.pdf> Acesso em 29 out.2022
157

busca de proporcionar o acesso à justiça a todos.

CONCLUSÃO

Apesar do novo conceito de acesso a justiça vir sendo aplicado e reconhecimento no


ordenamento jurídico brasileiro há alguns anos, a pandemia da COVID-19 acelerou o processo
de conscientização e aceitação sobre ele. A crise estabelecida pelo contágio do coronavírus
exigiu dos operadores do direito, assim como do próprio Poder Judiciário, uma nova visão sobre
as formas de tratamento de conflitos.
A mediação, forma autocompositiva de solução e conflitos, inserida no ordenamento
jurídico brasileiro em 2010, e parte integrante do procedimento do processo civil brasileiro
desde 2015, ganhou maior destaque nesses anos pandêmicos, sendo fonte de recomendação do
CNJ sua aplicação pelos Tribunais de Justiças e Tribunais Regionais.
A relevância da mediação como alternativa mais adequada para o tratamento dos
conflitos referentes a área da saúde ganhou tamanha relevância que deu azo a implementação
de Cejusc-Saude, como órgão especializados na resolução desses conflitos.
São em momentos de crise que surgem novas ideias e se rompem paradigmas.

REFERÊNCIAS

BARZOTTO, Luis Fernando. Teoria do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Azevedo, André Gomma de (Org.).


Manual de Mediação Judicial, 6ª Ed. Brasília: CNJ, 2016

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/wp-


content/uploads/2020/01/Metas-Nacionais-aprovadas-no-XIII-ENPJ.pdf> Acesso em 29
out.2022

MALLMANN, Manuela Scalco. Fórum de Múltiplas portas ou Tribunal Multiportas. In:


MARODIN, Marilene; MOLINARI, Fernanda (Org.). Mediação de Conflitos: paradigmas
contemporâneos e fundamentos para a prática. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2016

MARTINS, Veridiana Tavares. Mediação: uma alternativa fraterna para o tratamento de


conflitos. In: BARZOTTO, Luiz Fernando; MULLER, Felipe de Matos; COLPO, Luciana
Dessanti, BARZOTTO, Luciane Cardozo (org.). Direito e Fraternidade: outras questões. Porto
Alegre: Editora Sapiens, 2017

SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra cultura no tratamento
158

de conflitos. 2ª ed. Ijuí: Editora Ijuí, 2016

RESTA, Elígio. O direito fraterno. Tradução de Sandra Regina Vial. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2004

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em:


<https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/cejusc-realiza-primeiro-acordo-em-projeto-piloto-de-
conciliacao-em-temas-da-saude/ > Acesso em 29 out.2022.

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